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Mare Nostrum, ano 2013, n. 4
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MARE NOSTRUM.
ESTUDOS SOBRE O MEDITERRNEO ANTIGO
2013, NMERO 04
ISSN 2177-4218
Mare Nostrum, ano 2013, n. 4
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SUMRIO I. EDITORIAL........................................................................................................iv
II. ARTIGOS
1. Processos de integrao e desintegrao na Grcia no final da Idade do Bronze e incio da Idade do Ferro (1300 a 800 a.C.). Juliana Caldeira Monzani...............................1
2. Os Estudos Demticos e a Possibilidade de uma Nova Egiptologia. Thais Rocha da Silva.............................................................................................................................. ...................22
3. Plnio, o Jovem, e suas atividades administrativas e jurdicas: a formao de uma carreira poltica durante o Principado Romano. Dominique Monge Rodrigues de Souza...............................................................................................................................................44
4. O Processo de Legitimao e Reconhecimento do Priscilianismo na Segunda Metade do Sculo IV. Danilo Medeiros Gazzotti......................................................................67
5. nforas Panatenaicas e Paisagens Estruturais. Gilberto da Silva Francisco..............81
III. LABORATRIO
Ensaio:
1. Entre a Repblica e o Imprio: apontamentos sobre a amplitude desta fronteira. Fbio Faversani............................................................................................................................100
Comentrios:
2. Comentrio ao artigo de Fbio Faversani intitulado Entre a Repblica e o Imprio: apontamentos sobre a amplitude desta fronteira. Alexandre Agnolon........112
3. Comentrio a Entre a Repblica e o Imprio: apontamentos sobre a amplitude desta fronteira, de Fbio Faversani. Fbio Duarte Joly..................................................115
4. Implementando apontamentos tenussima divisa entre Repblica e Imprio Romano. Paulo Martins..............................................................................................................118
5. Comentrio. Rafael da Costa Campos..................................................................................126
6. Comentrio crtico sobre o texto Entre a Repblica e o Imprio: apontamentos sobre a amplitude desta fronteira, de Fbio Faversani. Juliana Bastos Marques.......132
7. Commento a Fbio Faversani. Guido Clemente...............................................................139
Rplica
8. Entre a Repblica e o Imprio: multiplicidade de fronteiras. Fbio Faversani.....146
IV. RESENHAS
1. PAPA, Helena Amlia. A contenda entre Baslio de Cesareia e Eunmio de Czico (sc. IV d.C.): Uma anlise poltico religiosa. Por Pedro Lus de Toledo Piza.................153
2. ZANKER, Paul. Arte romana. (col. Economica Laterza). Por Fbio Augusto Morales.............................................................................................................................. ............163
3. GENZ, Hermann e MIELKE, Dirk Paul (org). Insights Into Hittite History and Archaeology. Por Anita Fattori.................................................................................................170
4. CONGIU, M.; MICCICH, C. e MODEO, S. (a.c.d.), Dal mito alla storia. La Sicilia nellArchaiologhia di Tucidide. Atti del VIII Convegno di studi (Caltanissetta, 21-22/05/2011). Por Paolo Daniele Scirpo.175
5. RICHARD, Carl. J. Why we're all Romans. The Roman contribution to the Western world. Por Gilberto da Silva Francisco.....................................................................182
6. GUARINELLO, Norberto Luiz. Histria Antiga. Por Fbio Duarte Joly....................192
Mare Nostrum, ano 2013, n. 4
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I - Editorial
O Laboratrio de Estudos sobre o Imprio Romano (LEIR), que um
laboratrio de mbito nacional, foi criado em meados de 2008 com o intuito de
estimular as pesquisas em Antiguidade, principalmente aquelas relacionadas ao
Imprio Romano. O LEIR-MA-USP (Laboratrio de Estudos sobre o Imprio
Romano e Mediterrneo Antigo), que possui como especificidade a presena de
membros que realizam pesquisas sobre temas para alm dos relacionados
Roma antiga, responsvel pela criao da Revista Mare Nostrum, sempre
procurou estimular o debate de ideias e a discusso na pesquisa acadmica.
Seus colquios, sempre que possvel, buscavam criar espaos de crtica que
pudessem auxiliar os pesquisadores a pensar sobre seus objetos e sobre seu
prprio trabalho.
Com essa mesma finalidade que a comisso editorial da Revista Mare
nostrum apresenta em seu quarto nmero, alm dos artigos e resenhas, um
debate entre pesquisadores de vrias partes do Brasil. A proposta do
Laboratrio desta edio apresentarmos um artigo principal comentado por
professores/pesquisadores de vrias universidades do Brasil e de fora do pas,
com espao para resposta do autor principal. Essa experincia aqui realizada,
com excelentes resultados, ser retomada nas prximas edies.
O artigo principal do professor da UFOP Fbio Faversani, Entre
Repblica e Imprio: apontamentos sobre a amplitude desta fronteira, prope
um debate sobre a passagem da Repblica para o Imprio como demarcaes
temporais rgidas e naturalizadas. Como o prprio ttulo aponta, o autor prope
que a fronteira entre esses dois perodos (aqui entendida como barreira/diviso)
seja estendida, que haja uma ampliao de escalas, ou melhor, que se
proponham diferentes escalas para pensar a articulao entre rupturas e
permanncias entre esses dois momentos. Ao final de seu artigo, Faversani
constri uma espcie de poema construtivista, um esquema visual que visa
demonstrar a articulao entre os dois momentos, e as infinitas possibilidades
de pens-las.
O comentrio de Alexandre Agnolon abre a sesso de comentrios, que
seguido pelo de Fbio Joly. Este ltimo relembra o argumento de Aloys
Winterling para comentar que, em vez de se falar em momentos republicanos
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e momentos imperiais que se articulam de vrias maneiras, preciso lembrar
que as fontes nos ajudam a pensar em uma mesma repblica em constante
transformao. Paulo Martins busca destacar o papel dos conceitos de potestas e
auctoritas nesse contexto de anlise estipulado por Faversani. Rafael Campos e
Juliana Bastos vo redirecionar seus olhares para a dinastia jlio-cludia. O
primeiro destaca o fato de que o principado deve ser visto como um momento
de experimentao poltica e essa dinastia como um momento de transio, uma
vez que encontramos prticas imperiais ao longo da Repblica, e memrias
republicanas a partir da ascenso de Augusto. Bastos ressalta a importncia de
se pensar as rupturas, principalmente no perodo na dinastia em questo,
relacionadas, principalmente, ao novo para os antigos, que no algo indito,
mas sim a retomada de um passado e a manuteno de determinadas tradies.
Por ltimo temos o comentrio de Guido Clemente que prope um exerccio de
reflexo comparativa, e coloca lado a lado o perodo de ascenso de Augusto e os
pr-fascista, fascista e ps-fascista. Nele o comentarista ressalta a importncia
de se considerar o papel de alguns atores polticos nas transformaes que no
podem, nem devem, ser esquecidas e/ou ignoradas.
A resposta de nosso autor principal se concentra basicamente em dois
pontos: primeiro ressaltar a importncia do debate que props, lembrando que
as periodizaes devem sempre ser encaradas pelos historiadores como
problema histrico e no como um dado histrico. O outro destaque feito por
Fbio Faversani fora com relao ao conceito de fronteira utilizado por ele, uma
vez que faz questo de ressaltar a utilidade deste conceito como recurso
analtico importante para os analistas, deixando sempre explicitado que seu uso
intencional e arbitrrio (no natural).
A seo corriqueira de artigos traz quatro contribuies independentes
que no dialogam diretamente com o debate, mas que em vrios pontos
tangenciam as questes que ali aparecem. O primeiro de autoria de Juliana C.
Monzani. Com o ttulo de Processos de Integrao e Desintegrao na Grcia
no final da Idade do Bronze e incio da Idade do Ferro (1300 a 800 a.C.); o
artigo prope uma reflexo acerca do fim da cultura micnica e o incio do
mundo clssico, destacando suas permanncias (continuidade de ocupao,
lngua, plano dos templos derivados do mgaron, etc) e apresentando as vrias
propostas de explicao para a crise que se deu no Mediterrneo Oriental no
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sculo XIII a.C. Em seguida apresenta-se o artigo Os estudos Demticos e a
possibilidade de uma nova Egiptologia, de Thais R. da Silva. Nele encontra-se
uma extensa apresentao dos estudos da lngua demtica e das vrias
possibilidades de estudos do Egito a partir deste idioma, principalmente no
perodo Ptolomaico. Dominique M. de Souza e seu texto Plnio, o Jovem, e suas
atividades administrativas e jurdicas: a formao de uma carreira poltica
durante o Principado Romano nos faz conhecer o cursus honorum de Plnio, o
Jovem e sua atuao como advocatus na passagem do sculo I d.C para sculo II
d.C. Ao analisar algumas das cartas de Plnio, a autora procura pensar as
relaes interpessoais entre a elite do principado poca da dinastia jlio-
cludia. H ainda o artigo de Danilo M. Gazzotti, O processo de Legitimao e
Reconhecimento do Priscilianismo na segunda metade do sculo IV. Nele o
autor discute as questes relativas difuso da interpretao que Prisciliano,
membro da elite local da Pennsula Ibrica, d ao cristianismo e como ocorre
sua difuso, pensando principalmente nos embates deste e de seus seguidores
com autoridades religiosas e polticas do Imprio. Por fim, h o artigo de
Gilberto da Silva Francisco, nforas panatenaicas e paisagens estruturais, em
que o autor discute a noo de paisagens estruturais para compreender a
variao contextual em que esse tipo especfico de nfora se insere em
diferentes momentos histricos.
Ao fim deste nmero apresentamos cinco resenhas. As obras
resenhadas so: A contenda entre Baslio de Cesareia e Eunmio de Czico
(sculo IV d.C.): uma anlise poltico religiosa, de Helena Amlia Papa, feita por
Pedro Piza; Arte Romana, de Paul Zanker, resenhado por Fbio Morales;
Insights into Hittite History and Archaeology, de Hermann Genz e Dirk P.
Mielke, feita por Anita Fattori; Dal mito alla storia. La Sicilia nellArchaiologhia
di Tucidide, dos autores M. Congiu, C. Miccich e S. Modeo, escrita por Paolo D.
Scirpo, Why we're all Romans. The Roman contribution to the Western world,
de Carl. J. Richard por Gilberto da Silva Francisco e Histria Antiga de Norberto
Luiz Guarinello, por Fbio Duarte Joly.
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PROCESSOS DE INTEGRAO E DESINTEGRAO NA GRCIA NO FINAL DA IDADE DO BRONZE E INCIO DA
IDADE DO FERRO (1300 A 800 A.C.)1
Juliana Caldeira Monzani2
RESUMO: O presente trabalho se prope a pensar os processos de integrao e desintegrao na
Grcia no final da Idade do Bronze e no incio da Idade do Ferro. Assim sendo, pretendemos
analisar a unidade cultural estruturada durante o perodo micnico e suas relaes comerciais
bem como a desintegrao de ambas no final do segundo milnio e a configurao de um novo
modelo baseado na distino regional.
PALAVRAS-CHAVE: Idade do Bronze, Idade do Ferro, Grcia, unidade cultural, regionalizao.
ABSTRACT: It is the intent of this work to investigate the connections and disconnections in
Greece in the Late Bronze Age and Early Iron Age through the analysis of the cultural unity and
the commercial relationships built during the Mycenaean period, the collapse of both by the end
of second millennium, and the emergence of a new model based on regional traits.
KEYWORDS: Bronze Age, Iron Age, Greece, cultural unity, regional characteristics.
Introduo
As culturas do continente grego e das ilhas vizinhas tornaram-se
extremamente complexas no decorrer do terceiro e segundo milnios, atingindo
seu apogeu entre 1600 e 1220.3 J o final do segundo milnio (sculos XIII e
XII) testemunhou destruies macias acompanhadas de movimentos
populacionais no Mediterrneo Oriental.
At recentemente predominou a ideia de que o perodo micnico e a
Grcia Clssica seriam dois mundos distintos e sem conexo alguma. Segundo
tal abordagem a transio catica da Idade do Bronze para a Idade do Ferro
teria apagado completamente os traos da cultura micnica e causado uma
ruptura to profunda que impeliu um novo recomeo. Deste ponto de vista, o
mundo micnico seria dependente demais de modelos externos orientais para
desenvolver algo prprio, e quando os laos foram quebrados os gregos
1 O presente artigo resultado de apresentao oral Processos de Integrao no Mediterrneo Antigo: acelerao e crise no IV Encontro do Laboratrio de Estudos do Imprio Romano e Mediterrneo Antigo da Universidade de So Paulo (LEIR-MA/USP) realizado entre 30 de novembro e 2 de dezembro de 2011. 2 Mestre em Cincias Arqueolgicas pelo Museu de Arqueologia da Universidade de So Paulo (MAE-USP) e membro do Laboratrio de Estudos sobre Imprio Romano e Mediterrneo Antigo (LEIR-MA/USP). 3 Todas as datas so a.C.
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tornaram-se livres para criar novos pontos de vista polticos e intelectuais
(Starr, 1961).
Entretanto, igualmente necessrio considerar a importncia da Idade
do Ferro na formao das caractersticas da Grcia Clssica. Alguns traos que
ligam a cultura micnica ao mundo clssico seriam a continuidade de ocupao
de determinados stios, a lngua, o plano do templo derivado do mgaron4
micnico e o culto heroico em sepulturas micnicas.
Outrora denominada Obscura, a Idade do Ferro no o primeiro
perodo em que a regio apresenta um retrocesso, outros perodos
experimentaram declnios to longos embora no to severos. O Bronze Mdio
(2100/2000-1600) no continente, por exemplo, foi um perodo de declnio
cultural se comprado ao Bronze Antigo (3250-2000) e termina de forma
abrupta, com o aparecimento das Shaft Graves,5 iniciando uma poca (1600-
1450) de crescente prosperidade atestada pelos bens funerrios depositados em
tais sepulturas.
A tese de Vincent Desborough de que invasores drios retiveram pouco
da cultura micnica, com exceo da cermica, vem sendo questionada, e a
presena de invasores numericamente significantes parece bem menos
proeminente enquanto as continuidades culturais parecem mais evidentes.
(Thomas & Conant, 1999: xvi- xxii).
Final da Idade do Bronze (O Bronze Recente)
A denominao Civilizao Micnica foi adotada quando Schliemann
escavou a cidade descobrindo sua magnitude e riqueza, desvendando para o
mundo a civilizao da Idade do Bronze na Grcia, pelo fato que, nos poemas
homricos, Micenas era a cidade de Agammnon, que liderou os gregos contra
Troia, e pela uniformidade do registro arqueolgico no continente e nas ilhas
aps 1600 (Finley, 1990:51). A maior evidncia da organizao poltica da Grcia
vem-nos da uniformidade da arte micnica. Tal denominao, no entanto, no
deve ser entendida como uma hegemonia do palcio de Micenas sobre os
demais. O quadro arqueolgico mostra uma diviso da Grcia micnica em 4 Ampla sala com lareira central. 5 Tmulo em poo ou sepultura em fossa um tipo de estrutura de enterramento formada a partir de um poo estreito e profundo escavado na rocha natural. Estes tmulos possuem cerca de 4 metros de profundidade e os mortos eram colocados em cavidades situadas no fundo, juntamente com ricas oferendas funerrias.
http://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Oferenda_funer%C3%A1ria&action=edit&redlink=1
Juliana Monzani. Integrao e Desintegrao da Grcia (1300-800 a.C)
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pequenos Estados burocrticos e nada indica uma supremacia por parte de
Micenas. Os muros palaciais parecem ser um indcio que no havia um nico
grande poder, mas vrios wanax (reis) igualmente poderosos.
A partir do sculo XIII os micnios difundiram sua influncia para a
maior parte do Egeu, formando uma rea que apresenta uma homogeneidade
cultural como nunca antes na regio, ainda que haja variaes regionais
significantes. Creta, em especial, mantm muitas caractersticas prprias. So
caractersticas dessa cultura comum as chamber tombs,6 as tcnicas, formas e
decoraes cermicas, selos em pedra, uso do Linear B com finalidades
administrativas e as muralhas ciclpicas (Dickinson, 2006:24-5).
H, alm dessa unidade cultural egeia, o comrcio estabelecido com as
civilizaes do Mediterrneo Oriental. preciso admitir que se sabe muito
pouco sobre a natureza do comrcio micnico de longa distncia, mas seus
objetos de luxo (joias, vasos, mobilirio e relevos em marfim) so encontrados
em stios da sia Menor, do Levante e, em menor escala, do Egito. Da mesma
forma os produtos destas regies so encontrados em contexto micnico.
O BR (Bronze Recente) III A7 corresponde ao estabelecimento dos
palcios e do sistema palacial e o BR III B ao seu apogeu. O perodo Micnico
apresenta-se com uma grande riqueza material, uma agricultura muito
produtiva, uma organizao econmica baseada no armazenamento e
redistribuio e uma sociedade hierarquizada. O perodo de 1400-1200
marcado por um aumento no nmero de tumbas sugerindo que a populao da
Grcia crescera muito nesta poca. Ao que tudo indica a populao no sculo
XIII era mais numerosa do que jamais seria at o sculo V.
J por volta de 1600 a Grcia tornara-se um centro de riqueza e poder,
uma civilizao guerreira inigualvel na regio. Aos poucos os micnios foram
ganhando importncia e em 1450 invadiram Creta, instalando-se em Cnossos.
Em pleno auge a Civilizao Minoica teve o seu maior e mais rico palcio
governado pelos micnios. Foi provavelmente quando ocuparam Cnossos que
aprenderam o funcionamento do sistema burocrtico e a importncia da escrita
minoica (Linear A), da qual tomaram alguns smbolos emprestados e criaram
uma escrita prpria, o Linear B, que utilizaram na contabilidade e inventrios,
6 Tmulos em cmara escavados na rocha. 7 Cronologia: ver quadro cronolgico no final do artigo.
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caracterizando a escrita micnica como um instrumento de administrao. A
julgar pelas tabuinhas em Linear B, os palcios micnicos, assim como seus
contemporneos no Oriente Prximo, tinham um carter essencialmente
centralizador. Klaus Kilian (1988: p. xxvi) demonstrou que os palcios eram
centros administrativos, polticos, militares e religiosos.
H poucos palcios e muitas vilas, que provavelmente eram
independentes mas se submetiam ao poder do palcio principalmente em troca
de segurana. Ainda uma questo de debate a natureza do poder exercido
pelos palcios e as hipteses variam de um mero controle de rotas comerciais ao
controle total vastos territrios. Nenhum palcio da Grcia era maior que
Cnossos. Pilos, por exemplo, tinha 1/4 de seu tamanho. Diferentemente das
construes cretenses, os palcios micnicos eram estruturas bem organizadas
cujo centro era o mgaron.
Os micnios eram povos belicosos e isso se refletiu no seu sistema
palacial. Geralmente situados em elevaes ou colinas, o que lhes confere um
carter essencialmente defensivo, os palcios eram fortemente protegidos por
enormes muros denominados de muralhas ciclpicas devido lenda que atribui
muros to grandes e espessos obra dos gigantes Ciclopes.
Segundo Vernant (1972:12), exigindo uma aprendizagem difcil, o uso
do carro em batalha reforou a especializao da atividade guerreira, trao
caracterstico da organizao social e da mentalidade indo-europeia. A
necessidade de dispor de uma reserva numerosa de carros para concentr-los
no campo de batalha pressupe um Estado centralizado no qual homens e
carros esto submetidos a uma nica autoridade. Embora os palcios micnicos
fossem pequenos comparados aos cretenses, mesopotmicos ou egpcios,
requeriam especialistas de mesma ordem para mant-los em funcionamento.
No podemos deixar de lado as casas. Em sua maioria apresentam
planos retangulares, sendo que durante o BR I, II e III A as dimenses so
menores e, no BR III B, o plano mais complexo parece predominar. Uma grande
inovao do perodo micnico o edifcio intermedirio, i.e., uma categoria
entre as simples habitaes e os palcios, que apresenta um mobilirio mais
variado e rico e as tcnicas de construo e de decorao semelhantes s dos
palcios. Nesta categoria insere-se, por exemplo, a casa do mercador de leos
em Micenas (Treuil, 1989: 460). A funo de tais edifcios, no entanto, ainda
Juliana Monzani. Integrao e Desintegrao da Grcia (1300-800 a.C)
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no est clara: seriam a residncia de ricos mercadores ou apenas dependncias
palaciais?
O tmulo mais caracterstico eram as tholoi (construo arredondada
que possui um corredor de entrada ou dromos) e as cmaras funerrias,
chamber tombs. Embora poucas tholoi tenham permanecido intactas, as que
forneceram vestgios das prticas funerrias demonstraram os mesmos tipos de
prticas das cmaras funerrias, provando que o uso de dois tipos de sepultura
no reflete necessariamente diferenas sociais. Tais prticas so muito variadas,
mas predominam o enterramento mltiplo, a inumao e um grande nmero de
bens pessoais e utilitrios que acompanham o morto. Na realidade as prticas
funerrias so semelhantes quelas dos crculos funerrios, e atestam apenas
uma mudana na estrutura da sepultura, mas no nos costumes (Torralvo,
1993:143). interessante notar o quase total desaparecimento da sepultura em
fossa, caractersticas do BM (Bronze Mdio), durante o BR. As necrpoles
situavam-se dentro das muralhas das cidadelas.
A partir do BR II a cermica liberta-se da forte influncia minoica e
adota uma decorao cada vez mais estilizada, padronizada e homognea
(Treuil, 1989: 245). Como em Creta, os micnios possuam uma cermica com
um alto nvel tcnico e seus palcios eram decorados com afrescos cujo tema
principal era de ordem narrativa.
A expanso micnica prossegue do sculo XIV ao XII, levando os
micnios a substiturem os cretenses no comrcio, espalhando a cermica
micnica pela Anatlia, Oriente Prximo e Egito. Esta cermica amplamente
difundida era trocada por estanho e marfim. Secundariamente exportavam
tecidos e, talvez, mercenrios. Em troca recebiam bronze, estanho e vinho de
Cana, mulheres e bronze de Chipre, marfim da costa da Palestina, prata e
cavalos de Troia. Entretanto, ao que parece, os vasos micnicos parecem ter sido
importados mais pelo seu contedo (vinho e leos) do que por suas qualidades
tcnicas e artsticas (Treuil, 1989: 434).
Entretanto, difcil avaliar a penetrao efetiva dos micnios em tais
regies a partir apenas da ampla difuso de sua cermica. Para atestar a
presena micnica so necessrios vestgios de significao sociocultural, tais
como formas de habitao ou prticas funerrias, e no objetos utilitrios.
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Pouco sabemos sobre a religio micnica. Para os perodos anteriores
poca micnica a interpretao religiosa baseia-se somente na iconografia.
Doravante, s representaes figuradas em selos e afrescos vm se somar os
vestgios arquitetnicos, os objetos e algumas menes dos tabletes em Linear B
(Treuil, 1989: 523). As tholoi so, no sculo VIII, atestadas como locais de culto,
o denominado culto aos heris, mas ser que podemos remeter tal prtica ao
perodo micnico? O mgaron, com sua lareira central e enquanto sala
principal, deveria ser o centro de culto palacial.
As estatuetas de terracota, to frequentes em Creta, o so tambm no
continente, sendo as figurinhas femininas as mais difundidas. Elas reaparecem
no registro arqueolgico aps um lapso durante o BM e desaparecem
completamente aps o fim da Civilizao Micnica, o que indica que so
caractersticas deste sistema palacial. Hgg (1981:35-39) props uma
interpretao para as estatuetas micnicas: elas estariam fortemente associadas
ao culto popular em contraposio ao nvel palacial (ou oficial) da religio.
Assim, a religio micnica apresentaria dois nveis de culto: um oficial, ligado ao
palcio e elite com a adoo de costumes estrangeiros (influncia minoica)
ainda que seu contedo seja heldico; e um popular, sem influncia minoica.
Entretanto, as estatuetas femininas, embora tenham a forma e o estilo
continental, parecem ter sua origem nos contatos e influncias externos, em
particular Creta. Contudo, French (1971) considera, uma vez que os locais em
que se encontram as estatuetas so os mais variados (habitacional,
sepultamento e santurios), que o contexto fornece a funo a uma estatueta e
no o contrrio, ou seja, um significado religioso ou de qualquer outra natureza
no pode ser tomado a priori para determinar um contexto.
Nos tabletes em Linear B decifrados do palcio de Pilos h um
inventrio de doaes de devotos a uma lista de deuses, alguns caractersticos
da religio grega dos perodos arcaico e clssico tais como, Zeus, Poseidon e
Dioniso, um verdadeiro panteo com muitos nomes masculinos que pe em
cheque o culto deusa-me associado s estatuetas.
Todos estes dados esparsos tornam difcil compor uma ideia clara da
religio micnica. Tal dificuldade acaba gerando diferentes interpretaes entre
os estudiosos. Lvque (1967) fala em um sincretismo religioso indo-europeu e
egeu (Creta). No muito distantes desta ideia, mas de forma mais cuidadosa,
Juliana Monzani. Integrao e Desintegrao da Grcia (1300-800 a.C)
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Willian Taylour (1970) refere-se a uma identidade entre a religio micnica e
minoica com diferenas nos cultos. J Martin Nilsson (1950) enfatiza a
existncia de uma religio minoico-micnica.
Os distrbios do final do sculo XIII a.C.
No auge da Civilizao Micnica, o final da fase III B, comprova-se um
estratro arqueolgico de destruies. O quadro arqueolgico o de um perodo
instvel com vrios desastres ocorrendo em diferentes stios em diferentes
momentos. Embora no seja o objeto deste estudo, impossvel negligenciar as
perturbaes ocorridas no mesmo perodo em outras regies do Mediterrneo.
Na Anatlia, em todos os stios relevantes h sinais de destruio e a
capital hitita foi destruda por volta de 1200, levando dissoluo deste
imprio; Troia VIIa apresenta um nvel de destruio por fogo com cermica
micnica III C; h destruies considerveis na Sria (Ugarit) e na Palestina no
final do sculo XIII; e o Egito assistiu a um perodo conturbado. Ramss III, o
segundo fara da 20a Dinastia, enfrentou durante seu reinado pelo menos trs
grandes invases que, se no destruram o Egito, marcaram o declnio e o final
do Novo Imprio.
O quadro geral que se obtm de que, em um perodo de 40 ou 50 anos
entre o final do sculo XIII e o incio do XII, quase toda cidade ou palcio
importante no Mediterrneo Oriental foi destrudo e muitos deles nunca mais
foram ocupados. importante ressaltar que, com exceo de Chipre, as ilhas do
Egeu no parecem terem sofrido grandes perturbaes.
O palcio de Pilos destrudo pelo fogo na transio entre o III B-IIIC e
no apresenta sinais de ocupao posterior. Em Micenas existem trs nveis de
destruio: o primeiro ocorreu no final da fase III B 1 por volta de 1230 fora da
cidadela; o segundo atestado tanto dentro quanto fora da cidadela e datado
do final do III B 2 (1200/1190); e, por fim, no III C (c. 1125), h novas
destruies dentro da cidadela. O palcio destrudo pelo fogo mas no se sabe
ao certo se isto ocorreu na segunda ou na terceira destruio. De qualquer
forma, a rea apresenta uma ocupao j no III C (Drews, 1993: 23).
Situao idntica comprovada em Tirinto, onde h trs diferentes
perturbaes com a destruio do palcio - no segundo ou terceiro distrbio -
que imediatamente reocupado. Tebas apresenta um nvel de destruio no III
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B e uma nova ocupao. Em Orchomenos e Gla ocorreram distrbios ainda sem
data determinada (Drews, 1993:24).
Atenas e Volvos no apresentam qualquer nvel arqueolgico de
perturbao, e sim uma continuidade de ocupao entre o III B-IIIC (Hooker,
1976:148). Midea e Menelaion tambm foram destrudos e outras regies, como
a Messnia, foram abandonadas.
Como foi exposto, no final do sculo XIII, por volta de 1200 a.C., o
quadro que se obtm no homogneo. Os distrbios no ocorreram da mesma
forma nas diferentes regies da Grcia, tampouco tiveram os mesmos efeitos.
H locais em que sequer se comprova qualquer nvel de perturbao
arqueolgica. O que observamos o surgimento, j neste momento, de uma
diferenciao regional que caracterizar a Grcia durante a Idade do Ferro.
Hipteses
Muitas explicaes foram dadas tanto para tentar-se entender este
fenmeno localmente quanto de forma mais abrangente. Inicialmente as
hipteses eram monocausais, ou seja, baseavam-se em apenas uma causa, sejam
fenmenos naturais ou histricos. A sntese a seguir foi baseada no artigo de
Betancourt, The End of Greek Bronze Age (1976).
Uma das primeiras teses propostas neste sentido considerava que as
destruies, tomadas de forma isolada, tinham sido causadas por um fenmeno
natural: um terremoto. Evans foi pioneiro nesse tipo de explicao para a
destruio do palcio de Cnossos em 1400. Logo outros arquelogos passaram a
aceit-la. Blegen considerou que o mesmo teria acontecido com a cidade real de
Troia VIh. Mylonas identificou o mesmo fenmeno para o Peloponeso e
Iakovides, em 1977, declarou que um terremoto era a causa da destruio em
Micenas. O mesmo foi sugerido por Klaus Kilian para Tirinto e toda a regio da
Arglida, e por Paul Astrm para Midea (Drews: 36). Mas logo tal tese foi
rejeitada pelos mesmos arquelogos que a defenderam. Baseavam-se em quatro
pontos: primeiro, parece improvvel que um terremoto to forte tenha ocorrido
em todo o Mediterrneo Oriental no final do sculo XIII a.C, mesmo porque,
algumas cidades consideradas esto fora da zona ssmica; segundo, o estrago
causado por um terremoto uma coisa, mas a destruio total e abandono,
Juliana Monzani. Integrao e Desintegrao da Grcia (1300-800 a.C)
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como ocorreu, so caractersticos da ao humana. Aps um terremoto,
geralmente observa-se a reocupao e reconstruo da parte afetada, bem como
o enterro dos mortos. Mas isso no atestado arqueologicamente. Ora, como
explicar que praticamente nada foi enterrado sob os edifcios destrudos, nem
objetos, nem corpos?; terceiro, os incndios. Muitas das cidades e palcios
atingidos foram totalmente destrudos pelo fogo, mas pouco provvel que um
terremoto tenha causado incndios de tais propores; finalmente, nos
documentos escritos a respeito do perodo, a saber, os arquivos egpcios, o
templo de Ramss III e alguns documentos hititas, as causas das turbulncias
neste perodo em outras regies so sempre atribudas ao de povos
belicosos.
Inserido perspectiva de catstrofe natural, Pomerance props a data
da erupo do vulco em Tera por volta de 1200. Os obstculos tal teoria inclui
o fato das ilhas no terem sido afetadas, apresentando uma continuidade entre
o BR III B e C, enquanto que os maiores danos ocorreram no interior do
continente grego. Alm disso, os depsitos arqueolgicos sugerem que a data da
erupo bem anterior, provavelmente em torno de 1600. (Betancourt,
1976:41).
Outra tese que foi muito popular prope a alterao climtica.
Carpenter, em 1965, props que uma seca avassaladora teria ocorrido na Grcia
no final do sculo XIII. Ele se baseou na evidncia do abandono de muitas
regies. Tal hiptese foi amplamente aceita, servindo como explicao tambm
para o Levante e para a queda do Imprio Hitita. As destruies de palcios e
cidades eram explicadas como sendo o resultado do ataque de populaes
famintas. Entretanto, no h qualquer evidncia, nem arqueolgica, nem
escrita, de uma mudana drstica no clima do Mediterrneo neste perodo. Com
o aumento das escavaes e o incremento nas tcnicas empregadas, tornou-se
claro que as destruies atestadas foram resultantes da ao humana e as
hipteses com cunho de catstrofes naturais foram sendo abandonadas.
Childe apontou para as debilidades internas dos reinos tentando
explicar a falncia dos sistemas palaciais (apud Betrancourt, 1976:41). Nascia
assim a ideia de crise interna, causada por fatores como guerras entre estados,
fome, praga e, em especial, problemas sociais entre as classes. Embora este tipo
de estudo seja til para a compreenso das economias e sociedades do final da
Mare Nostrum, ano 2013, n. 4
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Idade do Bronze, ele no explica, no entanto, o fim dessas sociedades. Por mais
pertinentes que sejam as crticas que possam ser endereadas aos sistemas
burocrticos e centralizadores destes Estados, o fato que eles sobreviveram
durante um grande perodo e, no caso da Grcia Micnica, encontravam-se em
seu auge. As debilidades internas de cada sistema no contemplam o aspecto
fsico do fenmeno: a destruio e abandono das cidades.
Entretanto, dentre as hipteses de cunho histrico, as que obtiveram
maior popularidade foram aquelas baseada nas migraes populacionais, em
especial a hiptese da invaso dria. Mesmo no caso das duas ltimas hipteses
(seca e crise interna), as destruies eram geralmente atribudas a um fator
externo e secundrio causa maior do colapso ocorrido por volta de 1200: as
migraes. A movimentao de povos belicosos na bacia do Mediterrneo como
o fator principal foi a tese mais popular e baseia-se nos documentos egpcios
que tratam das invases que o reinado de Ramss III sofreu e em uma longa
tradio lingustica de uma constante movimentao populacional na regio. Na
verdade, em nenhuma das regies afetadas h qualquer prova arqueolgica de
migrao. No caso particular da Grcia, as inovaes materiais atribudas
chegada de novas populaes, provavelmente os drios, tais como a cermica
geomtrica, a cremao nos enterramentos e a metalurgia do ferro, so
atualmente atestadas como desenvolvimentos locais (no caso da cermica) ou
continuidade de prticas anteriores (cremao e metalurgia).
Uma tese recente, proposta por Robert Drews em The End of the Bronze
Age. Changes in Warfare and the Catastrophe c.a. 1200 B.C. (1993) aponta que
algumas inovaes e adaptaes nas armas e tticas de guerra causaram
distrbios em todo o Mediterrneo e modificaram a natureza da guerra na
Antiguidade. O surgimento da armadura para o soldado que combate a p, bem
como do escudo redondo que, sendo menor e mais leve, permite maior
mobilidade, somados utilizao do dardo de caa no campo de batalha e a
predominncia da lana e das longas espadas desenvolvidas no apenas para
perfurar mas tambm para cortar com eficincia, teriam permitido a
supremacia de um exrcito de soldados contra os exrcitos de arqueiros e
carruagens dos grandes imprios. Os imprios da Idade de Bronze,
fundamentados na guerra de carros, teriam sucumbido a tais inovaes que se
tornariam a regra para as batalhas nos sculos seguintes.
Juliana Monzani. Integrao e Desintegrao da Grcia (1300-800 a.C)
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De qualquer maneira, paralelamente s hipteses migratrias, outros
fatores foram sendo considerados. A invaso, por exemplo, no poderia ser
explicada sem se pensar em um enfraquecimento interno ou quaisquer fatores
que tenham propiciado, e at mesmo incentivado, a movimentao de povos.
Gradualmente as hipteses monocausais forma sendo substitudas pelas
pluricausais, que combinavam duas ou mais causas relevantes.
Dentro do quadro terico da poca, tal mudana se insere nas propostas
da Nova Arqueologia, que privilegiava o processo e no o evento. No entanto,
uma ideia muito presente dentro da arqueologia micnica foi a de uma nica
verdade, a de uma nica explicao, consequncia de uma viso positivista. Isto
criou grandes dificuldades no estudo do final da civilizao micnica, pois at
muito recentemente os autores tentavam explicar o fim da Civilizao Micnica
atravs de uma causa nica, tal como a mudana climtica, ou a invaso de
outros povos, ou o declnio da agricultura etc. Tal barreira s mudou com o ps-
processualismo e a sua perspectiva de explanao baseada na pluralidade
causal.
A minha inteno neste artigo no o de afirmar quais as causas das
destruies dos palcios micnicos, mas sim a de avaliar algumas teses
plausveis e, principalmente, suas consequncias na organizao social da
Grcia. Atualmente os arquelogos tm proposto uma pluralidade de causas
para os desastres do final do perodo micnico e a relevncia de um fator sobre
os demais dependeria das particularidades locais. Embora as propostas de
Drews sejam pertinentes, acredito que outros fatores devam ser levados em
considerao, principalmente em cada regio. Mesmo havendo uma causa
maior, cada caso deve ser considerado separadamente. Mais do que tentar
explicar o fim da Civilizao Micnica, pretendo adotar um ponto de vista que
considera que as destruies dos palcios no foram um fim, mas ao contrrio,
significaram um comeo. Na Grcia temos o fim de um sistema (o sistema
palacial) mas no o fim de uma civilizao (Sarian, 1989: 585). Esta se
desenvolver sob novas formas durante a Idade do Ferro
A Idade do Ferro
A denominao Idade Obscura foi empregada com sentido pejorativo
pelos arquelogos classicistas que, com um estudo anacrnico baseado em
Mare Nostrum, ano 2013, n. 4
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fontes orais e literrias posteriores, entenderam o perodo subsequente ao da
Civilizao Micnica como sendo um momento de declnio e estagnao. Foi
somente a partir da dcada de 1960 que surgiram novas abordagens para tal
perodo. Dentre elas destacam-se os trabalhos de Anthony Snodgrass (The Dark
Age of Greece, 1971) e Vincent Desborough (The last Mycenaeans and theirs
sucesssors, 1964; e The Greek Dark Ages, 1972).
em Snodgrass que a acepo do termo Idade Obscura discutida,
mostrando que at ento os estudos desconsideraram a potencialidade do
registro arqueolgico, que a nica fonte para tal poca. O perodo seria, assim,
obscuro mais pela nossa falta de conhecimento a respeito dele do que por uma
real estagnao ou retrocesso. Tanto para Snodgrass quanto para Desborough a
Idade Obscura corresponderia, grosso modo, ao perodo Protogeomtrico, i.e.,
do sculo XI at o final do sculo X. Snodgrass considera a Idade Obscura um
perodo com caractersticas definidas - diminuio populacional, declnio das
habilidades artesanais, desaparecimento da escrita e interrupo dos contatos -
que resultaram na escassez dos vestgios. Para Desborough exatamente o
isolamento, quebrado com o advento do perodo Geomtrico, que define a Idade
Obscura na Grcia. Para os dois estudiosos o perodo Geomtrico um
momento de constante e gradual progresso que culmina na poca Arcaica. J
Coldstream, em seu livro Geometric Greece (1977), considera tambm o perodo
Geomtrico como uma poca de pobreza e estagnao, alargando as fronteiras
da Idade Obscura at o final deste perodo.
Snodgrass ainda discute a denominao Idade do Ferro (adotada
neste artigo) que, para ele, determinaria a predominncia da metalurgia do
ferro sobre a do bronze, embora ela j fosse conhecida no perodo Micnico, fato
ocorrido na Grcia no final do sculo XI, i.e., ainda durante a Idade Obscura.
A documentao material a nica disponvel e preciso ter em mente
suas limitaes. No entanto, segundo Oliver Dickinson (2006: 240-1), parece
seguro dizer que dificilmente um achado poder mudar o quadro geral
estabelecido, pois h atualmente evidncias suficientes de stios em todo o Egeu
e a instabilidade seria a principal caracterstica do perodo.
Assentamentos
Juliana Monzani. Integrao e Desintegrao da Grcia (1300-800 a.C)
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No se pode estabelecer um padro dos locais de habitao. Alguns
stios como Pilos so abandonados e no mais ocupados. Outros como Micenas
apresentam uma reocupao parcial aps um breve perodo de abandono.
Tirinto parece ter sido ocupada continuamente a despeito das destruies e em
Atenas no atestado qualquer nvel de destruio e a ocupao contnua. As
evidncia para o perodo so a cermica e a metalurgia, e os achados provm em
grande parte de cemitrios.
O stio de Lefkandi, na Eubeia, a melhor evidncia para o perodo.
um stio com assentamento e cemitrio, ocupado durante todo o perodo
Protogeomtrico e abandonado no sculo VIII. Em Lefkandi, o sculo XI
apresenta-se como um perodo de inovaes e contatos externos comprovados
atravs dos contatos com Atenas, do crescente nmero de achados e de uma
considervel quantidade de bronze e ouro que atestam contatos e comrcio com
o exterior, em especial com Chipre. H uma grande influncia de Atenas em
Lefkandi, que s no se verifica nos costumes funerrios, nos quais prevalece a
inumao (Desborough, 1972: 191).
O mais importante em Lefkandi , sem dvida, o heroon, um edifcio
absidal de grandes propores (47x10m) com trs divises internas e um
tmulo retangular sob ele. A sepultura possui dois compartimentos. Em um
deles havia um vaso de bronze com figuras de caadores e animais, os restos
cremados de um homem, uma ponta de flecha e uma espada de ferro e havia
tambm a inumao de uma mulher. No segundo compartimento foram
encontrados dois esqueletos de cavalos. A questo que emerge deste complexo
determinar o que fora construdo primeiro, pois difcil separar o material que
preenche a sepultura e o cho do edifcio. Tal dado indicaria que este ltimo
fora utilizado durante um curto perodo. De acordo com a cermica
protogeomtrica, o edifcio teria sido utilizado entre 1000 e 950. Os arquelogos
de Lefkandi, Popham e Coulton, consideram que tanto o edifcio quanto a
sepultura foram erguidos na mesma poca e que o edifcio seria, assim, parte da
sepultura. Entretanto h evidncias de que o tmulo posterior. O cho do
edifcio no cobre o sepultamento, mas mistura-se a ele. O plano do edifcio
enquadra-se mais no contexto habitacional e no funerrio, dado reforado pela
presena em seu interior de objetos de uso cotidiano. Soma-se a isso o fato de o
edifcio ter sido posteriormente destrudo e transformado em um cemitrio
Mare Nostrum, ano 2013, n. 4
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(Mazarakis Ainian, 1985: 8-9). De qualquer forma, o edifcio de Lefkandi,
datado da primeira metade do sculo IX, marca uma profunda transformao
nos planos arquitetnicos. um dos primeiros edifcios absidais do perodo e
apresenta dimenses inigualveis. Os paralelos com a planta clssica dos
templos gregos evidente.
Cemitrios
Sepulturas e os objetos associados a elas constituem a maior parte da
informao do perodo, o que levanta uma srie de questes. Cemitrios
estabelecidos perto das reas habitacionais so em geral destrudos. Os
cemitrios que utilizam sepulturas simples no tm a necessidade de se
situarem prximos s reas de habitao, sendo estabelecidos em regies
remotas, o que lhes garante maiores chances de sobrevivncia, mas ach-los e
relacion-los a um assentamento se torna mais difcil. Cemitrios bem
estabelecidos so utilizados continuamente e as novas sepulturas tendem as
destruir as mais antigas. Assim, o que normalmente se costuma chamar de
cemitrios totalmente escavados significa, na realidade, que o que sobreviveu
foi totalmente escavado. Em Lefkandi os cinco cemitrios e reas de
enterramento no correspondem cronologicamente s reas de habitao.
Nenhum cemitrio do BA foi encontrado, a despeito de um substancial
assentamento, embora alguns sepultamentos intramuros do sculo XII tenham
sido encontrados. As evidncias de cemitrios mais antigas datam de 1125 a
1000 (Submicnico e Protogeomtrico), perodo para o qual no h indcio de
ocupao. A evidncia de sepultamento cessa por volta de 825, embora o stio
ateste uma ocupao at c. 700 (Thomas & Conant, 1999: 88).
No Ps-palacial (III C e Submicnico) h a continuidade de utilizao
das chamber tombs, mas trata-se de um reuso, pois nenhuma nova
construda. H uma ausncia significativa das tholoi. Substituem-se os
enterramentos mltiplos por individuais, mas este um processo gradual s
completado no final do perodo. Aparece a prtica da cremao que, embora no
suplante a inumao, torna-se bastante popular em algumas regies.
Em linhas gerais o Protogeomtrico apresenta continuidade das
prticas funerrias bem como dos locais anteriores, e nem sempre possvel
distinguir os sepultamentos submicnicos dos protogeomtricos. Uma das
Juliana Monzani. Integrao e Desintegrao da Grcia (1300-800 a.C)
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principais caractersticas do perodo a grande diversidade dos sepultamentos
que podem variar na forma da sepultura, na escolha entre inumao e
cremao, na maneira em que os restos cremados so depositados e na
disposio do corpo inumado. Enterramentos mltiplos em chamber tombs
permanecem na Fcida e na Lcrida. Tholoi reaparecem na Tesslia e Messnia,
que podem ser consideradas regies perifricas. No Geomtrico a grande
inovao o aparecimento de marcos funerrios nos sepultamento em Atenas.
Em Atenas observa-se uma uniformidade das prticas funerrias, com a
cremao para os adultos (os homens so enterrados em nforas, estas com as
alas no pescoo, e a mulheres em nforas com alas no bojo) e inumao para
as crianas. interessante ressaltar o contraste entre a quantidade de vestgios
do perodo em Atenas e a ausncia deles para o resto da tica (Desborough,
1972: 119).
Na Arglida os enterramentos so em cistas, mas a regra geral a
inumao (Desborough, 1972: 161).
Igualmente importante o desaparecimento de colares, figurinhas e
selos como bens funerrios, outrora comuns no perodo micnico.
A variedade das prticas funerrias das diferentes comunidades pode
ajudar na compreenso das notveis diferenas de organizao social
observveis nas comunidades gregas nos perodos posteriores.
Contatos externos e comrcio
Embora o Egito, a Assria, e grandes centros urbanos tenham
permanecido como potncias no Mediterrneo, com os distrbios do final do
sculo XIII e a desintegrao do imprio Hitita, o comrcio de longa distncia e
as relaes diplomticas foram profundamente abalados. Vasos de metal
desaparecem dos stios do Egeu, assim como os vasos de estocagem do tipo
stirrup jar (jarro de estribo) deixam de ser fabricados. Raramente a cermica
III C e Submicnica encontrada fora do Egeu. No entanto, a presena de metal
em stios do Egeu indica algum tipo de contato externo, em escala menor do que
anteriormente. H evidncia da introduo de objetos de ferro atravs de Chipre
bem como de cermica eubeia no Oriente Prximo. A partir do sc. IX a
cermica tica exportada em pequenas quantidades.
Mare Nostrum, ano 2013, n. 4
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Uma real expanso tanto na atividade comercial quanto na adoo ou
adaptao de tcnicas orientais no parece ter comeado antes do final do
sculo IX, e o ritmo aumenta gradualmente ao longo do sculo seguinte. No
final do sculo IX, vasos gregos atingem a regio central do Mediterrneo at a
Sardenha. Na segunda metade do sculo VIII todas as regies passam a
produzir cermica do Geomtrico Recente e matrias-primas como metais se
tornam mais abundantes. Objetos tpicos do Oriente Prximo como contas e
joias aparecem em quantidade considervel. No geral observa-se uma
intensificao nos contatos internos e externos. importante ressaltar que
diferentes regies respondem diferentemente as influncias orientais.
Tecnologia
Muitas tcnicas atestadas no perodo anterior desaparecem e apenas
uma inovao comprovada: a metalurgia do ferro. Mas este fato no envolve a
adoo de novos tipos de instrumentos ou armas, mas a continuao das
mesmas formas elaboradas com o novo metal. Com exceo do enterramento do
heroon em Lefkandi, no h indcios de qualquer esforo excepcional e recursos
empregados em nenhuma rea. A explicao mais plausvel que a organizao
social no era complexa o suficiente para permitir a mobilizao de recursos em
qualquer nvel.
Cermica
O perodo ps-palacial continua a tradio do BR, mas a qualidade da
tcnica e decorao notadamente inferior, ainda que se possa encontrar certa
inovao durante o III C. Mas deve-se notar que, como para o caso dos
assentamentos, h uma considervel variao entre as regies. Em Atenas a
cermica apresenta uma qualidade superior do que em Lefkandi e os padres
nos stios da Arglida so muito variados. Os exemplos de Creta so os melhores
de todo o Egeu, no entanto a pintura um pouco apagada. De modo geral nota-
se um nvel inferior na tcnica de produo. No final da Idade do Bronze as
formas mais elaboradas de decorao tendem a desaparecer e so substitudas
por um padro abstrato que perdurar ao longo dos sculos.
O surgimento do que se convencionou chamar Protogeomtrico no
resulta em um estilo definido, mas o que se observa uma variao regional
Juliana Monzani. Integrao e Desintegrao da Grcia (1300-800 a.C)
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bastante acentuada ainda que se possa atribuir o desenvolvimento de tal estilo e
sua difuso a Atenas. Em Lefkandi, por exemplo, clara a influncia inicial de
Atenas, ainda que s a partir do Protogeomtrico Mdio, mas um estilo prprio
se desenvolve na Eubeia.
Indubitavelmente, Atenas desenvolveu o estilo geomtrico que decora
nforas e crateras. E os vasos mais elaborados so do Geomtrico Mdio. Tal
estilo, que influenciou as regies vizinhas, ignorado em Lefkandi, onde se
continua a produzir cermica protogeomtrica, ou em Corinto que,
posteriormente, desenvolve um estilo prprio.
Enquanto para Snodgrass o protogeomtrico tico apenas uma escola
importante no meio das demais, para Desborough esse o estilo
protogeomtrico por excelncia, influenciando todos os outros com exceo de
taca e da Lacnia.
Segundo Desborough (1972: 134-5), o protogeomtrico tico
compreende o perodo de 1050 a 900 e possui trs fases. A primeira curta e
sobrepe-se ao estilo submicnico. A segunda fase tambm curta, mas nela
que se estabelecem as suas caractersticas. Por fim, a ltima fase a mais longa,
na qual o estilo da tica passa a influenciar os demais.
Em comparao com a cermica submicnica que toda pintada, a
protogeomtrica apresenta a tendncia de deixar espaos vazios. Os motivos
decorativos so os crculos e semicrculos concntricos.
Na Arglida no h evidncias da transio para o Protogeomtrico
como h na tica. Nessa regio a cermica submicnica continua aps o incio
do Protogeomtrico em Atenas. Quando o novo estilo aparece nos stios da
Arglida j a forma consolidada do protogeomtrico tico (3a fase). Em
Corinto h pouqussimos vestgios para o perodo.
H poucas evidncias nas Cclades at o sculo X, quando aparece a
influncia da 3a fase do protogeomtrico tico. A Lacnia permanece isolada at
o sculo seguinte, quando aparecem os primeiros sinais da cermica geomtrica
(Desborough, 1972: 243). A Messnia, por sua vez, apresenta uma cermica
protogeomtrica com influncias do Egeu e no de Atenas.
Em sntese, o perodo Protogeomtrico foi essencialmente uma poca de
isolamento. H menos de 30 assentamentos atestados no continente e no Egeu.
So pequenas comunidades espalhadas e sem a coeso poltica do perodo
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Micnico. O primeiro fato notvel a substituio dos enterramentos mltiplos
em chamber tombs e nas tholoi pelos enterramentos individuais em cistas. Mas
esta uma caracterstica do Submicnico na Grcia Central. Na Messnia e na
Tesslia h o reuso das tholoi com enterramentos mltiplos, uma sobrevivncia
dos costumes micnicos. J em Creta atesta-se uma continuidade da utilizao
da tholos. Na tica aparece a cremao, o segundo fator distintivo do perodo. A
cremao, o uso da cista e a metalurgia do ferro so os argumentos utilizados
por Desborough para afirmar a introduo de um novo elemento populacional.
Snodgrass discorda desta hiptese e acredita tratar-se do ressurgimento de uma
prtica atestada durante o Bronze Mdio. Para tanto temos a tese de Deshayes
(1966) na qual o uso da cista uma prtica de um substrato do BM da qual os
dirigentes da Civilizao Micnica quiseram se distinguir atravs da adoo de
prticas funerrias diferentes, ou seja, as chamber tombs e os enterramentos
mltiplos de carter familiar e smbolos de hereditariedade.
Tanto para Desborough (1972) quanto para Snodgrass (1971), apesar do
isolamento do perodo Protogeomtrico, observa-se, a partir do sculo X, um
progresso constante com a movimentao populacional e comrcio, bem como
um aumento do nmero de assentamentos e a preparao para os
desenvolvimentos do Geomtrico a partir do sculo IX.
Se por um lado a integrao cultural e comercial estabelecida no final da
Idade do Bronze foi dissolvida no incio da Idade do Ferro, perodo que marcou
um relativo isolamento da Grcia com relao ao Mediterrneo, por outro no
se pode mais aceitar a ideia de um total e completo isolamento grego, nem de
um retrocesso cultural ou poltico. O mais evidente, contudo, que a unidade
cultural micnica fora substituda por uma regionalizao poltica caracterstica
do Arcaico.
As pesquisas sobre a Idade do Ferro na Grcia tiveram seu incio em
1952 com a obra de V. Desbobough Protogeometric Pottery, mas o grande
desenvolvimento ocorreu na dcada de 1960 com as trs snteses arqueolgicas
da escola britnica, que so fundamentais at hoje. Aps quase duas dcadas
sem estudos a respeito do perodo, novas abordagens passaram a considerar o
potencial do perodo no sentido da continuidade: C. Thomas e C. Connat,
Citadel to City-State. The transformation of Greece, 1200-700 B.E.C. (1999); O.
Dickinson, The Aegean from Bronze Age to Iron Age. Continuity and change
Juliana Monzani. Integrao e Desintegrao da Grcia (1300-800 a.C)
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between the twelfth and eighth centuries BC (2006); e Hall, A History of the
Archaic Greek World ca. 1200-479 BCE. (2007).
Nos sculos que se seguiram desintegrao do sistema palacial
micnico, e que precederam a civilizao grega das plis, uma srie de
desenvolvimentos importantes ocorreram de forma lenta e paulatina e seus
desdobramentos so detectveis j no sculo IX. O processo final se torna claro
no sculo VIII, naquilo que se chamou milagre grego: a retomada do comrcio
em larga escala, o reaparecimento da escrita com a adoo do alfabeto, a
colonizao, o retorno da arte figurativa e, por fim, a plis.
Quadro cronolgico
(todas as datas so a.C.)
Idade do Bronze Antiga 3250-2000
Idade do Bronze Mdia 2100/2000-1600
Idade do Bronze Recente
III A 1 1400-1375 Terceiro perodo palacial
III A 2 1375-1325
III B 1 1325-1250
III B 2 1250-1200
III C 1200-1150/1125 Ps-palacial
Idade do Ferro (Id. Obscura)
Submicnico 1125/1150-1050
Protogeomtrico 1050-900 Id. do Ferro Antiga
Geomtrico Antigo
900-850
Geomtrico Mdio
850-770
Geomtrico Recente
770-700
Fontes: Treuil (1989) para a Idade do Bronze; Desborough (1972) para os perodos IIIC, Submicnico e Protogeomtrico; e Coldstream (1977) para o Geomtrico. A terminologia Terceiro perodo palacial e ps-palacial de Oliver Dickinson (2006).
Mare Nostrum, ano 2013, n. 4
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OS ESTUDOS DEMTICOS E A POSSIBILIDADE DE UMANOVA EGIPTOLOGIA1
Thais Rocha da Silva2
RESUMO: Este texto apresenta os estudos demticos e os novos desdobramentos desse campo na
ltima dcada para um pblico brasileiro que ainda no tem acesso a esses documentos e ao
campo de pesquisa propriamente dito. Ao mesmo tempo, debato o seu desenvolvimento relacio-
nado origem e ao estabelecimento da Egiptologia como cincia ao longo dos sculos XIX e XX.
PALAVRAS-CHAVE: estudos demticos, papirologia, egito antigo, egiptologia,
ABSTRACT: this text presents demotic studies and the new developments of this field in the last
decade to the brazilian public, who does not have access to these documents and the research
field itself. At the same time, I discuss its development related to the origin and establishment of
Egyptology as a science over the last 19th and 20th centuries.
KEYWORDS: demotic studies, papyrology, ancient egypt, egyptology.
The papyri are not a particular closed world.
(Roger Bagnall)
Os estudos da lngua egpcia no esto dissociados da compreenso de
sua histria. Mais do que repetir o bvio, no caso egpcio, a lngua, combinando
sistemas diferentes, oferece a possibilidade de ver o mundo pelos olhos egpcios.
E digo ver no sentido mais concreto do termo, uma vez que a iconografia est
presente na escrita, conferindo novas possibilidades de compreenso da simbo-
logia e dos textos. O estudo dos textos egpcios, portanto, no pode ser igualado
ao de outras civilizaes do Mediterrneo, no por uma maior ou menor com-
plexidade lingustica, mas pela combinao de diferentes modos de ver e associ-
ar os significados do mundo traduzidos em textos.
O egpcio antigo e seu ltimo estgio - o copta3 - representa um conjun-
to de famlias lingusticas chamadas afro-asiticas. A primeira compreende as
lnguas faladas na regio leste do Mediterrneo, em que se insere o egpcio anti-
go, com algumas caractersticas comuns: a presena de razes bi ou triconsonan-1 Agradeo ao Prof. John Tait da UCL (Londres) pela generosidade em acompanhar a elaboraodeste texto ao longo de 2011 e tambm por ter me iniciado no estudo do demtico. Sou muitograta tambm ao Prof. Dr. Ronaldo Gurgel Pereira (Universidade Nova de Lisboa) pelos diversosapontamentos no texto. Ao Prof. Dr. Antonio Brancaglion Jr. pela leitura cuidadosa de sempre, epelo encorajamento a esta publicao. 2 Mestranda do Programa de Estudos Judaicos e rabes, Departamento de Letras Orientais,FFLCH-USP, sob orientao do Prof. Dr. Antonio Brancaglion Jr. 3 Sobre o desenvolvimento da lngua egpcia ver Tab. 3 no final deste texto.
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Mare Nostrum, ano 2013, n. 4
tais, um sistema voclico limitado a vogais como a, i, u, um sufixo femini-
no -at, entre outros mais especficos (WOODARD, 2004). Esse tipo de com-
preenso e classificao s foi possvel graas ao advento da filologia que, no s-
culo XIX, ganhou um estatuto de cincia exata entre as humanidades. Mais do
que sistematizar a histria e o desenvolvimento das lnguas, os fillogos tinham
uma obsesso taxonmica.
O grupo dos orientalistas com uma formao lingustica slida, fazia
suas descries do Oriente em geral, baseadas em seu acesso aos textos antigos.
Tais descries, no entanto, no deixaram de apresentar um juzo de valor no
modo de apresentar esse material, inclusive nas tradues. O caso do Egito
particularmente interessante, pois a traduo da Pedra de Roseta, colocada
como marco fundador da Egiptologia, est imersa numa disputa imperialista
que iria determinar o modo de se fazer Egiptologia at os dias de hoje. O posici-
onamento dos estudos demticos e a respectiva seleo de fontes dentro da dis-
ciplina so consequncia desse processo.
A Pedra de Roseta (197-196 a.C.), atualmente no Museu Britnico, foi
descoberta por Boussard (ou Bouchard), um oficial francs, na regio prxima a
Rashid, ou Roseta, no Delta Ocidental. Com a derrota de Napoleo para a Ingla-
terra e a conquista de Alexandria, a pedra passou para mos inglesas.4 A pedra
chegou em Portsmouth em 1802 e ficou nas salas da Society of Antiquities of
London at ser enviada para o Museu Britnico. Em abril desse mesmo ano, o
Rev. S. Weston leu a parte grega do documento numa sesso pblica. Pouco de-
pois, em julho, quatro cpias foram distribudas aos grandes centros de estudo
da Inglaterra, Cambridge, Oxford, Dublin e Edimburgo num esforo para se tra-
duzir o texto. Feita em granito negro, a pedra contm catorze linhas em hiergli-
fos (ou hieroglifos), 32 linhas em demtico, e 54 em grego.5 As inscries da Pe-
dra de Roseta formam uma verso de um decreto feito pelos sacerdotes de
Mnfis estabelecendo que Ptolomeu V era o novo governante do Egito.
4 O Tratado de Capitulao, artigo XVI, dizia que todas as peas coletadas no Egito, que j esta-vam prontas para a viagem a Paris deveriam ser entregues aos ingleses. O Gen. Hutchinson foi oresponsvel pelo embarque do material Inglaterra. 5 Para maiores detalhes sobre os estudos sobre a Pedra de Roseta, ver Budge, 1925; Ray, 2008;Parkinson, 1999.
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Thais da Rocha Silva. Os Estudos demticos e Uma Nova Egiptologia
O texto recebeu ateno de diversos pesquisadores6 e muitos absurdos
foram escritos em relao ao deciframento. No entanto, os trabalhos de Cham-
pollion e Thomas Young foram determinantes para o entendimento dos hier-
glifos e para o demtico. Mais ainda, isso consagrou a clssica disputa entre
Frana e Inglaterra no apenas pelo mrito do deciframento, mas pela paterni-
dade da Egiptologia.
Apesar de toda a fama ter sido endereada a Champollion, Thomas
Young foi importante para que o sucesso francs fosse atingido. Young era
mdico de formao, mas tinha profundo conhecimento sobre lnguas antigas.
Aos 14 anos j tinha domnio de diversos idiomas, incluindo o grego, latim, cal-
deu, persa, hebraico, turco, isso sem contar as lnguas modernas. Seus conheci-
mentos lingusticos foram fundamentais para, por exemplo, estabelecer que os
egpcios combinassem sinais alfabticos e no alfabticos nos textos.
Seu primeiro trabalho no foi com a Pedra de Roseta, mas com um frag-
mento de papiro trazido por W. Rose Broughtone, e foi com este texto que reali-
zou progressos significativos no entendimento do egpcio antigo. Young identifi-
cou que os cartuchos continham os nomes da realeza e, com isso, conseguiu tra-
duzir os nomes de Ptolomeu e de Berenice, reconhecendo o sinal feminino final
e a letra t. Dos treze sinais na lista, seis estavam corretos, trs parcialmente
corretos e quatro errados; depois acrescentou o sinal para f, alm de outros,
tambm tendo descoberto os numerais e o modo de se representar o plural
(RAY, 2008; PARKINSON, 1999). O mdico se dedicou formao da Egyptian
Society, subordinada Royal Society of Literature, a fim de garantir a publica-
o das inscries egpcias e passou a se dedicar ao demtico anos mais tarde
(REDFORD, 2001; BIERBRIER, 1995, p. 455).
Champollion identificou o sistema de fonemas e diversos sinais corres-
pondentes ao copta. Em 1824 foi responsvel pela publicao do Prcis du
systme hiroglyphique des anciens gyptiens, com 450 palavras e, posterior-
mente a criao de uma gramtica e um dicionrio (REDFORD, 2001). Apesar
das narrativas do deciframento enfatizarem o hierglifo, o demtico teve um pa-
pel importante nesse processo, o qual foi reconhecido, embora tal reconheci-
mento ainda no tenha alavancado o campo de pesquisa na poca.6 Sobre as tentativas de deciframento antes de Champollion, ver Iversen, 1972.
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Mare Nostrum, ano 2013, n. 4
O fascnio despertado nas pessoas por conta dos hierglifos, dificultou o
processo de transliterao e traduo do demtico, bem como o estabelecimento
de uma sintaxe. Na verdade, no se tratava apenas de decifrar o significado dos
sinais, mas a lngua em toda sua complexidade. O fato de o Egito antigo ganhar
popularidade pelos objetos monumentais e pelo exotismo da lngua, associados
a um orientalismo7 dos pesquisadores, colocou o demtico fora do centro das
atenes. preciso lembrar que a formao da Egiptologia como cincia especi-
alizada se d paralelamente formao das colees dos grandes museus euro-
peus, sobretudo na Inglaterra, com o British Museum (MOSER, 2009). A trans-
formao ocorrida na disposio das galerias organiza e ordena uma nova hie-
rarquia de civilizaes, antes separadas segundo uma esttica clssica, ao tom
da arquitetura do museu, mas posteriormente, numa ordem cronolgica (MO-
SER, 2009, p. 221). Como a base das vitrines e das salas era uma tentativa de
imitar os templos gregos, o aspecto extico, bizarro, e mesmo monstruoso
dos objetos egpcios destoava muito e eles ficavam ressaltados. Por conta disso,
a recepo foi considerada bipolar, mas nunca indiferente (MOSER, 2009,
p.224). Uma vez que nesse momento os objetos eram classificados como obje-
tos de arte,8 ficava evidente a discrepncia dos modelos estticos. As peas
egpcias, quando comparadas s gregas e romanas, adquiriam um status de in-
ferioridade, com um juzo de valor que apontava a sofisticao greco-romana em
oposio simplicidade egpcia.
O gradual isolamento dos egiptlogos e demais desdobramentos da es-
pecializao contriburam para que os textos demticos no constassem na lista
de prioridades de uma Egiptologia - e de um Egito - emergentes. A estagnao
nos estudos demticos s viria a ser superada na dcada de 1970.
No entanto, muito antes, o hierglifo j tinha provocado estranhamento
na Antiguidade,9 identificado nos relatos de Herdoto e Horapolo. Apesar de
posterior, o texto de Horapolo, que viveu em Alexandria no sculo V d.C., se tor-
nou referncia para os estudos da lngua egpcia durante toda a Idade Mdia e
7 Tomo por referncia aqui a ideia de Edward Said (1990) do orientalismo como um estilo depensamento e a disciplina acadmica dedicada aos estudos do Oriente. 8 preciso lembrar da Egitomania no sculo XIX que contribuiu para que o Egito fosse adapta -do e consumido, conforme o gosto burgus. 9 Refiro-me nesse caso diviso didtica tradicional, em que o perodo da Antiguidade vai dosurgimento da escrita at 476 d.C, quando h a queda do Imprio Romano do Ocidente.
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Thais da Rocha Silva. Os Estudos demticos e Uma Nova Egiptologia
Idade Moderna. Seu trabalho, no Livro I, traz um grande nmero de sinais com
suas respectivas explicaes. Entretanto, o livro parece ser escrito por dois auto-
res diferentes (BOAS, 1993, p. 17). No sculo XV sua obra foi adquirida por Cris-
toforo Bundelmonti, mas o texto s foi publicado pela primeira vez em 1505,
junto s fbulas de Esopo. Nos anos seguintes a obra de Horapolo chegaria ao
nmero expressivo de trinta tradues e reedies, o que pode explicar em parte
a viso renascentista sobre os egpcios. O texto contm referncias greco-roma-
nas, de modo que possvel identificar tradies distintas da egpcia (BOAS,
1993, p. 17). Os equvocos cometidos no eram conhecidos no sculo XVI e XVII
e s seriam identificados muito depois.
Os relatos de Herdoto so muito anteriores e nos deram informaes
sobre a existncia de dois tipos de escrita: a sagrada e a demtica (II, 36), tradu-
zida como escrita popular. Contudo, examinando a histria da lngua egpcia,
sobretudo aps o perodo sata, veremos que os egpcios tinham uma viso dife-
rente a respeito.
O demtico
Demtico o tipo de escrita cursiva desenvolvida pelos egpcios (RED-
FORD, 2001, p. 210). O termo utilizado por Herdoto, , foi apropriado
e difundido com uma forma de escrita popular, no sagrada. Os egpcios se refe-
riam ao demtico como sX n Sa.t, letras, ou escrita das letras.10 O demtico se
tornou a escrita corrente para assuntos ligados ao cotidiano. No entanto, a escri-
ta demtica abarca praticamente todas as categorias de textos egpcios, tais
como contratos, cartas, etc., com exceo das poesias amorosas. O primeiro tex-
to em demtico do sculo VII a.C., mas seu uso em grande escala acontece so-
mente no perodo ptolomaico.
O termo demtico foi consagrado no mundo contemporneo graas ao
deciframento da Pedra de Roseta, e passou a ser utilizado pelos egiptlogos de-
pois de Champollion. Muitos pesquisadores do sculo XIX se referiam a encho-
ria para se referir a esse tipo de caractere. No se trata de uma outra lngua,
nem de uma lngua do povo,11 vulgar, ou simplesmente de uma escrita cursiva10 Redford traduz como document writing (2001, p. 210).11 H um grande debate na Egiptologia sobre o acesso da populao escrita e mesmo sobre onvel de alfabetizao. Discutirei isso adiante. A principal referncia Baines e Eyre, 1983.
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Mare Nostrum, ano 2013, n. 4
dos hierglifos. O demtico tem uma gramtica diferenciada, que se desenvol-
veu a partir do egpcio tardio, marcando uma transio (lenta e gradual) para o
copta, posteriormente.
O demtico, como o egpcio, possui sinais que correspondem a um, dois
ou trs sons, portanto no se trata de uma escrita alfabtica como a grega.
Hierglifo Hiertico Demtico
sS (n) mdw - nTr sS (n) Sa. t
3000-664 a.C. 2500-664 a.C. 664 a.C. - declnio no Per-odo Romano
TAB.1. Exemplo simplificado da transio das escritas egpcias.
A escrita demtica pode ser considerada uma das muitas variaes dia-
letais do hiertico, oriunda da regio de Sais. No entanto, pelo fato de o demti-
co apresentar variaes na construo de palavras e frases, e tambm no uso dos
sinais, como da gramtica, no podemos reduzi-lo a uma mera simplificao do
hiertico (SHORE, 1972, p. 144). Conforme indica Depauw (1997), possvel
identificar em fontes gregas referncias ao demtico em oposio ao hierglifo.
Herdoto (2, 36; V sc. a.C.), Diodoro (1, 81 e 3,3; I sc. a.C) e Heliodoro (Ethi-
op. 4, 8; III e IV sc. a.C.) apresentam distines para isso (ver Tab.2).
Tais fontes no distinguem propriamente o hiertico e o hierglifo, to-
mados como sagrados ou sacerdotais em oposio ao demtico, que seria
popular. Ainda no mundo antigo, Clemente de Alexandria (Stromateis 5, 4,
20-21; II e III sc. d.C.)12 j diferenciava trs tipos de escrita egpcia:
, , . Em Porfrio ( Vit. Pythag. 12, III sc.
12 Budge (1925) apresenta os trechos em grego a partir da p. 129. 27
Thais da Rocha Silva. Os Estudos demticos e Uma Nova Egiptologia
d.C) vemos -- / (DEPAUW,
1997, p. 19). Outros registros como o Decreto de Canopo (238 a.C.), a Pedra de
Roseta (196 a.C.), P.gr.Tebt. II 291 (162 a.C) apresentam uma clara distino en-
tre a escrita dos gregos e a dos egpcios. Para os gregos, no entanto, a escrita
demtica era considerada nativa, nacional. Entre os prprios egpcios havia
uma diferenciao dos tipos de escrita, conforme se pode observar a seguir.
No pretendo aqui realizar uma discusso filolgica sobre as origens e
os problemas que envolvem o desenvolvimento do demtico como sistema de
escrita, inclusive por limites de formao. O ponto ressaltar a complexidade do
debate em torno das fontes e a dificuldade que envolve a pesquisa a partir desse
material. A identificao precisa dos sinais nem sempre possvel, no apenas
pelo estado de conservao dos textos, mas tambm pelas diferentes grafias -
nem sempre habilidosas - de quem redigia o material.
No que concerne ao uso do demtico, em seu perodo mais inicial (650-
400 a.C.), correspondente aos domnios sata e persa, as fontes se restringem a
documentos administrativos, legais e comerciais. Nos sculos subsequentes, so-
bretudo o IV sculo a.C., o demtico parece ganhar importncia entre a popula-
o, possivelmente por ser um tipo de escrita anteriormente vinculada admi-
nistrao. Nos primeiros anos do domnio lgida, no perodo ptolomaico, o de-
mtico aparece em diversos tipos de fontes e h uma vasta produo literria
em demtico, o que poderia em parte justificar a apropriao dessa escrita pela
populao letrada.
28
Mare Nostrum, ano 2013, n. 4
Fontes Hiertico/Hi-erglifo
Demtico Grego
Herdoto
Diodoro (I)
Diodoro (III)
Heliodoro
Clemente de Ale-xandria
Porfrio
/
/
-
-
-
-
-
-
Canopo: Grego
Roseta: Grego
P. g. Tebt. 2
-
Canopo: Hierglifo
Roseta: Hierglifo
sS (n) pr- anx
sS (n) mdw - nTr
sS (n) Sa. t
sS (n) Sa. t
sS n HAw-nbwt
sS n HAw-nbwt
Canopo: Demtico
Roseta: Demtico
sX (n) pr- anx
sX (n) mdw - nTr
sX (n) Sa. t
sX (n) Sa. t
sX (n)
sX (n)
TAB. 2. A escrita e as fontes (In: DEPAUW, 1997, p. 19 )
29
Thais da Rocha Silva. Os Estudos demticos e Uma Nova Egiptologia
A chegada dos gregos compromete a permanncia do demtico como
escrita. Tal comprometimento no se deu pelo fato de que o grego era uma es-
crita alfabtica, em oposio ao egpcio, como se acreditou por alguns anos (DE-
PAUW, 1997), sendo, portanto, mais fcil de aprender. Ora, se a grande maioria
da populao j conhecia o egpcio como lngua falada e a escrita no era uma
habilidade comum a todos, essa teoria no se sustenta. Ao mesmo tempo, se tal
dificuldade tivesse existido, seria por parte de escribas gregos, e no egpcios.
Durante o perodo ptolomaico, perodo de maior popularizao do de-
mtico como escrita, uma parte dos documentos era produzida em duas lnguas,
principalmente os contratos. Os tribunais em demtico funcionavam normal-
mente e os gregos poderiam recorrer a eles se assim o desejassem. O decreto de
146 a.C recomendava o registo em grego de documentos produzidos em dem-
tico para que pudessem ser arquivados, pois do contrrio eles no seriam. O de-
creto de Anistia de 118 a.C, de Ptolomeu VIII Evergeta II, reduziu um pouco da
autoridade dos tribunais gregos em relao aos tribunais egpcios.13 H muitas
divergncias sobre o uso do demtico e do grego na documentao legal ptolo-
maica (principalmente MANNING, JOHNSON, CLARYSSE). O caso dos contra-
tos interessante para verificar ainda que as instituies do perodo reconheci-
am documentos escritos tanto em grego quanto em demtico. Tal simultaneida-
de se justifica, por outro lado, pelo fato de que a administrao local no era ne-
cessariamente grega, mas uma verso do documento era enviada a Alexandria e,
portanto, referendada pela administrao central. Ao mesmo tempo, isso indica
que o demtico permaneceu em seu uso original no domnio sata como uma es-
crita da administrao real.
Poderia se argumentar que o demtico foi mantido para marcar uma
certa identidade egpcia nas prticas cotidianas, que no eram necessariamente
afetadas pela administrao macednica. Contudo, no podemos trabalhar com
essas polaridades simplistas no Egito ptolomaico. Nem sempre um documento
escrito em grego era de fato grego e o mesmo ocorria com os textos em demti-
co. Essa viso simplificada da sociedade egpcia contribuiu para que o demtico
ficasse em segundo plano tambm pelos papirologistas que defendiam a heleni-
zao do Egito.13 Sobre os tribunais e as interaes entre egpcios e gregos, ver PEREIRA, 2005.
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Mare Nostrum, ano 2013, n. 4
preciso tomar cuidado com a ideia de que o grego parece ser mais
fcil que o egpcio e que, por ser uma escrita alfabtica, teria trazido vantagens
para o processo de helenizao. Esse tipo de abordagem, defendida por Goody
(2003), insustentvel quando observamos os documentos produzidos em pa-
piro. Na documentao demtica do perodo ptolomaico, h o intercmbio de
termos egpcios em textos gregos (possivelmente escritos por escribas egpcios),
e tambm o contrrio. Clarysse (1993) faz uma anlise desse intercmbio de-
monstrando de que modo o Egito ptolomaico se constitui gradativamente, como
um pas bilingue. Os escribas egpcios parecem no ter adotado as terminaes
gregas nos nomes egpcios (CLARYSSE, 1993, p. 198) e adaptado um grande n-
mero de partculas do grego ao modo egpcio de escrever. Assim, a helenizao
dos escribas egpcios deixou marcas tambm de uma egipcianizao do grego
utilizado pelos Ptolomeus. Para alm do fator lingustico, a adoo de equipa-
mentos de escrita distintos (a caneta de junco e o pincel) marca esse intercm-
bio. bem provvel que os gregos tenham aprendido demtico para se aproxi-
marem dos conhecimentos mdicos dos egpcios, conforme atesta uma carta em
que um grego parabenizado por aprender demtico.14 Acredita-se que apenas
uma minoria de 10% falava grego (CLARYSSE,1995, p. 1), minoria esta que go-
vernou o pas por 300 anos, deixando marcas importantes na vida social. No se
trata, portanto, apenas da mudana de um registro lingustico.
No caso especfico das cartas, por exemplo, o problema passa a ser de
outra ordem. O nmero de cartas em demtico menor do que as cartas gregas,
mas possivelmente porque grande parte delas se refira a assuntos administrati-
vos entre os altos oficiais. Os textos propriamente em demtico no so distin-
tos dos gregos nem relao aos contedos (DEPAUW, 2006), o que derrubaria a
ideia de que os textos demticos so utilizados para assuntos privados e os
gregos para os pblicos e oficiais.
Durante o perodo romano possvel ver o progressivo desuso do de-
mtico. Textos administrativos e jurdicos passam a ser mais raros, depois os li-
terrios (menos relevantes para a vida pblica); at que no sculo V d.C. se en-
contram ainda em grafites no Templo de Philae (Graff. Philae 365). Os motivos
14 RMONDON, R. Problmes du bilinguisme dans lgypte lagide (UPZ I, 148). In: Cd 39(1964), pp. 126-146. Para outras referncias sobre o tema, ver Depauw, 1997.
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Thais da Rocha Silva. Os Estudos demticos e Uma Nova Egiptologia
para a diminuio dos textos no so claros. Lewis (1993) apresenta um contras-
te significativo na quantidade de documentos disponveis no perodo ptolomaico
(600) e no perodo romano (por volta de 60).15
Papyrologists concerned with Greek documents have traditionally viewed the disappearance of
Demotic as a case of 'a largely non-alphabetic system, difficult to acquire and confined almost
exclusively to priests and professional scribes, [being] allowed to slip into the oblivion toward
which it had been headed for a long time'. Accuracy aside, this 'explanation' does not touch on
etiology, unless it be implied in the reference to the nature of the script and to its professional
associations. (LEWIS, 1993, p. 277)
Esse processo precisa levar em conta outros aspectos da vida social no
Egito Romano, como o desprezo dos romanos em relao aos seus hbitos br-
baros,16 mas sobretudo as mudanas na administrao. Os romanos parecem
ter diminudo as verbas para os templos egpcios, reduzindo significativamente
o poder dos sacerdotes, que eram os principais responsveis pela manuteno
da escrita nativa.
Roman reorganization of the administration of Egypt denied such documents the recognition, or
status, they had previously enjoyed. In other words, Demotic documentation was a victim, or ca-
sualty, of the Roman annexation of Egypt. Or, to put it in homelier language, the Demotic docu-
ment did not just wither and fade with age, it was starved to death.(LEWIS, 1993, p. 277)
Se o Egito durante o perodo ptolomaico adota mltiplos registros escri-
tos dependendo do tipo de texto, de se imaginar que outras questes possam
ser investigadas a partir da. As relaes sociais (tomadas aqui num mbito mais
geral) e a maneira como egpcios e gregos se relacionavam podem ser vistas pe-
las apropriaes da lngua e da escrita. Entretanto, antes de fazer esse percurso,
acredito ser relevante analisar/discutir o modo como o campo do demoticismo
se constituiu no sculo XX. A formalizao desse campo de pesquisa afetou o
modo como esses documentos foram escolhidos e estudados nos ltimos anos e,
evidentemente, todas as leituras a partir de ento no fogem regra.
15 O autor evidentemente leva em conta a presena significativa de straca encontrados no IIIsculo d.C., dos grafites e da produo literria no Alto Egito no mesmo perodo em demtico. importante lembrar que ainda h um grande nmero de papiros demticos no traduzidos e pu-blicados. 16 Lewis relembra o esforo de Otaviano em sua propaganda anti-Clepatra (p. 281).
32
Mare Nostrum, ano 2013, n. 4
Os estudos e a organizao do campo de pesquisa.
O orientalista sueco J. D. kerblad foi o primeiro a estudar o trecho de-
mtico da Pedra de Roseta, mas ainda entendia o demtico como uma escrita al-
fabtica. Thomas Young foi o primeiro a sugerir que os hierglifos poderiam ser
uma escrita alfabtica e no alfabtica e que o demtico derivava destes sinais.
Champollion fez alguns progressos comparando o demtico e o copta, chegando
a decifrar alguns dos sinais, mas os progressos no demtico s foram realizados
no incio do sculo XX.
Houve tentativas de se estruturar uma gramtica demtica. O pesquisa-
dor irlands E. Hincks publicou em 1833 The Enchorial Language of Egypt17 e
em 1848 Henri Brugsch publica em Berlim o Scritpura Aegyptiorum demotica
e papyris com grande impacto nos estudos da rea. Somente em 1925, Spiegel-
berg lana Demotische Grammatik, formalizando o campo de estudos do de-
mtico.
O crescimento dos estudos coptas colaborou para reposicionar o de-
mtico na histria das escritas egpcias. Entre os alemes, principalmente, em
finais do sculo XIX e incio do XX, o demtico foi situado entre o egpcio tardio
e o copta, como uma escrita de transio.
As gramticas demticas ainda esto em desenvolvimento e no preten-
do nesse trabalho desenvolver todo o debate sobre os problemas e limites de
cada gramtica.18 Vale mencionar aqui que Francis Ll. Griffith (18621934) ana-
lisou cuidadosamente a construo gramatical do demtico na obra Stories of
the High Priests of Memphis (1900) sobre os papiros mgicos de Leiden e Lon-
dres e Catalogue of the Demotic Papyri in the Rysland Library at Manchester
(1909) (com Sir Herbert Thompson). Um outro pesquisador digno de nota foi F.
Lexa com Grammaire Dmotique, em sete partes com grande detalhamento,
chegando a 1228 pginas quando publicadas entre 1949 e 1951. Mais recente-
mente, Edda Breschiani public