Post on 25-Nov-2021
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
CENTRO DE CIEcircNCIAS HUMANAS LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE POacuteS-GRADUACcedilAtildeO EM FILOSOFIA UFRN
MARCONE DE OLIVEIRA MAFFEZZOLLI
O SENTIDO DA PRAGMATEIacuteA EPICURISTA
NATAL - RN
2020
MARCONE DE OLIVEIRA MAFFEZZOLLI
O SENTIDO DA PRAGMATEIacuteA EPICURISTA
Tese apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia da UFRN como requisito parcial para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutor em Filosofia Aacuterea de concentraccedilatildeo Eacutetica Orientador Prof Dr Markus Figueira da Silva
NATAL-RN
2020
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas - SISBI
Catalogaccedilatildeo de Publicaccedilatildeo na Fonte UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciecircncias Humanas Letras e Artes - CCHLA
Maffezzolli Marcone de Oliveira O sentido da Pragmateiacutea Epicurista Marcone de Oliveira Maffezzolli - Natal 2020 166f Tese (doutorado) - Centro de Ciecircncias Humanas Letras e Artes Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia Universidade Federal do Rio Grande do Norte 2020 Orientador Prof Dr Markus Figueira da Silva 1 Pragmateiacutea - Tese 2 Eacutetica - Tese 3 Physiologiacutea - Tese 4 Meditaccedilatildeo - Tese 5 Praacutexis - Tese 6 Aacuteskesis - Tese I Silva Markus Figueira da II Tiacutetulo RNUFBS-CCHLA CDU 17
Elaborado por Heverton Thiago Luiz da Silva - CRB-15710
Nome Marcone de Oliveira Maffezzolli Tiacutetulo O sentido da pragmateiacutea epicurista
Tese apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia da UFRN como requisito parcial para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutor em Filosofia Aprovada em de de 2020
Banca Examinadora
Prof Dr Markus Figueira da Silva (OrientadorPresidente ndash UFRN)
Prof Dr Edrisi de Arauacutejo Fernandes (Examinador Interno ndash UFRN)
Prof Dr Antocircnio Juacutelio Garcia Freire (Examinador Externo ndash UERN)
Prof Dr Marcus Reis Pinheiro (Examinador Externo ndash UFF)
Prof Dr Celso Martins Azar Filho (Examinador Externo ndash UFF)
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Agrave minha matildee
que me ensinou sobre a importacircncia da educaccedilatildeo
para a realizaccedilatildeo de uma vida melhor
5 AGRADECIMENTOS
Agrave Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Ao Departamento de Filosofia da UFRN atraveacutes do qual estendo meus
agradecimentos a todos os professores que contribuiacuteram com minha formaccedilatildeo iniciada em
2004 (especializaccedilatildeo em Eacutetica)
Ao professor e amigo Markus Figueira que acompanhou minha trajetoacuteria no campo da
Filosofia Antiga com sua orientaccedilatildeo precisa e segura e sobretudo sendo um exemplo de
quem exercita a philiacutea e procura viver epicuristicamente
Aos professores Edrisi de Arauacutejo Fernandes Antocircnio Juacutelio Garcia Freire Marcus Reis
Pinheiro e Celso Martins Azar Filho pelas criacuteticas orientaccedilotildees e sugestotildees
A todos os amigos e familiares que souberam entender minha ausecircncia durante o
periacuteodo de realizaccedilatildeo desta pesquisa
6 EPIacuteGRAFE
Eu que dedico incessantemente minhas energias agrave investigaccedilatildeo da natureza e desse modo de viver tiro principalmente a minha calma
(Epicuro Carta a Heroacutedoto)
Traduzir-se uma par te na outra parte - que eacute uma questatildeo de vida ou morte ndash
seraacute ar te (Ferreira Gullar Traduzir-se 1980)
Nenhum jovem deve demorar a filosofar e nenhum velho deve parar de filosofar pois nunca eacute cedo demais nem tarde demais para a sauacutede da alma
(Epicuro Carta a Meneceu)
() quanto a noacutes eacute preciso vir a ser em torno da cura de noacutes mesmos (Epicuro Sentenccedilas Vaticanas 64)
7 RESUMO
Este trabalho postula que por meio de uma pragmateiacutea (πραγματεία) Epicuro busca espelhar um conhecimento acerca da natureza (physiologiacutea) num eacutethos equivalente revalidando a concepccedilatildeo epicurista de filosofia como um saber para a vida (teacutechnen tinaacute periacute ton biacuteon) e de sabedoria como atividade constante de reflexatildeo sobre a natureza (phyacutesis) e de realizaccedilatildeo de um modo de ser de acordo com ela (katagrave phyacutesin) Eacute em tal panorama onde o homem busca uma aproximaccedilatildeo com a natureza para reproduzir em sua alma um estado de imperturbabilidade (ataraxiacutea) que se delineia a possibilidade de autorrealizaccedilatildeo ou do exerciacutecio de uma vida saacutebia Nesse sentido a pragmateiacutea epicurista remete para uma praacutetica filosoacutefica desenvolvida na consecuccedilatildeo de um conjunto de atividades (eneacutergeias) que traduzem em atitudes condutas escolhas accedilotildees e pensamentos um eacutethos filosoacutefico voltado para a busca do equiliacutebrio Se nos textos de Epicuro satildeo limitadas as ocorrecircncias do termo pragmateiacutea por outro lado ao exortar a praacutetica filosoacutefica por meio de exerciacutecios de meditaccedilatildeo (meleacutetema) e de praacutexis (praacutexis) ele nos permite a partir do uso dessas noccedilotildees e de outras a essas vinculadas evidenciar um sentido para a pragmateiacutea o que permite compreender como a physiologiacutea resulta em um modo de vida saacutebio Nessa perspectiva visamos demonstrar que a pragmateiacutea epicurista estabelece seu sentido mais proacuteprio quando compreendida como exerciacutecio eacutetico Isso porque eacute como trabalho permanente e inter-relacionado de meditaccedilatildeo e praacutexis que ela conduz o pensamento e a accedilatildeo para restabelecer no homem o sentido de autarquia (autaacuterkeia) condiccedilatildeo necessaacuteria para encetar-lhe a disposiccedilatildeo para definir um eacutethos a partir do entendimento que tem da natureza e com isso poder fruir de uma vida livre autecircntica equilibrada e feliz Palavras-chave pragmateiacutea meditaccedilatildeo praacutexis physiologiacutea exerciacutecio teacutecnica eacutetica
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REacuteSUMEacuteE
Ce travail postule que agrave travers drsquoune pragmateiacutea (πραγματεία) Epicure cherche agrave refleacuteter une connaissance de la nature (physiologiacutea) dans un eacutethos eacutequivalent revalidant la conception eacutepicurienne de la philosophie comme savoir pour la vie (teacutechnen tinaacute periacute ton biacuteon) et de la sagesse comme activiteacute constante de reacuteflexion sur la nature (phyacutesis) et de reacutealisation dune maniegravere decirctre selon elle (katagrave phyacutesin) Cest dans un tel panorama ougrave lhomme cherche une approximation avec la nature pour reproduire dans son acircme un eacutetat dimperturbabiliteacute (ataraxiacutea) que se dessine la possibiliteacute de reacutealisation de soi ou lexercice dune vie sage En ce sens la pragmateiacutea eacutepicurienne fait reacutefeacuterence agrave une pratique philosophique deacuteveloppeacutee dans la reacutealisation dun ensemble dactiviteacutes (eneacutergeias) qui se traduisent par des attitudes des conduites des choix des actions et des penseacutees un eacutethos philosophique visant la recherche de leacutequilibre Si dans les textes dEacutepicure les occurrences du terme pragmateiacutea sont limiteacutees en revanche en exhortant la pratique philosophique agrave travers des exercices de meacuteditation (meleacutetema) et praxis (praacutexis) cela nous permet de montrer agrave partir de lutilisation de ces notions et dautres lieacutes agrave eux un sens agrave la pragmateiacutea ce qui nous permet de comprendre comment la physiologiacutea se traduit par un mode de vie sage Dans cette perspective nous visons agrave deacutemontrer que la pragmateiacutea eacutepicurienne eacutetablit sa signification la plus approprieacutee lorsquil est compris comme un exercice eacutethique En effet cest en tant que travail permanent et interdeacutependant de meacuteditation et de praxis quelle conduit la penseacutee et laction agrave reacutetablir chez lhomme le sens de lautarcie (autaacuterkeia) condition neacutecessaire pour le entamer la disposeacute agrave deacutefinir un eacutethos baseacutee sur la compreacutehension de la nature et avec cela de pouvoir jouir dune vie libre authentique eacutequilibreacutee et heureuse Mots-cleacutes pragmateiacutea meacuteditation praxis physiologiacutea exercice technique eacutethique
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SUMAacuteRIO
INTRODUCcedilAtildeO 12
CAPITULO 01
Da physiologiacutea ao eacutethos - os fundamentos da pragmateiacutea epicurista
11 A physiologiacutea
111 A phyacutesis
112 Necessidade e acaso
113 A anthropophyacutesis (acerca da natureza humana)
12 A vida katagrave phyacutesin
121 Nos limites da phyacutesis
122 A repleccedilatildeo dos desejos
123 Tograve teacutelos tecircs phyacuteseos
13 A finalidade do saber
131 O conhecimento (gnoacutesis)
132 Criteacuterios de verdade
133 Saber teacutechne e aacuteskesis
23
23
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58
63
66
69
71
CAPIacuteTULO 02
Da Meditaccedilatildeo ou do modo como a pragmateiacutea eacute exercitada pela alma
21 Exerciacutecio dialoacutegico e dialeacutetico
22 Meleacutetema e mneacuteme
23 A meditaccedilatildeo como exerciacutecio de libertaccedilatildeo
24 Meditar
241 Sobre os deuses
242 Sobre a morte
243 Sobre a felicidade
244 Sobre a dor
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82
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10 CAPIacuteTULO 03
A praacutexis como a pragmateiacutea no modo de agir
31 A praacutexis do saacutebio escolher e recusar
32 A accedilatildeo modulada pelo logismoacutes e pela phroacutenesis
33 Praacutexis e exerciacutecio de liberdade (eleutheriacutea)
34 Da poacutelis ao Kecircpos
341 Laacutethe biocircsas
342 Koinoniacutea
343 A philiacutea
35 Pragmateiacutea e sabedoria praacutetica
351 Saber para a vida
352 Exerciacutecio eacutetico
353 A praacutetica da makariacuteos zecircn
113
116
121
124
130
132
134
136
139
143
148
153
CONCLUSAtildeO
156
BIBLIOGRAFIA
161
11 PRINCIPAIS ABREVIACcedilOtildeES
Tst = Epicuro Testamento
Hdt = Epicuro Carta a Heroacutedoto
Pit = Epicuro Carta a Pitocleacutes
Men = Epicuro Carta a Meneceu
MC = Epicuro Maacuteximas Capitais
SV = Epicuro Sentenccedilas Vaticanas
Us = H Usener Epicurea Stuttgart 1887
DL = Dioacutegenes Laeacutercio Vida e Doutrinas dos Filoacutesofos Ilustres Brasiacutelia UnB 2008
Lucr = Lucreacutecio Da Natureza Satildeo Paulo 1985 (Os Pensadores)
Œno = Dioacutegenes de Œnoanda Fragmentos Fribourg Editions Universitaires 1996
PH = Papiros Herculanenses
Obs As citaccedilotildees das cartas maacuteximas e do Testamento de Epicuro reproduzem a
traduccedilatildeo de Maacuterio da Gama Kury do texto de Dioacutegenes Laeacutercio Jaacute as referecircncias agraves
Sentenccedilas Vaticanas acompanham a traduccedilatildeo de Markus Figueira da Silva e Henrique G
Murachco ineacuteditas As possiacuteveis divergecircncias de traduccedilotildees que possam comprometer o
entendimento do pensamento epicurista satildeo indicadas e abordadas em notas explicativas
Quando expomos a citaccedilatildeo do texto em grego salvo indicaccedilatildeo contraacuteria ela foi colhida da
biblioteca digital Thesaurus Linguae Graecae (httpstephanustlgucieduindexphp)
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INTRODUCcedilAtildeO
aacute uma tradiccedilatildeo que postula uma compreensatildeo das ldquoescolas1rdquo filosoacuteficas heleniacutesticas2 a
partir de uma sistematizaccedilatildeo apoiada em trecircs pilares a Canocircnica a Fiacutesica e a Eacutetica
Essa tendecircncia eacute vista retratada nas exposiccedilotildees que Dioacutegenes Laeacutercio faz em Vida e
Doutrinas dos Filoacutesofos Ilustres datada iniacutecio do seacuteculo trecircs dC Nessa obra ao falar dos
estoicos ele afirma que essa divisatildeo3 estaria postulada nos livros de Zenatildeo Criacutesipo
Apolodoro Silo Eudromo e Poseidocircnio Com isso ficava sugerida uma diferenciaccedilatildeo
presente no estoicismo entre o discurso filosoacutefico e a filosofia enquanto praacutetica No mesmo
sentido ao tratar a questatildeo no acircmbito do pensamento dos ciacutenicos essa fragmentaccedilatildeo eacute
retomada embora apenas balizada por um relatado desprezo deles pela Loacutegica e pela Fiacutesica e
por uma dedicaccedilatildeo agrave Eacutetica4 A tendecircncia eacute estendida e tambeacutem aplicada em relaccedilatildeo a Epicuro5
(plusmn342-271 aC6) para quem tal segmentaccedilatildeo seria a base de uma divisatildeo da filosofia7 que
teria na Canocircnica uma introduccedilatildeo ao pensamento epicurista a Fiacutesica cuidaria da natureza e a
Eacutetica versaria sobre o que escolher e o que rejeitar
Tal concepccedilatildeo tripartite parece jaacute encetar uma compreensatildeo da filosofia como
exposiccedilatildeo de um ldquosistema conceitualrdquo construiacutedo a partir da articulaccedilatildeo de disciplinas
constituiacutedas como campo de teorizaccedilatildeo e demonstraccedilatildeo sobre aquilo de que se pretende algum
desvelamento Dessa forma cada uma delas a Fiacutesica a Canocircnica e a Eacutetica se estabeleceria
como espaccedilo teoreacutetico ou doutrinaacuterio sobre aspectos distintos do discurso filosoacutefico Assim
cada uma das partes poderia ser tomada autonomamente como uma teoria sobre a Canocircnica
sobre a Fiacutesica e outra sobre a Eacutetica e a partir daiacute depois de reconsideradas em conjunto eacute que
1 Haacute uma classificaccedilatildeo aludida por Dioacutegenes Laeacutercio que alguns autores usam para ldquoenquadrarrdquo certas filosofias como escolas e outras como modo de vida Para Dioacutegenes o cinismo por exemplo se constituiu como escola filosoacutefica autecircntica (DLVI 103) 2 Considera-se o Periacuteodo Heleniacutestico como aquele compreendido entre a morte de Alexandre Grande em 323 aC e a batalha de Actium em 31 aC Nesse periacuteodo o estoicismo ceticismo epicurismo e cinismo eclodiram exercendo grande influecircncia no modo de pensar e de viver do povo grego 3 DL VII 39 4 DL VI 103 5 Epicuro teria nascido em Samos Aos 18 anos vai a Atenas para o serviccedilo militar Segundo a tradiccedilatildeo teria tido liccedilotildees com o peripateacutetico Praxiacutefanes em Rodes Tambeacutem teria estudado com Nausiacutefanes disciacutepulo de Demoacutecrito de Abdera Aventa-se ainda a possibilidade de ter sido aluno de Pirro de Eacutelis precursor do ceticismo no seacuteculo IV aC Em Mitilene na ilha de Lesbos Epicuro comeccedila a ensinar sua filosofia em 311 aC Posteriormente muda para Lacircmpsaco onde fica ateacute 306 aC quando com 35 anos volta para Atenas e cria o Keacutepos o Jardim Apoacutes a sua morte em 271 aC quatorze escolarcas mantiveram as atividades no jardim ateacute 44 aC 6 DL X 1 7 DL X 29
H
13 se teria a dimensatildeo total da filosofia desta ou daquela escola a partir da leitura desses
ldquosistemas teoacutericosrdquo
Essa tendecircncia a compartimentalizar a filosofia parece ter se disseminado e conduzido
a uma uniformizaccedilatildeo na compreensatildeo de movimentos do pensamento que - ao eclodirem na
Heacutelade a partir do fim do seacuteculo IV aC - mostraram convergecircncias mas sobretudo
diferenccedilas em seus modos de concepccedilatildeo e de realizaccedilatildeo Isso porque tal separaccedilatildeo induz
estudiosos munidos dessas ldquopartesrdquo do discurso filosoacutefico a postular e sublinhar uma primazia
da Eacutetica em contraste com o decliacutenio da poacutelis que deixa de ser espaccedilo puacuteblico e poliacutetico onde
se costumava pensar e exprimir os ideais de virtudes que deveriam nortear a vida do homem
grego Afinal apoacutes a dominaccedilatildeo macedocircnica e consequentes mudanccedilas poliacuteticas sociais e
culturais a tendecircncia eacute natildeo mais pensar na realizaccedilatildeo do homem como politikograven zocircon (animal
ciacutevico8) posto que estaacute submetido a um governo tiracircnico mas na possibilidade que ele pode
ter de realizar a proacutepria felicidade9 ou cultivar sua cidadela interior
Essa conjectura ganha relevo ao lembrarmos que apoacutes dizer da triparticcedilatildeo da filosofia
em Epicuro Dioacutegenes remarca que os epicuristas ndash todavia ndash costumam reunir agrupar a
Canocircnica e a Fiacutesica10 Desse modo se induz a possibilidade de poder considerar a Eacutetica
apartada desse conjunto Assim de um lado ficaria delimitado o espaccedilo para uma ldquoteoriardquo
sobre a phyacutesis e o conhecimento e do outro a aacuterea para tratar sobre os modos de viver ou do
fim supremo Ou seja teriacuteamos algo como um campo onde se desenvolveria o pensamento
especulativo sobre a natureza e outro dedicado a lidar com os modos de agir do homem com
os problemas praacuteticos da vida Essa ldquoorganizaccedilatildeordquo da filosofia supostamente legitimada pelos
proacuteprios epicuristas ao mesmo passo em que possibilitaria conceber uma Eacutetica elaborada a
partir de certo niacutevel de independecircncia em relaccedilatildeo agrave Canocircnica e agrave Fiacutesica permitiria - tambeacutem
no epicurismo - fazer alusotildees a dimensotildees antiteacuteticas como teoriapraacutetica pensarfazer
discursoaccedilatildeo Mas seraacute que esse tipo de enquadramento daacute conta do real sentido do que foi a
philosophiacutea no periacuteodo heleniacutestico E mais especificamente pensar a atividade filosoacutefica do
Jardim11 a partir da separaccedilatildeo entre Canocircnica Fiacutesica e Eacutetica conduz a uma reta compreensatildeo
do que foi postulado por Epicuro
8 Como prefere traduzir Joseacute Ameacuterico Motta Pessanha na tese Empeacutedocles e a Democracia RJ 1965 (Kleacuteos n 78 97-182 20034) 9 Salvo indicaccedilatildeo contraacuteria usamos o termo felicidade natildeo no sentido de eudaimoniacutea mas para nos referirmos ao gozo de uma vida feliz Uma distinccedilatildeo mais clara sobre isso consta no capiacutetulo I item 122 10 DL X 30 11 O Jardim ou Keacutepos foi a escola que Epicuro fundou em Atenas quando tinha por volta de 35 anos Trata-se de uma propriedade localizada a noroeste de Atenas onde Epicuro vivia frugalmente e estabelecia uma convivecircncia com seus disciacutepulosamigos Eacute considerado o berccedilo do epicurismo
14 Ao nos debruccedilarmos sobre estudos mais recentes observamos ser em torno da ideia de
exerciacutecio visando agrave transformaccedilatildeo de si e do modo de viver que Pierre Hadot se contrapotildee a
essa leitura da filosofia antiga como sendo um sistema ou conjunto teoacuterico e disciplinar cuja
tendecircncia identificamos nos relatos de Dioacutegenes Laeacutercio Para tanto Hadot interpreta a
philosophiacutea no mundo antigo a partir da noccedilatildeo de exerciacutecios espirituais12 Atraveacutes desse
tratamento ele afianccedila que a atividade filosoacutefica na antiguidade natildeo visa agrave exposiccedilatildeo de um
sistema de ideias A finalidade natildeo eacute de informar sobre uma teoria mas de produzir no
homem um ldquoefeito formativordquo (HADOT 2014 p 8) Para ele
Os exerciacutecios espirituais satildeo precisamente destinados a essa formaccedilatildeo de si a essa paideacuteia que nos ensinaraacute a viver natildeo em conformidade com os preconceitos humanos e com as convenccedilotildees sociais (pois a vida social eacute ela proacutepria um produto das paixotildees) mas em conformidade com a natureza do homem que natildeo eacute outra senatildeo a razatildeo (HADOT 2014 p 56)
Em torno dessa concepccedilatildeo Hadot postula que ldquoesses exerciacutecios pretendem realizar
uma transformaccedilatildeo da visatildeo de mundo e uma metamorfose do serrdquo (HADOT 2014 p 68)
Nesse sentido ele defende que para aleacutem de um valor ldquomoralrdquo a filosofia antiga se reveste de
um valor ldquoexistencialrdquo Por isso os exerciacutecios espirituais deveriam ser compreendidos a partir
de sua finalidade que eacute ensinar ldquoum meacutetodo de orientaccedilatildeo tanto no pensamento quanto na
vidardquo (HADOT 2016 p 118) Assim ao definir a filosofia como um ato e esse como uma
orientaccedilatildeo da atenccedilatildeo ele postula que a finalidade dos exerciacutecios eacute obtida quando se orienta
essa atenccedilatildeo para o prazer
No estoicismo como no epicurismo filosofar eacute um ato contiacutenuo um ato permanente que se identifica com a vida um ato que eacute preciso renovar a cada instante Nos dois casos pode-se definir esse ato como uma orientaccedilatildeo da atenccedilatildeo () No epicurismo a atenccedilatildeo estaacute orientada para o prazer que eacute em uacuteltima instacircncia o prazer de ser (HADOT 2014 p 266)
Percebemos com isso que na interpretaccedilatildeo de Hadot a finalidade dos exerciacutecios
espirituais eacute projetada para depois para aleacutem do que eles satildeo ou constituem Eles satildeo um
meio para alcanccedilar a sabedoria o prazer a liberdade mas natildeo satildeo eles mesmos a atividade
que traz consigo a experiecircncia de viver a sabedoria o prazer ou a liberdade Sendo voltado
para orientaccedilatildeo para formaccedilatildeo ensinam ou conduzem para a consecuccedilatildeo de algo mas natildeo
satildeo pensados como sendo eles mesmos a realizaccedilatildeo do que se deseja alcanccedilar Daiacute ele afirmar
que ldquograccedilas a esses exerciacutecios dever-se-ia chegar agrave sabedoria isto eacute a um estado de liberaccedilatildeo
total das paixotildees de lucidez perfeita de conhecimento de si e do mundo (HADOT 2014 p
12 HADOT Pierre Exerciacutecios Espirituais e Filosofia Antiga Satildeo Paulo Eacute Editora 2014
15 57) Mas natildeo se chega a esse estado pois na visatildeo hadotiana a sabedoria eacute algo irrealizaacutevel13 e
ldquoum ideal ao qual se tende sem esperar chegar a elerdquo poreacutem cabe destacar ldquosalvo talvez no
epicurismordquo (HADOT 2014 p 57-58) Desse modo pensar a filosofia antiga como
exerciacutecios espirituais embora permita escapar ao enquadramento facetaacuterio encontrado em
Dioacutegenes Laeacutercio parece levar a outro problema a homogeneizaccedilatildeo de aspectos distintos e
fundamentais para caracterizar a originalidade de escolas filosoacuteficas sobretudo aquelas que
eclodiram agrave eacutepoca do helenismo No tocante ao epicurismo isso implica em embaccedilar a
compreensatildeo da filosofia como uma praacutetica em que o viver o pensar e o agir convergem para
a experiecircncia do prazer e da autarquia Curiosamente essa problemaacutetica natildeo eacute clarificada por
Hadot
Talvez esse lapso sentido nos textos de Pierre Hadot se decirc porque a relaccedilatildeo entre
exerciacutecios e sabedoria eacute pensada de maneira diferente no epicurismo e natildeo se possa falar de
separaccedilatildeo ou distanciamento entre eles A praacutetica filosoacutefica epicurista visa fazer experimentar
aquilo que se almeja no momento mesmo em que ela se realiza A ldquoformaccedilatildeordquo vem junto com
a vivecircncia a finalidade do exerciacutecio estaacute dentro dele mesmo Natildeo se exercita para ser saacutebio
eacute-se saacutebio no exerciacutecio Claro que haacute diferentes graus de sabedoria mas podemos dizer que
no epicurismo os exerciacutecios jaacute satildeo a consecuccedilatildeo de uma experiecircncia de vida filosoacutefica
Dessa forma o saacutebio eacute concebido como aquele que se realiza como tal ao exercitar a
sabedoria e essa eacute entendida como a atividade de viver de acordo com a phyacutesis (katagrave phyacutesin)
o que aponta para uma vida ldquohedonistardquo e autaacuterquica Com isso nos remetemos para a
inexistecircncia de uma teleologia na aacuteskesis14 epicurista Em outras palavras a finalidade dos
exerciacutecios natildeo estaacute deslocada para fora deles ou para depois A accedilatildeo do sophoacutes eacute a expressatildeo
da sua sabedoria tanto quanto essa implica em uma accedilatildeo que o caracteriza no mundo
Nas outras ocupaccedilotildees com dificuldade o fruto chega ao amadurecimento e na filosofia o agradaacutevel vem junto com o conhecimento pois o gozo natildeo vem depois do aprendizado ao contraacuterio aprendizado e gozo vecircm juntos (SV 27)15
Podemos assinalar que a accedilatildeo ou a praacutetica filosoacutefica traz consigo o proacuteprio sentido de
realizaccedilatildeo do sophoacutes na medida em que espelha no campo das suas escolhas e atitudes a
compreensatildeo que ele desenvolve a respeito da realidade Por isso eacute forccediloso destacar que a
13 ldquoO uacutenico estado normalmente acessiacutevel ao homem eacute a filo-sofia isto eacute o amor pela sabedoria o progresso em direccedilatildeo agrave sabedoriardquo (HADOT 2014 p 58) 14 Exerciacutecio praacutetica 15 Οὐ Ἐπὶ μὲν τῶν ἄλλων ἐπιτηδευμάτων μόλις τελειωθεῖσιν ὁ καρπὸς ἔρχεται ἐπὶ δὲ φιλοσοφίας συντρέχει τῇ γνώσει τὸ τερπνόνmiddot οὐ γὰρ μετὰ μάθησιν ἀπόλαυσις ἀλλὰ ἅμα μάθησις καὶ ἀπόλαυσις
16 aacuteskesis epicurista eacute ao mesmo tempo principio e finalidade do modo de ser do saacutebio Ao
dizer que ldquoaprendizado e gozo vecircm juntosrdquo Epicuro evoca a partir do termo gozo (apoacutelaysis)
a noccedilatildeo de utilidade proveito benefiacutecio conquista de algo que adveacutem com a praacutetica
filosoacutefica E qual proveito maior pode advir para o saacutebio epicurista
Eacute conhecida a afirmaccedilatildeo de Epicuro que diz ldquoa pobreza medida pelo limite da
natureza eacute uma riqueza grande e riqueza natildeo delimitada eacute uma grande pobrezardquo (SV 25)16
Para viver dentro desse limite eacute necessaacuterio investigar a natureza compreender seus modos de
realizaccedilatildeo Isso permite agir liberto das opiniotildees vazias (kenaigrave doacutexai) a partir da capacidade
que a alma (psycheacute) tem de pensar calcular17 avaliar - a fim de definir o que se circunscreve
aos limites da phyacutesis ndash e junto agrave faculdade que ela tem de deliberar de escolher tendo em
vista o que eacute natural e necessaacuterio em detrimento do que nem eacute natural e nem necessaacuterio18
Com isso o saacutebio pode estabelecer para si um criteacuterio a partir da compreensatildeo que adveio ao
investigar a phyacutesis para buscar refletir tanto na alma quanto em seu eacutethos um modo natural
de ser Tal medida eacute que vai lhe permitir gozar uma vida equilibrada ou saudaacutevel fazecirc-lo
experimentar nas relaccedilotildees que estabelece no mundo o sentido de realizaccedilatildeo de um modo de
viver kagraveta phyacutesin19
Daiacute a intriacutenseca relaccedilatildeo da aacuteskesis epicurista com a eacutetica e com a physiologiacutea O eacutethos
do saacutebio resulta de um constante trabalho para restabelecer o domiacutenio sobre si sobre a proacutepria
vontade para agir a partir do entendimento a respeito da phyacutesis fazendo frente agraves opiniotildees
aos valores e aos costumes que tendem para aleacutem do que eacute natural e necessaacuterio Saacutebio eacute pois
quem estabelece uma disposiccedilatildeo permanente para viver a autenticidade da proacutepria existecircncia
que soacute a liberdade de um ser esclarecido quanto agrave natureza permite realizar Eis porque
Agraves vezes consideramos a autossuficiecircncia (autaacuterkeia) um grande bem natildeo porque em todos os casos devemos contentar-nos com pouco mas para que se natildeo tivermos o muito nos contentemos com o pouco sinceramente persuadidos de que quanto maior a moderaccedilatildeo com que se goza a abundacircncia tanto menor a necessidade dela e de que todo desejo conforme a natureza pode ser facilmente satisfeito ao passo que todo desejo vatildeo eacute difiacutecil de satisfazer (DL X 130)20
16 Ἡ πενία μετρουμένη τῷ τῆς φύσεως τέλει μέγας ἐστὶ πλοῦτοςmiddot πλοῦτος δὲ μὴ ὁριζόμενος μεγάλη ἐστὶ πενία 17 Para se referir a essa atividade da alma Epicuro emprega o termo λογισμὸς (logismoacutes) vide DL X 39 75 117 132 144 145 18 Estamos falando da φρόνησις (phroacutenesis) vide DL X 132 19 Kagraveta phyacutesin eacute uma expressatildeo que significa viver de acordo com a natureza No capiacutetulo I item 12 trataremos dessa questatildeo 20 Καὶ τὴν αὐτάρκειαν δὲ ἀγαθὸν μέγα νομίζομεν οὐχ ἵνα πάντως τοῖς ὀλίγοις χρώμεθα ἀλλrsquo ὅπως ἐὰν μὴ ἔχωμεν τὰ πολλά τοῖς ὀλίγοις ἀρκώμεθα πεπεισμένοι γνησίως ὅτι ἥδιστα πολυτελείας ἀπολαύουσιν οἱ ἥκιστα ταύτης δεόμενοι καὶ ὅτι τὸ μὲν φυσικὸν πᾶν εὐπόριστόν ἐστι τὸ δὲ κενὸν δυσπόριστον
17 Dessa forma ao colocar por si mesmo os limites que conduzem agrave proacutepria realizaccedilatildeo
tendo exclusivamente a natureza como medida do que pode o homem Epicuro relaciona a
physiologiacutea eacutetica e o exerciacutecio de viver com o movimento ou a atitude de desvios das
opiniotildees ou de outras formas de assenhoramentos que possam tolher o homem de vivenciar a
experiecircncia de ser a partir daquilo que descobriu no exerciacutecio de pensar a phyacutesis Com isso o
que vai caracterizar o exerciacutecio da sabedoria eacute a accedilatildeo fundamentada na physiologiacutea
Para Epicuro exercitar a sabedoria faz sobrevir a ataraxiacutea21 para a alma e a aponiacutea22
para o corpo-carne23 ao mesmo passo em que realiza a experiecircncia da liberdade (eleutheriacutea)
no campo eacutetico E isso estaacute relacionado com a proposta filosoacutefica epicurista que eacute por um
lado assegurar que o homem natildeo dependa nem das circunstacircncias24 nem dos deuses25 para ser
feliz e por outro proporcionar o conhecimento necessaacuterio para que ele natildeo guie sua vida por
valores que possam ir contra a sua realizaccedilatildeo Entatildeo pensar a filosofia postulada por Epicuro
sob o prisma de exerciacutecios espirituais como propocircs Hadot parece minorar o sentido
fundamental de uma accedilatildeo filosoacutefica ancorada na compreensatildeo de que a sabedoria se realiza
enquanto praacutetica permanente de construccedilatildeo de um eacutethos a partir de uma physiologiacutea que
aponta para a autaacuterkeia e equiliacutebrio e que concomitante a essa praacutetica a experiecircncia de uma
vida feliz (makariacuteos zecircn) eacute realizada pelo proacuteprio saacutebio ateacute onde depende dele e na medida
em que ele se ocupe da filosofia exercitando a sabedoria Mas como isso se daacute
Se retomarmos o paralelo entre a medicina e a filosofia - no qual se inspira Epicuro
para evidenciar o valor praacutetico de filosofar - tanto a arte meacutedica (teacutechne heacute ietrike) quanto a
arte de viver (teacutechnen tinaacute periacute ton biacuteon) vatildeo remeter para uma atividade contiacutenua voltada
para o cuidado consigo mesmo visando favorecer o modo natural de realizaccedilatildeo do homem
Para isso ambas vatildeo propor alteraccedilotildees no estilo de vida prescrevendo dieteacuteticas ou faacutermacos
voltados para restituir um equiliacutebrio vital Nesse sentido ocupar-se da filosofia diz respeito agrave
praacutetica de atividades que gravem na alma um loacutegos terapecircutico (expurgando do pensamento
as concepccedilotildees da realidade que distanciam o homem da phyacutesis e apontando os limites que
conduzem ao gozo de uma vida satilde) e constituam um eacutethos voltado para dar naturalidade agrave
21 Imperturbabilidade da alma 22 Ausecircncia de dor 23 Como veremos no capiacutetulo I o homem tem uma natureza corpoacuterea A psycheacute (alma) eacute formada por aacutetomos mais sutis e velozes dispersos pelo sarkoacutes (carne) Trata-se de um corpo-alma e de um corpo-carne que mantecircm uma inter-relaccedilatildeo fundamental para pensarmos as interaccedilotildees que o homem estabelece com o mundo-realidade Isso porque eacute por meio do corpo-carne que a alma sente as afecccedilotildees (paacutethe) que geram as sensaccedilotildees (aiacutestheseos) que podem ser agradaacuteveis ou desagradaacuteveis 24 SV 9 ldquoCoisa maacute eacute a necessidade mas natildeo haacute necessidade nenhuma de viver com necessidaderdquo 25 SV 65 ldquoEacute vatildeo exigir dos deuses aquilo que algueacutem pode provir por si proacutepriordquo
18 vida para estabelecer relaccedilotildees sociais livre de dominaccedilotildees e convenccedilotildees para buscar as
experiecircncias que confiram o prazer que equilibra para ser a expressatildeo de uma vida livre e
autecircntica
Para Epicuro a filosofia natildeo eacute um conhecimento apartado da experiecircncia praacutetica de
existir e por isso natildeo pode ser pensada a partir de saberes descolados uns dos outros Uma reta
compreensatildeo da philosophiacutea postulada por Epicuro precisa evidenciar o sentido de unidade
que perpassa seus ensinamentos e a confluecircncia deles para uma filosofia que se realiza como
sabedoria praacutetica Contudo isso natildeo implica em interpretaacute-la como um exerciacutecio que conduz agrave
sabedoria mas como a praacutetica mesma de uma sabedoria ancorada no entendimento
physioloacutegico da natureza Eacute a partir desse aspecto que nos referimos a uma pragmateiacutea
epicurista ou seja a atividade que orientada para espelhar a physiologiacutea em um eacutethos saacutebio
exercita a autaacuterkeia e o equiliacutebrio Em torno desse entendimento podemos pensar como no
epicurismo um saber acerca da natureza engendra uma disposiccedilatildeo (diaacutethesis)26 para viver a
partir de um conhecimento filosoacutefico
Essa relaccedilatildeo entre o que se sabe e como se vive percebemo-la mesmo em textos que
aparentemente poderiam estar desprovidos de algum tipo de ensinamento filosoacutefico Mas em
sendo o pensamento epicurista indissociado da vida praacutetica ateacute em seu Testamento Epicuro nos
remete para a realizaccedilatildeo de um modo saacutebio de viver Em certo trecho ele diz que apoacutes sua morte o
Jardim deveria ficar agrave disposiccedilatildeo de Hermarco e de seus companheiros em filosofia e
daqueles que o sucederiam ocupando-se com ela (endiatriacutebein katagrave philosophiacutean) 27 Dessa
forma para aleacutem de reconhecer e agraciar aqueles que fazem da filosofia um modo de viver
Epicuro alccedila sua conduta generosa com relaccedilatildeo a Hermarco e seus amigos agrave condiccedilatildeo de
exemplo de como exercitar a sabedoria a justiccedila e o equiliacutebrio ao lidar com as coisas praacuteticas
do dia a dia
Essa ocupaccedilatildeo permanente com a filosofia que caracterizou a vida de Epicuro
tambeacutem vem expressa em duas diretrizes apresentadas no passo 123 da Carta a Meneceu
Nela ele diz ao seu disciacutepulo da necessidade de pocircr em accedilatildeo os preceitos ensinados e meditar
sobre eles e que nisso residem as condiccedilotildees de felicidade ou de sauacutede da alma Os termos
principais dessa assertiva satildeo apresentados de forma imperativa ldquoPotildee em accedilatildeo (praacutette) os
preceitos que te comuniquei ininterruptamente e medita (kaiacute meleacuteta) com a niacutetida consciecircncia
26 DL X 117 Us 222a 27 DL X 17 ἐνδιατρίβειν κατὰ φιλοσοφίαν
19 de que eles satildeo os elementos fundamentais de uma vida belardquo28
Esses dois conceitos que traduzimos29 por meditaccedilatildeo (tograve meleacutetema) e praacutexis (heacute
praacutexis) vatildeo ser evocados quando Epicuro exorta essa necessidade de se dedicar agrave filosofia de
se ocupar com ela (endiatriacutebo) Se o sophoacutes eacute o modelo de homem que se ocupa com a
realizaccedilatildeo de um modo de viver kagraveta phyacutesin traduzindo o conhecimento que tem a respeito da
natureza em um eacutethos equivalente eacute por meio da meditaccedilatildeo e da praacutexis que essa ocupaccedilatildeo
define o sentido da pragmateiacutea epicurista
Eacute nessa perspectiva que a meditaccedilatildeo vai ser entendida como a atividade de reflexatildeo da
alma que partindo do referencial sensiacutevel para pensar a natureza estabelece um saber que vai
servir para guiar o sophoacutes para fazer as escolhas e as recusas que conduzem ao bem-viver
Ela natildeo visa ser um exerciacutecio especulativo do pensamento sobre a natureza nem produzir
sobre ela uma epistemologia ou sistema teoacuterico A meditaccedilatildeo vai ser a atividade que resulta
em um saber que se faz em torno dos desafios das necessidades das possibilidades que se
apresentam ao homem no decurso praacutetico de sua vida Meditar eacute antes de tudo uma reflexatildeo
em torno do cuidado que se deve ter com a proacutepria maneira de viver de como se livrar da
ignoracircncia e das crenccedilas que alheiam o homem de se aperceber do domiacutenio que pode ter sobre
as proacuteprias vontades sobre as accedilotildees sobre seu destino E isso tem uma relaccedilatildeo essencial com
a eacutetica uma vez que com essa reflexatildeo se pretende desenvolver na psycheacute um loacutegos curativo
ou libertador que a desembarace ou a purgue de opiniotildees que possam fazer adoecer
desequilibrar aprisionar
E quando Epicuro diz da necessidade de pocircr em accedilatildeo (praacutette) ou seja estabelecer uma
praacutexis orientada para a vida feliz ele tem como perspectiva que a filosofia se realiza enquanto
atividade de construccedilatildeo continuada de um modo de pensar e de agir A praacutexis eacute o que vai
caracterizar a conduta do saacutebio ao fazer um uso praacutetico da filosofia Nesse sentido trata-se de
postular que a sabedoria eacute realizaacutevel e a praacutetica de vida eacute saacutebia Assim para livrar o sophoacutes do
que causa dor e perturbaccedilatildeo as accedilotildees dele precisam estar de acordo com a natureza ser um
reflexo de um pensamento fundamentado naquilo que ele conhece sobre a phyacutesis A praacutexis
nos reporta para uma correlaccedilatildeo entre o modo de compreender a natureza e a consequente
28 Ἃ δέ σοι συνεχῶς παρήγγελλον ταῦτα καὶ πρᾶττε καὶ μελέτα στοιχεῖα τοῦ καλῶς ζῆν ταῦτrsquo εἶναι διαλαμβάνων 29 A meditaccedilatildeo (tograve meleacutetema) eacute o substantivo relacionado agrave forma verbal imperativa em meletaacute (medita) cuja origem vem de meletaacuteo (μελετάω) Como verbo traz o sentido de se ocupar exercer praticar Como nome traduz a ideia de estudo exerciacutecio praacutetico A praacutexis (praacutexis) eacute o substantivo ligado ao verbo pratte ambos originados da raiz praacutesso (πράσσω) Embora praacutexis e praacutetica tenham origem na mesma raiz etimoloacutegica optamos por empregar o termo praacutexis para nos referir agrave conduta ou agraves accedilotildees ligadas agrave compreensatildeo physioloacutegica da realidade enquanto faremos uso da palavra praacutetica em sentido mais geral (BAILLY Anatole Grand Bailly Dictionnaire Grec-Franccedilais Paris Hachette 1935)
20 praacutetica de vida que decorre dessa compreensatildeo Tambeacutem remete agrave necessidade de aplicar a
doutrina de maneira que a conduta do saacutebio se decirc meio a um distanciamento das opiniotildees
vazias da ignoracircncia e de tudo o que obscurece a compreensatildeo da imanecircncia da vida Dessa
forma a partir da investigaccedilatildeo physioloacutegica e de uma reflexatildeo sobre como esse entendimento
pode levar agrave boa realizaccedilatildeo da vida vai ser possiacutevel agir de maneira que toda escolha e toda
recusa conduzam para uma aproximaccedilatildeo entre o modo de viver do saacutebio e um paradigma
natural pensado a partir do que se conhece da phyacutesis
Ao pensar a meditaccedilatildeo como uma ocupaccedilatildeo da psycheacute voltada para compreender a
realidade e como se conduzir diante dela de maneira a que o modo de ser produza um estado
de imperturbabilidade e ao conceber a praacutexis como as accedilotildees as escolhas e recusas que o
saacutebio faz a partir do conhecimento que tem sobre a natureza e tendo em vista realizar uma
vida equilibrada e frugal - o que nos remete para um exerciacutecio continuo de espelhamento em
seu modo de viver da compreensatildeo que tem sobre o modo proacuteprio que a natureza tem de se
realizar - Epicuro nos remete para o que podemos pensar como exerciacutecios eacuteticos e eacute como tal
que a pragmateiacutea epicurista se efetiva
Embora o uso desse substantivo na Carta a Heroacutedoto seja comumente interpretado
como uma referecircncia a um sistema ou doutrina30 sem que se relacione isso com uma
dinacircmica que inter-relaciona physiologiacutea eacutetica e aacuteskesis ao modo de ser do saacutebio ou ao
exerciacutecio da sabedoria eacute preciso lembrar que o sentido do termo pragmateiacutea31 tambeacutem diz
respeito agrave maneira de tratar de algo ao cuidado que dedicamos ao fazer alguma coisa32 o que
implica em buscar um objetivo em se ocupar em se aplicar em procurar alcanccedilar uma
finalidade e tambeacutem pode fazer referecircncia a afazeres33 atividades praacuteticas
Nesse sentido e considerando o disposto ateacute aqui aventamos que para escapar agrave
tendecircncia para se pensar a filosofia de Epicuro a partir de recortes ou descolamentos de
ldquocampos de saberrdquo o que embota o sentido orgacircnico que caracteriza a tradiccedilatildeo do Jardim e
para natildeo conceber a aacuteskesis epicurista como um exerciacutecio-meio posto que a vida feliz se faz
enquanto exerciacutecio de uma vida saacutebia cabe interpretar o epicurismo como uma pragmateiacutea
como uma atividade permanente de realizaccedilatildeo de um modo de viver em consonacircncia com a
compreensatildeo que se tem da phyacutesis A pragmateiacutea epicurista remete para como o saacutebio pensa a
30 Gama Cury traduz como sistema sistema doutrinaacuterio em Vida e Doutrinas dos Filoacutesofos Ilustres Brasiacutelia UnB 2008 Marcel Conche traduz como sistema em Epicure lettres et maximesVillers-Sur-Mer Mecare 1977 31 DL X 35 77 83 Πραγματεία 32 BAILLY Anatole Grand Bailly Dictionnaire Grec-Franccedilais Paris Hachette 1935 33 The Online Liddell-Scott-Jones Greek-English Lexicon (httpstephanustlguciedulsjeid=1 acessado em 13 de fevereiro 2019)
21 realidade e a partir disso atua sobre si mesmo e nas relaccedilotildees que estabelece no mundo
tencionando realizar o sentido natural de sua existecircncia Isso se efetiva por meio de meditaccedilatildeo
e de praacutexis praacuteticas que restabelecem a autarquia e o equiliacutebrio na medida em que buscam um
espelhamento da physiologiacutea no eacutethos do saacutebio
Eacute a partir dessa hipoacutetese que estabelecemos uma interpretaccedilatildeo do pensamento
epicurista a partir da explicitaccedilatildeo do sentido de sua pragmateiacutea como um exerciacutecio eacutetico que
articula a physiologiacutea a um modo de vida autaacuterquico e equilibrado A tal desafio dedicamos
este trabalho de arqueologia do pensamento epicurista a partir da anaacutelise e interpretaccedilatildeo do
limitado acervo de textos de Epicuro34 que a tradiccedilatildeo conservou Trata-se de uma produccedilatildeo
que ainda requer mais atenccedilatildeo dado o valor das discussotildees que envolvem entre tantos temas
a relaccedilatildeo entre filosofia e sabedoria homem e natureza liberdade e necessidade eacutetica e modo
de viver Ainda que a influecircncia do epicurismo tenha se estendido ateacute o mundo greco-romano
por cerca de sete seacuteculos apoacutes a morte de Epicuro a quase totalidade da obra dele se perdeu
(tenha sido por accedilatildeo deliberada daqueles que combatiam sua forma de pensar avessa agrave
poliacutetica agrave religiatildeo aos mitos tenha sido por desastre como a erupccedilatildeo do Monte Vesuacutevio que
em 79 dC calcinou e soterrou a cidade de Herculano e com ela toda uma biblioteca
epicurista ou pelos mais de 23 seacuteculos que nos separam da philosophiacutea de Epicuro) o que
implica muitas vezes em leituras enviesadas lacunares ou sem o devido rigor acadecircmico
Dadas essas razotildees destacamos que recorremos a publicaccedilotildees claacutessicas e recentes para
recompor o legado do pensamento epicurista como o trabalho de Arrighetti Bollack Conche
Festugiegravere Gual Joyau Lledoacute Salem Solovine e Silva entre outros Tomamos por base o
conteuacutedo expresso em trecircs cartas35 e 40 Maacuteximas Capitais conservadas por Dioacutegenes Laeacutercio
no livro X de Vidas e Doutrinas de Filoacutesofos Ilustres Tambeacutem nos detemos sobre as 81
sentenccedilas que foram descobertas em um manuscrito da Biblioteca Vaticana e publicadas em
1888 por Karl Wotke como Sentenccedilas Vaticanas36 Analisamos ainda a doxografia
preservada e reunida por Hermann Usener em Epicurea Ademais nos debruccedilamos sobre o
conteuacutedo de alguns fragmentos dos Papiros Herculanenses37 (estima-se que eles pertenciam agrave
biblioteca do epicurista romano Filodemo) e dos fragmentos descobertos no siacutetio arqueoloacutegico
34 Teria escrito mais de 300 volumes Ainda que se trate de um pensador com vasta produccedilatildeo como relatou Dioacutegenes Laeacutercio pouco desse material foi conservado 35 Carta a Meneceu Carta a Piacutetocles e Carta a Heroacutedoto 36 Embora estudos digam que nem todas satildeo de Epicuro podendo algumas serem atribuiacutedas aos disciacutepulos Metrodoro e Hermarco 37 Fragmentos de papiros recuperados da Biblioteca de Herculano Localizada ao sul da Itaacutelia a cidade de Herculano foi soterrada no ano de 79 pela erupccedilatildeo do Monte Vesuacutevio Os restos da biblioteca foram descobertos em 1750 quando mais de 1500 rolos de papiros foram achados parcialmente carbonizados
22 de Œnoanda (na Turquia) Satildeo inscriccedilotildees que o epicurista Dioacutegenes de Œnoanda mandou
esculpir por volta do seacuteculo II dC em um muro para que os viajantes que passassem por ali
tivessem contato com a filosofia epicurista E consideramos como uma referecircncia importante
para a compreensatildeo do epicurismo o poema em seis livros Da Natureza do poeta romano
Lucreacutecio
Dividimos o trabalho em trecircs capiacutetulos
O primeiro apresenta os fundamentos da pragmateiacutea epicurista ou de como a
physiologiacutea o conhecimento (gnoacutesis) e a teacutecnica (teacutechne) satildeo pensados por Epicuro O
objetivo eacute mostrar que a filosofia visa colocar diante do homem um saber que possa ser uacutetil agrave
sua realizaccedilatildeo Para isso destacaremos como a alma (psycheacute) opera para a partir do que a
sensibilidade lhe apresenta como dados da realidade imanente pensar sobre sua finalidade e
sobre um modo de viver que possa realizaacute-la
O segundo capiacutetulo discorre sobre a meditaccedilatildeo ou como a pragmateiacutea eacute exercitada
pela alma Tem-se por escopo explicar como agrave luz da physiologiacutea a reflexatildeo sobre temas
como a morte os deuses a felicidade e a dor por exemplo vai constituir um loacutegos
terapecircutico fundamental para estabelecer um distanciamento das opiniotildees vazias e incitar uma
disposiccedilatildeo para efetivar um eacutethos voltado para alegria e a tranquilidade
E o terceiro capiacutetulo vai discorrer sobre a praacutexis Trata-se de expor como a pragmateiacutea
se delineia na conduta do saacutebio a partir do saber physioloacutegico Para isso vatildeo ser enfocadas as
praacuteticas de relacionamento social A vida discreta (relacionada ao laacutethe biocircsas) a amizade
(philiacutea) a vida em comunidade (koinoniacutea) satildeo aspectos do eacutethos do saacutebio que permitem
pensar sua accedilatildeo a partir de uma busca por conviacutevios assentados em sentimentos de afinidade e
de homologiacutea (igualdadeequiliacutebrio) levando agrave liberdade para realizar a autenticidade de cada
um Tambeacutem destacamos nesse capiacutetulo como a pragmateiacutea se constitui como um exerciacutecio
da sabedoria voltada para a realizaccedilatildeo de uma vida autecircntica frugal livre e feliz Para tanto
vamos discutir como a eacuteticaphysiologiacutea epicuacuterea eacute realizada enquanto praacutetica libertadora e
terapecircutica
23
CAPIacuteTULO 01
DA PHYSIOLOGIacuteA AO EacuteTHOS ndash
OS FUNDAMENTOS DA PRAGMATEIacuteA EPICURISTA
No pensamento epicurista eacute estabelecida uma relaccedilatildeo entre a compreensatildeo que se tem
da realidade (phyacutesis) e o modo de viver Considera-se que a partir da investigaccedilatildeo acerca da
natureza (physiologiacutea) eacute possiacutevel orientar o eacutethos do homem para realizaccedilatildeo de uma vida feliz
(makariacuteos zecircn)1 Essa perspectiva estaacute presente na definiccedilatildeo que Sexto Empiacuterico2 apresenta da
filosofia do Jardim quando diz que os epicuristas buscavam apresentar uma ldquoarte de vidardquo
sentido advindo da expressatildeo teacutechnen tinaacute periacute ton biacuteon3 Em seguida diz-se que por essa
razatildeo Epicuro afirmava ser a filosofia uma arte que por discurso e razatildeo busca uma vida
feliz4 A mesma ideia consta nos fragmentos Us 227 e 227b onde eacute dito que Epicuro definiu
tal arte como um procedimento que busca ser uacutetil a vida5 Eacute nesse enquadramento e com essa
finalidade que a physiologiacutea eacute desenvolvida por Epicuro e sobre isso falamos a seguir
11 ndash A physiologiacutea
A physiologiacutea em sentido geral diz respeito agrave investigaccedilatildeo ou exposiccedilatildeo sobre a
natureza (phyacutesis) No livro primeiro da Metafiacutesica Aristoacuteteles usa esse termo para se referir
ao modelo de filosofia praticado pelos primeiros pensadores que chamava de physiologoacutes6 Eacute
neles em especial nos da Jocircnia7 que Epicuro se inspira para pensar a natureza como fonte de
um conhecimento que possa servir para encetar um modelo de realizaccedilatildeo para o homem Em
busca de dar uma fundamentaccedilatildeo ontoloacutegica e um vieacutes praacutetico para a eacutetica Epicuro tambeacutem
1 A vida feliz (μακαρίως ζην) eacute a expressatildeo de um sentido de equiliacutebrio (aqui expresso em uma noccedilatildeo geral) mas que eacute trabalhada por Epicuro em termos de ἀταραξία (ausecircncia de perturbaccedilatildeo na alma) ἀπονία (ausecircncia de dores do corpo) ευσταθέια (boa disposiccedilatildeo) Essas definiccedilotildees encontram-se desenvolvidas por Markus Silva Epicuro Sabedoria e Jardim Rio de Janeiro Relume-Dumaraacute 2003 2 Us 219 Sexto Empiacuterico (Adv Math V 9) 169 επαγγέλλονται γαρ τέχνην τινά περί τον βίον παραδώσειν καΐ δια τούτο Έπίκούρος μεν έλεγε την φιλοσοφίαν ένέργειαν εΐναι λόγοις καΐ διᾰλογισμοΐς τον εύδαίμονα βίον περιποιοθσαν 3 τέχνην τινά περί τον βίον 4 τον εύδαίμονα βίον περιποιοσαν 5 τέχνη εστί μέθοδος ενεργούσα τω βίψ το συμφέρον 6 Aristoacuteteles Metafiacutesica Α5 986b10 7 Anaximandro Anaxaacutegoras Heraacuteclito
24 vai recorrer ao legado de Demoacutecrito Leucipo e Empeacutedocles entre outros preacute-socraacuteticos Isso
porque ele pretende retomando o pensamento que o antecedeu fundamentar na natureza um
modo de viver Seu projeto eacute elaborar uma filosofia que possa conduzir ao esclarecimento
com relaccedilatildeo aos modos de ser da phyacutesis a como ela opera e ateacute que ponto ela determina as
condiccedilotildees de realizaccedilatildeo do homem Eacute preciso haver essa compreensatildeo para se estabelecer um
discernimento a respeito dos propoacutesitos que estatildeo de acordo com a natureza e devem ser
perseguidos e aqueles que resultam das opiniotildees vazias (kenaigrave doacutexai) e devem ser rejeitados
Esse esclarecimento vai ser fundamental para fazer uma correspondecircncia entre o discurso
filosoacutefico e a maneira como se vive
Pensar e viver de acordo com o que se pensa foi um ideal de algumas escolas
filosoacuteficas helenistas8 e Epicuro conservando essa premissa vai elaborar uma compreensatildeo
da phyacutesis cujas repercussotildees vatildeo estar diretamente ligadas agrave necessidade de transformar o
eacutethos do homem grego Eacute a partir de uma redefiniccedilatildeo da forma de perceber a realidade e o
papel de si mesmo no mundo que se pretende redirecionar o estilo de vida Trata-se de
postular um exerciacutecio de investigaccedilatildeo e de entendimento sobre a natureza que jaacute se constitui
como expressatildeo de uma alteraccedilatildeo no modo de existir Eacute nesses termos que a physiologiacutea eacute
apresentada na Carta a Heroacutedoto
Portanto sendo tal caminho uacutetil a todos que se familiarizaram com a investigaccedilatildeo da natureza eu que dedico incessantemente minhas energias agrave investigaccedilatildeo da natureza e desse modo de viver tiro principalmente a minha calma preparei para teu uso uma espeacutecie de epiacutetome e um sumaacuterio dos elementos fundamentais de minha doutrina em sua totalidade (DL X 37) 9
Dessa citaccedilatildeo podemos destacar alguns aspectos O primeiro diz respeito ao caraacuteter
uacutetil do estudo da natureza Ela natildeo eacute apresentada como uma disciplina ou um sistema teoacuterico
sobre a phyacutesis mas relacionada - pelo uso do termo eneacutergema10- a uma ocupaccedilatildeo accedilatildeo ou
atividade cotidiana visando o bem-estar Dessa forma a physiologiacutea para aleacutem de uma visatildeo
acerca da realidade estaacute atrelada a um modo especiacutefico de viver o saacutebio (sophoacutes) ao
perquirir a phyacutesis exercita a proacutepria imperturbabilidade (ataraxiacutea) Isso porque para Epicuro
eacute dessa permanente atividade de buscar compreender a phyacutesis que o saacutebio por si mesmo
estabelece um eacutethos fundamentado na natureza a despeito do que eacute convencionado exoacutegeno
artificial Eacute ancorada nessa perspectiva que a physiologiacutea vai ser delineada como um saber
8 Cinismo estoicismo 9 ὅθεν δὴ πᾶσι χρησίμης οὔσης τοῖς ᾠκειωμένοις φυσιολογίᾳ τῆς τοιαύτης ὁδοῦ παρεγγυῶν τὸ συνεχὲς ἐνέργημα ἐν φυσιολογίᾳ καὶ τοιούτῳ μάλιστα ἐγγαληνίζων τῷ βίῳ ἐποίησά σοι καὶ τοιαύτην τινὰ ἐπιτομὴν καὶ στοιχείωσιν τῶν ὅλων δοξῶν 10 ἐνέργημα pode ser traduzida por ato operaccedilatildeo (no sentido de atividade) Cf Anatole Bailly Op Cit
25 para ser uacutetil no projeto de construccedilatildeo de um modo de viver com base no que eacute inteligido ao se
estudar a phyacutesis Eis o porquecirc de Epicuro afirmar
() a funccedilatildeo da ciecircncia da natureza (physiologiacutea) eacute a determinaccedilatildeo precisa da causa dos elementos principais e nesse conhecimento consiste a felicidade e tambeacutem no conhecimento da natureza real dos corpos que vemos no ceacuteu e na aquisiccedilatildeo de conhecimentos afins que contribuem para o conhecimento completo a esse respeito indispensaacutevel tambeacutem agrave felicidade (DL X 78)11
Quanto mais o homem se exercita na physiologiacutea buscando compreender as forccedilas
que operam no movimento de realizaccedilatildeo da phyacutesis e como se daacute essa dinacircmica mais ele pode
pensar sobre seu sentido de ser no mundo e com isso definir a melhor maneira de viver para
a finalidade que intelige a partir dessa investigaccedilatildeo Assim a physiologiacutea eacute elaborada tendo
em vista e se constituindo como um exerciacutecio de viver a partir do que se pode saber sobre a
natureza Se como afirma SILVA (2003 p 23) ldquoEpicuro define a physiologiacutea como um
exerciacutecio (aacuteskesis) constante de compreensatildeo dessa realidade que eacute para ele a phyacutesisrdquo esse
entendimento remete para uma praacutetica de vida dado que o saacutebio vai colocar para si como
finalidade a tranquilidade - que remete para a percepccedilatildeo de equiliacutebrio que se tem ao observar
a natureza Em outros termos se o eacutethos do saacutebio implica em uma investigaccedilatildeo da phyacutesis eacute
no exerciacutecio de pensar a phyacutesis que ele intelige dela o conhecimento necessaacuterio para orientaacute-
lo na consecuccedilatildeo desse eacutethos Porquanto o saacutebio contempla a natureza calma e estabelece uma
analogia entre como ela se realiza externamente e como ela pode ser realizar internamente
nele mesmo ele vai estabelecer um modo de viver que o faccedila ter essa experiecircncia de
harmonia dentro de si
Daiacute podemos evidenciar outro aspecto da filosofia epicurista a indissociabilidade
entre a physiologiacutea e a eacutetica A investigaccedilatildeo da natureza permite conceber a phyacutesis como um
paradigma de realizaccedilatildeo a partir do qual o saacutebio pensa os limites e os propoacutesitos de sua
existecircncia e busca viver conforme esse entendimento Eacute nesse sentido que vai a advertecircncia de
Epicuro
Se em cada ocasiatildeo em vez de submeter tuas accedilotildees ao objetivo da natureza preferires voltar-te para qualquer outro padratildeo de referecircncia mais proacuteximo quando estiveres fazendo uma escolha ou rejeiccedilatildeo tuas accedilotildees natildeo se coadunaratildeo com teus princiacutepios (DL X 14812)
11 Καὶ μὴν καὶ τὴν ὑπὲρ τῶν κυριωτάτων αἰτίαν ἐξακριβῶσαι φυσιολογίας ἔργον εἶναι δεῖ νομίζειν καὶ τὸ μακάριον ἐν τῇ περὶ μετεώρων γνώσει ἐνταῦθα πεπτωκέναι καὶ ἐν τῷ τίνες φύσεις αἱ θεωρούμεναι κατὰ τὰ μετέωρα ταυτί καὶ ὅσα συγγενῆ πρὸς τὴν εἰς τοῦτο ἀκρίβειανmiddot 12 Εἰ μὴ παρὰ πάντα καιρὸν ἐπανοίσεις ἕκαστον τῶν πραττομένων ἐπὶ τὸ τέλος τῆς φύσεως ἀλλὰ προκαταστρέψεις
26 Ao alicerccedilar sua filosofia no estudo da natureza Epicuro estaacute buscando transformar a
compreensatildeo que o homem tem sobre a phyacutesis e fazecirc-lo relacionar isso com o seu proacuteprio
modo de agir Se sua conduta era pensada no contexto da poacutelis13 visando o exerciacutecio da
cidadania e da poliacutetica trata-se de entatildeo apresentar uma alternativa ao modo de entender o
mundo e nele o papel que o homem pode pensar para si mesmo Natildeo mais a poacutelis mas a
phyacutesis natildeo mais o homem ciacutevico mas o homem para si para experimentar uma vida feliz
(makariacuteos zecircn) Isso porque como esclarece SILVA (2003 p 23) ldquopara Epicuro a natureza
eacute a fonte ou o princiacutepio da vida fiacutesica psiacutequica e eacuteticardquo
Vemos com isso uma mudanccedila na maneira de enxergar o homem A perspectiva eacute
pensar o sentido da existecircncia dele como ser da natureza Dessa maneira a physiologiacutea vai
delinear um movimento de (re)aproximaccedilatildeo entre ele e uma phyacutesis que lhe serve como
espelho para sua realizaccedilatildeo Daiacute que eacute a partir de um desvelamento da phyacutesis ateacute onde eacute
possiacutevel que satildeo pensados o sentido da vida e as accedilotildees do saacutebio - que levam a realizaccedilatildeo
desse sentido Eacute nesses termos que a physiologiacutea vai fundamentar a eacutetica epicurista tanto
quanto remete para a necessidade de uma aproximaccedilatildeo homemnatureza
Eacute no contexto dessa sinergia que posicionamos o postulado segundo o qual uma vida
saacutebia eacute aquela que se realiza como um exerciacutecio de viver de acordo com a natureza (katagrave
phyacutesin) Mas o que significa uma vida katagrave phyacutesin e como ela se relaciona com o estudo da
phyacutesis Antes de entrarmos nessa questatildeo cabe contudo apresentar aqui mesmo que de
modo sumaacuterio a compreensatildeo que Epicuro tem acerca da phyacutesis
111 A phyacutesis
Eacute do entendimento de como a natureza se realiza que vai ser possiacutevel estabelecer uma
relaccedilatildeo com um modo saacutebio de viver Daiacute porque compreender o sentido atribuiacutedo ao uso do
termo phyacutesis vai ser fundamental para destacar o percurso e o projeto filosoacutefico epicurista E eacute
em torno disso que vatildeo orbitar questotildees de natureza gnosioloacutegica e eacutetica como veremos
A histoacuteria natildeo nos possibilitou o acesso aos trinta e sete volumes14 que Epicuro
dedicou ao estudo da phyacutesis restando-nos sobre esse tema apenas as proposiccedilotildees
εἴτε φυγὴν εἴτε δίωξιν ποιούμενος εἰς ἄλλο τι οὐκ ἔσονταί σοι τοῖς λόγοις αἱ πράξεις ἀκόλουθοι 13 O que se postula eacute uma vida de acordo com a natureza (katagrave phyacutesin) portanto mais proacutexima do Jardim e mais afastada da poacutelis da Aacutegora como veremos no item 12 Para os epicuristas uma vida katagrave phyacutesin passa por natildeo ser influenciado nem pela poliacutetica nem pela religiatildeo nem pela cultura nem pelas opiniotildees vazias (kenaigrave doacutexai) 14 Em DL X 27 Dioacutegenes Laeacutercio nos fala da existecircncia da obra Da Natureza em 37 livros dedicados a examinar a phyacutesis
27 fundamentais que constam na Carta a Heroacutedoto que se constitui como um resumo dessa obra
maior (Perigrave Physeos) Entatildeo eacute a partir desse escasso material que precisamos evidenciar o
entendimento de Epicuro com relaccedilatildeo agrave phyacutesis e de que forma o saber que se pode ter sobre
ela pode definir a conduta do saacutebio
Em sentido geral tem sido corrente traduzir o termo phyacutesis por meio de conceitos
como natureza universo ou mesmo realidade Mas conveacutem fazer algumas observaccedilotildees quanto
ao uso que dele faz Epicuro Etimologicamente15 phyacutesis (φύσις -εως) traz a ideia de gerar
fazer crescer engendrar E eacute nessa acepccedilatildeo que Epicuro usa o termo quando trata da geraccedilatildeo
dos corpos compostos e dos mundos (koacutesmoi) Para usarmos as palavras de A Bailly16 ele faz
referecircncia agrave phyacutesis no sentido de ldquoaccedilatildeo de fazer nascer formaccedilatildeo produccedilatildeordquo Verificamos
isso no passo 45 da Carta a Heroacutedoto onde se fala do movimento dos aacutetomos que se
chocando contra outros tanto pode gerar novos compostos quanto pode levar agrave desagregaccedilatildeo
de agrupamentos que jaacute existem Processo que se repete desde sempre e para sempre Assim
ldquoessa repeticcedilatildeo se tivermos em mente todos os pontos mencionados proporciona um esboccedilo
suficiente para o entendimento da natureza (phyacuteseos) das coisas fundamentaisrdquo (DL X 45)17
Mas o termo tambeacutem eacute empregado quando se trata daquilo que eacute origem princiacutepio
(archeacute) de algo Isso diz respeito aos compostos e ao vazio (soacutemata kai kenoacuten) como se
mostra respectivamente nestas passagens ldquoDisso resulta necessariamente que esses
elementos que se agrupam de vaacuterias maneiras satildeo indestrutiacuteveis e natildeo tem a natureza (phyacutesin)
do mutaacutevel ()rdquo (DL X 54)18 ldquoSe aquilo que chamamos vazio ou espaccedilo ou aquilo que por
natureza (phyacutesin) eacute intangiacutevel ()rdquo (DL X 40)19
Epicuro tambeacutem usa phyacutesis quando quer aludir ao todo ou ao que eacute tomado em sua
totalidade ou em sua constituiccedilatildeo Tal eacute o caso verificado no passo 35 tambeacutem da Carta a
Heroacutedoto Nele se diz ldquopara os incapazes de estudar acuradamente cada um de meus escritos
sobre a natureza (Perigrave Physeos) ()rdquo (DL X 35) Note-se que ao dizer ldquosobre a naturezardquo
Epicuro se refere agrave ldquonatureza ou maneira de serrdquo20 tanto daquilo que compotildee o microcosmo
quanto do que eacute percebido pelos sentidos Nesse caso a phyacutesis eacute considerada como
ldquodisposiccedilatildeo naturalrdquo21 para ser o que se eacute ou em outros termos em seus modos de realizaccedilatildeo
15 CHASSANG A Dictionnaire Grec-Franccedilais Paris Garnier Fregraveres 1865 16 Anatole Bailly Op Cit 17 Ἡ τοσαύτη δὴ φωνὴ τούτων πάντων μνημονευομένων τὸν ἱκανὸν τύπον ὑποβάλλει ltταῖς περὶgt τῆς τῶν ὄντων φύσεως ἐπινοίαις 18 ὅθεν ἀναγκαῖον τὰ [μὴ] μετατιθέμενα ἄφθαρτα εἶναι καὶ τὴν τοῦ μεταβάλλοντος φύσιν οὐκ ἔχοντα 19 εἰ ltδὲgt μὴ ἦν ὃ κενὸν καὶ χώραν καὶ ἀναφῆ φύσιν ὀνομάζομεν 20 Anatole Bailly OpCit 21 Anatole Bailly Idem
28 Considerando essas nuances podemos falar da compreensatildeo que a physiologiacutea tem a
respeito de como se realiza a phyacutesis22 Para Epicuro ela se apresenta segundo quatro
maneiras
O todo (tograve pacircn) eacute a realizaccedilatildeo da phyacutesis tomada em seu niacutevel macrofiacutesico Diz respeito
agrave totalidade de tudo o que haacute se estendendo indefinidamente no tempo e espaccedilo pois ldquoo todo
eacute infinitordquo (DL X 41)23 Enquanto totalidade a phyacutesis eacute imutaacutevel ldquoporque aleacutem do todo
nada haacute que possa penetrar nele e provocar transformaccedilatildeordquo (DL X 39)24 e porque as
mudanccedilas que acontecem com os corpos mundos e microcosmos natildeo alteram sua constituiccedilatildeo
geral ldquoo todo sempre foi exatamente como eacute agora e sempre seraacute assimrdquo (idem)25 As
alteraccedilotildees apenas se datildeo no niacutevel dos compostos que o constituem Dessa forma o todo pode
ser compreendido como uno na sua integralidade e muacuteltiplo naquilo que o compotildee corpos
(ser) e vazio (natildeo ser)26
Sendo o todo constituiacutedo de corpos e vazios entatildeo outra forma de realizaccedilatildeo da
phyacutesis apontada por Epicuro se verifica na dimensatildeo microcoacutesmica dela Aiacute encontramos o
que tambeacutem natildeo se modifica se caracterizando como fundamento de toda a realidade Esse
entendimento estabelecido a respeito desse outro modo de realizaccedilatildeo da phyacutesis tem suas bases
no pensamento preacute-socraacutetico sob a forma do atomismo de Leucipo e Demoacutecrito27 ldquoos
primeiros princiacutepios do universo satildeo os aacutetomos e o vaziordquo Lucreacutecio diraacute a esse respeito ldquotoda
a natureza enquanto existe por si mesma eacute formada de duas coisas existem com efeito os
corpos e o vazio no qual estes se encontram e onde se movimentam nas vaacuterias direccedilotildeesrdquo
(Lucr I 419-421)28 Eacute a partir dessa concepccedilatildeo atomiacutestica preacute-socraacutetica que Epicuro vai tentar
explicar a pluralidade daquilo que existe
O conceito de aacutetomo29 (aacutetomos) remete ao que eacute pequeno impenetraacutevel maciccedilo
22 Uma discussatildeo mais detalhada sobre os modos de realizaccedilatildeo da phyacutesis pode ser encontrada no capiacutetulo 01 de Sabedoria e Jardim de Markus Figueira da Silva Op Cit 23 τὸ πᾶν ἄπειρόν ἐστι 24 παρὰ γὰρ τὸ πᾶν οὐθέν ἐστιν ὃ ἂν εἰσελθὸν εἰς αὐτὸ τὴν μεταβολὴν ποιήσαιτο 25 Καὶ μὴν καὶ τὸ πᾶν ἀεὶ τοιοῦτον ἦν οἷον νῦν ἐστι καὶ ἀεὶ τοιοῦτον ἔσται 26 Temos aqui uma ontologia que admite o natildeo-ser como ser O vazio tem existecircncia eacute o natildeo-ser com propriedade de ser Vale lembrar que desde Demoacutecrito o vazio eacute dotado de existecircncia uma vez que eacute preciso admitir isso para que haja movimento 27 Conforme DL IX 44 Em Leucipo e Demoacutecrito de Abdera (460-360 aC) Epicuro encontra as bases de uma concepccedilatildeo atomista que vai lhe servir para a elaboraccedilatildeo de sua physiologiacutea 28 Omnis ut est igitur per se natura duabus constitit in rebus nam corpora sunt et inane haec in quo sita sunt et qua diversa moventur LUCREacuteCIO De Rerum Natura Joatildeo Pessoa Ideia 2016 Traduccedilatildeo introduccedilatildeo e notas de Juvino Alves Maia Junior Hermes Oriacutegenes Duarte Vieira e Felipe dos Santos Almeida 29 Aacutetomos (singular) aacutetomoi (plural) DL X 41 42 43 44 45 48 50 54 55 56 59 61 62 65 66 86 99 102 110 115
29 indivisiacutevel imutaacutevel uno Epicuro fala dos aacutetomos (aacutetomoi) como ldquoessecircncias inteirasrdquo30
reverberando a concepccedilatildeo atomista a respeito da menor partiacutecula corpoacuterea constitutiva da
phyacutesis Assim natildeo estaacute sujeito a sofrer modificaccedilatildeo em sua constituiccedilatildeo e nenhuma alteraccedilatildeo
qualitativa Ele natildeo vem a ser e natildeo deixa de ser Natildeo estando sujeito a mudanccedilas o aacutetomo eacute
pensado como um princiacutepio corpoacutereo de permanecircncia da phyacutesis o que nos remete assim como
o todo (tograve pan) para uma realidade ontologicamente definida como sendo sempre a mesma
Esses elementos satildeo os aacutetomos indivisiacuteveis e imutaacuteveis se eacute verdade que nem todas as coisas poderatildeo parecer e resolver-se no natildeo-ser Com efeito os aacutetomos satildeo dotados da forccedila necessaacuteria para permanecerem intactos e para resistirem enquanto os compostos se dissolvem pois satildeo impenetraacuteveis por sua proacutepria natureza e natildeo estatildeo sujeitos a uma eventual dissoluccedilatildeo Consequentemente os princiacutepios das coisas satildeo indivisiacuteveis e de natureza corpoacuterea (DL X 41)31
Como propriedades os aacutetomoi possuem forma (schematoacutes) tamanho (megeacutethous) e
peso (baacuterous) Eles satildeo inteligiacuteveis agrave psycheacute por meio de analogias a partir do que eacute percebido
pelos sentidos Eacute por meio dessa operaccedilatildeo que eacute possiacutevel estabelecer uma compreensatildeo a
respeito de suas caracteriacutesticas Sobre elas se diz que quanto agrave forma haacute aacutetomos diferentes
entre si o que permite a agregaccedilatildeo mais facilmente com uns e a incompatibilidade com
outros Mas essa variaccedilatildeo natildeo eacute infinita apenas incalculaacutevel Seu tamanho varia mas natildeo
infinitamente dado que nenhum pode ser percebido pelos sentidos Quanto ao peso eacute a causa
do movimento dos aacutetomos no vazio
O aacutetomos como explica Epicuro existe em quantidade infinita porque o todo eacute
infinito Ao se agregar a outros aacutetomos gera os corpos compostos Mas para que haja a
formaccedilatildeo desses outros corpos eacute preciso admitir que ldquoos aacutetomos estatildeo em movimento
contiacutenuo por toda a eternidaderdquo (DL X 43)32 e isso pressupotildee a existecircncia do vazio Afinal
eacute nele que os aacutetomos se movimentam E quando colidem uns com outros datildeo origem a novos
aglomerados ou desfazem desagregam devido a esses choques aqueles que foram formados
anteriormente
Mas esse vazio natildeo eacute o a causa do movimento atocircmico Para explicaacute-lo se faz
referecircncia a trecircs fatores o peso os choques e a declinaccedilatildeo Eacute o peso33 que faz com que os
30 Em grego ὅλας φύσεις Marcel Conche Op Cit traduz por naturezas completas 31 Ταῦτα δέ ἐστιν ἄτομα καὶ ἀμετάβλητα εἴπερ μὴ μέλλει πάντα εἰς τὸ μὴ ὂν φθαρήσεσθαι ἀλλrsquo ἰσχύοντα ὑπομενεῖν ἐν ταῖς διαλύσεσι τῶν συγκρίσεων πλήρη τὴν φύσιν ὄντα καὶ οὐκ ἔχοντα ὅπῃ ἢ ὅπως διαλυθήσεται ὥστε τὰς ἀρχὰς ἀτόμους ἀναγκαῖον εἶναι σωμάτων φύσεις 32 Κινοῦνταί τε συνεχῶς αἱ ἄτομοι τὸν αἰῶνα 33 J A M Pessanha em um estudo introdutoacuterio agrave traduccedilatildeo em portuguecircs da tese de doutoramento de Karl Marx destaca que o movimento atocircmico seguindo em linha reta como decorrecircncia de uma concepccedilatildeo de peso do aacutetomo
30 aacutetomos caiam retiliacuteneos vertical e paralelamente em velocidade constante no vazio infinito
Jaacute pelo choque algum aacutetomo em movimento colide com outro podendo redefinir sua
trajetoacuteria e produzir ou desfazer agregados atocircmicos Mas para haver esses choques entre
aacutetomos que caem paralelamente no vazio eacute preciso considerar a possibilidade de que eles
escapem a sua trajetoacuteria e assim colidam com outros A esse desvio se chama declinaccedilatildeo
(pareacutenklisis) o que seraacute traduzido por Lucreacutecio por clinamen34
Aqui precisamos tecer algumas consideraccedilotildees sobre o parecircnklisis dada a importacircncia
desse conceito para a fundamentaccedilatildeo da eacutetica epicurista Esses desvios que os aacutetomoi
descrevem em sua trajetoacuteria original satildeo no plano fiacutesico necessaacuterios para que haja as colisotildees
que levam agrave formaccedilatildeo de corpos compostos e dos mundos Trata-se de postular mais uma
causa para um movimento sutil do aacutetomos que se daacute sem fator externo a ele Tal declinaccedilatildeo
resulta de um princiacutepio intriacutenseco do aacutetomo da mesma forma que o peso E isso seria
suficiente para poder justificar um niacutevel de indeterminismo ou acaso operando junto agrave
causalidade mecacircnica da natureza
Eacute a partir desse fenocircmeno que vai ser possiacutevel a Epicuro defender a liberdade35
(eleutheriacutea) no campo eacutetico Para evitar o riacutegido determinismo engendrado ao se admitir
causas puramente mecacircnicas no movimento do aacutetomo a adoccedilatildeo uma casualidade permite
fundamentar ontologicamente o que - no plano eacutetico - diz respeito agrave liberdade humana
Mas a tese do parecircnklisis natildeo consta nos escritos que a tradiccedilatildeo nos legou de Epicuro
Neles observamos que tal desvio estaacute impliacutecito mas apenas na doxografia posterior eacute exposto
claramente Daiacute porque se abrem em torno dessa questatildeo vaacuterias discussotildees natildeo conclusivas A
principal delas levantada por Hermann Usener eacute que haveria uma lacuna textual no passo 43
da Carta a Heroacutedoto E ali poderia estar localizada a menccedilatildeo ao parecircnklisis Essa hipoacutetese eacute
acompanhada por Maurice Solovine (1965) e Jean Salem (1993)
Jean Pierre Faye em introduccedilatildeo ao texto de Maurice Solovine (1965) destaca o
trabalho de Aeacutecio Lucreacutecio Ciacutecero e Dioacutegenes de Œnoanda para tentar legitimar o
parecircnklisis como uma elaboraccedilatildeo de Epicuro para pensar no campo da phyacutesis um
existiria apenas em Epicuro MARX Karl Diferenccedila entre as Filosofias da Natureza em Demoacutecrito e Epicuro Satildeo Paulo Global Edtora sd 34 No canto II do poema Da Natureza onde Lucreacutecio versa sobre os fundamentos da eacutetica e sobre a filosofia como terapecircutica eacute explicitada a questatildeo do clinamen termo que aparece apenas uma vez no verso 292 Para se remeter ao desvio do aacutetomo ele tambeacutem usa palavras como depellere declinare inclinare (Lucr 219 221 243 250 253 259) ldquoClinamen parece ter sido criado por Lucreacutecio para evitar clinatio que natildeo podia entrar em seus versos hexacircmetrosrdquo (SALEM 1997 p 67) apud SILVA 2018 p 53 35 ldquoSe em bom materialismo filosoacutefico nada nasce do nada a liberdade que noacutes experimentamos agrave maneira de tudo que eacute vivo deve certamente traduzir em nossa escala uma propriedade presente no aacutetomo a declinaccedilatildeo seria precisamente essa propriedaderdquo (SALEM 1993 p 38)
31 fundamento para a liberdade humana Mas trata-se de uma incorreccedilatildeo pois natildeo haacute nos textos
atribuiacutedos a Epicuro o uso desse termo Ocorre que como explica Solovine teria havido a
inserccedilatildeo de um conceito pensado por epicuristas tardios mas seria errado afirmar estar
expressa nos escritos de Epicuro essa definiccedilatildeo ldquoE Solovine pensa mesmo em poder localizar
a zona de erro36 sem duacutevida com Zenatildeo de Sidon ou com Feacutedro o epicuristardquo (p 10) De
acordo com Faye eles eacute que teriam apresentado a noccedilatildeo de parecircnklisis Mas ldquoa uacutenica coisa
certa ateacute o presente eacute que nenhum texto antigo colocou em questatildeo a atribuiccedilatildeo da declinaccedilatildeo
ao pai dos epicuristasrdquo (p 12)37
Para suprir essa lacuna o poema de Lucreacutecio Da Natureza38 nos versos 216 a 293 do
canto II ao argumentar sobre o parecircnklisis diz que sem ele natildeo haveria o encontro dos
aacutetomos o que eacute fundamental para a criaccedilatildeo e para a diversidade daquilo que existe No verso
244 ele explica que esse movimento eacute um desvio nec plus quam minimum (natildeo mais que
miacutenimo) o que poderiacuteamos pensar como algo iacutenfimo e natildeo percebido pelos sentidos E nos
fragmentos de Dioacutegenes de Œnoanda podemos ler ldquonatildeo sabes tu quem quer sejas que haacute um
tipo de movimento livre nos aacutetomos que Demoacutecrito natildeo descobriu mas que Epicuro tornou
conhecido sendo uma declinaccedilatildeo como ele mostra a partir dos fenocircmenosrdquo (Œno fr 54
II)39 Ao dizer que Epicuro ldquomostra a partir dos fenocircmenosrdquo Dioacutegenes estaacute se referindo a um
recurso do pensamento que por meio de analogiacuteas com realidade sensiacutevel possibilita falar
daquilo que natildeo pode ser percebido pelos sentidos como os aacutetomos
Agora retomando o que diziacuteamos sobre os modos de ser da natureza quando Epicuro
se refere a corpos ele usa o termo socircma40 (σῶμα ατος) Mas cabe notar que haacute tanto os corpos
simples (o aacutetomo tomado individualmente) quanto os corpos compostos - formados por
agrupamento de aacutetomos e vazio a que ele tambeacutem se refere como de synkriacuteseis41 Eacute ao se
referir a esses compostos que Epicuro faz alusatildeo a mais uma maneira de realizaccedilatildeo da phyacutesis
Isso considera que as coisas vecircm a ser pela agregaccedilatildeo de aacutetomos e deixam de ser pela
desagregaccedilatildeo deles A synkriacuteseis diferentemente dos aacutetomos estaacute sujeita ao movimento de
geraccedilatildeo e corrupccedilatildeo E para isso como vimos tem um papel fundamental o movimento e o
36 Ou seja a partir dessa inserccedilatildeo conceitual feita por Zenatildeo e Feacutedro teria sido estabelecida a crenccedila de que a noccedilatildeo de parecircnklisis proveacutem dos textos de Epicuro 37 Essas possibilidades constam em MAFFEZZOLLI Marcone Eleutheriacutea a noccedilatildeo de liberdade na eacutetica de Epicuro Dissertaccedilatildeo de Mestrado UFRN 2010 38 LUCREacuteCIO Da Natureza Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 (Os Pensadores) 39 Ne sais-tu donc pas qui que tu puisses ecirctre qursquoil y a une sorte de mouvement libre dans les atomes que Deacutemocrite nrsquoa pas deacutecouvert mais qursquoEpicure fit connaicirctre eacutetant une deacuteclinaison comme il le montre agrave partir des pheacutenomenegraves 40 DL X 39 40 41 42 47 48 55 56 63 66 67 68 69 70 71 86 94 41 DL X 40 41 42 54 55 62 66 73 110
32 desvio de trajetoacuteria dos aacutetomoi permitindo que eles se agreguem a outros ou que seja a causa
da desagregaccedilatildeo dos conjuntos atocircmicos jaacute existentes Eacute esse movimento que explica que tais
corpos alterem sua forma aumentem ou diminuam de tamanho e de peso Estatildeo assim
sujeitos agraves mudanccedilas em suas caracteriacutesticas qualitativas na medida em que o ordenamento e a
quantidade de aacutetomos tambeacutem satildeo alterados Se a forma tamanho e peso inclinam certos
aacutetomos a se agregarem com outros em funccedilatildeo de similaridades quanto a essas caracteriacutesticas
do mesmo modo a incompatibilidade ou desacordo dessas caracteriacutesticas podem impedir ou
dificultar a formaccedilatildeo de outros arranjos corpoacutereos Em todo caso os aacutetomos que lhes formam
natildeo sofrem alteraccedilatildeo mas ldquoformam os compostos e nos aacutetomos os compostos se dissolvemrdquo
(DL X 42)42
Por fim quando Epicuro se refere aos mundos e para isso usa o termo koacutesmoi
tambeacutem estaacute se remetendo a mais uma forma de realizaccedilatildeo da phyacutesis
O mundo eacute uma porccedilatildeo circunscrita do universo compreendendo astros e terra e todas as coisas visiacuteveis destacado do infinito tem um periacutemetro redondo ou triangular ou de qualquer outra forma e termina num limite poroso ou denso em rotaccedilatildeo ou imoacutevel cuja dissoluccedilatildeo levaraacute agrave ruiacutena tudo que estaacute nele (DL X 88)43
O mundo eacute um ldquomegacorpordquo44 disperso pelo universo infinito meio a um nuacutemero
infinito de outros mundos Sendo constituiacutedo por outros corpos compostos mundos e por
aacutetomos e vazio estaacute sujeito a tanto ganhar elementos quanto perder Assim pode surgir
devido agrave agregaccedilatildeo de aacutetomos e corpos compostos e pode deixar de ser por desagregaccedilatildeo Em
suma eacute no mundo onde as coisas estatildeo
112 Necessidade e acaso
Ao falarmos de como Epicuro pensa os modos de realizaccedilatildeo da phyacutesis (tograve pan soacutemata
kaigrave kenoacuten synkriacuteseis e koacutesmos) procuramos destacar como o movimento dos aacutetomos
determinado pelo peso (baacuterous) e pela declinaccedilatildeo (parecircnklisis)45 eacute indispensaacutevel para
conceber os processos de geraccedilatildeo e corrupccedilatildeo dos corpos compostos e dos mundos
42 τὰ ἄτομα τῶν σωμάτων καὶ μεστά ἐξ ὧν καὶ αἱ συγκρίσεις γίνονται καὶ εἰς ἃ διαλύονται 43 Κόσμος ἐστὶ περιοχή τις οὐρανοῦ ἄστρα τε καὶ γῆν καὶ πάντα τὰ φαινόμενα περιέχουσα ἀποτομὴν ἔχουσα ἀπὸ τοῦ ἀπείρου καὶ [κατα]λήγουσα ἐν πέρατι ἢ ἀραιῷ ἢ πυκνῷ καὶ οὗ λυομένου πάντα τὰ ἐν αὐτῷ σύγχυσιν λήψεται [καὶ λήγουσαν] ἢ ἐν περιαγομένῳ ἢ ἐν στάσιν ἔχοντι καὶ στρογγύλην ἢ τρίγωνον ἢ οἵαν δήποτε περιγραφήνmiddot πανταχῶς γὰρ ἐνδέχεταιmiddot 44 SILVA Markus Termos Filosoacuteficos de Epicuro Coimbra Coimbra University Press 2018 p 48 45 Vale lembrar que o parecircnklisis natildeo eacute um termo encontrado nos textos que a tradiccedilatildeo nos legou de Epicuro mas a doxografia nos permite ver nessa definiccedilatildeo uma tese epicurista
33 Sublinhamos contudo que eacute a partir da noccedilatildeo de clinamen46 que o epicurismo explica como
os aacutetomoi desviam de sua trajetoacuteria e se chocam com outros dando origem no plano fiacutesico a
agregados tanto quanto podem desfazer os jaacute existentes E isso se daacute por meio de choques ou
encontros47 (apaacutentesis) em uma dinacircmica onde natildeo operam outras causas aleacutem das fiacutesicas
Esse desvio de rumo que se daacute ao acaso devido a um princiacutepio inerente ao proacuteprio aacutetomo vai
permitir compreender os fenocircmenos da natureza natildeo somente a partir de causas mecacircnicas
das quais natildeo se pode escapar Resulta daiacute a possibilidade de conceber os modos de realizaccedilatildeo
da phyacutesis a partir de uma relaccedilatildeo entre o que eacute inexoraacutevel e o que eacute contingente
Essa discussatildeo traz consigo duas noccedilotildees que vatildeo ser evocadas ao se pensar a
construccedilatildeo da conduta do saacutebio a necessidade (anaacutenke) e o acaso (tycheacute) Eacute considerando
uma reflexatildeo sobre esses aspectos que vai se buscar uma clareza quanto ao que concerne ao
homem mudar transformar quanto ao que ele pode evitar e o que ele deve buscar - e Epicuro
se refere a isso como o que ldquodepende de noacutesrdquo48 (parrsquohemacircs)49 Tambeacutem o sophoacutes deve ter o
discernimento para perceber aquilo que natildeo estaacute sob o seu alcance mudar o que ele natildeo pode
evitar circunstacircncias sobre as quais ele natildeo consegue intervir Assim tendo clara a percepccedilatildeo
sobre como opera a realidade eacute possiacutevel pensar a proacutepria realizaccedilatildeo meio ao que eacute inevitaacutevel
e ao que pode se fazer de outra maneira Afinal se ldquoalgumas coisas acontecem
necessariamente outras por acaso e outras dependem de noacutesrdquo (DL X 133)50 eacute preciso
entender a relaccedilatildeo entre a necessidade (anaacutenke) e o acaso (tycheacute) operando na natureza e
definindo os modos de realizaccedilatildeo da phyacutesis para poder postular a liberdade possiacutevel e
necessaacuteria para definir e praticar um modo de vida voltado para a realizaccedilatildeo de um modo
autecircntico de existir
A noccedilatildeo de anaacutenke no atomismo estaacute relacionada com a ldquonecessidade mecacircnica das
causas puramente fiacutesicas que operam sem finalidade (teacutelos)rdquo (SILVA 2003 p 36) Nos textos
de Epicuro anaacutenke se remete para a ldquonecessidade de realizaccedilatildeo de uma natureza particular
(corpo ou mundo) segundo seu modo proacuteprio de ser isto eacute ser por natureza eacute ser por
46 Essa referecircncia ao parecircnklisis eacute apresentada por Lucreacutecio no poema Da Natureza Ver nota 34 deste capiacutetulo Vale destacar que o clinamen eacute uma indeterminaccedilatildeo Na cineacutetica epicurista se trata de uma propriedade incerta indeterminada que poderia estar relacionada a uma propriedade determinada como o movimento baacutesico dos aacutetomos 47 Idem 48 DL X 133 49 A noccedilatildeo de parrsquohemacircs pode ser pensada como fazendo referecircncia ao que estaacute ao ldquonosso poderrdquo cf BARBOSA Renato dos Santos A Noccedilatildeo de Parrsquohemacircs na Filosofia de Epicuro o que pode o homem Tese apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia UFRN 2019 Ainda natildeo publicada 50 γίνεσθαι ἃ μὲν κατrsquo ἀνάγκην ἃ δὲ ἀπὸ τύχης ἃ δὲ παρrsquo ἡμᾶς διὰ τὸ τὴν μὲν ἀνάγκην ἀνυπεύθυνον εἶναι τὴν δὲ τύχην ἄστατον ὁρᾶν τὸ δὲ παρrsquo ἡμᾶς ἀδέσποτον
34 necessidaderdquo (Idem) Em Epicuro isso diz respeito a como as coisas tem naturalmente que ser
e acontecer Dessa forma natildeo haacute uma compreensatildeo de anaacutenke como algo relativo ao que eacute
fatalista determinista ou que remete para alguma divindade capaz de definir destinos a seu
gosto
Contudo verificamos que essa tem sido uma interpretaccedilatildeo corrente Nesse vieacutes
postula-se a anaacutenke como riacutegido determinismo natural que se estenderia ateacute o campo da
decisatildeo e da atuaccedilatildeo humana Observamos essa tendecircncia por exemplo na tese de Karl Marx
onde ele discute as Diferenccedilas entre as Filosofias da Natureza em Demoacutecrito e Epicuro51
Nela Epicuro e Demoacutecrito satildeo contrastados e as diferenccedilas de suas proposiccedilotildees filosoacuteficas
acerca da phyacutesis satildeo ldquoexageradamenterdquo acentuadas enfatizando no campo eacutetico um
distanciamento entre eles em prol da filosofia epicurista
Demoacutecrito na visatildeo de Marx eacute reduzido a um ceacutetico e empiacuterico que considera a
natureza tatildeo somente do ponto de vista da necessidade Jaacute Epicuro eacute apresentado como um
filoacutesofo dogmaacutetico que centra sua visatildeo de mundo a partir da noccedilatildeo de um acaso libertador
Mas ldquoessas contradiccedilotildees parecem encerrar um absurdo Eacute difiacutecil pensar que esses dois
homens que se opotildee em tudo defendam a mesma doutrina E todavia aparentemente
acham-se relacionados entre sirdquo avalia Pessanha52 Assim se a natureza eacute regida pela anaacutenke
que estabelece um riacutegido mecanismo e um determinismo extensivo tanto agrave phyacutesis e quanto agrave
anthropophyacutesis como pensar valores e modelos de conduta para o homem Como diante
daquilo que parece derrogar a possibilidade de liberdade ele pode julgar e escolher o que lhe
cabe Admitir apenas um princiacutepio gerador do movimento dos aacutetomos pensando-os com
regidos apenas por leis mecacircnicas implica em enredar o homem em um encadeamento de
eventos do qual ele natildeo poderia se desviar
Mas para aleacutem desse enquadramento o que Epicuro postula eacute que a anaacutenke deve ser
entendida com relaccedilatildeo ao modo de ser dos corpos e dos mundos que satildeo o que satildeo por
natureza ou seja por necessidade Mas essa necessidade natildeo se estende ao campo eacutetico daiacute
ele dizer que ldquocoisa maacute eacute a necessidaderdquo quando projetada ao campo do agir humano ldquomas
natildeo haacute necessidade nenhuma de viver com necessidaderdquo (SV 9)53 porque a anankeacute natildeo se
contrapotildee agrave liberdade que caracteriza o eacutethos do homem O sophoacutes sabe que algumas coisas
acontecem por necessidade outras por acaso mas tambeacutem haacute o que lhe compete54
51 Karl Marx Op Cit 52 Joseacute Ameacuterico Motta Pessanha em texto introdutoacuterio agrave tese de Marx (Op Cit) p 7 53 Κακὸν ἀνάγκη ἀλλrsquo οὐδεμία ἀνάγκη ζῆν μετὰ ἀνάγκης 54 DL X 133
35 Outra noccedilatildeo importante para pensar a conduta do saacutebio eacute estabelecida em torno do
termo tyacuteche Segundo definiccedilatildeo de Bailly55 o vocaacutebulo τύχη se refere ldquoao que o homem
espera por decisatildeo dos deusesrdquo Isso implica em colocaacute-lo na condiccedilatildeo de quem vecirc a proacutepria
realizaccedilatildeo como decorrente da sorte ou do acaso Uma vez que depende da deusa Tyacuteche
definir a fortuna ou os infortuacutenios que cabe a cada um isso lhe tira a possibilidade de ser o
protagonista de sua existecircncia
Aleacutem disso admitir esse tipo de forccedila divina agindo na natureza deixa margem para a
apreensatildeo e o medo quanto ao que haacute de acontecer Como nada poderia ser previsto o homem
viveria na anguacutestia de poder a qualquer momento se deparar com desventuras Ora ldquopor
causa da incerteza sua vida inteira seraacute levada agrave confusatildeo e jogada por terrardquo (SV 57)56 e isso
vai contra agrave necessidade de viver tranquilamente postulada por Epicuro
Mas na filosofia epicurista natildeo estaacute em questatildeo a accedilatildeo dos deuses mas das forccedilas que
naturalmente operam na phyacutesis E nesse sentido tyacuteche vai ser entendida como o acaso o
fortuito o que escapa agrave necessidade E isso estaacute relacionado agrave ldquonegaccedilatildeo de toda finalidade que
poderia existir no movimento necessaacuterio de constituiccedilatildeo e desconstituiccedilatildeo dos corpos e
mundosrdquo (SILVA 1993 p 36) Assim a ocorrecircncia do acaso nos fenocircmenos da natureza
restringe limita a anaacutenke permitindo conceber a phyacutesis desprovida de uma orientaccedilatildeo
teleoloacutegica e o homem sem a imposiccedilatildeo do destino O acaso existe como fenocircmeno fiacutesico
tanto quando a necessidade natildeo havendo nenhum aspecto miacutetico ou religioso determinando
os modos deles atuarem na natureza Eles se relacionam aos mecanismos de produccedilatildeo das
coisas agrave pluralidade dos mundos e agrave variedade dos corpos ou seja integram e permitem
compreender fenomenicamente os modos de realizaccedilatildeo da phyacutesis
Nesse sentido quando projetamos as noccedilotildees de anaacutenke e tyacuteche para o acircmbito da eacutetica
epicurista podemos preconizar que Epicuro quer ao defender a possibilidade de acaso na
phyacutesis aleacutem de circunscrever as causa do movimento no campo do imanente advogar um
niacutevel de liberdade para a deliberaccedilatildeo humana na anthropophyacutesis Afinal se a necessidade ao
evocar o sentido de destino ou divindade que define a trajetoacuteria de vida do homem prevalece
na natureza entatildeo ele estaria preso a uma teia de acontecimentos inexoraacuteveis diante dos quais
ele natildeo conseguiria exercitar sua vontade Nesse sentido natildeo caberia imputar a ele a
responsabilidade por suas accedilotildees uma vez que o homem natildeo poderia por si mesmo definir
sua maneira de viver Do mesmo modo se o acaso somente ele operasse na natureza o medo
55 Anatole Bailly Op Cit 56 εἰ γὰρ προήσεται τὸν φίλον ὁ βίος αὐτοῦ πᾶς διrsquo ἀπιστίαν συγχυθήσεται καὶ ἀνακεχαιτισμένος ἔσται
36 e a incerteza do que estaria por vir mitigaria a possibilidade de pensar uma vida tranquila
Assim ldquoeacute evidente que a necessidade gera a irresponsabilidade e que o acaso eacute inconstanterdquo
(DL X 133)57
De sorte que para Epicuro a natureza eacute regida a partir de uma relaccedilatildeo anaacutenketychegrave
onde o que acontece mesmo o acaso acontece por necessidade e portanto sem uma
finalidade (teacutelos) Ou seja os corpos satildeo gerados se desenvolvem e se desagregam por
necessidade Mas por necessidade o acaso tambeacutem interfere nessa natureza trazendo o
fortuito o contingencial para a realidade e permitindo explicar a pluralidade dos
acontecimentos E assim como a phyacutesis natildeo eacute acontecimento tatildeo somente da necessidade o
homem natildeo estaacute sempre enredado em uma teia fatalista da qual ele natildeo possa escapar No
campo eacutetico o acaso vai remeter agrave possibilidade de autodeterminaccedilatildeo do sophoacutes que pode
por si mesmo por analogia ao aacutetomo desviar sua trajetoacuteria definir seu modo de viver e
assumir as responsabilidades por suas escolhas Afinal
Se em bom materialismo filosoacutefico nada nasce do nada a liberdade que noacutes experimentamos como todos os seres vivos deve certamente traduzir em nossa escala uma propriedade realmente presente nos aacutetomos a declinaccedilatildeo seria precisamente essa propriedade (SALEM 1993 p 38)
E com base nessa relaccedilatildeo anaacutenketychegrave que se estabelece uma inter-relaccedilatildeo
fundamental entre a physiologiacutea e o eacutethos na medida em que permite pensar um
espelhamento no modo de viver do saacutebio daquilo que se estaacute inteligindo a partir de uma
reflexatildeo sobre as forccedilas que operam na natureza Note-se que eacute em torno da noccedilatildeo de acaso
que Karl Marx58 vai tematizar a liberdade humana Para ele da mesma forma que a phyacutesis natildeo
estaacute sujeita somente agrave necessidade a natureza humana tambeacutem natildeo E isso se estende para o
campo social onde haacute portanto a possibilidade do homem escapar a qualquer determinismo
pois ldquoas coisas que dependem de noacutes satildeo livremente escolhidas e satildeo naturalmente
acompanhadas de censura e louvorrdquo (DL X 133)59
Como resultado o saacutebio precisa meditar sobre toda essa relaccedilatildeo entre acaso e
necessidade e sobre os modos de ser da phyacutesis uma vez que isso diz respeito agrave sua proacutepria
realizaccedilatildeo Ao tentar explicar como a natureza se realiza e que forccedilas operam nesse processo
Epicuro o faz dentro dos limites de uma compreensatildeo sensiacutevel da realidade ldquoNa criaccedilatildeo dos
compostos atocircmicos na formaccedilatildeo de mundos complexos natildeo haacute intervenccedilatildeo nem da
57 διὰ τὸ τὴν μὲν ἀνάγκην ἀνυπεύθυνον εἶναι τὴν δὲ τύχην ἄστατον ὁρᾶν 58 Op Cit 59 τὸ δὲ παρrsquo ἡμᾶς ἀδέσποτον ᾧ καὶ τὸ μεμπτὸν καὶ τὸ ἐναντίον παρακολουθεῖν πέφυκεν
37 Divindade na forma de Providecircncia nem tampouco a Necessidade Natildeo haacute teleologia
coacutesmica neste sistema atocircmicordquo (GUAL 1985 p 113)
113 A Anthropophyacutesis (acerca da natureza humana)
O conhecimento acerca da phyacutesis e seus modos de ser vai ser fundamental para o
homem pensar as relaccedilotildees que ele estabelece no mundo e com a natureza Se Epicuro natildeo
recorre ao divino para pensar a phyacutesis tambeacutem natildeo o faz com relaccedilatildeo agrave anthropophyacutesis Esta
eacute concebida a partir do mesmo modelo explicativo que tem o aacutetomo (aacutetomos) como princiacutepio
(archeacute) de toda realidade e como elemento corpoacutereo (stoicheiacuteon) (portanto dotado de
qualidades como forma e peso) que vai constituir - devido aos movimentos aos choques agraves
agregaccedilotildees que resultam em corpos mundos - a realidade fenomecircnica Por este prisma o
homem eacute pensado como tendo uma natureza corpoacuterea como tudo mais que faz parte da
phyacutesis Ele eacute ser da natureza um corpo composto ou melhor um organismo (athroiacutesma) que
como outros tambeacutem tem seu modo de realizaccedilatildeo
Pelas definiccedilotildees que jaacute apresentamos podemos retomar uma que tambeacutem nos permite
falar do homem corpo (socircma) Esse termo tanto se refere a um corpo isolado (aacutetomos) quanto
a um agregado de aacutetomos e vazio Nessa acepccedilatildeo nos remetemos para o que vem a ser pela
agregaccedilatildeo e deixa de ser pela desagregaccedilatildeo de suas partes constitutivas Com isso o homem
enquanto - corpo-mateacuteria - estaacute sujeito agraves mudanccedilas advindas pelo tempo pelo movimento
pela relaccedilatildeo anaacutenketychegrave
Em outro sentido enquanto organismo vivo ele eacute pensado por Epicuro por meio do
termo sarkoacutes que etimologicamente como esclarece Bailly60 se refere agrave carne humana e dos
animais Assim o corpo-mateacuteria eacute concebido como corpo-carne quando pensamos nas
interaccedilotildees que o homem estabelece com o mundo Eacute esse sentido que Epicuro o usa para falar
da capacidade de sentir as coisas Eacute pelo sarkoacutes que as sensaccedilotildees da realidade fenomecircnica satildeo
percebidas Na Sentenccedila Vaticana 4 percebemos a indicaccedilatildeo desse papel do corpo-carne para
sentir as impressotildees que o meio coloca diante dele Ao falar da dor que pode incidir sobre o
homem e lhe causar sofrimento diz que ldquoaquela que perdura na carne (sarkiacute) tem um
dolorimento brandordquo61 Eacute o corpo quem recebe as impressotildees sensiacuteveis do mundo que vatildeo
servir ao pensamento para estabelecer um conhecimento (gnoacutesis) para fundamentar o modo de
60 Anatole Bailly Op Cit 61 αἱ δὲ πολυχρόνιοι τῶν ἀρρωστιῶν πλεονάζον ἔχουσι τὸ ἡδόμενον ἐν τῇ σαρκὶ ἤπερ τὸ ἀλγοῦν
38 viver do saacutebio Eacute a partir dessa compreensatildeo que vai se constituir uma relaccedilatildeo entre o corpo e
a sabedoria posto ser por meio dele que um saber eacute pensado e direcionado para estabelecer
um eacutethos de acordo com a natureza voltado para a autonomia e o equiliacutebrio como veremos
no item 13 deste capiacutetulo
Haacute tambeacutem a possibilidade de se referir ao homem como um athroiacutesma que eacute nas
palavras de Bailly62 um agregado uma coesatildeo Embora o termo possa ser usado para se
remeter a qualquer conjunto atocircmico existente na natureza o uso que Epicuro faz dessa
palavra evoca o sentido de organismo O homem seria entatildeo um corpo-organismo cujas
funccedilotildees vitais se voltam para o equiliacutebrio para o bem-estar para a sauacutede O corpo
desequilibrado tende a enfraquecer adoecer e morrer (se desagregar) Eacute a esse corpo-
organismo que Epicuro se refere quando afirma que ldquoa voz da carne eacute natildeo ter fome natildeo ter
sede e natildeo ter friordquo (SV 33)63 uma vez que ele busca satisfazer suas necessidades
fundamentais
Mas compreender o corop como athroiacutesma Epicuro tambeacutem estaacute falando de um
corpo-organismo que reuacutene duas propriedades distintas mas complementares Uma diz
respeito a essa capacidade de sentir o mundo de perceber pela via da sensibilidade a
realidade que o rodeia como falamos anteriormente Mas paralelamente a essa capacidade de
perceber os fenocircmenos da phyacutesis haacute outra que tambeacutem faz parte desse organismo a de
imaginar de pensar de estabelecer - a partir dessas impressotildees sensiacuteveis - um conhecimento
acerca do mundo em que se vive A essa capacidade Epicuro relaciona a alma que ele define
nos seguintes termos no passo 63 da Carta a Heroacutedoto
() a alma eacute corpoacuterea e constituiacuteda de partiacuteculas sutis dispersas por todo o organismo extremamente parecida com um sopro consistente numa mistura de calor semelhante em muitos aspectos ao sopro e em outros ao calor Haacute ainda uma terceira parte que pela sutileza de suas partiacuteculas difere consideravelmente das outras duas e por isso estaacute em contato mais iacutentimo com o resto do organismo (DL X 63)64
A partir dessa passagem evidenciamos que a corporeidade da alma eacute a afirmaccedilatildeo de
sua existecircncia (heacute psychegrave socircmaacute esti) pois se ela natildeo fosse corpoacuterea65 ldquoela natildeo existiria porque
incorpoacutereo soacute o vaziordquo (SILVA 2003 p 39) Disso resulta que mesmo sendo composta por
62 Anatole Bailly Op Cit 63 Σαρκὸς φωνὴ τὸ μὴ πεινῆν τὸ μὴ διψῆν τὸ μὴ ῥιγοῦνmiddot 64 ἡ ψυχὴ σῶμά ἐστι λεπτομερὲς παρrsquo ὅλον τὸ ἄθροισμα παρεσπαρμένον προσεμφερέστατον δὲ πνεύματι θερμοῦ τινα κρᾶσιν ἔχοντι καὶ πῇ μὲν τούτῳ προσεμφερές πῇ δὲ τούτῳmiddot ἔστι δέ τι μέρος πολλὴν παραλλαγὴν εἰληφὸς τῇ λεπτομερείᾳ καὶ αὐτῶν τούτων συμπαθὲς δὲ τούτῳ μᾶλλον καὶ τῷ λοιπῷ ἀθροίσματιmiddot 65 Embora o vazio natildeo seja corpoacutereo ele tem existecircncia ontoloacutegica Eacute preciso admitir que ele existe para poder postular o movimento dos aacutetomos
39 aacutetomos mais sutis (leptomeregraves) eacute phyacutesis eacute corpo dentro de outro corpo e ambos vecircm a ser e
deixam de ser pois estatildeo sujeitos aos fatores que tanto levam agrave geraccedilatildeo quanto agrave
decomposiccedilatildeo ou melhor agrave desagregaccedilatildeo Se essas partiacuteculas satildeo mais sutis mais tecircnues
mais velozes do que aquelas formadoras do corpo-carne isso permite que elas estejam
espalhadas e em movimento por todo o organismo permitindo captar as sensaccedilotildees que
chegam ateacute o athroiacutesma Pois ldquonatildeo podemos pensar na alma como senciente a natildeo ser que ela
esteja nesse todo composto e se mova com esses movimentosrdquo (DL X 66)66 Portanto nem a
alma sente sem estar contida no corpo-carne nem este sem ela Eacute o organismo ou seja essa
inter-relaccedilatildeo que permite agrave alma ter a causa da sensaccedilatildeo e agrave carne participar dessa faculdade
de sentir
Contudo dizer que a alma eacute formada por aacutetomos eacute insuficiente para explicar o que ela
eacute em um sentido mais especiacutefico Novamente precisamos aqui enfatizar as lacunas sobre esse
tema nos poucos textos remanescentes de Epicuro Assim temos que extrair das analogias
apresentadas no passo 63 mais informaccedilotildees Nela a alma eacute comparada a ldquoum sopro
consistente numa mistura de calorrdquo Temos aiacute dois termos que nos ajudam nessa
compreensatildeo pois tanto o sopro (tograve pneucircma) quanto o calor (tograve thermoacuten) nos remetem para
elementos ou forccedilas que existem na natureza enfatizando ainda mais a compreensatildeo da
fisicalidade da alma Nesse sentido o sopro (sugerindo um princiacutepio de movimento) e o calor
(nos remetendo para um princiacutepio de vitalidade) nos indicam que a alma tem sua archeacute e seu
modo de ser inscritos na proacutepria phyacutesis
Essa comparaccedilatildeo a elementos que se dispersam se dissipam permite entender
tambeacutem porque Epicuro afirma que a alma tem uma parte espalhada por todo o corpo como o
calor estaacute disseminado da cabeccedila aos peacutes Seria essa a parte irracional (agravelogon) da psycheacute que
recebe as sensaccedilotildees que chegam pelo sarkoacutes E aleacutem dessa haveria outra localizada no peito
(thoacuterax) e que seria responsaacutevel pela parte racional (logikoacuten) como testemunha a seguinte
passagem
A alma eacute composta de aacutetomos extremamente lisos e arredondados muito diferentes dos aacutetomos do fogo que a parte esparsa por todo o resto do corpo eacute irracional enquanto a parte racional reside no peito como podemos perceber claramente em nossos temores e em nossa alegria (DL X 66)67
Aleacutem desses dois aspectos da alma outro eacute apresentado para completar a definiccedilatildeo
66 οὐ γὰρ οἷόν τε νοεῖν αὐτὸ αἰσθανόμενον μὴ ἐν τούτῳ τῷ συστήματι καὶ ταῖς κινήσεσι ταύταις χρώμενον 67 ἐξ ἀτόμων αὐτὴν συγκεῖσθαι λειοτάτων καὶ στρογγυλωτάτων πολλῷ τινι διαφερουσῶν τῶν τοῦ πυρόςmiddot καὶ τὸ μέν τι ἄλογον αὐτῆς ὃ τῷ λοιπῷ παρεσπάρθαι σώματιmiddot τὸ δὲ λογικὸν ἐν τῷ θώρακι ὡς δῆλον ἔκ τε τῶν φόβων καὶ τῆς χαρᾶς
40 Mas natildeo se encontra na natureza nenhuma comparaccedilatildeo que permita nomeaacute-lo Daiacute porque o
terceiro constituinte Epicuro chama de sem-nome (akatonocircmastom) Trata-se da parte que
ldquogoverna particularmente as operaccedilotildees intelectuais da almardquo (SALEM 1993 15) partindo
das impressotildees sensiacuteveis (proacutelepseis) para estabelecer as projeccedilotildees (phantastikai epibolai tecircs
dianoiacuteas) que permitem pensar e expor um conhecimento acerca da realidade Daiacute se dizer
que no epicurismo o corpo (sarkoacutes mais psycheacute) eacute fundamental para conhecer ou desvelar a
phyacutesis Aleacutem disso esse aspecto permite localizar na alma o iniacutecio da accedilatildeo da decisatildeo da
deliberaccedilatildeo para o agir Eacute em suma o que Lucreacutecio definiu como ldquoa proacutepria alma de toda
almardquo (Lucr III 274)68
Diante disso eacute possiacutevel falar tambeacutem da necessidade de estabelecer um cuidado com o
athroiacutesma dada a interaccedilatildeo orgacircnica e constante entre corpo-alma e corpo-carne Pois se
verifica que por um lado a psycheacute age sobre o sarkoacutes ldquoquando a vemos impelir os membros
arrebatar o corpo ao sono demudar o rosto reger e dirigir todo o corpordquo (Lucr III 162-4)69
percebe-se por outro que o saacuterkos sente as afecccedilotildees (paacutethos) que acometem a psycheacute que
ldquosofre com o corpo e com o corpo sente em noacutesrdquo (Lucr III 168-9)70 Dessa forma o que
desequilibra um adoece o outro E isso vai ser pensado ao se estabelecer uma filosofia voltada
para conduzir o homem a uma vida feliz afinal natildeo se pode gozar de ataraxiacutea (ausecircncia de
perturbaccedilatildeo) e de aponiacutea (ausecircncia de dor) se
Quando o espiacuterito eacute abalado por um medo violento vemos que toda a alma sente o mesmo pelos membros e que por todo o corpo aparecem suores e palidez a liacutengua se entaramela a voz se prende os olhos se obscurecem os ouvidos ressoam os membros desfalecem finalmente vemos que muitas vezes caem os homens pelo terror do espiacuterito (Lucr III 150-8)71
Pois bem Antes de fazer esse panorama a respeito do que Epicuro havia postulado a
respeito de uma anthropophyacutesis haviacuteamos questionado se o modelo explicativo que ele
aplicou para estabelecer um entendimento a respeito da phyacutesis seria suficiente para falar do
homem e do seu sentido de realizaccedilatildeo Ora a partir do que foi exposto destacamos que todo o
trabalho de compreensatildeo da anthropophyacutesis feito por Epicuro e apresentado na Carta a
Heroacutedoto se daacute por meio de relaccedilotildees explicaccedilotildees analogias que tecircm a realidade fenomecircnica
por referecircncia e fonte de conhecimento Assim a physiologiacutea nos remete para um exerciacutecio
filosoacutefico que visa fazer o homem se identificar com a phyacutesis Isso significa que eacute nela que ele
68 LUCREacuteCIO Da Natureza Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 (Os Pensadores) 69 Idem 70 Ibidem 71 Ibidem
41 deve buscar as respostas necessaacuterias para compreender o sentido de sua realizaccedilatildeo e poder
definir um modo de viver que o leve a alcanccedilar essa finalidade
Natildeo por acaso Epicuro faz um retorno agrave filosofia preacute-socraacutetica retomando o
pensamento atomista de Demoacutecrito e Leucipo para estabelecer uma compreensatildeo de mundo
fundamentada na imanecircncia um entendimento da vida a partir das experiecircncias que ela traz
consigo Trata-se de definir um conhecimento possiacutevel e que possa guiar o homem para que
ele nem seja conduzido pelas opiniotildees vazias (kenaigrave doacutexai) nem pelos mitos (myacutethoi) nem
pelas concepccedilotildees que extrapolam o campo do sensiacutevel projetando finalidades para aleacutem do
que estaacute na natureza
Mas essa relaccedilatildeo ou melhor essa extensatildeo estabelecida no epicurismo entre
anthropophyacutesis e phyacutesis natildeo significa que o devir do homem eacute definido unicamente em
termos de fisicalidade o aacutenthropos natildeo eacute pensado como meramente assujeitado pelas malhas
do acaso e da necessidade Ao considerarmos os modos de ser da phyacutesis verificamos que
devido agrave anaacutenke as coisas acontecem como naturalmente devem ser e a tyacuteche inscreve na
natureza o fortuito podendo alterar o quando e a forma das coisas acontecerem Mas no
campo da anthropophyacutesis eacute preciso considerar que meio a essa dinacircmica haacute ainda aquilo que
pode o homem aquilo que ele pode fazer por si mesmo Porque ldquoeacute vatildeo exigir dos deuses
aquilo que algueacutem pode provir por si proacutepriordquo72 pois
O homem [dotado de razatildeo e da faculdade de prever] o que haacute de vir [capaz de viver] feliz agrave condiccedilatildeo que ele se ligue agrave [virtude por] ela mesma e tenha boas [disposiccedilotildees] (Œno Fr 21 IV)73
Se como foi dito a alma tem uma parte que pensa conhece e delibera entatildeo a
phroacutenesis (prudecircncia vontade esclarecida)74 e o logismoacutes (caacutelculo racional)75 satildeo os
instrumentos que ela tem de esclarecimento Isso permite que orientada por essa capacidade
de pensar ela possa definir um modo de viver e desenvolver a disposiccedilatildeo para praticar as
virtudes que a levem a experimentar sua realizaccedilatildeo
Verificamos que essa aproximaccedilatildeo homemnatureza estabelecida a partir da leitura
physioloacutegica da realidade ao mesmo tempo em que caracteriza a anthropophyacutesis tambeacutem
72 Μάταιόν ἐστι παρὰ θεῶν αἰτεῖσθαι ἅ τις ἑαυτῷ χορηγῆσαι ἱκανός ἐστι 73 Traduccedilatildeo a partir do francecircs La Philosophie Epicurienne sur Pierre Op Cit p 36 74 As expressotildees ldquovontade refletidardquo (volonteacute reacutefleacutechie) p 224 246 ldquovontade livrerdquo (volonteacute libre) p 239 e ldquovontade esclarecidardquo (volonteacute eacuteclaireacutee) p 248 satildeo empregadas por Eacutemile Breacutehier para se referir agrave vontade submetida agrave razatildeo BREacuteHIER Eacutemile Histoire de la Philosophie V I Paris Librairie Feacutelix Alcan 1928 Ediccedilatildeo eletrocircnica disponiacutevel em httpclassiquesuqaccaclassiquesbrehier_emileHistoire_de_philo_t1brephi_1pdf Acesso em 15 de outubro de 2019 75 Idem
42 remete para uma contiguidade entre a physiologiacutea e a eacutetica Isso porque a compreensatildeo da
natureza possibilita fundamentar uma perspectiva libertadora para o homem na medida em
que permite estabelecer um modo de pensar e de viver distanciado das opiniotildees infundadas
das concepccedilotildees apartadas do referencial sensiacutevel E isso pode levar a fantasiar a respeito do
porvir a temer aquilo que eacute natural a desejar para aleacutem do necessaacuterio para uma vida feliz
(makariacuteos zecircn) Em outros termos a ignoracircncia sobre a phyacutesis conduz ao engano (hamarthiacutea)
e agrave desmesura (hyacutebris) Eacute preciso investigar a natureza e com isso estabelecer os limites para
os desejos e exercitar a liberdade necessaacuteria para fazer as escolhas e recusas necessaacuterias agrave
proacutepria realizaccedilatildeo Por meio da physiologiacutea o saacutebio se daacute conta de que ldquoa tranquilidade
perfeita da alma consiste em estar livre de todos esses terrores e temores e em relembrar tenaz
e constantemente a doutrina em suas linhas gerais e fundamentaisrdquo (DL X 82)76
Ao olhar para si mesmo como um aspecto da realizaccedilatildeo da phyacutesis despindo-se de
qualquer concepccedilatildeo demiuacutergica eacute possiacutevel pensar a liberdade como disposiccedilatildeo para por si
mesmo construir o proacuteprio destino Talvez aiacute esteja um aspecto antropoloacutegico importante no
pensamento epicurista Pois o homem natildeo sendo gerado por deuses nem mero produto do
acaso nem da necessidade eacute ser da natureza que como resultado daquilo que pode o ser eacute
capaz de pensar e deliberar a partir de si mesmo e do conhecimento que tem para estabelecer
um modo de ser e de agir no mundo visando a autorrealizaccedilatildeo Dito de outra forma ele eacute
pensado como ser inacabado de possibilidades que pode exercitar uma artesania sobre si
mesmo para desenhar-se conforme o sentido de realizaccedilatildeo que consegue inteligir a partir da
investigaccedilatildeo da natureza Por isso Epicuro busca destituir o homem da ideia de providecircncia e
lhe instila a compreensatildeo de que cabe a ele a possibilidade de escolher os rumos para
conquistar sua felicidade Para tanto eacute preciso desatar-se das crenccedilas que levam ao medo e ao
assenhoramento da vontade O entendimento acerca da phyacutesis pretende tanto lhe permitir isso
quanto fazecirc-lo vislumbrar que eacute possiacutevel realizar uma vida autecircntica Saacutebio eacute pois quem se
vale desse saber acerca da natureza e por si mesmo pensa a proacutepria existecircncia como deve
viver Eacute na phyacutesis que ele vecirc um paradigma que o guia no sentido de conferir mais liberdade e
naturalidade ao seu modo de viver Afinal como afirma Epicuro na Carta a Piacutetocles a ldquovida
natildeo precisa de irracionalidade nem de opiniotildees vatildes precisa eacute que vivamos sem perturbaccedilatildeordquo
(DL X 87)77
76 ἡ δὲ ἀταραξία τῷ τούτων πάντων ἀπολελύσθαι καὶ συνεχῆ μνήμην ἔχειν τῶν ὅλων καὶ κυριωτάτων 77 οὐ γὰρ ἰδιολογίας καὶ κενῆς δόξης ὁ βίος ἡμῶν ἔχει χρείαν ἀλλὰ τοῦ ἀθορύβως ἡμᾶς ζῆν
43 12 A vida katagrave phyacutesin
A transiccedilatildeo do seacuteculo IVndashIII aC foi marcada por uma problemaacutetica que mobilizou a
atenccedilatildeo de ciacutenicos estoicos cirenaicos e epicuristas Uma discussatildeo que se ampliou a partir
do seacuteculo V aC quando os sofistas repercutiam um debate em torno da diferenccedila e oposiccedilatildeo
entre natureza (phyacutesis) e convenccedilatildeo (noacutemos) Eacute preciso lembrar contudo que Demoacutecrito jaacute
teria em seu tempo questionado se as sensaccedilotildees existem por natureza ou por convenccedilatildeo
ldquoPor convenccedilatildeo (noacutemoi) existe o frio por convenccedilatildeo existe o calor mas em verdade existem
apenas os aacutetomos e o vaziordquo (DL IX 72)
Um aspecto desse questionamento se daacute relacionando a noccedilatildeo de noacutemos com o que eacute
percebido pelos sentidos E aiacute se tem um problema pois o que adveacutem da percepccedilatildeo natildeo eacute
fiaacutevel afinal os sentidos podem conduzir ao engano E diante da dinacircmica da natureza onde
as coisas estatildeo em constante movimento o conhecimento apenas poderia ser ancorado em
algo imutaacutevel perene e isso diz respeito aos aacutetomos e vazio Contrariamente a essa maneira
de pensar Epicuro vai colocar as sensaccedilotildees como fundamentais para o desvelamento da
natureza e portanto indispensaacuteveis para o processo de conhecer algo Disso trataremos no
item 13 desse capiacutetulo
Mas natildeo foi a partir dessa perspectiva que a oposiccedilatildeo noacutemosphyacutesis reapareceu nas
discussotildees filosoacuteficas do helenismo A questatildeo que perpassa essa relaccedilatildeo antiteacutetica se
configurou quando noacutemos passou a se referir ao que eacute convencionado pelo homem em
oposiccedilatildeo ao que eacute natural (phyacutesis) Encontramos reflexos dessa polecircmica no Craacutetilo de
Platatildeo onde essas duas noccedilotildees satildeo excludentes entre si O que existiria por noacutemos natildeo
existiria por natureza e vice-versa
Sumariamente lembramos que noacutemos se refere agravequilo que eacute estabelecido pelo loacutegos
(pensamento) e de acordo com Bailly78 se refere agrave opiniatildeo geral aos costumes ao habitual
Essas acepccedilotildees nos remetem para regras normas leis enfim ao que estaacute convencionado para
o exerciacutecio da vida social Em sendo assim natildeo satildeo definitivas permanentes nem
universalizaacuteveis posto natildeo se fundamentarem na natureza Tratar-se-ia de um ldquoacordordquo
estabelecido para que os homens pudessem viver em sociedade
Por outro lado phyacutesis eacute entendida como anterior a qualquer convenccedilatildeo ou definiccedilatildeo
que a ela eacute atribuiacuteda eacute o que se daacute por natureza Trata-se de pensaacute-la como referecircncia para
estabelecer um eacutethos uma justiccedila uma educaccedilatildeo uma linguagem ou seja o que eacute necessaacuterio
78 Anatole Bailly Op Cit
44 para tornar efetivas e harmoniosas as agregaccedilotildees entre os homens
Decorre disso que as escolas filosoacuteficas do helenismo passaram a participar desse
debate em torno da relaccedilatildeo noacutemosphyacutesis Isso porque cada uma por meio de suas
especificidades estava tentando definir de que maneira se realiza a sabedoria e por isso era
preciso dizer se o modo de vida do saacutebio (sophoacutes) devia ser de acordo com o noacutemos ou com a
phyacutesis Assim a discussatildeo era tratada em torno do conflito expresso entre o que resulta de se
viver de acordo com o convencionado socialmente e o que sucede de uma vida fundamentada
na phyacutesis Diante desse questionamento os ciacutenicos entendem que os seres da natureza natildeo
tecircm noacutemos eles satildeo em funccedilatildeo da naturalidade do seu ser79 Ao postular essa perspectiva eles
defendem que o homem tambeacutem possa agir conforme sua natureza proacutepria Viver em funccedilatildeo
do noacutemos seria esconder ou sufocar sua naturalidade com regras ou convenccedilotildees Eis porque
viver de acordo com a natureza (katagrave phyacutesin) eacute o modo de o homem poder realizar o sentido
de sua existecircncia Dessa forma defende-se que - pelo noacutemos pelas regras e valores
estabelecidos sem ancoragem na phyacutesis - ele se afasta dessa realizaccedilatildeo Com isso vive-se uma
artificialidade que o impede de experimentar a autenticidade de sua proacutepria existecircncia
criando para si mesmo o sofrimento e o alheamento da proacutepria vontade Essa premissa vai ser
defendida e praticada aleacutem dos ciacutenicos por estoicos ceacuteticos cirenaicos e epicuristas mas
cada um modulando esse entendimento em funccedilatildeo de suas finalidades filosoacuteficas o que vai
resultar em eacuteticas diferentes80
Um aspecto em comum entre essas escolas eacute que esse retorno agrave phyacutesis ou esse
movimento para conferir mais naturalidade ao modo de viver exige um esforccedilo pessoal um
trabalho sobre si mesmo que tem como ponto de partida uma indagaccedilatildeo como viver segundo
a natureza No pensamento epicuacutereo a resposta a esse questionamento nos remete para dois
aspectos principais os limites e a repleccedilatildeo
79 Desdobramentos dessa perspectiva podem ser verificados modernamente no Marquecircs de Sade Em Os 120 Dias de Sodoma (Coleccedilatildeo Peacuterolas Furiosas editora Iluminuras formato Kindle) por exemplo se lecirc ldquoRecebi essas inclinaccedilotildees na natureza e irritaacute-la-ia se a elas resistisserdquo (posiccedilatildeo 233) E tambeacutem ldquo() plenamente convencida de que todos os bens devem ser iguais na terra e que apenas a forccedila e a violecircncia se opotildeem a essa igualdade primeira lei da natureza ()rdquo (posiccedilatildeo 2935) 80 Destacamos que os ciacutenicos pensam que a vida kagraveta phyacutesin remete a uma volta agrave natureza em seu aspecto animal Vale lembrar que o termo ciacutenico vem de kynikoacutes se referindo ao catildeo ou a ele relativo Por sua vez os estoicos entendem que suportando as vicissitudes da vida se fortalece a naturalidade do proacuteprio ser
45 121 Nos limites da phyacutesis
Uma perspectiva importante para a compreensatildeo do que significa katagrave phyacutesin81 no
contexto do epicurismo diz respeito agrave necessidade de o saacutebio se ocupar em viver dentro dos
limites da natureza Mas que limites satildeo esses e como circunscrever nossa experiecircncia de
existir a eles Para entendermos esse ponto eacute preciso evocar uma assertiva de Epicuro Ele
afirma no passo 39 da Carta a Heroacutedoto que ldquoo todo sempre foi exatamente como eacute agora e
sempre seraacute assim Entatildeo nada existe em que ele poderia transformar-se porque aleacutem do
todo nada haacute que possa penetrar nele e provocar transformaccedilatildeordquo (DL X 39)82 Com isso ele
quer dizer que a natureza - tomada em sua totalidade ndash eacute imutaacutevel Ela natildeo seraacute nem mais nem
menos do que sempre foi E uma vez que nada se transforma em nada e nem nada se cria a
partir do nada o que existe e o que deixa de existir eacute o resultado do movimento de agregaccedilatildeo
e desagregaccedilatildeo dos corpos (ou geraccedilatildeo e corrupccedilatildeo) que constituem a natureza Eacute nesse
enquadramento que vai ser postulado que as coisas da existecircncia pertencem ao campo do que
eacute constituiacutedo por aacutetomos se movendo no vazio ou dos agrupamentos deles que formam
corpos e mundos Assim ele tambeacutem estaacute dizendo que a natureza nos remete exclusivamente
ao campo do sensiacutevel uma vez que os elementos constituintes da phyacutesis estatildeo ao alcance da
apreensatildeo de nossos sentidos ou - diante daquilo que escapa a percepccedilatildeo da nossa
sensibilidade - satildeo por meio de analogias entendidos dessa forma como eacute o caso da
compreensatildeo que se estabelece acerca do aacutetomo
Consequentemente Epicuro postula que a realidade eacute imanente e por isso o
pensamento deve se fundamentar no campo das experiecircncias sensiacuteveis para tentar falar das
coisas da vida Ter em conta esse aspecto ligado agrave noccedilatildeo de limite da natureza leva o
physiologoacutes (aquele que se dedica agrave investigaccedilatildeo da phyacutesis) a considerar que ldquoeacute verdadeiro
apenas aquilo que se percebe por meio dos sentidos ou se apreende por meio da menterdquo (DL
X 62)83 quando opera a partir de analogias fundadas na memoacuteria das impressotildees sensiacuteveis
Com isso ele estabelece um criteacuterio para o pensamento natildeo projetar nenhuma finalidade para
o homem que esteja aleacutem do que ele possa experimentar em sua vida E aqui se identifica
81 As expressotildees katagrave phyacutesin katagrave to teacutes phyacuteseos e hoacute teacutes phyacuteseos remetem para um mesmo sentido viver de acordo com a natureza Esse foi um lema de vaacuterias escolas filosoacuteficas do helenismo O estoico Zenatildeo teria sido o primeiro a fazer uso dessa expressatildeo para ldquodefinir o bem supremo como viver de acordo com a naturezardquo (DLVII 87) 82 Καὶ μὴν καὶ τὸ πᾶν ἀεὶ τοιοῦτον ἦν οἷον νῦν ἐστι καὶ ἀεὶ τοιοῦτον ἔσται οὐθὲν γάρ ἐστιν εἰς ὃ μεταβαλεῖ παρὰ γὰρ τὸ πᾶν οὐθέν ἐστιν ὃ ἂν εἰσελθὸν εἰς αὐτὸ τὴν μεταβολὴν ποιήσαιτο 83 ἐπεὶ τό γε θεωρούμενον πᾶν ἢ κατrsquo ἐπιβολὴν λαμβανόμενον τῇ διανοίᾳ ἀληθές ἐστι
46 uma relaccedilatildeo entre a compreensatildeo desse limite e o modo de viver do saacutebio pois ele vai
procurar deixar de se fiar em explicaccedilotildees que evocam a crenccedila na possibilidade de felicidade
humana - se projetando em mitos - para pensar o exerciacutecio de uma vida feliz (makariacuteos zecircn)
fundamentado na physiologiacutea O saacutebio compreende que estendendo para aleacutem da natureza as
explicaccedilotildees para os fenocircmenos inerentes agrave phyacutesis o homem se distancia da possibilidade de
experimentar o equiliacutebrio a alegria e o prazer Eacute consoante a esse prisma que o principal
responsaacutevel pela divulgaccedilatildeo do pensamento epicurista para a cultura romana o poeta e
filoacutesofo Tito Lucreacutecio vai nos falar
Ora eacute preciso que afugentem esse temor e estas trevas do espiacuterito natildeo os raios do Sol nem os dardos luacutecidos do dia mas o espetaacuteculo da natureza e as suas leis E para iniacutecio tomaremos como base que natildeo haacute coisa alguma que tenha jamais surgido do nada por qualquer accedilatildeo divina De fato o terror oprime todos os mortais apenas porque vecircem operar-se no ceacuteu e na terra muitas coisas de que natildeo podem de nenhum modo perceber as causas e cuja origem atribuem a um poder dos deuses (Lucr I 146-158)84
Perceba-se que por um lado Lucreacutecio estaacute se fererindo a um aspecto da natureza
relacionado agrave regularidade dos fenocircmenos por outro estaacute ecoando o sentido da filosofia de
Epicuro relaciona nesse trecho a necessidade de livrar o homem de perturbaccedilotildees atraveacutes do
conhecimento ldquoda natureza e as suas leisrdquo E isso decorre do entendimento de que para
Epicuro o estudo acerca da phyacutesis visa conduzir a uma maneira de ler a realidade que afaste
toda forma de obscurantismo que resulta de se tentar projetar o teacutelos da vida para fora dela
As causas para os fenocircmenos e as finalidades que satildeo inteligidas a partir da
investigaccedilatildeo dos modos de ser da natureza vatildeo ser observadas e postuladas dentro do campo
de realizaccedilatildeo da proacutepria phyacutesis esse eacute o limite que deve balizar o pensamento em seu
movimento de tentar fazer o desvelamento do mundo-realidade
Se considerarmos a exposiccedilatildeo de Jean Salem85 nos damos conta de que Epicuro ao
falar de limites emprega dois temos indistintamente peacuteras e hoacuteros Esse uso estaacute associado
agraves discussotildees sobre os prazeres e desejos e ldquoparticularmente quando a reflexatildeo orbita em
torno de questotildees de ordem eacuteticardquo (SALEM 1994 p 83) Mas tanto na Carta a Meneceu
84 Hunc igitur terrorem animi tenebrasque necessest non radii solis neque lucida tela diei discutiant sed naturae species ratioque Principium cuius hinc nobis exordia sumet nullam rem e nihilo gigni divinitus umquam Quippe ita formido mortalis continet omnis quod multa in terris fieri caeloque tuentur quorum operum causas nulla ratione videre possunt ac fieri divino numine rentur Quas ob res ubi viderimus nil posse creari de nihilo tum quod sequimur iam rectius inde perspiciemus et unde queat res quaeque creari et quo quaeque modo fiant opera sine divom 85 SALEM Jean Tel un Dieu parmi les Hommes Paris Vrin 1994
47 passo 13386 quanto na Maacutexima Capital 2587 se estabelece uma relaccedilatildeo entre peacuteras e teacutelos E
isso se daacute associando o que se apresenta como finalidade da natureza (teacutelos tecircs phyacuteseos) com
os limites dos desejos (tograve peacuteras tocircn epithymiocircn) Isso se explica porque somente
circunscrevendo os proacuteprios desejos aos limites ou finalidade da natureza eacute que o saacutebio realiza
seu modo de ser Mas Salem vai aleacutem nessa anaacutelise da noccedilatildeo de limite na filosofia epicurista e
apresenta cinco acepccedilotildees para esse termo O de limite como 1) demarcaccedilatildeo de um conjunto
finito (as formas atocircmicas) 2) teacutermino de um campo de variaccedilatildeo (se referindo agraves
caracteriacutesticas especiacuteficas de um ser natural) 3) medida do maacuteximo (tendo por exemplo o
limite de intensidade da dor) 4) medida do miacutenimo (como as medidas do miacutenimo percebido
pelo pensamento tal qual o aacutetomo) Contudo parece-nos importante acrescentar outra
acepccedilatildeo a esse rol aquela de limite como criteacuterio para pensar a phyacutesis no contexto de sua
imanecircncia como mostramos aqui E isso estaacute ligado agrave necessidade de suprimir a ignoracircncia
por meio da physiologiacutea impedindo de aceitar crenccedilas que levam agrave alma as perturbaccedilotildees e
desviam o modo de viver do homem da finalidade de uma vida saacutebia
A principal perturbaccedilatildeo das almas humanas tem sua origem na crenccedila de que esses corpos celestes satildeo bem-aventurados e indestrutiacuteveis e que ao mesmo tempo tecircm vontades e praticam accedilotildees () na expectativa e na apreensatildeo constante de algum castigo eterno sob a influecircncia dos mitos () essas pessoas sofrem perturbaccedilatildeo igual ou ainda mais intensa que a daquelas que nesses assuntos seguem opiniotildees vatildes (DL X 81)88
Nesses termos Epicuro nos remete ao direcionamento da physiologiacutea para trazer agrave
alma a calma na medida em que serve para purgaacute-la dos medos insurgidos de uma
compreensatildeo a respeito da phyacutesis que projeta para fora dela as explicaccedilotildees para fenocircmenos
que satildeo da ordem do natural Quando o homem passa a compreender o que eacute acontecimento
da natureza e a se reconhecer como tal portanto dentro desses limites ele tambeacutem pensa sua
realizaccedilatildeo tendo em vista a possibilidade de evitar a dor o medo e consequentemente
alcanccedilar a imperturbabilidade da alma (ataraxiacutea)
Por isso iniciamos esse trabalho traccedilando uma panoracircmica a respeito da concepccedilatildeo
epicurista sobre a natureza e seus modos de realizaccedilatildeo destacando aquilo que compotildee tanto a
86 τὸ τῆς φύσεως ἐπιλελογισμένου τέλος καὶ τὸ μὲν τῶν ἀγαθῶν πέρας ὡς ἔστιν εὐσυμπλήρωτόν τε καὶ εὐπόριστον διαλαμβάνοντος () 87 Εἰ μὴ παρὰ πάντα καιρὸν ἐπανοίσεις ἕκαστον τῶν πραττομένων ἐπὶ τὸ τέλος τῆς φύσεως ἀλλὰ προκαταστρέψεις εἴτε φυγὴν εἴτε δίωξιν ποιούμενος εἰς ἄλλο τι οὐκ ἔσονταί σοι τοῖςe () 88 ὅτι τάραχος ὁ κυριώτατος ταῖς ἀνθρωπίναις ψυχαῖς γίνεται ἐν τῷ ταὐτὰ μακάριά τε δοξάζειν ltεἶναιgt καὶ ἄφθαρτα καὶ ὑπεναντίας ἔχειν τούτοις ἅμα βουλήσεις καὶ πράξεις καὶ αἰτίας καὶ ἐν τῷ αἰώνιόν τι δεινὸν ἢ προσδοκᾶν ἢ ὑποπτεύειν κατὰ τοὺς μύθους εἴτε καὶ αὐτὴν τὴν ἀναισθησίαν τὴν ἐν τῷ τεθνάναι φοβουμένους ὥσπερ οὖσαν κατrsquo αὐτούς καὶ ἐν τῷ μὴ δόξαις ταῦτα πάσχειν ἀλλrsquo ἀλόγῳ γέ τινι παραστάσει ὅθεν μὴ ὁρίζοντας τὸ δεινὸν τὴν ἴσην ἢ καὶ ἐπιτεταμένην ταραχὴν λαμβάνειν τῷ εἰ καὶ ἐδόξαζον ταῦταmiddot
48 totalidade do universo quanto as menores partiacuteculas que o constituem e remetendo para uma
contiguidade entre phyacutesis e anthropophyacutesis Eacute a partir desse escopo que se busca compreender
o homem como ser da natureza mas que - por sua capacidade para pensar deliberar e agir
como consequecircncia do que cabe ao homem - pode viver de acordo com o que pensa E o
fizemos para ressaltar que a physiologiacutea eacute fundamental para (re)direcionar a opiniatildeo a partir
de um entendimento da phyacutesis que se daacute dentro dela mesma O mundo em que se vive no
qual estabelecemos as mais diversas relaccedilotildees e do qual recebemos as impressotildees que seratildeo a
fonte para todo o conhecimento pode ser explicado a partir do que ele mostra aos nossos
sentidos
Resulta disso que toda crenccedila estabelecida para aleacutem desses limites do sensiacutevel acaba
por distanciar o homem da natureza na medida em que projeta o sentido de sua realizaccedilatildeo
para um aleacutem-mundo para um aleacutem-vida Nessa perspectiva delineia-se um terreno propiacutecio
para postular a existecircncia de uma vontade maior definindo uma finalidade (teacutelos) para a
natureza e seus constituintes Como consequecircncia temos o homem enredado em uma teia de
acontecimentos onde o espaccedilo para definir sua conduta no mundo lhe eacute alheado Eacute a partir
desse ponto de vista que a physiologiacutea vai ser pensada como a ldquocondiccedilatildeo das condiccedilotildeesrdquo
(CONCHE 1997 p 40) para uma vida feliz Isso porque sem ela para estabelecer os limites
para o homem pensar sua condiccedilatildeo no mundo e como se conduzir na vida ele vecirc adiada ldquoa
alegria e a vida se consome pela demora e cada um de noacutes morre sem ter descansordquo (SV
14)89 Natildeo eacute concebiacutevel para Epicuro entatildeo que se fique agrave mercecirc de que um dia a felicidade
lhe chegue quando eacute possiacutevel por meio de uma atividade de investigar a realidade pensar
sobre ldquoa via seguida e a seguirrdquo (CONCHE idem) e transformar o agora
Eacute em funccedilatildeo desse limite para o pensar que se estabelece um conflito entre a proposta
epicurista fundamentada na physiologiacutea e a religiatildeo Isso porque o estudo da natureza na
medida em que exclui das explicaccedilotildees sobre as coisas do mundo qualquer intervenccedilatildeo divina
busca desconstruir a crenccedila segundo a qual os deuses intervecircm nas questotildees humanas Desse
modo o medo de que eles possam interferir no destino do homem reservando-lhe seja o
infortuacutenio seja o paraiacuteso passa a natildeo ter mais sentido
Mas isso natildeo significa que Epicuro tenha negado a existecircncia dos deuses como os
detratores de sua filosofia quiseram fazer crer Natildeo Tanto que ele afirma na Carta a
Meneceu ldquoos deuses realmente existem e o conhecimento de sua existecircncia eacute manifestordquo
89 σὺ () ἀναβάλλῃ τὸ χαῖρονmiddot ὁ δὲ βίος μελλησμῷ παραπόλλυται καὶ εἷς ἕκαστος ἡμῶν ἀσχολούμενος ἀποθνῄσκει
49 (DL X 123)90 O que ele combate eacute a representaccedilatildeo dos deuses apresentada pela doacutexa As
divindades eram retratadas como tomadas pelos desejos pelas emoccedilotildees pela coacutelera pela
inveja pelo orgulho pela vaidade etc A crenccedila geral era a de seres prestes a irradiar toda sua
fuacuteria ou toda sua benevolecircncia dependendo do quatildeo capazes os homens fossem de agradaacute-los
com oferendas com sacrifiacutecios com oraccedilotildees
E eacute isso que Epicuro nega essa noccedilatildeo de divindade que por um lado gera temor e
por outro coloca o homem numa posiccedilatildeo de assenhoramento de minimizaccedilatildeo de seu poder
de deliberaccedilatildeo Como ldquoas afirmaccedilotildees da maioria sobre os deuses natildeo satildeo preacute-concepccedilotildees
verdadeiras e sim suposiccedilotildees falsas Por causa de tais suposiccedilotildees falsas imagina-se que
derivam dos deuses os maiores males e bensrdquo (DL X 124)91 E a filosofia epicurista vem em
oposiccedilatildeo a isso
Para ele os deuses gozam de imortalidade92 nos intermundos (metakoacutesmion =
intervalo entre os mundos) onde vivem autaacuterquica e serenamente Ora ldquoum ser bem-
aventurado e eterno natildeo tem perturbaccedilotildees nem perturba outro serrdquo (MC 1)93 Os deuses natildeo
satildeo afetados por nada daiacute seu estado de eterno equiliacutebrio e tranquilidade Tambeacutem natildeo
seguem a nenhum desiacutegnio a natildeo ser aquele que vem de si proacuteprio e isso vai caracterizar sua
autossuficiecircncia Por isso Epicuro orienta ldquoconsidera a divindade um ser vivo e feliz de
acordo com a noccedilatildeo da divindade impressa em noacutes pela natureza e natildeo lhe atribuas coisa
alguma estranha agrave imortalidade ou incompatiacutevel com a felicidaderdquo (DL X 123)94 Daiacute ele
considerar que a imperturbabilidade (ataraxiacutea) e a autarquia (autaacuterkeia)95 que caracterizam a
existecircncia dos deuses satildeo bens imortais e devem ser buscados pelo saacutebio E eacute tendo por base
esses bens que Epicuro vai postular a sabedoria como a arte de viver ldquocomo um deus entre os
homensrdquo (DL X 135)96
90 θεοὶ μὲν γὰρ εἰσίνmiddot ἐναργὴς γὰρ αὐτῶν ἐστιν ἡ γνῶσιςmiddot 91 οὐ γὰρ προλήψεις εἰσὶν ἀλλrsquo ὑπολήψεις ψευδεῖς αἱ τῶν πολλῶν ὑπὲρ θεῶν ἀποφάσεις ἔνθεν αἱ μέγισται βλάβαι αἴτιαι τοῖς κακοῖς ἐκ θεῶν ἐπάγονται καὶ ὠφέλειαι 92 Embora de natureza corpoacuterea natildeo estatildeo sujeitos agrave corrupccedilatildeo ou morte E isso pode ser explicado pois sua imagem (eiacutedolon) emite contiacutenuamente aacutetomos que satildeo substituiacutedos por outros eternamente 93 Τὸ μακάριον καὶ ἄφθαρτον οὔτε αὐτὸ πράγματα ἔχει οὔτε ἄλλῳ παρέχειmiddot 94 Πρῶτον μὲν τὸν θεὸν ζῷον ἄφθαρτον καὶ μακάριον νομίζων ὡς ἡ κοινὴ τοῦ θεοῦ νόησις ὑπεγράφη 95 Cabe natildeo confundir os substantivos αὐτάρκης formado a partir da raiz verbal ἀρκέω que evoca a ideia de ser suficiente com αὐταρxῆς derivado da raiz ἀρxεύω que diz respeito a comandar reinar governar Αὐτάρκης pode ser traduzido como bastar a si mesmo ser auto-suficiente enquanto αὐταρκῆς remete para aquele que governa a si mesmo Temos aiacute portanto sentidos diferentes O problema se daacute quando ao tentar se referir em portuguecircs para a condiccedilatildeo daquele que tem o principio da accedilatildeo em si mesmo (αὐτάρκης) recorremos agrave palavra autarquia que tambeacutem pode trazer conotaccedilotildees ligadas a αὐταρxῆς como ao se referir a instituiccedilotildees de poder autocircnomo Embora pudeacutessemos usar o vocaacutebulo autarcia para demarcar a opccedilatildeo pelo sentido advindo de αὐτάρκης preferimos manter autarquia mas sublinhado que neste trabalho ele remete para um sentido de autossuficiencia 96 ζήσῃ δὲ ὡς θεὸς ἐν ἀνθρώποις
50 Mas perceba-se ao admitir a existecircncia dos deuses Epicuro natildeo os imagina como
seres de outra realidade de natureza distinta dessa constituiacuteda por aacutetomos e vazio Nem como
entidades que inspiram temores e apreensotildees Eles satildeo pensados dentro dos limites da phyacutesis e
como um modelo de realizaccedilatildeo de um modo de existir bem-aventurado Para ele acreditar
naquilo que escapa aos limites da natureza significa postular a existecircncias de duas realidades
uma natural e outra sobrenatural Com isso acentua-se a tendecircncia para separar o homem e a
phyacutesis concebendo-o como criaccedilatildeo divina e natildeo como fenocircmeno da natureza Resulta dessa
clivagem alhear o homem da compreensatildeo da possibilidade de realizaccedilatildeo de uma vida
autaacuterquica (em que ele define por si mesmo - a partir do que conhece sobre a natureza - como
ser e agir no mundo) e projetar o sentido de sua existecircncia para aleacutem da realidade que ele
experimenta
Outra batalha travada eacute com relaccedilatildeo agrave cultura ou seja agrave Paideacuteia tomada em seu
sentido mais geral Se os limites colocados para se pensar a realidade levam a um conflito
com a compreensatildeo que o senso geral tem a respeito dos deuses tambeacutem acabam por se
chocar com o panorama cultural da eacutepoca E isso estaacute ligado agrave finalidade do saber Para o
epicurismo essa finalidade eacute conduzir a uma vida feliz e autaacuterquica E isso estaacute afinado com
os limites que a phyacutesis coloca diante do homem Diferentemente dos deuses somos mortais e
sob essa condiccedilatildeo precisamos pensar a vida e estabelecer um saber para realizaacute-la da melhor
forma possiacutevel Trata-se de considerar a existecircncia em sua imanecircncia e na sua urgecircncia posto
que ldquoa morte natildeo significa outra vida mas uma eternidade de natildeo-vidardquo (CONCHE 1997 p
41)97 Nesse sentido o saber que cabe cultivar eacute aquele que serve para ajudar a viver nossa
mortalidade ldquoNoacutes podemos morrer antes mesmo de saber a estereometria Daiacute a hostilidade
de Epicuro agrave Paideacuteiardquo (CONCHE idem)
Ressalte-se que o termo Paideacuteia deve ser entendido no sentido especiacutefico de
conhecimento relativo agrave cultura liberal como aqueles que os sofistas evidenciaram como
importantes para a educaccedilatildeo do homem (filologia astronomia retoacuterica muacutesica geometria
aritmeacutetica) Esses saberes para Epicuro natildeo satildeo fundamentais pois ldquoa cultura liberal natildeo
pode ser de nenhuma utilidade dado que se trata de acumular conhecimentos particulares e
natildeo de se apoiar sobre os saberes particulares para se elevar mais alto () de fundar sua vida
sobre o pensamento uacutenico e necessaacuteriordquo (CONCHE idem) Nessa perspectiva entendemos a
ponderaccedilatildeo epicurista
97 CONCHE Marcel Eacutepicure Lettres et Maximes Paris Eacuteditions de Meacutegare 1977
51 O estudo da natureza (physiologiacutea) prepara natildeo os jactanciosos nem os fazedores de expressotildees nem os exibidores de educaccedilatildeo muito valorizada junto agrave maioria mas os aacutegeis e autaacuterquicos e que pensam grande sobre os seus proacuteprios bens e natildeo sobre os bens das coisas (SV 45) 98
Esses bens o saacutebio deve buscar pois estatildeo relacionados agrave sauacutede ao bem-estar agrave
liberdade agrave imperturbabilidade agrave alegria Satildeo eles que conduzem a uma vida realizada Daiacute a
importacircncia de uma educaccedilatildeo que faccedila conhecer ao homem esses limites sob os quais ele
deve pensar sua existecircncia A gloacuteria a riqueza o poder a erudiccedilatildeo nada isso contribui para
deixar a alma em equiliacutebrio Ao contraacuterio adoecem-na e com ela todo o athroiacutesma Se para a
maioria a vida cheia de luxos remete para um ideal a ser buscado para Epicuro isso eacute
justamente o que se deve evitar pois escapa aos limites da phyacutesis Isso fica evidenciado
quando ele afirma que ldquoa riqueza proveniente da natureza eacute limitada e viaacutevel e das opiniotildees
vazias cai no inabordaacutevelrdquo (SV 8 ndash MC 15)99 Assim ldquoo sophoacutes conhece os valores autecircnticos
da vida diante das falsificaccedilotildees e enganos da sociedade captou o sabor do verdadeiro e de
acordo com os bens conforme a natureza (tagrave katagrave phyacutesin) sabe dirigir seu comportamento
sereno e livre ateacute a felicidaderdquo (GUAL 1985 p 218)
A oposiccedilatildeo agrave Paideacuteia se daacute portanto porque se vecirc nela um repertoacuterio de
conhecimentos que satildeo inuacuteteis para a felicidade do homem Ao contraacuterio o enreda em uma
teia de valores que o distancia de uma vida feliz Daiacute porque Epicuro apenas admite a cultura
sob a perspectiva de resultado de um ldquoprogresso material e como uma conquista civilizadorardquo
(GUAL 1985 p 60) Satildeo saberes culturais mas natildeo satildeo de uso praacutetico e imediato para a
consecuccedilatildeo de uma vida saacutebia Tanto que Epicuro aconselha a Piacutetocles ldquoalccedila tua vela amigo
e foge de toda cultura (paideiacutean) seja ela qual forrdquo (DL X 6 e Us fr 163)100 Se o faz eacute
porque percebe que na poacutelis a poliacutetica a religiatildeo e a cultura espelham um entendimento
acerca da realidade da finalidade da existecircncia humana que eacute incompatiacutevel com o projeto de
uma vontade esclarecida e de um pensamento que busca inteligir da natureza os limites
necessaacuterios para pensar um paradigma para a realizaccedilatildeo do homem Por isso
Francamente eu por minha parte gostaria muito mais servindo-me de um physiologoacutes profetizar as coisas que trazem proveito a todos os homens
98 Οὐ κομποὺς οὐδὲ φωνῆς ἐργαστικοὺς οὐδὲ τὴν περιμάχητον παρὰ τοῖς πολλοῖς παιδείαν ἐνδει-κνυμένους φυσιολογία παρασκευάζει ἀλλὰ σοβαροὺς καὶ αὐτάρκεις καὶ ἐπὶ τοῖς ἰδίοις ἀγαθοῖς οὐκ ἐπὶ τοῖς τῶν πραγμάτων μέγα φρονοῦντες 99 Ὁ τῆς φύσεως πλοῦτος καὶ ὥρισται καὶ εὐπόριστός ἐστιν ὁ δὲ τῶν κενῶν δοξῶν εἰς ἄπειρον ἐκπίπτει 100 Παιδείαν δὲ πᾶσαν μακάριε φεῦγε τἀκάτιον ἀράμενος
52 mesmo que ningueacutem vaacute me compreender do que me colocando de acordo com as opiniotildees desfrutar do elogio rude que proveacutem da maioria (SV 29)101
Distanciar-se da Paideacuteia desses saberes valorizados pela maioria deve ser entendido
como um movimento de negaccedilatildeo dos valores cristalizados e convencionados pela cultura que
falseiam os limites a partir dos quais se devem pensar o campo da realizaccedilatildeo humana Jaacute a
perspectiva epicurista eacute de elaborar uma filosofia como um saber para a vida (teacutechnen tinaacute
periacute ton biacuteon) cuja finalidade eacute ldquoassegurar a paz de espiacuterito e a convicccedilatildeo firmerdquo (DL X
85)102 ensejando ldquoa conquista de uma vida felizrdquo (DL X 84)103 Daiacute porque a compreensatildeo a
respeito dos limites da phyacutesis tem sua importacircncia na medida em que permite ao saacutebio
identificar e se desviar das opiniotildees ou concepccedilotildees que remetem para uma imposiccedilatildeo de
valores e de um modo de vida apartados de uma medida natural Considerar esses limites eacute
fundamental para que o homem pense e estabeleccedila a partir da phyacutesis um modo saacutebio de agir
122 A repleccedilatildeo dos desejos
O projeto eacutetico de Epicuro se fundamenta em um modo de vida orientado para a
satisfaccedilatildeo dos prazeres104 mas para isso eacute preciso que o homem goze da liberdade necessaacuteria
para fazer as escolhas e as recusas essenciais para direcionar sua vida para essa finalidade Por
isso o percurso traccedilado ateacute aqui tem buscado mostrar a physiologiacutea como um exerciacutecio de
investigaccedilatildeo da natureza que ao tentar explicar os modos de ser da natureza e as forccedilas que
nela operam pretende esclarecer a respeito dos limites e das possibilidades do agir humano
Isso diz respeito a por um lado fazer entender a diferenccedila entre o que acontece por
necessidade (anaacutenke) e o que depende de cada um (paacuterrsquohemaacutes) e por outro estabelecer uma
compreensatildeo da phyacutesis como limite onde deve se circunscrever toda possibilidade de
entendimento da realidade Nesse sentido se estabelece um trabalho de afastamento de
crenccedilas que destituem o homem do papel de protagonista de seu proacuteprio destino seja porque
o pensam submisso a um fatalismo natural ou aos caprichos de divindades Aleacutem disso outras
formas impositivas de vontades se datildeo pela religiatildeo pela cultura e pela doacutexa Todas podendo
exogenamente definir um modo de viver em funccedilatildeo das finalidades pretendidas
101 Παρρησίᾳ γὰρ ἔγωγε χρώμενος φυσιολογῶν χρησμῳδεῖν τὰ συμφέροντα πᾶσιν ἀνθρώποις μᾶλλον ἂν βουλοίμην κἂν μηδεὶς μέλλῃ συνήσειν ἢ συγκατατιθέμενος ταῖς δόξαις καρποῦσθαι τὸν πυκνὸν παραπίπτοντα παρὰ τῶν πολλῶν ἔπαινον 102 ἀταραξίαν καὶ πίστιν βέβαιον 103 μακάριον βίον συντεινόντων 104 No item 123 deste capiacutetulo nos deteremos nesse aspecto
53 Eacute diante desse quadro que Epicuro vai dar um tratamento especiacutefico agrave questatildeo dos
desejos (epithymiacuteai) Pois por meio deles tambeacutem pode ocorrer uma tirania sobre o homem
E isso impede qualquer projeto de realizaccedilatildeo de vida saacutebia afinal um dos pressupostos para
isso eacute ser capaz de definir por si mesmo sua conduta seu modo de agir Quem natildeo tem o
domiacutenio sobre si proacuteprio sobre as proacuteprias vontades sucumbe agrave desmedida adoece o corpo e
desequilibra a alma
Sobre isso Platatildeo jaacute dizia que a alma do homem eacute tiranizada pelo desejo105 de coisas
pensadas como importantes mas que efetivamente natildeo satildeo necessaacuterias Na poacutelis isso remete
agrave gloacuteria agrave fama agrave ambiccedilatildeo de ser grande tal qual Alexandre Como decorrecircncia tem-se um
apetite sem limites capaz de cativar o homem fazendo-o escravo de seu querer sendo
governado pelo asseacutedio das proacuteprias vontades A mercecirc de inclinaccedilotildees desmesuradas perde-
se a medida para o agir Assim Soacutecrates se refere a esse tipo
() o homem que governa mal seu iacutentimo aquele que agora mesmo julgaste ser o mais desgraccedilado o homem tiracircnico quando natildeo vive como um particular mas eacute forccedilado por qualquer acaso a ser tirano e sendo incapaz de se dominar a si mesmo tenta mandar nos outros como se uma pessoa doente e deacutebil em vez de estar em casa fosse forccedilada a passar a vida a competir em forccedila fiacutesica (Platatildeo A Repuacuteblica IX 579c -579d)106
O conflito se daacute na proacutepria alma quando a parte desiderativa e irasciacutevel se sobrepotildee agrave
racional Daiacute a necessidade de estabelecer uma medida um limite para se opor a esse estado
de desequiliacutebrio que encontra nas opiniotildees vazias (kenaigrave doacutexai) um estiacutemulo para pensar a
liberdade como condiccedilatildeo para poder tudo Mas para fazer frente a isso eacute preciso se opor aos
valores da doacutexa Portanto o conhecimento acerca da natureza vai ser fundamental pois
permite pensar limites para os desejos Esse saber vai instrumentalizar o saacutebio para que ele
possa se contrapor a toda opiniatildeo que projeta a proacutepria realizaccedilatildeo naquilo que eacute inalcanccedilaacutevel
ou traz perturbaccedilotildees e dor Assim os desejos devem considerar a finalidade da phyacutesis e visar
o que conduz agrave ataraxiacutea Em decorrecircncia o eacutethos vai ser concebido tendo em vista um
referencial ao qual o homem recorra para saber que prazer escolher e qual recusar E isso vai
resultar em um estilo de vida frugal dado que o modo proacuteprio de ser da natureza natildeo se daacute em
um regime de desmesura Afinal ldquouma dieta simples proporciona um prazer anaacutelogo ao de
105 ldquo() o homem se torna rigorosamente um tirano quando por natureza ou por haacutebito ou pelos dois motivos se torna eacutebrio apaixonado e louco () Depois disso haveraacute festas orgias festins concubinas e todos os gozos dessa espeacutecie naqueles em cujo peito o tirano Eros habita governando toda sua almardquo (PLATAtildeO A Repuacuteblica 573 c d) Ediccedilatildeo referida na nota 106 106 PLATAtildeO A Repuacuteblica Lisboa Fundaccedilatildeo Caloustre Gulbenkian 1993 Traduccedilatildeo Maria Helena da Rocha Pereira
54 uma mesa suntuosa desde que se elimine a dor causada pela vontaderdquo (DL X 130)107
Eacute sob a perspectiva de frugalidade de simplicidade que a sabedoria vai ser delineada
O prazer buscado eacute aquele mais uacutetil para uma vida feliz e isso estaacute relacionado com os limites
estabelecidos a partir da proacutepria phyacutesis Uma vida katagrave phyacutesin implica na premecircncia de limitar
os desejos aos que natildeo desequilibram nem a alma nem o corpo Ao pensar suas necessidades
tendo em vista satisfazer apenas os desejos que concorrem para o seu bem-estar o saacutebio passa
a ouvir mais o corpo e menos as opiniotildees vazias Afinal ldquoinsaciaacutevel natildeo eacute o estocircmago como
a maior parte das pessoas dizem mas a opiniatildeo falsa sobre o ilimitado enchimento do
estocircmagordquo (SV 59)108 Portanto o saacutebio sabe desejar em funccedilatildeo do que aprendeu sobre a
natureza e natildeo considerando o que os muitos professam E isso o leva a fazer um exerciacutecio de
distinccedilatildeo e separaccedilatildeo (diaiacuteresis) para rejeitar os desejos que adoecem e desequilibram em
prol dos que estatildeo de acordo com a natureza
Daiacute Epicuro ter diferenciado os desejos entre aqueles que satildeo naturais e necessaacuterios
os naturais e desnecessaacuterios e os nem naturais e nem necessaacuterios Dos naturais ldquoalguns satildeo
necessaacuterios agrave felicidade outros agrave tranquilidade sem perturbaccedilatildeo do corpo e outros agrave proacutepria
vidardquo (DL X 127)109
Os desejos naturais e necessaacuterios (physikaiacute anankaiai) satildeo aqueles que afastam o
sofrimento cessam a dor ldquocomo beber quando temos sederdquo (DL X 29) Eles estatildeo
relacionados agrave manutenccedilatildeo da vida ao equiliacutebrio orgacircnico agrave proteccedilatildeo e ao bem-estar do
corpo Sem satisfazecirc-los sucede-se um estado de dor de desarmonia que pode ocasionar
adoecimento e morte A Sentenccedila Vaticana 33 reforccedila esse sentido ao explicar que ldquoa voz da
carne eacute natildeo ter fome natildeo ter sede e natildeo ter frio pois quem tem essas coisas e espera haver de
tecirc-las lutaria pela felicidade ateacute com Zeusrdquo110
Desejos naturais e necessaacuterios podem ser compreendidos como referecircncia a uma vida
simples e frugal E isso estaacute relacionado a um modo autaacuterkes e sereno de viver Eacute nessa
perspectiva que entendemos o comentaacuterio de Porfiacuterio ldquomelhor vale para ti estar sem
perturbaccedilatildeo dormindo sobre um pallet do que estar agitado dispondo de uma cama de ouro e
de uma mesa suntuosardquo111 Contudo Epicuro natildeo estaacute postulando uma vida de privaccedilotildees nem
107 ὅτι τε λιτοὶ χυλοὶ ἴσην πολυτελεῖ διαίτῃ τὴν ἡδονὴν ἐπιφέ ρουσιν ὅταν ἅπαν τὸ ἀλγοῦν κατrsquo ἔνδειαν ἐξαιρεθῇ 108 Ἄπληστον οὐ γαστήρ ὥσπερ οἱ πολλοί φασιν ἀλλrsquo ἡ δόξα ψευδὴς ὑπὲρ τοῦ ltτῆςgt γαστρὸς ἀορίστου πληρώματος 109 αἱ μὲν πρὸς εὐδαιμονίαν εἰσὶν ἀναγκαῖαι αἱ δὲ πρὸς τὴν τοῦ σώματος ἀοχλησίαν αἱ δὲ πρὸς αὐτὸ τὸ ζῆν 110 Σαρκὸς φωνὴ τὸ μὴ πεινῆν τὸ μὴ διψῆν τὸ μὴ ῥιγοῦνmiddot ταῦτα γὰρ ἔχων τις καὶ ἐλπίζων ἕξειν κἂν ltΔιὶgt ὑπὲρ εὐδαιμονίας μαχέσαιτο 111 PORPHYRE Lettre agrave Marcella 29 Apud SOLOVINE Maurice Eacutepicure Doutrines et Maximes Paris Hermann 1965 p 152
55 um regresso a formas primitivas de viver nem exorta a pobreza Sua mensagem eacute para viver
feliz natildeo precisamos de muito pois ldquonada eacute suficiente para quem o suficiente eacute poucordquo (SV
68)112 Daiacute ele se referir ao saacutebio dizendo ldquoseraacute previdente quanto ao seu patrimocircnio e ao
futurordquo (DL X 120) Ou seja eacute preciso dispor do que permita viver com tranquilidade
podendo gozar de uma condiccedilatildeo de bem-estar
Essa compreensatildeo permite estabelecer uma relaccedilatildeo entre physikaiacute anankaiai e
autaacuterkeia O saacutebio ao compreender o que de fato se constitui como necessidade - e para isso
basta ouvir a proacutepria natureza - e ao perceber os desejos estimulados pela doacutexa que relaciona
a obtenccedilatildeo de bens agrave felicidade exercita o discernimento para se orientar em direccedilatildeo ao que
vai realizar o sentido de sua existecircncia Quanto menos necessidade se tem mais se estabelece
um modo de viver autaacuterkes (e vice-versa) posto natildeo se depender da obtenccedilatildeo de bens vatildeos
para realizar uma vida feliz Entatildeo ldquoo saacutebio depois de julgar as coisas em funccedilatildeo da
necessidade sabe mais dar em partilha do que tomar em partilha Tatildeo grande tesouro da
autarquia ele encontrourdquo (SV 44)113
Os desejos naturais e natildeo necessaacuterios satildeo compreendidos como aqueles que se natildeo
satisfeitos natildeo causam dor ou outra forma de sofrimento natildeo afetam o equiliacutebrio vital do
organismo Como afirma a Maacutexima Capital 26 ldquodos desejos todos os que natildeo levam a uma
sensaccedilatildeo de sofrimento se natildeo satildeo satisfeitos natildeo satildeo necessaacuterios mas envolvem um anseio
facilmente dissipaacutevel quando o objeto eacute difiacutecil de obter ou se tendem a prejudicarrdquo (DL X
148)114 Nesse conjunto podemos por exemplo pensar os apetites sexuais ou por pratos
elaborados ou os desejos luacutedicos
Basta lembrar que para Epicuro patildeo e aacutegua jaacute eram suficientes para ele natildeo se
lamentar da vida mas - sempre que podia - um pedaccedilo de queijo servia-lhe como banquete115
Da mesma forma divertir-se com os amigos e dar vazatildeo agrave lubricidade do corpo tambeacutem satildeo
concebidos como naturais pois estatildeo em acordo com a natureza - visto que conduzem ao
equiliacutebrio agrave harmonia ao prazer Contudo a pergunta que conveacutem fazer eacute esses desejos que
satildeo naturais mas natildeo satildeo necessaacuterios (pois se satisfeitos apenas adicionam mais prazer agrave
vida sem que sua subtraccedilatildeo possa gerar dor) devem ser realizados Para pensar sobre isso
112 Οὐδὲν ἱκανὸν ᾧ ὀλίγον τὸ ἱκανόν 113 Ὁ σοφὸς εἰς τὰ ἀναγκαῖα συγκριθεὶς μᾶλλον ἐπίσταται μεταδιδόναι ἢ μεταλαμβάνεινmiddot τηλικοῦτον αὐταρκείας εὗρε θησαυρόν 114 Τῶν ἐπιθυμιῶν ὅσαι μὴ ἐπrsquo ἀλγοῦν ἐπανάγουσιν ἐὰν μὴ συμπληρωθῶσιν οὐκ εἰσὶν ἀναγκαῖαι ἀλλrsquo εὐδιάχυτον τὴν ὄρεξιν ἔχουσιν ὅταν δυσπορίστων ἢ βλάβης ἀπεργαστικαὶ δόξωσιν εἶναι 115 DL X 11 ldquoO proacuteprio Epicuro diz em suas cartas que se contentava apenas com aacutegua e um simples patildeo E diz lsquomanda-me um pequeno pote de queijo para que eu possa banquetear-me quanto tiver vontadersquo rdquo
56 vamos considerar que
O haacutebito de alimentar-se com simplicidade e natildeo suntuosamente natildeo soacute garante a boa sauacutede e faz com que o homem enfrente sem hesitaccedilatildeo as inevitaacuteveis necessidades da vida mais ainda o predispotildee melhor a apreciar as mesas suntuosas que se lhe oferecem agraves vezes e o torna destemeroso diante da sorte (DL X 131)116
Como vemos Epicuro deixa claro que para suprir as nossas necessidades precisamos
de pouco e eacute a isso que o saacutebio deve se ater primordialmente A sorte (tyacuteche) que tanto pode
por exemplo trazer a chuva que vai multiplicar o plantio ou impor a estiagem que miacutengua o
campo natildeo lhe traraacute perturbaccedilatildeo pois ldquoser ou natildeo ser rico lhe eacute indiferenterdquo (DL X 120)
Entatildeo o que eacute natural e necessaacuterio basta ao saacutebio para viver satisfeito Ele natildeo precisa
procurar acrescentar mais prazer agrave vida Mas se quiser dar vazatildeo aos desejos que satildeo naturais
mas natildeo satildeo necessaacuterios deve considerar o ensinamento da Maacutexima Capital 8 onde ele
afirma ldquonenhum prazer eacute um mal por si mesmo poreacutem aquilo que produz alguns prazeres
traz perturbaccedilotildees muitas vezes maiores que os proacuteprios prazeresrdquo (DL X 141)117 Isso nos
remete para a necessidade de uma ponderaccedilatildeo de fazer um caacutelculo O saacutebio deve se perguntar
o que adveacutem com a realizaccedilatildeo de tal desejo Se a resposta contrastar com o sentido de
harmonia de equiliacutebrio e de serenidade inteligido por meio do estudo da natureza entatildeo isso
deve ser evitado Em fazendo isso o sophoacutes estaacute se guiando pela phroacutenesis que nesse sentido
pode ser compreendida como o exerciacutecio praacutetico da sabedoria ou uma capacidade de
discernimento E eacute essa atividade permanente de refletir a respeito dos proacuteprios desejos de
ponderar sobre o que adveacutem com a satisfaccedilatildeo deles e relacionar isso com o estabelecimento
de um modo de viver de acordo com a natureza que vai caracterizar o modo de viver do saacutebio
e nos permitir entender como se efetiva a pragmateiacutea epicurista por meio da meditaccedilatildeo e da
praacutexis como veremos nos capiacutetulos II e III
Agora com relaccedilatildeo aos desejos que natildeo satildeo nem naturais e nem necessaacuterios podemos
tambeacutem nos referir a eles como desejos vatildeos Isso porque se fundamentam naquilo que as
opiniotildees vazias (kenaigrave doacutexai) pensam a respeito do que pode proporcionar felicidade e em que
medida isso se daacute Daiacute se tem um problema pois sem a natureza como medida incorre-se no
erro de buscar o inalcanccedilaacutevel Tal aspecto fica melhor explicitado na Maacutexima Capital 15
onde se diz ldquoa riqueza conforme a natureza eacute limitada e faacutecil de obter a requerida pelas
116 τὸ συνεθίζειν οὖν ἐν ταῖς ἁπλαῖς καὶ οὐ πολυτελέσι διαίταις καὶ ὑγιείας ἐστὶ συμπληρωτικὸν καὶ πρὸς τὰς ἀναγκαίας τοῦ βίου χρήσεις ἄοκνον ποιεῖ τὸν ἄνθρωπον καὶ τοῖς πολυτελέσιν ἐκ διαλειμμάτων προσερχομένοις κρεῖττον ἡμᾶς διατίθησι καὶ πρὸς τὴν τύχην ἀφόβους παρασκευάζει 117 Οὐδεμία ἡδονὴ καθrsquo ἑαυτὴν κακόνmiddot ἀλλὰ τὰ τινῶν ἡδονῶν ποιητικὰ πολλαπλασίους ἐπιφέρει τὰς ὀχλήσεις τῶν ἡδονῶν
57 opiniotildees vatildes estende-se ao infinitordquo (DL X 144)118 Assim se o tamanho do estocircmago pode
ser pensado como um limite natural para o quanto se pode comer indicando um niacutevel de
saciedade qual a medida para a riqueza a gloacuteria as honrarias a imortalidade e outros tantos
desejos consagrados pela opiniatildeo dos muitos da poacutelis Dessa forma um modo saacutebio de viver
soacute pode ser estabelecido tendo a natureza como referecircncia E isso se opotildee ao estilo de vida
postulado pelas kenaigrave doacutexai para quem o ter fundamenta uma falsa ideia sobre o que
proporciona a felicidade
Vemos que o aspecto distintivo estaacute (novamente) na questatildeo do limite Se podemos
desejar tanto o bem conforme a natureza quanto aquele conforme a opiniatildeo o primeiro eacute
alcanccedilaacutevel pois ldquoo bem da natureza eacute limitado porque ele existe O outro escapardquo
(BOLLACK 1975 p 293) O problema estaacute em desejar bens que se estendem ao infinito ndash
caracteriacutestica do que eacute natildeo-natural resultando numa busca sem fim e portanto em adotar
para a vida uma finalidade irrealizaacutevel ldquoOs desejos vazios natildeo satildeo vazios nem de objeto nem
de prazer eles satildeo vazios da felicidade que se pensa erradamente usufruirrdquo (HELMER
2013 p 19) Eis porque o saacutebio orienta-se para observar e suprir os desejos dentro dos limites
das necessidades de seu bem-estar
Viver de acordo com a natureza que vai ser condiccedilatildeo para realizaccedilatildeo de uma vida
feliz pressupotildee a observacircncia aos limites da phyacutesis em seus dois aspectos O primeiro tratado
no item 111 diz respeito aos seus contornos imanentes Isso implica em natildeo pensar para
aleacutem do mundo sensiacutevel o campo da realizaccedilatildeo humana As coisas acontecem ou por
necessidade ou por acaso ou dependem de noacutes O saacutebio se percebe como ser da natureza e
como tal define dentro do que pode o homem um modo autaacuterkes de viver Essa
compreensatildeo permite fundamentar uma relaccedilatildeo de confianccedila (piacutestis) com a natureza O
sophoacutes quanto mais aprende sobre a phyacutesis mais confia na possibilidade de realizaccedilatildeo de
uma vida feliz
O segundo aspecto diz respeito agrave necessidade de regulaccedilatildeo dos desejos o que tambeacutem
remete para um uso praacutetico da filosofia por meio de um exerciacutecio de examinar as proacuteprias
vontades Isso tem em vista a necessidade de os desejos espelharem no modo de viver um
estado equilibrado correspondente agravequele que verificamos na natureza e tomado como um
modelo de realizaccedilatildeo Daiacute porque ldquopara todos os desejos eacute preciso colocar esta questatildeo o que
me adviraacute se realizar o que estaacute sendo buscado segundo o meu desejo e o que se natildeo se
118 Ὁ τῆς φύσεως πλοῦτος καὶ ὥρισται καὶ εὐπόριστός ἐστιν ὁ δὲ τῶν κενῶν δοξῶν εἰς ἄπειρον ἐκπίπτει
58 realizarrdquo (SV 71)119 Ou seja a sabedoria vai ser relacionada a uma atividade de caacutelculo e
moderaccedilatildeo E aiacute fica evidenciado o papel da phroacutenesis que orientada pelo conhecimento da
phyacutesis e pela experiecircncia conduz toda escolha e toda rejeiccedilatildeo em funccedilatildeo de fazer o saacutebio
experimentar em sua vida a ausecircncia de dor e a autaacuterkeia
123 Tograve teacutelos tecircs phyacuteseos
Na Carta a Meneceu eacute dito ldquo() e chamamos o prazer de princiacutepio e fim da vida
felizrdquo (DL X 128)120 Ao relacionar o prazer (hedoneacute) com archeacute e teacutelos Epicuro postula se
tratar do nosso bem maior assim sendo eacute em funccedilatildeo de experimentaacute-lo que o saacutebio vai
definir seu modo de viver de acordo com a natureza Eacute princiacutepio porque estaacute na origem de
nossos instintos eacute finalidade porque eacute para onde se inclina nossa natureza
Epicuro ldquoaduz o fato de os seres vivos imediatamente apoacutes o nascimento estarem
contentes com o prazer (hedoneacute) enquanto rebelam-se contra a dor por disposiccedilatildeo natural
sem a intervenccedilatildeo da razatildeordquo (DL X 137)121 O prazer eacute o que realiza o homem ser da
natureza e diz respeito a uma condiccedilatildeo de equiliacutebrio vital de sauacutede Hedoneacute vai ser um
indicativo de boa realizaccedilatildeo se a dor ou o desequiliacutebrio remetem para um modo de viver
afastado da natureza o prazer indica um eacutethos katagrave phyacutesin
Ao tratar dos prazeres Epicuro faz uma distinccedilatildeo entre os cineacuteticos (hedonegrave kinetikeacute)
e os catastemaacuteticos (hedonegrave katastematikeacute) Os primeiros remetem a uma condiccedilatildeo de
movimento para atividades que visam a repleccedilatildeo do que eacute necessaacuterio agrave harmonia e bem-estar
Assim o prazer de beber e de se alimentar vai ser tatildeo fundamental quanto aquele que proveacutem
da amizade Eacute compreendido como um prazer positivo pois evoca consigo uma accedilatildeo que
resulta em hedoneacute
Catastemaacuteticos se referem aos prazeres em repouso Implicam na definiccedilatildeo de hedoneacute
como ausecircncia de dor e de perturbaccedilatildeo Dizem respeito ao ldquoestado de equiliacutebrio do organismo
em todas as suas partesrdquo (CONCHE 1977 p 71) Eacute o que no corpo se percebe como aponiacutea e
na alma como ataraxiacutea Alguns inteacuterpretes122 da doutrina epicurista pensam isso como um
119 Πρὸς πάσας τὰς ἐπιθυμίας προσακτέον τὸ ἐπερώτημα τοῦτοmiddot τί μοι γενήσεται ἂν τελεσθῇ τὸ κατὰ ἐπιθυμίαν ἐπιζητούμενον καὶ τί ἐὰν μὴ τελεσθῇ 120 Καὶ διὰ τοῦτο τὴν ἡδονὴν ἀρχὴν καὶ τέλος λέγομεν εἶναι τοῦ μακαρίως ζῆν 121 ἀποδείξει δὲ χρῆται τοῦ τέλος εἶναι τὴν ἡδονὴν τῶι τὰ ζῶια ἅμα τῶι γεννηθῆναι τῆι μὲν εὐαρεστεῖσθαι τῶι δὲ πόνωι προσκρούειν φυσικῶς καὶ χωρὶς λόγου Temos aiacute uma convergecircncia com a visatildeo cirenaica para quem ldquotodos os seres animados aspiram ao prazer e repelem a dorrdquo (DL II 87) 122 Markus Silva Acerca de uma Eacutetica do Agradaacutevel Natal EDUFRN 2005 Esse artigo cita a tendecircncia de alguns estudiosos para pensar o prazer catastemaacutetico sob a oacuteptica de um ldquocaraacuteter negativo do prazerrdquo
59 ldquoprazer negativordquo pois natildeo resulta de uma accedilatildeo mas reflete um estado em que as
perturbaccedilotildees natildeo afetam o corpo
Assim podemos entrever como infundadas as acusaccedilotildees de que o epicurismo pensa o
prazer nos mesmos termos dos dissolutos como seus detratores quiseram fazer crer Epiteto
se refere a Epicuro como ldquopregador de obscenidadesrdquo (DL X 6) Timon fala dele como ldquoo
mais porco e mais catildeordquo (DL X 3) Provavelmente ao se relacionar por desconhecimento ou
para denegrir a concepccedilatildeo de prazer epicurista com a busca desbragada para realizar o prazer
tout court colocando o homem no mesmo patamar dos animais a filosofia do Jardim foi vista
como uma doutrina escandalosa Mas na Carta a Meneceu Epicuro explica
Quando dizemos que o prazer eacute a realizaccedilatildeo suprema da felicidade natildeo pretendemos relacionaacute-lo com a voluptuosidade dos dissolutos e com gozos sensuais como querem algumas pessoas por ignoracircncia preconceito ou maacute compreensatildeo por prazer entendemos a ausecircncia de sofrimento no corpo e a ausecircncia de perturbaccedilatildeo na alma (DL X 131)123
Desse modo a concepccedilatildeo de hedoneacute para os epicuristas implica em caracteriacutesticas que
a diferencia daquelas de outras escolas como a dos cirenaicos Dioacutegenes Laeacutercio124 fornece os
elementos para estabelecer uma comparaccedilatildeo entre o que foi pensado por Epicuro (livro X) e o
que foi defendido por Aristipo de Cirene (livro II) Em siacutentese essa discordacircncia compreende
dois pontos baacutesicos
Jaacute falamos que Epicuro concebe um prazer em movimento e outro em repouso Para
ele ldquoa tranquilidade perfeita e a ausecircncia completa de sofrimento satildeo prazeres estaacuteticos a
alegria e o deleite satildeo prazeres em movimento enquanto vistos em sua atividaderdquo (DL X
136) Em contrapartida os cirenaicos defendem apenas a existecircncia dos prazeres cineacuteticos
(DL II 89) Eles entendem que tanto a dor quanto o prazer satildeo movimentos sendo esse
suave e aquele brusco (DL II 86) Mas Aristipo natildeo concebe que a ausecircncia de dor possa
ser pensada como um estado de prazer (DL II 89) A aponiacutea e a ataraxiacutea natildeo se
constituiriam como estados prazerosos pois natildeo implicam em movimento mas em um estado
neutro Aleacutem disso o prazer eacute o fiacutesico que eacute o fim supremo (DL II 87) Para a escola de
Cirene ldquosoacute no corpo haacute o prazer e eacute a uacutenica finalidaderdquo (BOLLACK 1975 p 150) Poreacutem
para Epicuro tanto o sarkoacutes quanto a psycheacute satildeo afetados pelo prazer O gozo do corpo eacute
sentido pela alma tanto quanto a imperturbabilidade da alma tem seu reflexo no organismo
123 Ὅταν οὖν λέγωμεν ἡδονὴν τέλος ὑπάρχειν οὐ τὰς τῶν ἀσώτων ἡδονὰς καὶ τὰς ἐν ἀπολαύσει κειμένας λέγομεν ὥς τινες ἀγνοοῦντες καὶ οὐχ ὁμολογοῦντες ἢ κακῶς ἐκδεχόμενοι νομίζουσιν ἀλλὰ τὸ μήτε ἀλγεῖν κατὰ σῶμα μήτε ταράττεσθαι κατὰ ψυχήνmiddot 124 Vidas e Doutrinas dos Filoacutesofos Ilustres Op Cit
60 (athroiacutesma)
Outro aspecto de divergecircncia entre essas duas escolas estaacute ligado ao peso que cada
prazer tem na construccedilatildeo de uma vida feliz Em Aristipo os prazeres satildeo todos iguais (DL II
87) todos devem ser buscados e nisto consiste a virtude Do mesmo modo de toda dor se
deve fugir Mas para Epicuro nem todo prazer deve ser desejado assim como nem toda dor
deve ser evitada Tal seria o caso por exemplo de atividades fiacutesicas que no momento de sua
execuccedilatildeo podem trazer desconfortos mas que vatildeo servir para a manutenccedilatildeo da sauacutede e bem-
estar do corpo Tambeacutem podemos considerar que seja por desconhecimento a respeito das
coisas da natureza ou por engano (hamathiacutea) a busca por certos prazeres pode levar a
experimentar o indesejado Afinal ldquonenhum prazer eacute um mal por si mesmo poreacutem aquilo que
produz alguns prazeres traz perturbaccedilotildees muitas vezes maiores que os proacuteprios prazeresrdquo (MC
8)125 Isso ocorre quando o homem se deixa guiar pela opiniatildeo vazia pelos valores
convencionados que se projetam em ambiccedilotildees e desejos desmedidos Nesse caminho ele se
distancia do gozo da tranquilidade Isso porque o prazer pensado sem criteacuterios e distanciado
de sua finalidade - que eacute a de proporcionar uma vida feliz - submete o homem a uma tirania
dos desejos Para esse homem natildeo basta se saciar com o essencial para um estado de
harmonia eacute preciso ter mais e de acordo com a opiniatildeo dos muitos Como resultado tem-se
um modo de vida atribulado e infeliz E isso vai de encontro agrave noccedilatildeo de hedoneacute postulada por
Epicuro
Desse modo o prazer natildeo eacute desejaacutevel por si mesmo como defendem os cirenaicos
(DL II 90) mas na medida em que ele proporciona o equiliacutebrio para o corpo e para a alma
Da mesma forma agrave dor cabe uma reflexatildeo quanto agrave possibilidade de ela trazer algum
beneficio para a sauacutede do homem Afinal a filosofia epicurista se apresenta como uma
therapeiacutea entatildeo eacute preciso direcionar toda escolha (aiacuterisis) e toda recusa (phygeacute) para esse
estado saudaacutevel E eacute aiacute que se percebe o papel da phroacutenesis e do logismoacutes na regulaccedilatildeo dos
desejos e na escolha dos prazeres a serem buscados Eacute por meio desses mecanismos operados
pela psycheacute que o saacutebio vai poder escolher em funccedilatildeo do seu proacuteprio bem-estar
No que diz respeito agrave finalidade uma diferenciaccedilatildeo eacute necessaacuteria de ser destacada
Quando Epicuro postula que o bem a ser alcanccedilado eacute o prazer ele o faz se contrapondo agrave ideia
de que eacute na busca da felicidade (eudaimoniacutea) que encontramos o sentido de nossa existecircncia
Se ldquoa eudaimoniacutea supotildee uma soma de prazeres (prazeres presentes passados e a esperanccedila de
125 Οὐκ ἐπαύξεται ἐν τῆι σαρκὶ ἡ ἡδονὴ ἐπειδὰν ἅπαξ τὸ κατ ἔνδειαν ἀλγοῦν ἐξαιρεθῆι ἀλλὰ μόνον ποικίλλεται τῆς δὲ διανοίας τὸ πέρας τὸ κατὰ τὴν ἡδονὴν ἀπεγέννησεν ἥ τε τούτων αὐτῶν ἐκλόγισις καὶ τῶν ὁμογενῶν τούτοις ὅσα τοὺς μεγίστους φόβους παρεσκεύαζε τῆι διανοίαι
61 realizaacute-los no futuro)rdquo (SILVA 2017 97)126 a noccedilatildeo de hedoneacute por outro lado implica em
uma atividade que traz consigo o seu fim O prazer de beber aacutegua quando se estaacute com sede
vem junto com o ato de beber aacutegua Nesse sentido o que se tem na vida eacute um descontiacutenuo
onde aos momentos de prazer podem se suceder momentos de dor Mas conveacutem notar que
quando Epicuro se refere ao prazer natildeo estaacute limitando o significado desse termo ao gozo
sexual prazeroso eacute tudo o que se relaciona com nosso equiliacutebrio vital expresso na ausecircncia
de dores fiacutesicas (aponiacutea) e de atribulaccedilotildees da psycheacute
O escopo da filosofia epicurista como se pode ver eacute a realizaccedilatildeo do prazer Hedoneacute eacute
o bem buscado o teacutelos ou a finalidade natural para a qual converge a pragmateiacutea do saacutebio
Por isso ele deve submeter suas accedilotildees ao ldquoobjetivo da naturezardquo (tograve teacutelos tecircs phyacuteseos)127 Daiacute
a necessidade de refletir intensamente sobre ldquoa finalidade da naturezardquo (tograve tecircs phyacuteseos
epilelogismeacutenou teacutelos)128 para poder estabelecer um modo de viver de acordo com o
conhecimento que se pode ter sobre a phyacutesis
Ocorre que pensar a finalidade da natureza dotando essa expressatildeo de um valor
teleoloacutegico e dentro do contexto de uma filosofia que procura derrogar qualquer sentido
providencial sugere uma contradiccedilatildeo que precisa ser explicada A physiologiacutea ao tratar dos
modos de ser da natureza e das forccedilas que operam para a realizaccedilatildeo desses modos natildeo alude a
nenhum desiacutegnio ou preacute-disposiccedilatildeo anterior ou fora da phyacutesis atuando no vir-a-ser e no
deixar-de-ser daquilo que compotildee a realidade ldquoA natureza seja a natureza considerada como
um todo ou a natureza proacutepria a cada coisa particular eacute fundamentalmente sem finalidade
porque ela natildeo eacute orientada em seu desenvolvimento por nenhum programa preexistente agrave sua
existecircnciardquo (MOREL 2009 p 168) Entatildeo como entender o sentido emergido da articulaccedilatildeo
das noccedilotildees de teacutelos e phyacutesis sem pensar em ldquoorientaccedilatildeo lsquoteleoloacutegicarsquo (idem p 169)
Epicuro se refere a um bem segundo a natureza (tograve tecircs phyacuteseos agathoacuten)129 agrave riqueza
segundo a natureza (ho tecircs phyacuteseos ploucirctos)130agrave justiccedila segundo a natureza (tograve tecircs phyacuteseos
dikaioacuten)131 Todas essas formas podem sugerir haver no epicurismo uma menccedilatildeo a uma
prescriccedilatildeo da natureza para o homem como condiccedilatildeo para realizaccedilatildeo dele E isso pode induzir
a se tentar ver na phyacutesis uma intenccedilatildeo nos seus modos de ser
Para tentar esclarecer esse aspecto evocamos a tese segundo a qual Epicuro quando 126 SILVA Markus O Hedonismo na Obra Vidas e Doutrinas dos Filoacutesofos Ilustres de Dioacutegenes Laeacutercio Os Cirenaicos e Epicuro Rio de Janeiro Phoicircnix 2017 127 Maacutexima Capital 25 τὸ τέλος τῆς φύσεως 128 DL X 133 τὸ τῆς φύσεως ἐπιλελογισμένου τέλος 129 Maacutexima Capital 7 τὸ τῆς φύσεως ἀγαθόν 130 Maacutexima Capital 15 Ὁ τῆς φύσεως πλοῦτος 131 Maacutexima Capital 31 Τὸ τῆς φύσεως δίκαιόν
62 faz referecircncia ao termo teacutelos o faz tendo em vista uma acepccedilatildeo mais restrita de seu
significado Ao se referir agrave finalidade da natureza ele estaacute se remetendo ao ldquolimite fixado pela
natureza fiacutesica em noacutes como fora de noacutesrdquo (MOREL 2009 p 171) Isso estaacute relacionado com
a possibilidade que temos para perceber esses limites por meio das sensaccedilotildees de prazer e dor
Assim pensar a vida de acordo com a natureza ou considerar o fim da natureza diz respeito a
conhecer os limites naturais e estabelecer um modo de viver de acordo com eles A vida katagrave
phyacutesin natildeo eacute uma ordenaccedilatildeo da natureza Natildeo haacute uma ldquoorientaccedilatildeordquo natural nesse sentido No
epicurismo a physiologiacutea permite inteligir da natureza um saber que a coloca como modelo e
medida para a realizaccedilatildeo do homem Mas cabe a ele estabelecer um eacutethos dentro dessa
medida Nesse sentido viver de acordo com a natureza consiste em estabelecer um
espelhamento desse modelo trazendo esses limites para guiar a maneira de viver
Encontramos essa perspectiva expressa em duas metaacuteforas poeacuteticas Uma delas eacute
apresentada no poema de Lucreacutecio no livro II de Da Natureza
Eacute bom quando os ventos revolvem a superfiacutecie do grande mar ver da terra os rudes trabalhos por que estatildeo passando os outros natildeo porque haja qualquer prazer na desgraccedila de algueacutem mas porque eacute bom presenciar os males que natildeo se sofrem () Mas nada haacute de mais agradaacutevel do que ocupar os altos e serenos lugares fortificados pelas doutrinas dos saacutebios donde se podem ver os mais errar por um lado e procurar ao acaso o caminho da vida () (Lucr II)132
Da terra firme o poeta olha para o mar furioso e sente a calma por estar ali ao abrigo
dos ventos e das ondas Eacute essa tranquilidade que eacute identificada agrave finalidade da natureza E a
filosofia ao conduzir o pensamento para inteligir da phyacutesis os bens que devem ser buscados e
a medida para a realizaccedilatildeo de cada coisa mostra sua utilidade para a consecuccedilatildeo de uma vida
feliz (makariacuteos zecircn) Eacute nessa mesma palheta que outra analogia eacute desenhada por Epicuro
quando usa o termo galenismoacutes133 para se referir agrave serenidade que a alma do sophoacutes deve
experimentar A palavra evoca a imagem de um mar que de tatildeo calmo quase natildeo tem
ondulaccedilotildees Eacute essa serenidade que traduz o que busca o saacutebio ao viver de acordo com ou
conforme as finalidades da natureza Nesse sentido os limites vatildeo ser colocados como uma
defesa contra armadilhas da imaginaccedilatildeo e a repleccedilatildeo vai ser o limite contra a paixatildeo
desmedida
132 LUCREacuteCIO Da Natureza Satildeo Paulo Abril Cultural 1985 (Os Pensadores) Traduccedilatildeo de Agostinho da Silva p 110 133 DL X 83 πρὸς γαληνισμὸν ποιοῦνται
63 13 A finalidade do saber
Um olhar histoacuterico sobre a produccedilatildeo do pensamento filosoacutefico nos mostra diferentes
modos de tentar compreender a origem das coisas e de si mesmo Nos poemas de Homero134 e
de Hesiacuteodo135 percebemos a tendecircncia a se valer do miacutetico do maacutegico-religioso para pensar o
homem o cosmos e as forccedilas que nele operam ldquoEacute pela voz dos poetas que o mundo dos
deuses em sua distacircncia e sua estranheza eacute apresentado aos humanos em narrativas que
potildeem em cena as potecircncias do aleacutem revestindo-as de uma forma familiar acessiacutevel agrave
inteligecircnciardquo (VERNANT 2009 p 15)136 Mas por volta do seacuteculo VI aC Tales de
Mileto137 iniciou outra tradiccedilatildeo no jeito de explicar a realidade Deixando de lado o divino-
fantaacutestico a alusatildeo ao miacutetico ele postulou que o princiacutepio de tudo era a aacutegua num sinal de
que as explicaccedilotildees para os fenocircmenos da natureza podiam ser buscadas nela mesma
Os epicuristas satildeo tributaacuterios dessa tradiccedilatildeo iniciada por Tales e continuada por outros
filoacutesofos naturalistas138 No Jardim busca-se compreender a phyacutesis pelo que ela mostra de si
proacutepria sem necessidade de recorrer a nenhuma natureza exterior a ela mesma de evocar
mitos nem valer-se da crenccedila no sobrenatural Para tanto a multiplicidade das coisas e dos
fenocircmenos eacute explicada a partir de princiacutepios inteligiacuteveis existentes ontologicamente e
inscritos na phyacutesis aacutetomo e vazio Dessa forma a natureza eacute pensada tendo como referecircncia o
sensiacutevel o imanente e portanto pertence ao campo do que eacute conheciacutevel (gnostoacutes)139 Cabe ao
homem a partir das impressotildees que a realidade-phyacutesis lhe coloca diante dos sentidos fazer o
desvelamento dela ateacute onde ele eacute capaz
Estabelecer um saber acerca da natureza fundamentado no que ela apresenta aos
nossos sentidos eacute uma perspectiva que evoca opiniotildees divergentes Diante do questionamento
a respeito de ateacute que ponto eacute possiacutevel estabelecer uma verdade ancorada na natureza sensiacutevel
encontramos respostas que vatildeo de encontro a esse entendimento Tal eacute o caso de Xenoacutefanes
que afirmava ldquohomem nenhum conhece a certeza e homem nenhum jamais a conheceraacuterdquo
(DL IX 72) Demoacutecrito dizia ldquode fato nada sabemos pois a verdade estaacute num abismordquo (DL
134 A tradiccedilatildeo atribui a Homero (teria vivido por volta do seacuteculo VIII aC) a autoria de Iliacuteada e Odisseia Esses poemas satildeo considerados como determinantes para a formaccedilatildeo do homem grego Nessas obras os mitos eram utilizados para explicar e justificar as coisas do homem do mundo e dos deuses 135 Hesiacuteodo (poeta grego do fim do seacuteculo VIII - iniacutecio seacutec VII ac) na Teogonia faz uma genealogia dos deuses e procura explicar o ordenamento do mundo a partir de um estado inicial de caos Em certo sentido ele anuncia um trabalho de reflexatildeo sobre o cosmos que seraacute desenvolvido por outros preacute-Socraacuteticos 136 VERNANT Jean-Pierre Mito e Religiatildeo na Greacutecia Antiga Satildeo Paulo Martins Fontes 2009 137 Tales de Mileto (fim do seacutec VII ndash primeira metade do seacutec VI aC) 138 Nessa linha temos Anaximandro Anaxiacutemenes Heraacuteclito Leucipo Demoacutecrito 139 DL X 68 Γνωστός
64 IX 72) E Empeacutedocles explicava que ldquoos homens natildeo sabem perceber essas coisas nem com
os olhos nem com os ouvidos e nem com a menterdquo (DL IX 73)
Por traacutes dessas afirmaccedilotildees podemos entrever seja uma postura ceacutetica quanto agrave
possibilidade de obter um conhecimento verdadeiro seja a descrenccedila no testemunho dos
sentidos E isso remete para uma discussatildeo parmeniacutedica em que se faz uma contraposiccedilatildeo
entre a verdade (aleacutetheia) e a opiniatildeo (doacutexa) A questatildeo eacute de saber se o que se percebe pela
via dos sentidos pode ser pensado como um conhecimento verdadeiro ou trata-se tatildeo somente
de opiniatildeo Ou como podemos alcanccedilar a verdade sobre a natureza
Ora o conhecimento definido como a possibilidade de se estabelecer ldquoa verdaderdquo
acerca da realidade natildeo eacute o que postula Epicuro ldquoEle procura natildeo a explicaccedilatildeo mas uma
explicaccedilatildeo dos diversos fenocircmenos naturaisrdquo (SALEM 1982 p 18) Trata-se de constituir
um saber que sirva para fundamentar um modo saacutebio de viver Em vista disso o escopo da
physiologiacutea eacute ldquoo entendimento da natureza das coisas fundamentaisrdquo (DL X 45)140 e isso
implica em explicar a phyacutesis dentro de sua imanecircncia Nesse sentido ldquoo mito deve ser
excluiacutedo e seraacute excluiacutedo se nos apegarmos corretamente aos fenocircmenos e a partir destes
procedermos por induccedilatildeo agrave interpretaccedilatildeo das coisas que natildeo caem no acircmbito dos sentidosrdquo
(DL X 104)141 Com isso postula-se que a investigaccedilatildeo da phyacutesis estaacute ligada agrave necessidade
do saacutebio estabelecer um loacutegos sobre a natureza sem ter que recorrer a explicaccedilotildees que
transcendam os limites dela E isso segue no sentido de uma tendecircncia de laicizaccedilatildeo142 do
conhecimento que vai caracterizar a passagem do seacuteculo V para o seacuteculo IV aC Se no
poema de Parmecircnides143 o poeta eacute levado num carro pelas ldquofilhas do Solrdquo ateacute o encontro da
deusa144 que vai lhe revelar a verdade acerca do ser em Epicuro busca-se aprender por meio
de um exerciacutecio de investigaccedilatildeo da natureza o que pode conduzir a um estado de destemor
com relaccedilatildeo ao desconhecido Daiacute a necessidade do loacutegos se distanciar do myacutethos e se
fundamentar na sensibilidade (aiacutesthesis)
Vale destacar que no movimento do pensamento buscar um saber sobre a realidade o
saacutebio caminha pela via do loacutegos mas ele se daacute conta de que nem tudo se revela totalmente ao
140 ὑποβάλλει ltταῖς περὶgt τῆς τῶν ὄντων φύσεως ἐπινοίαις 141 μόνον ὁ μῦθος ἀπέστωmiddot ἀπέσται δέ ἐάν τις καλῶς τοῖς φαινομένοις ἀκολουθῶν περὶ τῶν ἀφανῶν σημειῶται 142 Sobre essa transformaccedilatildeo Marcel Detienne trata por meio da relaccedilatildeo antiteacutetica entre a ldquopalavra maacutegico-religiosardquo e a ldquopalavra-diaacutelogordquo em especial no capiacutetulo V onde discute ldquoO processo de Laicizaccedilatildeordquo DETIENNE Marcel Os Mestres da Verdade na Greacutecia Arcaica Rio de Janeiro Zahar 2003 143 Parmecircnides de Eleia (cerca de 515 - 460 aC) Seu poema Sobre a natureza foi conservado pela tradiccedilatildeo por meio de fragmentos 144 ldquoPercebemos agora que o jovem eacute o lsquohomem sabedorrsquo e que a intenccedilatildeo de sua demanda eacute buscar o saber que soacute os deuses podem proporcionar aos mortaisrdquo destaca Joseacute Trindade Santos em seus comentaacuterios a PARMEcircNIDES Da Natureza Satildeo Paulo Loyola 2013 p 54
65 pensamento racional Eacute preciso ldquoter em vista quais as coisas que o homem pode discernir e
quais as que natildeo poderdquo (DL X 94)145 Isso considera tanto as limitaccedilotildees do entendimento
quanto as da comunicaccedilatildeo Afinal nem tudo que incita a intuiccedilatildeo eacute possiacutevel colocar em
termos de uma linguagem clara objetiva Esse niacutevel da phyacutesis - fugidio agraves palavras - Epicuro
busca traduzir no num loacutegos fundamentado no sensiacutevel Ao considerar que o inteligiacutevel eacute da
ordem do imanente pode-se tratar dele por meio de comparaccedilotildees metaacuteforas analogias
similitude com o aquilo que compotildee nosso campo de experiecircncias
Assim embora os sentidos natildeo alcancem o inteligiacutevel eacute possiacutevel estabelecer um loacutegos
a respeito dele Quando se pensa na poeira refletida contra a luz pode-se falar por
semelhanccedila a essa imagem dos aacutetomos e de como eles podem se comportar no interior dos
corpos O saber edificado a partir da sensibilidade eacute dessa forma ponto de partida para toda
analogia feita em direccedilatildeo ao microcosmo ou ao macrocosmo Nosso modo de conceber o
mundo se daacute portanto a partir de uma relaccedilatildeo sensiacutevel com ele Para Epicuro esse eacute o uacutenico
recurso que o homem tem para pensar a natureza imperceptiacutevel (aacutedelos)
Nesse sentido natildeo haacute a finalidade de dogmatizar a compreensatildeo da natureza no
epicurismo mas de fazer entender a possibilidade de pensar o mundo a partir de sua
naturalidade sem necessidade de recorrer ao mito Afinal ldquoem nenhum caso deve adotar-se
para uma explicaccedilatildeo desse gecircnero a natureza divina ao contraacuterio cumpre-nos conservaacute-la
livre de qualquer tarefa e em perfeita bem-aventuranccedilardquo (DL X 97)146 A finalidade do saber
que decorre da physiologiacutea estaacute ligada agrave necessidade de afastar a crenccedila em causas
sobrenaturais intervindo na natureza E para isso Epicuro estabelece um meacutetodo de
investigaccedilatildeo que tanto pode estabelecer explicaccedilotildees para problemas fiacutesicos por meio da
admissatildeo de causa uacutenica (a natureza da alma eacute corpoacuterea por exemplo) como pode tratar dos
fenocircmenos celestes por meio de causas muacuteltiplas (o surgir e o pocircr-do-sol se devem ao
ldquoacendimento e apagamentordquo mas tambeacutem podem ocorrer ldquopor apariccedilatildeo sobre a terra e
novamente por ocultaccedilatildeordquo147) Em qualquer caso as explicaccedilotildees devem remeter aos
fenocircmenos sensiacuteveis
Disso eacute preciso reter que natildeo havendo condiccedilotildees de esclarecer todos os fenocircmenos
que acontecem na natureza procede-se com esse meacutetodo com aqueles que podem ser
explicados enquanto aguarda-se a possibilidade de elucidar o modo de ser dos outros Isso
145 τεθεωρηκὼς τί δυνατὸν ἀνθρώπῳ θεωρῆσαι καὶ τί ἀδύνατον καὶ διὰ τοῦτο ἀδύνατα θεωρεῖν ἐπιθυμῶν 146 ἔνια καὶ παρrsquo ἡμῖν τῶν τυχόντων γίνεται λαμβανέσθωmiddot καὶ ἡ θεία φύσις πρὸς ταῦτα μηδαμῇ προσαγέσθω ἀλλrsquo ἀλειτούργητος διατηρείσθω καὶ ἐν τῇ πάσῃ μακαριότητι 147 DL X 92 γίνεσθαι δυνατὸν καὶ κατὰ σβέσιν ou por ἐκφάνειάν τε ὑπὲρ γῆς καὶ πάλιν ἐπιπρόσθησιν
66 porque ldquoa razatildeo desenvolve escrupulosamente o que recebe da natureza e faz descobertas em
alguns campos mais velozmente e em outros mais lentamente e em algumas ocasiotildees e
eacutepocas faz progressos maiores e em outras faz progressos menoresrdquo (DL X 75)148 Ou seja
mesmo que em dado momento natildeo seja possiacutevel elucidar certo aspecto ou acontecimento da
natureza isso natildeo significa dizer que natildeo haja uma explicaccedilatildeo para tal O saber eacute um processo
de construccedilatildeo de elaboraccedilatildeo de um loacutegos que pode ainda natildeo estar suficientemente
desenvolvido para definir uma seacuterie de coisas que jaacute inquietam a alma do sophoacutes mas que
ainda natildeo ganharam forma explicativa Ademais Epicuro tambeacutem natildeo estaacute tentando explicar
tudo mas apontando para a possibilidade de entender a natureza sem recorrer aos deuses E
isso estaacute de acordo com o aspecto utilitaacuterio de sua filosofia que consiste em livrar o homem
de irracionalidades e de opiniotildees vazias (DL X 87) condiccedilatildeo para ele viver sem
perturbaccedilotildees Eacute em torno dessa finalidade que Epicuro vai dar agrave questatildeo do conhecimento
uma dimensatildeo praacutetica como veremos a seguir
131 O conhecimento (gnoacutesis)
A noccedilatildeo de conhecimento no epicurismo estaacute ligada agrave necessidade de apresentar uma
orientaccedilatildeo para levar o saacutebio a vivenciar a autaacuterkeia e experimentar uma vida feliz (makariacuteos
zecircn) Em delineando o saacutebio como aquele que estabelece um eacutethos de acordo com a
compreensatildeo que tem da natureza Epicuro vai pensar a physiologiacutea como uma investigaccedilatildeo
que direciona o sentido do conhecer a natureza para estabelecer o modo de viver do saacutebio
Essa perspectiva contrasta com aquela percebida no Mito da Caverna descrito por
Platatildeo149 Aliacute um dos homens que vivia aprisionado consegue sair e descobrir o que lhe
parece ser o mundo real Ele volta para compartilhar sua descoberta com aqueles que ficaram
na caverna Mas o conhecimento trazido por ele causa estranheza e desconfianccedila aos outros Eacute
como se eles vissem uma distacircncia entre o que aquele homem apresentava como verdade e as
necessidades que eles percebiam em suas vidas
Jaacute no epicurismo o conhecimento estaacute diretamente vinculado agrave utilidade que ele tem
para a vida (biacuteos)150 ou seja para auxiliar o homem em seu exerciacutecio cotidiano de existir O
148
τὸν δὲ λογισμὸν τὰ ὑπὸ ταύτης παρεγγυηθέντα ὕστερον ἐπακριβοῦν καὶ προσεξευρίσκειν ἐν μέν τισι θᾶττον ἐν δέ τισι βραδύτερον καὶ ἐν μέν τισι περιόδοις καὶ χρόνοις [ἀπὸ τῶν ἀπὸ τοῦ ἀπείρου] ltκατὰ μείζους ἐπιδόσειςgt ἐν δέ τισι κατrsquo ἐλάττους 149 PLATAtildeO A Repuacuteblica 514a-517c 150 Para se referir agrave vida Epicuro usa dois termos ζην e βίος Considerando os estudos filoloacutegicos de Bollack ζην se reporta ao ldquoprocesso de existecircncia bioloacutegicardquo enquanto βίος exprime a noccedilatildeo de uma realizaccedilatildeo humana
67 saber que resulta da physiologiacutea deve servir para que na impossibilidade de se alcanccedilar a
verdade se possa ter uma opiniatildeo verdadeira (doacutexa aletheacutes) a respeito da phyacutesis e com isso
poder agir conforme a finalidade da natureza (teacutelos tecircs phyacuteseos)
Entretanto esse aspecto da filosofia epicurista tem sido mal compreendido por aqueles
que a analisam buscando nela uma ciecircncia um sistema teoacuterico uma verdade comprovaacutevel E
isso eacute desconsiderar que a physiologiacutea tem como escopo permitir a construccedilatildeo de um
entendimento sobre a phyacutesis relacionado com o proceder do homem no dia a dia eacute a partir do
saber que ela engendra que o saacutebio vai exercitar sua pragmateiacutea (como trataremos nos
capiacutetulos II III e IV) Ela natildeo pretende apresentar provas fazer demonstraccedilatildeo (apoacutedeixis)151
constituir-se como uma epistemologia mas expor mostrar (epiacutedeixis)152 a possibilidade de
pensar a natureza a partir do que ela revela aos nossos sentidos sem recorrer ao teoloacutegico
nem se tutelar por opiniotildees vazias (kenaigrave doacutexai)
O conhecimento dos fenocircmenos do ceacuteu natildeo tem outro fim que a ataraxiacutea Ora para alcanccedilar a ataraxiacutea natildeo eacute necessaacuterio saber positivamente de que maneira esses fenocircmenos se produzem basta saber negativamente de que maneira eles natildeo se produzem (pela intervenccedilatildeo dos deuses) (CONCHE 1977 p 38)
Nesse sentido cabe mais falar de conhecimento como gnose (gnoacutesis) e eacute esse o termo
que Epicuro usa na Carta a Heroacutedoto153 na Carta a Meneceu154 e na sentenccedila vaticana 27
Trata-se de um saber decorrente de um exerciacutecio de pensar a proacutepria vida e a natureza na qual
aquela se situa tendo como referecircncia aquilo que eacute fenomecircnico fiacutesico Em outros termos a
gnoacutesis epicurista tem como princiacutepio e fim a experiecircncia de viver Ela eacute elaborada a partir das
impressotildees que adquirimos da realidade sensiacutevel e ldquonatildeo tem outra finalidade aleacutem de
assegurar a paz de espiacuterito e a convicccedilatildeo firmerdquo (DL X 85)155
A necessidade de ancorar esse discurso (loacutegos) de verdade em evidencias
cosmoloacutegicas fisioloacutegicas e antropoloacutegicas eacute o que vai auferir agrave gnose uma condiccedilatildeo
diferente daqueles mitos e das opiniotildees vazias Por essa razatildeo a lsquomostraccedilatildeorsquo (epiacutedeixis) estaacute
sempre atrelada ao mundo sensiacutevel Eacute visando esse mostrar que o pensamento vai operar por
que se estabelece ao se considerar o devir do tempo Para que a vida seja feliz (μακαρίως ζῆν) e isso seja sentido organicamente eacute preciso que a vida (βίος) seja organizada direcionada para estar de acordo com a natureza (κατὰ φύσιν) (BOLLACK 1975 p 521) 151 Para expor o sentido de ἀπόδειξις Anatole Bailly Op Cit fala de accedilatildeo de fazer ver expor demonstrar apresentar prova 152 Anatole Bailly Op Cit trata o termo ἐπίδειξις no sentido de exibiccedilatildeo de tornar notoacuterio de declamaccedilatildeo de ldquomostraccedilatildeordquo 153 DL X 78 79 85 154 DL X 123 124 155 οὖν μὴ ἄλλο τι τέλος () νομίζειν ltδεῖgt εἶναι ἤπερ ἀταραξίαν καὶ πίστιν βέβαιον
68 meio de analogias (analogiacuteai) para estabelecer uma reflexatildeo a respeito daquilo a que natildeo se
tem acesso direto pelos sentidos Isso acontece quando se estabelece uma comparaccedilatildeo entre
aquilo que compotildee nossas impressotildees sensiacuteveis (proleacutepseis) e o que escapa aos nossos
sentidos mas eacute phyacutesis Dessa forma eacute possiacutevel estabelecer um loacutegos acerca do que se
inscreve no niacutevel macrocoacutesmico ou microcoacutesmico da realidade Ao tratar disso Epicuro
tambeacutem se refere agraves projeccedilotildees imaginaacuterias do pensamento (phantastikegraves epiboleacutes tecircs
dianoiacuteas)156 como uma maneira de falar do que eacute inteligiacutevel recorrendo a uma imagem
explicativa originada da natureza sensiacutevel Em outras palavras parte-se do acervo das
proacutelepseis para projetar um loacutegos acerca do que natildeo eacute percebido pelos sentidos Eacute o que se daacute
quando se busca ter uma ldquovisatildeo de conjuntordquo (athroacuteas epiboleacutes)157 da natureza Se natildeo posso
alcanccedilar a totalidade do que existe posso contudo projetar o pensamento de maneira a
permitir metafisicamente um conceito de totalidade e pensar a realidade como todo
ilimitado Desse modo o pensamento daacute um lsquosaltorsquo para falar do que eacute desconhecido (aacutedelos)
Tudo isso estaacute relacionado ao logismoacutes que pode ser definido158 como uma
capacidade da psycheacute para calcular raciocinar para fazer uma operaccedilatildeo racional Eacute por meio
dessa atividade (que permite fazer analogias e projeccedilotildees) que mesmo sem poder ver o
universo infinito nem sentir o aacutetomo em sua minuacutescula existecircncia o homem pode tentar
entender essas dimensotildees da realidade Dessa forma busca-se estabelecer uma reflexatildeo
metafiacutesica mas fundamentada na imanecircncia uma vez que eacute a partir do referencial sensiacutevel
constitutivo do acervo de memoacuteria do homem que o pensamento vai poder se projetar tanto
para o macrocosmos quanto para o niacutevel micro da realidade Assim o loacutegos resulta dessa
possibilidade do pensamento racional e imaginativo Embora ele natildeo seja capaz de estabelecer
a verdade (aleacutetheia) ele pode por meio das proleacutepseis interpretar a realidade constituindo
uma orthegrave doacutexa
Estamos com isso dizendo que o conhecimento origina-se na realidade sensiacutevel
conforme Epicuro trata na Carta a Heroacutedoto O entendimento desse processo gnoseoloacutegico
passa pela compreensatildeo de que o iniacutecio do conhecer estaacute no corpo que eacute quem percebe o
mundo Isso se daacute quando nossas vias de percepccedilatildeo (tato visatildeo audiccedilatildeo olfato paladar)
recebem ou captam do objeto da realidade suas imagens (eiacutedola)159 Eacute desse encontro que se
gera uma afecccedilatildeo (paacutethos) que pode ser entendida como um contato estabelecido entre o
156 DL X 147 φανταστικὴν ἐπιβολὴν τῆς διανοίας 157 DL X 35 ἀθρόας ἐπιβολῆς 158 Markus Silva Termos Filosoacuteficos de Epicuro Op Cit 159 Satildeo emanaccedilotildees que chegam aos nossos oacutergatildeos sensoriais sob variadas formas emanaccedilotildees imageacuteticas olfativas sonoras
69 corpo senciente e o corpo sensiacutevel seja diretamente ou por meio de suas eiacutedola ldquoEacute pela
penetraccedilatildeo em noacutes de qualquer coisa vinda de fora que vemos as figuras das coisas e fazemos
delas objeto de nosso pensamentordquo (DL X 49) Em outros termos tudo que se conhece pelos
oacutergatildeos sensiacuteveis se daacute por afecccedilatildeo Noacutes somos tocados pelo cheiro pela imagem pelo som
satildeo aacutetomos que chegam ateacute noacutes Essa afecccedilatildeo gera no homem a sensaccedilatildeo (aiacutesthesis) que eacute
para Epicuro a base de todo conhecimento Satildeo as sensaccedilotildees que seratildeo gravadas em nossa
memoacuteria (mneacuteme) e vatildeo constituir na psycheacute uma imagerie do mundo o repertoacuterio de
impressotildees sensiacuteveis ou preacute-noccedilotildees (proleacutepseis) de nossa alma Eacute a partir dessas impressotildees
que o pensamento faz as projeccedilotildees imaginaacuterias do pensamento (phantastikegraves epibolegraves tecircs
dianoiacuteas) e pode estabelecer um loacutegos a respeito tanto do niacutevel macro quanto do microfiacutesico
132 Criteacuterios de verdade
Uma vez que ldquoa representaccedilatildeo que recebemos com a impressatildeo direta da mente ou nos
oacutergatildeos sensoriais seja da forma seja das outras propriedades eacute a mesma forma do corpo
soacutelido tal qual resulta da coesatildeo iacutentima da imagem ou de seus vestiacutegios restantesrdquo (DL X
50)160 o erro natildeo estaacute na sensaccedilatildeo mas pode decorrer das afirmaccedilotildees estabelecidas sobre ela
Em outros termos a realidade sensiacutevel natildeo eacute subjetividade eacute fenocircmeno real e como tal eacute
percebida pelo homem Eacute por haver essa relaccedilatildeo direta objetiva entre a imagem (eiacutedola)
percebida e o objeto do qual ela emana que Epicuro reconhece a autenticidade desse saber
Desse modo eacute a opiniatildeo que deve ser considerada como uma suposiccedilatildeo que pode ou natildeo ter
valor de verdade Daiacute ser necessaacuterio considerar a veracidade ou a falsidade dessas afirmaccedilotildees
e para isso
() devemos compatibilizar todas as nossas investigaccedilotildees com nossas sensaccedilotildees e particularmente com as apreensotildees imediatas sejam elas da mente ou de qualquer outro instrumento de juiacutezo e compatibilizaacute-las igualmente com os sentimentos existentes em noacutes para podermos ter indicaccedilotildees que nos permitam julgar o problema da percepccedilatildeo por via dos sentidos e do que eacute imperceptiacutevel aos sentidos (DL X 38)161
Essa passagem nos remete para pensar que se a sensaccedilatildeo eacute verdade mas o que se diz
sobre ela pode natildeo ser entatildeo eacute preciso estabelecer um criteacuterio de distinccedilatildeo entre opiniatildeo
160 καὶ ἣν ἂν λάβωμεν φαντασίαν ἐπιβλητικῶς τῇ διανοίᾳ ἢ τοῖς αἰσθητηρίοις εἴτε μορφῆς εἴτε συμβεβηκότων μορφή ἐστιν αὕτη τοῦ στερεμνίου γινομένη κατὰ τὸ ἑξῆς πύκνωμα ἢ ἐγκατάλειμμα τοῦ εἰδώλουmiddot 161 ἔτι τε καὶ τὰς αἰσθήσεις δεῖ πάντως τηρεῖν καὶ ἁπλῶς τὰς παρούσας ἐπιβολὰς εἴτε διανοίας εἴθrsquo ὅτου δήποτε τῶν κριτηρίων ὁμοίως δὲ καὶ τὰ ὑπάρχοντα πάθη ὅπως ἂν καὶ τὸ προσμένον καὶ τὸ ἄδηλον ἔχωμεν οἷς σημειωσόμεθα
70 verdadeira e falsa Na Carta a Heroacutedoto se explica ldquoa opiniatildeo eacute verdadeira se a evidecircncia dos
sentidos a confirma ou natildeo a contradiz eacute falsa se a evidecircncia dos sentidos natildeo a confirma ou a
contradizrdquo (DL X 34) Assim essa diferenciaccedilatildeo eacute estabelecida por Epicuro a partir de
ldquocriteacuterios da verdaderdquo (DL X 31) Tais criteacuterios se datildeo em observacircncia agraves sensaccedilotildees
(aiacutestheseos) agraves antecipaccedilotildees (proleacutepseis) e agraves projeccedilotildees imaginaacuterias do pensamento
Como apontado acima as sensaccedilotildees (aiacutestheseos) se constituem como uma via para o
conhecimento Delas se tem a evidecircncia fundamental da realidade do que experimentamos
Uma vez que os objetos da phyacutesis produzem imagens ou simulacros formados por
corpuacutesculos partiacuteculas que se desprendem dos corpos e atingem nossa percepccedilatildeo a afecccedilatildeo
sentida nos faz entender que esses objetos existem Trata-se de um indicativo de que o corpo
sente (diretamente ou por meio da captaccedilatildeo de suas eiacutedola) o outro corpo Assim ldquoa
existecircncia de corpos eacute atestada em toda parte pelos proacuteprios sentidosrdquo (DL X 39)162
As antecipaccedilotildees ou preacute-noccedilotildees quando remetem para imagens plenamente fundadas
sobre o testemunho das sensaccedilotildees podem ser entendidas como um criteacuterio de verdade Isso
pois satildeo representaccedilotildees formadas a partir da repeticcedilatildeo de sensaccedilotildees anaacutelogas entre si Ao ver
vaacuterias vezes a imagem de um navio grava-se na alma uma noccedilatildeo diretamente relacionada a
esse tipo de embarcaccedilatildeo Portanto essas imagens ao se relacionarem com objetos da
experiecircncia evidenciam a existecircncia deles
As phantastikai epibolai tecircs dianoiacuteas permitem projetar o pensamento de maneira a
poder tratar sobre que natildeo se abarca por nossos oacutergatildeos sencientes E isso poderia ser
considerado um prolongamento dos sentidos para alcanccedilar niacuteveis que eles natildeo o atingem As
reflexotildees sobre o aacutetomo e o todo (tograve pacircn) resultam dessa possibilidade Mas esse movimento
da inteligecircncia deve sempre remeter agrave memoacuteria das sensaccedilotildees Eacute nesse acervo que o
pensamento (diaacutenoia) vai buscar essas imagens para projetar e construir analogias
Com relaccedilatildeo agraves afecccedilotildees (paacutethes) elas podem ser compreendidas como indicativos de
uma conformidade ou inadequaccedilatildeo aos limites da natureza A veracidade do que eacute bom ou
mal eacute estabelecida na medida em que elas nos trazem a sensaccedilatildeo de prazer ou dor Eacute nessa
evidecircncia do sentir que as afecccedilotildees ldquonos fornecem o criteacuterio da verdade eacuteticardquo (CONCHE
1977 25) Tal aspecto vai ser fundamental para guiar o saacutebio em sua pragmateiacutea lhe
indicando o que escolher e o que evitar para alcanccedilar uma vida feliz (makariacuteos zecircn) e
autaacuterquica
Dessa forma para um loacutegos ter valor de verdade eacute preciso que ele esteja ancorado na
162 σώματα μὲν γὰρ ὡς ἔστιν αὐτὴ ἡ αἴσθησις ἐπὶ πάντων μαρτυρεῖ
71 realidade-phyacutesis ldquoEacute verdadeiro apenas aquilo que se percebe por meio dos sentidos ou se
apreende por meio da menterdquo (DL X 62)163 Ressalte-se contudo que essa apreensatildeo mental
tambeacutem deve estar coerente com a percepccedilatildeo que temos do mundo fiacutesico Epicuro com isso
visa trabalhar um discurso de verdade que se apresenta como opiniatildeo verdadeira (doacutexa
alethegraves) que difere das opiniotildees falsas (doacutexa pseudegraves) por atender a criteacuterios ancorados na
realidade imanente Natildeo se trata de um loacutegos estabelecido em cima de um pensamento
categorial mas do que poderiacuteamos entender como um pensamento fiacutesico E isso se relaciona
com a noccedilatildeo de que a verdade estaacute relacionada ao existir das coisas Como testemunha Sexto
Empiacuterico ldquoele natildeo fazia diferenccedila entre dizer que alguma coisa eacute lsquoverdadersquo (aletheacutes) e dizer
existente (hypaacuterchon)rdquo164
133 Saber teacutechne e aacuteskesis
Quando recorremos ao testemunho de Sexto Empiacuterico lemos que os epicuristas
buscavam apresentar em sua filosofia uma arte (teacutechne)165 de viver que por discurso (loacutegois)
e pensamento (dialogismoiacutes) se direciona para a felicidade da vida (ton eudaiacutemona biacuteon)
Essa perspectiva eacute sintetizada na definiccedilatildeo que Empiacuterico atribui a Epicuro para quem a
filosofia seria uma teacutechnen tinaacute periacute ton biacuteon166 ou em outros termos um saber em torno da
vida167 A mesma ideia consta nos fragmentos Us 227 e 227b168 onde eacute dito que Epicuro
definiu tal arte ou teacutecnica como um procedimento (meacutethodos) que busca ser uacutetil agrave vida
Graziano Arrighetti169 vecirc o termo teacutechne como arte perspectiva que eacute seguida por
muitos entre eles John Sellars170 que traduz a expressatildeo como ldquothe art concerned with onersquos
way of life the art of livingrdquo Outra modulaccedilatildeo de entendimento da teacutechnen tinaacute periacute ton biacuteon
poderia ser a de um saber para a vida ou em torno dela171 Em todo caso uma ideia
permanece a de uma arte ndash epicurista - de viver que aponta para a articulaccedilatildeo entre as
necessidades do homem e o direcionamento da atividade filosoacutefica
163 ἐπεὶ τό γε θεωρούμενον πᾶν ἢ κατrsquo ἐπιβολὴν λαμβανόμενον τῇ διανοίᾳ ἀληθές ἐστι 164 Sexto Empiacuterico (Adv Math VIII 9) apud CONCHE 1977 p 29 165 O termo teacutechne pode ser entendido como teacutecnica arte ou saber 166 Ver nota 02 deste capiacutetulo 167 Conforme traduz Markus Figueira Silva em Epicuro Sabedoria e Jardim Op Cit 168 Us 227b Scholiasta Dionysii Thracis BAG p 649 26 οι μεν Επικούρειοι ούτως ορίζονται την τέχνην middot τέχνη εστί μέθοδος ενεργούσα τω βίω το συμφέρον ενεργούσα δε οίον εργαζομένη 169 ARRIGHETTI Graziano Epicuro - Opere Torino Giulio Einaudi 1962 170 SELLARS John The Art of Living The Stoics on the Nature and Function of Philosophy London Bloomsbury 2009 171 Markus Silva Epicuro Sabedoria e Jardim Op Cit
72 A partir dessas referecircncias pode-se entrever que a felicidade o modo de viver e o
saber filosoacutefico satildeo temas interligados e prementes no pensamento epicurista E isso diz
respeito agrave maneira de compreender a realidade de pensar valores de fazer escolhas de
estabelecer relacionamentos de problematizar o proacuteprio sentido de existir e demais questotildees
que envolvam a realizaccedilatildeo de uma vida feliz (makariacuteos zecircn) Por meio de um saber em torno
do viver Epicuro visa inscrever no campo das discussotildees filosoacuteficas a necessidade de
apresentar um meio de conduzir o homem a experimentar a felicidade no seu dia a dia Com
isso ele se opotildee agraves concepccedilotildees que orientam a filosofia para as questotildees retoacutericas para a
erudiccedilatildeo ou para a investigaccedilatildeo do que ultrapassa o niacutevel da experiecircncia humana Em linhas
gerais podemos dizer que essa arte teacutecnica ou saber vai remeter para o desenvolvimento de
uma filosofia que considerando o campo das experiecircncias fornecidas pela vida ao homem e
os limites de sua capacidade de conhecer a natureza desenvolva nele uma sabedoria para
ajudaacute-lo - de maneira praacutetica - a se conduzir no mundo
Eacute por meio de uma relaccedilatildeo estabelecida entre a vida feliz e a teacutechne filosoacutefica que
Epicuro concebe a figura do saacutebio (sophoacutes) como sendo aquele que busca estabelecer uma
maneira de viver a partir de uma compreensatildeo da natureza (phyacutesis) procurando conferir mais
naturalidade ao seu modo de ser Afinal o sentido de equiliacutebrio e de autaacuterkeia (ter o princiacutepio
da accedilatildeo em si mesmo172) percebidos na phyacutesis eacute relacionado a um estado de bem estar de
tranquilidade de liberdade e de realizaccedilatildeo que o saacutebio busca trazer para sua proacutepria
existecircncia E isso implica em exercitar uma teacutecnica ou arte tendo em vista espelhar em sua
alma e em seu modo de viver esse estado equilibrado e autaacuterquico de ser Dessa forma o
exerciacutecio da sabedoria eacute orientado para que o entendimento sobre a natureza e sobre si proacuteprio
resulte em um modo saacutebio de agir pois quanto maior o esclarecimento sobre esses aspectos
maior a compreensatildeo daquilo que determina seus desejos e as possibilidades e limites de
realizaacute-los
A ideia daiacute decorrente eacute a de que quando o saacutebio busca exercitar o sentido de sua
realizaccedilatildeo a partir da compreensatildeo que estabelece sobre a natureza ele vai se apercebendo de
que sua vontade tanto pode ser definida a partir desse saber quanto pode ser determinada por
desejos que o levam a um estado desequilibrado e subjugado de ser natildeo sendo a expressatildeo de
uma necessidade vital ou de uma vida conforme a natureza (katagrave phyacutesin) mas de um
equivoco da opiniatildeo quanto ao sentido de existir do homem e quanto aos modos de ser da
172 Essa concepccedilatildeotraduccedilatildeo eacute defendida por Markus Figueira Silva em Epicuro Sabedoria e Jardim Op Cit Para ele o saacutebio tem em si mesmo (tograves autograves) o princiacutepio (archeacute) que determina sua accedilatildeo
73 natureza Por isso ele efetiva essa arte de viver na medida em que procura estabelecer e
vivenciar uma identificaccedilatildeo desse exerciacutecio constante de investigaccedilatildeo da phyacutesis (physiologiacutea)
com a praacutetica de um modo de vida voltado para a proacutepria felicidade Eacute dessa associaccedilatildeo que
Epicuro nos fala nesta seccedilatildeo da Carta a Heroacutedoto
() sendo tal caminho uacutetil a todos que se familiarizaram com a investigaccedilatildeo da natureza (physiologiacutea) eu que dedico incessantemente minhas energias agrave investigaccedilatildeo da natureza e desse modo de viver tiro principalmente a minha calma preparei para teu uso uma espeacutecie de epiacutetome e um sumaacuterio dos elementos fundamentais de minha doutrina em sua totalidade (DL X 37) 173
Desta citaccedilatildeo fica destacado que viver e filosofar satildeo atividades inseparaacuteveis (e a
pragmateiacutea epicurista remete justamente para essa indissociaccedilatildeo) na medida em que se
constituem como uma ocupaccedilatildeo ou disposiccedilatildeo (diaacutethesis) permanente do sophoacutes-physiologoacutes
para tentar estabelecer um eacutethos fundamentado na natureza Em outros termos eacute na
indissociabilidade com o modo de viver visado pelo saacutebio que o exerciacutecio de compreensatildeo da
phyacutesis se caracteriza como esse saber que permite pensar os limites as possibilidades ou em
que medida se daacute a realizaccedilatildeo do homem E isso estaacute relacionado agrave compreensatildeo de como eacute e
como opera a realidade circunscrevendo o pensamento os desejos e as accedilotildees agraves fronteiras do
natural a partir do que eacute percebido pela sensibilidade e estaacute contido no campo das
experiecircncias de vida do homem como destacamos anteriormente
Para melhor compreender essa concepccedilatildeo de saber como teacutechne ou conhecimento
aplicado ao modo de viver podemos fazer uso de uma imagem comum na antiguidade Eacute
aquela que relaciona a vida (βίος) essa existecircncia histoacuterica agrave imagem do mar sobre o qual
navega o homem Sem o domiacutenio de uma teacutecnica de navegaccedilatildeo ele se perde na imensidatildeo dos
oceanos mas ao conhececirc-la e aplicaacute-la ele pode se guiar pelas estrelas pelos ventos pelo vocirco
dos paacutessaros e assim chegar tranquilo ao cais Eacute essa pragmateiacutea colocada em exerciacutecio pelo
navegador ao se valer das teacutecnicas de navegaccedilatildeo que conhece fundamental para sua
seguranccedila Disso vem uma tranquilidade anaacuteloga agrave do homem que da terra firme observa -
sereno - o mar furioso fazer seus naufraacutegios como expressou o poeta e filoacutesofo epicurista
Lucreacutecio174 revalidando a compreensatildeo de que a teacutecnica instrumentaliza o homem para
vencer os desafios colocados pela natureza e tambeacutem para tornar a existecircncia mais agradaacutevel
Eacute por meio da teacutechne que ele constroi o barco forja a acircncora ergue o cais tece a rede de
173 ὅθεν δὴ πᾶσι χρησίμης οὔσης τοῖς ᾠκειωμένοις φυσιολογίᾳ τῆς τοιαύτης ὁδοῦ παρεγγυῶν τὸ συνεχὲς ἐνέργημα ἐν φυσιολογίᾳ καὶ τοιούτῳ μάλιστα ἐγγαληνίζων τῷ βίῳ ἐποίησά σοι καὶ τοιαύτην τινὰ ἐπιτομὴν καὶ στοιχείωσιν τῶν ὅλων δοξῶν 174 Essa analogia feita por Lucreacutecio em Da Natureza consta no canto II 1 e segs)
74 pesca e produz o vinho que na refeiccedilatildeo vai bem com o peixe e o patildeo tornando mais alegre o
viver
Essa relaccedilatildeo que se estabelece entre o ser humano e a natureza por meio da teacutecnica
pode ser lembrada atraveacutes do mito de Prometeu175 o titatilde que fez o homem conhecer o fogo
Ao dominar esse elemento natural ele se distancia do modo de viver dos animais e
incrementa os meios para sua sobrevivecircncia O fogo nessa narrativa pode ser pensado como
siacutembolo das artes e das teacutecnicas para as quais o homem era ignorante Lucreacutecio poeticamente
traceja esse caminho sem recorrer aos mitos mas destacando a natureza e a necessidade como
condiccedilotildees que levam o homem ao desenvolvimento da teacutechne
Depois o Sol os ensinou a cozer o alimento a amolececirc-lo com a evaporaccedilatildeo da chama porque viam muita coisa tornar-se branda com o golpe de seus raios e ser atraveacutes dos campos vencida pelo seu calor De dia para dia modificavam mais a sua alimentaccedilatildeo e a sua vida em virtude de novas descobertas e do fogo graccedilas agraves demonstraccedilotildees dos que estavam mais agrave frente pela inteligecircncia e pela forccedila da alma (Lucr IV)176
Historicamente podemos dizer que ateacute por volta do seacuteculo V aC a marca do domiacutenio
humano sobre a natureza se faz no campo das habilidades teacutecnicas ou de um tipo de sabedoria
(entendida em uma acepccedilatildeo geral do termo) caracteriacutestica do trabalho dos artesatildeos e
especialistas de ofiacutecios (JAEGER 1995 p 265ss) Dessa forma se por um lado ldquoHomero
chama sophoacutes ao carpinteirordquo nos lembra que a arte da poesia tambeacutem era designada por
Piacutendaro por sophiacutea Isso nos leva a pensar na existecircncia de diferenccedilas na natureza do saber e
por conseguinte nas possibilidades e limitaccedilotildees de sua transmissatildeo A sabedoria reivindicada
pelo poeta era algo inato estava ligada agrave proacutepria inteligecircncia de quem a fazia evocava a ideia
de uma inseparaacutevel relaccedilatildeo entre forma e pensamento Por isso explica W Jaeger177 a
teacutecnica poeacutetica natildeo poderia ser ensinada como o oficio do sapateiro do tecelatildeo do pescador
Na mesma perspectiva que procura refinar a caracterizaccedilatildeo dos saberes Platatildeo nos
apresenta no Protaacutegoras178 a concepccedilatildeo sofiacutestica de uma arte poliacutetica compreendida como
uma teacutecnica distinta daquela do artesatildeo - uma vez que natildeo se presta a fazer da natureza
instrumento de melhoria de vida mas atuar nas relaccedilotildees entre os homens em sociedade
Contudo tambeacutem difere da poesia uma vez que se trata de saber teacutecnico passiacutevel de ser
175 Segundo a narrativa miacutetica Prometeu um titatilde enganou Zeus roubando-lhe o fogo para entregaacute-lo aos homens Por isso foi castigado pelos deuses sendo acorrentado no Caacuteucaso onde uma aacuteguia ia diariamente devorar-lhe o fiacutegado 176 LUCREacuteCIO Da Natureza Satildeo Paulo Abril Cultural 1985 (Os Pensadores) Traduccedilatildeo de Agostinho da Silva p 236 177 Werner Jaeger Paideacuteia A Formaccedilatildeo do Homem Grego Satildeo Paulo Martins Fontes 1995 178 PLATAtildeO Protaacutegoras In Diaacutelogos Beleacutem UFPA 1980
75 transmitido a outrem
Essas reivindicaccedilotildees quanto agrave especificidade de algumas teacutecnicas vatildeo estimular no
decorrer do tempo um debate sobre a educaccedilatildeo no que diz respeito agrave definiccedilatildeo do que eacute
teacutechne em oposiccedilatildeo ao que eacute sophiacutea E o tom dessas discussotildees comumente se manteacutem
voltado para saber o que poderia ser ensinado e o que seria uma ldquoarterdquo natural Tal como
aparece no Protaacutegoras onde se destaca a ideia de que o trabalho dos sofistas que era ensinar
constituiacutea-se como uma teacutechne e natildeo como sophiacutea Trata-se de uma teacutecnica que transmite
outras teacutecnicas Dessa forma a retoacuterica era ensinada para instrumentalizar o homem para o
domiacutenio da teacutechne poliacutetica tida pelos sofistas como a mais importante entre as artes
O que se pode observar eacute a insurgecircncia de uma necessidade de diferenciar as teacutecnicas
ligadas aos saberes profissionais daquelas ditas mais elevadas em funccedilatildeo de ldquoum sentido de
totalidade e de universalidaderdquo (JAEGER 1995 p 350) Daiacute a tendecircncia inicial a se colocar
em lados separados ciecircncia e teacutecnica teoria e praacutetica sophiacutea e phroacutenesis
Ocorre contudo que tal necessidade de separaccedilatildeo entre esses saberes encontra uma
especificidade da liacutengua grega que tanto W Jaeger quanto M Silva179 destacam τέχνη em
grego antigo exprime um sentido geral de saber adquirido pela accedilatildeo uma maneira de lidar
com a natureza no campo praacutetico ao mesmo passo em que tambeacutem traduz um conjunto de
saberes especiacutefico envolvidos nessas teacutecnicas Ou seja embora tragam vieses praacuteticos
metodoloacutegicos e saberes de uma ldquonaturezardquo diferente o meacutedico o poeta o poliacutetico o sofista e
outros tantos personagens que faziam o desenvolvimento econocircmico cultural e poliacutetico da
Greacutecia antiga tinham suas atividades circunscritas a um mesmo termo-definiccedilatildeo embora
buscassem afirmar as especificidades e necessidade de saber especializado de cada aacuterea E
isso eacute compreensiacutevel ao considerarmos a tiacutetulo de ilustraccedilatildeo que tanto o ofiacutecio meacutedico da
eacutepoca quanto a culinaacuteria tecircm como manifestaccedilatildeo praacutetica de sua atuaccedilatildeo a alimentaccedilatildeo mas
somente o meacutedico tem o saber sobre qual dieteacutetica prescrever para o doente
A conversatildeo da educaccedilatildeo numa teacutecnica eacute um caso particular da tendecircncia geral do tempo a dividir a vida inteira numa seacuterie de compartimentos separados concebidos com vistas a uma finalidade e teoricamente fundamentados num saber adequado e transmissiacutevel Eacute sobretudo em matemaacutetica medicina ginaacutestica teoria musical arte dramaacutetica etc que noacutes encontramos especialistas e obras especializadas Ateacute os escultores como Policleto escrevem a teoria da sua arte (JAEGER 1995 p 349)
Nesse contexto Platatildeo no Goacutergias180 pensa a medicina (teacutechne he ietrikeacute)181 como
179 Markus Silva Sabedoria e Jardim Op Cit p55 180 464a ndash 469d PLATAtildeO Goacutergias Lisboa Ediccedilotildees 70 1992
76 uma teacutechne por excelecircncia Eacute do entendimento que Platatildeo tem da medicina que se define ao
mesmo tempo um conceito para a teacutecnica e um paralelo entre a atividade do meacutedico e a do
filoacutesofo dado que tal qual o meacutedico se vale do que sabe sobre a natureza do homem para
diagnosticar doenccedilas e lhe restituir a sauacutede do corpo a filosofia faz o mesmo em prol da
sauacutede da alma Essa perspectiva enceta no campo do saber filosoacutefico um sentido de
therapeiacutea182 que visa curar a psycheacute do homem Vale destacar que essa relaccedilatildeo que Platatildeo
estabelece entre a medicina e a filosofia aponta para o fato de ambas constituiacuterem seu saber a
partir do conhecimento sobre a phyacutesis para poderem a seu tempo pensar a natureza do corpo
e a da alma Eacute a partir desse afunilamento que meacutedico e filoacutesofo vatildeo poder prescrever um
receituaacuterio ou condutas para manter ou restabelecer o equiliacutebriosauacutede do homem
Outro aspecto que verificamos ao acompanharmos a evoluccedilatildeo de sentido da teacutechne ao
longo do tempo eacute a ampliaccedilatildeo do seu campo de atuaccedilatildeo Antes ela incidia sobre a natureza
(phyacutesis) e o uso utilitaacuterio que dela poderia ser feito visava a conservaccedilatildeo e a melhoria da vida
Depois passou a se projetar tambeacutem de maneira mais especifica sobre o homem tentando
direcionar sua accedilatildeo social como atraveacutes da teacutecnica poliacutetica ou buscando favorecer seu bem-
estar e equiliacutebrio orgacircnico como atraveacutes da medicina (teacutechne he ietrikeacute) Nesse caso o saber
meacutedico vai partir do conceito estabelecido de natureza do universo183 (phyacutesis tou pantoacutes) -
desenvolvido pelos filoacutesofos naturalistas jocircnicos - para pensar as naturezas dos homens (taacutes
phyacuteseis totilden anthroacutepon)184 e sobre ela estabelecer e projetar sua teacutecnica Com a teacutechne he
ietrikeacute o fim praacutetico visado eacute o estado de sauacutede do corpo e a arte meacutedica vai buscar validar
um receituaacuterio de vida voltado para o equiliacutebrio e harmonia dos constituintes orgacircnicos do
homem (estados semelhantes aos postulados pela filosofia para alma)
Esse paralelo que se estabelece e se intensifica entre a medicina e a filosofia marca o
ideaacuterio grego da antiguidade Nele se estabelece uma relaccedilatildeo entre a ignoracircncia com a doenccedila
e a sabedoria com a sauacutede E da mesma forma que a medicina tem por funccedilatildeo curar o corpo
do homem das enfermidades de maneira semelhante a filosofia deve afastar a psycheacute da
ignoracircncia Esse prisma jaacute se encontra colocado desde Demoacutecrito para quem ldquoa medicina cura
as enfermidades do corpo mas a sabedoria liberta a alma do sofrimento185rdquo Consoante essa
181 Expressatildeo ligada agrave medicina antiga 182 VOELKE A J La Philosophie Comme Theacuterapie de lrsquoAcircme Paris Cerf 1993 183 ldquoA conexatildeo entre o pensamento meacutedico das obras de Hipoacutecrates e o estudo do conjunto da natureza tem jaacute uma expressatildeo grandiosa na introduccedilatildeo ao escrito Dos Ventos Aacuteguas e Regiotildeesrdquo (JAEGER 1995 p 1006) 184 Embora a traduccedilatildeo de Gama Cury se refira agrave ldquonatureza dos homensrdquo o texto grego coloca os termos no plural τὰς φύσεις τῶν ἀνθρώπων (DL X 75) 185 O fragmento foi transmitido por Clemente e consta em Diels (H) e Kranz (W) II B 31 Nossa traduccedilatildeo baseou-se naquela encontrada em Alberto Bernabeacute Fragmentos Presocraacuteticos de Tales a Demoacutecrit Madrid
77 tradiccedilatildeo Epicuro tambeacutem vai trabalhar em seus escritos a noccedilatildeo de uma medicina para a
alma Tanto que na Carta a Meneceu logo em suas primeiras linhas ele faz um convite aos
seus contemporacircneos para que vejam na filosofia um caminho para a cura dos seus males
ldquoNenhum jovem deve demorar a filosofar e nenhum velho deve parar de filosofar pois nunca
eacute cedo demais nem tarde demais para a sauacutede da almardquo (DL X 122)186 Nesse sentido
reproduz-se no epicurismo a imagem da filosofia como uma medicina para a alma um saber
que se coloca a serviccedilo da realizaccedilatildeo de um estado de bem-estar (eustatheiacutea) aspecto
consoante a ausecircncia de distuacuterbio no corpo (aponiacutea) e de perturbaccedilatildeo na alma (ataraxiacutea)
Com isso Epicuro traccedila um paralelo entre sabedoria e a sauacutede da psycheacute ressaltando uma
relaccedilatildeo entre a teacutechne filosoacutefica e a teacutechne meacutedica Ao conceber a filosofia em torno do
preceito de que ldquoeacute preciso vir a ser em torno da cura de noacutes mesmosrdquo (SV 64)187 ele nos
remete tanto para uma indissociabilidade entre sauacutede da alma e vida feliz (makariacuteos zecircn)
quanto para a ligaccedilatildeo entre a physiologiacutea e a conduta do saacutebio Isso porque conhecimento
(gnocircsis) phyacutesis e o modo de viver (eacutethos) compotildeem no epicurismo um todo uma unidade
na medida em que constituem e se constituem como uma praacutetica filosoacutefica contiacutenua voltada
para fazer o homem conquistar um estado de equiliacutebrio a partir da adoccedilatildeo de um modo natural
de viver
Ora assim como na arte meacutedica (teacutechne he ietrikeacute) a filosofia epicurista parte de um
saber acerca da phyacutesis a physiologiacutea para pensar o modo de ser e de agir do homem visando
igualmente um estado de equiliacutebrio do corpo e da alma Nisso ele ecoa a concepccedilatildeo de
meacutedico-filoacutesofo ao mesmo passo em que reflete a tendecircncia que se verificava jaacute no seacuteculo V
aC segundo a qual as relaccedilotildees estabelecidas entre a physiologiacutea e a teacutechne he ietrikeacute se datildeo a
partir do uso de conceitos comuns Isso se explica porque o saber ligado ao desenvolvimento
da atividade meacutedica vai estimular e contribuir para a reflexatildeo filosoacutefica que busca se
distanciar das opiniotildees convencionais e explicaccedilotildees miacuteticas
Um desses conceitos partilhados diz respeito agrave sauacutede (hyguiacuteeia) que tanto na medicina
quanto na filosofia remete para um estado de equiliacutebrio de bem-estar Quando Epicuro se
refere agrave sauacutede da alma (psychegraven hyguiaiacutenon) o faz a partir de uma relaccedilatildeo desse cuidado com
a realizaccedilatildeo de uma vida feliz (makariacuteos zecircn) Assim cada um meacutedico e filoacutesofo vai propor
o phaacutermakon adequado para estabelecer ou restabelecer esse estado No Epicurismo isso se
Alianza Editorial 2008 p 288 fragmento 31 186 Μήτε νέος τις ὢν μελλέτω φιλοσοφεῖν μήτε γέρων ὑπάρχων κοπιάτω φιλοσοφῶν οὔτε γὰρ ἄωρος οὐδείς ἐστιν οὔτε πάρωρος πρὸς τὸ κατὰ ψυχὴν ὑγιαῖνον 187 () ἡμᾶς δὲ γενέσθαι περὶ τὴν ἡμῶν ἰατρείαν
78 daacute por meio de um loacutegos-terapecircutico elaborado para combater os males do corpo e as
perturbaccedilotildees da psycheacute188 Esse receituaacuterio eacute encontrado na Carta a Meneceu onde se
apresenta um tetraphaacutermakon189 voltado para a cura de quaisquer afliccedilotildees do pensamento e
consequentemente com benefiacutecios para um corpo composto (athroiacutesma) Um unguento para
a alma que se faz a partir de quatro postulados 1) Natildeo haacute o que temer quanto aos deuses 2)
Natildeo haacute nada a temer quanto agrave morte 3) Pode-se alcanccedilar a felicidade 4) Pode-se suportar a dor
Na base dessa formulaccedilatildeo190 circunscreve-se o entendimento epicurista de que o
adoecimento ou estado de desarmonia tanto da psycheacute quanto do athroiacutesma daacute-se devido agraves
opiniotildees vazias (kenaigrave doacutexai) que o homem alimenta sobre si mesmo e sobre a natureza
Fundadas no engano nos mitos nas religiotildees institucionalizadas elas vatildeo resultar em temores
que afligem e desequilibram Como o medo dos deuses (temperamentais regentes dos
destinos) como o medo da morte (que arrebata e conduz para um mundo de agonias eternas)
como o medo da dor (intensa e constante como a sentida por Prometeu em seu fiacutegado) Daiacute a
necessidade de um loacutegos capaz de neutralizar outro loacutegos como um antiacutedoto o faz em relaccedilatildeo
agrave substacircncia que envenena o organismo Para Epicuro eacute desfazendo-se desses tipos de
crenccedilas substituindo-as por um conhecimento fundamentado sobre a phyacutesis por uma opiniatildeo
verdadeira (doacutexa alethegraves) que se consegue um estado de cura que vai se manifestar na forma
de aponiacutea e de ataraxiacutea
Para fazer esse loacutegos terapecircutico fundamentado na physiologiacutea resultar em um modo
de vida orientado para o ldquovir a ser em torno da cura de noacutes mesmosrdquo (SV 64)191 Epicuro
concebe a filosofia como uma teacutechne um saber que instrumentaliza o homem para estabelecer
um cuidado sobre o proacuteprio pensar e o agir - uma artesania sobre si mesmo - em funccedilatildeo dessa
necessidade de viver em um estado de equiliacutebrio A teacutechne ao voltar-se para o autocuidado ou
para uma therapeiacutea da psycheacute tem como escopo partindo de uma physiologiacutea estabelecer
um eacutethos que permita ao homem viver um estado de imperturbabilidade de harmonia de
autossuficiecircncia podendo com isso rivalizar com a divindade vivendo ldquocomo um deus entre
188 Em Tel un Dieu Parmi les Hommes (op Cit) Jean Salem faz uma abordagem luacutecida sobre essa relaccedilatildeo contextualizando a questatildeo no mundo antigo Epicuro eacute alccedilado agrave condiccedilatildeo de meacutedico cujo desejo eacute curar a humanidade das dores do corpo e da alma 189 Esse termo eacute tomado emprestado da farmacopeia que definia um unguento agrave base de cera sebo pez e resina No contexto epicurista remete para quatro ingredientes de um discurso terapecircutico O epicurista Dioacutegenes de Œnoanda mandou gravar no seacuteculo II dC a siacutentese desse phaacutermakom em um poacutertico para que os viajantes que passassem por ali pudessem ler As palavras levariam socorro aos doentes da alma contrapondo-se agraves falsas ideias a respeito do mundo 190 Essa formulaccedilatildeo do teacutetrapharmakos epicurista eacute atribuiacuteda a Filodemo (Pap Herc 1005 col IV 9-14) 191 ἡμᾶς δὲ γενέσθαι περὶ τὴν ἡμῶν ἰατρείαν
79 os homensrdquo (DL X 135)192
A teacutechne no entendimento epicuacutereo eacute ao mesmo tempo um exerciacutecio de compreensatildeo
da realidade e uma maneira de conduzir a vida em funccedilatildeo dessa compreensatildeo Seu aspecto
teacutecnico decorre do fato de que eacute a partir de um saber physioloacutegico que se estabelece um
procedimento uma metodologia para a vida feliz o que nos remete para a praacutetica de
exerciacutecios para guiar o pensamento e a accedilatildeo em vista de realizar um eacutethos de acordo com a
phyacutesis A filosofia pensada nesses termos vai se constituir como um saber teacutecnico que natildeo tem
um fim em si mesmo natildeo delineia uma finalidade teoreacutetica mas ganha sentido na medida em
que ldquoagerdquo no homem guiando-o para o bem viver ldquoA teacutechne consiste em conhecer a natureza
do objeto destinado a servir ao Homem e portanto soacute na sua aplicaccedilatildeo praacutetica se realiza
como tal saberrdquo (JAEGER 1995 p 1028)
Mas quando falamos em exerciacutecios em praacuteticas o vocabulaacuterio grego nos legou o
termo aacuteskesis Relacionam-se a ele em nosso leacutexico tanto a palavra ascese quanto o vocaacutebulo
exerciacutecio Embora o significado original de aacuteskesis nos remeta para a ideia de treinamento de
preparaccedilatildeo dos atletas para os trabalhos destinados ao desenvolvimento e aprimoramento das
suas competecircncias fiacutesicas seus derivados ao serem transportados para o campo das praacuteticas
filosoacuteficas passam a apontar ao longo do tempo para atividades distintas entre si no que diz
respeito agrave forma e agrave finalidade
De um lado a ascese passa a se remeter agraves praacuteticas de privaccedilatildeo e fustigaccedilatildeo voltadas
para fazer o aniacutemico ascender sobre o corpoacutereo e com isso conduzir o pensamento (diaacutenoia) agrave
sabedoria Trata-se de infligir uma austera disciplina agrave carne refreando-lhe suas formas de
desejos condiccedilatildeo necessaacuteria agrave libertaccedilatildeo da psycheacute para ascender a um saber que vai guiar o
asceta (aacutesketes) em sua existecircncia Eacute fundamentado nessa acepccedilatildeo que vai ser estabelecido
para nos referirmos ao cristianismo medieval um conjunto de exerciacutecios de conotaccedilatildeo
religiosa voltados para levar agrave sauacutede da alma
Do outro lado a aacuteskesis pensada como exerciacutecio - e no contexto do pensamento
epicurista - remete para atividades que englobam tanto o trabalho de tentar fazer um
descortinamento da phyacutesis quanto o de procurar a partir disso estabelecer um eacutethos que
confira ao corpo-alma um estado de equiliacutebrio Com isso a perspectiva eacute a de desenvolver no
homem uma disposiccedilatildeo (diaacutethesis)193 para procurar realizar o sentido natural de sua
existecircncia Portanto natildeo se trata da negaccedilatildeo ou do afastamento daquilo que proporciona
192 ζήσῃ δὲ ὡς θεὸς ἐν ἀνθρώποις 193 Œno fr 112 DL X 117 Us 222a (διάθεσις)
80 prazer tampouco isso se relaciona com procedimentos que tragam dor ou desconforto o
horizonte eacute o da praacutetica de uma sabedoria marcada pela frugalidade e moderaccedilatildeo Ademais eacute
preciso entender que o exerciacutecio que leva o saacutebio a realizar-se enquanto tal natildeo se daacute tendo o
corpo e o sensiacutevel como entraves agrave sabedoria Para Epicuro o corpo natildeo eacute obstaacuteculo agrave
obtenccedilatildeo do conhecimento nem elemento inepto nesse processo Pelo contraacuterio ele sente
pensa e age Eacute por meio dele que a phyacutesis eacute investigada desvelada (ateacute onde o entendimento
alcanccedila) e pode ser tomada como modelo de realizaccedilatildeo
Assim os exerciacutecios constituintes da filosofia epicurista devem ser compreendidos
como um movimento uma accedilatildeo ou uma atividade (eneacutergeia) que leva o sophoacutes a procurar
viver conforme um saber fundado a partir de um referencial sensiacutevel do qual se pode inteligir
os limites necessaacuterios para estabelecer um eacutethos do bem viver Assim feitas essa
consideraccedilotildees cabe tratar de como essa technē tis peri tograven biacuteon eacute exercitada por meio da
meditaccedilatildeo (meleacutetema) e da praacutexis (praacutexis) realizando um modo saacutebio de viver e por
extensatildeo definindo o sentido da pragmateiacutea epicurista
81
CAPIacuteTULO 02
DA MEDITACcedilAtildeO
OU DO MODO COMO A PRAGMATEIacuteA Eacute EXERCITADA PELA ALMA
A temaacutetica relativa agrave meditaccedilatildeo (tograve meleacutetema)1 vai estar presente em vaacuterias escolas
filosoacuteficas e religiosas desde a antiguidade ateacute hoje Cada uma com suas especificidades
teoacutericas praacuteticas e suas finalidades No epicurismo a meditaccedilatildeo eacute um aspecto fundamental
para compreender o sentido da pragmateiacutea que caracteriza a filosofia do Jardim na medida
em que permite pensar uma relaccedilatildeo entre um conhecimento acerca da realidade e um modo de
viver relacionado a ele Contudo natildeo haacute nos poucos textos preservados de Epicuro uma
definiccedilatildeo explicita do que seja meleacutetema Por isso precisamos percorrer seu pensamento para
tentar expor aqui uma noccedilatildeo que nos permita compreender o sentido dessa atividade e como
ela se constitui como um exerciacutecio que visa levar o saacutebio a experimentar a autarquia e o
equiliacutebrio em sua vida
Na Carta a Meneceu Epicuro faz quatro referecircncias diretas2 agrave meditaccedilatildeo Ο termo
tambeacutem consta em um fragmento repertoriado por G Arighetti3 Em todas essas apariccedilotildees
meditar se relaciona a uma atividade orientada agrave praacutetica da sabedoria ao exerciacutecio (aacuteskesis)
de investigaccedilatildeo da phyacutesis tendo em vista estabelecer um modo de vida de acordo com a
natureza (katagrave phyacutesin) Isso no leva a evocar o Testamento de Epicuro (DL 17-21) Laacute ele diz
da necessidade de se ocupar (endiatriacutebo) permanentemente da filosofia e para isso ele coloca
ldquoo Jardim e todas as suas dependecircncias agrave disposiccedilatildeo de Hecircrmaco filho de Agecircmorto
Mitilecircnio e de seus companheiros em filosofiardquo para laacute poderem se dedicar a essa atividade
(endiatriacutebein kataacute philosophiacutean)4
Esse sentido de ocupaccedilatildeo ou dedicaccedilatildeo a algo tambeacutem estaacute inscrito no significado da 1 Diante da ambiguumlidade que o termo meleacutetema evoca haacute um receio em traduzi-lo como meditaccedilatildeo no contexto da filosofia antiga Se pode ser compreendido como sinocircnimo de exerciacutecio como muitos preferem adotando uma visatildeo mais conservadora tambeacutem pode ser pensado como ldquoum esforccedilo para assimilar para tornar vivas na alma uma ideia uma noccedilatildeo um princiacutepiordquo (HADOT 2014 p 27) Adotamos a mesma perspectiva de Pierre Hadot por compreender que no contexto do epicurismo meleacutetema remete para atividades da alma ligadas agrave necessidade de memorizar assimilar relembrar ponderar e outras que entendemos estarem circunscritas ao termo meditaccedilatildeo 2 DL X 122 123 126 e 135 3 () ἅ τις ἂμ πρὸς ἡμᾶς ἐ[κεῖθ]εν ἀπο[διδ]ώιη ὁ ἐκ τῶν [λέ]ξεων συνορῶ[ν ὡ]ς ταὐτὸ σ[υ]νέβαινε μελε[τᾶν] ἐπὶ τῆς γραφῆς () (ARRIGHETTI 1960 p 304) Deperditorum librorum reliquiae [2914] 24 4 Ver nota 27 da introduccedilatildeo
82 forma verbal imperativa meletaacute (medita) cuja origem vem de meletaacuteo (μελετάω) e nos remete
para a accedilatildeo de se ocupar exercer praticar Dentro da mesma etimologia temos a forma
substantiva tograve meleacutetema (τὸ μελέτημα) nos remetendo para a ideia de estudo de exerciacutecio
praacutetico5 Mas para aleacutem do que nos diz a etimologia como podemos caracterizar a meleacutetema
no contexto da filosofia epicurista
21 Exerciacutecio dialoacutegico e dialeacutetico
O epicurista Dioacutegenes de Œnoanda por volta do seacuteculo II dC mandou gravar nos
muros da cidade onde viveu uma siacutentese do pensamento do mestre do Jardim Em um dos
fragmentos preservados eacute possiacutevel ler
Por que entatildeo ele sofre por Atena E certamente eacute [proacuteprio] ao homem virtuoso conversar consigo mesmo e de se dizer isso ldquoEu sou um ser humano e posso ser afetado pois fazem parte da carne isso aquilo e muitas outras coisas entre as quais nenhuma pode natildeo vir a ser (Œno fr 74)6
A partir dessa passagem podemos delinear uma concepccedilatildeo de meleacutetema como diaacutelogo
(dialoacutegos) interior uma conversa que se daacute com a proacutepria psycheacute Vale ressaltar natildeo se tratar
de uma praacutetica solitaacuteria e solipsista Se em um primeiro momento eu penso comigo mesmo
me indago sobre as coisas que podem proporcionar felicidade ouccedilo o que minha alma diz a
respeito posteriormente essa reflexatildeo eacute estendida compartilhada e pensada com os
ldquocompanheiros em filosofiardquo (DL X 17) Daiacute podermos no epicurismo observar uma
associaccedilatildeo entre a accedilatildeo de meditar e a amizade (philiacutea) A felicidade do saacutebio natildeo eacute
construiacuteda na solidatildeo nem para a solidatildeo mas para a alegria e para o encontro Ao meditar em
conjunto o saacutebio edifica laccedilos que constituem fonte de bem-estar ao mesmo tempo em que
reconhece no outro uma afinidade de pensamento quanto agrave finalidade da vida e ao modo como
realizaacute-la O escopo da filosofia epicurista natildeo eacute livrar o homem de perturbaccedilotildees afastando-o
do mundo isolando-o do conviacutevio social mas orientaacute-lo para que ele saiba se desviar das
relaccedilotildees que adoecem e se aproximar daquelas que lhe permitem exercitar a liberdade e o
prazer Em uma de suas sentenccedilas Epicuro diz ldquodentre as coisas que a sabedoria se
proporciona para a felicidade da vida inteira a amizade eacute em muito a maior delasrdquo (SV 13
5 Anatole Bailly Op Cit 6 Pourquoi donc souffre-t-il par Atheacutena Et certainement il est [propre] agrave lrsquohomme vertueux de converser avec soi-mecircme et de se dire ceci ldquoje suis un ecirctre humain et peux ecirctre affecteacute car font parties de la chair ceci et ceci et cela et quantiteacutes drsquoautres choses parmi lesquelles aucune ne peut pas ne pas devenirrdquo
83 DL X 148)7 Nessa afirmaccedilatildeo podemos ver a relaccedilatildeo estabelecida entre o exerciacutecio de uma
vida feliz a praacutetica da sabedoria e a afetividade A partir da articulaccedilatildeo dos termos sophiacutea e
philiacutea Epicuro pensa a possibilidade de estabelecer relaccedilotildees equilibradas onde cada um age
livremente sem a admoestaccedilatildeo das convenccedilotildees nem do desejo de assenhoramento sobre o
outro mas por um movimento de aproximaccedilatildeo com aqueles com quem se estabelece
afinidades
Por isso entendemos que meditar eacute uma atividade que se daacute tanto na psycheacute como um
exerciacutecio individual quanto entre amigos inscrevendo o outro em sua dinacircmica As cartas
maacuteximas ou outras formas que Epicuro encontrou de encapsular e transmitir8 sua filosofia satildeo
a construccedilatildeo de um pensamento que toma seus disciacutepulos e amigos (phiacuteloi) como partiacutecipes9
desse ato de meditaccedilatildeo seja porque a reflexatildeo foi feita em conjunto na coletividade que
permitia o Jardim seja porque o destinataacuterio daquela ponderaccedilatildeo estava presente na alma nas
lembranccedilas de quem a produzia
Perceba-se portanto que se por um lado a meditaccedilatildeo eacute realizada enquanto diaacutelogo
consigo mesmo isso nos sugere um aspecto individualizado do exerciacutecio filosoacutefico por outro
lado as cartas as maacuteximas e as sentenccedilas que nos chegaram de Epicuro bem como as
inscriccedilotildees nos muros de Œnoanda nos indicam a necessidade da inclusatildeo do outro nessa
praacutetica Isso porque seja em sua dimensatildeo individual ou conjunta a meleacutetema assenta-se em
um modelo dialoacutegico Queremos dizer com isso que a elaboraccedilatildeo e expressatildeo do loacutegos
filosoacutefico epicurista se estabelecem a partir da necessidade de perguntar e responder a si e
aos companheiros de filosofia num exerciacutecio comunicativo e participativo de construccedilatildeo de
um saber ancorado na physiologiacutea Eacute possiacutevel entretanto colocar a seguinte questatildeo se a
epistola nos remete para um gecircnero de comunicaccedilatildeo escrita que ldquonatildeo eacute diaacutelogo (no sentido
dos diaacutelogos de Platatildeo)rdquo (SILVA 2015 p 252) como podemos pensar que as cartas e outros
escritos de Epicuro nos remetam para essa relaccedilatildeo dialoacutegica com seus amigosdisciacutepulos
Ora por dialoacutegico estamos entendendo aqui aquilo que se refere ao debate ao diaacutelogo a uma
dinacircmica de questionamento e resposta que vai guiar o trabalho de investigar a phyacutesis e pensar
7 Ὧν ἡ σοφία παρασκευάζεται εἰς τὴν τοῦ ὅλου βίου μακαριότητα πολὺ μέγιστόν ἐστιν ἡ τῆς φιλίας κτῆσις 8 As Cartas Maacuteximas e Sentenccedilas podem ser entendidas como exemplos de exerciacutecio de meditaccedilatildeo Ao mesmo tempo em que medita o autor convida o leitor a tomar parte nessa atividade instigando-o a pensar sobre a natureza e sobre o modo como se vive Nesse sentido podemos entender as inscriccedilotildees de Œnoanda e o proacuteprio poema Da Natureza de Lucreacutecio no contexto de praacuteticas meditativas 9 Para aleacutem de comunicar uma filosofia e servir como um guia para meditaccedilatildeo as Sentenccedilas Vaticanas as Maacuteximas Capitais e as Cartas exercitam a philiacutea na medida em que visam dividir um saber que pode conduzir agrave vida feliz aqueles que compartilham do mesmo sentimento de afetividade Trata-se de uma atitude que traz consigo as marcas de uma simpatia (sympaacutetheia) de uma correspondecircncia com o outro no que diz respeito agrave maneira pensar e de viver
84 um modo de viver de acordo com a natureza E embora o interlocutor natildeo tenha sua voz
registrada de forma direta nos escritos de Epicuro sua demanda estaacute Veja-se por exemplo a
Carta a Piacutetocles que eacute uma resposta a outra que Epicuro recebera antes ldquoClecircon trouxe-me a
tua carta na qual continuas a mostrar-me teus sentimentos amistosos contrapartida de minha
devoccedilatildeo para contigo e natildeo sem sucesso procuras recordar os raciociacutenios capazes de ensejar a
conquista de uma vida felizrdquo (DL X 84)10 Vecirc-se aiacute um diaacutelogo que tem sido realizado por
meio de cartas As demandas por explicaccedilotildees a exposiccedilatildeo de opiniotildees advindas da
investigaccedilatildeo sobre a natureza jaacute chegaram ou satildeo conhecidas e servem como motivo para
meditar Nessa sucessatildeo de mensagens a meditaccedilatildeo sobre temas voltados para a realizaccedilatildeo de
um modo feliz de viver tambeacutem alimenta a amizade Se o outro natildeo estaacute presente fisicamente
naquele momento diante de quem escreve estaacute na alma de quem estaacute meditando sobre aqueles
assuntos na memoacuteria (mneacuteme) dos bons sentimentos Em outros termos estatildeo pressupostos
nesses escritos aleacutem de uma relaccedilatildeo de amizade um ato responsivo explicando orientando
compartilhando
() aos seus amigos um quadro sinoacuteptico um agregado de explicaccedilotildees seja sobre a phyacutesis seja sobre o modo de vida que sirva de guia para aqueles jaacute familiarizados com o seu pensamento ao mesmo tempo em que possa ser usado para iniciar os neoacutefitos (SILVA 2015 255)
Nesse processo dialogal cada carta eacute um momento mais longo num diaacutelogo onde ao
mesmo tempo se exprime um pensamento e se exercita a meditaccedilatildeo sobre a realidade a vida
a natureza sobre si mesmo sobre os proacuteprios sentimentos
Mas retomando o que diziacuteamos a meleacutetema eacute concebida como um diaacutelogo como
aponta o fragmento de Œnoanda nos daacute a indicaccedilatildeo de que natildeo se trata de uma praacutetica
voltada para guiar ou predispor a alma para uma espeacutecie de transe contemplativo ou para a
espera de alguma revelaccedilatildeo divina ou ainda para alcanccedilar uma experiecircncia miacutestico-
transcendente que vai resultar em um estado de imperturbabilidade A verdade natildeo vem de
fora verdadeiro eacute o pensamento construiacutedo a partir do exame da realidade percebida pelos
sentidos Tal perspectiva estaacute de acordo com a definiccedilatildeo de filosofia como uma teacutecnica que se
efetiva por meio de discurso (loacutegois) e pensamento (dialogismoiacutes)11 em busca de uma vida
feliz (makariacuteos zecircn) A meleacutetema pensada no contexto de uma teacutechne vai se constituir como
uma atividade que valendo-se da capacidade da alma para sentir memorizar assimilar
10 Ἤνεγκέ μοι Κλέων ἐπιστολὴν παρὰ σοῦ ἐν ᾗ φιλοφρονούμενός τε περὶ ἡμᾶς διετέλεις ἀξίως τῆς ἡμετέρας περὶ σεαυτὸν σπουδῆς καὶ οὐκ ἀπιθάνως ἐπειρῶ μνημονεύειν τῶν εἰς μακάριον βίον συντεινόντων διαλογισμῶν 11 Loacutegois tambeacutem pode ser traduzido por argumento e dialogismoiacutes pode ser compreendido por raciociacutenio conforme Markus Silva Sabedoria e Jardim Op Cit
85 estabelecer analogias calcular permite inscrever na psycheacute um loacutegos para guiar sua accedilatildeo
(praacutexis) no mundo tendo em vista o ldquovir a ser em torno da cura de noacutes mesmosrdquo (SV 64)12
Meditar vai ser assim um exerciacutecio de elaboraccedilatildeo de construccedilatildeo de um loacutegos uma
atividade que busca espelhar na psycheacute uma compreensatildeo de mundo estabelecida a partir de
uma investigaccedilatildeo da natureza tendo em vista um modo de viver de acordo com a phyacutesis Se a
vida saacutebia consiste em exercitar o que se pensa meditar vai ser o exerciacutecio de elaboraccedilatildeo de
um pensamento que considera a possibilidade da realizaccedilatildeo de um viver mais agradaacutevel a
despeito do que a cultura a religiatildeo e as convenccedilotildees impotildeem para o homem da Heacutelade como
um modelo de vida a ser seguido
Daiacute porque Dioacutegenes fala de conversa consigo mesmo Ele estaacute destacando que a
construccedilatildeo desse loacutegos acontece na psycheacute por meio de um exerciacutecio que pode se dar
individualmente ou em conjunto E esse sentido manteacutem coerecircncia com as palavras que
Epicuro dirige a Meneceu
Medita portanto sobre essas coisas e outras afins dia e noite por ti mesmo e com companheiros semelhantes a ti e nunca seraacutes perturbado desperto ou adormecido mas viveraacutes como um deus entre os homens pois em nada se assemelha a uma criatura mortal o homem que vive entre bens imortais (DL X 135)13
Outro aspecto que podemos destacar a partir dessa passagem estaacute ligado agrave finalidade
da filosofia Ao se voltar para livrar o homem de perturbaccedilotildees ela coloca em relevo seu
aspecto praacutetico sua inclinaccedilatildeo para se constituir como uma arte de vida ou teacutecnica em torno
do viver E a meditaccedilatildeo eacute um exerciacutecio que visa dar ao conhecimento advindo por meio da
physiologiacutea um sentido de pragmateiacutea ou seja orientaacute-lo para um fazer ou agir eacutetico para a
realizaccedilatildeo de um eacutethos livre e ldquohedonistardquo Por isso meditar visa levar a psycheacute a assimilar
esse saber physioloacutegico e fundamentar a convicccedilatildeo (piacutestis) necessaacuteria para conferir ao sophoacutes
uma disposiccedilatildeo (diaacutethesis) para a realizaccedilatildeo de uma vida feliz
Assim para retomarmos o testemunho de Œnoanda quando o homem se pensa como
um ser constituiacutedo de variados elementos corpoacutereos que ldquofazem parte da carnerdquo e -
dialogando consigo mesmo - busca relacionar isso agrave sua condiccedilatildeo mortal sujeito ao vir a ser e
ao deixar de ser das coisas ele estaacute edificando um loacutegos a partir de princiacutepios physioloacutegicos
Ao fazer isso ele contrapotildee agrave ideia de uma natureza onde somente operam forccedilas inexoraacuteveis
12 ἡμᾶς δὲ γενέσθαι περὶ τὴν ἡμῶν ἰατρείαν 13 Ταῦτα οὖν καὶ τὰ τούτοις συγγενῆ μελέτα πρὸς σεαυτὸν ἡμέρας καὶ νυκτὸς πρός ltτεgt τὸν ὅμοιον σεαυτῷ καὶ οὐδέποτε οὔθrsquo ὕπαρ οὔτrsquo ὄναρ διαταραχθήσῃ ζήσῃ δὲ ὡς θεὸς ἐν ἀνθρώποις οὐθὲν γὰρ ἔοικε θνητῷ ζῴῳ ζῶν ἄνθρωπος ἐν ἀθανάτοις ἀγαθοῖς
86 ou sobrenaturais uma concepccedilatildeo de phyacutesis que em seu modo proacuteprio de realizaccedilatildeo permite a
possibilidade de pensar a condiccedilatildeo mortal a partir da noccedilatildeo de prazer e de liberdade A vida
para o saacutebio dessa forma deixa de ser penosa fatiacutedica para se apresentar como espaccedilo para
seu protagonismo Meditando o homem busca se compreender como ser da natureza e
portanto tambeacutem natildeo estaria submetido a nenhuma intervenccedilatildeo demiuacutergica nem sujeito aos
desiacutegnios de nenhum deus nem aguardariam por ele no Hades os maiores tormentos
Dessa forma a meditaccedilatildeo ao exercitar o pensamento para procurar entender como
natural o que parece divino para se desvencilhar de concepccedilotildees que projetem para fora das
experiecircncias humanas o sentido da existecircncia o que castra desequilibra adoece e direciona o
pensar e a agir do homem para longe de sua realizaccedilatildeo configura-se tambeacutem como uma
atividade libertadora como discutiremos no proacuteximo item
Antes disso eacute preciso ainda destacar o aspecto dialeacutetico que perpassa os exerciacutecios de
meditaccedilatildeo Embora consideremos as vaacuterias acepccedilotildees que podem ser evocadas pelo termo e
natildeo eacute objeto desse trabalho discuti-las vemos no epicurismo um aspecto dialeacutetico que pode
ser pensado a partir da perspectiva geral do confronto de dois loacutegoi um ligado agrave poacutelis agraves
convenccedilotildees aos mitos e outro que nos remete ao Jardim ao fundamentado na natureza ao
corpoacutereo Esse panorama se delineia ao longo de toda a filosofia epicurista onde uma
ldquodialeacutetica estreitardquo (HOUDENOT 2018)14 se estabelece em torno de noccedilotildees que nos remetem
para a existecircncia de seu contraacuterio como por exemplo limiteilimitado justoinjusto
riquezapobreza Nesse sentido tomemos as seguintes passagens
A riqueza proveniente da natureza eacute limitada e viaacutevel e das opiniotildees vazias cai no inabordaacutevel (SV 8 DL X 144)15
A pobreza medida pelo limite da natureza eacute uma riqueza grande a riqueza natildeo delimitada eacute uma grande pobreza (SV 25)16
Da maioria das coisas dos homens o que estaacute em repouso entorpece o que estaacute em movimento enraivece (SV 11)17
O justo eacute o mais imperturbaacutevel o injusto eacute pleno de maacutexima perturbaccedilatildeo (SV 12 DL X 144)18
14 HOUDENOT Julie La poeacutetisation de la limite Camenulae 20 Revista da Faculdade de Letras da Universidade de Sorbone Mai 2018 ISSN 2494-212 X Esse artigo condensa a pesquisa de doutorado cujo tiacutetulo eacute La poeacutetisation de la limite chez Lucregravece Virgile et Horace defendida em 2017 na universidade Paris Sorbonne Nessa siacutentese a autora parte do conceito de limite elaborado por Epicuro para tratar de aspectos esteacuteticos adicionados por Lucreacutecio em seu poema Da Natureza 15 Ὁ τῆς φύσεως πλοῦτος καὶ ὥρισται καὶ εὐπoριστός ἐστιν ὁ δὲ τῶν κενῶν δοξῶν εἰς ἄπειρον ἐκπίπτει 16 Ἡ πενία μετρουμένη τῷ τῆς φύσεως τέλει μέγας ἐστὶ πλοῦτοςmiddot πλοῦτος δὲ μὴ ριζόμενος μεγάλη ἐστὶ πενία 17 Τῶν πλείστων ἀνθρώπων τὸ μὲν ἡσυχάζον ναρκᾷ τὸ δὲ κινούμενον λυττᾷ 18 Ὁ δίκαιος ἀταρακτότατος ὁ δrsquo ἄδικος πλείστης ταραχῆς γέμων
87 A magnitude do prazer atinge seu limite na remoccedilatildeo de todo sofrimento Quando o prazer estaacute presente durante todo o tempo em que ele permanece natildeo haacute dor no corpo nem na alma nem nos dois (DL 139 III)19
Podemos verificar na construccedilatildeo dessas sentenccedilas o uso de termos que no contexto da
physiologiacutea evocam entre si uma relaccedilatildeo dialeacutetica fundamental para a compreensatildeo dos
modos de ser da phyacutesis Satildeo conceitos cujo sentido estaacute relacionado agrave existecircncia de seu
oposto Assim repouso e movimento satildeo definiccedilotildees empregadas para pensar o aacutetomo os
corpos compostos os mundos Paralelamente satildeo empregados termos que tanto nos remetem
agrave investigaccedilatildeo da phyacutesis quanto podem ajudar as finalidades ligadas ao exerciacutecio de uma vida
conduzida com sabedoria Tal eacute o caso de inabordaacutevel (apeiacuteron) que tanto pode servir para
pensar o que natildeo tem limite na phyacutesis quanto agrave impossibilidade de alcanccedilar as riquezas
professadas pelas opiniotildees vazias Epicuro tambeacutem trabalha nesses enunciados palavras que
remetem diretamente agrave dimensatildeo do agir humano Ao articular nessas sentenccedilas pobreza e
riqueza torpor e raiva justo e injusto a mesma perspectiva de oposiccedilatildeo que se verifica no
campo da physiologiacutea eacute percebida com relaccedilatildeo ao modo de viver Do mesmo jeito essa
perspectiva de contraste se apresenta ao pensarmos naquele que vive em perturbaccedilatildeo em
sofrimento por oposiccedilatildeo agravequele que experimenta o prazer a ataraxiacutea
Ora esse tratamento discursivo aponta no sentido de indicar a possibilidade de
estender essa compreensatildeo dialeacutetica que permite descrever e refletir a realidade
physiologicamente para pensar as accedilotildees as escolhas e o modo de viver do sophoacutes Com isso
Epicuro visa evidenciar um conflito fundamental para entender a condiccedilatildeo do homem grego
de seu tempo que distanciado da participaccedilatildeo poliacutetica e sem o gozo de uma vida em
democracia volta-se para o cuidado consigo mesmo Ele precisa portanto definir qual a
melhor forma de viver para se sentir realizado e essa indagaccedilatildeo remete para uma dialeacutetica
que tem de um lado a natureza (phyacutesis) e do outro as opiniotildees vazias (kenaigrave doacutexai) E isso
implica em um conflito entre os loacutegoi que fazem referecircncia a essas duas possibilidades
Quanto mais se medita mais esse conflito se evidencia mais essa dialeacutetica se acentua pois o
pensamento fundamentado na physiologiacutea e assim tendo o prazer e a liberdade por
finalidades inclina-se para a vida katagrave phyacutesin em detrimento das opiniotildees contraacuterias
A meditaccedilatildeo portanto eacute exercitada tanto quanto se acentua esse ldquoprocesso dialeacuteticordquo
que se ldquoresolverdquo na medida em que o raciociacutenio (dialogismoiacutes) e o discurso (loacutegos) vatildeo
construindo na psycheacute uma vinculaccedilatildeo entre a physiologiacutea e o eacutethos Disso resulta uma
19 Ὅρος τοῦ μεγέθους τῶν ἡδονῶν ἡ παντὸς τοῦ ἀλγοῦντος ὑπεξαίρεσις ὅπου δrsquo ἂν τὸ ἡ δόμενον ἐνῇ καθrsquo ὃν ἂν χρόνον ᾖ οὐκ ἔστι τὸ ἀλγοῦν ἢ λυπούμενον ἢ τὸ συναμφότερον
88 seleccedilatildeo de um loacutegos e o ldquoexpurgordquo do outro como um antiacutedoto que anula ou minimiza a accedilatildeo
do veneno para retomarmos a metaacutefora de filosofia como medicina da alma Se ldquoningueacutem
olhando a coisa maacute a escolherdquo (SV 16)20 esse conflito entre loacutegoi permite colocar em questatildeo
os valores as finalidades e os modos de viver tendo em vista a busca de realizar uma vida
saacutebia Disso decorre uma inevitaacutevel problematizaccedilatildeo da religiatildeo da poliacutetica da Paideacuteia das
relaccedilotildees sociais da vida na poacutelis Assim a meleacutetema em sua feiccedilatildeo dialeacutetica acaba por
produzir um pensamento criacutetico (balizado na investigaccedilatildeo da natureza) que se opotildee aos
determinismos e convenccedilotildees cristalizados por uma cultura fundamentada em kenaigrave doacutexai Eacute a
partir dessa perspectiva dialeacutetica e dialoacutegica (como destacamos anteriormente) caracteriacutestica
da atividade meditativa que se estabelece uma compreensatildeo mais luacutecida do tempo e do
espaccedilo em que se vive e da possibilidade de conceber a vida como um exerciacutecio de
emancipaccedilatildeo e de realizaccedilatildeo de si mesmo
22 - Meleacutetema e mneacuteme
A meditaccedilatildeo eacute um exerciacutecio que visa desenvolver na alma uma inclinaccedilatildeo para buscar
viver de acordo com a phyacutesis Em torno dessa finalidade eacute preciso mobilizar a faculdade para
calcular raciocinar avaliar fazer analogias diferenciar e a capacidade para tomar decisotildees e
para fazer escolhas sensata e prudentemente A partir desses recursos a psycheacute vai procurar
estabelecer um loacutegos em consonacircncia com o saber oriundo da physiologiacutea para se contrapor
ao loacutegos relacionado agraves kenaigrave doacutexai Com isso objetiva-se exercitar uma disposiccedilatildeo para que
a phroacutenesis e o logismoacutes - que datildeo a medida do agir humano ndash conduzam a um modo de vida
em conformidade com um saber katagrave phyacutesin
Mas para que isso ocorra outra competecircncia da alma tambeacutem eacute mobilizada Trata-se
de sua capacidade para reter conhecimento e imagens e para relembrar sensaccedilotildees
experimentadas Estamos nos referindo agravequilo que na filosofia epicurista eacute designado por
memoacuteria (mneacuteme)21 Mas antes de recorremos as palavras de Epicuro vamos retomar o
fragmento 74 de Dioacutegenes de Œnoanda para a partir dele tentar estabelecer relaccedilotildees que
entre a meleacutetema e a mneacuteme nesse processo de conduccedilatildeo da psycheacute em direccedilatildeo a um modo
saacutebio de viver
20 Οὐδεὶς βλέπων τὸ κακὸν αἱρεῖται αὐτό 21 DL X 31 35 36 82 83 85 95
89 Assim em toda ocasiatildeo ele eacute capaz de lembrar dos elementos naturais das afecccedilotildees e que eles satildeo faacuteceis de circunscrever delimitados como que por um compasso [] (Œno fr 74)22
Evocamos esse fragmento porque ele daacute seguimento agravequele do iniacutecio do toacutepico 21
deste capiacutetulo (onde se diz que ao meditar o homem conversa consigo mesmo) e nos permite
tecer alguns comentaacuterios a respeito do papel da mneacuteme no processo de elaboraccedilatildeo de um
loacutegos para se opor as opiniotildees vazias bem como da sua importacircncia no desenvolvimento de
uma disposiccedilatildeo (diaacutethesis) da alma para buscar viver de acordo com o que depreendeu ao
investigar a phyacutesis
Essa conversa que acontece dentro de si mesmo eacute referenciada na natureza No
epicurismo esse diaacutelogo interior ou com os amigos (phiacuteloi) natildeo prescinde da recordaccedilatildeo dos
princiacutepios evidenciados a partir da investigaccedilatildeo da phyacutesis e nem da lembranccedila de momentos
que trouxeram consigo boas sensaccedilotildees Isso nos sugere de iniacutecio alguns aspectos que podem
ser relacionados agrave memoacuteria a mneacuteme como repertoacuterio dos princiacutepios de uma investigaccedilatildeo
physioloacutegica como conjunto das experiecircncias sensiacuteveis e como recordaccedilatildeo de afecccedilotildees
(paacutethes) e as sensaccedilotildees (aiacutestheseos) delas resultantes
O primeiro aspecto encontra testemunho na seguinte passagem da Carta a Heroacutedoto
Para os incapazes de estudar acuradamente cada um de meus escritos sobre a natureza Heroacutedoto ou de percorrer detidamente os tratados mais longos preparei uma epiacutetome de todo o meu sistema a fim de que possam conservar bem gravado na memoacuteria o essencial dos princiacutepios mais importantes e estejam em condiccedilotildees de sustentaacute-los em quaisquer circunstacircncias desde que se dediquem ao estudo da natureza Aqueles que progrediram suficientemente na contemplaccedilatildeo do universo devem ter na memoacuteria os elementos fundamentais de todo o sistema doutrinaacuterio pois necessitamos frequentemente de uma visatildeo de conjunto embora natildeo aconteccedila o mesmo com os detalhes (DL X 35)23
Perceba-se nessa passagem que Epicuro caracteriza o proacuteprio texto (a carta) como
um resumo de uma obra mais vasta sobre a natureza E isso estaacute ligado agrave necessidade de
tornar mais faacutecil e raacutepido o acesso a esse saber Tal preocupaccedilatildeo tem razatildeo pois
diuturnamente o homem estaacute submetido agrave influecircncia das opiniotildees vazias que sob a forma de
22 Ainsi en toute occasion il est capable de se rappeler les eacuteleacutements naturels des affections et qursquoils sont faciles agrave circonscrire delimiteacutes comme par un compas [] 23 Τοῖς μὴ δυναμένοις ὦ Ἡρόδοτε ἕκαστα τῶν περὶ φύσεως ἀναγεγραμμένων ἡμῖν ἐξακριβοῦν μηδὲ τὰς μείζους τῶν συντεταγμένων βίβλους διαθρεῖν ἐπιτομὴν τῆς ὅλης πραγματείας εἰς τὸ κατασχεῖν τῶν ὁλοσχερωτάτων δοξῶν τὴν μνήμην ἱκανῶς αὐτοῖς παρεσκεύασα ἵνα παρrsquo ἑκάστους τῶν καιρῶν ἐν τοῖς κυριωτάτοις βοηθεῖν αὑτοῖς δύνωνται καθrsquo ὅσον ἂνἐφάπτωνται τῆς περὶ φύσεως θεωρίας καὶ τοὺς προβεβηκότας δὲ ἱκανῶς ἐν τῇ τῶν ὅλων ἐπιβλέψει τὸν τύπον τῆς ὅλης πραγματείας τὸν κατεστοιχειωμένον δεῖ μνημονεύεινmiddot τῆς γὰρ ἀθρόας ἐπιβολῆς πυκνὸν δεόμεθα τῆς δὲ κατὰ μέρος οὐχ ὁμοίως
90 asseacutedio e ou de opressatildeo buscam instilar na alma desejos que nem satildeo naturais nem
necessaacuterios Assim seja para se opor agravequeles que querem impor uma concepccedilatildeo de vida
alheada da natureza seja para participar das discussotildees que acontecem no Jardim ou ainda
para fundamentar essa conversa consigo mesmo eacute preciso poder referenciar na physiologiacutea o
loacutegos acerca da realidade Essa eacute uma necessidade de todos aqueles que buscam trilhar o
caminho da sabedoria mas Epicuro faz uma ressalva considerando os diferentes graus de
aproximaccedilatildeo com a doutrina Para os iniciantes deve-se memorizar o essencial dos princiacutepios
que norteiam uma compreensatildeo physioloacutegica da realidade Jaacute os mais experientes devem
gravar na memoacuteria os elementos fundamentais de toda a physiologiacutea
Ora se retomarmos o testemunho de Epicuro citado anteriormente leremos que
estando na memoacuteria esses elementos fundamentais da doutrina vatildeo servir para serem usados
quando a necessidade se apresentar sendo preciso estar ldquoem condiccedilotildees de sustentaacute-los em
quaisquer circunstacircnciasrdquo Essa ideia eacute retomada no passo seguinte nestes termos
Com efeito tambeacutem para quem tiver chegado a uma perfeita maturidade o requisito baacutesico para todo conhecimento exato eacute a faculdade de adotar com presteza as concepccedilotildees principais porquanto cada particularidade se reduz a elementos simples e a termos igualmente simples (DL X 36)
Aqui eacute inserida mais uma ideia a de que a capacidade para prontamente fazer uso
desse saber memorizado estaacute relacionada ao grau de experiecircncia que se tem dentro da
doutrina como jaacute mencionamos Assim quanto mais experimentado na filosofia do Jardim
mais se faz uso dos princiacutepios que remetem ao saber physioloacutegico Eacute essa habilidade ou
teacutecnica para usar esse conhecimento acerca da phyacutesis nas situaccedilotildees concretas da vida que a
meditaccedilatildeo visa desenvolver Mas isso natildeo quer dizer que o neoacutefito natildeo possa se beneficiar
dessas siacutenteses que tratam dos fundamentos da physiologiacutea Para Epicuro ter na memoacuteria os
apontamentos de uma filosofia que se volta para afastar os temores fundados em opiniotildees
fantasiosas traz seus benefiacutecios Seja porque isso funciona como um convite para que o
iniciante possa por si mesmo pensar o modo como percebe a realidade e se questionar sobre a
forma de viver professada pelas kenaigrave doacutexai seja porque remete agrave possibilidade de realizar a
makariacuteos zecircn Eacute a essa perspectiva se remetem as seguintes palavras
Eis entatildeo Heroacutetodo os elementos fundamentais da doutrina sobre a natureza do universo em forma resumida Assim se esta exposiccedilatildeo for memorizada cuidadosamente e produzir efeito creio que qualquer pessoa seja ela quem for embora natildeo penetre em todos os detalhes miacutenimos conquistaraacute uma seguranccedila incomparavelmente forte em comparaccedilatildeo com o resto da humanidade Com efeito por si mesma ela esclareceraacute muitos pontos particulares por mim tratados exaustivamente no sistema completo de
91 minha doutrina e esses mesmos elementos uma vez fixados na memoacuteria jamais cessaratildeo de ajudaacute-la (DL X 82-83)24
Dessa forma a necessidade de tendo em vista a primordialidade de fazer uso praacutetico
desse saber colocar agrave disposiccedilatildeo da alma um conhecimento para balizar o pensamento e a
conduta eacute compatibilizada com o niacutevel de vivecircncia e de compreensatildeo filosoacutefica de cada um
Nada mais natural quando se entende que a pragmateiacutea epicurista se desenvolve como um
exerciacutecio e portanto a evoluccedilatildeo de cada seguidor se daacute de forma gradativa E quanto mais se
medita e se busca estabelecer uma praacutetica de vida em torno da natureza mais esse
conhecimento physioloacutegico eacute assimilado pela alma Com isso a ignoracircncia sobre a phyacutesis - o
que conduz ao erro (hamartiacutea) e agrave desmesura (hyacutebris) e consequentemente agrave perturbaccedilatildeo ao
sofrimento e agrave limitaccedilatildeo do sentido de liberdade do homem - eacute afastada
A mneacuteme conserva na psycheacute essas formas resumidas ou mais estendidas de um saber
sobre a natureza que vai despertar e fundamentar uma visatildeo criacutetica e distanciada com relaccedilatildeo
agraves crenccedilas aos valores e agraves normas relacionadas agrave finalidade do agir do homem Ao meditar
sobre o que resulta quando se vive a partir de um modelo natural e o que adveacutem quando
orientamos nosso pensamento e nossa conduta por convenccedilotildees alheadas da natureza a alma
se daacute conta de poder definir um melhor modo de vida se suas accedilotildees forem estabelecidas a
partir de um ldquocaacutelculo soacutebrio que investigue as causas de toda a escolha e de toda a rejeiccedilatildeo e
elimine as opiniotildees vatildes por obra das quais um imenso tumulto se apossa das almasrdquo (DL X
132)25
Daiacute podermos estabelecer uma relaccedilatildeo entre a memoacuteria o pensamento a sabedoria e a
meditaccedilatildeo A partir da mneacuteme os fundamentos da physiologiacutea satildeo resgatados e servem ao
logismoacutes e agrave phroacutenesis para a elaboraccedilatildeo de um raciociacutenio (dialogismoiacutes) voltado para fazer
convergir o modo de pensar e de agir para a consecuccedilatildeo de uma vida agradaacutevel equilibrada
frugal liberta Assim quando Epicuro afirma que eacute preciso ldquomeditar sobre tudo que possa
proporcionar a felicidaderdquo (DL X 122)26 ele estaacute nos falando de um exerciacutecio contiacutenuo e
integrado caracteriacutestico da atividade do saacutebio Isso porque a perspectiva eacute a de que quanto
mais ele investiga a phyacutesis mais ele se interroga a partir dela sobre seu modo de viver e
24 Ταῦτά σοι ὦ Ἡρόδοτε ἔστι κεφαλαιωδέστατα ὑπὲρ τῆς τῶν ὅλων φύσεως ἐπιτετμημέναmiddot ὥστrsquo ἐὰν γένηται οὗτος ὁ λόγος δυνατὸς κατασχεθεὶς μετrsquo ἀκριβείας οἶμαι ἐὰν μὴ καὶ πρὸς ἅπαντα βαδίσῃ τις τῶν κατὰ μέρος ἀκριβωμάτων ἀσύμβλητον αὐτὸν πρὸς τοὺς λοιποὺς ἀνθρώπους ἁδρότητα λήψεσθαι καὶ γὰρ καὶ καθαρὰ ἀφrsquo ἑαυτοῦ ποιήσει πολλὰ τῶν κατὰ μέρος ἐξακριβουμένων κατὰ τὴν ὅλην πραγματείαν ἡμῖν καὶ αὐτὰ ταῦτα ἐν μνήμῃ τιθέμενα συνεχῶς βοηθήσει 25 νήφων λογισμὸς καὶ τὰς αἰτίας ἐξερευνῶν πάσης αἱρέσεως καὶ φυγῆς καὶ τὰς δόξας ἐξελαύνων ἐξ ὧν πλεῖστος τὰς ψυχὰς καταλαμβάνει θόρυβος 26 μελετᾶν οὖν χρὴ τὰ ποιοῦντα τὴν εὐδαιμονίαν
92 quanto mais ele pensa sobre o teacutelos de suas accedilotildees mais ele recorre agrave physiologiacutea seja por
meio dos resumos ou de obras mais detalhadas para poder nela encontrar um paradigma para
seu eacutethos
Nesse contexto entendemos o destaque dado por Epicuro ao resumo agrave condensaccedilatildeo agrave
siacutentese das linhas gerais de sua filosofia As questotildees colocadas pela vida diante do saacutebio
precisam ser respondidas em um tempo pertinente (kairoacutes) quer dizer diante da necessidade
de fazer escolhas e recusas de se contrapor agraves kenaigrave doacutexai de se negar a seguir as
convenccedilotildees os mecanismos do pensamento devem estar em condiccedilatildeo guarnecer
(paraskeuaacutedzo) a alma de recurso de ajuda (boeacutetheia) em favor da afirmaccedilatildeo do loacutegos
physioloacutegico (DL X 35)27
Acredito que esta tenha sido tambeacutem a razatildeo pela qual [aleacutem das epiacutetomes] escreveu aforismos agrupados num conjunto de maacuteximas e sentenccedilas curtas de faacutecil memorizaccedilatildeo que pudessem ser retidas e citadas sempre que a ocasiatildeo demandasse o uso dessas expressotildees (SILVA 2015 p 247)
Eacute a partir desses formatos sinteacuteticos de expressatildeo do pensamento guardados na
memoacuteria que se medita e nesse exerciacutecio vai sendo elaborado um loacutegos criacutetico e alternativo
ao convencionado pela kenoacuten doacutexa Isso estaacute alinhado ao relato de Dioacutegenes Laeacutercio
informando que Epicuro exortava seus disciacutepulos a decorarem seus tratados (DL X 12)
afinal ldquoa tranquilidade perfeita da alma consiste em estar livre de todos esses terrores e
temores28 e em relembrar tenaz e constantemente a doutrina em suas linhas gerais e
fundamentaisrdquo (DL X 82)29 Seria entatildeo o caso de pensar esse conteuacutedo resumido como
caacutepsulas filosoacuteficas para retomarmos a metaacutefora de filosofia como medicina da alma Eacute por
meio desse medicamento potencializado pelo exerciacutecio de meditaccedilatildeo que a alma desenvolve
as defesas necessaacuterias para combater o que a adoece e com isso poder restabelecer sua sauacutede
Colocando em termos mais proacuteximos aos apresentados por Epicuro eacute a meditaccedilatildeo
permanente em torno da physiologiacutea que desenvolve na alma a convicccedilatildeo firme (piacutestin
beacutebaion) (DL X 85) necessaacuteria para se opor ao pensamento fantasioso (DL X 81) e agraves
opiniotildees equivocadas a respeito da natureza Meditando sobre o conhecimento physioloacutegico o
27 Ver nota 23 deste capiacutetulo 28 Haacute uma relaccedilatildeo entre livrar a psycheacute desses terrores e temores e a necessidade de ter na memoacuteria (mneacuteme) os princiacutepios elementares da physiologiacutea A libertaccedilatildeo das opiniotildees que desequilibram e perturbam a alma (tema que trataremos no item 23 deste capiacutetulo) soacute eacute possiacutevel a partir de uma compreensatildeo physioloacutegica da realidade Esses princiacutepios estando sempre acessiacuteveis na memoacuteria vatildeo servir ao pensamento para estabelecer um loacutegos que vai orientar o modo de viver do saacutebio para a imperturbabilidade ldquoa ataraxiacutea soacute eacute possiacutevel se nos afastamos de todas essas crenccedilas [opiniotildees vazias] e se guardamos lsquona memoacuteria os princiacutepios gerais do conjunto das coisasrsquordquo (SALEM 1993 p 18) 29 ἡ δὲ ἀταραξία τῷ τούτων πάντων ἀπολελύσθαι καὶ συνεχῆ μνήμην ἔχειν τῶν ὅλων καὶ υριωτάτων
93 sophoacutes ao mesmo tempo em que espelha na alma um saber que vai ser uacutetil para o domiacutenio de
uma arte de viver (teacutechnen tinaacute periacute ton biacuteon) o que lhe confere esse sentimento de confianccedila
(piacutestis) o coloca vigilante e avesso aos pensamentos que natildeo estatildeo de acordo com esse saber
Agora podemos colocar em pauta o segundo aspecto indispensaacutevel para compreender
no contexto da filosofia epicurista o sentido da mneacuteme e como ela se relaciona com a
atividade de meditaccedilatildeo Trata-se de pensar a memoacuteria tambeacutem como repositoacuterio das
impressotildees sensiacuteveis onde estatildeo reunidas as imagens que nos datildeo testemunho das coisas do
mundo e que nos chegam atraveacutes nossos sentidos Por meio dessa imagerie a psycheacute pode
estabelecer uma leitura da realidade fenomecircnica fazer analogias e imaginar projetando o
pensamento para aleacutem dos limites da nossa sensibilidade permitindo construir um loacutegos a
respeito do mundo que experimentamos mas tambeacutem se expandir para o micro e o para
macrocosmos
Ora vimos no capiacutetulo I que a experiecircncia sensiacutevel serve de fundamento para toda a
investigaccedilatildeo sobre a natureza e que as sensaccedilotildees (aiacutestheseos) decorrentes dessa experiecircncia
satildeo tomadas como criteacuterio de verdade para se pensar os modos de ser da phyacutesis Eacute balizado
por essa perspectiva que o pensamento busca se circunscrever ao imanente e natildeo recorrer aos
mitos nem ao misteacuterio para buscar compreender os fenocircmenos da realidade Dessa forma esse
conjunto de imagens ligadas agraves aiacutestheseos e acumuladas na mneacuteme vai orientar todo o
exerciacutecio de meditaccedilatildeo para fazer a phycheacute se ater agrave imanecircncia afinal eacute nesse campo que a
possibilidade de uma vida tranquila eacute projetada
Eacute nessa dimensatildeo imanente que eacute construiacuteda a relaccedilatildeo que no epicurismo se
estabelece entre a realidade sensiacutevel o pensamento e o modo de agir Ao pensar a partir de
uma memoacuteria que fornece um conjunto de referecircncias relacionadas agrave fisicalidade ou agrave
corporeidade e tomar as sensaccedilotildees como criteacuterio para afastar as imagens fantasiosas ou
miacuteticas o saacutebio projeta a finalidade de suas accedilotildees nos limites da phyacutesis no espaccedilo e no tempo
de sua existecircncia Eacute essa ancoragem no imanente que a meditaccedilatildeo exercita quando evoca essa
memoacuteria do sensiacutevel para se contrapor agraves concepccedilotildees que projetam o sentido de realizaccedilatildeo
das accedilotildees humanas para aleacutem de sua experiecircncia
Dizendo de outra maneira quando da memoacuteria se buscam as imagens do patildeo e da
aacutegua30 (elementos da realidade experimentada) para subsidiar a meditaccedilatildeo no exerciacutecio de
estabelecer um loacutegos em torno do teacutelos da conduta do homem eacute porque na alma esses
30 DL X 131 O patildeo e aacutegua proporcionam o prazer supremo quando levados a uma boca faminta Em grego καὶ μᾶζα καὶ ὕδωρ τὴν ἀκροτάτην ἀποδίδωσιν ἡδονήν ἐπειδὰν ἐνδέων τις αὐτὰ προσενέγκηται
94 elementos estatildeo relacionados ao sentimento de prazer que o saacutebio compreendeu por meio da
physiologiacutea serem naturais e necessaacuterios Assim partindo dessas imagens eacute possiacutevel meditar
sobre como o pensamento e a eacutethos devem ser orientados para a consecuccedilatildeo de um modo de
vida equilibrado e frugal e portanto exequiacutevel na temporalidade e na natureza em que se vive
Cabe salientar ao nos referirmos ao sentimento de prazer evocado pela alma e
podendo ser relacionado a uma imagem ou a uma experiecircncia estamos nos remetendo a mais
um aspecto para compreender a mneacuteme em sua relaccedilatildeo com a praacutetica da meditaccedilatildeo Trata-se
de pensaacute-la como um repertoacuterio de sentimentos acumulados ao longo do tempo e a partir da
diversidade de experiecircncias resultantes da interaccedilatildeo do homem com o mundo Vale lembrar
que os sentimentos satildeo impressotildees sensiacuteveis (proleacutepseis) gravadas na mneacuteme Eles estatildeo
ligados agraves sensaccedilotildees de prazer ou de dor que advecircm de quando entramos em contato com um
objeto externo Dessa experiecircncia daacute-se uma afecccedilatildeo (paacutethos) que gera em noacutes uma sensaccedilatildeo
(aiacutesthesis) prazerosa ou dolorosa Tais sensaccedilotildees satildeo guardadas na alma transformadas em
sentimentos Nesse processo a memoacuteria vai ser fundamental para trazer para a praacutetica da
meditaccedilatildeo as sensaccedilotildees agradaacuteveis que vatildeo servir para se opor agravequelas que infligem
sofrimento Sobre esse aspecto satildeo vaacuterias as referecircncias encontradas nos textos de Epicuro
Uma delas estaacute na carta que escreve pouco antes de morrer a Idomeneu Esse testemunho eacute
resgatado por Dioacutegenes Laeacutercio da seguinte forma
Neste dia feliz que tambeacutem eacute o uacuteltimo de minha vida escrevo-te esta carta As dores contiacutenuas resultantes da estranguacuteria e da disenteria satildeo tatildeo fortes que nada pode aumentaacute-las Minha alma entretanto resiste a todos esses males alegre ao relembrar os nossos coloacutequios passados (DL X 22)31
Esse relato chama a atenccedilatildeo primeiramente pelo contraste entre o sentimento de
felicidade que experimenta Epicuro e sua condiccedilatildeo fiacutesica marcada pelo sofrimento devido agrave
degeneraccedilatildeo de sua sauacutede Meio agraves dores extremas impostas ao corpo-carne a psycheacute resiste e
proporciona o gozo da alegria para quem jaacute espera a proacutepria morte Isso nos leva a fazer duas
indagaccedilotildees A primeira estaacute relacionada a esse resistir da alma A segunda diz respeito agrave
possibilidade de fazer cessar a dor sentida no presente ou minimizar sua forccedila por meio da
lembranccedila de experiecircncias prazerosas vividas no passado
Para tratarmos dessa questatildeo vamos considerar que a felicidade com a qual a filosofia
estaacute envolvida tem um soacute tempo o presente (BOLLACK 1975 p 88) Com isso natildeo se estaacute
31 Τὴν μακαρίαν ἄγοντες καὶ ἅμα τελευταίαν ἡμέραν τοῦ βίου ἐγράφομεν ὑμῖν ταυτί στραγγουρικά τε παρηκολούθει καὶ δυσεντερικὰ πάθη ὑπερβολὴν οὐκ ἀπολείποντα τοῦ ἐν ἑαυτοῖς μεγέθους ἀντιπαρετάττετο δὲ πᾶσι τούτοις τὸ κατὰ ψυχὴν χαῖρον ἐπὶ τῆι τῶν γεγονότων ἡμῖν διαλογισμῶν μνήμηι
95 apregoando a ldquonegaccedilatildeo do passadordquo nem que se ignore o futuro Estaacute sendo postulada a
atitude do saacutebio de exercitar a felicidade no momento em que vive Essa perspectiva nos
permite tentar entender quando Epicuro diz que a alma resiste a todos os males porque se
trata de um exerciacutecio de trazer para aquele instante o que pode se contrapor agrave dor que o estaacute
afetando Dessa forma o trabalho da alma em resistir consiste em tentar suplantar a dor
trazendo o prazer para si E isso implica em uma meditaccedilatildeo direcionada para trazer da mneacuteme
as lembranccedilas prazerosas para que a psycheacute tenha novamente as sensaccedilotildees de prazer que elas
provocam Quando relembradas as boas experiecircncias os bons conviacutevios as situaccedilotildees de
felicidade proporcionam um bem-estar (eustaacutetheia)32 que se estende para o corpo e para a
alma Trata-se de tentar opor um prazer sereno (hedonegrave katastematikeacute) a uma dor Diante
disso mais que lembrar a meditaccedilatildeo trabalha no sentido de estabelecer na alma a confianccedila
(piacutestis) em um princiacutepio que adveacutem da investigaccedilatildeo da natureza segundo o qual a dor e o
prazer natildeo estatildeo presentes ao mesmo tempo Assim verificamos que Epicuro ldquoparte do
princiacutepio segundo o qual prazer e dor se excluem e mais que isso natildeo haacute estado
intermediaacuterio entre eles ou estado neutro no qual natildeo se sente prazer nem dorrdquo (SILVA
2018 p 134)
Esse trabalho de resistir remete portanto agrave confianccedila que o saacutebio tem a respeito da
natureza poder ser tomada como um paradigma para a maneira de viver Por isso a
meditaccedilatildeo ao relembrar dos princiacutepios da physiologiacutea os relaciona a uma conduta de acordo
com a natureza e projeta isso no sentido de vida feliz que o saacutebio almeja Dessa forma
recuperar da memoacuteria a recordaccedilatildeo do que foi vivido e com isso fazer a alma experimentar o
sentimento de prazer associado a essa lembranccedila se constitui como um exerciacutecio de meditaccedilatildeo
que fazendo uso praacutetico de um saber physioloacutegico desvia a atenccedilatildeo do que causa dor para o
que proporciona alegria Eacute preciso assinalar que essa praacutetica se daacute na alma mas tem reflexos
no bem-estar do corpo como podemos evidenciar a partir de um exemplo oposto quando ao
lembrar de experiecircncias desagradaacuteveis faz-se o corpo sentir o mesmo mal relacionado agravequele
momento Sendo assim as relaccedilotildees de amizade satildeo tatildeo importantes no epicurismo Elas satildeo
fontes de alegria que guardadas na alma subsistem ao tempo e constituem um acervo
lembranccedilas que trazem consigo boas sensaccedilotildees que alimentam a felicidade Por isso se dizer
ldquodentre as coisas que a sabedoria se proporciona para a felicidade da vida inteira a amizade eacute
em muito a maior delasrdquo (SV 13)
32 Us 68
96 23 - A meditaccedilatildeo como exerciacutecio de libertaccedilatildeo
No epicurismo a filosofia eacute pensada como uma therapeiacutea e por conseguinte a
makariacuteos zecircn implica em afastar aquilo que adoece a alma trazendo perturbaccedilatildeo e
desarmonia Vimos que a principal causa de sofrimento para o homem estaacute em orientar sua
vida a partir do que professam as falsas opiniotildees a respeito dos bens necessaacuterios agrave realizaccedilatildeo
humana Fora dos limites da natureza a makariacuteos zecircn eacute inexequiacutevel33 Ou seja a sauacutede o
bem-estar o equiliacutebrio satildeo condiccedilotildees que tecircm uma relaccedilatildeo direta com a possibilidade de a
psycheacute se distanciar dessas opiniotildees e estabelecer um eacutethos de acordo com a natureza
Procuramos demonstrar no item 21 deste capiacutetulo que a meditaccedilatildeo (meleacutetema) pode
ser entendida como uma atividade visando reelaborar ou substituir um loacutegos assentado em
crenccedilas infundadas por outro ancorado em uma compreensatildeo physioloacutegica da natureza e em
criteacuterios de verdade relacionados ao sensiacutevel afinal ldquose lutares contra todas as sensaccedilotildees natildeo
teraacutes um criteacuterio de referecircncia e assim natildeo poderaacutes julgar sequer aqueles juiacutezos que qualificas
de falsosrdquo (DL X 146)34 Dito de outra forma trata-se de submeter o produto de nosso
raciociacutenio e de nossa imaginaccedilatildeo ao conhecimento que temos a respeito da phyacutesis A partir daiacute
seria possiacutevel fazer a uma separaccedilatildeo (diaiacuteresis) afastando o pensamento que natildeo estaacute
conforme a natureza e que poderia causar perturbaccedilotildees para a alma ou dor para o corpo
Eacute em torno dessa necessidade de orientar o pensamento para uma praacutetica
fundamentada na natureza que a meditaccedilatildeo vai favorecer uma libertaccedilatildeo da psycheacute das kenaigrave
doacutexai Isso seria necessaacuterio porque Epicuro atribui a essas opiniotildees dois
problemasconsequecircncias O primeiro pode ser entendido por meio de um aspecto opressor
Quando as opiniotildees professam a possibilidade de pensar o gozo de uma liberdade sem limite
ela conduz ao despotismo agrave anulaccedilatildeo da vontade de outrem Jaacute o segundo problema eacute
percebido quando essas doxaigrave visam legitimar a fama a gloacuteria a riqueza o poder e o prazer
sem criteacuterio como valores hegemocircnicos na poacutelis e portanto devendo ser buscados Com isso
o homem eacute enredado em uma procura sem fim e sem sossego Em qualquer caso o que se tem
eacute a mitigaccedilatildeo do sentido da liberdade fundamental para o exerciacutecio de um modo saacutebio de
viver seja porque ela foi tiranizada por quem impotildee sua vontade aos outros ou porque a alma
se tornou cativa de desejos que natildeo realizam sua natureza livre e feliz Eacute nesse sentido que
contextualizamos a seguinte sentenccedila
33 DL X 144 XV SV 8 11 25 45 59 34 Οὐθὲν ὄφελος ἦν τὴν κατὰ ἀνθρώπους ἀσφάλειαν παρασκευάζεσθαι τῶν ἄνωθεν πόπτων καθεστώτων καὶ τῶν ὑπὸ γῆς καὶ ἁπλῶς τῶν ἐν τῷ ἀπείρῳ
97 Uma vida livre natildeo pode adquirir bens numerosos pelo fato da coisa natildeo ser faacutecil fora da sujeiccedilatildeo agraves multidotildees e aos poderosos mas ela adquire tudo por uma abundacircncia contiacutenua Se por acaso em algum lugar ela encontra muitos bens tambeacutem essas coisas satildeo faacuteceis de distribuir em favor da boa disposiccedilatildeo do proacuteximo (SV 76)35
Essa passagem nos permite evidenciar a relaccedilatildeo que eacute estabelecida entre liberdade e
frugalidade uma perspectiva antiteacutetica agravequela revalidada pelas kenaigrave doacutexai A vida livre eacute
realizaacutevel na medida em que as necessidades satildeo reduzidas ao miacutenimo necessaacuterio Contudo
para os muitos prevalece a concepccedilatildeo de que a felicidade eacute adquirida por meio da abundacircncia
de bens ldquoA raiz do mal se encontra no descontrole doentio de nossos desejos que sobre o
efeito de falsas representaccedilotildees do prazer e da felicidade nos impelem a desejar possuir sem
limiterdquo (HELMER 2013 p 11) Eacute essa compreensatildeo vazia (descolada da natureza) que natildeo
considera a finalidade das accedilotildees do homem a partir de um modelo natural a partir do qual se
pensa o prazer (hedoneacute) como caminho para o equiliacutebrio e o exerciacutecio da autaacuterkeia como
possibilidade de experimentar uma vontade livre Por isso para se poder estabelecer um modo
autecircntico de viver eacute preciso meditar a respeito dos bens relacionados a essa finalidade Os
demais ligados agraves opiniotildees vazias engendram adoecimento desequiliacutebrio assenhoramento da
vontade e portanto devem ser recusados
Eacute nesse mesmo diapasatildeo que o epicurista Dioacutegenes de Œnoanda adverte ldquoa maior
parte dos homens estaacute doente por falsas opiniotildees sobre as coisas e natildeo escuta o corpordquo (Œno
fr 2)36 Ou seja ao natildeo se ouvir o que a natureza diz a respeito do que eacute importante para
experimentar bem-estar e ao se deixar guiar pelas concepccedilotildees que alheiam a psycheacute de si
mesma a liberdade eacute mitigada Nesse caso a meditaccedilatildeo atua no sentido de corrigir essa visatildeo
enviesada a respeito do que eacute imprescindiacutevel agrave vida agradaacutevel Ao evocar na alma a
concepccedilatildeo physioloacutegica de que podemos nos ater somente aos desejos que satildeo naturais e
necessaacuterios como vimos no item 122 do capiacutetulo I as necessidades ficam reduzidas ao
miacutenimo o que leva o homem a poder experimentar um sentimento de autossuficiecircncia e
emancipaccedilatildeo vis-agrave-vis demandas que natildeo satildeo suas A ideia eacute quanto menos necessidades
mais se vecirc abundar o que eacute fundamental e querer partilhar o excedente E isso caminha no
sentido contraacuterio daqueles que vivem de acordo com as opiniotildees vazias submetidos aos
desejos que a multidatildeo louva (aqueles que nem satildeo naturais nem necessaacuterios e portanto satildeo
vazios) e buscando acumular os bens para exercer suas desmesuras abdicam de viver serena e 35 Ἐλεύθερος βίος οὐ δύναται κτήσασθαι χρήματα πολλὰ διὰ τὸ τὸ πρᾶγμα ltμὴgt ῥᾴδιον εἶναι χωρὶς θητείας ὄχλων ἢ δυναστῶν ἀλλὰ συνεχεῖ δαψιλείᾳ πάντα κέκτηταιmiddot ἂν δέ που καὶ τύχη χρημάτων πολλῶν καὶ ταῦτα ῥᾳδίως ἂν εἰς τὴν τοῦ πλησίον εὔνοιαν διαμετρήσαι 36 [la plupart des hommes sont malades de fausses opinions sur les choses et nrsquoeacutecoutent pas le corps]
98 livremente Nesse contexto a meditaccedilatildeo adquire um papel importante para a compreensatildeo dos
proacuteprios desejos bem como para o domiacutenio e a limitaccedilatildeo que devem se impostos a eles E
isso se daacute agrave luz de um trabalho de investigaccedilatildeo da natureza e de procurar espelhar seus
paradigmas na proacutepria psycheacute por meio de um loacutegos katagrave phyacutesin
Ora se Epicuro vecirc nas opiniotildees vazias um mal na medida em que podem engendrar
sofrimento entatildeo fica clara a necessidade de um afastamento da poacutelis enquanto ambiente
onde as kenaigrave doacutexai predominam e compotildeem o loacutegos que adoece e assenhora a vontade do
homem Na visatildeo epicurista a poacutelis enferma impotildee uma tirania das vontades a partir da noccedilatildeo
de que eacute sempre preciso mais para ser feliz Felipe da Macedocircnia seguido por seu filho
Alexandre e apoacutes a morte dele o despotismo dos seus generais satildeo um reflexo dessa
imposiccedilatildeo colocada para o homem grego que vecirc na busca de poder riquezas e fama um
modelo de realizaccedilatildeo Mas para Epicuro natildeo eacute preciso muito para se sentir feliz o que eacute
preciso eacute ldquovir a ser em torno da cura de noacutes mesmosrdquo (SV 64)37 Por isso o caminho para o
gozo de uma vida saacutebia estaria em orientar a psycheacute para buscar na phyacutesis uma referecircncia para
o desejar tendo em vista um estado de equiliacutebrio Eacute em torno desse teacutelos que o saacutebio medita e
orienta a alma para uma liberaccedilatildeo um desvencilhamento dos valores convencionados a partir
das kenaigrave doacutexai
Podemos a partir daiacute relacionar a dimensatildeo terapecircutica da meditaccedilatildeo com a praacutetica de
uma libertaccedilatildeo pois quando distanciado do loacutegos que desequilibra adoece e aprisiona o
homem pode experimentar a ataraxiacutea (ausecircncia de perturbaccedilatildeo na alma) e a aponiacutea (ausecircncia
de dores no corpo) necessaacuterios ao seu bem-estar Quando a psycheacute submete o pensamento agrave
physiologiacutea a perspectiva eacute a de uma sensibilizaccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave ideia de que natildeo eacute
necessaacuterio viver com necessidades que extrapolem os limites do natural nem buscar um
modo de viver que natildeo seja katagrave phyacutesin E mudar o pensamento leva agrave mudanccedila no
comportamento no eacutethos Dessa forma a therapeiacutea da alma nos indica um sentido de
libertaccedilatildeo afinal ldquoliberdade quer dizer desvencilhar-se de todos aqueles noacutes ideoloacutegicos
mitos ritos religiosos prejuiacutezos culturais interpretaccedilotildees tradicionais apresentadas sem criacutetica
na linguagem e transmitidas inicialmente pela Paideiacutea e pelos usos sociaisrdquo (LLEDOacute 2003
p 20)
Assim o vir a ser do sophoacutes em torno da cura de si mesmo ou a compreensatildeo da
filosofia epicurista como uma therapeiacutea acabam por nos remeter a uma praacutetica de meditaccedilatildeo
que visa permitir a partir do que se conhece da phyacutesis pensar e agir a partir de si mesmo
37 Ver nota 187 do capiacutetulo I
99 (liberto das opiniotildees e convenccedilotildees) para fazer as escolhas e recusas necessaacuterias para
estabelecer um cuidado consigo mesmo Ao desenvolver na psycheacute a percepccedilatildeo a respeito da
necessidade de estabelecer as proacuteprias opiniotildees de refutar aquelas que anulam sua vontade e
distanciam o homem de uma finalidade natural a meditaccedilatildeo projeta no eacutethos uma
compreensatildeo da natureza que remete para a liberdade e o prazer Dessa forma meditar vai se
constituir como um exerciacutecio voltado para reaproximar o homem da natureza seja porque lhe
sensibiliza a psycheacute para ouvir as queixas e os clamores do corpo seja porque direciona o
pensamento para buscar fundamentar no saber elaborado a partir da physiologiacutea as accedilotildees e
escolhas que vatildeo delinear seu modo de viver Em suma meleacutetema nos remete ao que pode ser
referido como sendo um exerciacutecio eacutetico posto que traz consigo a experiecircncia de uma
liberdade ligada agrave possibilidade de poder de pensar a proacutepria existecircncia sem a imposiccedilatildeo de
convenccedilotildees de regras de normas
24 - Meditar
ldquoAdeus e lembrai-vos de minha doutrinardquo Estas foram as uacuteltimas palavras de Epicuro moribundo aos amigos entrando entatildeo na tina de aacutegua quente bebeu um gole de vinho puro e no mesmo gole o frio do Hades (DL X 16)38
Essa epigrama de autoria de Dioacutegenes Laeacutercio que teve por base o testemunho de
Hecircrmacos nos ajuda a examinar uma vida orientada para a busca do prazer ligado ao
equiliacutebrio Poderiacuteamos pensar que essas palavras foram proferidas por uma voz debilitada
mas mesmo assim procurando transmitir aos amigos a mesma serenidade com a qual
caminhou ateacute uma tina de bronze e deixou o corpo lentamente submergir em aacutegua quente e
repousante Isso porque apoacutes 14 dias sentindo as dores intensas provocadas por caacutelculos
renais e a fragilizaccedilatildeo da sauacutede aquele banho morno a companhia dos amigos e a recordaccedilatildeo
das alegrias passadas pareciam bastar para lhe trazer um lenitivo que se completava com
aquele pouco de vinho Isso evidencia um contraste o homem enfermo sofrendo os rigores
de uma crise renal antevendo o momento de sua morte parece - mesmo assim - experimentar
um estado de imperturbabilidade (ataraxiacutea) suportando serenamente as dores sem temor do
que estaacute por vir e se regozijando com prazeres triviais
38 χαίρετε καὶ μέμνησθε τὰ δόγματα τοῦτ Ἐπίκουρος ὕστατον εἶπε φίλοις τοὔπος ἀποφθίμενος θερμὴν δὲ πύελον γὰρ ἐληλύθεεν καὶ ἄκρατον ἔσπασεν εἶτ Ἀΐδην ψυχρὸν ἐπεσπάσατο
100 Isso nos chama a atenccedilatildeo porque o comum eacute observar nesses momentos in extremis o
homem se deixar levar pela fantasia abater-se pelo medo de um aleacutem-vida projetar no tempo
eterno a dor que sente o corpo Pois ao reverberar o que postulam as opiniotildees vazias sobre a
morte e o sofrimento quem desconhece a natureza veste o haacutebito escuro da desventura e da
resignaccedilatildeo e se entrega ao canto compadecido daqueles que testemunham seus uacuteltimos
momentos Mas a despeito de qualquer coisa Epicuro continuava manifestando em seu modo
de ser o que procurou ensinar durante toda a vida que a felicidade resulta de um exerciacutecio
permanente de se colocar no mundo em correspondecircncia ao saber assimilado a partir da
investigaccedilatildeo da phyacutesis ldquoFoi esta a vida desse homem e este foi seu fimrdquo (DL X 16)39
Considerando ainda o testemunho de Hecircrmacos poderiacuteamos imaginar que malgrado o
desfecho esperado por todos tudo ocorria de modo tranquilo no Jardim onde a amizade o
sentido de comunidade as discussotildees sobre as coisas da vida se projetavam do raiar ao pocircr
do sol Essa perspectiva pode ser legitimada a partir do relato de Dioacutegenes Laeacutercio (DL X
22) jaacute registrado anteriormente onde se diz que apesar de todo sofrimento imposto ao corpo
Epicuro resistia e se mantinha feliz ao relembrar de conversas com os amigos E isso natildeo eacute
difiacutecil de conceber pois para o saacutebio a iminecircncia da morte natildeo causa medo nem tristeza e a
dor pode ser suplantada pela lembranccedila de momentos prazerosos Quem exercita a alma a
meditar tendo por base os fundamentos da physiologiacutea experimenta a seguranccedila a confianccedila
(piacutestis) necessaacuteria para natildeo sofrer diante do natural e do que pode ser escolhido ou evitado E
isso se reflete em uma postura serena diante de eventos que para aqueles guiados pelas kenaigrave
doacutexai seriam motivos de inquietude
Essa postura imperturbaacutevel ou de ataraxiacutea tambeacutem eacute verificada quando Epicuro
aconselha ldquocompadeccedilamos com os amigos natildeo chorando mas pensandordquo (SV 66)40 E isso
tem uma razatildeo de ser devido agrave ignoracircncia a respeito das coisas da natureza o homem se torna
refeacutem das opiniotildees vazias e com isso projeta a existecircncia de sofrimento mesmo onde natildeo haacute
motivos para tal Por isso eacute preciso constantemente observar a phyacutesis investigar seus modos
de ser refletir sobre esse conhecimento e procurar traduzi-lo em um eacutethos voltado para o
agradaacutevel O saacutebio se exercita justamente nisso pensar a realidade busca compreender sua
constituiccedilatildeo e funcionamento perceber os limites da natureza e pensar a partir disso as
finalidades de suas accedilotildees Trata-se de buscar na phyacutesis um paradigma que sirva para conferir
mais naturalidade ao seu estilo de vida
39 οὗτος μὲν ὁ βίος τἀνδρός ἥδε δὲ ἡ τελευτή 40 Συμπαθῶμεν τοῖς φίλοις οὐ θρηνοῦντες ἀλλὰ φροντίζοντες
101 Na sentenccedila vaticana 66 o termo que Epicuro usa para se remeter a essa complexa
atividade que ocorre na psycheacute do sophoacutes eacute phrontiacutedzontes cujo infinitivo eacute phrontiacutedzo41 que
pode se traduzido como pensar mas tambeacutem traz o sentido de meditar Cremos ser essa uma
traduccedilatildeo mais adequada afinal a meditaccedilatildeo se configura como um exerciacutecio da alma que
envolve sua capacidade para calcular deliberar com prudecircncia resgatar na memoacuteria imagens
sentimentos e princiacutepios fundamentais da physiologiacutea necessaacuterios para estabelecer uma
compreensatildeo da realidade orientada para a autarquia e o prazer Assim natildeo eacute lamentando que
se demonstra cuidado e afeto mas meditando e ao fazecirc-lo libertando-se de concepccedilotildees
vazias e se alegrando com os bons sentimentos partilhados com os amigos no presente e pelas
boas lembranccedilas do que foi vivido no passado
Para isso ser possiacutevel natildeo basta decorar os fundamentos da physiologiacutea e remiti-los
como demonstraccedilatildeo de erudiccedilatildeo como condena Epicuro (SV 76) Eacute preciso assimilar esse
saber ou seja fazecirc-lo paradigma para o pensamento e para a conduta Disso resulta uma
convicccedilatildeo (piacutestis) com relaccedilatildeo agrave possibilidade de a partir de uma investigaccedilatildeo da natureza
dissipar da psycheacute as kenaigrave doacutexai e com isso afastar os medos que impedem o homem de
experimentar a ataraxiacutea e a autaacuterkeia A meditaccedilatildeo exercitando a alma para por meio do
logismoacutes do dialogismoiacutes e da phroacutenesis se valer desse saber para estabelecer um modo de
viver atua no sentido dessa assimilaccedilatildeo e no desenvolvimento de uma convicccedilatildeo firme (piacutestin
beacutebaion) a respeito da utilidade da physiologiacutea para o exerciacutecio de uma vida saacutebia A
serenidade que Epicuro demonstrou ateacute seu derradeiro momento essa imperturbabilidade nos
remete justamente para esse sentimento de confianccedila (piacutestis) com relaccedilatildeo ao uso desse
conhecimento physioloacutegico para nortear uma compreensatildeo da vida e definir uma conduta
saacutebia Ao meditar se desenvolve a convicccedilatildeo de que pensar o eacutethos a partir do que se conhece
sobre a phyacutesis resulta em uma perspectiva de vida mais feliz como sugere a seguinte
passagem
A mesma convicccedilatildeo que nos inspirou a confianccedila de que nada existe de terriacutevel que dure para sempre ou mesmo por muito tempo tambeacutem nos habilita a ver que nos limites mesmos da vida nada aumenta tanto a nossa seguranccedila como a amizade (DL X 148)42
Ou seja a mesma confianccedila que meditar sobre os modos de ser e sobre a constituiccedilatildeo
da natureza estimula tambeacutem desenvolve uma disposiccedilatildeo (diaacutethesis) para orientar a conduta
41 Cf Anatole Bailly Op Cit 42 Ἡ αὐτὴ γνώμη θαρρεῖν τε ἐποίησεν ὑπὲρ τοῦ μηθὲν αἰώνιον εἶναι δεινὸν μηδὲ ολυχρόνιον καὶ τὴν ἐν αὐτοῖς τοῖς ὡρισμένοις ἀσφάλειαν φιλίας μάλιστα κατεῖδε συντελουμένην
102 para a realizaccedilatildeo de um paradigma mais natural de vida Veja-se que Epicuro usa o termo
gnoacuteme (de gnoacutesis) para se referir a esse conhecimento e estabelece uma relaccedilatildeo com o termo
tharreiacuten (de tharreacuteo) que diz respeito a ter confianccedila Assim quanto mais se conhece a
natureza e se medita sobre ela mais se desenvolve a piacutestis que vai resultar em uma disposiccedilatildeo
para estabelecer um modo de viver a partir da physiologiacutea
Eacute essa disposiccedilatildeo da alma que leva o saacutebio a transformar seu eacutethos a querer
permanentemente fazer de sua vida um exerciacutecio de autenticidade liberdade e equiliacutebrio
perspectiva possiacutevel a partir da assimilaccedilatildeo de um conhecimento que instrumentalize a psycheacute
para o domiacutenio dos proacuteprios pensamentos e desejos permitindo escolher e recusar a partir de
uma vontade esclarecida (phroacutenesis) A diaacutethesis eacute o querer constantemente se ocupar com a
sauacutede da alma com o bem-estar em estar vigilante com relaccedilatildeo ao que pode comprometer seu
equiliacutebrio trazer perturbaccedilotildees impedi-lo de agir a partir do proacuteprio pensamento
Provavelmente por essas razotildees Dioacutegenes de Œnoanda mandou esculpir nos muros de sua
cidade para os habitantes e para os viajantes ao passassem por ali saberem a seguinte
inscriccedilatildeo ldquoo mais importante para a felicidade eacute a disposiccedilatildeo da qual nos somos mestresrdquo
(Œno fr 112)43 E para ter a maicirctrise sobre essa diaacutethesis a meditaccedilatildeo fundamentada na
physiologiacutea procura levar o homem a ter confianccedila de que natildeo haacute o que temer quanto aos
deuses natildeo haacute nada a temer quanto agrave morte pode-se alcanccedilar a felicidade e pode-se suportar a
dor Dessa forma delineia-se uma therapeiacutea que poderia suprimir os medos e as perturbaccedilotildees
que nascem das falsas ideias sobre a natureza Eacute no sentido de mostrar esse aspecto praacutetico
ou uacutetil da meditaccedilatildeo ndash ligado agrave disposiccedilatildeo do sophoacutes para contrapor agraves opiniotildees vazias um
saber delineado em torno da natureza e com isso fundamentar um modo saacutebio de compreender
a phyacutesis e viver dentro dos limites dela - que vamos tecer alguns comentaacuterios sobre esse
quaacutedruplo44 remeacutedio
43 Le plus important pour le bonheur crsquoest la disposition dont nous somes maicirctres 44 Eacute em torno dessas quatro assertivas que se formula o tetraphaacutermakon epicurista como foi expresso por Filodemo (Pap Herc 1005 col IV 9-14) Trata-se de um faacutermaco ou uma indicaccedilatildeo terapecircutica para livrar a alma do sofrimento originado nas opiniotildees vazias Essa therapeiacutea havia sido apresentada de maneira mais detalhada na Carta a Meneceu e retomada sinteticamente nas Maacuteximas Capitais (I-IV) Dioacutegenes de Œnoanda tambeacutem reproduziu esse tetraphaacutermakon nos muros de sua cidade para trazer aliacutevio inspiraccedilatildeo e servir como indicativo de meditaccedilatildeo para os que por ali passassem
103 241 - Sobre os deuses
Algumas estaacutetuas dos deuses lanccedilam flechas e satildeo esculpidas com um arco [] outras satildeo escoltadas por feras selvagens e outras se enfurecem contra as pessoas [] Mas eacute preciso fazer as estaacutetuas dos deuses alegres e sorridentes para que noacutes possamos retribuir o sorriso em vez de temecirc-los (Œno fr 19 I-II)45
Esse relato que Dioacutegenes de Œnoanda tambeacutem deixou registrado nos muros de sua
cidade nos mostra por um lado como alguns deuses (theoigrave) eram caracterizados na
antiguidade e por outro indica a concepccedilatildeo que os epicuristas faziam deles Isso nos revela
um contraste entre a representaccedilatildeo das divindades feita pela opiniatildeo geral e aquela adotada
pelo saacutebio No iniacutecio da Carta a Meneceu Epicuro nos daacute elementos para pensar essas
diferenccedilas quando firma a existecircncia dos deuses mas natildeo como retratada pelos muitos (DL
X 123) Para ele ldquoas afirmaccedilotildees da maioria sobre os deuses natildeo satildeo preacute-concepccedilotildees
verdadeiras e sim suposiccedilotildees falsas Por causa de tais suposiccedilotildees falsas imagina-se que
derivam dos deuses os maiores males e bensrdquo (DL X 124)46 Quando diz isso Epicuro nos
remete para uma distinccedilatildeo entre suposiccedilotildees falsas (hypoacutelepseis pseudeicircs) sobre as quais se
fundamentam as crenccedilas da maioria e aquilo que eacute impresso na alma pela natureza o que vai
remeter a impressotildees (proleacutepseis) As opiniotildees vazias se baseiam nessas suposiccedilotildees sem
relaccedilatildeo com a realidade physioloacutegica e alimentam o temor com relaccedilatildeo aos deuses o medo de
que eles possam infligir ao homem castigos impedir sua felicidade Para as kenaigrave doacutexai os
theoigrave seriam seres cujo poder e a vontade sem limites se estendem para aleacutem da phyacutesis
podendo criar ou destruir em funccedilatildeo de suas inclinaccedilotildees Como maneira de lidar com isso
caberia ao homem uma atitude submissa e temerosa
Por outro lado a representaccedilatildeo que o saacutebio estabelece a respeito dos deuses os coloca
como referecircncia de realizaccedilatildeo de um modelo natural de existecircncia Ao representaacute-los natildeo se
faz em um primeiro momento uso direto das proleacutepseis porque ldquoa visatildeo dos deuses se torna
possiacutevel pelos simulacros que chegam agrave alma (e natildeo aos sentidos em razatildeo de seus aacutetomos
tecircnues) (ETIENNE amp OrsquoMEARA 1996 p 86) ldquonesse caso satildeo percepccedilotildees mentaisrdquo
45 Com supressotildees na nossa na traduccedilatildeo O texto de referecircncia eacute [ Certaines statues des dieux] lancent [des flegraveches et sont eculpteacutees tenant] un arc [faites] comme Heacuteraclegraves chez Homeacutere drsquoautres sont escorteacutees par des becirctes sauvages et drsquoautres encore srsquoirritent contre les gens prosperes comme apparaicirct agrave la plupart Neacutemeacutesis Mais il faut faire les statues des dieux joyeuses et souriantes pour que nous leur sourrions en retour plutocirct que nous ne les craignions 46 οὐ γὰρ προλήψεις εἰσὶν ἀλλrsquo ὑπολήψεις ψευδεῖς αἱ τῶν πολλῶν ὑπὲρ θεῶν ἀποφάσεις ἔνθεν αἱ μέγισται βλάβαι αἴτιαι τοῖς κακοῖς ἐκ θεῶν ἐπάγονται καὶ ὠφέλειαι
104 (BOLLACK 1975 p 92) O uso das impressotildees sensiacuteveis se daacute como uma maneira do saacutebio
expressar essa percepccedilatildeo por meio de analogias com elementos mais comuns da realidade
experimentada pelo homem dentro de uma representaccedilatildeo ldquoconforme a noccedilatildeo comum de eus
traccedilada em noacutesrdquo (DL X 123)47 Eacute nesse sentido que ele vai buscar recorrer agraves proleacutepseis
buscando na memoacuteria as imagens que possam representar os deuses como seres vivos
autossuficientes e felizes ou seja dentro de uma naturalidade que o saacutebio procura reproduzir
por meio do exerciacutecio de uma vida katagrave physin
Eacute como contraponto a esse quadro pintado pela maioria cujas cores remetem mais agrave
imaginaccedilatildeo e agrave fantasia que Epicuro afirma ldquoos deuses realmente existem e o conhecimento
de sua existecircncia eacute manifestordquo (DL X 123)48 mas natildeo como a maioria acredita Para os
epicuristas a natureza dos deuses pode ser pensada como corpoacuterea e por isso estaacute circunscrita
agrave phyacutesis Satildeo imortais assim como eacute a proacutepria phyacutesis tomada em sua totalidade (a
imortalidade eacute a existecircncia num tempo que vai desde sempre e para sempre) e vivem no
intervalo entre os mundos (metacoacutesmion) (DL X 89) Ou seja os theoigrave epicuristas pertencem
agrave imanecircncia
Na concepccedilatildeo do saacutebio soacute eacute possiacutevel atribuir aos deuses aquilo que se coaduna com
sua natureza de bem-aventuranccedila de serenidade de imperturbabilidade Por natildeo terem
preocupaccedilotildees natildeo se ocupam com os afazeres dos homens Entatildeo natildeo se deve esperar nada
deles nem temecirc-los O mal natildeo adveacutem de intervenccedilotildees divinas mas do sofrimento que o
saacutebio procura evitar por meio de um caacutelculo soacutebrio (nephroacuten logismoacutes) (DL X 132) voltado
para orientar suas escolhas e eliminar da alma as opiniotildees vazias Por isso a afirmaccedilatildeo de que
natildeo haacute nada a temer quanto aos deuses eacute colocada como um dos quatro componentes do
tetraphaacutermakon natildeo satildeo eles os responsaacuteveis nem pelos infortuacutenios nem pelas alegrias da
vida humana Isso cabe a cada um ateacute onde se estende o poder de suas escolhas
Ora a negaccedilatildeo dessa concepccedilatildeo geral a respeito dos deuses para postular a existecircncia
deles como pertencente agrave mesma natureza do homem e que tem como principais
caracteriacutesticas a vida sem perturbaccedilotildees e autaacuterquica remete para um modo de viver a ser
buscado pelo saacutebio E essa busca implica em um trabalho um esforccedilo feito pelo proacuteprio
homem para fazer de sua vida um exerciacutecio de ataraxiacutea e de autaacuterkeia Trata-se natildeo de
esperar pelo poder divino mas de compreender que as condiccedilotildees para a makariacuteos zecircn
dependem dele e devem ser construiacutedas por ele mesmo E isso requer uma atividade de
47 ὡς ἡ κοινὴ τοῦ θεοῦ νόησις ὑπεγράφη Optamos aqui por uma questatildeo de dar mais clareza ao texto grego por registrar a traduccedilatildeo de Marcel Conche (Eacutepicure Lettres et Maximes 1977) 48 θεοὶ μὲν γὰρ εἰσίνmiddot
105 observaccedilatildeo e meditaccedilatildeo sobre a natureza tendo em vista afastar as opiniotildees vazias e
procurando estabelecer um modo de vida dentro dos limites e possibilidades da phyacutesis
Portanto natildeo se deve temer os deuses mas meditando sobre sua natureza imanente tomaacute-la
como um paradigma natural para estabelecer um modo de viver
242 - Sobre a morte
Epicuro ao tentar traduzir o sentimento geral de seu tempo com relaccedilatildeo agrave morte
(thaacutenatos) diz ser ela ldquoo mais pavoroso dos malesrdquo (DL X 125)49 A perspectiva da morte faz
sofrer aflige o homem lhe impede de experimentar a ataraxiacutea A crenccedila na imortalidade
(athanasiacutea) da alma o faz temer o Hades com sua possibilidade de castigos eternos e a
interrupccedilatildeo da vida contraria o desejo de poder eternamente gozar os prazeres sensiacuteveis Se ldquoa
maioria ora foge da morte como o maior dos malesrdquo (DL X 125)50 o mesmo natildeo acontece
com o saacutebio Isso porque ele aprendeu a orientar seus pensamentos a partir da investigaccedilatildeo
sobre a natureza e por isso compreende a morte sob um aspecto fenomecircnico
Por meio da physiologiacutea o sophoacutes aprendeu que a natureza da alma eacute corpoacuterea Ela
natildeo tem existecircncia anterior nem posterior ao corpo-carne a qual estaacute ligada (DL X 64-66)
Assim sendo ela natildeo sofre apoacutes a morte Se de acordo com a concepccedilatildeo epicurista o
sofrimento e o prazer estatildeo nas sensaccedilotildees a morte - ao privar a alma e o corpo de sentir -
coloca fim a toda possibilidade de prazer ou dor Daiacute Epicuro afirmar que a morte nada eacute para
noacutes (DL X 124 139) Essa assertiva pode conduzir a pensar que a ldquoa morte eacute um temor sem
objetordquo (SALEM 1994 p 204) Isso se explica porque ldquoenquanto existimos a morte natildeo estaacute
presente e quando a morte estaacute presente jaacute natildeo existimosrdquo (DL X 125)51 Ou seja quando
tememos eacute porque a morte natildeo chegou nesse caso o sofrimento eacute vatildeo E quando a morte
privou o homem dos sentidos ele jaacute natildeo pode temecirc-la e aiacute o sofrimento eacute impossiacutevel
Essa reflexatildeo estaacute assentada na compreensatildeo de que viver e morrer satildeo fenocircmenos da
natureza Do ponto de vista physioloacutegico a morte natildeo eacute mais que a corrupccedilatildeo de um corpo a
desagregaccedilatildeo a separaccedilatildeo dos aacutetomos que lhe constituiacutea Assim a morte estaacute dentro do
campo de accedilatildeo da natureza sem nenhuma intervenccedilatildeo divina antes nem durante nem depois
e por isso natildeo deveria trazer afliccedilatildeo Portanto natildeo haacute nada a temer quanto agrave morte como
tambeacutem orienta Filodemo em sua formulaccedilatildeo do tetraphaacutermakon O mundo eacute um continuo
49 τὸ φρικωδέστατον οὖν τῶν κακῶν ὁ θάνατος οὐθὲν πρὸς ἡμᾶς 50 Ἀλλrsquo οἱ πολλοὶ τὸν θάνατον ὁτὲ μὲν ὡς μέγιστον τῶν κακῶν φεύγουσιν 51 ἐπειδήπερ ὅταν μὲν ἡμεῖς ὦμεν ὁ θάνατος οὐ πάρεστιν ὅταν δὲ ὁ θάνατος παρῇ τόθrsquo ἡμεῖς οὐκ ἐσμέν
106 fazer-se e desfazer-se e o homem ser da natureza sujeita-se fisicamente aos mesmos
fenocircmenos Com isso deixa-se perturbar pelo medo de que a morte se aproxima eacute desperdiccedilar
a vida com temores infundados ldquoe tu natildeo sendo senhor do dia do amanhatilde tu estaacutes adiando a
alegria e a vida se consome pela demora e cada um de noacutes morre sem ter descansordquo (SV
14)52
Essa advertecircncia pode ser relacionada a uma orientaccedilatildeo encontrada na Carta a
Meneceu Laacute se diz ldquoa meditaccedilatildeo sobre uma vida bela coincide com a meditaccedilatildeo sobre uma
morte belardquo (DL X 126)53 Em questatildeo estaacute a necessidade de o saacutebio salvaguardar sua
serenidade com relaccedilatildeo agrave morte enquanto exercita sua disposiccedilatildeo para aproveitar a vida A
imortalidade eacute um desejo vazio tanto quanto vazio eacute o temor da morte O saacutebio orienta sua
vida para fazer do tempo presente o mais agradaacutevel possiacutevel ateacute onde depende dele O que ele
busca eacute viver equilibradamente orientado pelo saber depreendido ao investigar a phyacutesis e
isso natildeo estaacute relacionado com viver longamente Em razatildeo disso eacute importante meditar para
que a ideia da morte natildeo traga afliccedilatildeo e pelo contrario para que o saacutebio compreendendo a
morte em sua imanecircncia decirc-se conta da mesma dimensatildeo na qual se circunscreve a
felicidade por isso realizaacutevel enquanto se vive Tanto o sophoacutes quanto quem se deixa guiar
pelas opiniotildees vazias vatildeo morrer mas o primeiro natildeo eacute afligido pela ideia da morte Ao
contraacuterio experimenta a ataraxiacutea e ao fazecirc-lo jaacute estaacute construindo o sentido de uma vida
feliz A meditaccedilatildeo sobre a morte tendo por base a physiologiacutea exercita a compreensatildeo de que
a mortalidade deve ser vivida em sua imanecircncia isto eacute orientada para a liberdade e o prazer
243 - Sobre a felicidade
A realizaccedilatildeo da felicidade (eudaimoniacutea) eacute o problema filosoacutefico que vai caracterizar
todo o pensamento epicurista Em funccedilatildeo de procurar realizar o sentido de felicidade na vida
do homem vai ser pensado um eacutethos orientado para o equiliacutebrio e a liberdade Decorre dessa
necessidade o trabalho de investigaccedilatildeo da phyacutesis para poder conhecer os limites nos quais a
eudaimoniacutea pode ser circunscrita e realizada Por isso a eacutetica epicurista natildeo pode ser
entendida em sua totalidade apartada da physiologiacutea e vice-versa Se na Carta a Meneceu
encontramos meacutetodo para a felicidade (CONCHE 1977 p 40) eacute na Carta a Piacutetocles e na
Carta a Heroacutedoto que encontramos os fundamentos physioloacutegicos que permitem justificar ou
52 Τῆς ἀσφαλείας τῆς ἐξ ἀνθρώπων γενομένης μέχρι τινὸς δυνάμει τε ἐξερειστικῇ καὶ εὐπορίᾳ εἰλικρινεστάτη γίνεται ἡ ἐκ τῆς ἡσυχίας καὶ ἐκχωρήσεως τῶν πολλῶν ἀσφάλεια 53 ἀλλὰ καὶ διὰ τὸ τὴν αὐτὴν εἶναι μελέτην τοῦ καλῶς ζῆν καὶ τοῦ καλῶς ἀποθνῄσκειν
107 entender a maneira de viver postulada para o sophoacutes
Como se conduzir no mundo de maneira a ser feliz eacute uma indagaccedilatildeo que evoca
variados entendimentos e respostas Uma dessas maneiras de entender a felicidade tem
relaccedilatildeo com os mitos A eudaimoniacutea dependeria dos deuses que convencidos das accedilotildees
virtuosas do homem com relaccedilatildeo aos demais e devotas com relaccedilatildeo a eles o fariam apoacutes a
morte conhecer no Reino de Hades as tranquilas paisagens dos Campos Eliacutesios Dessa forma
ser feliz eacute uma conquista projetada no aleacutem-vida e dependente do julgamento divino Essa
seria uma opiniatildeo vigente na poacutelis entre os muitos E a isso a filosofia epicurista se contrapotildee
Na Carta a Meneceu Epicuro fala da possibilidade de viver ldquocomo um deus entre os
homens pois em nada se assemelha a uma criatura mortal o homem que vive entre bens
imortaisrdquo (DL X 135)54 Veja-se que ele projeta a felicidade dos deuses como uma
possibilidade de realizaccedilatildeo humana desde que o homem cultive os bens relacionados a essa
felicidade Se eacute assim entatildeo esse sentido pleno de realizaccedilatildeo eacute experimentado enquanto se
vive na convivecircncia com os outros na relaccedilatildeo estabelecida com os proacuteprios desejos Ser feliz
eacute uma questatildeo relacionada agrave ordem terrena ao campo do imanente ao momento em que se
vive Assim a eudaimoniacutea eacute identificada ao exerciacutecio de uma vida feliz o que remete para o
cultivo de bens como a philiacutea a autaacuterkeia a ataraxiacutea55 que resultam em bem-estar
(eustaacutetheia) alegria liberdade A remissatildeo aos deuses vai figurar aiacute como um modelo de
serenidade equiliacutebrio e autossuficiecircncia ldquoOs deuses de Epicuro satildeo a realizaccedilatildeo ideal de sua
concepccedilatildeo de eudaimoniacutea que domina toda sua filosofia Vivem sempre uma permanente
felicidade natildeo tem nenhuma preocupaccedilatildeo nem as causam aos outrosrdquo (GUAL 1985 p 170)
Sendo da ordem do humano a felicidade natildeo eacute daacutediva eacute resultado de um exerciacutecio
que tem como finalidade a realizaccedilatildeo desse ideal de vida evocado pela imagem dos theoigrave
Esse modelo quando projetado no homem por meio de um modo de viver de acordo com a
phyacutesis eacute o que vai remeter para a imagem do saacutebio Eacute procurando orientar sua accedilatildeo a partir de
um paradigma natural que ele busca experimentar esse sentido de felicidade relacionado a
essa concepccedilatildeo epicurista de deus Em outros termos a eudaimoniacutea ldquosuprema proacutepria da
divindade que natildeo pode ser mais intensardquo (DL X 121)56 serve como concepccedilatildeo para se
pensar a eudaimoniacutea que pode ser realizada pelo sophoacutes Essa diz respeito agrave felicidade
ldquosusceptiacutevel de adiccedilatildeo e subtraccedilatildeo de prazeresrdquo (idem) e portanto que estaacute ao alcance do
54 ζήσῃ δὲ ὡς θεὸς ἐν ἀνθρώποις οὐθὲν γὰρ ἔοικε θνητῷ ζῴῳ ζῶν ἄνθρωπος ἐν ἀθανάτοις ἀγαθοῖς 55 Por oposiccedilatildeo agrave gloacuteria agrave riqueza ao poder bens que trazem consigo o oacutedio a inveja o desprezo O que eacute incompatiacutevel com a condiccedilatildeo de divindade postulada por Epicuro 56 Τὴν εὐδαιμονίαν διχῆ νοεῖσθαι τήν τε ἀκροτάτην οἵα ἐστὶ περὶ τὸν θεόν ἐπίτασιν οὐκ ἔχουσαν καὶ τὴν ltκατὰ τὴνgt προσθήκην καὶ ἀφαίρεσιν ἡδονῶν
108 saacutebio Por isso Filodemo ao apresentar sua formulaccedilatildeo do tetraphaacutermakon afirma pode-se
alcanccedilar a felicidade Porque ao relacionaacute-la ao exerciacutecio de uma vida orientada de acordo
com a phyacutesis o que define o eacutethos do saacutebio a felicidade passa a depender de cada um das
escolhas e das recusas necessaacuterias para conduzir as accedilotildees em direccedilatildeo aos ldquobens imortaisrdquo
Para ser feliz o saacutebio precisa aprender a desejar e a escolher conforme a natureza
Eacute propagado pelas opiniotildees vazias que a felicidade estaacute relacionada agrave obtenccedilatildeo de
riquezas de poder de gloacuteria A proacutepria figura de Alexandre o Grande simboliza esse ideal ao
nos remeter a uma vida dedicada a ultrapassar limites a saciar os desejos de conquistas que
um a um eram substituiacutedos por outros ainda maiores Mas ldquoir sempre adiante eacute jamais
satisfazer o esforccedilordquo e as conquistas de Alexandre nesse sentido satildeo a ldquoanti-sabedoriardquo pois
nos remetem para pensar que a ldquoinsatisfaccedilatildeo resulta da natildeo-limitaccedilatildeo do desejordquo (SALEM
1994 p 67-68) Para Epicuro esse modelo de vida estaacute assentado em valores artificialmente
criados e que natildeo conduzem agrave serenidade e agrave autarquia que a representaccedilatildeo epicurista dos
deuses sugere Pelo contraacuterio essa maneira de se conduzir no mundo traz consigo o oacutedio a
inveja e o desprezo57 o que leva agrave infelicidade Essa busca por bens valorizados pelas kenaigrave
doacutexai gira em torno de necessidades que nem satildeo naturais nem necessaacuterias para a felicidade
Ao contraacuterio submete o homem a uma tirania das vontades e o impede de pensar e agir a
partir de si mesmo caracteriacutestica do ser autaacuterkes Por causa disso eacute recorrente nos textos
epicuristas a concepccedilatildeo segundo a qual uma vida feliz natildeo eacute determinada pela posse de bens
numerosos pela detenccedilatildeo de riquezas Um exemplo disso encontramos nesta sentenccedila
Nem a maior riqueza subsistente nem a estima e a admiraccedilatildeo junto agrave multidatildeo (maioria) nem algo outro das coisas paralelas a causas indefinidas engendram uma alegria digna de viver nem tampouco dissolvem a perturbaccedilatildeo da alma (SV 81)58
No epicurismo a realizaccedilatildeo da felicidade estaacute ligada fundamentalmente agrave
possibilidade de experimentar a ataraxiacutea finalidade maior das accedilotildees do saacutebio Por isso ele
precisa compreender a natureza e em funccedilatildeo dessa compreensatildeo meditar sobre as proacuteprias
vontades e administraacute-las de modo a circunscrevecirc-las aos limites da phyacutesis e natildeo ser
atormentado pela ambiccedilatildeo Decorre dessa meditaccedilatildeo o entendimento de que os bens
57 Epicuro relaciona o oacutedio a inveja e o desprezo com a infelicidade do homem (DL X 117) Esses sentimentos satildeo combatidos pelas virtudes que o saacutebio busca desenvolver sabedoria moderaccedilatildeo justiccedila (DL X 132 SV 5) Mas essas virtudes natildeo devem ser buscadas por si mesmas Elas satildeo um meio Devem ser praticadas tendo em vista o fim que miram a felicidade (o que estaacute relacionado agrave questatildeo da realizaccedilatildeo dos prazeres dentro dos limites da phyacutesis) 58 Οὐ λύει τὴν τῆς ψυχῆς ταραχὴν οὐδὲ τὴν ἀξιόλογον ἀπογεννᾷ χαρὰν οὔτε πλοῦτος ὑπάρχων ὁ μέγιστος οὔθrsquo ἡ παρὰ τοῖς πολλοῖς τιμὴ καὶ περίβλεψις οὔτrsquo ἄλλο τι τῶν παρὰ τὰς ἀδιορίστους αἰτίας
109 necessaacuterios agrave consecuccedilatildeo da felicidade satildeo faacuteceis de obter em contraste agravequeles propagados
pela multidatildeo e resultam de um exerciacutecio de dar mais naturalidade agrave vida Nesse sentido a
ataraxiacutea e a autaacuterkeia - que se quer projetar no modo de viver do saacutebio como equivalentes agrave
bem-aventuranccedila agrave eterna serenidade e agrave autossuficiecircncia (pensadas como atributo da vida
dos deuses) - remetem para um trabalho de limitaccedilatildeo dos desejos ao que eacute natural e
necessaacuterio Isso leva o saacutebio a se desvencilhar das opiniotildees vazias a respeito da felicidade e a
ver na amizade na vida frugal no equiliacutebrio a possibilidade de realizar a eudaimoniacutea
Eacute sob essa perspectiva que Epicuro apresenta sua filosofia como um meacutetodo para a
felicidade uma atividade identificada com o vir a ser do saacutebio Daiacute ele dizer na Carta a
Meneceu (DL X 122) que o tempo dedicado agrave filosofia eacute comparado agravequele dedicado agrave
felicidade Afinal o exerciacutecio filosoacutefico eacute o mesmo que liberta e cura a alma das opiniotildees que
resultam em perturbaccedilotildees e dor Logo a meditaccedilatildeo como uma dimensatildeo praacutetica desse
filosofar constitui-se como uma pragmateiacutea uma compreensatildeo da natureza voltada para
guiar as accedilotildees do saacutebio para a realizaccedilatildeo da felicidade
244 - Sobre a dor
Nos muros de Œnoanda Dioacutegenes mandou gravar as seguintes palavras ldquoquando um
homem eacute acometido por dores corporais ele diz que elas satildeo mais intensas que as da alma e
quando ele sente as afliccedilotildees da alma ele diz que essas satildeo as mais intensasrdquo (Œno fr 44 II ndash
III)59 Para aleacutem da discussatildeo a respeito de saber qual eacute o maior sofrimento nos importa eacute
perceber que a dor (poacutenos) eacute por muitos percebida como um mal do qual sempre se deve
fugir
Por traacutes dessa ideia estaacute o medo de que a dor dure indefinidamente ou ultrapasse os
niacuteveis do suportar Pode-se perceber nesses temores o reflexo das opiniotildees vazias seja
porque ignoram os limites da natureza ou por se permitirem guiar pelos mitos e pensamentos
fantasiosos Eacute nesse contexto que se concebe o sofrimento como resultado do castigo dos
deuses como aquele infligido a Prometeu acorrentado e punido por Zeus apoacutes ter roubado o
fogo e dado este ao homem Tambeacutem haacute quem pense na dor como fim inevitaacutevel e eterno para
aqueles apoacutes a morte conduzidos ao Hades e depois ao Taacutertaro60 Daiacute por um lado alimenta-
se a crenccedila sobre a necessidade de honrar os deuses para escapar agraves suas puniccedilotildees por outro
59 Mais quand um homme est affligeacute de douleurs corporelles il dit qursquoelles sont plus grandes que celles de lrsquoacircme et quand [il fait lrsquoexpeacuterience de celles de lrsquoacircme il dit que crsquoest celles-ci qui sont plus grandes] 60 Uma das partes do Hades (terra dos mortos) para onde satildeo enviados aqueles que devem ser castigados
110 difunde-se a noccedilatildeo de que eacute preciso buscar o prazer sempre e a qualquer custo para escapar do
sofrimento da afliccedilatildeo da dor Inebriados por essas opiniotildees estabelecem um modo de viver
dissoluto creacutedulo distanciado da sabedoria
Mas para aqueles que se exercitam na filosofia do Jardim a aponiacutea sendo fenocircmeno
fiacutesico requer que se compreenda physiologicamente suas causas ou seja dentro de uma
compreensatildeo ligada aos limites da natureza Eacute a partir dessa perspectiva que se busca um
modo de administrar essa afecccedilatildeo em vez de negaacute-la ou de procurar sempre fugir dela
Afinal eacute da relaccedilatildeo que o corpo tem com o mundo-realidade que resultam afecccedilotildees de dor (ou
prazer) que ficam guardadas na alma como imagem sensiacutevel (proleacutepseis) Por isso elas satildeo
importantes para pensar a natureza e o modo de viver do saacutebio - porque elas permitem ouvir o
corpo e refletir a respeito dos seus limites naturais
Claro que Epicuro afirma ldquoa finalidade de todas as nossas accedilotildees eacute nos livrarmos do
sofrimento e do temorrdquo (DL X 128)61 Mas com isso a ecircnfase recai sobre as opiniotildees que
trazem perturbaccedilatildeo ou desequiliacutebrio agrave alma E isso tem uma relaccedilatildeo direta com as kenaigrave doacutexai
Ou seja o sofrimento que resulta de concepccedilotildees falsas a respeito da natureza deve ser evitado
E isso se faz como procuramos mostrar por meio de uma meditaccedilatildeo orientada para por meio
da physiologiacutea levar a alma agrave ataraxiacutea privando-a dessas opiniotildees Para tanto eacute necessaacuteria a
elaboraccedilatildeo de um loacutegos que instile na psycheacute a confianccedila de que ao estabelecer um modo de
viver de acordo com a natureza eacute possiacutevel a makariacuteos zecircn
Por outro lado Epicuro esclarece ldquotoda dor eacute um mal mas nem por isso devemos
fugir de toda dor por sua proacutepria naturezardquo (DL X 129)62 Nesses termos ele estaacute postulando
uma compreensatildeo da dor como fenocircmeno da phyacutesis Assim ela natildeo seria um mal em si mas
poderia indicar a ultrapassagem de um limite orgacircnico ou a submissatildeo do corpo a algum fator
de desequiliacutebrio E isso pode ser relacionado ao exerciacutecio mesmo da sabedoria que consiste
em saber quando conveacutem sentir dor como no caso do atleta ao alongar os muacutesculos para um
melhor funcionamento do corpo ou no caso do agricultor submetido aos rigores impostos
pelo peso do arado e pela extensatildeo do campo em funccedilatildeo de obter uma boa colheita Assim
quando convier o saacutebio natildeo evitaraacute a dor Da mesma forma que se pode dizer da
conveniecircncia em se abster de alguns prazeres que resultam em sofrimento (DL X 129)
Portanto o sophoacutes precisa meditar sobre a vida katagrave phyacutesin e como nela estatildeo relacionados os
61 τούτου γὰρ χάριν πάντα πράττομεν ὅπως μήτε ἀλγῶμεν μήτε ταρβῶμεν 62 οὐ πᾶσα μέντοι αἱρετήmiddot καθάπερ καὶ ἀλγηδὼν πᾶσα κακόν οὐ πᾶσα δὲ ἀεὶ φευκτὴ πεφυκυῖα
111 limites da natureza e a repleccedilatildeo dos desejos para saber o que escolher e o que evitar63 Afinal
ldquoconveacutem entatildeo discriminar todas essas coisas com o caacutelculo daquilo que eacute uacutetil e a ponderaccedilatildeo
daquilo que eacute prejudicial porque em certas circunstacircncias o bem eacute um mal para noacutes e o mal eacute
um bem para noacutesrdquo (DL X 130)64
As dores pensadas enquanto fenocircmeno fazem parte da condiccedilatildeo da vida sujeita agraves
desarmonias aos desequiliacutebrios Por isso satildeo inevitaacuteveis ldquoElas estatildeo presentes mas eacute
possiacutevel para o saacutebio epicurista diminuir fortemente sua intensidade por meio de uma opiniatildeo
verdadeirardquo (ETIENNE amp OrsquoMEARA 1996 p 79) Mas a essa inevitabilidade corresponde
tambeacutem uma descontinuidade como testemunham estas sentenccedilas
O que doacutei natildeo dura continuamente na carne mas o que doi intensamente estaacute presente o tempo miacutenimo e o que sobrepassa o prazeroso segundo a carne acontece natildeo por muitos dias e nas doenccedilas de longa duraccedilatildeo eacute mais pleno o que causa prazer do que o que causa dor (SV 3 DL X 140)
Toda dor pode ser facilmente desprezada aquela que produz um sofrimento tem curta duraccedilatildeo aquela que perdura na carne tem um sofrimento brando (SV 4)
A partir desses passos podemos dizer que na concepccedilatildeo epicurista assim como o
prazer natildeo dura para sempre o mesmo se daacute com relaccedilatildeo agrave dor Quando ela eacute intensa dura
pouco (seja porque leva agrave morte ou deixa de ser intensa) quando ela eacute branda pode ser
suplantada pelo prazer Cabe ao saacutebio desenvolver uma percepccedilatildeo quanto a isso para poder
administrar o sofrimento Assim diante das dores intensas a alma pode experimentar algum
aliacutevio ao saber de sua brevidade e diante daquelas mais moderadas pode-se suplantaacute-las por
meio de uma meditaccedilatildeo voltada para trazer agrave psycheacute as memoacuterias que proporcionam um
prazer capaz de se sobrepor a esse sofrimento como procuramos mostrar no item 22 deste
capiacutetulo
Nesse sentido a meditaccedilatildeo vai se constituir ao mesmo tempo como um exerciacutecio de
compreensatildeo da dor (de saber se ela traz algum benefiacutecio) e como um modo de cuidar
terapeuticamente dela Essa possibilidade de therapeiacutea face ao sofrimento eacute afirmada como
um dos ingredientes do tetraphaacutermakon que Filodemo resumiu assim ldquopode-se suportar a
dorrdquo65 Esse princiacutepio servindo de tema para uma meditaccedilatildeo permite balizado pela
investigaccedilatildeo da natureza entender a naturalidade da dor e que ela pode ser vivida com
63 Vide capiacutetulo I toacutepico 12 deste trabalho 64 τῇ μέντοι συμμετρήσει καὶ συμφερόντων καὶ ἀσυμφόρων βλέψει ταῦτα πάντα κρίνειν καθήκει χρώμεθα γὰρ τῷ μὲν ἀγαθῷ κατά τινας χρόνους ὡς κακῷ τῷ δὲ κακῷ τοὔμπαλιν ὡς ἀγαθῷ 65 Pap Herc 1005 col IV 9-14
112 sabedoria Isso pode permitir ao sophoacutes orientar melhor suas accedilotildees de modo a realizar uma
vida agradaacutevel mesmo em situaccedilotildees de sofrimento
113
CAPIacuteTULO 03
A PRAacuteXIS COMO A PRAGMATEIacuteA NO MODO DE AGIR
No capiacutetulo anterior procuramos caracterizar a meditaccedilatildeo (tograve meleacutetema) como um
exerciacutecio que busca espelhar na alma um saber acerca da phyacutesis Trata-se de uma ocupaccedilatildeo
permanente e voltada para buscar compreender a proacutepria existecircncia e procurar viver conforme
esse entendimento em oposiccedilatildeo agraves kenaigrave doacutexai Eacute por meio de uma praacutetica orientada para
edificar um pensamento de acordo com a natureza que o saacutebio exercita a liberdade ante as
opiniotildees vazias e ao mesmo tempo administra uma therapeiacutea agrave psycheacute que liberta de
perturbaccedilotildees e temores infundados pode se voltar para a realizaccedilatildeo dos prazeres
fundamentais agrave makariacuteos zecircn Nesse entendimento a meditaccedilatildeo se constitui como um
exerciacutecio eacutetico ela desenvolve uma disposiccedilatildeo (diaacutethesis) para pensar e agir livre das
convenccedilotildees que natildeo tecircm na natureza um paradigma de realizaccedilatildeo e portanto natildeo resultaria
em um modo autecircntico de viver
Tambeacutem tentamos mostrar a meditaccedilatildeo como atividade relacionada agrave necessidade de
amadurecer no saacutebio a seguranccedila a confianccedila (piacutestis) com relaccedilatildeo agrave possibilidade de
realizaccedilatildeo de uma vida feliz quando o saber a respeito da phyacutesis eacute projetado em um eacutethos
conforme a natureza Para isso meditar engaja inclina a alma a querer por ela mesma buscar
as condiccedilotildees para sua felicidade a estabelecer uma praacutetica em torno de realizaacute-la Em tal
horizonte compreendemos a afirmaccedilatildeo de Epicuro segundo a qual ldquodevemos entatildeo meditar
sobre tudo o que possa proporcionar a felicidade para que se a temos tenhamos tudo e se
natildeo a temos faccedilamos tudo para tecirc-lardquo (DL X 122)1
Nesse mesmo sentido diz-se na Carta a Meneceu que para gozar de uma vida feliz eacute
necessaacuterio colocar em accedilatildeo (praacutette) o saber acerca da natureza (DL X 123)2 Tal afirmaccedilatildeo
delineia o sentido da pragmateiacutea epicurista tanto quanto remete para uma mudanccedila na
compreensatildeo sobre o que deve orientar a conduta humana Como discutimos em paacuteginas
anteriores a perspectiva epicurista eacute a de instrumentalizar a alma atraveacutes de exerciacutecios de
meditaccedilatildeo para afastaacute-la da influecircncia das opiniotildees vazias e a considerar um paracircmetro mais
1 μελετᾶν οὖν χρὴ τὰ ποιοῦντα τὴν εὐδαιμονίαν εἴπερ παρούσης μὲν αὐτῆς πάντα ἔχομεν ἀπούσης δὲ πάντα πράττομεν εἰς τὸ ταύτην ἔχειν 2 Cf nota 28 da introduccedilatildeo
114 natural a partir do qual se possa pensar a finalidade das accedilotildees A ideia eacute por meio de uma
investigaccedilatildeo da natureza chegar agrave definiccedilatildeo de um paradigma para o agir diferente daquele
que os muitos buscam nos deuses - sujeitos agrave desmesura (hyacutebris) encetada pelos desejos pela
coacutelera pela cupidez Se eacute preciso um modelo divino para inspirar o homem que seja
fundamentado na physiologiacutea e por isso expresse as noccedilotildees de equiliacutebrio e de autarquia
conforme defende Epicuro (DL X 123) Eacute nesse contexto que a praacutexis epicurista pode ser
concebida como sendo toda atividade do homem orientada por um saber que visa restituir a
mesma naturalidade divina ao exerciacutecio da vida humana
Isso nos remete para imaginar que ao delinear os caminhos para se alcanccedilar a
sabedoria Epicuro natildeo trabalha a partir de categorias de pensamento para depois aplicaacute-las ao
entendimento da realidade em especial da conduta humana O caminho eacute outro parte-se da
phyacutesis para compreender e postular o agir e o teacutelos das accedilotildees O sophoacutes eacute venerado porque ele
remete para uma forma de se conduzir orientada por necessidades naturais e para finalidades
pensadas dentro dos limites da natureza Daiacute Epicuro dizer que o exerciacutecio da sabedoria vai
consistir em pocircr em accedilatildeo os preceitos comunicados (pela physiologiacutea) com a confianccedila ou
bem persuadidos (pepeismeacutenoi gnesiacuteos)3 da possibilidade de ser feliz Eacute a compreensatildeo sobre
como a natureza pode servir de modelo para a makariacuteos zecircn que vai orientar o fazer do saacutebio
no mundo a partir de seu poder de escolher e rejeitar sem a sujeiccedilatildeo aos valores
convencionados artificialmente
Aqui vale ressaltar partindo do referenciado por Bailly4 e por Silva5 a forma
imperativa prᾶtte6 e a forma substantiva praacutexis7 tecircm origem no termo praacutesso8 que remete
para a noccedilatildeo de ato execuccedilatildeo tarefa A praacutexis (praacutexis) epicurista eacute accedilatildeo conduta praacutetica de
uma liberdade de escolha orientada para a definiccedilatildeo de um modo mais natural de ser Ao
refletir sobre a phyacutesis busca-se a partir dela uma fundamentaccedilatildeo para conduzir a uma accedilatildeo
saacutebia seja nas relaccedilotildees estabelecidas em sociedade seja na maneira de lidar com a proacutepria
natureza Sendo assim a praacutexis ao buscar realizar um modo saacutebio de se colocar no mundo a
partir de um saber sobre a natureza nos remete para uma indissociaccedilatildeo entre a eacutetica e a
physiologiacutea
Ora pensar a vida pelo prisma da physiologiacutea e procurar viver a partir desse
3 πεπεισμένοι γνησίως (DL X 130) Gama Cury traduz como ldquosinceramente persuadidordquo 4 Anatole Bailly Op Cit 5 Markus Silva Termos Filosoacuteficos de Epicuro Op Cit 6 DL X 123 7 DL X 81 135 148 185 8 Πράσσω
115 conhecimento ao mesmo tempo em que define o sentido da praacutexis epicurista tambeacutem nos
remete a uma concepccedilatildeo de filosofia elaborada como um saber em torno da vida ou uma arte
de viver No contexto desta inter-relaccedilatildeo entre uma compreensatildeo physioloacutegica do mundo e o
modo como se vive visando realizar uma vida feliz eacute possiacutevel sublinhar o papel praacutetico da
filosofia do Jardim projetado na figura do sophoacutes Nesse ideal a vida pretendida a vida
filosoacutefica consiste na aplicaccedilatildeo constante desse saber ao exerciacutecio de viver Nesses termos a
praacutexis eacute conhecimento aplicado ao dia a dia na construccedilatildeo cotidiana de atitudes voltadas para
a liberdade e o prazer E na medida em que a sabedoria remete para uma ocupaccedilatildeo com a
consecuccedilatildeo de um eacutethos katagrave phyacutesin ela estaacute realizando a pragmateiacutea epicurista Daiacute
podermos dizer que a pragmateiacutea se efetiva como modo de viver por meio do saacutebio de sua
praacutexis
Partindo da ideia segundo a qual o sentido da praacutexis estaacute em estabelecer uma maneira
de se conduzir na vida guiada pela physiologiacutea e tendo em vista a makariacuteos zecircn seria o caso
de tambeacutem compreender essa praacutexis como toda conduta orientada por um pensamento
esclarecido com relaccedilatildeo aos limites em que se circunscreve a felicidade e a possibilidade
praacutetica de experimentaacute-la Isso nos remete para pensar as accedilotildees do sophoacutes como o exerciacutecio
de uma disposiccedilatildeo (diaacutethesis) para natildeo soacute se desvencilhar dos valores e desejos que projetam
a felicidade para aleacutem da phyacutesis mas principalmente para encetar um agir autaacuterquico
condiccedilatildeo fundamental para edificar um modo de viver mais autecircntico mais natural Afinal ao
entender - dentro dos limites da phyacutesis - o que pode o homem o saacutebio direciona suas accedilotildees
essencialmente para o necessaacuterio agrave sua realizaccedilatildeo Isso permite identificar na praacutexis epicurista
uma ligaccedilatildeo entre a praacutetica da sabedoria a investigaccedilatildeo da natureza e o exerciacutecio da
liberdade Eacute como sophoacutes-physiologoacutes-autaacuterkes que se definem e realizam as condutas
transformadoras da experiecircncia de existir E isso se daacute meio agrave necessidade de estabelecer um
eacutethos espelhado em um paradigma natural Para tanto eacute preciso viver exercitando esse saber
sobre a natureza (DL X 123) e natildeo legitimando e reproduzindo o colocado socialmente como
norma convenccedilatildeo haacutebito
Postulamos no capitulo anterior que a meditaccedilatildeo liberta a alma das opiniotildees vazias e
isso permite ao saacutebio agir a partir de si mesmo Agora podemos dizer que aleacutem de agir a partir
de si mesmo ele age para si mesmo E natildeo cabe aqui nenhuma interpretaccedilatildeo dessa afirmaccedilatildeo
no sentido de uma atitude egoiacutesta do sophoacutes O direcionamento eacute outro o agir para si estaacute
relacionado agrave possibilidade de escolher uma maneira de viver afirmativa da proacutepria liberdade
com mais equiliacutebrio e mais prazer E isso como vimos remete para bem-estar (eustatheiacutea)
116 para a ausecircncia de distuacuterbio no corpo (aponiacutea) e de perturbaccedilatildeo na alma (ataraxiacutea) Se em
outros momentos da histoacuteria a filosofia pensava o homem virtuoso como aquele que
edificava os valores ligados agrave poacutelis agrave democracia agrave poliacutetica agora o direcionamento eacute para os
valores que remetem para uma vida tranquila livre autecircntica e feliz Essa perspectiva norteia
nossas reflexotildees a respeito da praacutexis epicurista de como ela define a imagem do saacutebio como
aquele que vive como um deus entre os homens e da filosofia como o exerciacutecio da sabedoria
31 ndash A praacutexis do saacutebio escolher e recusar
Epicuro acredita na possibilidade de viver ldquocomo um deus entre os homensrdquo (DL X
135)9 e em torno dessa projeccedilatildeo constroacutei o que jaacute foi referido como uma ldquoutopia epicuristardquo
(ETIENNE amp OrsquoMEARA 1996 p 101)10 Natildeo cremos ser o termo utoacutepico o mais adequado
para se referir a esse ideal afinal a experiecircncia vivida no Jardim por Epicuro e seus
disciacutepulos aponta no sentido contraacuterio de algo realizaacutevel factiacutevel como estamos tentando
mostrar aqui ao caracterizar a filosofia epicurista como uma pragmateiacutea que se realiza como
exerciacutecios eacuteticos E um testemunho de Dioacutegenes de Œnoanda usado para delinear o horizonte
dessa evocada ldquoutopiardquo nos serve justamente para evidenciar essa dimensatildeo do que eacute possiacutevel
ao homem quando orienta suas accedilotildees pelo saber inteligido ao investigar a phyacutesis Vejamos
[] uma vez que nem todos tecircm o poder Mas se noacutes o supomos possiacutevel entatildeo verdadeiramente a vida dos deuses passaraacute aos homens Porque todas as coisas seratildeo plenas de justiccedila e de amor muacutetuo e natildeo haveraacute necessidade de fortificaccedilotildees ou de leis e de todas essas coisas que noacutes criamos por causa dos outros (Œno fr 56 II)11
Embora o fragmento esteja incompleto podemos aventar a possibilidade em
consonacircncia ao conjunto da filosofia epicurista que esse poder do qual fala Dioacutegenes pode ser
o de escolher Como vimos no segundo capiacutetulo deste trabalho somente quem liberta a alma
das concepccedilotildees vazias das convenccedilotildees colocadas pela cultura religiatildeo pelas kenaigrave doacutexai
pode agir por si mesmo e direcionar suas escolhas para satisfazer os desejos ligados ao
exerciacutecio de uma vida autaacuterquica e feliz Saacutebio eacute quem pensa suas necessidades pelo prisma
do natural e do necessaacuterio pois isso lhe permite experimentar o mesmo sentido de autaacuterkeia
que Epicuro usa para caracterizar o permanente estado de liberdade e imperturbabilidade dos
9 ζήσῃ δὲ ὡς θεὸς ἐν ἀνθρώποις 10 La philosophie Eacutepicurienne sur Pierre op cit 11 [] puisque tous nrsquoen ont pas le pouvoir Mais si nous le supposons possible alors veacuteritablement la vie des dieux passera aux hommes Car toutes choses seront pleines de justice et drsquoamour mutuel e il nrsquoy aura pas besoin de fortifications ou de lois et de toutes ces choses que nous fabriquons agrave cause des autres
117 deuses Dessa forma eacute possiacutevel confiar que a vida deles pode ser experienciada pelos
homens mas natildeo por todos porque nem todos exercitam a alma para escolher livremente e
nem escolhem em funccedilatildeo do prazer E como para Epicuro ldquoo fruto maior do bastar-se a si
mesmo eacute a liberdaderdquo quem natildeo busca a autarquia distancia-se desse ideal
Entatildeo se Epicuro venera os theoigrave como modelo de serenidade de autarquia eacute para
projetar na figura do sophoacutes essa aspiraccedilatildeo de vida Ele o saacutebio eacute quem pode realizar essa
ldquoutopiardquo que consiste em viver ldquocomo um deus entre os homensrdquo (DL X 135)12 ou seja sem
preocupaccedilotildees sem medos sem ser assujeitado por desejos sem causar males aos outros nem
os sofrer Dioacutegenes fiel agrave filosofia epicurista tenta desenhar em seu testemunho um lugar
onde prevalece o justo (diacutekaios) e o amor muacutetuo Ora a justiccedila (dikaiosyacutene) para Epicuro
consiste em um ldquopacto no sentido de natildeo prejudicar nem ser prejudicadordquo (DL X 33)13 eacute
portanto algo construiacutedo entre os proacuteprios homens E o amor correspondido remete para a
noccedilatildeo de amizade (philiacutea) Esse termo se refere a relaccedilotildees estabelecidas livremente entre
pessoas em funccedilatildeo de afinidades do contentamento proporcionado Portanto tambeacutem remete
ao poder de escolher Considerando que onde o justo prevalece natildeo haacute desequiliacutebrio e onde a
amizade estaacute presente tambeacutem haacute seguranccedila tranquilidade e satisfaccedilatildeo entatildeo esse ideal de
vida divina eacute possiacutevel a depender da maneira de se portar no mundo e dos valores que guiam
o agir dos homens E isso estaacute relacionado a um modo especiacutefico de compreender a realidade
e de escolher em funccedilatildeo dessa compreensatildeo E o saacutebio traduz esse sentido ao orientar sua
praacutexis de modo a colocar-se na vida como justo e amigo
Para realizar esse modo de existir dos deuses - livre e feliz - eacute preciso conferir agrave vida
mais naturalidade E isso depende do homem fazer com que suas accedilotildees correspondam com o
modo proacuteprio de ser da natureza Vale lembrar que a physiologiacutea aponta para uma
compreensatildeo da phyacutesis a qual natildeo tem sua dyacutenamis determinada ou perturbada por nada
exterior a ela No mesmo paralelo um eacutethos liberto e tranquilo pode ser realizado mediante
escolhas e recusas voltadas para espelhar esse modo natural de ser Assim a liberdade como a
possibilidade de agir por si mesmo e a felicidade como um estado equilibrado dizem respeito
a um exerciacutecio a uma construccedilatildeo a uma praacutexis katagrave phyacutesin
Eacute nesse sentido que objetivo das accedilotildees do saacutebio vai ser orientado para a realizaccedilatildeo da
proacutepria felicidade e todas as escolhas e recusas vatildeo ter em mira esse teacutelos Em cima desse
direcionamento o homem procura exercitar a sabedoria no agir definindo uma praacutexis
12 ζήσῃ δὲ ὡς θεὸς ἐν ἀνθρώποις 13 συνθήκη τις ὑπὲρ τοῦ μὴ βλάπτειν ἢ βλάπτεσθαι
118 fundamentada no seu poder discernir o fundamental para uma vida feliz Dioacutegenes de
Œnoanda faz um comentaacuterio nesse sentido opondo o que se deve evitar ao que se deve
escolher e definindo a filosofia como uma praacutetica relacionada agrave escolha daquilo do que
proporciona felicidade
[ muitos] procuram filosofar a fim de obter para si coisas de indiviacuteduos ou de reis para quem a filosofia eacute tida como um bem precioso Natildeo eacute contudo para ter uma dessas coisas mencionadas que noacutes empreendemos essa praacutetica ltda filosofiagt mas para ser feliz tendo conquistado a finalidade da natureza (Œno fr 29 I e II)14
Essa relaccedilatildeo pretendida entre a realizaccedilatildeo de uma maneira saacutebia de viver e a filosofia
tem em conta que a makariacuteos zecircn buscada pelo saacutebio soacute eacute possiacutevel se ele escolher o prazer e
sobre essa finalidade estabelecer seu modo de viver E isso volta a nos remeter para a
importacircncia de ter a natureza como paradigma e natildeo as convenccedilotildees fundadas em opiniotildees
vazias Assim o teacutelos das accedilotildees do sophoacutes natildeo estaacute projetado no que os muitos professam
(riqueza gloacuteria poder) mas em estabelecer um eacutethos dentro dos limites da natureza A vida
saacutebia eacute tranquila frugal alegre e autaacuterquica e a praacutexis epicurista visa justamente isso Vale
lembrar quando tratamos da vida katagrave phyacutesin no capiacutetulo I destacamos que o saacutebio escolhe
em funccedilatildeo da necessidade e isso estaacute relacionado a buscar satisfazer os desejos naturais e
necessaacuterios e afastar-se daqueles que nem satildeo naturais e nem necessaacuterios Ao circunscrever
suas vontades aos limites da phyacutesis o saacutebio exercita o domiacutenio sobre si mesmo e experimenta
uma independecircncia para fazer escolhas e recusas objetivando edificar a proacutepria felicidade
Escolher e recusar com sabedoria depende nesse caso da possibilidade de se distanciar das
opiniotildees vazias Aiacute se mostra a importacircncia da physiologiacutea para a praacutexis epicurista O saacutebio
age a partir de criteacuterios e raciociacutenios que desconstruindo essas opiniotildees e edificando um
loacutegos de acordo com a phyacutesis conduzem a escolher em funccedilatildeo de ser feliz
Mas essas escolhas e recusas tambeacutem incidem sobre sentimentos pois haacute aqueles
relacionados agrave construccedilatildeo de uma vida feliz e aqueles que afastam o homem desse objetivo
Diante disso o saacutebio procura compreendecirc-los e administraacute-los uma vez que eles podem
direcionar a accedilatildeo tanto para o bem quanto para o mal Sobre esse aspecto Epicuro afirma ldquoas
causas dos males praticados pelos homens satildeo o oacutedio a inveja e o desprezordquo (DL X 75)
Ora o mal aqui eacute entendido como o sofrimento e natildeo eacute possiacutevel ser feliz se as accedilotildees satildeo
14 [beaucoup] cherchent agrave philosopher afin de se procurer ces choses aupregraves des particuliers ou des roacuteis chez qui la philosophie est tecircnue pour une grande et preacutecieuse possession Ce nrsquoest donc pas afin drsquoavoir une des choses susmentionneacutees que nous avons entrepris cete pratique ltde la philosophiegt mas pour ecirctre heureux ayant acquis la fin rechercheacutee par la nature
119 orientadas para essa finalidade assim como natildeo eacute possiacutevel pensar a ataraxiacutea e o equiliacutebrio por
meio de uma praacutexis motivada pela tristeza pelo rancor pelos desafetos
Em face desse problema a filosofia epicurista postula que ldquoas lsquoafecccedilotildeesrsquo15 natildeo satildeo
incompatiacuteveis com a busca da sabedoria Ainda que o epicurismo recuse a apaacutetheia a perfeita
insensibilidade do saacutebio estoico o saacutebio natildeo estaacute contudo assujeitado agraves paixotildees
propriamente ditasrdquo (RODIS-LEWIS 1975 p 204) Assim natildeo eacute o caso de negar a existecircncia
desses sentimentos nem de ficar agrave mercecirc deles nem de ficar indiferente a eles Ao contraacuterio
eacute em torno deles que o saacutebio coloca em exerciacutecio a pragmateiacutea fazendo convergir uma
compreensatildeo sobre a natureza para a praacutetica da autaacuterkeia o que resulta na possibilidade de
um autodomiacutenio pois incompatiacutevel agrave sabedoria eacute natildeo ter o domiacutenio sobre a vontade e isso
revela uma alma adoecida pelas paixotildees e enfraquecida em sua capacidade de determinaccedilatildeo
Nesse sentido o oacutedio a inveja o desprezo satildeo sentimentos relacionados aos deuses
dos muitos mas natildeo agrave concepccedilatildeo de divindade postulada pelo epicurismo e tomada como
modelo para a praacutexis humana Se os theoigrave epicuristas natildeo tecircm coacutelera nem desejam aleacutem de sua
autossuficiecircncia eacute porque esse eacute seu modo natural de existir e o saacutebio toma isso como
referecircncia para orientar suas escolhas e recusas Dessa forma o sentimento de inveja que o
sophoacutes poderia sentir ao perceber a riqueza dos outros eacute anulado pela compreensatildeo de que o
necessaacuterio basta e faz feliz enquanto o excessivo remete para uma busca sem fim e sem
sossego A esse sentimento ele contrapotildee a alegria de quem ri e governa sua vida orientado
pela reta filosofia (SV 41) Pois foi investigando a natureza e meditando sobre ela que ele
compreendeu que ldquonatildeo se deve ter inveja de ningueacutem os bons natildeo satildeo dignos de inveja e os
maus quanto mais afortunados tanto mais eles se prejudicam a si mesmosrdquo (SV 53)16 Do
mesmo modo a raiva o oacutedio o rancor e outros sentimentos da mesma espeacutecie tambeacutem
podem ser submetidos a uma ponderaccedilatildeo quanto agraves suas causas e consequecircncias Esta
sentenccedila de Epicuro pode ajudar na compreensatildeo desse aspecto
Com efeito as coacuteleras acontecem aos que geraram contra os que nasceram segundo o que eacute preciso eacute vatildeo por isso mesmo colocar-se em posiccedilatildeo
15 Nos textos de Epicuro o termo paacutethos diz respeito agraves afecccedilotildees que sentimos mediante o contato entre nossos sentidos e o mundo fenomecircnico Mas tambeacutem pode se referir em sentido menos teacutecnico aos sofrimentos da alma causados pelo desequiliacutebrio do corpo-carne No que diz respeito ao emprego desse vocaacutebulo para se referir agraves paixotildees encontramos apenas uma referecircncia nas Sentenccedilas Vaticanas onde se diz rdquosuprimindo o olho no olho (o olhar direcionado) as relaccedilotildees muacutetuas e a convivecircncia o sentimento amoroso se dissiparsquo Em grego Ἀφαιρουμένης προσόψεως καὶ ὁμιλίας καὶ συναναστροφῆς ἐκλύεται τὸ ἐρωτικὸν πάθος (SV 18) E aqui estamos tratando justamente desse tipo de sentimento dessas paixotildees que podem exercer um domiacutenio sobre o homem e condicionar suas accedilotildees 16 Οὐδενὶ φθονητέονmiddot ἀγαθοὶ γὰρ οὐκ ἄξιοι φθόνου πονηροὶ δὲ ὅσῳ ἂν μᾶλλον εὐτυχῶσι τοσούτῳ μᾶλλον αὑτοῖς λυμαίνονται
120 contraacuteria e natildeo ir em busca de encontrar compreensatildeo e se eacute segundo o que natildeo eacute preciso mas sem muita razatildeo eacute ridiacuteculo aquele que estaacute possuiacutedo pela emoccedilatildeo aticcedilar mais ainda a falta de razatildeo e natildeo procurar mudar segundo outros modos benevolentes (mais suaves) (SV 62) 17
Evidentemente temos aiacute como enquadramento a relaccedilatildeo entre pais (que geraram) e
filhos (que nasceram) Mas o entendimento pode ser aplicado a outras circunstacircncias da vida
onde haja uma disposiccedilatildeo para reagir movido por sentimentos de agressividade de irritaccedilatildeo
A ideia colocada eacute a da irracionalidade em alimentar esse paacutethos com relaccedilatildeo a quem frustra
com razatildeo os desejos de outrem tambeacutem de ser inuacutetil adotar accedilotildees movidas pela raiva contra
aquele que mesmo sem fundamento castra vontades ou tolhe opiniotildees No primeiro caso
porque eacute injusto no segundo porque incita ainda mais o confronto Com isso coloca-se a
necessidade de dominar essas inclinaccedilotildees por meio do logismoacutes e da phroacutenesis para rejeitar
todo comportamento reativo gerador para si e para os outros de perturbaccedilatildeo e desequiliacutebrio
A eacutetica epicurista estaacute centrada no poder de escolher e recusar do homem Mas eacute
preciso considerar que haacute coisas sobre as quais ele tem domiacutenio e outras natildeo A filosofia
entatildeo vai ter sua importacircncia ao desenvolver nele um discernimento para saber esses limites e
definir dentro deles uma praacutexis direcionada para o prazer a alegria a tranquilidade Dessa
forma para o saacutebio sentimentos como rancor inveja despeito estatildeo intimamente ligados a
uma compreensatildeo enviesada a respeito da phyacutesis e quanto aos valores fundamentais para a
realizaccedilatildeo da felicidade e por isso contaminam os relacionamentos e adoecem a alma Eles
remetem para a artificializaccedilatildeo da vida das relaccedilotildees e se opotildeem agrave noccedilatildeo de uma natureza
equilibrada
Por isso ao contraacuterio da poacutelis no Jardim se ensina que natildeo haacute necessidade de
estimular a ambiccedilatildeo a disputa de querer sempre mais do que o outro pode ter Ao contraacuterio
postula-se o bem-estar promovido por uma vida frugal Ao pensar um modo de vida onde a
inveja a competiccedilatildeo a disputa a exploraccedilatildeo natildeo prevalecem diante do sentimento de
comunidade de amizade esses sentimentos que causam inquietude inseguranccedila medo
perdem o sentido E isso estaacute ligado a escolher entre ter o necessaacuterio agrave felicidade ou querer
ter sempre mais O saacutebio escolhe guiado pelo saber a respeito da phyacutesis tendo em mira a
felicidade e os limites aos quais ela se circunscreve E isso lhe permite ter a compreensatildeo que
natildeo eacute da natureza do homem sentir oacutedio inveja desprezo e a escolher se afastar de relaccedilotildees
estimuladoras desses sentimentos
17 Εἰ γὰρ κατὰ τὸ δέον ὀργαὶ γίνονται τοῖς γεννήσασι πρὸς τὰ ἔκγονα μάταιον δήπουθέν ἐστι τὸ ντιτείνειν καὶ μὴ παραιτεῖσθαι συγγνώμης τυχεῖν εἰ δὲ μὴ κατὰ τὸ δέον ἀλλὰ ἀλογώτερον γελοῖον πᾶν τὸ πρὸς ἔκκλησιν ltἐκκαλεῖνgt τὴν ἀλογίαν θυμῷ κατέχοντα καὶ μὴ ζητεῖν μεταθεῖναι κατrsquo ἄλλους τρόπους εὐγνωμονοῦντα
121 32 ndash A accedilatildeo modulada pelo logismoacutes e pela phroacutenesis
Dissemos anteriormente que para Epicuro o mal deriva do oacutedio da inveja e do
desprezo E tambeacutem que esses natildeo satildeo sentimentos naturais mas reflexos de uma forma de
viver fundamentada em concepccedilotildees vazias Resultaria disso uma desmesura (hyacutebris) e
portanto um desequiliacutebrio que natildeo se repercute na alma do saacutebio nem nas accedilotildees dele Isso
porque ele guia suas conduta pelo logismoacutes e pela phroacutenesis ancorados na physiologiacutea Para
explicar esse raciociacutenio vamos considerar o seguinte testemunho da Carta a Meneceu
Natildeo eacute uma sucessatildeo ininterrupta de banquetes e festas nem o prazer sexual com meninos e mulheres nem a degustaccedilatildeo de peixes e outras iguarias oferecidas por uma mesa suntuosa que proporciona a vida agradaacutevel e sim um caacutelculo soacutebrio (logismograves) que investigue as causas de toda escolha e de toda rejeiccedilatildeo e elimine as opiniotildees vatildes por obra das quais um intenso tumulto de apossa das almas (DL X 132)18
A praacutexis epicurista edifica o modo de viver do saacutebio a partir de uma compreensatildeo da
phyacutesis e natildeo de acordo com os valores predominantes na poacutelis Por meio da physiologiacutea satildeo
pensados os limites naturais para o agir e as finalidades das accedilotildees Se o objetivo maior disso eacute
dar um direcionamento para tornar possiacutevel fazer da vida um exerciacutecio de liberdade
serenidade e equiliacutebrio entatildeo o foco recai em poder estabelecer uma medida que impeccedila o
saacutebio de agir contra a natureza Isso implica na necessidade de pensar a partir do saber
physioloacutegico para poder deliberar de forma a escolher e rejeitar visando realizar um modo
saacutebio de viver
O termo empregado por Epicuro para definir essa capacidade da psycheacute para calcular
avaliar e com isso poder fazer escolhas eacute logismoacutes19 Por meio dessa faculdade a alma pode
pensar uma conduta dentro dos limites do natural e necessaacuterio e evitar que a vontade se
projete em desmesuras e desequiliacutebrios O logismoacutes ldquotem a finalidade de na medida do
possiacutevel livraacute-la do erro e do engano nos julgamentos e opiniotildees que venha a manifestarrdquo
(SILVA 2003 73) Isso nos remete para uma ideia de intencionalidade que vai gerir toda a
conduta do saacutebio Sua praacutexis tem no logismoacutes a possibilidade de uma reflexatildeo voltada para
avaliar selecionar e escolher em funccedilatildeo da sua compreensatildeo da natureza e de realizar um
modo de vida identificado com ela Daiacute porque ldquoraramente a sorte prejudica um homem saacutebio
pois as coisas principais e fundamentais sempre foram governadas pela razatildeo (logismoacutes) e 18 οὐ γὰρ πότοι καὶ κῶμοι συνείροντες οὐδrsquo ἀπολαύσεις παίδων καὶ γυναικῶν οὐδrsquo ἰχθύων καὶ τῶν ἄλλων ὅσα φέρει πολυτελὴς τράπεζα τὸν ἡδὺν γεννᾷ βίον ἀλλὰ νήφων λογισμὸς καὶ τὰς αἰτίας ἐξερευνῶν πάσης αἱρέσεως καὶ φυγῆς καὶ τὰς δόξας ἐξελαύνων ἐξ ὧν πλεῖστος τὰς ψυχὰς αταλαμβάνει θόρυβος 19 DL X 32 39 75 76 117 132 144 145
122 por todo o curso da vida a razatildeo as governa e governaraacuterdquo (DL X 144)20 Por isso Epicuro
coloca o logismoacutes como essa faculdade da alma que proporciona uma vida agradaacutevel pois
sem ela os desejos se desgovernam e se projetam sem limites desequilibrando o homem e o
colocando agrave mercecirc de necessidades nem naturais e nem necessaacuterias
A accedilatildeo saacutebia eacute consequecircncia da deliberaccedilatildeo e esta eacute orientada por esse caacutelculo
racional Mas eacute preciso uma disposiccedilatildeo para agir segundo o logismoacutes Estamos aiacute no acircmbito
da phroacutenesis Esse vocaacutebulo eacute traduzido por sensatez prudecircncia ldquovontade esclarecidardquo e
sabedoria21 Mas para aleacutem de uma traduccedilatildeo eacute preciso entender o valor circunscrito por essa
palavra ldquoEpicuro utiliza o termo phroacutenesis num sentido muito similar agravequele desenvolvido
por Aristoacuteteles ou seja como lsquosabedoria praacuteticarsquordquo (SILVA 2003 p 74) Assim poderiacuteamos
pensar sob a perspectiva de uma sabedoria no agir A phroacutenesis em Epicuro diz respeito ao
aspecto praacutetico da sua filosofia a uma disposiccedilatildeo para se conduzir orientado por um saber
physioloacutegico tendo em vista realizar uma vida feliz
Isso nos permite estabelecer uma relaccedilatildeo entre phroacutenesis e praacutexis em torno da
realizaccedilatildeo de um eacutethos fundamentado na natureza Se a filosofia epicurista visa apontar um
caminho para viver naturalmente sem se assujeitar a convenccedilotildees vazias a phroacutenesis eacute a
virtude que conduz o exerciacutecio desse modo natural de vida Isso porque pela compreensatildeo
epicurista a makariacuteos zecircn consiste em agir orientado pela physiologiacutea e a phroacutenesis daacute a
medida desse agir Ela modula os desejos iacutempetos sentimentos e permite governar as accedilotildees
de modo a poder escolher e recusar em funccedilatildeo de um teacutelos katagrave phyacutesin Nesse sentido haacute uma
extensatildeo entre a filosofia e phroacutenesis onde esta remete para a praacutexis filosoacutefica atraveacutes da qual
a pragmateiacutea passa a ser espelhada no modo de viver do saacutebio
Nos textos de Epicuro tanto a noccedilatildeo de phroacutenesis quanto a de filosofia se referem a
um exerciacutecio que prepara os ldquoaacutegeis e autaacuterquicosrdquo22 termos que remetem para uma atividade
para uma disposiccedilatildeo mas tambeacutem para um aspecto de liberdade que caracteriza as accedilotildees do
saacutebio Sua conduta eacute determinada a partir de sua faculdade de pensar e escolher por si mesmo
Isso faz pensar o phroneacuteo como quem intelige do estudo da natureza a orientaccedilatildeo para seus
modos e projeta a finalidade das suas accedilotildees em conformidade com o sentido de uma vida katagrave
phyacutesin Em vista disso a praacutexis do sophoacutes vai se desenvolver orientada para a autaacuterkeia e
para o prazer
20 Βραχέα σοφῷ τύχη παρεμπίπτει τὰ δὲ μέγιστα καὶ κυριώτατα ὁ λογισμὸς διῴκηκε καὶ κατὰ τὸν συνεχῆ χρόνον τοῦ βίου διοικεῖ καὶ διοικήσει 21 Ver tambeacutem nota 74 do capitulo I 22 Cf nota 98 do capiacutetulo I
123 Podemos perceber diante do exposto que a phroacutenesis pensada como sabedoria praacutetica
natildeo se opotildee agrave investigaccedilatildeo da natureza nem estaacute distanciada dela A sabedoria epicurista
implica um saber sobre a phyacutesis a partir do qual satildeo definidas as accedilotildees para conduzir a uma
vida feliz A phroacutenesis ldquotraduzrdquo esse saber em uma disposiccedilatildeo para exercitar uma maneira de
ser fundamentada pela physiologiacutea Natildeo havendo esse conflito
a questatildeo passa a ser para Epicuro como tornar possiacutevel filosofar tanto no sentido praacutetico quanto no teoreacutetico portanto eacute forccediloso admitir que eacute a phroacutenesis que conduz este processo porque ela daacute ao homem o poder de refletir acerca do que eacute natural e necessaacuterio saber tanto do ponto de vista praacutetico quanto teoacuterico (SILVA 2003 p 74)
Dada essa importacircncia da phroacutenesis no contexto da filosofia epicurista precisamos
expor aqui uma discussatildeo com relaccedilatildeo agrave compreensatildeo do seguinte passo da Carta a Meneceu
O principio de tudo isso e o maior bem eacute a sabedoria (phroacutenesis) consequentemente a possessatildeo mais preciosa da proacutepria filosofia eacute a sabedoria origem natural de todas as outras formas de excelecircncias restantes com efeito ela nos ensina que natildeo se pode levar uma vida agradaacutevel se natildeo se vive com sabedoria moderaccedilatildeo e justiccedila nem se pode levar uma vida saacutebia moderada e justa se natildeo se vive agradavelmente As formas de excelecircncia satildeo concomitantes com a vida agradaacutevel e a vida agradaacutevel eacute inseparaacutevel delas (DL X 132)23
Essa traduccedilatildeo de Maacuterio da Gama Kury leva a entender a phroacutenesis como algo de que a
filosofia dispotildee Esse raciociacutenio comeccedila algumas linhas antes24 quando Epicuro fala ser
necessaacuterio investigar as causas de toda escolha e de toda rejeiccedilatildeo e eliminar as opiniotildees
vazias motivo de perturbaccedilatildeo da alma Essa atividade de investigaccedilatildeo e depuraccedilatildeo requer o
exerciacutecio da phroacutenesis no sentido de desenvolver uma vontade esclarecida e uma accedilatildeo
correspondente Mas esse esclarecimento eacute buscado na physiologiacutea Assim tanto a phroacutenesis
quanto a physiologiacutea satildeo pensadas como meio dos quais a filosofia epicurista faz uso para se
realizar enquanto saber para vida Nesse sentido fica difiacutecil postular que a physiologiacutea e
mesmo a phroacutenesis tenham importacircncia superior agrave proacutepria filosofia como postula M Conche
ao propor outra traduccedilatildeo para a frase em questatildeo ldquoe por isso mais preciosa mesmo que a
filosofia eacute a prudecircncia (phroacutenesis)25 da qual provecircm todas as outras virtudes ()rdquo (CONCHE
23 Τούτων δὲ πάντων ἀρχὴ καὶ τὸ μέγιστον ἀγαθὸν φρόνησις διὸ καὶ φιλοσοφίας τιμιώτερον ὑπάρχει φρόνησις ἐξ ἧς αἱ λοιπαὶ πᾶσαι πεφύκασιν ἀρεταί διδάσκουσα ὡς οὐκ ἔστιν ἡδέως ζῆν ἄνευ τοῦ φρονίμως καὶ καλῶς καὶ δικαίως ltοὐδὲ φρονίμως καὶ καλῶς καὶ δικαίωςgt ἄνευ τοῦ ἡδέως συμπεφύκασι γὰρ αἱ ἀρεταὶ τῷ ζῆν ἡδέως καὶ τὸ ζῆν ἡδέως τούτων ἐστὶν ἀχώριστον 24 Cf nota 18 deste capiacutetulo 25 O termo phroacutenesis eacute traduzido como sabedoria prudecircncia e tambeacutem como vontade esclarecida conforme sublinhamos na nota 74 do capiacutetulo I
124 1977 p 225)26
Podemos tambeacutem opor a esse entendimento de M Conche tambeacutem reproduzido por
G Rodis-Lewis27 a anaacutelise sintaacutetica segundo a qual a ldquoφιλοσοφία no nominativo eacute o sujeito
de uma proposiccedilatildeo da qual φρόνησις eacute o atributo e o comparativo neutro com valor
adverbial refere-se a ὑπάρχειrdquo (BOLLACK 1975 p 130) Por isso eacute o caso de pensar que a
filosofia conteacutem a phroacutenesis e natildeo o contraacuterio Eacute no sentido dessa anaacutelise sintaacutetica que
estudiosos como G Arrighetti J Bollack e M Silva compartilham da ideia de natildeo haver uma
primazia dessa virtude com relaccedilatildeo agrave filosofia Haacute de se considerar as virtudes como um
meio28 para alcanccedilar a felicidade enquanto a filosofia tomada como exerciacutecio seja sob a
forma de meditaccedilatildeo ou de praacutexis traz consigo no momento mesmo em que se exercita aquilo
que tem como finalidade a liberdade e o prazer Por esses motivos seguimos o entendimento
desses estudiosos assinalando que a phroacutenesis eacute um instrumento de discernimento da alma
(assim como o logismoacutes eacute uma faculdade que a psycheacute tem para avaliar calcular projetar
fazer analogias) com seu devido valor na construccedilatildeo no exerciacutecio filosoacutefico sem ela a
physiologiacutea se reduz a uma teoria e a ideia de postular uma filosofia como pragmateiacutea natildeo se
efetiva
33 ndash Praacutexis e exerciacutecio de liberdade (eleutheriacutea)
Ao investigar a phyacutesis Epicuro pocircde pensar a liberdade (eleutheriacutea) como uma
possibilidade do acaso Eacute o desvio do aacutetomo de sua trajetoacuteria explicitada na teoria do
pareacutenklisis29 que vai permitir conceber no campo metafiacutesico a derrogaccedilatildeo da necessidade
(anaacutenke) como um fatalismo natural E isso para alguns inteacuterpretes do epicurismo serve
como justificativa ontoloacutegica para a questatildeo da liberdade humana pois a alma tambeacutem eacute
composta por aacutetomos30 a eleutheriacutea seria assim algo que o homem traria consigo por
natureza Embora essa possa ser uma leitura possiacutevel como se daacute na tese de Karl Marx31
podemos aqui tratar da questatildeo da liberdade sob outros aspectos
26 Crsquoest pourquoi plus preacutecieuse mecircme que la philosophie est la prudence de laquelle proviennent toutes les autres vertus () 27 RODIS-LEWIS Geneviegraveve Eacutepicure et son Eacutecole Paris Gallimar 1975 28 ldquoA ideia de se ater agrave virtude por ela mesma defendida notadamente pelos estoicos eacute rejeitada pelos epicuristas Para eles as virtudes natildeo constituem um fim mais um meio em vista de um fimrdquo (ETIENNE amp OrsquoMEARA 1996 p 90) 29 Sobre isso ver capiacutetulo I item 111 30 Ver nota 35 do capiacutetulo I 31 MARX Karl Diferenccedila entre as Filosofias da Natureza em Demoacutecrito e Epicuro Satildeo Paulo Global Editora sd
125 Para Epicuro a eleutheriacutea natildeo eacute absoluta nem na phyacutesis nem com relaccedilatildeo agrave
anthropophyacutesis Se no campo atocircmico ela eacute percebida como um movimento que escapa agrave
anaacutenke eacute necessidade da natureza que isso ocorra Esse paralelo tambeacutem pode ser aplicado ao
homem para quem nem tudo estaacute ao seu domiacutenio mudar ou escolher mas que pode
desenvolver pensamentos e atitudes voltados para o estabelecimento de um modo proacuteprio de
viver mesmo sob a influecircncia das quais natildeo se possa escapar Afinal para Epicuro ldquocoisa maacute
eacute a necessidade mais natildeo haacute necessidade nenhuma de viver com necessidaderdquo (SV 9)32
Trata-se portanto de um esforccedilo um exerciacutecio que cada um precisa empreender
Quando fala da liberdade humana Epicuro a relaciona agrave noccedilatildeo de autaacuterkeia Para ele
ldquoo fruto maior do bastar-se a si mesmo eacute a liberdaderdquo (SV 77)33 Ser autaacuterkes eacute poder agir a
partir de si mesmo do saber depreendido ao investigar a natureza sem a imposiccedilatildeo de normas
ou convenccedilotildees fundadas em opiniotildees vazias Eacute nesse sentido que a physiologiacutea ganha
importacircncia pois permite compreender que na natureza operam apenas causas fiacutesicas sem
nenhuma finalidade (teacutelos) Isso aponta para um sentido inerente da proacutepria natureza cujos
modos de ser natildeo satildeo determinados por nada fora dela mesma ldquoporque aleacutem do todo nada haacute
que possa penetrar nele e provocar transformaccedilatildeordquo (DL X 39)34 Portanto o sentido para o
agir humano deve ser pensado tendo como referecircncia a proacutepria natureza cabendo a cada um
definir sua praacutexis em funccedilatildeo das finalidades que entende como fundamentais a sua realizaccedilatildeo
Contudo ao se viver sob um regime onde prevalecem opiniotildees crenccedilas e ateacute mesmo
uma educaccedilatildeo orientada no sentido de projetar falsas finalidades para o homem fora do que
lhe ensina a natureza a eleutheriacutea eacute mitigada devido ao asseacutedio de desejos Buscar conquistar
aleacutem do que basta a uma vida feliz assenhora a vontade fazendo a accedilatildeo ser comandada pelo
desejar sem limites Daiacute ser necessaacuterio ldquoextirpar as vaacuterias opiniotildees os desejos supeacuterfluos que
somente encobrem o quatildeo faacutecil eacute a felicidade terrestrerdquo (GUAL 1985 p 189)
Restabelecer o sentido de liberdade estaacute ligado assim a buscar ser autaacuterkes o que
resulta em uma praacutexis orientada pela natureza Nessa perspectiva quando a filosofia
epicurista postula a necessidade de exercitar a autaacuterkeia estaacute dizendo que o homem deve - ele
mesmo - guiar sua conduta de maneira a realizar o teacutelos katagrave phyacutesin Esse eacute o propoacutesito da
praacutexis do saacutebio Tal qual a phyacutesis que por si mesma realiza seu sentido proacuteprio de ser o
mesmo se daria com o homem cujo teacutelos vinculado aos prazeres conforme a natureza ele
deve procurar realizar Isso pode ocorrer pela praacutetica das virtudes (areteacutes) pois elas satildeo um
32 Κακὸν ἀνάγκη ἀλλrsquo οὐδεμία ἀνάγκη ζῆν μετὰ ἀνάγκης 33 Τῆς αὐταρκείας καρπὸς μέγιστος ἐλευθερία 34 Παρὰ γὰρ τὸ πᾶν οὐθέν ἐστιν ὃ ἂν εἰσελθὸν εἰς αὐτὸ τὴν μεταβολὴν ποιήσαιτο
126 meio para alcanccedilar o prazer ligado agrave vida autaacuterquica e ataraacutexica
A liberdade assim concebida remete para uma atividade uma construccedilatildeo a cargo do
proacuteprio homem naquilo que depende dele sobre o que ele tem domiacutenio Meio ao acaso e agrave
necessidade Epicuro entende haver o espaccedilo para a deliberaccedilatildeo humana Para ele quanto
mais algueacutem se exercita em investigar a natureza e a meditar sobre ela mais eacute possiacutevel
desenvolver o poder para conduzir a vida em direccedilatildeo agrave makariacuteos zecircn Conhecer a natureza e
os limites por ela colocados para a satisfaccedilatildeo dos prazeres permite uma liberdade ante os
desejos sem medidas Porque ldquoeacute duro lutar contra o desejo mas vencecirc-lo eacute proacuteprio do homem
de bom sensordquo (DK 68 B 236)35 Nesse sentido podemos perceber uma relaccedilatildeo entre a
eleutheriacutea e o desenvolvimento de uma praacutexis virtuosa Quanto mais o saacutebio age com
phroacutenesis bondade e justiccedila mais ele exercita a autaacuterkeia mais ele confere naturalidade agrave
sua existecircncia
Por isso a filosofia eacute fundamental para a liberdade na medida em que busca
desenvolver no homem aquilo que eacute proacuteprio de sua natureza Ao estimular uma compreensatildeo
criacutetica da realidade distanciando-se de vieses poliacuteticos religiosos e da ignoracircncia busca-se
estabelecer um agir definido pela eacutetica e natildeo pela moral pelas normas pelas convenccedilotildees
Cabe ao saacutebio a partir de si mesmo e de seu entendimento sobre a realidade e sobre o sentido
natural de sua existecircncia definir uma conduta virtuosa A pragmateiacutea vai permitir desenvolver
nele os instrumentos para a conquista de sua autonomia e para uma praacutexis orientada para a
realizaccedilatildeo de um modelo metafiacutesico de equiliacutebrio que o saacutebio encontra quando investiga a
phyacutesis e medita sobre os deuses vivendo felizes serenos sem causar perturbaccedilatildeo nem serem
perturbados E esse ideal eacute postulado como possiacutevel porque na concepccedilatildeo epicurista eacute pelo
desconhecimento sobre os bens que conduzem a uma vida feliz que os limites satildeo
transbordados e a liberdade se converte em crimes e a alma se perturba Afinal ldquonatildeo eacute a
necessidade natural que impulsiona o homem a cometer injusticcedila mas o desejo ligado agrave
opiniatildeo vaziardquo (ESTOBEU Florileacutegio XVII 35)36 Assim a liberdade pensada a partir de
uma vontade esclarecida da modulaccedilatildeo dos desejos e da emancipaccedilatildeo com relaccedilatildeo agraves
opiniotildees vazias implica em assimilar agrave praacutexis do saacutebio uma praacutetica das virtudes conforme a
natureza Isso pois
35 Esse fragmento eacute de Estobeu mas remete muito bem para a ideia da possibilidade que o saacutebio tem para governar os proacuteprios desejos A traduccedilatildeo eacute de Anna Lia Amaral Prado Extraiacutedo do vol I da coleccedilatildeo Os Pensadores Preacute-Socraacuteticos Satildeo Paulo Nova Cultural 1996 36 Apud RODIS-LEWIS Geneviegraveve Eacutepicure et son Eacutecole Paris Gallimar 1975 P 241
127 Natildeo se pode levar uma vida agradaacutevel se natildeo se vive com sabedoria moderaccedilatildeo e justiccedila nem se pode levar uma vida saacutebia moderada e justa se natildeo se vive agradavelmente As formas de excelecircncias satildeo concomitantes com a vida agradaacutevel e inseparaacutevel delas (DL X 132)37
A partir dessa passagem coloca-se claramente a correlaccedilatildeo entre as areteacutes e a
finalidade do modo de viver buscado pelo saacutebio a vida prazerosa (zecircn hedeacuteos) Eacute no contexto
desse viacutenculo que Epicuro pensa a liberdade natildeo enquanto questatildeo poliacutetica como construccedilatildeo
social na poacutelis o que remete para o circunstancial em funccedilatildeo do tempo e do lugar mas a
partir de uma ancoragem mais universal
Isso natildeo quer dizer que o saacutebio vai se insurgir contra toda forma de convenccedilatildeo
(noacutemos) e negar o valor da participaccedilatildeo poliacutetica nem que vaacute propor desobediecircncia agraves normas
Se o sophoacutes declina de participar da vida poliacutetica (DL X 119) salvo quando haacute motivo para
o contraacuterio eacute porque percebe nesse campo a impossibilidade de harmonizar o caraacuteter agonal
conflituoso caracteriacutestico da vida na poacutelis sem haver uma assujeiccedilatildeo agraves convenccedilotildees e agraves leis
E isso estaacute diretamente associado agrave limitaccedilatildeo do exerciacutecio da liberdade Aleacutem disso o saacutebio
tem sua conduta orientada por um sentido de justiccedila ligado ao seu proacuteprio estado de
equiliacutebrio Ele natildeo seraacute tirano (DL X 119) nem cometeraacute injusticcedila porque ldquoa vida do homem
justo eacute totalmente imune a perturbaccedilotildees interiores mas a do homem injusto eacute repleta de
inquietuderdquo (DL X 144)38 Em outros termos ele age a partir de uma motivaccedilatildeo eacutetica cujo
princiacutepio ele traz consigo e projeta em uma praacutexis que se realiza sem a necessidade de ser
orientada por formas impositivas
Ao buscar um fundamento mais universal para guiar as accedilotildees Epicuro trabalha a
noccedilatildeo de liberdade a partir de um movimento de aproximaccedilatildeo entre o homem e a phyacutesis
Quando se dedica agrave physiologiacutea Epicuro tem como foco perscrutar a natureza humana para
resolver os problemas ligados ao exerciacutecio de uma vida bem realizada A eleutheriacutea portanto
natildeo prescinde da physiologiacutea porque para compreender as naturezas dos homens (taacutes phyacuteseis
totilden anthroacutepon)39 eacute preciso vecirc-las tambeacutem como parte da natureza do todo de onde satildeo
inteligidas finalidades e modelos de conduta O todo (tograve pacircn) eacute phyacutesis e o aacutenthropos tambeacutem
eacute entatildeo quanto mais se investiga a natureza mais eacute possiacutevel pensar os limites e as
possibilidades de liberdade relacionadas ao agir do homem A physiologiacutea permite postular a
ideia de que a natureza eacute a mesma para todos e portanto o prazer compreendido como teacutelos
37 Οὐκ ἔστιν ἡδέως ζῆν ἄνευ τοῦ φρονίμως καὶ καλῶς καὶ δικαίως ltοὐδὲ φρονίμως καὶ καλῶς καὶ δικαίωςgt ἄνευ τοῦ ἡδέως συμπεφύκασι γὰρ αἱ ἀρεταὶ τῷ ζῆν ἡδέως καὶ τὸ ζῆν ἡδέως τούτων ἐστὶν ἀχώριστον 38 Ὁ δίκαιος ἀταρακτότατος ὁ δrsquo ἄδικος πλείστης ταραχῆς γέμων 39 τὰς φύσεις τῶν ἀνθρώπων (DL X 75)
128 natural diz respeito a todos os homens Decorre desse entendimento que a praacutexis estabelecida
pelo saacutebio tendo em vista realizar essa finalidade vai se dar como um permanente exerciacutecio
eacutetico de espelhamento da natureza Mas isso soacute eacute possiacutevel porque
() para Epicuro a natureza eacute a fonte ou o princiacutepio da vida fiacutesica psiacutequica e eacutetica Pois ela revela ao pensamento em si indiacutecios que tornam possiacutevel a medida de realizaccedilatildeo de cada coisa e dentre elas do proacuteprio homem que emerge em seu proacuteprio seio e tem a necessidade de viver de acordo com ela (katagrave phyacutesin) (SILVA 2003 p 23)
O homem como ser da natureza percebe dentro dele um sentido harmocircnico uma
disposiccedilatildeo para experimentar o prazer quando vive equilibradamente Eacute assim natildeo por obra de
alguma forccedila providencial mas como expressatildeo do modo natural que cada ser tem de se
realizar A funccedilatildeo da filosofia eacute fazer com que por meio de uma praacutetica de pensamento e de
comportamentos o homem se reencontre com esse sentido e procure estendecirc-lo para seu
modo de viver A praacutexis nesse contexto tem papel importante com exerciacutecio de
espelhamento dessa natureza no campo do agir social por isso ela nos remete para um modelo
de accedilatildeo voltado para a realizaccedilatildeo de uma vida equilibrada
A praacutexis epicurista projeta uma compreensatildeo da realidade physioloacutegica na realidade
histoacuterica sob a forma de um exerciacutecio contiacutenuo de liberdade O entendimento a respeito dos
limites verificados na natureza e a relaccedilatildeo deles com o modo como se vive satildeo fundamentais
para definir um eacutethos que leve o homem agrave sua realizaccedilatildeo mais autecircntica ou seja aquela
construiacuteda a partir de sua liberdade e conforme um delineamento natural Procurar viver a
eleutheriacutea dentro desses limites eacute o que direciona a praacutexis do saacutebio para a realizaccedilatildeo da zecircn
hedeacuteos Se por um lado a opiniatildeo eacute insaciaacutevel por outro a natureza eacute faacutecil de satisfazer
enquanto aquela aprisiona esta pode conduzir agrave libertaccedilatildeo
No capiacutetulo anterior falamos da autarquia sob a perspectiva de uma libertaccedilatildeo de O
asseacutedio dos desejos e a influecircncia das opiniotildees vazias e das proacuteprias paixotildees foram
interpretados como formas de mitigar o poder de agir a partir de si mesmo E a autaacuterkeia foi
compreendida sob a perspectiva de um exerciacutecio de vida fundamentado na capacidade de
deliberar a partir de uma vontade esclarecida e do conhecimento a respeito da natureza O
homem autaacuterkes age por si mesmo na medida em que consegue libertar a alma dos loacutegoi que
aprisionam Isso estaacute relacionado agrave retomada de um autodomiacutenio (enkraacuteteia) Mas essa
libertaccedilatildeo de opiniotildees opressivas vazias e apartadas na natureza embora seja aspecto
fundamental para o exerciacutecio da liberdade estaacute como estamos procurando mostrar neste
capiacutetulo intimamente ligada a outro tipo de libertaccedilatildeo exercitada pela praacutexis epicurista
129 Para deixar mais claro ocorre que quanto mais o homem eacute guiado pela phroacutenesis pelo
logismoacutes e pelo saber acerca da natureza mais ele passa a exercer um poder de governar a si
mesmo e experimentar uma liberdade para comandar a proacutepria vida A praacutexis remete
justamente para essa extensividade entre um homem autaacuterkes40 aquele que age a partir do
proacuteprio pensar e o homem autarcheacutes aquele que exprime por meio de sua praacutexis a liberdade
para conduzir sua maneira de viver Quem eacute autarcheacutes comanda dirige conduz reina e pode
ldquorir e em conjunto filosofar e governar sua casa e usar todas as outras coisas que nos satildeo
proacuteprias e de modo algum fazer cessar as vozes que vecircm da reta filosofia em se afastando
delasrdquo (SV 41)41 Com isso Epicuro estaacute querendo dizer que o exerciacutecio filosoacutefico vem
acompanhado de um sentimento agradaacutevel porque quando se ouve a natureza por meio da
investigaccedilatildeo physioloacutegica faz-se calar os loacutegoi vazios que impediam a felicidade e limitavam
o poder que o proacuteprio homem tem para construir sua realizaccedilatildeo O saacutebio dessa forma estaacute
experimentando um prazer ligado agrave liberdade de poder pensar e agir tendo em vista governar
sua alma e sua casa Assim ser feliz diz respeito a um exerciacutecio de libertaccedilatildeo dos noacutes
culturais e de liberdade para realizar uma vida prazerosa
Eacute importante destacar isso ao tratarmos da praacutexis epicurista pois haacute uma tendecircncia
acentuada para pensar a filosofia de Epicuro como centrada em uma liberdade interior
expressa a partir da noccedilatildeo de autaacuterkeia esquecendo-se de inter-relacionar isso com a conduta
do saacutebio enquanto ser social e histoacuterico o que destacaria o distanciamento do sophoacutes das
questotildees poliacuteticas de seu tempo Mas a accedilatildeo dele ocorre no mundo e sua praacutexis tem efeitos
exteriores Se o cultivo dessa liberdade interior aparece como uma reaccedilatildeo ante a
impossibilidade de liberdade poliacutetica caracteriacutestica da tirania de Alexandre eacute preciso
contudo sublinhar que ela natildeo estaacute desvinculada da liberdade para mesmo em tempo de
desmesuras estabelecer um modo de viver equilibrado Para aleacutem da alma a liberdade do
saacutebio se estende como praacutexis para o Jardim e outras formas de vida comunitaacuteria Afinal ele
escolhe em funccedilatildeo da proacutepria realizaccedilatildeo mas essas escolhas acontecem em meio ao conviacutevio
com outros nas relaccedilotildees entre afetos e desafetos
Eacute em torno da compreensatildeo de que a felicidade depende de um modo de viver do qual
ele eacute responsaacutevel que o homem deve procurar fazer de cada accedilatildeo um exerciacutecio de sabedoria E
isso se reflete em postular e estabelecer praacuteticas voltadas para uma vida mais natural mais
autecircntica A filosofia enquanto teacutechne implica em uma utilizaccedilatildeo desse saber para
40 Ver nota 95 do caacutepiacutetulo I 41 Γελᾶν ἅμα δεῖ καὶ φιλοσοφεῖν καὶ οἰκονομεῖν καὶ τοῖς λοιποῖς οἰκειώμασι χρῆσθαι καὶ μηδαμῇ λήγειν τὰς ἐκ τῆς ὀρθῆς φιλοσοφίας φωνὰς ἀφιέντας
130 experimentar bem-estar (eustaacutetheia) mesmo vivendo na poacutelis conturbada quando natildeo eacute
possiacutevel estar no Jardim O saacutebio age a partir de si mesmo e para si mesmo para realizar seu
equiliacutebrio Mas isso natildeo implica em accedilotildees egoiacutestas o que seria incompatiacutevel com a noccedilatildeo de
sabedoria e de philiacutea postuladas pelo epicurismo Afinal o sophoacutes procura fazer de sua praacutexis
um exemplo e por isso ldquovenerar o saacutebio eacute um grande bem para quem venerardquo (SV 32)42 A
accedilatildeo visando a si mesmo eacute aquela voltada para desenvolver a proacutepria harmonia Assim ao
observarmos a maneira como ele faz do seu eacutethos uma atividade (eneacutergema)43 orientada para
o equiliacutebrio percebemos essa aproximaccedilatildeo com um sentido mais natural de existir
Nesse panorama podemos entender que a filosofia de Epicuro natildeo eacute elaborada tendo
em vista querer transformar o mundo mas a maneira como o saacutebio se relaciona com ele A
praacutexis natildeo visa o cidadatildeodemocracia da poacutelis mas o homem realizando sua naturalidade
liberto de perturbaccedilotildees imposiccedilotildees repressotildees alheamentos Tanto quanto a meditaccedilatildeo
liberta das opiniotildees vazias a praacutexis exercita essa libertaccedilatildeo para vir a ser em torno da proacutepria
felicidade
Isso pode nos fazer pensar a filosofia epicurista sob um aspecto antropoloacutegico Ao
buscar colocar o homem em posse do poder de fazer de agir de transformar a forma de
compreender a realidade e a maneira de vivecirc-la ela permite uma concepccedilatildeo do homem sob
outro olhar onde o seu eacutethos se daacute em torno de si mesmo da proacutepria realizaccedilatildeo e natildeo mais
em torno da construccedilatildeo da poacutelis e dos valores que ela legitima Isso nos permite entender o
sentido dessa liberdade que o saacutebio constroacutei por meio de sua praacutexis A filosofia epicurista
projeta o sophoacutes como dono das proacuteprias vontades senhor das proacuteprias decisotildees e isso
remete agrave liberdade para poder se afastar da poacutelis para estabelecer amizades autecircnticas para
fazer da vida um exerciacutecio filosoacutefico para a convivecircncia no Jardim para estabelecer um
modo autentico de viver Satildeo esses aspectos que vamos destacar adiante
34 ndash Da poacutelis ao Kecircpos
A sociedade grega desenvolveu como forma de organizaccedilatildeo a sociedade-estado Nela
as aspiraccedilotildees os valores orbitam sobre temas como democracia coletividade poliacutetica Essas
preocupaccedilotildees movem a cidade e despertam a atenccedilatildeo e as investigaccedilotildees filosoacuteficas em torno
do ldquoanimal poliacuteticordquo O espaccedilo puacuteblico eacute privilegiado em relaccedilatildeo ao acircmbito do pessoal do
42 Ὁ τοῦ σοφοῦ σεβασμὸς ἀγαθὸν μέγα τῷ σεβομένῳ ἐστί 43 DL X 37
131 privado As questotildees ligadas ao homem buscam soluccedilatildeo no contexto das relaccedilotildees na poacutelis Na
democracia o interesse estaacute na consecuccedilatildeo do bem-estar coletivo e na realizaccedilatildeo das virtudes
que o homem precisa desenvolver para viver na cidade
Mas agrave eacutepoca de Epicuro o mundo grego vive um tempo de turbulecircncias e tirania44
Apoacutes a tomada do poder45 pelo rei Felipe da Macedocircnia a Greacutecia perde seu espaccedilo de
participaccedilatildeo democraacutetica Agrave nova configuraccedilatildeo poliacutetica marcada pelo autoritarismo e
centralizaccedilatildeo corresponde o esvaziamento da aacutegora a decadecircncia da poacutelis enquanto espaccedilo
de expressatildeo de autonomia liberdade e participaccedilatildeo poliacutetica Estamos diante do helenismo46
um periacuteodo marcado pela expansatildeo e imposiccedilatildeo da cultura grega agraves regiotildees conquistadas pelo
impeacuterio de Alexandre Magno
Esse contexto vai fazer emergir a demanda de um novo filosofar afinal ldquoeacute inegaacutevel
que as filosofias da eacutepoca heleniacutestica surgem de uma terriacutevel crise social histoacuterica mas a
filosofia eacute sempre produto de uma criserdquo (GUAL 1985 p 11) Se antes os pensadores se
voltavam para o problema da preparaccedilatildeo e participaccedilatildeo na vida poliacutetica tentando estabelecer
normas universais para a conduta humana uma vez que essa participaccedilatildeo fica esvaziada a
preocupaccedilatildeo filosoacutefica se altera Diante de uma Greacutecia politicamente degradada o desafio natildeo
eacute mais governar a poacutelis mas governar a si mesmo de forma que as accedilotildees conduzam agrave
realizaccedilatildeo da proacutepria felicidade O helenismo traz a necessidade de se questionar como diante
de uma realidade histoacuterica que afunda o homem em uma profunda crise existencial e lhe
transforma as necessidades eacute possiacutevel pensar uma eacutetica como caminho para a realizaccedilatildeo de
uma vida feliz (makariacuteos zecircn) e da liberdade (eleutheriacutea) Afinal ldquoo que interessaraacute aos
pensadores do periacuteodo seraacute antes de tudo a experiecircncia que algueacutem pode ter da liberdade ou
da felicidade e sobretudo de sua efetivaccedilatildeo praacuteticardquo (PAULA 2014 p 45) Somente com o
esgotamento desse ideal de sociedade que culmina com a dominaccedilatildeo macedocircnica eacute que a
eacutetica da virtude do bem comum da busca pela realizaccedilatildeo do homem ciacutevico e outras
aspiraccedilotildees vatildeo perdendo importacircncia para aquilo que eacute privado particular aquilo que eacute da
ordem da interioridade
Epicuro natildeo pocircde testemunhar essa experiecircncia de democracia grega que se tornou
referecircncia para o mundo ateacute hoje ressalvadas as particularidades de natildeo se tratar de uma
44 ldquoLa filosoffa de Epicuro es una filosofia de la crisis Nacida em tiempos de crisis y para hombres que viven su vida y la de los demaacutes en la crisisrdquo (MAYOR 1987 p 87) 45 Em 338 aC o rei Felipe da Macedocircnia daacute iniacutecio a uma campanha expansionista e uma a uma comeccedilando pelo Norte vai conquistando as cidades gregas 46 Essa terminologia foi estabelecida no trabalho do historiador alematildeo Droysen em 1833 no livro Histoire drsquoAlexandre Droysen se posicionava ldquosobretudo no ponto de vista poliacuteticordquo (FESTUGIEgraveRE 1985 p XXI)
132 democracia universalizada Mas pocircde sentir a tirania se acentuar principalmente apoacutes a morte
de Alexandre quando o impeacuterio conquistado foi disputado por seus generais Por tudo isso
para Epicuro natildeo haacute nem a possibilidade nem a necessidade de retomar os tempos antigos
para poder fundar seu projeto filosoacutefico Sua preocupaccedilatildeo eacute com o homem com a realizaccedilatildeo
dele independentemente de estar em tempos adversos Seu escopo eacute pensar como poder
estabelecer um modo agradaacutevel de viver Eacute diante desse quadro histoacuterico cultural e filosoacutefico
que se verifica no epicurismo uma oposiccedilatildeo ao desejo de universalizaccedilatildeo da poliacutetica para gerir
o conviacutevio social A perspectiva pretendida vai em sentido contraacuterio de pautar a vida a partir
de uma sociedade minuacutescula fora dos domiacutenios de Atenas Trata-se de um universo de
convivecircncia fundamentado na philiacutea na afetividade no acordo do modo de pensamento
341 ndash Laacutethe biocircsas
Na praacutexis epicurista a vida distanciada da poacutelis eacute exortada Quando escolheu fundar
seu Jardim fora dos muros da cidade foi para viver afastado da tirania das multidotildees do
barulho das opiniotildees vazias e de uma cultura ligada a valores artificiais como a riqueza o
poder a fama coisas incompatiacuteveis com seu projeto de uma existecircncia equilibrada e feliz
Para ele a vida na poacutelis eacute apartada de um sentido natural o que dificulta o homem de
experimentar a ataraxiacutea a autaacuterkeia de exercer a liberdade necessaacuteria para a realizaccedilatildeo de
uma existecircncia plena Daiacute Epicuro aconselhar a Piacutetocles ldquoalccedila tua vela amigo e foge de toda
cultura seja ela qual forrdquo (DL X 6)47 Veja com isso que Epicuro tambeacutem estaacute colocando a
necessidade de se afastar da vida puacuteblica de viver ignorado Pois a poliacutetica para ele eacute fonte de
perturbaccedilatildeo de embates ligados agrave construccedilatildeo da poacutelis e das relaccedilotildees nomoteacuteticas nela
estabelecidas
Ora o foco do epicurismo natildeo eacute a cidade eacute o saacutebio O interesse eacute pensar formas de
convivecircncia gerenciadas pela eacutetica e natildeo pela poliacutetica Daiacute ecoarem no epicurismo os lemas
ldquovive ignoradordquo (laacutethe biocircsas) ldquoo saacutebio natildeo participaraacute da vida poliacuteticardquo (DL X 119)48 ldquoeacute
preciso liberar-se a si mesmos dos afazeres rotineiros e puacuteblicos (SV 58)49 Por traacutes dessa
posiccedilatildeo estaacute a compreensatildeo de que a eacutetica pode se constituir como o princiacutepio norteador das
relaccedilotildees que vatildeo compor uma nova maneira de agregaccedilatildeo social Trata-se de um
posicionamento criacutetico ao modo como a poliacutetica se configura em seu tempo e natildeo uma
47 Παιδείαν δὲ πᾶσαν μακάριε φεῦγε τἀκάτιον ἀράμενος 48 Πολιτεύσεται ὡς ἐν τῆι πρώτηι Περὶ βίων 49 Ἐκλυτέον ἑαυτοὺς ἐκ τοῦ περὶ τὰ ἐγκύκλια καὶ πολιτικὰ δεσμωτηρίου
133 negaccedilatildeo a ela enquanto noccedilatildeo pensada pela filosofia A questatildeo eacute que a vida poliacutetica na
praacutetica configura-se como ldquouma perturbaccedilatildeo trazida agrave felicidaderdquo (SALEM 1994 p 142)
Contudo
A atividade poliacutetica natildeo eacute de forma alguma proibida ela eacute apenas fortemente desaconselhada ao saacutebio Como ele eacute sempre pragmaacutetico o epicurista natildeo exclui que em certas ocasiotildees haja mais perturbaccedilotildees em recusar que em aceitar provisoriamente alguma responsabilidade poliacutetica (SALEM 1994 p 145)
Epicuro natildeo participa da vida poliacutetica do seu tempo porque seu escopo eacute a realizaccedilatildeo
de um projeto de sophoacutes ligado agrave realizaccedilatildeo de uma vida katagrave phyacutesin Ocorre contudo que
ele natildeo acredita na possibilidade de edificaccedilatildeo de seu modelo de saacutebio nem em estabelecer um
tipo de vida ligada a essa construccedilatildeo dentro dos domiacutenios da cidade Para ele a poacutelis eacute o
ambiente onde tanto a poliacutetica quanto a religiatildeo a cultura e as opiniotildees vazias exercem forte
pressatildeo sobre o homem impondo-lhe uma compreensatildeo de mundo e valores direcionadores
da vontade para o que nem eacute natural nem necessaacuterio nem alcanccedilaacutevel Agindo a partir do que
lhe eacute colocado exogenamente como expectativa o homem abdica do exerciacutecio da proacutepria
liberdade e adia a possibilidade de realizar a si mesmo Nesse sentido a vida na poacutelis para
quem se exercita na sabedoria implica em estar sempre contestando as normas os costumes
as convenccedilotildees colocando em praacutetica a parresiacutea (liberdade de palavra) e anaiacutedeia (falta de
pudor) ou suportar os dissabores as infelicidades a agitaccedilatildeo o que levaria ao exerciacutecio da
apaacutetheia (indiferenccedila) estoica
Mas Epicuro quer exercitar eacute a ataraxiacutea a autaacuterkeia a eleutheriacutea Eacute em torno dessas
noccedilotildees que ele pensa o saacutebio e sua praacutexis E isso remete para um modo de vida simples
pacato sempre buscando minorar as dependecircncias que comprometam a tranquilidade Daiacute a
necessidade de afastamento da poacutelis de sua vida agitada e mediada pela poliacutetica e por valores
estabelecidos fora dos limites da natureza Esse distanciamento eacute a praacutetica de um exerciacutecio
eacutetico voltado para favorecer a vida katagrave phyacutesin Se na poacutelis natildeo eacute possiacutevel encontrar o
ambiente favoraacutevel para o sophoacutes desenvolver sua singularidade entatildeo ele vai escolher o
Jardim Por isso o saacutebio ldquofundaraacute uma escola filosoacutefica mas natildeo para reunir uma multidatildeo
em torno de sirdquo (DL X 120)50 Porque o objetivo natildeo eacute filosofar para os muitos mas atender
uma necessidade de aproximaccedilatildeo com a natureza por meio da realizaccedilatildeo de uma praacutexis cuja
fundamentaccedilatildeo natildeo eacute poliacutetica eacute eacutetica
50 Σχολὴν κατασκευάσειν ἀλλ οὐχ ὥστ ὀχλαγωγῆσαι
134 342 ndash A koinoniacutea
O movimento da filosofia epicurista de afastamento da poacutelis e de escolha pelo Kecircpos51
vai remeter para uma forma de organizaccedilatildeo referida como koinoniacutea52 O termo diz respeito a
uma maneira de associaccedilatildeo social reduzida a um grupo de pessoas que compartilham
afinidades no modo de viver e de pensar Em Epicuro koinoniacutea diz respeito a uma noccedilatildeo de
comunidade onde as relaccedilotildees sociais satildeo orientadas pela ideia de comunidade e de amizade
(philiacutea) Essa concepccedilatildeo de vida comunitaacuteria contrasta com a ideia de coletividade que pode
ser aplicada agrave poacutelis pois viver coletivamente natildeo implica em proximidade na forma do
pensamento nem de valores nem no estabelecimento de viacutenculos afetivos Na cidade as
diferenccedilas os conflitos os desafetos partilham os mesmos espaccedilos ordenados e apaziguados
pelas convenccedilotildees pelas normas Agravequele que natildeo se sente adequado ao pensamento dominante
resta o desconforto e a dificuldade de tentar estabelecer uma vida autecircntica Por isso a noccedilatildeo
de koinoniacutea vai se revelar fundamental para quem como o sophoacutes busca realizar uma praacutexis
voltada para um modo agradaacutevel de vida Essa foi a maneira que Epicuro encontrou de
escapar das constriccedilotildees dos espaccedilos puacuteblicos para pensar ambientes e grupos menores onde a
autaacuterkeia e a eleutheriacutea pudessem ser exercitadas aproximando o homem de seu sentido
natural de existir
Ao refletir sob a coexistecircncia em comunidades agremiaccedilotildees ou outras formas de
pequenas sociedades Epicuro considera que eacute a afinidade no modo de viver e de pensar que
permite realizar um modelo de convivecircncia mais confortaacutevel e natural E isso remete para
outro aspecto ldquoa comunidade (koinoniacutea) de amigos (phiacuteloi) epicuristas se tornou possiacutevel
graccedilas agrave Philiacutea entendida com o princiacutepio de movimento e de accedilatildeordquo (SILVA 2015 p 252)
Ou seja eacute em torno da amizade que Epicuro imagina ser possiacutevel a vida em comum e de
maneira a alcanccedilar um sentimento de acordo (homologiacutea) e equiliacutebrio Dioacutegenes de Œnoanda
nos fornece um testemunho que nos permite imaginar esse projeto epicurista de vida em
comunidade
() todas as coisas seratildeo plenas de justiccedila e de amor muacutetuo e natildeo haveraacute necessidade de fortificaccedilotildees ou de leis e de todas as coisas que noacutes criamos por causa dos outros E quanto ao necessaacuterio proveniente da agricultura como noacutes natildeo teremos escravos nesse tempo uma vez que [noacutes mesmos vamos arar] e cavar e manter os [ e] desviaremos os coacuterregos e assistiremos [] ndash e essas [atividades] seratildeo interrompidas de acordo com a
51 A escola ou o Jardim de Epicuro Ver nota 11 da introduccedilatildeo 52 MC 36 37 38
135 praacutetica contiacutenua e partilhada da filosofia pois os [trabalhos] agriacutecolas nos [forneceratildeo] as coisas das quais nossa natureza tem necessidade (Œno fr 56 I-II)53
Justiccedila e equiliacutebrio satildeo para Epicuro possiacuteveis apenas no contexto de agrupamentos
reduzidos de pessoas reunidas pelo acordo de pensamento No Jardim natildeo satildeo as leis nem o
noacutemos que regula as relaccedilotildees entre os homens Se na cidade isso estaacute ligado ao
estabelecimento de relaccedilotildees de forccedila e poder em koinoniacutea ldquoa justiccedila eacute a mesma para todos
pois representa uma espeacutecie de vantagem reciacuteproca nas relaccedilotildees dos homens uns com os
outrosrdquo (DL X 151)54 Daiacute Epicuro abdicar da convenccedilatildeo da poliacutetica pois postula que as
relaccedilotildees estabelecidas no interior do Jardim satildeo baseadas na conveniecircncia muacutetua (opheacuteleia)
A igualdade (isonomia) eacute regida pelo principio da philiacutea a partir do qual se estabelece um
acordo um pacto (syntheacuteke)55 permitindo uma coexistecircncia equilibrada justa e agradaacutevel
Reflexo disso eacute que Epicuro natildeo fazia distinccedilatildeo no Jardim entre homens livre e escravos e
tambeacutem permitia agraves mulheres participarem como membros da comunidade Esse equiliacutebrio eacute
buscado a partir de uma afinidade do pensar entre pessoas que se percebem e se compreendem
a partir dos mesmos valores Por isso se dizer ldquoum saacutebio soacute pode ser reconhecido por outro
saacutebiordquo56 e ldquonenhum saacutebio eacute mais saacutebio que outrordquo (DL X 119)57
No testemunho de Œnoanda nota-se a disposiccedilatildeo para fazer dessa comunidade de
amigos uma organizaccedilatildeo autossustentaacutevel por meio de um trabalho coletivo tornaacute-la dentro
do possiacutevel autossuficiente e liberta de dependecircncias externas E isso estaacute relacionado com o
exerciacutecio da liberdade Quanto mais exerce sua independecircncia mais livre o homem estaacute para
se organizar a partir de valores eacuteticos O limite do que deve ser produzido eacute dado pela proacutepria
necessidade natildeo sendo buscada a sobrepujanccedila A natureza daacute a medida para as accedilotildees e
define a praacutexis adequada agrave vida em koinoniacutea
Outro aspecto a se destacar eacute que certa vida social passa a ter relevo nesse tipo de
organizaccedilatildeo Perceba-se no relato o destaque dado agrave ldquopraacutetica contiacutenua e partilhada da
filosofiardquo Trata-se daqueles momentos em que os phiacuteloi investigam a phyacutesis para pensar as
53 () toutes choses seront pleines de justice et drsquoamour mutuel e il nrsquoy aura pas besoin de fortifications ou de lois et de toutes ces choses que nous fabriquons agrave cause des autres Et quant au neacutecessaire provenant de lrsquoagriculture comme nous nrsquoaurons pas drsquo[esclaves agrave ce moment] ndash car en effet [nous labourerons nous-mecircmes] et becirccherons et garderons les [et] deacutetournerons les cours drsquoeau et veillerons [] ndash et de telles [activiteacutes] interrompront selon le besoin la pratique continue et partageacutee de la philosophie car les [travaux] agricoles nous [fourniront] les choses dont notre nature a besoin 54 Τὸ δίκαιον τὸ αὐτόmiddot συμφέρον γάρ τι ἦν ἐν τῇ πρὸς ἀλλήλους κοινωνίᾳmiddot 55 MC XX XXIII 56 Us 226 57 Οὐκ εἶναί τε ἕτερον ἑτέρου σοφώτερον
136 questotildees da vida meditam em conjunto sobre a natureza e as finalidades que o homem a partir
dela acredita serem fundamentais para a realizaccedilatildeo da makariacuteos zecircn Nesse sentido no
Jardim o exerciacutecio da filosofia eacute identificado ao exerciacutecio da philiacutea Sendo composta por
pessoas que compartilham um modo de compreensatildeo da realidade e visam um fim de acordo
com a natureza a convivecircncia fortalece os viacutenculos e permite desfrutar do bem que eacute a
amizade e com ela a ataraxiacutea a seguranccedila o prazer a liberdade
343 ndash A philiacutea
O atomismo epicurista vecirc no desvio atocircmico a possibilidade de choques que tanto
podem afastar outros aacutetomos e levar ao desagrupamento de corpos quanto podem resultar na
uniatildeo por afinidade de tamanho e forma dando origem a novos corpos ou resultando em
aumento de aglomerados jaacute existentes Essa mesma analogiacutea tambeacutem norteia a concepccedilatildeo de
Epicuro com relaccedilatildeo agrave philiacutea Eacute em torno da afinidade do compartilhamento dos mesmos
interesses e opiniotildees que os homens se agrupam Isso nos remete para a adoccedilatildeo de um
referencial physioloacutegico para justificar as relaccedilotildees de amizade A philiacutea58 para Epicuro eacute um
fenocircmeno natural que se estabelece meio ao reconhecimento no outro de um acordo no pensar
com relaccedilatildeo agrave compreensatildeo da realidade ao entendimento quanto agrave finalidade da vida e ao
modo como realizaacute-la
Pela primeira vez o princiacutepio que reunia os membros dessa sociedade natildeo era nem religioso nem social nem mesmo poliacutetico Essa palavra [amizade] desde entatildeo designa outro conceito Isso eacute ela exprime uma relaccedilatildeo eacutetica e um comportamento livremente escolhido por homens que se reconhecem iguais e fundam essa igualdade tatildeo somente sobre o fundamento de seu ser individual e de sua comum condiccedilatildeo humana (DIANO 1976)59
Para Epicuro a philiacutea eacute manifestaccedilatildeo da natureza e nisso ele ecoa uma tradiccedilatildeo jaacute
verificada em Empeacutedocles de Agrigento60 Nos versos de sua filosofia traacutegica61 encontramos a
polifonia do pensamento de preacute-socraacuteticos que tentaram explicar a totalidade existente
58 42 48 56 68 76 245 (XL) 261 (XII) 59 DIANO C Eacutepicure la philosophie du plaisir et la socieacuteteacute des amis Conferecircncia reunida em Eacutetudes Philosophiques 1976 n 2 p 173-186 (apud FRAISSE J-Claude PHILIacuteA La notion drsquoamitieacute dans la philosophie antique Paris Vrin 1984 p 288) 60 Segundo doxografia colhida por Dioacutegenes Laeacutercio teria nascido em Agrigento (Aacutecragas) na Siciacutelia e vivido por volta de 484 ndash 424 aC Meacutedico e orador escreveu dois poemas em jocircnico Sobre a Natureza e Purificaccedilotildees Deles poucos fragmentos foram conservados ateacute nossos dias 61 Para Nietzsche uma marca da filosofia de Empeacutedocles eacute o ldquoextraordinaacuterio pessimismo mas um pessimismo ativo e natildeo quietistardquo NIETZSCHE Friedrich Preleccedilotildees sobre a Histoacuteria da Filosofia Os Preacute-Socraacuteticos Satildeo Paulo Nova Cultural Col Os Pensadores P 346-353
137 recorrendo agrave mesma perspectiva imanente que vai influenciar o pensamento epicurista No
poema Sobre a Natureza (perigrave physeos) o fogo de Heraacuteclito a aacutegua de Tales a terra de
Xenoacutefanes e ar de Anaxiacutemenes se encontram como ingredientes que vatildeo constituir a phyacutesis a
partir de um movimento provocado - natildeo por uma inteligecircncia ou por uma divindade62 - mas
por um suceder de forccedilas contraacuterias o Amor e o Oacutedio E isso vai de certa forma moldar
juntamente com a concepccedilatildeo atomiacutestica da realidade a compreensatildeo epicurista a respeito das
relaccedilotildees humanas
Em Empeacutedocles as referecircncias para pensar esse aspecto partem da mitologia que nos
conta que Filotes (Φιλότης) era um ser que personificava a amizade a afeiccedilatildeo a uniatildeo Seu
avesso era Neikoacutes (Νεικός) que experimentava sua existecircncia no sentido contraacuterio
provocando a intriga suscitando o oacutedio causando o afastamento Esses personagens trazem
ateacute noacutes o sentido daquilo que pode se ligar se agrupar ou por outro lado se desfazer se
separar Nesse caminho Filotes e Neikoacutes ou Amor e Oacutedio satildeo pensadas por Empeacutedocles
como forccedilas ou e energias de atraccedilatildeo e repulsatildeo responsaacuteveis pelo movimento dos elementos
constitutivos da realidade Em dado momento eles se agrupam convergem dando origem agrave
diversidade das coisas em outro satildeo apartados desfazendo os enlaces que davam formas aos
que se uniam por afinidade ldquoEstes quatro satildeo tudo o que haacute cada um se entranhando no outro
E ao misturar-se variedade ao mundo dandordquo (KRS 355)63 Essas mudanccedilas de estados se
produzem por alternacircncia dessas duas forccedilas num ciclo que se daacute desde sempre
acompanhando a eternidade desses elementos
Com isso Empeacutedocles postula uma phyacutesis onde natildeo haacute nascimento e morte para as
coisas mas processos de transformaccedilatildeo que geram a partir de unidades ou raiacutezes a
multiplicidade e dessa por separaccedilatildeo volta-se ao uno Dos quatros elementos fundamentais
(aacutegua fogo terra e ar) por combinaccedilatildeo e agrupamento engendrados como dito pela accedilatildeo do
Amor daacute-se a composiccedilatildeo da diversidade do que reside na realidade No sentido inverso pela
forccedila do Oacutedio os compostos se corrompem liberando seus constituintes baacutesicos e permitindo
que voltem a buscar harmonia na philiacutea com outros semelhantes Esse contraste dramaacutetico
embeleza a poesia empedocliana e remete para as questotildees de vivecircncias de amizades e
intrigas de uniotildees e afastamentos de equiliacutebrio e conflitos sobre as quais Epicuro tematiza
Se a philiacutea eacute compreendida como um movimento natural de aproximaccedilatildeo segundo a
afinidade entatildeo a amizade natildeo eacute definida pelas convenccedilotildees nem por modelos sociais
62 Platatildeo Leis X 889 b (DK 31 a 48) 63 KRS 355 (G S Kirk J E Raven M Schofield) Essa traduccedilatildeo consta em KENNY Anthony Uma Nova Histoacuteria da Filosofia Ocidental 2 ed Satildeo Paulo Loyola 2011 Vol I p46
138 organizados Ela pressupotildee liberdade para escolher em funccedilatildeo de uma finalidade que eacute a vida
prazerosa Eacute nas relaccedilotildees estabelecidas a partir de uma vontade livre e sem o interesse de
assenhorar a vontade do outro mas movida por um desejo natural de afinidade e prazer que o
sophoacutes experimenta uma fonte de satisfaccedilatildeo A importacircncia da amizade na filosofia epicurista
estaacute na sua relaccedilatildeo com a realizaccedilatildeo da felicidade do saacutebio Por meio da philiacutea ele edifica
laccedilos que constituem fonte de bem-estar Eis porque ldquodentre as coisas que a sabedoria
proporciona para a felicidade da vida inteira a amizade eacute em muito a maior delasrdquo (SV 13)64
Essa relaccedilatildeo entre amizade e natureza que pode ser verificada nesse estado de bem-
estar ou de equiliacutebrio implica em uma praacutexis orientada pela conveniecircncia muacutetua (opheacuteleia)
pois eacute nela que a amizade tem iniacutecio (SV 23) Esse aspecto quando interpretado a partir da
noccedilatildeo de um utilitarismo negativo aplicado agraves relaccedilotildees pode encetar a equivocada ideia de
um uso explorador do outro o que foge ao escopo eacutetico epicuacutereo marcado pela isonomia e
pela justiccedila Por isso cabe pensar essa conveniecircncia como um interesse autecircntico com relaccedilatildeo
ao amigo e no sentido de ambos obterem proveito reciacuteproco dessa amizade Nesse sentido a
opheacuteleia nos remete para uma concepccedilatildeo de solidariedade de correspondecircncia a partir de
interesses semelhantes e compartilhados Por isso
A philiacutea e a opheacuteleia satildeo fenocircmenos naturais circunscritos ao exerciacutecio da conduta humana poreacutem do ponto de vista epicuacutereo eles soacute se efetivam segundo condiccedilotildees especiacuteficas que natildeo encontramos em meio a qualquer agregado humano A sociabilidade humana enquanto fenocircmeno natural natildeo eacute suficiente para garantir o pleno exerciacutecio da philiacutea e da opheacuteleia (SILVA 2003 p 90)
Se o relacionamento com pessoas que nos levam a experimentar sentimentos de
equiliacutebrio e contentamento eacute uma necessidade natural do homem entatildeo somente vivendo e
filosofando entre amigos eacute possiacutevel realizar uma praacutexis que inscreve a felicidade no modo de
viver do sophoacutes Nesse sentido as escolhas feitas devem ter em mira essa perspectiva A
philiacutea deve ser buscada entre aqueles com quem haja acordo no pensar e possibilidade de
homologiacutea na relaccedilatildeo e afinidade de sentimentos Nesse contexto eacute possiacutevel desenvolver e
compartilhar um loacutegos relacionado a um modo de vida de acordo com a natureza
Meio a isso outro termo ganha importacircncia em todo esse processo asphaacuteleia65
Epicuro usa essa palavra no sentido de seguranccedila proteccedilatildeo confianccedila e se refere agrave
necessidade de ter preservada sua tranquilidade e seu bem-estar Ele lembra que ldquoalguns
homens procuram tornar-se famosos e ilustres pensando que desse modo garantiriam para si
64 Ὧν ἡ σοφία παρασκευάζεται εἰς τὴν τοῦ ὅλου βίου μακαριότητα πολὺ μέγιστόν ἐστιν ἡ τῆς φιλίας κτῆσις 65 MC 7 13 14 28
139 mesmos seguranccedila diante dos homens restantesrdquo (DL X 141 VII)66 E que ldquopara conseguir
seguranccedila em relaccedilatildeo a outros homens a instituiccedilatildeo do poder e da realeza deve ser incluiacuteda
entre os bens conforme a natureza sempre que por meio dessa instituiccedilatildeo os homens possam
obter aquela seguranccedilardquo (DL X 141 VI)67 Ou seja ele ateacute coloca esses modos de obtenccedilatildeo
de seguranccedila como vaacutelidos e necessaacuterios mas para quem vive na cidade meio aos valores e
opiniotildees da poacutelis Mas para quem vive em koinoniacutea no Jardim ou em outra forma de
comunidade fundada sobre o princiacutepio da philiacutea essa seguranccedila resulta de uma postura eacutetica
que perpassa todas essas relaccedilotildees Eacute a amizade que proporciona asphaacuteleia e com isso
tranquilidade e quietude diante do temor relativo a condutas agressivas e violentas Isso eacute
para Epicuro mais importante que outras formas de proteccedilatildeo buscadas pelos homens para
preservar sua paz porque estaacute ligado agrave conveniecircncia muacutetua ao agir guiado pela sabedoria e
dentro dos limites da phyacutesis
O que impede accedilotildees danosas ao outro natildeo eacute a norma mas a convicccedilatildeo de que aquilo
tambeacutem causa mal a quem fez Trata-se de um princiacutepio eacutetico realizado de dentro para fora
da alma para a accedilatildeo Desse modo a conduta do saacutebio eacute modulada e define uma praacutexis que
busca preserva e desenvolve a philiacutea e a vida em comunidade Afinal o exerciacutecio da amizade
estaacute relacionado ao da proacutepria felicidade ldquode todo os bens que a sabedoria proporciona para
produzir a felicidade por toda a vida o maior sem comparaccedilatildeo eacute a conquista da amizaderdquo
(DL X 148 XXVII)68
35 ndash Pragmateiacutea e sabedoria praacutetica
A noccedilatildeo de pragmateiacutea epicurista permite compreender a filosofia como exerciacutecio de
uma sabedoria fundamentada na phyacutesis Isso nos remete para pensar o uso praacutetico de um saber
tendo em vista a realizaccedilatildeo de uma vida feliz (makariacuteos zecircn) O desafio eacute colocar para o
homem um conhecimento que possa ser-lhe uacutetil para essa finalidade eacute apresentar uma
filosofia que aja no loacutegos e encete uma disposiccedilatildeo (diaacutethesis) para lidar com as situaccedilotildees
comuns a partir de um modelo de compreensatildeo da realidade que permita conferir mais
naturalidade ao modo de viver
66 Ἔνδοξοι καὶ περίβλεπτοί τινες ἐβουλήθησαν γενέσθαι τὴν ἐξ ἀνθρώπων ἀσφάλειαν οὕτω νομίζοντες περιποιήσεσθαι ὥστε 67 Ἕνεκα τοῦ θαρρεῖν ἐξ ἀνθρώπων ἦν κατὰ φύσιν ἀρχῆς καὶ βασιλείας ἀγαθόν ἐξ ὧν ἄν ποτε τοῦτο οἷός τrsquo ᾖ παρασκευάζεσθαι 68 Ὧν ἡ σοφία παρασκευάζεται εἰς τὴν τοῦ ὅλου βίου μακαριότητα πολὺ μέγιστόν ἐστιν ἡ τῆς φιλίας κτῆσις
140 Sob essa perspectiva Epicuro confere agrave vida cotidiana estatuto de tema filosoacutefico e
em torno de saber como realizaacute-la de maneira agradaacutevel pensa uma pragmateiacutea orientada
para fazer o homem experimentar um modo de ser voltado para a autaacuterkeia e para o
equiliacutebrio Um exemplo disso pode ser encontrado na proacutepria maneira de viver de Epicuro
Ela pelo que ficamos sabendo pelos testemunhos de Dioacutegenes Laeacutercio eacute a expressatildeo de um
modo de ser desenvolvido em torno da alegria da tranquilidade da simplicidade da amizade
aspectos que remetem para a busca da harmonia da alma e do corpo
() nosso filoacutesofo apresenta testemunhos suficientes de seus sentimentos insuperavelmente bons para com todos a paacutetria que o honrou com estaacutetuas de bronze os amigos cujo nuacutemero era tatildeo grande que natildeo podiam ser contados em cidades inteiras todos aqueles que conviviam intimamente com o filoacutesofo ligados a ele pelo viacutenculo do fasciacutenio de sua doutrina como se fosse uma sereia (DL X 9)69
A vida de Epicuro retratada como uma liccedilatildeo de realizaccedilatildeo de sua proacutepria doutrina daacute-
nos indicativos de que viver segundo um saber filosoacutefico eacute a atividade que caracteriza o modo
de ser do saacutebio E isso natildeo estaacute restrito ao mestre do Jardim amigos e disciacutepulos satildeo
lembrados pelo mesmo motivo Um deles eacute Metrodoro ldquoque foi excelente em tudordquo e ldquose
mostrou imperturbaacutevel ao enfrentar os tormentos e a morterdquo (DL X 23)70 A partir de
exemplos desse tipo pode-se notar a relaccedilatildeo entre a sabedoria e a imperturbabilidade
(ataraxiacutea) o que remete para a questatildeo dos prazeres ligados agrave vida agradaacutevel (zecircn hedeacuteos)
Como jaacute procuramos mostrar os prazeres satildeo fundamentais para a realizaccedilatildeo do homem
poreacutem a felicidade natildeo consiste na repleccedilatildeo de todos os desejos mas somente daqueles
ligados ao bem-estar e ao equiliacutebrio E isso implica na adoccedilatildeo de limites para o desejar pois
uma alma desregrada pelo asseacutedio das vontades natildeo se sossega Essa medida embora tambeacutem
preconizada por outras correntes filosoacuteficas tem em Epicuro particularidades que definem sua
pragmateiacutea
De modo geral haacute uma crenccedila em que a natureza natildeo coloca limitaccedilotildees aos prazeres
Competiria agraves convenccedilotildees dar o pudor e as constriccedilotildees aos impulsos dos homens Por traacutes
dessa perspectiva tem-se a ideia de que a forccedila eacute a lei natural e o mais forte pode dominar e
satisfazer suas vontades em detrimento do mais fraco Dessa maneira quando as normas natildeo
bastam a phyacutesis eacute apontada como justificativa mesma para o desregramento para a imposiccedilatildeo
da violecircncia para o gozo sem comedimento Assim caberia agrave educaccedilatildeo agrave cultura agrave religiatildeo
69 () τῶι γὰρ ἀνδρὶ μάρτυρες ἱκανοὶ τῆς ἀνυπερβλήτου πρὸς πάντας εὐγνωμοσύνης ἥ τε πατρὶς χαλκαῖς εἰκόσι τιμήσασα οἵ τε φίλοι τοσοῦτοι τὸ πλῆθος ὡς μηδ ἂν πόλεσιν ὅλαις μετρεῖσθαι δύνασθαι οἵ τε γνώριμοι πάντες ταῖς δογματικαῖς αὐτοῦ σειρῆσι προσκατασχεθέντες 70 Μαθητὰς δὲ ἔσχε πολλοὺς μέν () ἦν δὲ καὶ ἀκατάπληκτος πρός τε τὰς ὀχλήσεις καὶ τὸν θάνατον
141 agrave poliacutetica ao noacutemos o papel de limitar os impulsos naturais a partir de noccedilotildees de bem ou mal
certo ou errado usadas para legitimar ou proibir as accedilotildees
Mas para Epicuro haacute um equivoco nessa maneira de compreender a natureza A
phyacutesis natildeo eacute fonte de desregramento mas um modelo para pensar justamente as
possibilidades e as interdiccedilotildees para a conduta do homem A concepccedilatildeo ligada agrave necessidade
de satisfazer a todos os desejos e a qualquer custo se fundamenta em opiniatildeo a phyacutesis natildeo
determina nem viacutecios nem virtudes A disposiccedilatildeo para agir tanto para o bem quanto para o
mal decorre da compreensatildeo que temos da natureza e das finalidades inteligidas a partir da
sua investigaccedilatildeo e que relacionamos agrave realizaccedilatildeo do homem Em torno desse entendimento
pode-se estabelecer uma indissociaccedilatildeo entre a pragmateiacutea e a sabedoria elas visam direcionar
o agir para os limites do natural e natildeo do que eacute imposto pela opiniatildeo Assim o saacutebio orienta
sua praacutetica de vida por um saber ligado ao estudo da natureza tanto quanto faz dessa ocupaccedilatildeo
um modo de viver relacionado ao exerciacutecio da proacutepria ataraxiacutea71 Ou seja viver e filosofar
satildeo atividades inseparaacuteveis na pragmateiacutea do sophoacutes que estaacute permanentemente buscando
estabelecer um eacutethos circunscrito agraves finalidades pensadas a partir da sua compreensatildeo da
natureza
Nesse sentido ao contraacuterio do que acontece quando se toma como referecircncia as
opiniotildees natildeo haacute a necessidade de afastar o homem da natureza para ldquodomarrdquo ou calar seus
desejos ldquoNatildeo se deve violentar a natureza mas persuadi-la noacutes a persuadiremos satisfazendo
os desejos naturais e necessaacuterios caso natildeo causem danos mas os que causam danos
refutando-os arduamenterdquo (SV 21)72 Assim quanto mais o saacutebio se dedica agrave investigaccedilatildeo da
phyacutesis mais pode se dar conta de que a desmesura estaacute ligada agrave falsa ideia a respeito do que
proporciona felicidade e que a sabedoria consiste em compreender a natureza dos desejos e
vivecirc-los em funccedilatildeo do equiliacutebrio que podem proporcionar Desse modo o que precisa ser
calado satildeo os discursos (loacutegos) que pensam a realizaccedilatildeo da vida a partir de valores e fins
contraacuterios aos postulados pela physiologiacutea Ao pensar a pragmateiacutea como exerciacutecio de uma
sabedoria dirigida para dar mais naturalidade agrave existecircncia Epicuro projeta a realizaccedilatildeo do
homem em um modo de vida distanciado das opiniotildees que levam a ldquoviolentar a naturezardquo
O sentido praacutetico da filosofia epicurista tem como finalidades a experiecircncia da
autaacuterkeia do equiliacutebrio e do prazer Eacute em torno desse objetivo que a physiologiacutea ao conduzir
71 Em DL X 37 Epicuro relaciona a atividade de investigaccedilatildeo da natureza a um modo de vida calmo tranquilo Ver nota 9 do capiacutetulo I 72 Οὐ βιαστέον τὴν φύσιν ἀλλὰ πειστέονmiddot πείσομεν δὲ τὰς ἀναγ-καίας ἐπιθυμίας ἐκπληροῦντες τάς τε φυσικὰς ἂν μὴ βλάπτωσι τὰς δὲ βλαβερὰς πικρῶς ἐλέγχοντες
142 a uma compreensatildeo sobre os modos de ser da natureza permitindo inteligir a partir disso um
modelo de conduta para o homem vai ser o fundamento para a sabedoria Eacute da phyacutesis que
adveacutem um paradigma a partir do qual eacute possiacutevel pensar uma pragmateiacutea realizaacutevel como
praacutetica de vida condizente com o saber a respeito da natureza Nesse escopo o physiologoacutes
precisa ldquoler nas leis do universo as condiccedilotildees e os limites da felicidade humanardquo (FRAISSE
1984 p 316) e estabelecer um eacutethos conforme essa leitura Como ldquoa natureza eacute o princiacutepio de
nossa limitaccedilatildeo tanto quanto nossa felicidaderdquo (Idem p 319) eacute fundamental ancorar na
compreensatildeo physioloacutegica os valores que vatildeo guiar o modo de ser do saacutebio Isso remete para
a necessidade de uma atividade permanente de espelhamento de uma maneira de entender a
natureza e as finalidades da vida nas condutas do homem O caminho da sabedoria eacute o da
realizaccedilatildeo da pragmateiacutea um exerciacutecio desenvolvido ao longo de toda a vida e que se estende
do modo de pensar agrave maneira de viver Por isso Epicuro diz
Natildeo eacute o jovem que pode ser felicitado mas o anciatildeo que viveu belamente (bem) pois o jovem muacuteltiplo pela plenitude de sua idade comete erros e o anciatildeo como se fosse num porto estaacute ancorado pela velhice depois de ter trancado (fechado) com alegria serena (segura) aqueles dentre os bens antes vistos com desesperanccedila (SV 17)73
Essa vida bela que caracteriza o anciatildeo ou o saacutebio eacute reflexo da disposiccedilatildeo para buscar
os bens que conferem seguranccedila (asphaacuteleia) ao modo de viver A philiacutea a autaacuterkeia a
eleutheriacutea a sabedoria satildeo finalidades que tanto permitem pensar um sentido para a
pragmateiacutea epicurista quanto definem um direcionamento praacutetico para o saber physioloacutegico
Investigar a phyacutesis pensar a partir disso sobre a realidade histoacuterica (poliacutetica religiatildeo cultura
normas etc) que envolve a vida discernir nesse contexto o que pode conferir mais
naturalidade agrave existecircncia e estabelecer praacuteticas que aproximem o homem do seu sentido de
realizaccedilatildeo satildeo atividades que remetem para um meacutetodo de consecuccedilatildeo de sabedoria pensada
para ser possiacutevel exequiacutevel O saacutebio epicurista eacute aquele que valendo-se do que conhece sobre
a phyacutesis pratica uma artesania ou um cuidado sobre si mesmo a partir de exerciacutecios que visam
espelhar na alma essa leitura da natureza Eacute em torno da percepccedilatildeo de que a felicidade
depende de um trabalho sobre si mesmo por meio de meditaccedilatildeo e de praacutexis que Epicuro
concebe toda accedilatildeo dentro dos limites da natureza como um exerciacutecio de sabedoria e faz da
vida feliz a finalidade das accedilotildees do saacutebio Com isso busca-se projetar o paradigma da
natureza na alma e daiacute para o modo de viver
73 Οὐ νέος μακαριστὸς ἀλλὰ γέρων βεβιωκὼς καλῶςmiddot ὁ γὰρ νέος ἀκμῇ πολὺς ὑπὸ τῆς τύχης ἑτεροφρονῶν πλάζεταιmiddot ὁ δὲ γέρων καθάπερ ἐν λιμένι τῷ γήρᾳ καθώρμικεν τὰ πρότερον δυσελπιστούμενα τῶν ἀγαθῶν ἀσφαλεῖ κατακλείσας χάριτι
143 Vemos que a conduta do saacutebio eacute construiacuteda em torno de um pensamento eacutetico
fundamentado na natureza Isso ao mesmo tempo em que nos remete para pensar a felicidade
como uma finalidade inscrita no campo do imanente tambeacutem coloca diante do homem a
responsabilidade pela realizaccedilatildeo de uma vida coerente com esse teacutelos Se a physiologiacutea
permite uma leitura da natureza em que ele meio agrave necessidade e ao acaso pode compreender
o poder que tem para recusar o papel de conformado e temeroso e escolher o protagonismo de
sua proacutepria histoacuteria a pragmateiacutea vai colocar em exerciacutecio essa forma physioloacutegica
compreensatildeo da vida resultando em uma accedilatildeo livre e autecircntica E isso mesmo em um
contexto de tirania da impossibilidade de participar da vida poliacutetica ou outras formas de
interdiccedilotildees ou repressotildees que podem afetar a vida do homem Assim
() o saacutebio eacute aquele que age sempre a partir do seu poder de escolha e rejeiccedilatildeo e jamais de sujeiccedilatildeo Sua referecircncia uacutenica eacute a compreensatildeo dos limites e das possibilidades da natureza-realidade na qual vive e exercita-se na realizaccedilatildeo de uma vida apraziacutevel em cada ato ou deliberaccedilatildeo que dele dependa (SILVA 2003 p 87)
Para Epicuro a eacutetica eacute um principio que o saacutebio desenvolve dentro de si mesmo ela eacute
da ordem do indiviacuteduo e pode ser cultivada a despeito de modelos socialmente colocados para
todos Para ele o saacutebio deve buscar realizar uma existecircncia eacutetica e para isso toda conduta
precisa se configurar como accedilatildeo cujo princiacutepio estaacute em quem age eacute atitude gerada segundo a
autaacuterkeia guiada pela vontade esclarecida liberta coerente com a proacutepria compreensatildeo
acerca da realidade Trata-se de estabelecer um comportamento visando os fins de acordo com
a natureza e natildeo mais procurando ser a expressatildeo dos valores cristalizados pelas opiniotildees
vazias pela religiatildeo pelas convenccedilotildees da poacutelis Epicuro entende que a vida natildeo precisa mais
ser pensada como projeto ligado ao miacutetico-religioso ela eacute concebida como fenocircmeno da
phyacutesis A partir dessa compreensatildeo o saacutebio relaciona o que pode ser vivido agrave noccedilatildeo de
construccedilatildeo de criaccedilatildeo de elaboraccedilatildeo de um eacutethos definido por escolhas voltadas para o
agradaacutevel para a vida frugal e entre amigos
351 ndash Saber para a vida
Epicuro exorta agrave praacutetica filosoacutefica mas natildeo como manifestaccedilatildeo de erudiccedilatildeo nem nos
moldes de uma disciplina preocupada com a sophiacutea procurando a aleacutetheia ou conduzindo a
uma episteme No Jardim filosofar consiste em direcionar continuamente o pensamento para
o exame da vida que se coloca diante dos sentidos Busca-se ensinar uma maneira de pensar a
144 realidade sem ter de recorrer agraves crenccedilas aos mitos agraves opiniotildees vazias agraves explicaccedilotildees
concebidas fora do campo das experiecircncias humanas Afinal entende-se que a liberdade da
imaginaccedilatildeo aliada agrave retoacuterica e agrave insatisfaccedilatildeo quanto agraves respostas sobre o sentido da vida datildeo
asas para um loacutegos que se lanccedila em um vocirco para aleacutem dos limites da phyacutesis Nos mitos
projetam-se causas finalidades e uma realidade concebiacutevel mas inelutaacutevel para o homem
sujeito agraves normas aos modelos de virtudes e agraves expectativas de conduta que lhe privam de um
sentido autecircntico de realizaccedilatildeo Desse modo ele tem a alma adoecida pelo medo pelo
desequiliacutebrio pela imposiccedilatildeo da submissatildeo males que afastam a felicidade Se mesmo nos
momentos adversos Epicuro pratica a alegria ao relembrar momentos felizes eacute porque soube
contrapor a esse loacutegos que adoece aprisiona assenhora despotencializa outro que partindo
de uma investigaccedilatildeo da phyacutesis busca a realizaccedilatildeo humana dentro daquilo que a natureza
circunscreve Eacute esse sentido de buscar realizar uma vida saacutebia que vai definir os contornos da
pragmateiacutea epicurista
No passo 35 da Carta a Heroacutedoto o termo pragmateiacutea74 tem sido traduzido como
sistema (CURY 2008 CONCHE 1977)75 ou como o conjunto dos escritos de Epicuro
(SOLOVINE 1965 SALEM1982)76 Em ambos os casos faz-se referecircncia a uma doutrina a
um corpus de conhecimento ligado agrave compreensatildeo da natureza Mas essa perspectiva parece-
nos malgrado as limitaccedilotildees impostas agraves traduccedilotildees bem aqueacutem de expressar o conjunto de
inter-relaccedilotildees entre conhecimento (gnoacutesis) physiologiacutea eacutetica sabedoria e exerciacutecios (aacuteskesis)
estabelecidas na dinacircmica de realizaccedilatildeo de uma vida de acordo com a natureza como estamos
tentado mostrar nesse trabalho Por isso cabe pensar um sentido mais amplo e adequado para
o termo de maneira a poder traduzir o escopo da filosofia epicurista
Quando observamos a etimologia da palavra verificamos que o termo pragmateiacutea77
pode tambeacutem se referir agrave maneira como tratamos de algo ao cuidado que dedicamos ao fazer
alguma coisa Isso leva em conta a busca pela realizaccedilatildeo de um objetivo para o qual eacute preciso
se ocupar se aplicar Nesse sentido o termo remete para a procura por alcanccedilar uma
finalidade e tambeacutem pode fazer referecircncia a afazeres78 atividades praacuteticas Esse
enquadramento mais abrangente possibilita pensar a filosofia do Jardim sob uma perspectiva
74 DL X 35 77 83 Πραγματεία 75 Ver nota 30 da introduccedilatildeo 76 Maurice Solovine traduz como ldquotudo o que o que eu (Epicuro) escrevi sobre a naturezardquo em Eacutepicure doutrines et maximes Paris Hermann 1965 Jean Salem usa a expressatildeo ldquotoda a mateacuteria (assunto)rdquo em Epicure lettres Paris Nathan 1982 77 Anatole Bailly Op Cit 78 The Online Liddell-Scott-Jones Greek-English Lexicon (httpstephanustlguciedulsjeid=1 acessado em 13 de fevereiro 2019)
145 mais orgacircnica A relaccedilatildeo que se estabelece entre a vida feliz e o cuidado de si entre a
investigaccedilatildeo da natureza e o exerciacutecio da ataraxiacutea entre libertar a alma das opiniotildees vazias e
praticar a frugalidade entre os limites da phyacutesis e a repleccedilatildeo dos desejos naturais permite
inferir um saber que se efetiva justamente como aacuteskesis Eacute a isso que a pragmateiacutea se refere e
como tal procura ser realizada pelo saacutebio
O saber passiacutevel de ser colocado em praacutetica para fazer da vida um exerciacutecio de
contentamento vai ser o constituinte da pragmateiacutea Para o saacutebio poder agir de uma maneira
sensata a partir da phroacutenesis e do logismoacutes e fazer as escolhas e as recusas necessaacuterias para o
seu bem-estar eacute necessaacuterio um conhecimento (gnoacutesis) que lhe permita compreender as
finalidades e os bens relacionados ao gozo de uma existecircncia mais equilibrada
Evidentemente nem sempre eacute possiacutevel uma accedilatildeo racional diante de todas as situaccedilotildees mas o
agir consciente esclarecido vai caracterizar a conduta do saacutebio Por isso quanto mais ele
conhece os modos de ser da phyacutesis mais ele passa a compreender aquilo que estaacute relacionado
a um modo de vida natural e mais ele pode orientar sua conduta para esse teacutelos O
conhecimento sobre a natureza se traduz em um saber para a vida na medida em que eacute a partir
dessa investigaccedilatildeo que o saacutebio vai poder meditar e estabelecer uma praacutexis direcionada para
uma aproximaccedilatildeo com a natureza Assim a physiologiacutea se identifica com a pragmateiacutea na
medida em que busca apresentar um conhecimento que sirva para fazer da vida do homem um
exerciacutecio de autorrealizaccedilatildeo Nesses termos poder-se-ia falar de um discurso sapiencial onde
o conhecimento se converte em uma disposiccedilatildeo para a praacutetica de uma maneira saacutebia de viver
Nessa perspectiva podemos assinalar o papel da filosofia como sendo o de procurar
descortinar a phyacutesis ateacute onde o pensamento humano alcanccedila conduzindo a um saber que
permita ao homem a tranquilidade diante daquilo que eacute fenomecircnico e a confianccedila (piacutestis)
diante do que pode ser por ele realizado O saacutebio ao entender que a makariacuteos zecircn eacute construiacuteda
na imanecircncia por meio de exerciacutecios permanentes voltados para realizar uma vida katagrave
phyacutesin passa a confiar na possibilidade de ele mesmo ser responsaacutevel por estabelecer os
procedimentos que possam fazecirc-lo experimentar o sentido de uma existecircncia mais plena
Assim
() longe de se limitar a designar uma certeza epistecircmica no estudo dos fenocircmenos fiacutesicos essa piacutestis essa feacute exprime entre outras coisas a seguranccedila que confere ao saacutebio o alegre saber do qual ele goza no instante presente () A ldquofalta de certezardquo (apistiacutea) coloca ao contraacuterio os insensatos ldquona confusatildeo e na incapacidade de ir adianterdquo (SALEM 1994 p 60)
146 Essa atenccedilatildeo dada agrave compreensatildeo da phyacutesis como o ldquoterrenordquo onde a vida feliz pode
ser realizada estaacute ligada agrave necessidade de seguranccedila (asphaacuteleia) Uma referecircncia disso
encontramos na Sentenccedila Vaticana 57 onde se diz que ldquopor causa da incerteza sua vida
inteira seraacute levada agrave confusatildeo e jogada por terrardquo79 Se por um lado Epicuro ao dizer isso
parece estar se referindo a questotildees ligadas agrave amizade onde a apistiacutea pode ser remetida ldquoagrave
traiccedilatildeo agrave infidelidade do amigordquo e a piacutestis pode remeter ao caso em que o ldquoamigo ajudaraacute se a
necessidade vierrdquo (BOLLACK 1975 p 520) de qualquer forma ele estaacute relacionando a
confianccedila ao modo de vida do saacutebio pois natildeo haacute como pensar a tranquilidade o equiliacutebrio a
alegria se a alma estaacute tomada pela inseguranccedila pelo medo pela incerteza seja com relaccedilatildeo
aos outros homens agrave vida em sociedade ou com relaccedilatildeo agraves coisas do ceacuteu A morte os deuses
o aleacutem-vida assim como os acontecimentos que ora se datildeo por necessidade ora por acaso ou
pela accedilatildeo de outrem apontam para a dimensatildeo do desconhecido do imponderaacutevel que
permeia a vida e para o qual devemos estar em condiccedilatildeo de agir com sabedoria Isso implica
em poder recorrer aos ensinamentos physioloacutegicos e aplicaacute-los agraves mais distintas situaccedilotildees
Nesse sentido podemos entender a pragmateiacutea como esse saber que serve para que todos
ldquo() estejam em condiccedilotildees de sustentaacute-los em quaisquer circunstacircnciasrdquo (DL X 35)80 ou
seja que assiste quem precisa se colocar diante do que pode causar apreensatildeo duacutevida
incerteza Essa premecircncia tambeacutem eacute manifesta na Maacutexima 8 onde se fala que natildeo haveria
vantagem em proporcionar seguranccedila com relaccedilatildeo aos afazeres humanos se as coisas do alto
como os fenocircmenos celestes e toda sorte de possibilidade de interpretaccedilotildees que eles suscitam
permanecessem como causas de desassossego
Dessa forma percebemos que a filosofia epicurista eacute elaborada tendo em vista encetar
na alma do saacutebio uma convicccedilatildeo firme (piacutestin beacutebaion) a respeito da natureza como modelo e
espaccedilo para a felicidade do homem E essa convicccedilatildeo estaacute ligada a uma exigecircncia
instrumental pois ldquoaplicando atentamente esta doutrina determinaremos corretamente as
origens da perturbaccedilatildeo e do temor e nos livraremos delesrdquo (DL X 82)81 Eacute preciso aplicar
fazer uso do saber tornaacute-lo praticaacutevel Eacute nesse sentido que a pragmateiacutea pode ser
compreendida como a praacutetica de um saber que orienta a vida em torno de uma eacutetica
fundamentada na physiologiacutea Estamos falando de uma maneira de conduzir o saacutebio a
experimentar no seu vir a ser o sentido daquilo que ele inteligiu ao perquirir a phyacutesis
Investigar meditar e se ocupar por meio de uma praacutexis em estabelecer a partir desse saber
79 ὁ βίος αὐτοῦ πᾶς διrsquo ἀπιστίαν συγχυθήσεται καὶ ἀνακεχαιτισμένος ἔσται 80 () ἵνα παρrsquo ἑκάστους τῶν καιρῶν ἐν τοῖς κυριωτάτοις βοηθεῖν αὑτοῖς δύνωνται 81 ἂν γὰρ τούτοις προσέχωμεν τὸ ὅθεν ὁ τάραχος καὶ ὁ φόβος ἐγίνετο ἐξαιτιολογήσομεν ὀρθῶς καὶ ἀπολύσομεν
147 um modo de ser fundamentado na compreensatildeo de um estado de equiliacutebrio e liberdade
presentes na natureza satildeo atividades que ao mesmo tempo permitem compreender esse
aspecto pragmaacutetico da filosofia e tambeacutem remetem para um conhecimento elaborado tendo
em vista se estender agrave accedilatildeo do saacutebio sobre o mundo e em prol da proacutepria realizaccedilatildeo
Isso nos leva a entender que a pragmateiacutea conduz o sophoacutes a estabelecer com a
natureza e com o saber fundamentado nela uma relaccedilatildeo especiacutefica e fundamental para a
compreensatildeo da filosofia epicurista Ele acredita que a felicidade eacute possiacutevel que ele tem papel
na construccedilatildeo dessa felicidade porque no exerciacutecio de investigar a phyacutesis de orientar seu
modo de viver para uma forma mais natural ele experimenta no dia a dia o equiliacutebrio o
prazer e a liberdade que advecircm de se viver dentro dos limites depreendidos dessa
compreensatildeo da natureza A convicccedilatildeo dele eacute construiacuteda ao exercitar esse conhecimento e
com isso vai percebendo a realizaccedilatildeo de uma vida agradaacutevel na medida em que haacute o
espelhamento desse saber em seu eacutethos E aiacute se verifica o estabelecimento de uma relaccedilatildeo que
natildeo eacute de feacute eacute de confianccedila natildeo eacute adesatildeo a uma concepccedilatildeo fundada nos mitos eacute assimilaccedilatildeo
de um loacutegos fundamentado no imanente Quanto mais ele vive em funccedilatildeo de uma
compreensatildeo ancorada no sensiacutevel mais confia na possibilidade de sua realizaccedilatildeo A
confianccedila ou convicccedilatildeo nesse sentido estaacute ligada agrave percepccedilatildeo de que a vida tem sua
finalidade nela mesma na imanecircncia dos fenocircmenos que a compotildeem e que definem um
sentido para ela e tambeacutem estaacute relacionada agrave compreensatildeo de que a makariacuteos zecircn decorre de
uma postura ativa e protagonista do homem que deve fazer da sua existecircncia um exerciacutecio de
cuidado consigo mesmo
A pragmateiacutea exercitada como teacutechnen tinaacute periacute ton biacuteon enceta a asphaacuteleia que
produz na alma essa disposiccedilatildeo para cada vez mais se distanciar dos mitos das opiniotildees e de
concepccedilotildees que colocam a existecircncia humana como submetida agrave providecircncia ou agrave necessidade
e distante de sua realizaccedilatildeo Se ldquotodo homem sai da vida como se tivesse acabado de nascerrdquo
(SV 60)82 essa brevidade da vida (zecircn) evocada por Epicuro coloca em relevo a premecircncia
de pensar na melhor forma de conduzir nossa realidade histoacuterica A Sentenccedila 7583 sugere que
o tempo pode ser desperdiccedilado e diante da proximidade da morte levar o homem a lamentar
ldquoos bens que passaramrdquo Isso acontece quando se deixa a vida (biacuteos)84 aos sabores da
irracionalidade da desmesura ou quando as vontades ligadas agraves necessidades naturais e
82 Πᾶς ὥσπερ ἄρτι γεγονὼς ἐκ τοῦ ζῆν ἀπέρχεται Preferimos por uma questatildeo de clareza a segunte traduccedilatildeo Tout homme sort de la vie comme srsquoil eacutetait juste neacute (BOLLACK 1975 p 525) 83 Εἰς τὰ παρῳχηκότα ἀγαθὰ ἀχάριστος φωνὴ ἡ λέγουσα τέλος ὅρα μακροῦ βίου Eacute ingrata a voz que diz para os bens que passaram olha o fim de uma vida longa 84 Sobre essa diferenccedila entre zecircn e biacuteos ver nota 150 do capiacutetulo I
148 necessaacuterias satildeo substituiacutedas por desejos artificialmente criados pela cultura da poacutelis Por isso
o saacutebio deve exercitar a confianccedila e a disposiccedilatildeo para transformar a proacutepria existecircncia e viver
segundo seu pensamento
Nessa perspectiva a pragmateiacutea direciona o saacutebio para que medite sobre a natureza
sobre os bens circunscritos aos limites dela e sobre os modos de obtecirc-los Isso implica em
uma praacutexis do pensamento que se estende ateacute o campo das accedilotildees das condutas que estabelece
no mundo e orientam suas relaccedilotildees sociais definindo modos de convivecircncia com os outros A
vida saacutebia eacute definida por esse trabalho essa atividade contiacutenua de procurar sempre
correlacionar os pensamentos e as accedilotildees com um modelo natural de existecircncia Eacute nessa
relaccedilatildeo de aproximaccedilatildeo entre o pensar e a maneira como se viver que a pragmateiacutea nos
aponta para a indissociaccedilatildeo entre o saber physioloacutegico e a eacutetica Ou em temos mais
epicuristas a finalidade da pragmateiacutea eacute fazer com que ldquoo pensamento tendo atingido um
entendimento racional da finalidade do corpo e seus limites e tendo dissipado os temores
relativos agrave eternidade proporcione a vida integralrdquo85 (DL X 145 XX)86
352 - Exerciacutecio eacutetico
No livro VI de Vida e Doutrinas dos Filoacutesofos Ilustres lemos a seguinte passagem
atribuiacuteda a Dioacutegenes de Sinope da escola ciacutenica
Com efeito nada na vida se pode obter sem exerciacutecio e este eacute capaz de sobrepor-se a tudo Eliminados entatildeo os esforccedilos inuacuteteis o homem que escolhe os esforccedilos requeridos pela natureza vive feliz A falta de discernimento para perceber os esforccedilos necessaacuterios eacute a causa da infelicidade humana (DL VI 71)
Essa citaccedilatildeo coloca em relevo uma relaccedilatildeo entre a praacutetica de exerciacutecios e a felicidade
ao mesmo passo em que aponta para a importacircncia da phroacutenesis e do logismoacutes instrumentos
de discernimentos da alma Tal perspectiva tambeacutem se verifica no epicurismo que busca por
meio de uma praacutetica sobre si mesmo o espelhamento na psycheacute de um loacutegos fundamentado na
natureza A aacuteskesis epicurista incide sobre a maneira de pensar e de agir de forma a fazer com
que o saacutebio possa cuidar do seu bem-estar e realizar uma vida bela (kalocircs zecircn) O exerciacutecio de
vida do sophoacutes consiste em uma therapeiacutea para afastar da alma as opiniotildees que adoecem e
85 Traduccedilatildeo de Maacuterio da Gama Kury do texto de Dioacutegenes Laeacutercio com reparos 86 ἡ δὲ διάνοια τοῦ τῆς σαρκὸς τέλους καὶ πέρατος λαβοῦσα τὸν ἐπιλογισμὸν καὶ τοὺς ὑπὲρ τοῦ αἰῶνος φόβους ἐκλύσασα τὸν παντελῆ βίον παρεσκεύασεmiddot
149 viver a partir de uma dieteacutetica orientada para a repleccedilatildeo do que se circunscreve aos desejos
naturais e necessaacuterios Esse cuidado tambeacutem pode ser compreendido pelo prisma de uma
esteacutetica existencial na medida em que um modelo inteligido a partir da natureza eacute adotado
como referecircncia para a definiccedilatildeo do modo de ser do saacutebio Quando ele busca fazer sua vida
corresponder agrave imagem de equiliacutebrio de autaacuterkeia de imperturbabilidade (ataraxiacutea) que
estatildeo presentes na definiccedilatildeo de phyacutesis compreendida em sua totalidade ele estaacute buscando
fazer de seu eacutethos um reflexo do proacuteprio koacutesmos
Daiacute a tendecircncia a se pensar a filosofia epicurista como uma arte (teacutechne) de viver E a
noccedilatildeo de aacuteskesis traduz justamente essa ideia de um trabalho de uma artesania desenvolvida
em torno de fazer da experiecircncia de existir algo que proporcione felicidade E isso eacute atividade
eacute praacutetica contiacutenua de ldquoexperimentar fazer do dia posterior melhor que o anterior ateacute que
estejamos a caminhordquo (SV 48)87 Nesse sentido o homem eacute pensado como o principal agente
de transformaccedilatildeo de sua realidade cabe a ele a responsabilidade dentro do que eacute possiacutevel
sobre o proacuteprio destino Eacute por meio de exerciacutecios sejam de meditaccedilatildeo ou de praacutexis que ele
trabalha na alma uma compreensatildeo de si mesmo e daquilo que ele pode realizar A arte
epicurista consiste em traduzir um conhecimento em um fazer que torne efetiva a experiecircncia
do contentamento do bem-estar da philiacutea da liberdade Por isso a filosofia eacute definida por
Epicuro conforme relato de Sexto Empiacuterico como ldquouma atividade que por meio de discurso
(loacutegois) e raciociacutenio (dialogismoiacutes) proporciona uma vida felizrdquo88 Nesses termos percebe-se
uma concepccedilatildeo de praacutetica filosoacutefica que age no interior da alma e se projeta na forma do saacutebio
compreender o mundo e de se relacionar nele Eacute uma teacutechne concebida para transformar a
maneira de pensar do homem e por extensatildeo transformar sua forma de viver
Trata-se de um trabalho que incide sobre o proacuteprio pensamento e por extensatildeo tem
reflexos na conduta no haacutebito e portanto requer esforccedilo e dedicaccedilatildeo Por isso Epicuro
entende que a sabedoria natildeo estaacute ao alcance de todos Assim como o cuidado com a sauacutede
implica em uma dieteacutetica em haacutebitos voltados para o equiliacutebrio a vida filosoacutefica tambeacutem
demanda atenccedilatildeo uma ocupaccedilatildeo para a qual nem todos se dispotildeem vide os muitos que
preferem viver sob os valores da poacutelis e que vecircem em Alexandre o Grande um modelo de vida
a ser seguido Um fragmento de Dioacutegenes de Œnoanda embora incompleto permite ver
sugerida essa ideia de que nem todo mundo pode vir a ser saacutebio ldquo[] posto que nem todos
tecircm o poder Mais se noacutes o supuseacutessemos possiacutevel entatildeo verdadeiramente a vida dos deuses
87 Πειρᾶσθαι τὴν ὑστέραν τῆς προτέρας κρείττω ποιεῖν ἕως ἂν ἐν ὁδῷ ὦμενmiddot 88 Us 219 Sexto Empiacuterico (Adv Math V 9) 169 φιλοσοφίαν ένέργειαν εΐναι λόγοις καΐ διᾰλογισμοΐς τον εύδαίμονα βίον περιποιοθσαν
150 passaria aos homensrdquo (Œno fr 56)89 A doxografia tambeacutem nos coloca diante de um
testemunho de Clemente de Alexandria segundo ele ldquoEpicuro supotildee que soacute os gregos satildeo
qualificados para praticar a filosofiardquo90 Dioacutegenes Laeacutercio ao falar da concepccedilatildeo epicurista de
sophoacutes relata que ldquonem toda constituiccedilatildeo fiacutesica nem toda nacionalidade permite a um
homem tornar-se saacutebiordquo (DL X 117)91 Por traacutes desses registros fica colocada a existecircncia de
questotildees que impedem o exerciacutecio da sabedoria estejam ligadas a contextos poliacuteticos e
culturais a limitaccedilotildees individuas ou agrave escolha de cada um
A aacuteskesis epicurista natildeo remete para nenhum aspecto ligado agrave revelaccedilatildeo ou despertar
que tomando conta da alma a coloca no caminho da sabedoria Essa atividade estaacute ligada a
um procedimento de transformaccedilatildeo na maneira de compreender a realidade e do papel do
homem diante dela E como vimos nos capiacutetulos anteriores a meditaccedilatildeo e a praacutexis tecircm papel
fundamental nesse processo Eacute por meio desses exerciacutecios que o homem se coloca
criticamente com relaccedilatildeo agraves opiniotildees que fundamentam um loacutegos afastado da natureza e busca
realizar um modo de vida de acordo com a compreensatildeo que desenvolve ao se dedicar a
observar e refletir sobre os modos de ser da natureza Considerando que o escopo da filosofia
epicurista eacute a realizaccedilatildeo de uma vida prazerosa a aacuteskesis se relaciona agrave necessidade de
submeter o pensamento e as accedilotildees agrave ldquofinalidade da naturezardquo (tograve teacutelos tecircs phyacuteseos)92 e com
isso poder estabelecer um eacutethos katagrave phyacutesin Sendo assim na medida em que desenvolvem a
capacidade para estabelecer uma compreensatildeo a respeito de como afastar-se dos valores
convencionados e realizar um modo de ser mais natural os exerciacutecios estimulam um sentido
de resistecircncia de natildeo-conformismo de destemor Quanto mais o homem exercita a sabedoria
mais ele amadurece a confianccedila e a disposiccedilatildeo para transformar a proacutepria existecircncia
A pragmateiacutea pensada como exerciacutecio de vida filosoacutefica estabelece uma relaccedilatildeo com a
eacutetica em torno do cuidado de si o que evoca a ideia de um modo de viver mais equilibrado Eacute
por meio de uma meditaccedilatildeo e de uma praacutexis voltada para o prazer e a serenidade que se busca
exercitar essa vida fazendo dela uma experiecircncia praacutetica A finalidade da pragmateiacutea natildeo eacute
ser uma teoria a qual se subordina uma praacutexis natildeo eacute formar o homem para que depois ele
possa viver melhor o objetivo eacute se constituir como uma praacutetica de pensar a proacutepria praacutetica e
desenvolvecirc-la em funccedilatildeo de fazer experimentar essa makariacuteos zecircn A perspectiva epicurista eacute
a de uma ldquoformaccedilatildeordquo que vem com a experiecircncia O que a ldquoteoriardquo faz eacute traduzir o sentido de
89 [] puisque tous nrsquoen ont pas le pouvoir Mais si nous le supposons possible alors veacuteritablement la vie des dieux passera aux hommes 90 Us 226 Clemente de Alexandria Miscelacircnea I15 91 πάθεσι μᾶλλον συσχεθήσεσθαι οὐκ ἂν ἐμποδίσαι πρὸς τὴν σοφίαν 92 Maacutexima 25 τὸ τέλος τῆς φύσεως
151 uma praacutetica de vida saacutebia ou de acordo com a natureza Assim physiologiacutea vida e eacutetica satildeo
aspectos inseparaacuteveis na aacuteskesis epicurista Dai Epicuro afirmar que ldquovenerar o saacutebio eacute um
grande bem para quem venerardquo (SV 32)93 A intenccedilatildeo eacute mostrar que no modo de viver do
sophoacutes se encontra uma referecircncia a como eacute possiacutevel se colocar no mundo a partir de uma
vivecircncia eacutetica do exerciacutecio cotidiano de realizaccedilatildeo de liberdade e de prazer
Na Carta a Meneceu se diz que para gozar de uma vida feliz eacute preciso colocar em accedilatildeo
(praacutette) o saber acerca da natureza (DL X 123)94 Com isso Epicuro estaacute postulando uma
concepccedilatildeo de filosofia que eacute ao mesmo tempo exerciacutecio de uma forma de pensar e modo
saacutebio de viver Na medida em que se assimila o saber physioloacutegico mais haacute uma aproximaccedilatildeo
com um modelo natural e com isso se experimenta a autaacuterkeia e o equiliacutebrio A pragmateiacutea eacute
conhecimento relacionado agrave accedilatildeo ou atividade (eneacutergeia) de viver em funccedilatildeo de experimentar
sensaccedilotildees agradaacuteveis de sentir tranquilidade de contentar-se com o necessaacuterio para uma vida
saudaacutevel de alegrar-se com a amizade Colocar em praacutetica esse saber consiste em procurar
viver a sabedoria no dia a dia Isso implica em um assenhoramento da proacutepria vontade
condiccedilatildeo necessaacuteria para poder agir como autaacuterkes e orientar as accedilotildees tendo em vista uma
medida-limite (peacuteras) fundamentada na natureza Nesse sentido a pragmateiacutea eacute exerciacutecio de
compreensatildeo da phyacutesis de seus modos de ser e seus limites e tambeacutem eacute o exerciacutecio de uma
medida para o agir fundamental para orientar a conduta do saacutebio
Lembremos de que no capiacutetulo II deste trabalho dedicado a buscar compreender como
a pragmateiacutea eacute exercitada pela alma dissemos que a filosofia epicurista eacute elaborada como
uma therapeiacutea e que como tal tinha como finalidade afastar da alma de inquietudes temores
e desequiliacutebrios E isso implicava em mitigar na psycheacute a forccedila de um loacutegos fundamentado em
opiniotildees vazias ou em crenccedilas que natildeo resistiam aos criteacuterios de verdade relacionados ao
sensiacutevel projetando para aleacutem da phyacutesis o sentido imanente da realizaccedilatildeo do homem
A meditaccedilatildeo nesse contexto eacute tratada como uma atividade que leva a psycheacute a
estabelecer por meio da phroacutenesis e do logismoacutes um distanciamento dessas opiniotildees ou
desse loacutegos que adoece e aprisiona a alma Para isso a vida feliz eacute identificada ao exerciacutecio
do prazer e esse eacute pensado como fonte de equiliacutebrio porque estaacute dentro dos limites de uma
medida natural Eacute sob essa perspectiva que se pensa em um loacutegos-terapecircutico pois ldquoa
filosofia trabalha a alma humana mediante um loacutegos depurador esclarecedor acerca dos
limites e medidas proacuteprias agrave sua natureza O loacutegos enquanto um phaacutermakon visa sobretudo
93 Ὁ τοῦ σοφοῦ σεβασμὸς ἀγαθὸν μέγα τῷ σεβομένῳ ἐστί 94 Cf nota 28 da introduccedilatildeo
152 esclarecer as noccedilotildees de natureza alma valor e finalidaderdquo (SILVA 2003 p 80) Assim o
exerciacutecio de compreensatildeo da phyacutesis remete para essa (re)construccedilatildeo do loacutegos voltado para
conduzir agrave ataraxiacutea
Compreender a natureza eacute inteligir dela limites para os desejos de maneira a se
contrapor agrave desmesura de quem deseja estimulado pelas kenaigrave doacutexai A alma liberta de um
loacutegos que a desequilibra que a oprime que remete para uma vontade artificial pode escolher
em funccedilatildeo de sua compreensatildeo da realidade e do papel que percebe poder desenvolver nela
E aiacute reside um aspecto importante para entender o significado epicurista da praacutetica de um
saber fundamentado na natureza na medida em que visa curar desvencilhar ou afastar a alma
dos valores que a impedem de realizar uma vontade livre tambeacutem se constitui como praacutetica
eacutetica Ou seja a pragmateiacutea quando pensada como uma atividade voltada para exercitar um
entendimento da phyacutesis visando a ataraxiacutea (ausecircncia de perturbaccedilatildeo na alma) e a autaacuterkeia
(ter o princiacutepio da accedilatildeo em si mesmo)95 pode ser entendida como um exerciacutecio eacutetico Nesse
contexto eacutetico diz respeito a um modo de ser de viver ligado agrave possibilidade de poder de
pensar a proacutepria existecircncia sem a imposiccedilatildeo de convenccedilotildees de regras de normas Eacute viver
conforme um entendimento da natureza eacute trazer o sentido de uma filosofia que postula a
liberdade e o equiliacutebrio para a praacutetica de uma vida saacutebia Isso acontece quando se exercita
essa compreensatildeo da phyacutesis que ao levar agrave rejeiccedilatildeo de todo entendimento da realidade
fundamentada em mitos crenccedilas opiniotildees vazias exercita a liberdade da alma
Tambeacutem cabe destacar que nessa pesquisa tratamos de como a pragmateiacutea se
relaciona com a accedilatildeo saacutebia Tentamos evidenciar a concepccedilatildeo de sabedoria como exerciacutecio de
uma medida para o agir buscada na investigaccedilatildeo da natureza e que isso definiria o sentido da
praacutexis epicurista Eacute nesse contexto que a conduta do saacutebio eacute pensada como estando ligada agrave
realizaccedilatildeo de um teacutelos katagrave phyacutesin o que remete ao espelhamento de uma modelo natural de
vida equilibrada e livre no campo do agir social Cabe ao homem considerando as limitaccedilotildees
inerentes agrave possibilidade do conhecer e o discernimento que lhe permite a phroacutenesis e o
logismoacutes com relaccedilatildeo ao que estaacute ao seu alcance traduzir essa medida em escolhas e recusas
que possam trazer mais contentamento agrave sua maneira de existir e de se relacionar no mundo
Ao fazer isso a experiecircncia da liberdade (eleutheriacutea) eacute sentida enquanto atividade de
construccedilatildeo pelo proacuteprio homem de sua histoacuteria Para tanto o saacutebio define suas atitudes sem as
constriccedilotildees das convenccedilotildees das leis ele encontra na investigaccedilatildeo da phyacutesis os limites aos
quais subordinar a vontade O exerciacutecio da liberdade vai par e passo ao de circunscrever os
95 Ver nota 172 do capiacutetulo I
153 desejos ao acircmbito do natural e necessaacuterio Exercitar a sabedoria eacute viver segundo uma medida
que o saacutebio identifica na natureza e natildeo na cultura na religiatildeo na poliacutetica Os limites que vatildeo
definir o sentido de uma accedilatildeo saacutebia satildeo inteligidos a partir da physiologiacutea Assim no
epicurismo a vida deve ser medida a partir de um modelo universal e que remeta para o gozo
de uma vida serena e alegre
O agir do sophoacutes tem portanto uma motivaccedilatildeo eacutetica a accedilatildeo eacute livre e esclarecida natildeo
havendo imposiccedilatildeo da ordem do noacutemos Na origem desse comportamento vemos o
entendimento de que a realizaccedilatildeo do homem implica em uma conduta de vida que busque
trazer para sua realidade histoacuterica o sentido de autaacuterkeia e de liberdade que caracteriza uma
eacutetica katagrave phyacutesin Eacute em funccedilatildeo disso que se busca estabelecer um eacutethos que lhe propicie
realizar-se de forma mais autecircntica estabelecendo relaccedilotildees pautadas pela philiacutea pelo
equiliacutebrio pelo bem-estar (eustatheiacutea) Assim quando orienta sua conduta pelo saber acerca
da natureza o saacutebio exercita a liberdade para escolher e recusar em funccedilatildeo uma vida
equilibrada justa e agradaacutevel para estabelecer relaccedilotildees a partir de afinidades e da
conveniecircncia muacutetua (opheacuteleia) para governar a si mesmo sem delegar esse poder outrem Daiacute
podermos pensar que a pragmateiacutea epicurista compreendida como praacutetica de um modo de
viver ou de se conduzir no mundo tendo a phyacutesis como modelo a partir do qual satildeo definidas
as finalidades para agir tambeacutem nos remete para a noccedilatildeo de exerciacutecio eacutetico
Diante dessas reflexotildees percebemos ser possiacutevel nos remeter por meio da expressatildeo
exerciacutecios eacuteticos agrave pragmateiacutea e com isso traduzir um sentido de vivecircncia de um saber
fundamentado na natureza como uma praacutetica cotidiana de pensamento e de accedilatildeo que tem na
phyacutesis um princiacutepio de fundamentaccedilatildeo A meditaccedilatildeo e a praacutexis satildeo maneiras de realizaccedilatildeo
dessa aacuteskesis tendo em vista conduzir o homem do conhecimento acerca da realidade para o
estabelecimento de um modo de vida katagrave phyacutesin Dito de outra forma satildeo atividades que
permitem inter-relacionar na praacutetica a physiologiacutea e a eacutetica E esse aspecto eacute fundamental para
desenvolver uma convicccedilatildeo firme com relaccedilatildeo agrave possibilidade de tendo como referecircncia a
natureza experimentar uma vida feliz ao fazer da proacutepria existecircncia um exerciacutecio eacutetico
353 - A praacutetica da makariacuteos zecircn
A pragmateiacutea eacute a filosofia pensada e praticada tendo em vista a vida feliz (makariacuteos
zecircn) A sabedoria consiste em a partir da physiologiacutea estabelecer um modo de viver
equilibrado e prazeroso Nesse sentido ser saacutebio natildeo eacute uma conquista que apoacutes ser alcanccedilada
154 determina o fim da busca eacute atraveacutes de uma praacutetica contiacutenua que a sabedoria se realiza Assim
podemos dizer que a pragmateiacutea eacute o exerciacutecio de realizaccedilatildeo daquilo a que o sophoacutes aspira Na
aacuteskesis epicurista o teacutelos natildeo eacute projetado para depois ele estaacute no proacuteprio exerciacutecio ldquoO
mesmo tempo eacute tanto o do nascimento do maior bem quanto o da dissoluccedilatildeordquo (SV 42)96 Ou
seja quando nos livramos do que causa dor o prazer que eacute identificado ao maior dos bens se
apresenta
Daiacute percebemos que no epicurismo natildeo se professa uma ideia de teleologia colocando
o sentido da accedilatildeo para depois dela O exerciacutecio natildeo eacute expediente para se chegar agrave sabedoria
ele jaacute eacute a consecuccedilatildeo dela Eacute nessa perspectiva que a aacuteskesis natildeo eacute pensada como meio para
desenvolver as virtudes mas como forma de experimentar os prazeres ldquoNatildeo eacute para ter uma
dessas coisas mencionadas97 que noacutes empreendemos essa praacutetica ltda filosofiagt mas para ser
feliz tendo alcanccedilado a finalidade de acordo com a naturezardquo (Œno Fr 28)98 O exerciacutecio eacute
realizado porque ele traz consigo a experiecircncia do prazer ldquoPorque noacutes natildeo comemos o patildeo
para ter a satisfaccedilatildeo depois nem bebemos o vinho para sentir o deleite apoacutes nem ejaculamos
o esperma para gozar posteriormente mas a accedilatildeo provoca esses prazeres em noacutes
imediatamente sem esperar pelo futurordquo (Œno Fr 33 VII)99 Quer dizer os exerciacutecios
realizam aquilo que eles tecircm em mira Assim natildeo cabe por exemplo pensar a liberdade
praticaacute-la para depois ser livre Tanto a meditaccedilatildeo quanto a praacutexis em torno da liberdade jaacute
trazem consigo a experiecircncia da eleutheriacutea dessa libertaccedilatildeo de (capiacutetulo II) e da liberdade
para (capiacutetulo III)
Pode-se dizer que o que fundamenta a accedilatildeo do saacutebio epicuacutereo eacute a realizaccedilatildeo do prazer mediante a liberdade de escolha Aos olhos de Epicuro o que produz a liberdade eacute uma dyacutenamis isto eacute o poder de ter o princiacutepio da accedilatildeo em si mesmo que eacute precisamente neste contexto a definiccedilatildeo do termo autaacuterkeia (SILVA 2005 p 47)
Essa liberdade estaacute relacionada agrave busca de realizar uma forma autecircntica de viver a natildeo
perseguir os bens que as convenccedilotildees e as opiniotildees colocam como fundamentais agrave felicidade o
que conduz a uma forma inautecircntica de viver O sophoacutes vive a partir do que ele pensa estar
adequado com a realizaccedilatildeo de uma vida feliz ldquoO saacutebio conhece os valores autecircnticos da vida
frente agraves falsificaccedilotildees e enganos da sociedade captou o sabor do verdadeiro e de acordo com 96 Ὁ αὐτὸς χρόνος καὶ γενέσεως τοῦ μεγίστου ἀγαθοῦ καὶ ἀπολύσεως ltτοῦ κακοῦgt 97 Riquezas honrarias poder poliacutetico 98 Ce nrsquoest pas afin drsquoavoir une des choses susmentionneacutees que nous avons entrepris cette pratique ltde la philosophiegt mas pour ecirctre heureux ayant acquis la fin rechercheacutee par la nature 99 Car nou ne mangeons pas le pain pour prendre plaisir par la suiacutete ni ne buvons le vin pour y prendre plaisir apregraves ni nrsquoejectons le sperme pour en jouir par la suiacutete mais lrsquoaction atteint ces plaisir em nous immeacutediatement sans attendre lrsquoavenir
155 os bens conforme a natureza (tagrave katagrave physin) sabe dirigir seu comportamento sereno e livre
ateacute a felicidaderdquo (GUAL 1985 p 219) E isso remete para a praacutetica de se colocar distante do
asseacutedio dos desejos das opiniotildees vazias ou de outras formas de assenhoramento e de buscar
uma aproximaccedilatildeo com os bens inteligidos a partir da investigaccedilatildeo da natureza como a
liberdade o prazer a amizade a frugalidade a autaacuterkeia o equiliacutebrio Para Epicuro esse eacute o
motivo para buscar se afastar do burburinho da poacutelis e procurar o recolhimento ldquoNatildeo eacute sem
razatildeo que seu aluno Lucreacutecio viu e retratou com um olhar mais luacutecido e mais atento do que
qualquer outro poeta romano a vida no campo e a caracterizou como uma escola de sabedoria
e calma cujas vozes concordam com aqueles da doutrina do mestre (BIGNONE 1973 p
231) Essa busca por referecircncia na natureza aponta para essa necessidade permanente de
exercitar uma vida tranquila de fazer a alma experimentar a ataraxiacutea
A ataraxiacutea resulta da autaacuterkeia Quem age a partir de si mesmo pode escolher e
recusar tendo em vista afastar a alma de fontes de perturbaccedilatildeo Isso nos remete para pensar a
makariacuteos zecircn a partir de libertaccedilatildeo da alma de falsas concepccedilotildees A psycheacute livre de temores
experimenta a imperturbabilidade que Epicuro relaciona agrave vida feliz Nesse sentido a
ataraxiacutea e a autaacuterkeia estatildeo relacionadas agrave possibilidade de poder reorientar o pensamento
para buscar se referenciar na phyacutesis e natildeo nos mitos e nas crenccedilas Eacute a partir dessa inter-
relaccedilatildeo entre a physiologiacutea e o modo de viver que ela engendra que o saacutebio exercita a
liberdade eacutetica (eleutheriacutea) que lhe permite realizar a vida em funccedilatildeo de sua compreensatildeo da
realidadenatureza Viver conforme se pensa eacute o exerciacutecio que realiza a makariacuteos zecircn A vida
feliz eacute um exerciacutecio de liberdade eacute um exerciacutecio eacutetico sentido e finalidade da pragmateiacutea
epicurista
156
CONCLUSAtildeO
Epicuro foi sensiacutevel agrave condiccedilatildeo dos homens de seu tempo oprimidos politicamente e
presos agrave busca desenfreada pela satisfaccedilatildeo de desejos fora dos limites do natural Ele
acreditou que para assegurar uma vida feliz (makariacuteos zecircn) era preciso trabalhar na alma
(psycheacute) do homem um loacutegos acerca da realidade que pudesse levar a discernir a calcular e a
escolher entre os valores as ideias os bens as finalidades aqueles que estatildeo ligados ao bem-
estar ao equiliacutebrio agrave tranquilidade Eacute nesse sentido que a phyacutesis foi pensada como referecircncia
para um modo de viver A partir dela foram inteligidos os limites e as finalidades para um agir
sabiamente Dessa forma a sabedoria foi concebida como um exerciacutecio de aproximaccedilatildeo com
a natureza pois Epicuro via na vida katagrave phyacutesin a possibilidade de espelhar na alma o mesmo
sentido de harmonia que percebia na phyacutesis
A filosofia assim foi direcionada para a realizaccedilatildeo de um projeto de sabedoria
identificado com a construccedilatildeo da proacutepria felicidade Para tanto a sophiacutea foi pensada como
atividades (eneacutergeias) que tornam possiacutevel experienciar um eacutethos fundamentado na
physiologiacutea Eacute nesse contexto que Epicuro confere agrave praacutetica filosoacutefica o sentido de
pragmateiacutea ou seja ela eacute um saber em torno da vida (teacutechnen tinaacute periacute ton biacuteon) que se
efetiva como um exerciacutecio permanente de compreensatildeo da natureza e de vida a partir dessa
compreensatildeo
A philosophiacutea epicurista foi elaborada como uma pragmateiacutea que enquanto saber
remete para uma compreensatildeo physioloacutegica imanente da realidadenatureza como aacuteskesis
permite fazer da makariacuteos zecircn uma experiecircncia sentida no dia a dia Para realizar essa
pragmateiacutea Epicuro mandou meditar e praticar seus ensinamentos via nessas atividades a
possibilidade de o homem trazer para sua vida o sentido de liberdade necessaacuterio para poder
fruir de uma existecircncia autecircntica e equilibrada Eacute por meio dos exerciacutecios de meditaccedilatildeo
(meleacutetema) e de praacutexis (praacutexis) que o saacutebio vem a ser em torno da cura de si mesmo e do
prazer (hedoneacute) conforme a natureza (tagrave katagrave phyacutesin)
Viver filosoficamente ensina-nos Epicuro implica em meditar (exerciacutecio praacutetico que
liberta a alma das opiniotildees e crenccedilas e com isso restitui ao homem a autaacuterkeia o poder de
agir a partir de si mesmo das proacuteprias convicccedilotildees) e em tornar efetiva a praacutexis (atividade que
traz a autaacuterkeia para a maneira de conduzir no mundo na forma de se relacionar em
157 sociedade e com ela eacute o exerciacutecio da liberdade para estabelecer relaccedilotildees mais equilibradas e
realizar um modo e vida mais natural) Eacute dessa maneira que o saacutebio exerce uma disposiccedilatildeo
para viver autenticamente a partir de uma vontade esclarecida e livre para agir sem
admoestaccedilotildees A sabedoria vai assim sendo construiacuteda como um exerciacutecio eacutetico seja porque
realiza um modo de vida autaacuterkes e equilibrado ou porque exercita a liberdade para escolher e
evitar em funccedilatildeo do bem estar da alegria do prazer Esse eacute o princiacutepio e a finalidade da
pragmateiacutea epicurista e eacute em torno dessa maneira de conceber e praticar a filosofia que se
percebe o sentido de coerecircncia unidade e sustentaccedilatildeo presente no pensamento epicurista
Epicuro procurou mostrar ser possiacutevel fazer da filosofia algo uacutetil um saber orientado
para instrumentalizar o homem para viver agradavelmente Ao conduzir a escolhas e accedilotildees
voltadas para a realizaccedilatildeo de uma vida tranquila livre e frugal ele se contrapocircs a Paideacuteia
(cultura) cujos valores estimulavam a procura pela riqueza gloacuteria e pelo poder Essa cultura
seguida pela maioria traduzia as aspiraccedilotildees de uma poacutelis que cristalizava e transmitia valores
e saberes que alheavam o homem de si e do sentido de sua proacutepria realizaccedilatildeo Essa educaccedilatildeo
natildeo lhe dava autonomia nem lhe permitia compreender realmente o mundo como espaccedilo de
realizaccedilatildeo de si mesmo A sociedade agrave eacutepoca de Epicuro natildeo espelhava o ideal de uma vida
feliz mas de uma cidade assentada na busca do poder desmesurado e voltado para as batalhas
as conquistas e para o assenhoramento de outros povos e territoacuterios A cultura naqueles
tempos tinha em vista a realizaccedilatildeo do homem no contexto e na dependecircncia da poacutelis por isso
a Paideacuteia era para Epicuro vazia pois impedia a construccedilatildeo e uma existecircncia em torno da
autorrealizaccedilatildeo Daiacute ele procurar seguir por outro caminho inserindo a felicidade como um
valor cultural e finalidade maior Nesse sentido a filosofia do Jardim foi concebida para
mudar a concepccedilatildeo quantos aos valores fundamentais para uma vida feliz
O epicurismo natildeo teve como escopo a obtenccedilatildeo do poder poliacutetico nem econocircmico
nem assenhorar a vontade de outrem Ele buscou conduzir o homem a ter o domiacutenio sobre si
proacuteprio a exercitar a liberdade a compreender suas vontades e relacionaacute-las a uma forma
mais natural de compreensatildeo do mundo Para tanto foi preciso aproximaacute-lo do sentido de sua
natureza A realizaccedilatildeo dele precisou ser pensada a partir de valores inteligidas a partir do
estudo da phyacutesis Dessa forma seria possiacutevel a cada um viver de acordo com sua naturalidade
e realizar uma existecircncia pautada pelo prazer Tal perspectiva repercutiu sobre o eacutethos do
saacutebio pois o modo de vida dele precisou permitir expressar esse sentido Tratou-se de trazer
para o campo praacutetico da vida um saber que permitisse identificar a natureza dos desejos e
saber quais deviam ser realizados Em outros termos a questatildeo natildeo era mais pensar a
158 realizaccedilatildeo de si mesmo a partir dos valores e da cultura da poacutelis mas a partir de um
referencial natural Por isso o saacutebio se afastou da cidade e se voltou para a interioridade
Distanciando-se do burburinho das opiniotildees dos muitos e investigando a phyacutesis o homem
buscou esclarecer a proacutepria vontade e estabelecer uma praacutexis a partir de um pensamento
autecircntico
A relevacircncia que Epicuro deu agrave investigaccedilatildeo da natureza como fundamento para
estabelecer um saber para a vida (teacutechnen tinaacute periacute ton biacuteon) remete para uma ligaccedilatildeo estreita
com o que eacute empiacuterico O loacutegos epicurista natildeo foi desenvolvido para ser a verdade sobre as
coisas mas de se constituir como um discurso sapiencial que tem nos sentidos um criteacuterio de
verdade e eacute orientado para o exerciacutecio praacutetico de viver Dessa forma Epicuro distanciou sua
filosofia do ceticismo e da retoacuterica e fundamentou a pragmateiacutea sobre um conhecimento
empiacuterico-imanente O loacutegos foi elaborado a partir do campo das experiecircncias sensiacuteveis e as
questotildees filosoacuteficas buscaram ser resolvidas no campo da vida experimentada Dessa maneira
se buscou ensinar ao homem que a realidade natildeo eacute necessariamente aquilo que estabelece a
doacutexa ou a cultura Assim ele pocircde se perceber como um ser capaz de pensar as finalidades
que deviam ser buscadas e aquelas que deviam ser descartadas e com isso se autodeterminar
em direccedilatildeo a uma concepccedilatildeo de ser no mundo ligada ao bem viver
O epicurismo foi orientado para a gestatildeo da vida para as accedilotildees para saber que
escolhas e recusas fazer Com esse direcionamento a filosofia do Jardim buscou dar conta do
empiacuterico das necessidades do homem no mundo Ela natildeo foi pensada para ser apenas um
discurso um uso da razatildeo que resultasse em retoacuterica O objetivo foi dar um sentido agrave
realidade agrave sociedade ao homem colocando o prazer (hedoneacute) como finalidades (teacutelos) A
vida do saacutebio foi direcionada para a consecuccedilatildeo da felicidade que por sua vez foi identificada
ao prazer Ou seja a palavra e a vida do sophoacutes foram orientadas para a realizaccedilatildeo de um
modo feliz de vida Natildeo foi uma filosofia que se limitou ao loacutegos ela procurou se realizar no
exerciacutecio de um modo saacutebio de viver O escopo natildeo foi projetar um homem ideal em uma
cidade ideal mas pensar em como esse homem concreto poderia viver bem em harmonia
com a natureza e com seus semelhantes Nesse sentido podemos ver um aspecto
antropoloacutegico perpassando o pensamento epicurista O homem pensado foi aquele que trazia
consigo os seus desejos sua imaginaccedilatildeo sua capacidade de se autodirecionar Ele eacute ser da
phyacutesis e na phyacutesis e em torno dessa constataccedilatildeo se definem o fundamento do conhecimento e
os limites do conhecer para entatildeo poder estabelecer as finalidades de uma vida bem realizada
A physiologiacutea epicurista ensinou que a necessidade eacute derrogada pelo acaso Anaacutenke e
159 tycheacute existem por necessidade Da mesma forma que se pode pensar na phyacutesis a derrogaccedilatildeo
de um determinismo absoluto por analogiacutea podemos tambeacutem pensar no campo eacutetico a
possibilidade de o homem se desviar de concepccedilotildees fatalistas e traacutegicas e realizar uma vida
livre A pragmateiacutea se volta para desenvolver um esclarecimento a respeito da possibilidade
de autotransformaccedilatildeo autossuperaccedilatildeo na medida em que se realiza como uma praacutetica de
libertaccedilatildeo de amarras culturais morais e religiosas levando o homem a limitar a dependecircncia
das opiniotildees vazias e de libertaccedilatildeo para poder governar a si mesmo e agir a partir do que
conhece acerca da natureza Nisso reside a concepccedilatildeo de que ele natildeo eacute um ser irretocaacutevel
cujo destino fora previamente definido como obra acabada dos deuses ou trageacutedia histoacuterico-
cultural O homem ao qual remete a filosofia epicurista eacute ser em construccedilatildeo que pode
determinar a si mesmo e exercer uma artesania sobre o proacuteprio modo de pensar e de agir
Longe de aceitar os fatalismos da vida ele pode superar aquilo que faz mal desequilibra
adoece a alma e o corpo e dessa forma tambeacutem pode realizar o desejo de ter em seu proacuteprio
domiacutenio o sentido de sua realizaccedilatildeo no mundo A philosophiacutea nesse sentido se opotildee aos
condicionamentos histoacuterico-culturais aos valores cristalizados e difundidos na poacutelis por meio
da educaccedilatildeo da moral da religiatildeo dos mitos da Paideacuteia
A filosofia epicurista se realiza como exerciacutecio empiacuterico-reflexivo Satildeo as atividades
de meditaccedilatildeo (meleacutetema) e de praacutexis (praacutexis) que vatildeo constituiacute-la como uma pragmateiacutea O
sentido eacute o de espelhar um saber acerca da phyacutesis na alma do homem de tal modo que ele
possa estabelecer um modo de viver de acordo com a natureza (katagrave phyacutesin) ou seja
autaacuterquica em relaccedilatildeo agraves opiniotildees vazias (kenaigrave doacutexai) equilibrada e direcionada para os
prazeres naturais e necessaacuterios Trata-se de um exerciacutecio de amadurecimento que se daacute na
medida em que o homem busca fazer de sua existecircncia a praacutetica de uma vida filosoacutefica Eacute
dessa forma que ele trilha um caminho que vai da physiologiacutea ao eacutethos para poder trazer para
sua vida um sentido de liberdade autorrealizaccedilatildeo e felicidade
Cabe ressaltar que a pragmateiacutea epicurista natildeo busca num sentido religioso a
conversatildeo do homem a um conjunto de crenccedilas ou a adotar um modelo de viver
fundamentado em um sentimento de feacute A meditaccedilatildeo e a praacutexis buscam desenvolver uma
confianccedila (piacutestis) em se ter o conhecimento sobre a natureza como guia para estabelecer um
modelo de vida autecircntica e bem realizada Eacute o exerciacutecio de viver de acordo com o que se
pensa e de pensar de acordo com a natureza que faz o saacutebio acreditar no saber filosoacutefico como
um caminho para a felicidade Quanto mais ele se dedica a investigar e a aprender sobre a
phyacutesis mais ele desenvolve a confianccedila na possibilidade de experimentar uma vida agradaacutevel
160 E aiacute reside um traccedilo fundamental do epicurismo ele natildeo remete para um sentimento religioso
nem miacutestico nem se fundamenta em feacute eacute exerciacutecio de confianccedila no raciociacutenio empiacuterico
(epilogismos) sobre a natureza
Embora falar em meditaccedilatildeo hoje possa evocar a noccedilatildeo de um misticismo de
religiosidade meditar deve ser entendido no contexto do epicurismo como uma atividade
aproximaccedilatildeo da alma consigo mesmo e com a natureza Eacute um exerciacutecio que natildeo tem
fundamento nem finalidade religiosa Ela parte de uma reflexatildeo sobre a realidade empiacuterica
para estabelecer um saber direcionado para a praacutetica da sabedoria Dito de outra forma eacute
meditando que o saacutebio pensa a proacutepria existecircncia como um espelhamento da natureza e
procura viver de acordo com esse pensamento Essa natildeo separaccedilatildeo entre o pensar e o praticar
se expressa na forma de um saber para vida ou de uma pragmateiacutea
Haacute uma dificuldade em conceber nos dias atuais a meditaccedilatildeo como um exerciacutecio
praacutetico A tendecircncia eacute vecirc-la apenas como ato reflexivo Mas para Epicuro ela eacute um fazer da
psycheacute que se volta para compreender a realidade e para procurar a melhor maneira de agir
diante dela tendo em vista a realizaccedilatildeo de uma vida feliz Nesse sentido a meditaccedilatildeo se
relaciona com a aacuteskesis no sentido de exerciacutecio e natildeo de contemplaccedilatildeo Na pragmateiacutea
epicurista a meditaccedilatildeo eacute um atividade praacutetica porque natildeo basta meditar sobre o prazer por
exemplo eacute preciso que essa meditaccedilatildeo traga consigo a sensaccedilatildeo do prazer como aquele que
vem na forma de um estado de imperturbabilidade da alma (ataraxiacutea) Meditaccedilatildeo e praacutexis
constituem em conjunto um exerciacutecio de compreensatildeo da vida buscando uma aproximaccedilatildeo
com a natureza Assim a pragmateiacutea tem como sentido um agir eacutetico uma accedilatildeo no mundo
voltada para experimentar a liberdade para ser o que se eacute para pensar e escolher o proacuteprio
destino
161
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________ Diaacutelogos Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes Beleacutem EdUFPA 1980
________ Oeuvres Complegravetes Paris Belles Lettres 1948
________ A Repuacuteblica Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes 3ed Beleacutem EdUFPA 2000
________ A Repuacuteblica Enrico Corvisieri Satildeo Paulo Nova Cultural 1997
________ Leis Traduccedilatildeo Edson Bini Satildeo Paulo Edipro 1999
VEGETTI Mario A Eacutetica dos Antigos Satildeo Paulo 2014 (Coleccedilatildeo Caacutetedra)
VERNANT Jean-Pierre Mito e Religiatildeo na Greacutecia Antiga Satildeo Paulo Martins Fontes 2009
WOLF Francis A Invenccedilatildeo Materialista da Liberdade In NOVAES Adauto (org) O Avesso da Liberdade Satildeo Paulo Companhia das Letras 2002
DICIONAacuteRIOS
ALEXANDRE Charles Dictionnaire Francais-Grec Paris Hachette 1861
BAILLY A Grand Bailly Dictionnaire Grec-Franccedilais Paris Hachette 1935
167 CHANTRAINE Pierre Dictionaire Eacutetymologique de la Langue Grecque ndash Histoire des mots Paris Klincksieck 1968
CHASSANG Alexis Dictionnaire Grec-Franccedilais Paris Garnier Fregraveres 1865
LIDDELL Henry George A Greek-English Lexicon New York Harper amp Brothers 1883
PABOacuteN Joseacute M Diccionario Manual Griego Claacutesico-Espantildeol Madrid Vox 1967
TALBOT E Dictionnaire Franccedilais-Grec Paris Delalain Fregraveres 1894
VIAL Claude Lexique de la Gregravece Ancienne Paris Armand Colin 1972
LIDDELL H G SCOTT Jones The Online Liddell-Scott-Jones Greek-English Lexicon (httpstephanustlguciedulsjeid=1) acessado em 13 de fevereiro 2019
MARCONE DE OLIVEIRA MAFFEZZOLLI
O SENTIDO DA PRAGMATEIacuteA EPICURISTA
Tese apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia da UFRN como requisito parcial para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutor em Filosofia Aacuterea de concentraccedilatildeo Eacutetica Orientador Prof Dr Markus Figueira da Silva
NATAL-RN
2020
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas - SISBI
Catalogaccedilatildeo de Publicaccedilatildeo na Fonte UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciecircncias Humanas Letras e Artes - CCHLA
Maffezzolli Marcone de Oliveira O sentido da Pragmateiacutea Epicurista Marcone de Oliveira Maffezzolli - Natal 2020 166f Tese (doutorado) - Centro de Ciecircncias Humanas Letras e Artes Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia Universidade Federal do Rio Grande do Norte 2020 Orientador Prof Dr Markus Figueira da Silva 1 Pragmateiacutea - Tese 2 Eacutetica - Tese 3 Physiologiacutea - Tese 4 Meditaccedilatildeo - Tese 5 Praacutexis - Tese 6 Aacuteskesis - Tese I Silva Markus Figueira da II Tiacutetulo RNUFBS-CCHLA CDU 17
Elaborado por Heverton Thiago Luiz da Silva - CRB-15710
Nome Marcone de Oliveira Maffezzolli Tiacutetulo O sentido da pragmateiacutea epicurista
Tese apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia da UFRN como requisito parcial para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutor em Filosofia Aprovada em de de 2020
Banca Examinadora
Prof Dr Markus Figueira da Silva (OrientadorPresidente ndash UFRN)
Prof Dr Edrisi de Arauacutejo Fernandes (Examinador Interno ndash UFRN)
Prof Dr Antocircnio Juacutelio Garcia Freire (Examinador Externo ndash UERN)
Prof Dr Marcus Reis Pinheiro (Examinador Externo ndash UFF)
Prof Dr Celso Martins Azar Filho (Examinador Externo ndash UFF)
4
Agrave minha matildee
que me ensinou sobre a importacircncia da educaccedilatildeo
para a realizaccedilatildeo de uma vida melhor
5 AGRADECIMENTOS
Agrave Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Ao Departamento de Filosofia da UFRN atraveacutes do qual estendo meus
agradecimentos a todos os professores que contribuiacuteram com minha formaccedilatildeo iniciada em
2004 (especializaccedilatildeo em Eacutetica)
Ao professor e amigo Markus Figueira que acompanhou minha trajetoacuteria no campo da
Filosofia Antiga com sua orientaccedilatildeo precisa e segura e sobretudo sendo um exemplo de
quem exercita a philiacutea e procura viver epicuristicamente
Aos professores Edrisi de Arauacutejo Fernandes Antocircnio Juacutelio Garcia Freire Marcus Reis
Pinheiro e Celso Martins Azar Filho pelas criacuteticas orientaccedilotildees e sugestotildees
A todos os amigos e familiares que souberam entender minha ausecircncia durante o
periacuteodo de realizaccedilatildeo desta pesquisa
6 EPIacuteGRAFE
Eu que dedico incessantemente minhas energias agrave investigaccedilatildeo da natureza e desse modo de viver tiro principalmente a minha calma
(Epicuro Carta a Heroacutedoto)
Traduzir-se uma par te na outra parte - que eacute uma questatildeo de vida ou morte ndash
seraacute ar te (Ferreira Gullar Traduzir-se 1980)
Nenhum jovem deve demorar a filosofar e nenhum velho deve parar de filosofar pois nunca eacute cedo demais nem tarde demais para a sauacutede da alma
(Epicuro Carta a Meneceu)
() quanto a noacutes eacute preciso vir a ser em torno da cura de noacutes mesmos (Epicuro Sentenccedilas Vaticanas 64)
7 RESUMO
Este trabalho postula que por meio de uma pragmateiacutea (πραγματεία) Epicuro busca espelhar um conhecimento acerca da natureza (physiologiacutea) num eacutethos equivalente revalidando a concepccedilatildeo epicurista de filosofia como um saber para a vida (teacutechnen tinaacute periacute ton biacuteon) e de sabedoria como atividade constante de reflexatildeo sobre a natureza (phyacutesis) e de realizaccedilatildeo de um modo de ser de acordo com ela (katagrave phyacutesin) Eacute em tal panorama onde o homem busca uma aproximaccedilatildeo com a natureza para reproduzir em sua alma um estado de imperturbabilidade (ataraxiacutea) que se delineia a possibilidade de autorrealizaccedilatildeo ou do exerciacutecio de uma vida saacutebia Nesse sentido a pragmateiacutea epicurista remete para uma praacutetica filosoacutefica desenvolvida na consecuccedilatildeo de um conjunto de atividades (eneacutergeias) que traduzem em atitudes condutas escolhas accedilotildees e pensamentos um eacutethos filosoacutefico voltado para a busca do equiliacutebrio Se nos textos de Epicuro satildeo limitadas as ocorrecircncias do termo pragmateiacutea por outro lado ao exortar a praacutetica filosoacutefica por meio de exerciacutecios de meditaccedilatildeo (meleacutetema) e de praacutexis (praacutexis) ele nos permite a partir do uso dessas noccedilotildees e de outras a essas vinculadas evidenciar um sentido para a pragmateiacutea o que permite compreender como a physiologiacutea resulta em um modo de vida saacutebio Nessa perspectiva visamos demonstrar que a pragmateiacutea epicurista estabelece seu sentido mais proacuteprio quando compreendida como exerciacutecio eacutetico Isso porque eacute como trabalho permanente e inter-relacionado de meditaccedilatildeo e praacutexis que ela conduz o pensamento e a accedilatildeo para restabelecer no homem o sentido de autarquia (autaacuterkeia) condiccedilatildeo necessaacuteria para encetar-lhe a disposiccedilatildeo para definir um eacutethos a partir do entendimento que tem da natureza e com isso poder fruir de uma vida livre autecircntica equilibrada e feliz Palavras-chave pragmateiacutea meditaccedilatildeo praacutexis physiologiacutea exerciacutecio teacutecnica eacutetica
8
REacuteSUMEacuteE
Ce travail postule que agrave travers drsquoune pragmateiacutea (πραγματεία) Epicure cherche agrave refleacuteter une connaissance de la nature (physiologiacutea) dans un eacutethos eacutequivalent revalidant la conception eacutepicurienne de la philosophie comme savoir pour la vie (teacutechnen tinaacute periacute ton biacuteon) et de la sagesse comme activiteacute constante de reacuteflexion sur la nature (phyacutesis) et de reacutealisation dune maniegravere decirctre selon elle (katagrave phyacutesin) Cest dans un tel panorama ougrave lhomme cherche une approximation avec la nature pour reproduire dans son acircme un eacutetat dimperturbabiliteacute (ataraxiacutea) que se dessine la possibiliteacute de reacutealisation de soi ou lexercice dune vie sage En ce sens la pragmateiacutea eacutepicurienne fait reacutefeacuterence agrave une pratique philosophique deacuteveloppeacutee dans la reacutealisation dun ensemble dactiviteacutes (eneacutergeias) qui se traduisent par des attitudes des conduites des choix des actions et des penseacutees un eacutethos philosophique visant la recherche de leacutequilibre Si dans les textes dEacutepicure les occurrences du terme pragmateiacutea sont limiteacutees en revanche en exhortant la pratique philosophique agrave travers des exercices de meacuteditation (meleacutetema) et praxis (praacutexis) cela nous permet de montrer agrave partir de lutilisation de ces notions et dautres lieacutes agrave eux un sens agrave la pragmateiacutea ce qui nous permet de comprendre comment la physiologiacutea se traduit par un mode de vie sage Dans cette perspective nous visons agrave deacutemontrer que la pragmateiacutea eacutepicurienne eacutetablit sa signification la plus approprieacutee lorsquil est compris comme un exercice eacutethique En effet cest en tant que travail permanent et interdeacutependant de meacuteditation et de praxis quelle conduit la penseacutee et laction agrave reacutetablir chez lhomme le sens de lautarcie (autaacuterkeia) condition neacutecessaire pour le entamer la disposeacute agrave deacutefinir un eacutethos baseacutee sur la compreacutehension de la nature et avec cela de pouvoir jouir dune vie libre authentique eacutequilibreacutee et heureuse Mots-cleacutes pragmateiacutea meacuteditation praxis physiologiacutea exercice technique eacutethique
9
SUMAacuteRIO
INTRODUCcedilAtildeO 12
CAPITULO 01
Da physiologiacutea ao eacutethos - os fundamentos da pragmateiacutea epicurista
11 A physiologiacutea
111 A phyacutesis
112 Necessidade e acaso
113 A anthropophyacutesis (acerca da natureza humana)
12 A vida katagrave phyacutesin
121 Nos limites da phyacutesis
122 A repleccedilatildeo dos desejos
123 Tograve teacutelos tecircs phyacuteseos
13 A finalidade do saber
131 O conhecimento (gnoacutesis)
132 Criteacuterios de verdade
133 Saber teacutechne e aacuteskesis
23
23
26
32
37
43
45
52
58
63
66
69
71
CAPIacuteTULO 02
Da Meditaccedilatildeo ou do modo como a pragmateiacutea eacute exercitada pela alma
21 Exerciacutecio dialoacutegico e dialeacutetico
22 Meleacutetema e mneacuteme
23 A meditaccedilatildeo como exerciacutecio de libertaccedilatildeo
24 Meditar
241 Sobre os deuses
242 Sobre a morte
243 Sobre a felicidade
244 Sobre a dor
81
82
88
96
99
103
105
106
109
10 CAPIacuteTULO 03
A praacutexis como a pragmateiacutea no modo de agir
31 A praacutexis do saacutebio escolher e recusar
32 A accedilatildeo modulada pelo logismoacutes e pela phroacutenesis
33 Praacutexis e exerciacutecio de liberdade (eleutheriacutea)
34 Da poacutelis ao Kecircpos
341 Laacutethe biocircsas
342 Koinoniacutea
343 A philiacutea
35 Pragmateiacutea e sabedoria praacutetica
351 Saber para a vida
352 Exerciacutecio eacutetico
353 A praacutetica da makariacuteos zecircn
113
116
121
124
130
132
134
136
139
143
148
153
CONCLUSAtildeO
156
BIBLIOGRAFIA
161
11 PRINCIPAIS ABREVIACcedilOtildeES
Tst = Epicuro Testamento
Hdt = Epicuro Carta a Heroacutedoto
Pit = Epicuro Carta a Pitocleacutes
Men = Epicuro Carta a Meneceu
MC = Epicuro Maacuteximas Capitais
SV = Epicuro Sentenccedilas Vaticanas
Us = H Usener Epicurea Stuttgart 1887
DL = Dioacutegenes Laeacutercio Vida e Doutrinas dos Filoacutesofos Ilustres Brasiacutelia UnB 2008
Lucr = Lucreacutecio Da Natureza Satildeo Paulo 1985 (Os Pensadores)
Œno = Dioacutegenes de Œnoanda Fragmentos Fribourg Editions Universitaires 1996
PH = Papiros Herculanenses
Obs As citaccedilotildees das cartas maacuteximas e do Testamento de Epicuro reproduzem a
traduccedilatildeo de Maacuterio da Gama Kury do texto de Dioacutegenes Laeacutercio Jaacute as referecircncias agraves
Sentenccedilas Vaticanas acompanham a traduccedilatildeo de Markus Figueira da Silva e Henrique G
Murachco ineacuteditas As possiacuteveis divergecircncias de traduccedilotildees que possam comprometer o
entendimento do pensamento epicurista satildeo indicadas e abordadas em notas explicativas
Quando expomos a citaccedilatildeo do texto em grego salvo indicaccedilatildeo contraacuteria ela foi colhida da
biblioteca digital Thesaurus Linguae Graecae (httpstephanustlgucieduindexphp)
12
INTRODUCcedilAtildeO
aacute uma tradiccedilatildeo que postula uma compreensatildeo das ldquoescolas1rdquo filosoacuteficas heleniacutesticas2 a
partir de uma sistematizaccedilatildeo apoiada em trecircs pilares a Canocircnica a Fiacutesica e a Eacutetica
Essa tendecircncia eacute vista retratada nas exposiccedilotildees que Dioacutegenes Laeacutercio faz em Vida e
Doutrinas dos Filoacutesofos Ilustres datada iniacutecio do seacuteculo trecircs dC Nessa obra ao falar dos
estoicos ele afirma que essa divisatildeo3 estaria postulada nos livros de Zenatildeo Criacutesipo
Apolodoro Silo Eudromo e Poseidocircnio Com isso ficava sugerida uma diferenciaccedilatildeo
presente no estoicismo entre o discurso filosoacutefico e a filosofia enquanto praacutetica No mesmo
sentido ao tratar a questatildeo no acircmbito do pensamento dos ciacutenicos essa fragmentaccedilatildeo eacute
retomada embora apenas balizada por um relatado desprezo deles pela Loacutegica e pela Fiacutesica e
por uma dedicaccedilatildeo agrave Eacutetica4 A tendecircncia eacute estendida e tambeacutem aplicada em relaccedilatildeo a Epicuro5
(plusmn342-271 aC6) para quem tal segmentaccedilatildeo seria a base de uma divisatildeo da filosofia7 que
teria na Canocircnica uma introduccedilatildeo ao pensamento epicurista a Fiacutesica cuidaria da natureza e a
Eacutetica versaria sobre o que escolher e o que rejeitar
Tal concepccedilatildeo tripartite parece jaacute encetar uma compreensatildeo da filosofia como
exposiccedilatildeo de um ldquosistema conceitualrdquo construiacutedo a partir da articulaccedilatildeo de disciplinas
constituiacutedas como campo de teorizaccedilatildeo e demonstraccedilatildeo sobre aquilo de que se pretende algum
desvelamento Dessa forma cada uma delas a Fiacutesica a Canocircnica e a Eacutetica se estabeleceria
como espaccedilo teoreacutetico ou doutrinaacuterio sobre aspectos distintos do discurso filosoacutefico Assim
cada uma das partes poderia ser tomada autonomamente como uma teoria sobre a Canocircnica
sobre a Fiacutesica e outra sobre a Eacutetica e a partir daiacute depois de reconsideradas em conjunto eacute que
1 Haacute uma classificaccedilatildeo aludida por Dioacutegenes Laeacutercio que alguns autores usam para ldquoenquadrarrdquo certas filosofias como escolas e outras como modo de vida Para Dioacutegenes o cinismo por exemplo se constituiu como escola filosoacutefica autecircntica (DLVI 103) 2 Considera-se o Periacuteodo Heleniacutestico como aquele compreendido entre a morte de Alexandre Grande em 323 aC e a batalha de Actium em 31 aC Nesse periacuteodo o estoicismo ceticismo epicurismo e cinismo eclodiram exercendo grande influecircncia no modo de pensar e de viver do povo grego 3 DL VII 39 4 DL VI 103 5 Epicuro teria nascido em Samos Aos 18 anos vai a Atenas para o serviccedilo militar Segundo a tradiccedilatildeo teria tido liccedilotildees com o peripateacutetico Praxiacutefanes em Rodes Tambeacutem teria estudado com Nausiacutefanes disciacutepulo de Demoacutecrito de Abdera Aventa-se ainda a possibilidade de ter sido aluno de Pirro de Eacutelis precursor do ceticismo no seacuteculo IV aC Em Mitilene na ilha de Lesbos Epicuro comeccedila a ensinar sua filosofia em 311 aC Posteriormente muda para Lacircmpsaco onde fica ateacute 306 aC quando com 35 anos volta para Atenas e cria o Keacutepos o Jardim Apoacutes a sua morte em 271 aC quatorze escolarcas mantiveram as atividades no jardim ateacute 44 aC 6 DL X 1 7 DL X 29
H
13 se teria a dimensatildeo total da filosofia desta ou daquela escola a partir da leitura desses
ldquosistemas teoacutericosrdquo
Essa tendecircncia a compartimentalizar a filosofia parece ter se disseminado e conduzido
a uma uniformizaccedilatildeo na compreensatildeo de movimentos do pensamento que - ao eclodirem na
Heacutelade a partir do fim do seacuteculo IV aC - mostraram convergecircncias mas sobretudo
diferenccedilas em seus modos de concepccedilatildeo e de realizaccedilatildeo Isso porque tal separaccedilatildeo induz
estudiosos munidos dessas ldquopartesrdquo do discurso filosoacutefico a postular e sublinhar uma primazia
da Eacutetica em contraste com o decliacutenio da poacutelis que deixa de ser espaccedilo puacuteblico e poliacutetico onde
se costumava pensar e exprimir os ideais de virtudes que deveriam nortear a vida do homem
grego Afinal apoacutes a dominaccedilatildeo macedocircnica e consequentes mudanccedilas poliacuteticas sociais e
culturais a tendecircncia eacute natildeo mais pensar na realizaccedilatildeo do homem como politikograven zocircon (animal
ciacutevico8) posto que estaacute submetido a um governo tiracircnico mas na possibilidade que ele pode
ter de realizar a proacutepria felicidade9 ou cultivar sua cidadela interior
Essa conjectura ganha relevo ao lembrarmos que apoacutes dizer da triparticcedilatildeo da filosofia
em Epicuro Dioacutegenes remarca que os epicuristas ndash todavia ndash costumam reunir agrupar a
Canocircnica e a Fiacutesica10 Desse modo se induz a possibilidade de poder considerar a Eacutetica
apartada desse conjunto Assim de um lado ficaria delimitado o espaccedilo para uma ldquoteoriardquo
sobre a phyacutesis e o conhecimento e do outro a aacuterea para tratar sobre os modos de viver ou do
fim supremo Ou seja teriacuteamos algo como um campo onde se desenvolveria o pensamento
especulativo sobre a natureza e outro dedicado a lidar com os modos de agir do homem com
os problemas praacuteticos da vida Essa ldquoorganizaccedilatildeordquo da filosofia supostamente legitimada pelos
proacuteprios epicuristas ao mesmo passo em que possibilitaria conceber uma Eacutetica elaborada a
partir de certo niacutevel de independecircncia em relaccedilatildeo agrave Canocircnica e agrave Fiacutesica permitiria - tambeacutem
no epicurismo - fazer alusotildees a dimensotildees antiteacuteticas como teoriapraacutetica pensarfazer
discursoaccedilatildeo Mas seraacute que esse tipo de enquadramento daacute conta do real sentido do que foi a
philosophiacutea no periacuteodo heleniacutestico E mais especificamente pensar a atividade filosoacutefica do
Jardim11 a partir da separaccedilatildeo entre Canocircnica Fiacutesica e Eacutetica conduz a uma reta compreensatildeo
do que foi postulado por Epicuro
8 Como prefere traduzir Joseacute Ameacuterico Motta Pessanha na tese Empeacutedocles e a Democracia RJ 1965 (Kleacuteos n 78 97-182 20034) 9 Salvo indicaccedilatildeo contraacuteria usamos o termo felicidade natildeo no sentido de eudaimoniacutea mas para nos referirmos ao gozo de uma vida feliz Uma distinccedilatildeo mais clara sobre isso consta no capiacutetulo I item 122 10 DL X 30 11 O Jardim ou Keacutepos foi a escola que Epicuro fundou em Atenas quando tinha por volta de 35 anos Trata-se de uma propriedade localizada a noroeste de Atenas onde Epicuro vivia frugalmente e estabelecia uma convivecircncia com seus disciacutepulosamigos Eacute considerado o berccedilo do epicurismo
14 Ao nos debruccedilarmos sobre estudos mais recentes observamos ser em torno da ideia de
exerciacutecio visando agrave transformaccedilatildeo de si e do modo de viver que Pierre Hadot se contrapotildee a
essa leitura da filosofia antiga como sendo um sistema ou conjunto teoacuterico e disciplinar cuja
tendecircncia identificamos nos relatos de Dioacutegenes Laeacutercio Para tanto Hadot interpreta a
philosophiacutea no mundo antigo a partir da noccedilatildeo de exerciacutecios espirituais12 Atraveacutes desse
tratamento ele afianccedila que a atividade filosoacutefica na antiguidade natildeo visa agrave exposiccedilatildeo de um
sistema de ideias A finalidade natildeo eacute de informar sobre uma teoria mas de produzir no
homem um ldquoefeito formativordquo (HADOT 2014 p 8) Para ele
Os exerciacutecios espirituais satildeo precisamente destinados a essa formaccedilatildeo de si a essa paideacuteia que nos ensinaraacute a viver natildeo em conformidade com os preconceitos humanos e com as convenccedilotildees sociais (pois a vida social eacute ela proacutepria um produto das paixotildees) mas em conformidade com a natureza do homem que natildeo eacute outra senatildeo a razatildeo (HADOT 2014 p 56)
Em torno dessa concepccedilatildeo Hadot postula que ldquoesses exerciacutecios pretendem realizar
uma transformaccedilatildeo da visatildeo de mundo e uma metamorfose do serrdquo (HADOT 2014 p 68)
Nesse sentido ele defende que para aleacutem de um valor ldquomoralrdquo a filosofia antiga se reveste de
um valor ldquoexistencialrdquo Por isso os exerciacutecios espirituais deveriam ser compreendidos a partir
de sua finalidade que eacute ensinar ldquoum meacutetodo de orientaccedilatildeo tanto no pensamento quanto na
vidardquo (HADOT 2016 p 118) Assim ao definir a filosofia como um ato e esse como uma
orientaccedilatildeo da atenccedilatildeo ele postula que a finalidade dos exerciacutecios eacute obtida quando se orienta
essa atenccedilatildeo para o prazer
No estoicismo como no epicurismo filosofar eacute um ato contiacutenuo um ato permanente que se identifica com a vida um ato que eacute preciso renovar a cada instante Nos dois casos pode-se definir esse ato como uma orientaccedilatildeo da atenccedilatildeo () No epicurismo a atenccedilatildeo estaacute orientada para o prazer que eacute em uacuteltima instacircncia o prazer de ser (HADOT 2014 p 266)
Percebemos com isso que na interpretaccedilatildeo de Hadot a finalidade dos exerciacutecios
espirituais eacute projetada para depois para aleacutem do que eles satildeo ou constituem Eles satildeo um
meio para alcanccedilar a sabedoria o prazer a liberdade mas natildeo satildeo eles mesmos a atividade
que traz consigo a experiecircncia de viver a sabedoria o prazer ou a liberdade Sendo voltado
para orientaccedilatildeo para formaccedilatildeo ensinam ou conduzem para a consecuccedilatildeo de algo mas natildeo
satildeo pensados como sendo eles mesmos a realizaccedilatildeo do que se deseja alcanccedilar Daiacute ele afirmar
que ldquograccedilas a esses exerciacutecios dever-se-ia chegar agrave sabedoria isto eacute a um estado de liberaccedilatildeo
total das paixotildees de lucidez perfeita de conhecimento de si e do mundo (HADOT 2014 p
12 HADOT Pierre Exerciacutecios Espirituais e Filosofia Antiga Satildeo Paulo Eacute Editora 2014
15 57) Mas natildeo se chega a esse estado pois na visatildeo hadotiana a sabedoria eacute algo irrealizaacutevel13 e
ldquoum ideal ao qual se tende sem esperar chegar a elerdquo poreacutem cabe destacar ldquosalvo talvez no
epicurismordquo (HADOT 2014 p 57-58) Desse modo pensar a filosofia antiga como
exerciacutecios espirituais embora permita escapar ao enquadramento facetaacuterio encontrado em
Dioacutegenes Laeacutercio parece levar a outro problema a homogeneizaccedilatildeo de aspectos distintos e
fundamentais para caracterizar a originalidade de escolas filosoacuteficas sobretudo aquelas que
eclodiram agrave eacutepoca do helenismo No tocante ao epicurismo isso implica em embaccedilar a
compreensatildeo da filosofia como uma praacutetica em que o viver o pensar e o agir convergem para
a experiecircncia do prazer e da autarquia Curiosamente essa problemaacutetica natildeo eacute clarificada por
Hadot
Talvez esse lapso sentido nos textos de Pierre Hadot se decirc porque a relaccedilatildeo entre
exerciacutecios e sabedoria eacute pensada de maneira diferente no epicurismo e natildeo se possa falar de
separaccedilatildeo ou distanciamento entre eles A praacutetica filosoacutefica epicurista visa fazer experimentar
aquilo que se almeja no momento mesmo em que ela se realiza A ldquoformaccedilatildeordquo vem junto com
a vivecircncia a finalidade do exerciacutecio estaacute dentro dele mesmo Natildeo se exercita para ser saacutebio
eacute-se saacutebio no exerciacutecio Claro que haacute diferentes graus de sabedoria mas podemos dizer que
no epicurismo os exerciacutecios jaacute satildeo a consecuccedilatildeo de uma experiecircncia de vida filosoacutefica
Dessa forma o saacutebio eacute concebido como aquele que se realiza como tal ao exercitar a
sabedoria e essa eacute entendida como a atividade de viver de acordo com a phyacutesis (katagrave phyacutesin)
o que aponta para uma vida ldquohedonistardquo e autaacuterquica Com isso nos remetemos para a
inexistecircncia de uma teleologia na aacuteskesis14 epicurista Em outras palavras a finalidade dos
exerciacutecios natildeo estaacute deslocada para fora deles ou para depois A accedilatildeo do sophoacutes eacute a expressatildeo
da sua sabedoria tanto quanto essa implica em uma accedilatildeo que o caracteriza no mundo
Nas outras ocupaccedilotildees com dificuldade o fruto chega ao amadurecimento e na filosofia o agradaacutevel vem junto com o conhecimento pois o gozo natildeo vem depois do aprendizado ao contraacuterio aprendizado e gozo vecircm juntos (SV 27)15
Podemos assinalar que a accedilatildeo ou a praacutetica filosoacutefica traz consigo o proacuteprio sentido de
realizaccedilatildeo do sophoacutes na medida em que espelha no campo das suas escolhas e atitudes a
compreensatildeo que ele desenvolve a respeito da realidade Por isso eacute forccediloso destacar que a
13 ldquoO uacutenico estado normalmente acessiacutevel ao homem eacute a filo-sofia isto eacute o amor pela sabedoria o progresso em direccedilatildeo agrave sabedoriardquo (HADOT 2014 p 58) 14 Exerciacutecio praacutetica 15 Οὐ Ἐπὶ μὲν τῶν ἄλλων ἐπιτηδευμάτων μόλις τελειωθεῖσιν ὁ καρπὸς ἔρχεται ἐπὶ δὲ φιλοσοφίας συντρέχει τῇ γνώσει τὸ τερπνόνmiddot οὐ γὰρ μετὰ μάθησιν ἀπόλαυσις ἀλλὰ ἅμα μάθησις καὶ ἀπόλαυσις
16 aacuteskesis epicurista eacute ao mesmo tempo principio e finalidade do modo de ser do saacutebio Ao
dizer que ldquoaprendizado e gozo vecircm juntosrdquo Epicuro evoca a partir do termo gozo (apoacutelaysis)
a noccedilatildeo de utilidade proveito benefiacutecio conquista de algo que adveacutem com a praacutetica
filosoacutefica E qual proveito maior pode advir para o saacutebio epicurista
Eacute conhecida a afirmaccedilatildeo de Epicuro que diz ldquoa pobreza medida pelo limite da
natureza eacute uma riqueza grande e riqueza natildeo delimitada eacute uma grande pobrezardquo (SV 25)16
Para viver dentro desse limite eacute necessaacuterio investigar a natureza compreender seus modos de
realizaccedilatildeo Isso permite agir liberto das opiniotildees vazias (kenaigrave doacutexai) a partir da capacidade
que a alma (psycheacute) tem de pensar calcular17 avaliar - a fim de definir o que se circunscreve
aos limites da phyacutesis ndash e junto agrave faculdade que ela tem de deliberar de escolher tendo em
vista o que eacute natural e necessaacuterio em detrimento do que nem eacute natural e nem necessaacuterio18
Com isso o saacutebio pode estabelecer para si um criteacuterio a partir da compreensatildeo que adveio ao
investigar a phyacutesis para buscar refletir tanto na alma quanto em seu eacutethos um modo natural
de ser Tal medida eacute que vai lhe permitir gozar uma vida equilibrada ou saudaacutevel fazecirc-lo
experimentar nas relaccedilotildees que estabelece no mundo o sentido de realizaccedilatildeo de um modo de
viver kagraveta phyacutesin19
Daiacute a intriacutenseca relaccedilatildeo da aacuteskesis epicurista com a eacutetica e com a physiologiacutea O eacutethos
do saacutebio resulta de um constante trabalho para restabelecer o domiacutenio sobre si sobre a proacutepria
vontade para agir a partir do entendimento a respeito da phyacutesis fazendo frente agraves opiniotildees
aos valores e aos costumes que tendem para aleacutem do que eacute natural e necessaacuterio Saacutebio eacute pois
quem estabelece uma disposiccedilatildeo permanente para viver a autenticidade da proacutepria existecircncia
que soacute a liberdade de um ser esclarecido quanto agrave natureza permite realizar Eis porque
Agraves vezes consideramos a autossuficiecircncia (autaacuterkeia) um grande bem natildeo porque em todos os casos devemos contentar-nos com pouco mas para que se natildeo tivermos o muito nos contentemos com o pouco sinceramente persuadidos de que quanto maior a moderaccedilatildeo com que se goza a abundacircncia tanto menor a necessidade dela e de que todo desejo conforme a natureza pode ser facilmente satisfeito ao passo que todo desejo vatildeo eacute difiacutecil de satisfazer (DL X 130)20
16 Ἡ πενία μετρουμένη τῷ τῆς φύσεως τέλει μέγας ἐστὶ πλοῦτοςmiddot πλοῦτος δὲ μὴ ὁριζόμενος μεγάλη ἐστὶ πενία 17 Para se referir a essa atividade da alma Epicuro emprega o termo λογισμὸς (logismoacutes) vide DL X 39 75 117 132 144 145 18 Estamos falando da φρόνησις (phroacutenesis) vide DL X 132 19 Kagraveta phyacutesin eacute uma expressatildeo que significa viver de acordo com a natureza No capiacutetulo I item 12 trataremos dessa questatildeo 20 Καὶ τὴν αὐτάρκειαν δὲ ἀγαθὸν μέγα νομίζομεν οὐχ ἵνα πάντως τοῖς ὀλίγοις χρώμεθα ἀλλrsquo ὅπως ἐὰν μὴ ἔχωμεν τὰ πολλά τοῖς ὀλίγοις ἀρκώμεθα πεπεισμένοι γνησίως ὅτι ἥδιστα πολυτελείας ἀπολαύουσιν οἱ ἥκιστα ταύτης δεόμενοι καὶ ὅτι τὸ μὲν φυσικὸν πᾶν εὐπόριστόν ἐστι τὸ δὲ κενὸν δυσπόριστον
17 Dessa forma ao colocar por si mesmo os limites que conduzem agrave proacutepria realizaccedilatildeo
tendo exclusivamente a natureza como medida do que pode o homem Epicuro relaciona a
physiologiacutea eacutetica e o exerciacutecio de viver com o movimento ou a atitude de desvios das
opiniotildees ou de outras formas de assenhoramentos que possam tolher o homem de vivenciar a
experiecircncia de ser a partir daquilo que descobriu no exerciacutecio de pensar a phyacutesis Com isso o
que vai caracterizar o exerciacutecio da sabedoria eacute a accedilatildeo fundamentada na physiologiacutea
Para Epicuro exercitar a sabedoria faz sobrevir a ataraxiacutea21 para a alma e a aponiacutea22
para o corpo-carne23 ao mesmo passo em que realiza a experiecircncia da liberdade (eleutheriacutea)
no campo eacutetico E isso estaacute relacionado com a proposta filosoacutefica epicurista que eacute por um
lado assegurar que o homem natildeo dependa nem das circunstacircncias24 nem dos deuses25 para ser
feliz e por outro proporcionar o conhecimento necessaacuterio para que ele natildeo guie sua vida por
valores que possam ir contra a sua realizaccedilatildeo Entatildeo pensar a filosofia postulada por Epicuro
sob o prisma de exerciacutecios espirituais como propocircs Hadot parece minorar o sentido
fundamental de uma accedilatildeo filosoacutefica ancorada na compreensatildeo de que a sabedoria se realiza
enquanto praacutetica permanente de construccedilatildeo de um eacutethos a partir de uma physiologiacutea que
aponta para a autaacuterkeia e equiliacutebrio e que concomitante a essa praacutetica a experiecircncia de uma
vida feliz (makariacuteos zecircn) eacute realizada pelo proacuteprio saacutebio ateacute onde depende dele e na medida
em que ele se ocupe da filosofia exercitando a sabedoria Mas como isso se daacute
Se retomarmos o paralelo entre a medicina e a filosofia - no qual se inspira Epicuro
para evidenciar o valor praacutetico de filosofar - tanto a arte meacutedica (teacutechne heacute ietrike) quanto a
arte de viver (teacutechnen tinaacute periacute ton biacuteon) vatildeo remeter para uma atividade contiacutenua voltada
para o cuidado consigo mesmo visando favorecer o modo natural de realizaccedilatildeo do homem
Para isso ambas vatildeo propor alteraccedilotildees no estilo de vida prescrevendo dieteacuteticas ou faacutermacos
voltados para restituir um equiliacutebrio vital Nesse sentido ocupar-se da filosofia diz respeito agrave
praacutetica de atividades que gravem na alma um loacutegos terapecircutico (expurgando do pensamento
as concepccedilotildees da realidade que distanciam o homem da phyacutesis e apontando os limites que
conduzem ao gozo de uma vida satilde) e constituam um eacutethos voltado para dar naturalidade agrave
21 Imperturbabilidade da alma 22 Ausecircncia de dor 23 Como veremos no capiacutetulo I o homem tem uma natureza corpoacuterea A psycheacute (alma) eacute formada por aacutetomos mais sutis e velozes dispersos pelo sarkoacutes (carne) Trata-se de um corpo-alma e de um corpo-carne que mantecircm uma inter-relaccedilatildeo fundamental para pensarmos as interaccedilotildees que o homem estabelece com o mundo-realidade Isso porque eacute por meio do corpo-carne que a alma sente as afecccedilotildees (paacutethe) que geram as sensaccedilotildees (aiacutestheseos) que podem ser agradaacuteveis ou desagradaacuteveis 24 SV 9 ldquoCoisa maacute eacute a necessidade mas natildeo haacute necessidade nenhuma de viver com necessidaderdquo 25 SV 65 ldquoEacute vatildeo exigir dos deuses aquilo que algueacutem pode provir por si proacutepriordquo
18 vida para estabelecer relaccedilotildees sociais livre de dominaccedilotildees e convenccedilotildees para buscar as
experiecircncias que confiram o prazer que equilibra para ser a expressatildeo de uma vida livre e
autecircntica
Para Epicuro a filosofia natildeo eacute um conhecimento apartado da experiecircncia praacutetica de
existir e por isso natildeo pode ser pensada a partir de saberes descolados uns dos outros Uma reta
compreensatildeo da philosophiacutea postulada por Epicuro precisa evidenciar o sentido de unidade
que perpassa seus ensinamentos e a confluecircncia deles para uma filosofia que se realiza como
sabedoria praacutetica Contudo isso natildeo implica em interpretaacute-la como um exerciacutecio que conduz agrave
sabedoria mas como a praacutetica mesma de uma sabedoria ancorada no entendimento
physioloacutegico da natureza Eacute a partir desse aspecto que nos referimos a uma pragmateiacutea
epicurista ou seja a atividade que orientada para espelhar a physiologiacutea em um eacutethos saacutebio
exercita a autaacuterkeia e o equiliacutebrio Em torno desse entendimento podemos pensar como no
epicurismo um saber acerca da natureza engendra uma disposiccedilatildeo (diaacutethesis)26 para viver a
partir de um conhecimento filosoacutefico
Essa relaccedilatildeo entre o que se sabe e como se vive percebemo-la mesmo em textos que
aparentemente poderiam estar desprovidos de algum tipo de ensinamento filosoacutefico Mas em
sendo o pensamento epicurista indissociado da vida praacutetica ateacute em seu Testamento Epicuro nos
remete para a realizaccedilatildeo de um modo saacutebio de viver Em certo trecho ele diz que apoacutes sua morte o
Jardim deveria ficar agrave disposiccedilatildeo de Hermarco e de seus companheiros em filosofia e
daqueles que o sucederiam ocupando-se com ela (endiatriacutebein katagrave philosophiacutean) 27 Dessa
forma para aleacutem de reconhecer e agraciar aqueles que fazem da filosofia um modo de viver
Epicuro alccedila sua conduta generosa com relaccedilatildeo a Hermarco e seus amigos agrave condiccedilatildeo de
exemplo de como exercitar a sabedoria a justiccedila e o equiliacutebrio ao lidar com as coisas praacuteticas
do dia a dia
Essa ocupaccedilatildeo permanente com a filosofia que caracterizou a vida de Epicuro
tambeacutem vem expressa em duas diretrizes apresentadas no passo 123 da Carta a Meneceu
Nela ele diz ao seu disciacutepulo da necessidade de pocircr em accedilatildeo os preceitos ensinados e meditar
sobre eles e que nisso residem as condiccedilotildees de felicidade ou de sauacutede da alma Os termos
principais dessa assertiva satildeo apresentados de forma imperativa ldquoPotildee em accedilatildeo (praacutette) os
preceitos que te comuniquei ininterruptamente e medita (kaiacute meleacuteta) com a niacutetida consciecircncia
26 DL X 117 Us 222a 27 DL X 17 ἐνδιατρίβειν κατὰ φιλοσοφίαν
19 de que eles satildeo os elementos fundamentais de uma vida belardquo28
Esses dois conceitos que traduzimos29 por meditaccedilatildeo (tograve meleacutetema) e praacutexis (heacute
praacutexis) vatildeo ser evocados quando Epicuro exorta essa necessidade de se dedicar agrave filosofia de
se ocupar com ela (endiatriacutebo) Se o sophoacutes eacute o modelo de homem que se ocupa com a
realizaccedilatildeo de um modo de viver kagraveta phyacutesin traduzindo o conhecimento que tem a respeito da
natureza em um eacutethos equivalente eacute por meio da meditaccedilatildeo e da praacutexis que essa ocupaccedilatildeo
define o sentido da pragmateiacutea epicurista
Eacute nessa perspectiva que a meditaccedilatildeo vai ser entendida como a atividade de reflexatildeo da
alma que partindo do referencial sensiacutevel para pensar a natureza estabelece um saber que vai
servir para guiar o sophoacutes para fazer as escolhas e as recusas que conduzem ao bem-viver
Ela natildeo visa ser um exerciacutecio especulativo do pensamento sobre a natureza nem produzir
sobre ela uma epistemologia ou sistema teoacuterico A meditaccedilatildeo vai ser a atividade que resulta
em um saber que se faz em torno dos desafios das necessidades das possibilidades que se
apresentam ao homem no decurso praacutetico de sua vida Meditar eacute antes de tudo uma reflexatildeo
em torno do cuidado que se deve ter com a proacutepria maneira de viver de como se livrar da
ignoracircncia e das crenccedilas que alheiam o homem de se aperceber do domiacutenio que pode ter sobre
as proacuteprias vontades sobre as accedilotildees sobre seu destino E isso tem uma relaccedilatildeo essencial com
a eacutetica uma vez que com essa reflexatildeo se pretende desenvolver na psycheacute um loacutegos curativo
ou libertador que a desembarace ou a purgue de opiniotildees que possam fazer adoecer
desequilibrar aprisionar
E quando Epicuro diz da necessidade de pocircr em accedilatildeo (praacutette) ou seja estabelecer uma
praacutexis orientada para a vida feliz ele tem como perspectiva que a filosofia se realiza enquanto
atividade de construccedilatildeo continuada de um modo de pensar e de agir A praacutexis eacute o que vai
caracterizar a conduta do saacutebio ao fazer um uso praacutetico da filosofia Nesse sentido trata-se de
postular que a sabedoria eacute realizaacutevel e a praacutetica de vida eacute saacutebia Assim para livrar o sophoacutes do
que causa dor e perturbaccedilatildeo as accedilotildees dele precisam estar de acordo com a natureza ser um
reflexo de um pensamento fundamentado naquilo que ele conhece sobre a phyacutesis A praacutexis
nos reporta para uma correlaccedilatildeo entre o modo de compreender a natureza e a consequente
28 Ἃ δέ σοι συνεχῶς παρήγγελλον ταῦτα καὶ πρᾶττε καὶ μελέτα στοιχεῖα τοῦ καλῶς ζῆν ταῦτrsquo εἶναι διαλαμβάνων 29 A meditaccedilatildeo (tograve meleacutetema) eacute o substantivo relacionado agrave forma verbal imperativa em meletaacute (medita) cuja origem vem de meletaacuteo (μελετάω) Como verbo traz o sentido de se ocupar exercer praticar Como nome traduz a ideia de estudo exerciacutecio praacutetico A praacutexis (praacutexis) eacute o substantivo ligado ao verbo pratte ambos originados da raiz praacutesso (πράσσω) Embora praacutexis e praacutetica tenham origem na mesma raiz etimoloacutegica optamos por empregar o termo praacutexis para nos referir agrave conduta ou agraves accedilotildees ligadas agrave compreensatildeo physioloacutegica da realidade enquanto faremos uso da palavra praacutetica em sentido mais geral (BAILLY Anatole Grand Bailly Dictionnaire Grec-Franccedilais Paris Hachette 1935)
20 praacutetica de vida que decorre dessa compreensatildeo Tambeacutem remete agrave necessidade de aplicar a
doutrina de maneira que a conduta do saacutebio se decirc meio a um distanciamento das opiniotildees
vazias da ignoracircncia e de tudo o que obscurece a compreensatildeo da imanecircncia da vida Dessa
forma a partir da investigaccedilatildeo physioloacutegica e de uma reflexatildeo sobre como esse entendimento
pode levar agrave boa realizaccedilatildeo da vida vai ser possiacutevel agir de maneira que toda escolha e toda
recusa conduzam para uma aproximaccedilatildeo entre o modo de viver do saacutebio e um paradigma
natural pensado a partir do que se conhece da phyacutesis
Ao pensar a meditaccedilatildeo como uma ocupaccedilatildeo da psycheacute voltada para compreender a
realidade e como se conduzir diante dela de maneira a que o modo de ser produza um estado
de imperturbabilidade e ao conceber a praacutexis como as accedilotildees as escolhas e recusas que o
saacutebio faz a partir do conhecimento que tem sobre a natureza e tendo em vista realizar uma
vida equilibrada e frugal - o que nos remete para um exerciacutecio continuo de espelhamento em
seu modo de viver da compreensatildeo que tem sobre o modo proacuteprio que a natureza tem de se
realizar - Epicuro nos remete para o que podemos pensar como exerciacutecios eacuteticos e eacute como tal
que a pragmateiacutea epicurista se efetiva
Embora o uso desse substantivo na Carta a Heroacutedoto seja comumente interpretado
como uma referecircncia a um sistema ou doutrina30 sem que se relacione isso com uma
dinacircmica que inter-relaciona physiologiacutea eacutetica e aacuteskesis ao modo de ser do saacutebio ou ao
exerciacutecio da sabedoria eacute preciso lembrar que o sentido do termo pragmateiacutea31 tambeacutem diz
respeito agrave maneira de tratar de algo ao cuidado que dedicamos ao fazer alguma coisa32 o que
implica em buscar um objetivo em se ocupar em se aplicar em procurar alcanccedilar uma
finalidade e tambeacutem pode fazer referecircncia a afazeres33 atividades praacuteticas
Nesse sentido e considerando o disposto ateacute aqui aventamos que para escapar agrave
tendecircncia para se pensar a filosofia de Epicuro a partir de recortes ou descolamentos de
ldquocampos de saberrdquo o que embota o sentido orgacircnico que caracteriza a tradiccedilatildeo do Jardim e
para natildeo conceber a aacuteskesis epicurista como um exerciacutecio-meio posto que a vida feliz se faz
enquanto exerciacutecio de uma vida saacutebia cabe interpretar o epicurismo como uma pragmateiacutea
como uma atividade permanente de realizaccedilatildeo de um modo de viver em consonacircncia com a
compreensatildeo que se tem da phyacutesis A pragmateiacutea epicurista remete para como o saacutebio pensa a
30 Gama Cury traduz como sistema sistema doutrinaacuterio em Vida e Doutrinas dos Filoacutesofos Ilustres Brasiacutelia UnB 2008 Marcel Conche traduz como sistema em Epicure lettres et maximesVillers-Sur-Mer Mecare 1977 31 DL X 35 77 83 Πραγματεία 32 BAILLY Anatole Grand Bailly Dictionnaire Grec-Franccedilais Paris Hachette 1935 33 The Online Liddell-Scott-Jones Greek-English Lexicon (httpstephanustlguciedulsjeid=1 acessado em 13 de fevereiro 2019)
21 realidade e a partir disso atua sobre si mesmo e nas relaccedilotildees que estabelece no mundo
tencionando realizar o sentido natural de sua existecircncia Isso se efetiva por meio de meditaccedilatildeo
e de praacutexis praacuteticas que restabelecem a autarquia e o equiliacutebrio na medida em que buscam um
espelhamento da physiologiacutea no eacutethos do saacutebio
Eacute a partir dessa hipoacutetese que estabelecemos uma interpretaccedilatildeo do pensamento
epicurista a partir da explicitaccedilatildeo do sentido de sua pragmateiacutea como um exerciacutecio eacutetico que
articula a physiologiacutea a um modo de vida autaacuterquico e equilibrado A tal desafio dedicamos
este trabalho de arqueologia do pensamento epicurista a partir da anaacutelise e interpretaccedilatildeo do
limitado acervo de textos de Epicuro34 que a tradiccedilatildeo conservou Trata-se de uma produccedilatildeo
que ainda requer mais atenccedilatildeo dado o valor das discussotildees que envolvem entre tantos temas
a relaccedilatildeo entre filosofia e sabedoria homem e natureza liberdade e necessidade eacutetica e modo
de viver Ainda que a influecircncia do epicurismo tenha se estendido ateacute o mundo greco-romano
por cerca de sete seacuteculos apoacutes a morte de Epicuro a quase totalidade da obra dele se perdeu
(tenha sido por accedilatildeo deliberada daqueles que combatiam sua forma de pensar avessa agrave
poliacutetica agrave religiatildeo aos mitos tenha sido por desastre como a erupccedilatildeo do Monte Vesuacutevio que
em 79 dC calcinou e soterrou a cidade de Herculano e com ela toda uma biblioteca
epicurista ou pelos mais de 23 seacuteculos que nos separam da philosophiacutea de Epicuro) o que
implica muitas vezes em leituras enviesadas lacunares ou sem o devido rigor acadecircmico
Dadas essas razotildees destacamos que recorremos a publicaccedilotildees claacutessicas e recentes para
recompor o legado do pensamento epicurista como o trabalho de Arrighetti Bollack Conche
Festugiegravere Gual Joyau Lledoacute Salem Solovine e Silva entre outros Tomamos por base o
conteuacutedo expresso em trecircs cartas35 e 40 Maacuteximas Capitais conservadas por Dioacutegenes Laeacutercio
no livro X de Vidas e Doutrinas de Filoacutesofos Ilustres Tambeacutem nos detemos sobre as 81
sentenccedilas que foram descobertas em um manuscrito da Biblioteca Vaticana e publicadas em
1888 por Karl Wotke como Sentenccedilas Vaticanas36 Analisamos ainda a doxografia
preservada e reunida por Hermann Usener em Epicurea Ademais nos debruccedilamos sobre o
conteuacutedo de alguns fragmentos dos Papiros Herculanenses37 (estima-se que eles pertenciam agrave
biblioteca do epicurista romano Filodemo) e dos fragmentos descobertos no siacutetio arqueoloacutegico
34 Teria escrito mais de 300 volumes Ainda que se trate de um pensador com vasta produccedilatildeo como relatou Dioacutegenes Laeacutercio pouco desse material foi conservado 35 Carta a Meneceu Carta a Piacutetocles e Carta a Heroacutedoto 36 Embora estudos digam que nem todas satildeo de Epicuro podendo algumas serem atribuiacutedas aos disciacutepulos Metrodoro e Hermarco 37 Fragmentos de papiros recuperados da Biblioteca de Herculano Localizada ao sul da Itaacutelia a cidade de Herculano foi soterrada no ano de 79 pela erupccedilatildeo do Monte Vesuacutevio Os restos da biblioteca foram descobertos em 1750 quando mais de 1500 rolos de papiros foram achados parcialmente carbonizados
22 de Œnoanda (na Turquia) Satildeo inscriccedilotildees que o epicurista Dioacutegenes de Œnoanda mandou
esculpir por volta do seacuteculo II dC em um muro para que os viajantes que passassem por ali
tivessem contato com a filosofia epicurista E consideramos como uma referecircncia importante
para a compreensatildeo do epicurismo o poema em seis livros Da Natureza do poeta romano
Lucreacutecio
Dividimos o trabalho em trecircs capiacutetulos
O primeiro apresenta os fundamentos da pragmateiacutea epicurista ou de como a
physiologiacutea o conhecimento (gnoacutesis) e a teacutecnica (teacutechne) satildeo pensados por Epicuro O
objetivo eacute mostrar que a filosofia visa colocar diante do homem um saber que possa ser uacutetil agrave
sua realizaccedilatildeo Para isso destacaremos como a alma (psycheacute) opera para a partir do que a
sensibilidade lhe apresenta como dados da realidade imanente pensar sobre sua finalidade e
sobre um modo de viver que possa realizaacute-la
O segundo capiacutetulo discorre sobre a meditaccedilatildeo ou como a pragmateiacutea eacute exercitada
pela alma Tem-se por escopo explicar como agrave luz da physiologiacutea a reflexatildeo sobre temas
como a morte os deuses a felicidade e a dor por exemplo vai constituir um loacutegos
terapecircutico fundamental para estabelecer um distanciamento das opiniotildees vazias e incitar uma
disposiccedilatildeo para efetivar um eacutethos voltado para alegria e a tranquilidade
E o terceiro capiacutetulo vai discorrer sobre a praacutexis Trata-se de expor como a pragmateiacutea
se delineia na conduta do saacutebio a partir do saber physioloacutegico Para isso vatildeo ser enfocadas as
praacuteticas de relacionamento social A vida discreta (relacionada ao laacutethe biocircsas) a amizade
(philiacutea) a vida em comunidade (koinoniacutea) satildeo aspectos do eacutethos do saacutebio que permitem
pensar sua accedilatildeo a partir de uma busca por conviacutevios assentados em sentimentos de afinidade e
de homologiacutea (igualdadeequiliacutebrio) levando agrave liberdade para realizar a autenticidade de cada
um Tambeacutem destacamos nesse capiacutetulo como a pragmateiacutea se constitui como um exerciacutecio
da sabedoria voltada para a realizaccedilatildeo de uma vida autecircntica frugal livre e feliz Para tanto
vamos discutir como a eacuteticaphysiologiacutea epicuacuterea eacute realizada enquanto praacutetica libertadora e
terapecircutica
23
CAPIacuteTULO 01
DA PHYSIOLOGIacuteA AO EacuteTHOS ndash
OS FUNDAMENTOS DA PRAGMATEIacuteA EPICURISTA
No pensamento epicurista eacute estabelecida uma relaccedilatildeo entre a compreensatildeo que se tem
da realidade (phyacutesis) e o modo de viver Considera-se que a partir da investigaccedilatildeo acerca da
natureza (physiologiacutea) eacute possiacutevel orientar o eacutethos do homem para realizaccedilatildeo de uma vida feliz
(makariacuteos zecircn)1 Essa perspectiva estaacute presente na definiccedilatildeo que Sexto Empiacuterico2 apresenta da
filosofia do Jardim quando diz que os epicuristas buscavam apresentar uma ldquoarte de vidardquo
sentido advindo da expressatildeo teacutechnen tinaacute periacute ton biacuteon3 Em seguida diz-se que por essa
razatildeo Epicuro afirmava ser a filosofia uma arte que por discurso e razatildeo busca uma vida
feliz4 A mesma ideia consta nos fragmentos Us 227 e 227b onde eacute dito que Epicuro definiu
tal arte como um procedimento que busca ser uacutetil a vida5 Eacute nesse enquadramento e com essa
finalidade que a physiologiacutea eacute desenvolvida por Epicuro e sobre isso falamos a seguir
11 ndash A physiologiacutea
A physiologiacutea em sentido geral diz respeito agrave investigaccedilatildeo ou exposiccedilatildeo sobre a
natureza (phyacutesis) No livro primeiro da Metafiacutesica Aristoacuteteles usa esse termo para se referir
ao modelo de filosofia praticado pelos primeiros pensadores que chamava de physiologoacutes6 Eacute
neles em especial nos da Jocircnia7 que Epicuro se inspira para pensar a natureza como fonte de
um conhecimento que possa servir para encetar um modelo de realizaccedilatildeo para o homem Em
busca de dar uma fundamentaccedilatildeo ontoloacutegica e um vieacutes praacutetico para a eacutetica Epicuro tambeacutem
1 A vida feliz (μακαρίως ζην) eacute a expressatildeo de um sentido de equiliacutebrio (aqui expresso em uma noccedilatildeo geral) mas que eacute trabalhada por Epicuro em termos de ἀταραξία (ausecircncia de perturbaccedilatildeo na alma) ἀπονία (ausecircncia de dores do corpo) ευσταθέια (boa disposiccedilatildeo) Essas definiccedilotildees encontram-se desenvolvidas por Markus Silva Epicuro Sabedoria e Jardim Rio de Janeiro Relume-Dumaraacute 2003 2 Us 219 Sexto Empiacuterico (Adv Math V 9) 169 επαγγέλλονται γαρ τέχνην τινά περί τον βίον παραδώσειν καΐ δια τούτο Έπίκούρος μεν έλεγε την φιλοσοφίαν ένέργειαν εΐναι λόγοις καΐ διᾰλογισμοΐς τον εύδαίμονα βίον περιποιοθσαν 3 τέχνην τινά περί τον βίον 4 τον εύδαίμονα βίον περιποιοσαν 5 τέχνη εστί μέθοδος ενεργούσα τω βίψ το συμφέρον 6 Aristoacuteteles Metafiacutesica Α5 986b10 7 Anaximandro Anaxaacutegoras Heraacuteclito
24 vai recorrer ao legado de Demoacutecrito Leucipo e Empeacutedocles entre outros preacute-socraacuteticos Isso
porque ele pretende retomando o pensamento que o antecedeu fundamentar na natureza um
modo de viver Seu projeto eacute elaborar uma filosofia que possa conduzir ao esclarecimento
com relaccedilatildeo aos modos de ser da phyacutesis a como ela opera e ateacute que ponto ela determina as
condiccedilotildees de realizaccedilatildeo do homem Eacute preciso haver essa compreensatildeo para se estabelecer um
discernimento a respeito dos propoacutesitos que estatildeo de acordo com a natureza e devem ser
perseguidos e aqueles que resultam das opiniotildees vazias (kenaigrave doacutexai) e devem ser rejeitados
Esse esclarecimento vai ser fundamental para fazer uma correspondecircncia entre o discurso
filosoacutefico e a maneira como se vive
Pensar e viver de acordo com o que se pensa foi um ideal de algumas escolas
filosoacuteficas helenistas8 e Epicuro conservando essa premissa vai elaborar uma compreensatildeo
da phyacutesis cujas repercussotildees vatildeo estar diretamente ligadas agrave necessidade de transformar o
eacutethos do homem grego Eacute a partir de uma redefiniccedilatildeo da forma de perceber a realidade e o
papel de si mesmo no mundo que se pretende redirecionar o estilo de vida Trata-se de
postular um exerciacutecio de investigaccedilatildeo e de entendimento sobre a natureza que jaacute se constitui
como expressatildeo de uma alteraccedilatildeo no modo de existir Eacute nesses termos que a physiologiacutea eacute
apresentada na Carta a Heroacutedoto
Portanto sendo tal caminho uacutetil a todos que se familiarizaram com a investigaccedilatildeo da natureza eu que dedico incessantemente minhas energias agrave investigaccedilatildeo da natureza e desse modo de viver tiro principalmente a minha calma preparei para teu uso uma espeacutecie de epiacutetome e um sumaacuterio dos elementos fundamentais de minha doutrina em sua totalidade (DL X 37) 9
Dessa citaccedilatildeo podemos destacar alguns aspectos O primeiro diz respeito ao caraacuteter
uacutetil do estudo da natureza Ela natildeo eacute apresentada como uma disciplina ou um sistema teoacuterico
sobre a phyacutesis mas relacionada - pelo uso do termo eneacutergema10- a uma ocupaccedilatildeo accedilatildeo ou
atividade cotidiana visando o bem-estar Dessa forma a physiologiacutea para aleacutem de uma visatildeo
acerca da realidade estaacute atrelada a um modo especiacutefico de viver o saacutebio (sophoacutes) ao
perquirir a phyacutesis exercita a proacutepria imperturbabilidade (ataraxiacutea) Isso porque para Epicuro
eacute dessa permanente atividade de buscar compreender a phyacutesis que o saacutebio por si mesmo
estabelece um eacutethos fundamentado na natureza a despeito do que eacute convencionado exoacutegeno
artificial Eacute ancorada nessa perspectiva que a physiologiacutea vai ser delineada como um saber
8 Cinismo estoicismo 9 ὅθεν δὴ πᾶσι χρησίμης οὔσης τοῖς ᾠκειωμένοις φυσιολογίᾳ τῆς τοιαύτης ὁδοῦ παρεγγυῶν τὸ συνεχὲς ἐνέργημα ἐν φυσιολογίᾳ καὶ τοιούτῳ μάλιστα ἐγγαληνίζων τῷ βίῳ ἐποίησά σοι καὶ τοιαύτην τινὰ ἐπιτομὴν καὶ στοιχείωσιν τῶν ὅλων δοξῶν 10 ἐνέργημα pode ser traduzida por ato operaccedilatildeo (no sentido de atividade) Cf Anatole Bailly Op Cit
25 para ser uacutetil no projeto de construccedilatildeo de um modo de viver com base no que eacute inteligido ao se
estudar a phyacutesis Eis o porquecirc de Epicuro afirmar
() a funccedilatildeo da ciecircncia da natureza (physiologiacutea) eacute a determinaccedilatildeo precisa da causa dos elementos principais e nesse conhecimento consiste a felicidade e tambeacutem no conhecimento da natureza real dos corpos que vemos no ceacuteu e na aquisiccedilatildeo de conhecimentos afins que contribuem para o conhecimento completo a esse respeito indispensaacutevel tambeacutem agrave felicidade (DL X 78)11
Quanto mais o homem se exercita na physiologiacutea buscando compreender as forccedilas
que operam no movimento de realizaccedilatildeo da phyacutesis e como se daacute essa dinacircmica mais ele pode
pensar sobre seu sentido de ser no mundo e com isso definir a melhor maneira de viver para
a finalidade que intelige a partir dessa investigaccedilatildeo Assim a physiologiacutea eacute elaborada tendo
em vista e se constituindo como um exerciacutecio de viver a partir do que se pode saber sobre a
natureza Se como afirma SILVA (2003 p 23) ldquoEpicuro define a physiologiacutea como um
exerciacutecio (aacuteskesis) constante de compreensatildeo dessa realidade que eacute para ele a phyacutesisrdquo esse
entendimento remete para uma praacutetica de vida dado que o saacutebio vai colocar para si como
finalidade a tranquilidade - que remete para a percepccedilatildeo de equiliacutebrio que se tem ao observar
a natureza Em outros termos se o eacutethos do saacutebio implica em uma investigaccedilatildeo da phyacutesis eacute
no exerciacutecio de pensar a phyacutesis que ele intelige dela o conhecimento necessaacuterio para orientaacute-
lo na consecuccedilatildeo desse eacutethos Porquanto o saacutebio contempla a natureza calma e estabelece uma
analogia entre como ela se realiza externamente e como ela pode ser realizar internamente
nele mesmo ele vai estabelecer um modo de viver que o faccedila ter essa experiecircncia de
harmonia dentro de si
Daiacute podemos evidenciar outro aspecto da filosofia epicurista a indissociabilidade
entre a physiologiacutea e a eacutetica A investigaccedilatildeo da natureza permite conceber a phyacutesis como um
paradigma de realizaccedilatildeo a partir do qual o saacutebio pensa os limites e os propoacutesitos de sua
existecircncia e busca viver conforme esse entendimento Eacute nesse sentido que vai a advertecircncia de
Epicuro
Se em cada ocasiatildeo em vez de submeter tuas accedilotildees ao objetivo da natureza preferires voltar-te para qualquer outro padratildeo de referecircncia mais proacuteximo quando estiveres fazendo uma escolha ou rejeiccedilatildeo tuas accedilotildees natildeo se coadunaratildeo com teus princiacutepios (DL X 14812)
11 Καὶ μὴν καὶ τὴν ὑπὲρ τῶν κυριωτάτων αἰτίαν ἐξακριβῶσαι φυσιολογίας ἔργον εἶναι δεῖ νομίζειν καὶ τὸ μακάριον ἐν τῇ περὶ μετεώρων γνώσει ἐνταῦθα πεπτωκέναι καὶ ἐν τῷ τίνες φύσεις αἱ θεωρούμεναι κατὰ τὰ μετέωρα ταυτί καὶ ὅσα συγγενῆ πρὸς τὴν εἰς τοῦτο ἀκρίβειανmiddot 12 Εἰ μὴ παρὰ πάντα καιρὸν ἐπανοίσεις ἕκαστον τῶν πραττομένων ἐπὶ τὸ τέλος τῆς φύσεως ἀλλὰ προκαταστρέψεις
26 Ao alicerccedilar sua filosofia no estudo da natureza Epicuro estaacute buscando transformar a
compreensatildeo que o homem tem sobre a phyacutesis e fazecirc-lo relacionar isso com o seu proacuteprio
modo de agir Se sua conduta era pensada no contexto da poacutelis13 visando o exerciacutecio da
cidadania e da poliacutetica trata-se de entatildeo apresentar uma alternativa ao modo de entender o
mundo e nele o papel que o homem pode pensar para si mesmo Natildeo mais a poacutelis mas a
phyacutesis natildeo mais o homem ciacutevico mas o homem para si para experimentar uma vida feliz
(makariacuteos zecircn) Isso porque como esclarece SILVA (2003 p 23) ldquopara Epicuro a natureza
eacute a fonte ou o princiacutepio da vida fiacutesica psiacutequica e eacuteticardquo
Vemos com isso uma mudanccedila na maneira de enxergar o homem A perspectiva eacute
pensar o sentido da existecircncia dele como ser da natureza Dessa maneira a physiologiacutea vai
delinear um movimento de (re)aproximaccedilatildeo entre ele e uma phyacutesis que lhe serve como
espelho para sua realizaccedilatildeo Daiacute que eacute a partir de um desvelamento da phyacutesis ateacute onde eacute
possiacutevel que satildeo pensados o sentido da vida e as accedilotildees do saacutebio - que levam a realizaccedilatildeo
desse sentido Eacute nesses termos que a physiologiacutea vai fundamentar a eacutetica epicurista tanto
quanto remete para a necessidade de uma aproximaccedilatildeo homemnatureza
Eacute no contexto dessa sinergia que posicionamos o postulado segundo o qual uma vida
saacutebia eacute aquela que se realiza como um exerciacutecio de viver de acordo com a natureza (katagrave
phyacutesin) Mas o que significa uma vida katagrave phyacutesin e como ela se relaciona com o estudo da
phyacutesis Antes de entrarmos nessa questatildeo cabe contudo apresentar aqui mesmo que de
modo sumaacuterio a compreensatildeo que Epicuro tem acerca da phyacutesis
111 A phyacutesis
Eacute do entendimento de como a natureza se realiza que vai ser possiacutevel estabelecer uma
relaccedilatildeo com um modo saacutebio de viver Daiacute porque compreender o sentido atribuiacutedo ao uso do
termo phyacutesis vai ser fundamental para destacar o percurso e o projeto filosoacutefico epicurista E eacute
em torno disso que vatildeo orbitar questotildees de natureza gnosioloacutegica e eacutetica como veremos
A histoacuteria natildeo nos possibilitou o acesso aos trinta e sete volumes14 que Epicuro
dedicou ao estudo da phyacutesis restando-nos sobre esse tema apenas as proposiccedilotildees
εἴτε φυγὴν εἴτε δίωξιν ποιούμενος εἰς ἄλλο τι οὐκ ἔσονταί σοι τοῖς λόγοις αἱ πράξεις ἀκόλουθοι 13 O que se postula eacute uma vida de acordo com a natureza (katagrave phyacutesin) portanto mais proacutexima do Jardim e mais afastada da poacutelis da Aacutegora como veremos no item 12 Para os epicuristas uma vida katagrave phyacutesin passa por natildeo ser influenciado nem pela poliacutetica nem pela religiatildeo nem pela cultura nem pelas opiniotildees vazias (kenaigrave doacutexai) 14 Em DL X 27 Dioacutegenes Laeacutercio nos fala da existecircncia da obra Da Natureza em 37 livros dedicados a examinar a phyacutesis
27 fundamentais que constam na Carta a Heroacutedoto que se constitui como um resumo dessa obra
maior (Perigrave Physeos) Entatildeo eacute a partir desse escasso material que precisamos evidenciar o
entendimento de Epicuro com relaccedilatildeo agrave phyacutesis e de que forma o saber que se pode ter sobre
ela pode definir a conduta do saacutebio
Em sentido geral tem sido corrente traduzir o termo phyacutesis por meio de conceitos
como natureza universo ou mesmo realidade Mas conveacutem fazer algumas observaccedilotildees quanto
ao uso que dele faz Epicuro Etimologicamente15 phyacutesis (φύσις -εως) traz a ideia de gerar
fazer crescer engendrar E eacute nessa acepccedilatildeo que Epicuro usa o termo quando trata da geraccedilatildeo
dos corpos compostos e dos mundos (koacutesmoi) Para usarmos as palavras de A Bailly16 ele faz
referecircncia agrave phyacutesis no sentido de ldquoaccedilatildeo de fazer nascer formaccedilatildeo produccedilatildeordquo Verificamos
isso no passo 45 da Carta a Heroacutedoto onde se fala do movimento dos aacutetomos que se
chocando contra outros tanto pode gerar novos compostos quanto pode levar agrave desagregaccedilatildeo
de agrupamentos que jaacute existem Processo que se repete desde sempre e para sempre Assim
ldquoessa repeticcedilatildeo se tivermos em mente todos os pontos mencionados proporciona um esboccedilo
suficiente para o entendimento da natureza (phyacuteseos) das coisas fundamentaisrdquo (DL X 45)17
Mas o termo tambeacutem eacute empregado quando se trata daquilo que eacute origem princiacutepio
(archeacute) de algo Isso diz respeito aos compostos e ao vazio (soacutemata kai kenoacuten) como se
mostra respectivamente nestas passagens ldquoDisso resulta necessariamente que esses
elementos que se agrupam de vaacuterias maneiras satildeo indestrutiacuteveis e natildeo tem a natureza (phyacutesin)
do mutaacutevel ()rdquo (DL X 54)18 ldquoSe aquilo que chamamos vazio ou espaccedilo ou aquilo que por
natureza (phyacutesin) eacute intangiacutevel ()rdquo (DL X 40)19
Epicuro tambeacutem usa phyacutesis quando quer aludir ao todo ou ao que eacute tomado em sua
totalidade ou em sua constituiccedilatildeo Tal eacute o caso verificado no passo 35 tambeacutem da Carta a
Heroacutedoto Nele se diz ldquopara os incapazes de estudar acuradamente cada um de meus escritos
sobre a natureza (Perigrave Physeos) ()rdquo (DL X 35) Note-se que ao dizer ldquosobre a naturezardquo
Epicuro se refere agrave ldquonatureza ou maneira de serrdquo20 tanto daquilo que compotildee o microcosmo
quanto do que eacute percebido pelos sentidos Nesse caso a phyacutesis eacute considerada como
ldquodisposiccedilatildeo naturalrdquo21 para ser o que se eacute ou em outros termos em seus modos de realizaccedilatildeo
15 CHASSANG A Dictionnaire Grec-Franccedilais Paris Garnier Fregraveres 1865 16 Anatole Bailly Op Cit 17 Ἡ τοσαύτη δὴ φωνὴ τούτων πάντων μνημονευομένων τὸν ἱκανὸν τύπον ὑποβάλλει ltταῖς περὶgt τῆς τῶν ὄντων φύσεως ἐπινοίαις 18 ὅθεν ἀναγκαῖον τὰ [μὴ] μετατιθέμενα ἄφθαρτα εἶναι καὶ τὴν τοῦ μεταβάλλοντος φύσιν οὐκ ἔχοντα 19 εἰ ltδὲgt μὴ ἦν ὃ κενὸν καὶ χώραν καὶ ἀναφῆ φύσιν ὀνομάζομεν 20 Anatole Bailly OpCit 21 Anatole Bailly Idem
28 Considerando essas nuances podemos falar da compreensatildeo que a physiologiacutea tem a
respeito de como se realiza a phyacutesis22 Para Epicuro ela se apresenta segundo quatro
maneiras
O todo (tograve pacircn) eacute a realizaccedilatildeo da phyacutesis tomada em seu niacutevel macrofiacutesico Diz respeito
agrave totalidade de tudo o que haacute se estendendo indefinidamente no tempo e espaccedilo pois ldquoo todo
eacute infinitordquo (DL X 41)23 Enquanto totalidade a phyacutesis eacute imutaacutevel ldquoporque aleacutem do todo
nada haacute que possa penetrar nele e provocar transformaccedilatildeordquo (DL X 39)24 e porque as
mudanccedilas que acontecem com os corpos mundos e microcosmos natildeo alteram sua constituiccedilatildeo
geral ldquoo todo sempre foi exatamente como eacute agora e sempre seraacute assimrdquo (idem)25 As
alteraccedilotildees apenas se datildeo no niacutevel dos compostos que o constituem Dessa forma o todo pode
ser compreendido como uno na sua integralidade e muacuteltiplo naquilo que o compotildee corpos
(ser) e vazio (natildeo ser)26
Sendo o todo constituiacutedo de corpos e vazios entatildeo outra forma de realizaccedilatildeo da
phyacutesis apontada por Epicuro se verifica na dimensatildeo microcoacutesmica dela Aiacute encontramos o
que tambeacutem natildeo se modifica se caracterizando como fundamento de toda a realidade Esse
entendimento estabelecido a respeito desse outro modo de realizaccedilatildeo da phyacutesis tem suas bases
no pensamento preacute-socraacutetico sob a forma do atomismo de Leucipo e Demoacutecrito27 ldquoos
primeiros princiacutepios do universo satildeo os aacutetomos e o vaziordquo Lucreacutecio diraacute a esse respeito ldquotoda
a natureza enquanto existe por si mesma eacute formada de duas coisas existem com efeito os
corpos e o vazio no qual estes se encontram e onde se movimentam nas vaacuterias direccedilotildeesrdquo
(Lucr I 419-421)28 Eacute a partir dessa concepccedilatildeo atomiacutestica preacute-socraacutetica que Epicuro vai tentar
explicar a pluralidade daquilo que existe
O conceito de aacutetomo29 (aacutetomos) remete ao que eacute pequeno impenetraacutevel maciccedilo
22 Uma discussatildeo mais detalhada sobre os modos de realizaccedilatildeo da phyacutesis pode ser encontrada no capiacutetulo 01 de Sabedoria e Jardim de Markus Figueira da Silva Op Cit 23 τὸ πᾶν ἄπειρόν ἐστι 24 παρὰ γὰρ τὸ πᾶν οὐθέν ἐστιν ὃ ἂν εἰσελθὸν εἰς αὐτὸ τὴν μεταβολὴν ποιήσαιτο 25 Καὶ μὴν καὶ τὸ πᾶν ἀεὶ τοιοῦτον ἦν οἷον νῦν ἐστι καὶ ἀεὶ τοιοῦτον ἔσται 26 Temos aqui uma ontologia que admite o natildeo-ser como ser O vazio tem existecircncia eacute o natildeo-ser com propriedade de ser Vale lembrar que desde Demoacutecrito o vazio eacute dotado de existecircncia uma vez que eacute preciso admitir isso para que haja movimento 27 Conforme DL IX 44 Em Leucipo e Demoacutecrito de Abdera (460-360 aC) Epicuro encontra as bases de uma concepccedilatildeo atomista que vai lhe servir para a elaboraccedilatildeo de sua physiologiacutea 28 Omnis ut est igitur per se natura duabus constitit in rebus nam corpora sunt et inane haec in quo sita sunt et qua diversa moventur LUCREacuteCIO De Rerum Natura Joatildeo Pessoa Ideia 2016 Traduccedilatildeo introduccedilatildeo e notas de Juvino Alves Maia Junior Hermes Oriacutegenes Duarte Vieira e Felipe dos Santos Almeida 29 Aacutetomos (singular) aacutetomoi (plural) DL X 41 42 43 44 45 48 50 54 55 56 59 61 62 65 66 86 99 102 110 115
29 indivisiacutevel imutaacutevel uno Epicuro fala dos aacutetomos (aacutetomoi) como ldquoessecircncias inteirasrdquo30
reverberando a concepccedilatildeo atomista a respeito da menor partiacutecula corpoacuterea constitutiva da
phyacutesis Assim natildeo estaacute sujeito a sofrer modificaccedilatildeo em sua constituiccedilatildeo e nenhuma alteraccedilatildeo
qualitativa Ele natildeo vem a ser e natildeo deixa de ser Natildeo estando sujeito a mudanccedilas o aacutetomo eacute
pensado como um princiacutepio corpoacutereo de permanecircncia da phyacutesis o que nos remete assim como
o todo (tograve pan) para uma realidade ontologicamente definida como sendo sempre a mesma
Esses elementos satildeo os aacutetomos indivisiacuteveis e imutaacuteveis se eacute verdade que nem todas as coisas poderatildeo parecer e resolver-se no natildeo-ser Com efeito os aacutetomos satildeo dotados da forccedila necessaacuteria para permanecerem intactos e para resistirem enquanto os compostos se dissolvem pois satildeo impenetraacuteveis por sua proacutepria natureza e natildeo estatildeo sujeitos a uma eventual dissoluccedilatildeo Consequentemente os princiacutepios das coisas satildeo indivisiacuteveis e de natureza corpoacuterea (DL X 41)31
Como propriedades os aacutetomoi possuem forma (schematoacutes) tamanho (megeacutethous) e
peso (baacuterous) Eles satildeo inteligiacuteveis agrave psycheacute por meio de analogias a partir do que eacute percebido
pelos sentidos Eacute por meio dessa operaccedilatildeo que eacute possiacutevel estabelecer uma compreensatildeo a
respeito de suas caracteriacutesticas Sobre elas se diz que quanto agrave forma haacute aacutetomos diferentes
entre si o que permite a agregaccedilatildeo mais facilmente com uns e a incompatibilidade com
outros Mas essa variaccedilatildeo natildeo eacute infinita apenas incalculaacutevel Seu tamanho varia mas natildeo
infinitamente dado que nenhum pode ser percebido pelos sentidos Quanto ao peso eacute a causa
do movimento dos aacutetomos no vazio
O aacutetomos como explica Epicuro existe em quantidade infinita porque o todo eacute
infinito Ao se agregar a outros aacutetomos gera os corpos compostos Mas para que haja a
formaccedilatildeo desses outros corpos eacute preciso admitir que ldquoos aacutetomos estatildeo em movimento
contiacutenuo por toda a eternidaderdquo (DL X 43)32 e isso pressupotildee a existecircncia do vazio Afinal
eacute nele que os aacutetomos se movimentam E quando colidem uns com outros datildeo origem a novos
aglomerados ou desfazem desagregam devido a esses choques aqueles que foram formados
anteriormente
Mas esse vazio natildeo eacute o a causa do movimento atocircmico Para explicaacute-lo se faz
referecircncia a trecircs fatores o peso os choques e a declinaccedilatildeo Eacute o peso33 que faz com que os
30 Em grego ὅλας φύσεις Marcel Conche Op Cit traduz por naturezas completas 31 Ταῦτα δέ ἐστιν ἄτομα καὶ ἀμετάβλητα εἴπερ μὴ μέλλει πάντα εἰς τὸ μὴ ὂν φθαρήσεσθαι ἀλλrsquo ἰσχύοντα ὑπομενεῖν ἐν ταῖς διαλύσεσι τῶν συγκρίσεων πλήρη τὴν φύσιν ὄντα καὶ οὐκ ἔχοντα ὅπῃ ἢ ὅπως διαλυθήσεται ὥστε τὰς ἀρχὰς ἀτόμους ἀναγκαῖον εἶναι σωμάτων φύσεις 32 Κινοῦνταί τε συνεχῶς αἱ ἄτομοι τὸν αἰῶνα 33 J A M Pessanha em um estudo introdutoacuterio agrave traduccedilatildeo em portuguecircs da tese de doutoramento de Karl Marx destaca que o movimento atocircmico seguindo em linha reta como decorrecircncia de uma concepccedilatildeo de peso do aacutetomo
30 aacutetomos caiam retiliacuteneos vertical e paralelamente em velocidade constante no vazio infinito
Jaacute pelo choque algum aacutetomo em movimento colide com outro podendo redefinir sua
trajetoacuteria e produzir ou desfazer agregados atocircmicos Mas para haver esses choques entre
aacutetomos que caem paralelamente no vazio eacute preciso considerar a possibilidade de que eles
escapem a sua trajetoacuteria e assim colidam com outros A esse desvio se chama declinaccedilatildeo
(pareacutenklisis) o que seraacute traduzido por Lucreacutecio por clinamen34
Aqui precisamos tecer algumas consideraccedilotildees sobre o parecircnklisis dada a importacircncia
desse conceito para a fundamentaccedilatildeo da eacutetica epicurista Esses desvios que os aacutetomoi
descrevem em sua trajetoacuteria original satildeo no plano fiacutesico necessaacuterios para que haja as colisotildees
que levam agrave formaccedilatildeo de corpos compostos e dos mundos Trata-se de postular mais uma
causa para um movimento sutil do aacutetomos que se daacute sem fator externo a ele Tal declinaccedilatildeo
resulta de um princiacutepio intriacutenseco do aacutetomo da mesma forma que o peso E isso seria
suficiente para poder justificar um niacutevel de indeterminismo ou acaso operando junto agrave
causalidade mecacircnica da natureza
Eacute a partir desse fenocircmeno que vai ser possiacutevel a Epicuro defender a liberdade35
(eleutheriacutea) no campo eacutetico Para evitar o riacutegido determinismo engendrado ao se admitir
causas puramente mecacircnicas no movimento do aacutetomo a adoccedilatildeo uma casualidade permite
fundamentar ontologicamente o que - no plano eacutetico - diz respeito agrave liberdade humana
Mas a tese do parecircnklisis natildeo consta nos escritos que a tradiccedilatildeo nos legou de Epicuro
Neles observamos que tal desvio estaacute impliacutecito mas apenas na doxografia posterior eacute exposto
claramente Daiacute porque se abrem em torno dessa questatildeo vaacuterias discussotildees natildeo conclusivas A
principal delas levantada por Hermann Usener eacute que haveria uma lacuna textual no passo 43
da Carta a Heroacutedoto E ali poderia estar localizada a menccedilatildeo ao parecircnklisis Essa hipoacutetese eacute
acompanhada por Maurice Solovine (1965) e Jean Salem (1993)
Jean Pierre Faye em introduccedilatildeo ao texto de Maurice Solovine (1965) destaca o
trabalho de Aeacutecio Lucreacutecio Ciacutecero e Dioacutegenes de Œnoanda para tentar legitimar o
parecircnklisis como uma elaboraccedilatildeo de Epicuro para pensar no campo da phyacutesis um
existiria apenas em Epicuro MARX Karl Diferenccedila entre as Filosofias da Natureza em Demoacutecrito e Epicuro Satildeo Paulo Global Edtora sd 34 No canto II do poema Da Natureza onde Lucreacutecio versa sobre os fundamentos da eacutetica e sobre a filosofia como terapecircutica eacute explicitada a questatildeo do clinamen termo que aparece apenas uma vez no verso 292 Para se remeter ao desvio do aacutetomo ele tambeacutem usa palavras como depellere declinare inclinare (Lucr 219 221 243 250 253 259) ldquoClinamen parece ter sido criado por Lucreacutecio para evitar clinatio que natildeo podia entrar em seus versos hexacircmetrosrdquo (SALEM 1997 p 67) apud SILVA 2018 p 53 35 ldquoSe em bom materialismo filosoacutefico nada nasce do nada a liberdade que noacutes experimentamos agrave maneira de tudo que eacute vivo deve certamente traduzir em nossa escala uma propriedade presente no aacutetomo a declinaccedilatildeo seria precisamente essa propriedaderdquo (SALEM 1993 p 38)
31 fundamento para a liberdade humana Mas trata-se de uma incorreccedilatildeo pois natildeo haacute nos textos
atribuiacutedos a Epicuro o uso desse termo Ocorre que como explica Solovine teria havido a
inserccedilatildeo de um conceito pensado por epicuristas tardios mas seria errado afirmar estar
expressa nos escritos de Epicuro essa definiccedilatildeo ldquoE Solovine pensa mesmo em poder localizar
a zona de erro36 sem duacutevida com Zenatildeo de Sidon ou com Feacutedro o epicuristardquo (p 10) De
acordo com Faye eles eacute que teriam apresentado a noccedilatildeo de parecircnklisis Mas ldquoa uacutenica coisa
certa ateacute o presente eacute que nenhum texto antigo colocou em questatildeo a atribuiccedilatildeo da declinaccedilatildeo
ao pai dos epicuristasrdquo (p 12)37
Para suprir essa lacuna o poema de Lucreacutecio Da Natureza38 nos versos 216 a 293 do
canto II ao argumentar sobre o parecircnklisis diz que sem ele natildeo haveria o encontro dos
aacutetomos o que eacute fundamental para a criaccedilatildeo e para a diversidade daquilo que existe No verso
244 ele explica que esse movimento eacute um desvio nec plus quam minimum (natildeo mais que
miacutenimo) o que poderiacuteamos pensar como algo iacutenfimo e natildeo percebido pelos sentidos E nos
fragmentos de Dioacutegenes de Œnoanda podemos ler ldquonatildeo sabes tu quem quer sejas que haacute um
tipo de movimento livre nos aacutetomos que Demoacutecrito natildeo descobriu mas que Epicuro tornou
conhecido sendo uma declinaccedilatildeo como ele mostra a partir dos fenocircmenosrdquo (Œno fr 54
II)39 Ao dizer que Epicuro ldquomostra a partir dos fenocircmenosrdquo Dioacutegenes estaacute se referindo a um
recurso do pensamento que por meio de analogiacuteas com realidade sensiacutevel possibilita falar
daquilo que natildeo pode ser percebido pelos sentidos como os aacutetomos
Agora retomando o que diziacuteamos sobre os modos de ser da natureza quando Epicuro
se refere a corpos ele usa o termo socircma40 (σῶμα ατος) Mas cabe notar que haacute tanto os corpos
simples (o aacutetomo tomado individualmente) quanto os corpos compostos - formados por
agrupamento de aacutetomos e vazio a que ele tambeacutem se refere como de synkriacuteseis41 Eacute ao se
referir a esses compostos que Epicuro faz alusatildeo a mais uma maneira de realizaccedilatildeo da phyacutesis
Isso considera que as coisas vecircm a ser pela agregaccedilatildeo de aacutetomos e deixam de ser pela
desagregaccedilatildeo deles A synkriacuteseis diferentemente dos aacutetomos estaacute sujeita ao movimento de
geraccedilatildeo e corrupccedilatildeo E para isso como vimos tem um papel fundamental o movimento e o
36 Ou seja a partir dessa inserccedilatildeo conceitual feita por Zenatildeo e Feacutedro teria sido estabelecida a crenccedila de que a noccedilatildeo de parecircnklisis proveacutem dos textos de Epicuro 37 Essas possibilidades constam em MAFFEZZOLLI Marcone Eleutheriacutea a noccedilatildeo de liberdade na eacutetica de Epicuro Dissertaccedilatildeo de Mestrado UFRN 2010 38 LUCREacuteCIO Da Natureza Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 (Os Pensadores) 39 Ne sais-tu donc pas qui que tu puisses ecirctre qursquoil y a une sorte de mouvement libre dans les atomes que Deacutemocrite nrsquoa pas deacutecouvert mais qursquoEpicure fit connaicirctre eacutetant une deacuteclinaison comme il le montre agrave partir des pheacutenomenegraves 40 DL X 39 40 41 42 47 48 55 56 63 66 67 68 69 70 71 86 94 41 DL X 40 41 42 54 55 62 66 73 110
32 desvio de trajetoacuteria dos aacutetomoi permitindo que eles se agreguem a outros ou que seja a causa
da desagregaccedilatildeo dos conjuntos atocircmicos jaacute existentes Eacute esse movimento que explica que tais
corpos alterem sua forma aumentem ou diminuam de tamanho e de peso Estatildeo assim
sujeitos agraves mudanccedilas em suas caracteriacutesticas qualitativas na medida em que o ordenamento e a
quantidade de aacutetomos tambeacutem satildeo alterados Se a forma tamanho e peso inclinam certos
aacutetomos a se agregarem com outros em funccedilatildeo de similaridades quanto a essas caracteriacutesticas
do mesmo modo a incompatibilidade ou desacordo dessas caracteriacutesticas podem impedir ou
dificultar a formaccedilatildeo de outros arranjos corpoacutereos Em todo caso os aacutetomos que lhes formam
natildeo sofrem alteraccedilatildeo mas ldquoformam os compostos e nos aacutetomos os compostos se dissolvemrdquo
(DL X 42)42
Por fim quando Epicuro se refere aos mundos e para isso usa o termo koacutesmoi
tambeacutem estaacute se remetendo a mais uma forma de realizaccedilatildeo da phyacutesis
O mundo eacute uma porccedilatildeo circunscrita do universo compreendendo astros e terra e todas as coisas visiacuteveis destacado do infinito tem um periacutemetro redondo ou triangular ou de qualquer outra forma e termina num limite poroso ou denso em rotaccedilatildeo ou imoacutevel cuja dissoluccedilatildeo levaraacute agrave ruiacutena tudo que estaacute nele (DL X 88)43
O mundo eacute um ldquomegacorpordquo44 disperso pelo universo infinito meio a um nuacutemero
infinito de outros mundos Sendo constituiacutedo por outros corpos compostos mundos e por
aacutetomos e vazio estaacute sujeito a tanto ganhar elementos quanto perder Assim pode surgir
devido agrave agregaccedilatildeo de aacutetomos e corpos compostos e pode deixar de ser por desagregaccedilatildeo Em
suma eacute no mundo onde as coisas estatildeo
112 Necessidade e acaso
Ao falarmos de como Epicuro pensa os modos de realizaccedilatildeo da phyacutesis (tograve pan soacutemata
kaigrave kenoacuten synkriacuteseis e koacutesmos) procuramos destacar como o movimento dos aacutetomos
determinado pelo peso (baacuterous) e pela declinaccedilatildeo (parecircnklisis)45 eacute indispensaacutevel para
conceber os processos de geraccedilatildeo e corrupccedilatildeo dos corpos compostos e dos mundos
42 τὰ ἄτομα τῶν σωμάτων καὶ μεστά ἐξ ὧν καὶ αἱ συγκρίσεις γίνονται καὶ εἰς ἃ διαλύονται 43 Κόσμος ἐστὶ περιοχή τις οὐρανοῦ ἄστρα τε καὶ γῆν καὶ πάντα τὰ φαινόμενα περιέχουσα ἀποτομὴν ἔχουσα ἀπὸ τοῦ ἀπείρου καὶ [κατα]λήγουσα ἐν πέρατι ἢ ἀραιῷ ἢ πυκνῷ καὶ οὗ λυομένου πάντα τὰ ἐν αὐτῷ σύγχυσιν λήψεται [καὶ λήγουσαν] ἢ ἐν περιαγομένῳ ἢ ἐν στάσιν ἔχοντι καὶ στρογγύλην ἢ τρίγωνον ἢ οἵαν δήποτε περιγραφήνmiddot πανταχῶς γὰρ ἐνδέχεταιmiddot 44 SILVA Markus Termos Filosoacuteficos de Epicuro Coimbra Coimbra University Press 2018 p 48 45 Vale lembrar que o parecircnklisis natildeo eacute um termo encontrado nos textos que a tradiccedilatildeo nos legou de Epicuro mas a doxografia nos permite ver nessa definiccedilatildeo uma tese epicurista
33 Sublinhamos contudo que eacute a partir da noccedilatildeo de clinamen46 que o epicurismo explica como
os aacutetomoi desviam de sua trajetoacuteria e se chocam com outros dando origem no plano fiacutesico a
agregados tanto quanto podem desfazer os jaacute existentes E isso se daacute por meio de choques ou
encontros47 (apaacutentesis) em uma dinacircmica onde natildeo operam outras causas aleacutem das fiacutesicas
Esse desvio de rumo que se daacute ao acaso devido a um princiacutepio inerente ao proacuteprio aacutetomo vai
permitir compreender os fenocircmenos da natureza natildeo somente a partir de causas mecacircnicas
das quais natildeo se pode escapar Resulta daiacute a possibilidade de conceber os modos de realizaccedilatildeo
da phyacutesis a partir de uma relaccedilatildeo entre o que eacute inexoraacutevel e o que eacute contingente
Essa discussatildeo traz consigo duas noccedilotildees que vatildeo ser evocadas ao se pensar a
construccedilatildeo da conduta do saacutebio a necessidade (anaacutenke) e o acaso (tycheacute) Eacute considerando
uma reflexatildeo sobre esses aspectos que vai se buscar uma clareza quanto ao que concerne ao
homem mudar transformar quanto ao que ele pode evitar e o que ele deve buscar - e Epicuro
se refere a isso como o que ldquodepende de noacutesrdquo48 (parrsquohemacircs)49 Tambeacutem o sophoacutes deve ter o
discernimento para perceber aquilo que natildeo estaacute sob o seu alcance mudar o que ele natildeo pode
evitar circunstacircncias sobre as quais ele natildeo consegue intervir Assim tendo clara a percepccedilatildeo
sobre como opera a realidade eacute possiacutevel pensar a proacutepria realizaccedilatildeo meio ao que eacute inevitaacutevel
e ao que pode se fazer de outra maneira Afinal se ldquoalgumas coisas acontecem
necessariamente outras por acaso e outras dependem de noacutesrdquo (DL X 133)50 eacute preciso
entender a relaccedilatildeo entre a necessidade (anaacutenke) e o acaso (tycheacute) operando na natureza e
definindo os modos de realizaccedilatildeo da phyacutesis para poder postular a liberdade possiacutevel e
necessaacuteria para definir e praticar um modo de vida voltado para a realizaccedilatildeo de um modo
autecircntico de existir
A noccedilatildeo de anaacutenke no atomismo estaacute relacionada com a ldquonecessidade mecacircnica das
causas puramente fiacutesicas que operam sem finalidade (teacutelos)rdquo (SILVA 2003 p 36) Nos textos
de Epicuro anaacutenke se remete para a ldquonecessidade de realizaccedilatildeo de uma natureza particular
(corpo ou mundo) segundo seu modo proacuteprio de ser isto eacute ser por natureza eacute ser por
46 Essa referecircncia ao parecircnklisis eacute apresentada por Lucreacutecio no poema Da Natureza Ver nota 34 deste capiacutetulo Vale destacar que o clinamen eacute uma indeterminaccedilatildeo Na cineacutetica epicurista se trata de uma propriedade incerta indeterminada que poderia estar relacionada a uma propriedade determinada como o movimento baacutesico dos aacutetomos 47 Idem 48 DL X 133 49 A noccedilatildeo de parrsquohemacircs pode ser pensada como fazendo referecircncia ao que estaacute ao ldquonosso poderrdquo cf BARBOSA Renato dos Santos A Noccedilatildeo de Parrsquohemacircs na Filosofia de Epicuro o que pode o homem Tese apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia UFRN 2019 Ainda natildeo publicada 50 γίνεσθαι ἃ μὲν κατrsquo ἀνάγκην ἃ δὲ ἀπὸ τύχης ἃ δὲ παρrsquo ἡμᾶς διὰ τὸ τὴν μὲν ἀνάγκην ἀνυπεύθυνον εἶναι τὴν δὲ τύχην ἄστατον ὁρᾶν τὸ δὲ παρrsquo ἡμᾶς ἀδέσποτον
34 necessidaderdquo (Idem) Em Epicuro isso diz respeito a como as coisas tem naturalmente que ser
e acontecer Dessa forma natildeo haacute uma compreensatildeo de anaacutenke como algo relativo ao que eacute
fatalista determinista ou que remete para alguma divindade capaz de definir destinos a seu
gosto
Contudo verificamos que essa tem sido uma interpretaccedilatildeo corrente Nesse vieacutes
postula-se a anaacutenke como riacutegido determinismo natural que se estenderia ateacute o campo da
decisatildeo e da atuaccedilatildeo humana Observamos essa tendecircncia por exemplo na tese de Karl Marx
onde ele discute as Diferenccedilas entre as Filosofias da Natureza em Demoacutecrito e Epicuro51
Nela Epicuro e Demoacutecrito satildeo contrastados e as diferenccedilas de suas proposiccedilotildees filosoacuteficas
acerca da phyacutesis satildeo ldquoexageradamenterdquo acentuadas enfatizando no campo eacutetico um
distanciamento entre eles em prol da filosofia epicurista
Demoacutecrito na visatildeo de Marx eacute reduzido a um ceacutetico e empiacuterico que considera a
natureza tatildeo somente do ponto de vista da necessidade Jaacute Epicuro eacute apresentado como um
filoacutesofo dogmaacutetico que centra sua visatildeo de mundo a partir da noccedilatildeo de um acaso libertador
Mas ldquoessas contradiccedilotildees parecem encerrar um absurdo Eacute difiacutecil pensar que esses dois
homens que se opotildee em tudo defendam a mesma doutrina E todavia aparentemente
acham-se relacionados entre sirdquo avalia Pessanha52 Assim se a natureza eacute regida pela anaacutenke
que estabelece um riacutegido mecanismo e um determinismo extensivo tanto agrave phyacutesis e quanto agrave
anthropophyacutesis como pensar valores e modelos de conduta para o homem Como diante
daquilo que parece derrogar a possibilidade de liberdade ele pode julgar e escolher o que lhe
cabe Admitir apenas um princiacutepio gerador do movimento dos aacutetomos pensando-os com
regidos apenas por leis mecacircnicas implica em enredar o homem em um encadeamento de
eventos do qual ele natildeo poderia se desviar
Mas para aleacutem desse enquadramento o que Epicuro postula eacute que a anaacutenke deve ser
entendida com relaccedilatildeo ao modo de ser dos corpos e dos mundos que satildeo o que satildeo por
natureza ou seja por necessidade Mas essa necessidade natildeo se estende ao campo eacutetico daiacute
ele dizer que ldquocoisa maacute eacute a necessidaderdquo quando projetada ao campo do agir humano ldquomas
natildeo haacute necessidade nenhuma de viver com necessidaderdquo (SV 9)53 porque a anankeacute natildeo se
contrapotildee agrave liberdade que caracteriza o eacutethos do homem O sophoacutes sabe que algumas coisas
acontecem por necessidade outras por acaso mas tambeacutem haacute o que lhe compete54
51 Karl Marx Op Cit 52 Joseacute Ameacuterico Motta Pessanha em texto introdutoacuterio agrave tese de Marx (Op Cit) p 7 53 Κακὸν ἀνάγκη ἀλλrsquo οὐδεμία ἀνάγκη ζῆν μετὰ ἀνάγκης 54 DL X 133
35 Outra noccedilatildeo importante para pensar a conduta do saacutebio eacute estabelecida em torno do
termo tyacuteche Segundo definiccedilatildeo de Bailly55 o vocaacutebulo τύχη se refere ldquoao que o homem
espera por decisatildeo dos deusesrdquo Isso implica em colocaacute-lo na condiccedilatildeo de quem vecirc a proacutepria
realizaccedilatildeo como decorrente da sorte ou do acaso Uma vez que depende da deusa Tyacuteche
definir a fortuna ou os infortuacutenios que cabe a cada um isso lhe tira a possibilidade de ser o
protagonista de sua existecircncia
Aleacutem disso admitir esse tipo de forccedila divina agindo na natureza deixa margem para a
apreensatildeo e o medo quanto ao que haacute de acontecer Como nada poderia ser previsto o homem
viveria na anguacutestia de poder a qualquer momento se deparar com desventuras Ora ldquopor
causa da incerteza sua vida inteira seraacute levada agrave confusatildeo e jogada por terrardquo (SV 57)56 e isso
vai contra agrave necessidade de viver tranquilamente postulada por Epicuro
Mas na filosofia epicurista natildeo estaacute em questatildeo a accedilatildeo dos deuses mas das forccedilas que
naturalmente operam na phyacutesis E nesse sentido tyacuteche vai ser entendida como o acaso o
fortuito o que escapa agrave necessidade E isso estaacute relacionado agrave ldquonegaccedilatildeo de toda finalidade que
poderia existir no movimento necessaacuterio de constituiccedilatildeo e desconstituiccedilatildeo dos corpos e
mundosrdquo (SILVA 1993 p 36) Assim a ocorrecircncia do acaso nos fenocircmenos da natureza
restringe limita a anaacutenke permitindo conceber a phyacutesis desprovida de uma orientaccedilatildeo
teleoloacutegica e o homem sem a imposiccedilatildeo do destino O acaso existe como fenocircmeno fiacutesico
tanto quando a necessidade natildeo havendo nenhum aspecto miacutetico ou religioso determinando
os modos deles atuarem na natureza Eles se relacionam aos mecanismos de produccedilatildeo das
coisas agrave pluralidade dos mundos e agrave variedade dos corpos ou seja integram e permitem
compreender fenomenicamente os modos de realizaccedilatildeo da phyacutesis
Nesse sentido quando projetamos as noccedilotildees de anaacutenke e tyacuteche para o acircmbito da eacutetica
epicurista podemos preconizar que Epicuro quer ao defender a possibilidade de acaso na
phyacutesis aleacutem de circunscrever as causa do movimento no campo do imanente advogar um
niacutevel de liberdade para a deliberaccedilatildeo humana na anthropophyacutesis Afinal se a necessidade ao
evocar o sentido de destino ou divindade que define a trajetoacuteria de vida do homem prevalece
na natureza entatildeo ele estaria preso a uma teia de acontecimentos inexoraacuteveis diante dos quais
ele natildeo conseguiria exercitar sua vontade Nesse sentido natildeo caberia imputar a ele a
responsabilidade por suas accedilotildees uma vez que o homem natildeo poderia por si mesmo definir
sua maneira de viver Do mesmo modo se o acaso somente ele operasse na natureza o medo
55 Anatole Bailly Op Cit 56 εἰ γὰρ προήσεται τὸν φίλον ὁ βίος αὐτοῦ πᾶς διrsquo ἀπιστίαν συγχυθήσεται καὶ ἀνακεχαιτισμένος ἔσται
36 e a incerteza do que estaria por vir mitigaria a possibilidade de pensar uma vida tranquila
Assim ldquoeacute evidente que a necessidade gera a irresponsabilidade e que o acaso eacute inconstanterdquo
(DL X 133)57
De sorte que para Epicuro a natureza eacute regida a partir de uma relaccedilatildeo anaacutenketychegrave
onde o que acontece mesmo o acaso acontece por necessidade e portanto sem uma
finalidade (teacutelos) Ou seja os corpos satildeo gerados se desenvolvem e se desagregam por
necessidade Mas por necessidade o acaso tambeacutem interfere nessa natureza trazendo o
fortuito o contingencial para a realidade e permitindo explicar a pluralidade dos
acontecimentos E assim como a phyacutesis natildeo eacute acontecimento tatildeo somente da necessidade o
homem natildeo estaacute sempre enredado em uma teia fatalista da qual ele natildeo possa escapar No
campo eacutetico o acaso vai remeter agrave possibilidade de autodeterminaccedilatildeo do sophoacutes que pode
por si mesmo por analogia ao aacutetomo desviar sua trajetoacuteria definir seu modo de viver e
assumir as responsabilidades por suas escolhas Afinal
Se em bom materialismo filosoacutefico nada nasce do nada a liberdade que noacutes experimentamos como todos os seres vivos deve certamente traduzir em nossa escala uma propriedade realmente presente nos aacutetomos a declinaccedilatildeo seria precisamente essa propriedade (SALEM 1993 p 38)
E com base nessa relaccedilatildeo anaacutenketychegrave que se estabelece uma inter-relaccedilatildeo
fundamental entre a physiologiacutea e o eacutethos na medida em que permite pensar um
espelhamento no modo de viver do saacutebio daquilo que se estaacute inteligindo a partir de uma
reflexatildeo sobre as forccedilas que operam na natureza Note-se que eacute em torno da noccedilatildeo de acaso
que Karl Marx58 vai tematizar a liberdade humana Para ele da mesma forma que a phyacutesis natildeo
estaacute sujeita somente agrave necessidade a natureza humana tambeacutem natildeo E isso se estende para o
campo social onde haacute portanto a possibilidade do homem escapar a qualquer determinismo
pois ldquoas coisas que dependem de noacutes satildeo livremente escolhidas e satildeo naturalmente
acompanhadas de censura e louvorrdquo (DL X 133)59
Como resultado o saacutebio precisa meditar sobre toda essa relaccedilatildeo entre acaso e
necessidade e sobre os modos de ser da phyacutesis uma vez que isso diz respeito agrave sua proacutepria
realizaccedilatildeo Ao tentar explicar como a natureza se realiza e que forccedilas operam nesse processo
Epicuro o faz dentro dos limites de uma compreensatildeo sensiacutevel da realidade ldquoNa criaccedilatildeo dos
compostos atocircmicos na formaccedilatildeo de mundos complexos natildeo haacute intervenccedilatildeo nem da
57 διὰ τὸ τὴν μὲν ἀνάγκην ἀνυπεύθυνον εἶναι τὴν δὲ τύχην ἄστατον ὁρᾶν 58 Op Cit 59 τὸ δὲ παρrsquo ἡμᾶς ἀδέσποτον ᾧ καὶ τὸ μεμπτὸν καὶ τὸ ἐναντίον παρακολουθεῖν πέφυκεν
37 Divindade na forma de Providecircncia nem tampouco a Necessidade Natildeo haacute teleologia
coacutesmica neste sistema atocircmicordquo (GUAL 1985 p 113)
113 A Anthropophyacutesis (acerca da natureza humana)
O conhecimento acerca da phyacutesis e seus modos de ser vai ser fundamental para o
homem pensar as relaccedilotildees que ele estabelece no mundo e com a natureza Se Epicuro natildeo
recorre ao divino para pensar a phyacutesis tambeacutem natildeo o faz com relaccedilatildeo agrave anthropophyacutesis Esta
eacute concebida a partir do mesmo modelo explicativo que tem o aacutetomo (aacutetomos) como princiacutepio
(archeacute) de toda realidade e como elemento corpoacutereo (stoicheiacuteon) (portanto dotado de
qualidades como forma e peso) que vai constituir - devido aos movimentos aos choques agraves
agregaccedilotildees que resultam em corpos mundos - a realidade fenomecircnica Por este prisma o
homem eacute pensado como tendo uma natureza corpoacuterea como tudo mais que faz parte da
phyacutesis Ele eacute ser da natureza um corpo composto ou melhor um organismo (athroiacutesma) que
como outros tambeacutem tem seu modo de realizaccedilatildeo
Pelas definiccedilotildees que jaacute apresentamos podemos retomar uma que tambeacutem nos permite
falar do homem corpo (socircma) Esse termo tanto se refere a um corpo isolado (aacutetomos) quanto
a um agregado de aacutetomos e vazio Nessa acepccedilatildeo nos remetemos para o que vem a ser pela
agregaccedilatildeo e deixa de ser pela desagregaccedilatildeo de suas partes constitutivas Com isso o homem
enquanto - corpo-mateacuteria - estaacute sujeito agraves mudanccedilas advindas pelo tempo pelo movimento
pela relaccedilatildeo anaacutenketychegrave
Em outro sentido enquanto organismo vivo ele eacute pensado por Epicuro por meio do
termo sarkoacutes que etimologicamente como esclarece Bailly60 se refere agrave carne humana e dos
animais Assim o corpo-mateacuteria eacute concebido como corpo-carne quando pensamos nas
interaccedilotildees que o homem estabelece com o mundo Eacute esse sentido que Epicuro o usa para falar
da capacidade de sentir as coisas Eacute pelo sarkoacutes que as sensaccedilotildees da realidade fenomecircnica satildeo
percebidas Na Sentenccedila Vaticana 4 percebemos a indicaccedilatildeo desse papel do corpo-carne para
sentir as impressotildees que o meio coloca diante dele Ao falar da dor que pode incidir sobre o
homem e lhe causar sofrimento diz que ldquoaquela que perdura na carne (sarkiacute) tem um
dolorimento brandordquo61 Eacute o corpo quem recebe as impressotildees sensiacuteveis do mundo que vatildeo
servir ao pensamento para estabelecer um conhecimento (gnoacutesis) para fundamentar o modo de
60 Anatole Bailly Op Cit 61 αἱ δὲ πολυχρόνιοι τῶν ἀρρωστιῶν πλεονάζον ἔχουσι τὸ ἡδόμενον ἐν τῇ σαρκὶ ἤπερ τὸ ἀλγοῦν
38 viver do saacutebio Eacute a partir dessa compreensatildeo que vai se constituir uma relaccedilatildeo entre o corpo e
a sabedoria posto ser por meio dele que um saber eacute pensado e direcionado para estabelecer
um eacutethos de acordo com a natureza voltado para a autonomia e o equiliacutebrio como veremos
no item 13 deste capiacutetulo
Haacute tambeacutem a possibilidade de se referir ao homem como um athroiacutesma que eacute nas
palavras de Bailly62 um agregado uma coesatildeo Embora o termo possa ser usado para se
remeter a qualquer conjunto atocircmico existente na natureza o uso que Epicuro faz dessa
palavra evoca o sentido de organismo O homem seria entatildeo um corpo-organismo cujas
funccedilotildees vitais se voltam para o equiliacutebrio para o bem-estar para a sauacutede O corpo
desequilibrado tende a enfraquecer adoecer e morrer (se desagregar) Eacute a esse corpo-
organismo que Epicuro se refere quando afirma que ldquoa voz da carne eacute natildeo ter fome natildeo ter
sede e natildeo ter friordquo (SV 33)63 uma vez que ele busca satisfazer suas necessidades
fundamentais
Mas compreender o corop como athroiacutesma Epicuro tambeacutem estaacute falando de um
corpo-organismo que reuacutene duas propriedades distintas mas complementares Uma diz
respeito a essa capacidade de sentir o mundo de perceber pela via da sensibilidade a
realidade que o rodeia como falamos anteriormente Mas paralelamente a essa capacidade de
perceber os fenocircmenos da phyacutesis haacute outra que tambeacutem faz parte desse organismo a de
imaginar de pensar de estabelecer - a partir dessas impressotildees sensiacuteveis - um conhecimento
acerca do mundo em que se vive A essa capacidade Epicuro relaciona a alma que ele define
nos seguintes termos no passo 63 da Carta a Heroacutedoto
() a alma eacute corpoacuterea e constituiacuteda de partiacuteculas sutis dispersas por todo o organismo extremamente parecida com um sopro consistente numa mistura de calor semelhante em muitos aspectos ao sopro e em outros ao calor Haacute ainda uma terceira parte que pela sutileza de suas partiacuteculas difere consideravelmente das outras duas e por isso estaacute em contato mais iacutentimo com o resto do organismo (DL X 63)64
A partir dessa passagem evidenciamos que a corporeidade da alma eacute a afirmaccedilatildeo de
sua existecircncia (heacute psychegrave socircmaacute esti) pois se ela natildeo fosse corpoacuterea65 ldquoela natildeo existiria porque
incorpoacutereo soacute o vaziordquo (SILVA 2003 p 39) Disso resulta que mesmo sendo composta por
62 Anatole Bailly Op Cit 63 Σαρκὸς φωνὴ τὸ μὴ πεινῆν τὸ μὴ διψῆν τὸ μὴ ῥιγοῦνmiddot 64 ἡ ψυχὴ σῶμά ἐστι λεπτομερὲς παρrsquo ὅλον τὸ ἄθροισμα παρεσπαρμένον προσεμφερέστατον δὲ πνεύματι θερμοῦ τινα κρᾶσιν ἔχοντι καὶ πῇ μὲν τούτῳ προσεμφερές πῇ δὲ τούτῳmiddot ἔστι δέ τι μέρος πολλὴν παραλλαγὴν εἰληφὸς τῇ λεπτομερείᾳ καὶ αὐτῶν τούτων συμπαθὲς δὲ τούτῳ μᾶλλον καὶ τῷ λοιπῷ ἀθροίσματιmiddot 65 Embora o vazio natildeo seja corpoacutereo ele tem existecircncia ontoloacutegica Eacute preciso admitir que ele existe para poder postular o movimento dos aacutetomos
39 aacutetomos mais sutis (leptomeregraves) eacute phyacutesis eacute corpo dentro de outro corpo e ambos vecircm a ser e
deixam de ser pois estatildeo sujeitos aos fatores que tanto levam agrave geraccedilatildeo quanto agrave
decomposiccedilatildeo ou melhor agrave desagregaccedilatildeo Se essas partiacuteculas satildeo mais sutis mais tecircnues
mais velozes do que aquelas formadoras do corpo-carne isso permite que elas estejam
espalhadas e em movimento por todo o organismo permitindo captar as sensaccedilotildees que
chegam ateacute o athroiacutesma Pois ldquonatildeo podemos pensar na alma como senciente a natildeo ser que ela
esteja nesse todo composto e se mova com esses movimentosrdquo (DL X 66)66 Portanto nem a
alma sente sem estar contida no corpo-carne nem este sem ela Eacute o organismo ou seja essa
inter-relaccedilatildeo que permite agrave alma ter a causa da sensaccedilatildeo e agrave carne participar dessa faculdade
de sentir
Contudo dizer que a alma eacute formada por aacutetomos eacute insuficiente para explicar o que ela
eacute em um sentido mais especiacutefico Novamente precisamos aqui enfatizar as lacunas sobre esse
tema nos poucos textos remanescentes de Epicuro Assim temos que extrair das analogias
apresentadas no passo 63 mais informaccedilotildees Nela a alma eacute comparada a ldquoum sopro
consistente numa mistura de calorrdquo Temos aiacute dois termos que nos ajudam nessa
compreensatildeo pois tanto o sopro (tograve pneucircma) quanto o calor (tograve thermoacuten) nos remetem para
elementos ou forccedilas que existem na natureza enfatizando ainda mais a compreensatildeo da
fisicalidade da alma Nesse sentido o sopro (sugerindo um princiacutepio de movimento) e o calor
(nos remetendo para um princiacutepio de vitalidade) nos indicam que a alma tem sua archeacute e seu
modo de ser inscritos na proacutepria phyacutesis
Essa comparaccedilatildeo a elementos que se dispersam se dissipam permite entender
tambeacutem porque Epicuro afirma que a alma tem uma parte espalhada por todo o corpo como o
calor estaacute disseminado da cabeccedila aos peacutes Seria essa a parte irracional (agravelogon) da psycheacute que
recebe as sensaccedilotildees que chegam pelo sarkoacutes E aleacutem dessa haveria outra localizada no peito
(thoacuterax) e que seria responsaacutevel pela parte racional (logikoacuten) como testemunha a seguinte
passagem
A alma eacute composta de aacutetomos extremamente lisos e arredondados muito diferentes dos aacutetomos do fogo que a parte esparsa por todo o resto do corpo eacute irracional enquanto a parte racional reside no peito como podemos perceber claramente em nossos temores e em nossa alegria (DL X 66)67
Aleacutem desses dois aspectos da alma outro eacute apresentado para completar a definiccedilatildeo
66 οὐ γὰρ οἷόν τε νοεῖν αὐτὸ αἰσθανόμενον μὴ ἐν τούτῳ τῷ συστήματι καὶ ταῖς κινήσεσι ταύταις χρώμενον 67 ἐξ ἀτόμων αὐτὴν συγκεῖσθαι λειοτάτων καὶ στρογγυλωτάτων πολλῷ τινι διαφερουσῶν τῶν τοῦ πυρόςmiddot καὶ τὸ μέν τι ἄλογον αὐτῆς ὃ τῷ λοιπῷ παρεσπάρθαι σώματιmiddot τὸ δὲ λογικὸν ἐν τῷ θώρακι ὡς δῆλον ἔκ τε τῶν φόβων καὶ τῆς χαρᾶς
40 Mas natildeo se encontra na natureza nenhuma comparaccedilatildeo que permita nomeaacute-lo Daiacute porque o
terceiro constituinte Epicuro chama de sem-nome (akatonocircmastom) Trata-se da parte que
ldquogoverna particularmente as operaccedilotildees intelectuais da almardquo (SALEM 1993 15) partindo
das impressotildees sensiacuteveis (proacutelepseis) para estabelecer as projeccedilotildees (phantastikai epibolai tecircs
dianoiacuteas) que permitem pensar e expor um conhecimento acerca da realidade Daiacute se dizer
que no epicurismo o corpo (sarkoacutes mais psycheacute) eacute fundamental para conhecer ou desvelar a
phyacutesis Aleacutem disso esse aspecto permite localizar na alma o iniacutecio da accedilatildeo da decisatildeo da
deliberaccedilatildeo para o agir Eacute em suma o que Lucreacutecio definiu como ldquoa proacutepria alma de toda
almardquo (Lucr III 274)68
Diante disso eacute possiacutevel falar tambeacutem da necessidade de estabelecer um cuidado com o
athroiacutesma dada a interaccedilatildeo orgacircnica e constante entre corpo-alma e corpo-carne Pois se
verifica que por um lado a psycheacute age sobre o sarkoacutes ldquoquando a vemos impelir os membros
arrebatar o corpo ao sono demudar o rosto reger e dirigir todo o corpordquo (Lucr III 162-4)69
percebe-se por outro que o saacuterkos sente as afecccedilotildees (paacutethos) que acometem a psycheacute que
ldquosofre com o corpo e com o corpo sente em noacutesrdquo (Lucr III 168-9)70 Dessa forma o que
desequilibra um adoece o outro E isso vai ser pensado ao se estabelecer uma filosofia voltada
para conduzir o homem a uma vida feliz afinal natildeo se pode gozar de ataraxiacutea (ausecircncia de
perturbaccedilatildeo) e de aponiacutea (ausecircncia de dor) se
Quando o espiacuterito eacute abalado por um medo violento vemos que toda a alma sente o mesmo pelos membros e que por todo o corpo aparecem suores e palidez a liacutengua se entaramela a voz se prende os olhos se obscurecem os ouvidos ressoam os membros desfalecem finalmente vemos que muitas vezes caem os homens pelo terror do espiacuterito (Lucr III 150-8)71
Pois bem Antes de fazer esse panorama a respeito do que Epicuro havia postulado a
respeito de uma anthropophyacutesis haviacuteamos questionado se o modelo explicativo que ele
aplicou para estabelecer um entendimento a respeito da phyacutesis seria suficiente para falar do
homem e do seu sentido de realizaccedilatildeo Ora a partir do que foi exposto destacamos que todo o
trabalho de compreensatildeo da anthropophyacutesis feito por Epicuro e apresentado na Carta a
Heroacutedoto se daacute por meio de relaccedilotildees explicaccedilotildees analogias que tecircm a realidade fenomecircnica
por referecircncia e fonte de conhecimento Assim a physiologiacutea nos remete para um exerciacutecio
filosoacutefico que visa fazer o homem se identificar com a phyacutesis Isso significa que eacute nela que ele
68 LUCREacuteCIO Da Natureza Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 (Os Pensadores) 69 Idem 70 Ibidem 71 Ibidem
41 deve buscar as respostas necessaacuterias para compreender o sentido de sua realizaccedilatildeo e poder
definir um modo de viver que o leve a alcanccedilar essa finalidade
Natildeo por acaso Epicuro faz um retorno agrave filosofia preacute-socraacutetica retomando o
pensamento atomista de Demoacutecrito e Leucipo para estabelecer uma compreensatildeo de mundo
fundamentada na imanecircncia um entendimento da vida a partir das experiecircncias que ela traz
consigo Trata-se de definir um conhecimento possiacutevel e que possa guiar o homem para que
ele nem seja conduzido pelas opiniotildees vazias (kenaigrave doacutexai) nem pelos mitos (myacutethoi) nem
pelas concepccedilotildees que extrapolam o campo do sensiacutevel projetando finalidades para aleacutem do
que estaacute na natureza
Mas essa relaccedilatildeo ou melhor essa extensatildeo estabelecida no epicurismo entre
anthropophyacutesis e phyacutesis natildeo significa que o devir do homem eacute definido unicamente em
termos de fisicalidade o aacutenthropos natildeo eacute pensado como meramente assujeitado pelas malhas
do acaso e da necessidade Ao considerarmos os modos de ser da phyacutesis verificamos que
devido agrave anaacutenke as coisas acontecem como naturalmente devem ser e a tyacuteche inscreve na
natureza o fortuito podendo alterar o quando e a forma das coisas acontecerem Mas no
campo da anthropophyacutesis eacute preciso considerar que meio a essa dinacircmica haacute ainda aquilo que
pode o homem aquilo que ele pode fazer por si mesmo Porque ldquoeacute vatildeo exigir dos deuses
aquilo que algueacutem pode provir por si proacutepriordquo72 pois
O homem [dotado de razatildeo e da faculdade de prever] o que haacute de vir [capaz de viver] feliz agrave condiccedilatildeo que ele se ligue agrave [virtude por] ela mesma e tenha boas [disposiccedilotildees] (Œno Fr 21 IV)73
Se como foi dito a alma tem uma parte que pensa conhece e delibera entatildeo a
phroacutenesis (prudecircncia vontade esclarecida)74 e o logismoacutes (caacutelculo racional)75 satildeo os
instrumentos que ela tem de esclarecimento Isso permite que orientada por essa capacidade
de pensar ela possa definir um modo de viver e desenvolver a disposiccedilatildeo para praticar as
virtudes que a levem a experimentar sua realizaccedilatildeo
Verificamos que essa aproximaccedilatildeo homemnatureza estabelecida a partir da leitura
physioloacutegica da realidade ao mesmo tempo em que caracteriza a anthropophyacutesis tambeacutem
72 Μάταιόν ἐστι παρὰ θεῶν αἰτεῖσθαι ἅ τις ἑαυτῷ χορηγῆσαι ἱκανός ἐστι 73 Traduccedilatildeo a partir do francecircs La Philosophie Epicurienne sur Pierre Op Cit p 36 74 As expressotildees ldquovontade refletidardquo (volonteacute reacutefleacutechie) p 224 246 ldquovontade livrerdquo (volonteacute libre) p 239 e ldquovontade esclarecidardquo (volonteacute eacuteclaireacutee) p 248 satildeo empregadas por Eacutemile Breacutehier para se referir agrave vontade submetida agrave razatildeo BREacuteHIER Eacutemile Histoire de la Philosophie V I Paris Librairie Feacutelix Alcan 1928 Ediccedilatildeo eletrocircnica disponiacutevel em httpclassiquesuqaccaclassiquesbrehier_emileHistoire_de_philo_t1brephi_1pdf Acesso em 15 de outubro de 2019 75 Idem
42 remete para uma contiguidade entre a physiologiacutea e a eacutetica Isso porque a compreensatildeo da
natureza possibilita fundamentar uma perspectiva libertadora para o homem na medida em
que permite estabelecer um modo de pensar e de viver distanciado das opiniotildees infundadas
das concepccedilotildees apartadas do referencial sensiacutevel E isso pode levar a fantasiar a respeito do
porvir a temer aquilo que eacute natural a desejar para aleacutem do necessaacuterio para uma vida feliz
(makariacuteos zecircn) Em outros termos a ignoracircncia sobre a phyacutesis conduz ao engano (hamarthiacutea)
e agrave desmesura (hyacutebris) Eacute preciso investigar a natureza e com isso estabelecer os limites para
os desejos e exercitar a liberdade necessaacuteria para fazer as escolhas e recusas necessaacuterias agrave
proacutepria realizaccedilatildeo Por meio da physiologiacutea o saacutebio se daacute conta de que ldquoa tranquilidade
perfeita da alma consiste em estar livre de todos esses terrores e temores e em relembrar tenaz
e constantemente a doutrina em suas linhas gerais e fundamentaisrdquo (DL X 82)76
Ao olhar para si mesmo como um aspecto da realizaccedilatildeo da phyacutesis despindo-se de
qualquer concepccedilatildeo demiuacutergica eacute possiacutevel pensar a liberdade como disposiccedilatildeo para por si
mesmo construir o proacuteprio destino Talvez aiacute esteja um aspecto antropoloacutegico importante no
pensamento epicurista Pois o homem natildeo sendo gerado por deuses nem mero produto do
acaso nem da necessidade eacute ser da natureza que como resultado daquilo que pode o ser eacute
capaz de pensar e deliberar a partir de si mesmo e do conhecimento que tem para estabelecer
um modo de ser e de agir no mundo visando a autorrealizaccedilatildeo Dito de outra forma ele eacute
pensado como ser inacabado de possibilidades que pode exercitar uma artesania sobre si
mesmo para desenhar-se conforme o sentido de realizaccedilatildeo que consegue inteligir a partir da
investigaccedilatildeo da natureza Por isso Epicuro busca destituir o homem da ideia de providecircncia e
lhe instila a compreensatildeo de que cabe a ele a possibilidade de escolher os rumos para
conquistar sua felicidade Para tanto eacute preciso desatar-se das crenccedilas que levam ao medo e ao
assenhoramento da vontade O entendimento acerca da phyacutesis pretende tanto lhe permitir isso
quanto fazecirc-lo vislumbrar que eacute possiacutevel realizar uma vida autecircntica Saacutebio eacute pois quem se
vale desse saber acerca da natureza e por si mesmo pensa a proacutepria existecircncia como deve
viver Eacute na phyacutesis que ele vecirc um paradigma que o guia no sentido de conferir mais liberdade e
naturalidade ao seu modo de viver Afinal como afirma Epicuro na Carta a Piacutetocles a ldquovida
natildeo precisa de irracionalidade nem de opiniotildees vatildes precisa eacute que vivamos sem perturbaccedilatildeordquo
(DL X 87)77
76 ἡ δὲ ἀταραξία τῷ τούτων πάντων ἀπολελύσθαι καὶ συνεχῆ μνήμην ἔχειν τῶν ὅλων καὶ κυριωτάτων 77 οὐ γὰρ ἰδιολογίας καὶ κενῆς δόξης ὁ βίος ἡμῶν ἔχει χρείαν ἀλλὰ τοῦ ἀθορύβως ἡμᾶς ζῆν
43 12 A vida katagrave phyacutesin
A transiccedilatildeo do seacuteculo IVndashIII aC foi marcada por uma problemaacutetica que mobilizou a
atenccedilatildeo de ciacutenicos estoicos cirenaicos e epicuristas Uma discussatildeo que se ampliou a partir
do seacuteculo V aC quando os sofistas repercutiam um debate em torno da diferenccedila e oposiccedilatildeo
entre natureza (phyacutesis) e convenccedilatildeo (noacutemos) Eacute preciso lembrar contudo que Demoacutecrito jaacute
teria em seu tempo questionado se as sensaccedilotildees existem por natureza ou por convenccedilatildeo
ldquoPor convenccedilatildeo (noacutemoi) existe o frio por convenccedilatildeo existe o calor mas em verdade existem
apenas os aacutetomos e o vaziordquo (DL IX 72)
Um aspecto desse questionamento se daacute relacionando a noccedilatildeo de noacutemos com o que eacute
percebido pelos sentidos E aiacute se tem um problema pois o que adveacutem da percepccedilatildeo natildeo eacute
fiaacutevel afinal os sentidos podem conduzir ao engano E diante da dinacircmica da natureza onde
as coisas estatildeo em constante movimento o conhecimento apenas poderia ser ancorado em
algo imutaacutevel perene e isso diz respeito aos aacutetomos e vazio Contrariamente a essa maneira
de pensar Epicuro vai colocar as sensaccedilotildees como fundamentais para o desvelamento da
natureza e portanto indispensaacuteveis para o processo de conhecer algo Disso trataremos no
item 13 desse capiacutetulo
Mas natildeo foi a partir dessa perspectiva que a oposiccedilatildeo noacutemosphyacutesis reapareceu nas
discussotildees filosoacuteficas do helenismo A questatildeo que perpassa essa relaccedilatildeo antiteacutetica se
configurou quando noacutemos passou a se referir ao que eacute convencionado pelo homem em
oposiccedilatildeo ao que eacute natural (phyacutesis) Encontramos reflexos dessa polecircmica no Craacutetilo de
Platatildeo onde essas duas noccedilotildees satildeo excludentes entre si O que existiria por noacutemos natildeo
existiria por natureza e vice-versa
Sumariamente lembramos que noacutemos se refere agravequilo que eacute estabelecido pelo loacutegos
(pensamento) e de acordo com Bailly78 se refere agrave opiniatildeo geral aos costumes ao habitual
Essas acepccedilotildees nos remetem para regras normas leis enfim ao que estaacute convencionado para
o exerciacutecio da vida social Em sendo assim natildeo satildeo definitivas permanentes nem
universalizaacuteveis posto natildeo se fundamentarem na natureza Tratar-se-ia de um ldquoacordordquo
estabelecido para que os homens pudessem viver em sociedade
Por outro lado phyacutesis eacute entendida como anterior a qualquer convenccedilatildeo ou definiccedilatildeo
que a ela eacute atribuiacuteda eacute o que se daacute por natureza Trata-se de pensaacute-la como referecircncia para
estabelecer um eacutethos uma justiccedila uma educaccedilatildeo uma linguagem ou seja o que eacute necessaacuterio
78 Anatole Bailly Op Cit
44 para tornar efetivas e harmoniosas as agregaccedilotildees entre os homens
Decorre disso que as escolas filosoacuteficas do helenismo passaram a participar desse
debate em torno da relaccedilatildeo noacutemosphyacutesis Isso porque cada uma por meio de suas
especificidades estava tentando definir de que maneira se realiza a sabedoria e por isso era
preciso dizer se o modo de vida do saacutebio (sophoacutes) devia ser de acordo com o noacutemos ou com a
phyacutesis Assim a discussatildeo era tratada em torno do conflito expresso entre o que resulta de se
viver de acordo com o convencionado socialmente e o que sucede de uma vida fundamentada
na phyacutesis Diante desse questionamento os ciacutenicos entendem que os seres da natureza natildeo
tecircm noacutemos eles satildeo em funccedilatildeo da naturalidade do seu ser79 Ao postular essa perspectiva eles
defendem que o homem tambeacutem possa agir conforme sua natureza proacutepria Viver em funccedilatildeo
do noacutemos seria esconder ou sufocar sua naturalidade com regras ou convenccedilotildees Eis porque
viver de acordo com a natureza (katagrave phyacutesin) eacute o modo de o homem poder realizar o sentido
de sua existecircncia Dessa forma defende-se que - pelo noacutemos pelas regras e valores
estabelecidos sem ancoragem na phyacutesis - ele se afasta dessa realizaccedilatildeo Com isso vive-se uma
artificialidade que o impede de experimentar a autenticidade de sua proacutepria existecircncia
criando para si mesmo o sofrimento e o alheamento da proacutepria vontade Essa premissa vai ser
defendida e praticada aleacutem dos ciacutenicos por estoicos ceacuteticos cirenaicos e epicuristas mas
cada um modulando esse entendimento em funccedilatildeo de suas finalidades filosoacuteficas o que vai
resultar em eacuteticas diferentes80
Um aspecto em comum entre essas escolas eacute que esse retorno agrave phyacutesis ou esse
movimento para conferir mais naturalidade ao modo de viver exige um esforccedilo pessoal um
trabalho sobre si mesmo que tem como ponto de partida uma indagaccedilatildeo como viver segundo
a natureza No pensamento epicuacutereo a resposta a esse questionamento nos remete para dois
aspectos principais os limites e a repleccedilatildeo
79 Desdobramentos dessa perspectiva podem ser verificados modernamente no Marquecircs de Sade Em Os 120 Dias de Sodoma (Coleccedilatildeo Peacuterolas Furiosas editora Iluminuras formato Kindle) por exemplo se lecirc ldquoRecebi essas inclinaccedilotildees na natureza e irritaacute-la-ia se a elas resistisserdquo (posiccedilatildeo 233) E tambeacutem ldquo() plenamente convencida de que todos os bens devem ser iguais na terra e que apenas a forccedila e a violecircncia se opotildeem a essa igualdade primeira lei da natureza ()rdquo (posiccedilatildeo 2935) 80 Destacamos que os ciacutenicos pensam que a vida kagraveta phyacutesin remete a uma volta agrave natureza em seu aspecto animal Vale lembrar que o termo ciacutenico vem de kynikoacutes se referindo ao catildeo ou a ele relativo Por sua vez os estoicos entendem que suportando as vicissitudes da vida se fortalece a naturalidade do proacuteprio ser
45 121 Nos limites da phyacutesis
Uma perspectiva importante para a compreensatildeo do que significa katagrave phyacutesin81 no
contexto do epicurismo diz respeito agrave necessidade de o saacutebio se ocupar em viver dentro dos
limites da natureza Mas que limites satildeo esses e como circunscrever nossa experiecircncia de
existir a eles Para entendermos esse ponto eacute preciso evocar uma assertiva de Epicuro Ele
afirma no passo 39 da Carta a Heroacutedoto que ldquoo todo sempre foi exatamente como eacute agora e
sempre seraacute assim Entatildeo nada existe em que ele poderia transformar-se porque aleacutem do
todo nada haacute que possa penetrar nele e provocar transformaccedilatildeordquo (DL X 39)82 Com isso ele
quer dizer que a natureza - tomada em sua totalidade ndash eacute imutaacutevel Ela natildeo seraacute nem mais nem
menos do que sempre foi E uma vez que nada se transforma em nada e nem nada se cria a
partir do nada o que existe e o que deixa de existir eacute o resultado do movimento de agregaccedilatildeo
e desagregaccedilatildeo dos corpos (ou geraccedilatildeo e corrupccedilatildeo) que constituem a natureza Eacute nesse
enquadramento que vai ser postulado que as coisas da existecircncia pertencem ao campo do que
eacute constituiacutedo por aacutetomos se movendo no vazio ou dos agrupamentos deles que formam
corpos e mundos Assim ele tambeacutem estaacute dizendo que a natureza nos remete exclusivamente
ao campo do sensiacutevel uma vez que os elementos constituintes da phyacutesis estatildeo ao alcance da
apreensatildeo de nossos sentidos ou - diante daquilo que escapa a percepccedilatildeo da nossa
sensibilidade - satildeo por meio de analogias entendidos dessa forma como eacute o caso da
compreensatildeo que se estabelece acerca do aacutetomo
Consequentemente Epicuro postula que a realidade eacute imanente e por isso o
pensamento deve se fundamentar no campo das experiecircncias sensiacuteveis para tentar falar das
coisas da vida Ter em conta esse aspecto ligado agrave noccedilatildeo de limite da natureza leva o
physiologoacutes (aquele que se dedica agrave investigaccedilatildeo da phyacutesis) a considerar que ldquoeacute verdadeiro
apenas aquilo que se percebe por meio dos sentidos ou se apreende por meio da menterdquo (DL
X 62)83 quando opera a partir de analogias fundadas na memoacuteria das impressotildees sensiacuteveis
Com isso ele estabelece um criteacuterio para o pensamento natildeo projetar nenhuma finalidade para
o homem que esteja aleacutem do que ele possa experimentar em sua vida E aqui se identifica
81 As expressotildees katagrave phyacutesin katagrave to teacutes phyacuteseos e hoacute teacutes phyacuteseos remetem para um mesmo sentido viver de acordo com a natureza Esse foi um lema de vaacuterias escolas filosoacuteficas do helenismo O estoico Zenatildeo teria sido o primeiro a fazer uso dessa expressatildeo para ldquodefinir o bem supremo como viver de acordo com a naturezardquo (DLVII 87) 82 Καὶ μὴν καὶ τὸ πᾶν ἀεὶ τοιοῦτον ἦν οἷον νῦν ἐστι καὶ ἀεὶ τοιοῦτον ἔσται οὐθὲν γάρ ἐστιν εἰς ὃ μεταβαλεῖ παρὰ γὰρ τὸ πᾶν οὐθέν ἐστιν ὃ ἂν εἰσελθὸν εἰς αὐτὸ τὴν μεταβολὴν ποιήσαιτο 83 ἐπεὶ τό γε θεωρούμενον πᾶν ἢ κατrsquo ἐπιβολὴν λαμβανόμενον τῇ διανοίᾳ ἀληθές ἐστι
46 uma relaccedilatildeo entre a compreensatildeo desse limite e o modo de viver do saacutebio pois ele vai
procurar deixar de se fiar em explicaccedilotildees que evocam a crenccedila na possibilidade de felicidade
humana - se projetando em mitos - para pensar o exerciacutecio de uma vida feliz (makariacuteos zecircn)
fundamentado na physiologiacutea O saacutebio compreende que estendendo para aleacutem da natureza as
explicaccedilotildees para os fenocircmenos inerentes agrave phyacutesis o homem se distancia da possibilidade de
experimentar o equiliacutebrio a alegria e o prazer Eacute consoante a esse prisma que o principal
responsaacutevel pela divulgaccedilatildeo do pensamento epicurista para a cultura romana o poeta e
filoacutesofo Tito Lucreacutecio vai nos falar
Ora eacute preciso que afugentem esse temor e estas trevas do espiacuterito natildeo os raios do Sol nem os dardos luacutecidos do dia mas o espetaacuteculo da natureza e as suas leis E para iniacutecio tomaremos como base que natildeo haacute coisa alguma que tenha jamais surgido do nada por qualquer accedilatildeo divina De fato o terror oprime todos os mortais apenas porque vecircem operar-se no ceacuteu e na terra muitas coisas de que natildeo podem de nenhum modo perceber as causas e cuja origem atribuem a um poder dos deuses (Lucr I 146-158)84
Perceba-se que por um lado Lucreacutecio estaacute se fererindo a um aspecto da natureza
relacionado agrave regularidade dos fenocircmenos por outro estaacute ecoando o sentido da filosofia de
Epicuro relaciona nesse trecho a necessidade de livrar o homem de perturbaccedilotildees atraveacutes do
conhecimento ldquoda natureza e as suas leisrdquo E isso decorre do entendimento de que para
Epicuro o estudo acerca da phyacutesis visa conduzir a uma maneira de ler a realidade que afaste
toda forma de obscurantismo que resulta de se tentar projetar o teacutelos da vida para fora dela
As causas para os fenocircmenos e as finalidades que satildeo inteligidas a partir da
investigaccedilatildeo dos modos de ser da natureza vatildeo ser observadas e postuladas dentro do campo
de realizaccedilatildeo da proacutepria phyacutesis esse eacute o limite que deve balizar o pensamento em seu
movimento de tentar fazer o desvelamento do mundo-realidade
Se considerarmos a exposiccedilatildeo de Jean Salem85 nos damos conta de que Epicuro ao
falar de limites emprega dois temos indistintamente peacuteras e hoacuteros Esse uso estaacute associado
agraves discussotildees sobre os prazeres e desejos e ldquoparticularmente quando a reflexatildeo orbita em
torno de questotildees de ordem eacuteticardquo (SALEM 1994 p 83) Mas tanto na Carta a Meneceu
84 Hunc igitur terrorem animi tenebrasque necessest non radii solis neque lucida tela diei discutiant sed naturae species ratioque Principium cuius hinc nobis exordia sumet nullam rem e nihilo gigni divinitus umquam Quippe ita formido mortalis continet omnis quod multa in terris fieri caeloque tuentur quorum operum causas nulla ratione videre possunt ac fieri divino numine rentur Quas ob res ubi viderimus nil posse creari de nihilo tum quod sequimur iam rectius inde perspiciemus et unde queat res quaeque creari et quo quaeque modo fiant opera sine divom 85 SALEM Jean Tel un Dieu parmi les Hommes Paris Vrin 1994
47 passo 13386 quanto na Maacutexima Capital 2587 se estabelece uma relaccedilatildeo entre peacuteras e teacutelos E
isso se daacute associando o que se apresenta como finalidade da natureza (teacutelos tecircs phyacuteseos) com
os limites dos desejos (tograve peacuteras tocircn epithymiocircn) Isso se explica porque somente
circunscrevendo os proacuteprios desejos aos limites ou finalidade da natureza eacute que o saacutebio realiza
seu modo de ser Mas Salem vai aleacutem nessa anaacutelise da noccedilatildeo de limite na filosofia epicurista e
apresenta cinco acepccedilotildees para esse termo O de limite como 1) demarcaccedilatildeo de um conjunto
finito (as formas atocircmicas) 2) teacutermino de um campo de variaccedilatildeo (se referindo agraves
caracteriacutesticas especiacuteficas de um ser natural) 3) medida do maacuteximo (tendo por exemplo o
limite de intensidade da dor) 4) medida do miacutenimo (como as medidas do miacutenimo percebido
pelo pensamento tal qual o aacutetomo) Contudo parece-nos importante acrescentar outra
acepccedilatildeo a esse rol aquela de limite como criteacuterio para pensar a phyacutesis no contexto de sua
imanecircncia como mostramos aqui E isso estaacute ligado agrave necessidade de suprimir a ignoracircncia
por meio da physiologiacutea impedindo de aceitar crenccedilas que levam agrave alma as perturbaccedilotildees e
desviam o modo de viver do homem da finalidade de uma vida saacutebia
A principal perturbaccedilatildeo das almas humanas tem sua origem na crenccedila de que esses corpos celestes satildeo bem-aventurados e indestrutiacuteveis e que ao mesmo tempo tecircm vontades e praticam accedilotildees () na expectativa e na apreensatildeo constante de algum castigo eterno sob a influecircncia dos mitos () essas pessoas sofrem perturbaccedilatildeo igual ou ainda mais intensa que a daquelas que nesses assuntos seguem opiniotildees vatildes (DL X 81)88
Nesses termos Epicuro nos remete ao direcionamento da physiologiacutea para trazer agrave
alma a calma na medida em que serve para purgaacute-la dos medos insurgidos de uma
compreensatildeo a respeito da phyacutesis que projeta para fora dela as explicaccedilotildees para fenocircmenos
que satildeo da ordem do natural Quando o homem passa a compreender o que eacute acontecimento
da natureza e a se reconhecer como tal portanto dentro desses limites ele tambeacutem pensa sua
realizaccedilatildeo tendo em vista a possibilidade de evitar a dor o medo e consequentemente
alcanccedilar a imperturbabilidade da alma (ataraxiacutea)
Por isso iniciamos esse trabalho traccedilando uma panoracircmica a respeito da concepccedilatildeo
epicurista sobre a natureza e seus modos de realizaccedilatildeo destacando aquilo que compotildee tanto a
86 τὸ τῆς φύσεως ἐπιλελογισμένου τέλος καὶ τὸ μὲν τῶν ἀγαθῶν πέρας ὡς ἔστιν εὐσυμπλήρωτόν τε καὶ εὐπόριστον διαλαμβάνοντος () 87 Εἰ μὴ παρὰ πάντα καιρὸν ἐπανοίσεις ἕκαστον τῶν πραττομένων ἐπὶ τὸ τέλος τῆς φύσεως ἀλλὰ προκαταστρέψεις εἴτε φυγὴν εἴτε δίωξιν ποιούμενος εἰς ἄλλο τι οὐκ ἔσονταί σοι τοῖςe () 88 ὅτι τάραχος ὁ κυριώτατος ταῖς ἀνθρωπίναις ψυχαῖς γίνεται ἐν τῷ ταὐτὰ μακάριά τε δοξάζειν ltεἶναιgt καὶ ἄφθαρτα καὶ ὑπεναντίας ἔχειν τούτοις ἅμα βουλήσεις καὶ πράξεις καὶ αἰτίας καὶ ἐν τῷ αἰώνιόν τι δεινὸν ἢ προσδοκᾶν ἢ ὑποπτεύειν κατὰ τοὺς μύθους εἴτε καὶ αὐτὴν τὴν ἀναισθησίαν τὴν ἐν τῷ τεθνάναι φοβουμένους ὥσπερ οὖσαν κατrsquo αὐτούς καὶ ἐν τῷ μὴ δόξαις ταῦτα πάσχειν ἀλλrsquo ἀλόγῳ γέ τινι παραστάσει ὅθεν μὴ ὁρίζοντας τὸ δεινὸν τὴν ἴσην ἢ καὶ ἐπιτεταμένην ταραχὴν λαμβάνειν τῷ εἰ καὶ ἐδόξαζον ταῦταmiddot
48 totalidade do universo quanto as menores partiacuteculas que o constituem e remetendo para uma
contiguidade entre phyacutesis e anthropophyacutesis Eacute a partir desse escopo que se busca compreender
o homem como ser da natureza mas que - por sua capacidade para pensar deliberar e agir
como consequecircncia do que cabe ao homem - pode viver de acordo com o que pensa E o
fizemos para ressaltar que a physiologiacutea eacute fundamental para (re)direcionar a opiniatildeo a partir
de um entendimento da phyacutesis que se daacute dentro dela mesma O mundo em que se vive no
qual estabelecemos as mais diversas relaccedilotildees e do qual recebemos as impressotildees que seratildeo a
fonte para todo o conhecimento pode ser explicado a partir do que ele mostra aos nossos
sentidos
Resulta disso que toda crenccedila estabelecida para aleacutem desses limites do sensiacutevel acaba
por distanciar o homem da natureza na medida em que projeta o sentido de sua realizaccedilatildeo
para um aleacutem-mundo para um aleacutem-vida Nessa perspectiva delineia-se um terreno propiacutecio
para postular a existecircncia de uma vontade maior definindo uma finalidade (teacutelos) para a
natureza e seus constituintes Como consequecircncia temos o homem enredado em uma teia de
acontecimentos onde o espaccedilo para definir sua conduta no mundo lhe eacute alheado Eacute a partir
desse ponto de vista que a physiologiacutea vai ser pensada como a ldquocondiccedilatildeo das condiccedilotildeesrdquo
(CONCHE 1997 p 40) para uma vida feliz Isso porque sem ela para estabelecer os limites
para o homem pensar sua condiccedilatildeo no mundo e como se conduzir na vida ele vecirc adiada ldquoa
alegria e a vida se consome pela demora e cada um de noacutes morre sem ter descansordquo (SV
14)89 Natildeo eacute concebiacutevel para Epicuro entatildeo que se fique agrave mercecirc de que um dia a felicidade
lhe chegue quando eacute possiacutevel por meio de uma atividade de investigar a realidade pensar
sobre ldquoa via seguida e a seguirrdquo (CONCHE idem) e transformar o agora
Eacute em funccedilatildeo desse limite para o pensar que se estabelece um conflito entre a proposta
epicurista fundamentada na physiologiacutea e a religiatildeo Isso porque o estudo da natureza na
medida em que exclui das explicaccedilotildees sobre as coisas do mundo qualquer intervenccedilatildeo divina
busca desconstruir a crenccedila segundo a qual os deuses intervecircm nas questotildees humanas Desse
modo o medo de que eles possam interferir no destino do homem reservando-lhe seja o
infortuacutenio seja o paraiacuteso passa a natildeo ter mais sentido
Mas isso natildeo significa que Epicuro tenha negado a existecircncia dos deuses como os
detratores de sua filosofia quiseram fazer crer Natildeo Tanto que ele afirma na Carta a
Meneceu ldquoos deuses realmente existem e o conhecimento de sua existecircncia eacute manifestordquo
89 σὺ () ἀναβάλλῃ τὸ χαῖρονmiddot ὁ δὲ βίος μελλησμῷ παραπόλλυται καὶ εἷς ἕκαστος ἡμῶν ἀσχολούμενος ἀποθνῄσκει
49 (DL X 123)90 O que ele combate eacute a representaccedilatildeo dos deuses apresentada pela doacutexa As
divindades eram retratadas como tomadas pelos desejos pelas emoccedilotildees pela coacutelera pela
inveja pelo orgulho pela vaidade etc A crenccedila geral era a de seres prestes a irradiar toda sua
fuacuteria ou toda sua benevolecircncia dependendo do quatildeo capazes os homens fossem de agradaacute-los
com oferendas com sacrifiacutecios com oraccedilotildees
E eacute isso que Epicuro nega essa noccedilatildeo de divindade que por um lado gera temor e
por outro coloca o homem numa posiccedilatildeo de assenhoramento de minimizaccedilatildeo de seu poder
de deliberaccedilatildeo Como ldquoas afirmaccedilotildees da maioria sobre os deuses natildeo satildeo preacute-concepccedilotildees
verdadeiras e sim suposiccedilotildees falsas Por causa de tais suposiccedilotildees falsas imagina-se que
derivam dos deuses os maiores males e bensrdquo (DL X 124)91 E a filosofia epicurista vem em
oposiccedilatildeo a isso
Para ele os deuses gozam de imortalidade92 nos intermundos (metakoacutesmion =
intervalo entre os mundos) onde vivem autaacuterquica e serenamente Ora ldquoum ser bem-
aventurado e eterno natildeo tem perturbaccedilotildees nem perturba outro serrdquo (MC 1)93 Os deuses natildeo
satildeo afetados por nada daiacute seu estado de eterno equiliacutebrio e tranquilidade Tambeacutem natildeo
seguem a nenhum desiacutegnio a natildeo ser aquele que vem de si proacuteprio e isso vai caracterizar sua
autossuficiecircncia Por isso Epicuro orienta ldquoconsidera a divindade um ser vivo e feliz de
acordo com a noccedilatildeo da divindade impressa em noacutes pela natureza e natildeo lhe atribuas coisa
alguma estranha agrave imortalidade ou incompatiacutevel com a felicidaderdquo (DL X 123)94 Daiacute ele
considerar que a imperturbabilidade (ataraxiacutea) e a autarquia (autaacuterkeia)95 que caracterizam a
existecircncia dos deuses satildeo bens imortais e devem ser buscados pelo saacutebio E eacute tendo por base
esses bens que Epicuro vai postular a sabedoria como a arte de viver ldquocomo um deus entre os
homensrdquo (DL X 135)96
90 θεοὶ μὲν γὰρ εἰσίνmiddot ἐναργὴς γὰρ αὐτῶν ἐστιν ἡ γνῶσιςmiddot 91 οὐ γὰρ προλήψεις εἰσὶν ἀλλrsquo ὑπολήψεις ψευδεῖς αἱ τῶν πολλῶν ὑπὲρ θεῶν ἀποφάσεις ἔνθεν αἱ μέγισται βλάβαι αἴτιαι τοῖς κακοῖς ἐκ θεῶν ἐπάγονται καὶ ὠφέλειαι 92 Embora de natureza corpoacuterea natildeo estatildeo sujeitos agrave corrupccedilatildeo ou morte E isso pode ser explicado pois sua imagem (eiacutedolon) emite contiacutenuamente aacutetomos que satildeo substituiacutedos por outros eternamente 93 Τὸ μακάριον καὶ ἄφθαρτον οὔτε αὐτὸ πράγματα ἔχει οὔτε ἄλλῳ παρέχειmiddot 94 Πρῶτον μὲν τὸν θεὸν ζῷον ἄφθαρτον καὶ μακάριον νομίζων ὡς ἡ κοινὴ τοῦ θεοῦ νόησις ὑπεγράφη 95 Cabe natildeo confundir os substantivos αὐτάρκης formado a partir da raiz verbal ἀρκέω que evoca a ideia de ser suficiente com αὐταρxῆς derivado da raiz ἀρxεύω que diz respeito a comandar reinar governar Αὐτάρκης pode ser traduzido como bastar a si mesmo ser auto-suficiente enquanto αὐταρκῆς remete para aquele que governa a si mesmo Temos aiacute portanto sentidos diferentes O problema se daacute quando ao tentar se referir em portuguecircs para a condiccedilatildeo daquele que tem o principio da accedilatildeo em si mesmo (αὐτάρκης) recorremos agrave palavra autarquia que tambeacutem pode trazer conotaccedilotildees ligadas a αὐταρxῆς como ao se referir a instituiccedilotildees de poder autocircnomo Embora pudeacutessemos usar o vocaacutebulo autarcia para demarcar a opccedilatildeo pelo sentido advindo de αὐτάρκης preferimos manter autarquia mas sublinhado que neste trabalho ele remete para um sentido de autossuficiencia 96 ζήσῃ δὲ ὡς θεὸς ἐν ἀνθρώποις
50 Mas perceba-se ao admitir a existecircncia dos deuses Epicuro natildeo os imagina como
seres de outra realidade de natureza distinta dessa constituiacuteda por aacutetomos e vazio Nem como
entidades que inspiram temores e apreensotildees Eles satildeo pensados dentro dos limites da phyacutesis e
como um modelo de realizaccedilatildeo de um modo de existir bem-aventurado Para ele acreditar
naquilo que escapa aos limites da natureza significa postular a existecircncias de duas realidades
uma natural e outra sobrenatural Com isso acentua-se a tendecircncia para separar o homem e a
phyacutesis concebendo-o como criaccedilatildeo divina e natildeo como fenocircmeno da natureza Resulta dessa
clivagem alhear o homem da compreensatildeo da possibilidade de realizaccedilatildeo de uma vida
autaacuterquica (em que ele define por si mesmo - a partir do que conhece sobre a natureza - como
ser e agir no mundo) e projetar o sentido de sua existecircncia para aleacutem da realidade que ele
experimenta
Outra batalha travada eacute com relaccedilatildeo agrave cultura ou seja agrave Paideacuteia tomada em seu
sentido mais geral Se os limites colocados para se pensar a realidade levam a um conflito
com a compreensatildeo que o senso geral tem a respeito dos deuses tambeacutem acabam por se
chocar com o panorama cultural da eacutepoca E isso estaacute ligado agrave finalidade do saber Para o
epicurismo essa finalidade eacute conduzir a uma vida feliz e autaacuterquica E isso estaacute afinado com
os limites que a phyacutesis coloca diante do homem Diferentemente dos deuses somos mortais e
sob essa condiccedilatildeo precisamos pensar a vida e estabelecer um saber para realizaacute-la da melhor
forma possiacutevel Trata-se de considerar a existecircncia em sua imanecircncia e na sua urgecircncia posto
que ldquoa morte natildeo significa outra vida mas uma eternidade de natildeo-vidardquo (CONCHE 1997 p
41)97 Nesse sentido o saber que cabe cultivar eacute aquele que serve para ajudar a viver nossa
mortalidade ldquoNoacutes podemos morrer antes mesmo de saber a estereometria Daiacute a hostilidade
de Epicuro agrave Paideacuteiardquo (CONCHE idem)
Ressalte-se que o termo Paideacuteia deve ser entendido no sentido especiacutefico de
conhecimento relativo agrave cultura liberal como aqueles que os sofistas evidenciaram como
importantes para a educaccedilatildeo do homem (filologia astronomia retoacuterica muacutesica geometria
aritmeacutetica) Esses saberes para Epicuro natildeo satildeo fundamentais pois ldquoa cultura liberal natildeo
pode ser de nenhuma utilidade dado que se trata de acumular conhecimentos particulares e
natildeo de se apoiar sobre os saberes particulares para se elevar mais alto () de fundar sua vida
sobre o pensamento uacutenico e necessaacuteriordquo (CONCHE idem) Nessa perspectiva entendemos a
ponderaccedilatildeo epicurista
97 CONCHE Marcel Eacutepicure Lettres et Maximes Paris Eacuteditions de Meacutegare 1977
51 O estudo da natureza (physiologiacutea) prepara natildeo os jactanciosos nem os fazedores de expressotildees nem os exibidores de educaccedilatildeo muito valorizada junto agrave maioria mas os aacutegeis e autaacuterquicos e que pensam grande sobre os seus proacuteprios bens e natildeo sobre os bens das coisas (SV 45) 98
Esses bens o saacutebio deve buscar pois estatildeo relacionados agrave sauacutede ao bem-estar agrave
liberdade agrave imperturbabilidade agrave alegria Satildeo eles que conduzem a uma vida realizada Daiacute a
importacircncia de uma educaccedilatildeo que faccedila conhecer ao homem esses limites sob os quais ele
deve pensar sua existecircncia A gloacuteria a riqueza o poder a erudiccedilatildeo nada isso contribui para
deixar a alma em equiliacutebrio Ao contraacuterio adoecem-na e com ela todo o athroiacutesma Se para a
maioria a vida cheia de luxos remete para um ideal a ser buscado para Epicuro isso eacute
justamente o que se deve evitar pois escapa aos limites da phyacutesis Isso fica evidenciado
quando ele afirma que ldquoa riqueza proveniente da natureza eacute limitada e viaacutevel e das opiniotildees
vazias cai no inabordaacutevelrdquo (SV 8 ndash MC 15)99 Assim ldquoo sophoacutes conhece os valores autecircnticos
da vida diante das falsificaccedilotildees e enganos da sociedade captou o sabor do verdadeiro e de
acordo com os bens conforme a natureza (tagrave katagrave phyacutesin) sabe dirigir seu comportamento
sereno e livre ateacute a felicidaderdquo (GUAL 1985 p 218)
A oposiccedilatildeo agrave Paideacuteia se daacute portanto porque se vecirc nela um repertoacuterio de
conhecimentos que satildeo inuacuteteis para a felicidade do homem Ao contraacuterio o enreda em uma
teia de valores que o distancia de uma vida feliz Daiacute porque Epicuro apenas admite a cultura
sob a perspectiva de resultado de um ldquoprogresso material e como uma conquista civilizadorardquo
(GUAL 1985 p 60) Satildeo saberes culturais mas natildeo satildeo de uso praacutetico e imediato para a
consecuccedilatildeo de uma vida saacutebia Tanto que Epicuro aconselha a Piacutetocles ldquoalccedila tua vela amigo
e foge de toda cultura (paideiacutean) seja ela qual forrdquo (DL X 6 e Us fr 163)100 Se o faz eacute
porque percebe que na poacutelis a poliacutetica a religiatildeo e a cultura espelham um entendimento
acerca da realidade da finalidade da existecircncia humana que eacute incompatiacutevel com o projeto de
uma vontade esclarecida e de um pensamento que busca inteligir da natureza os limites
necessaacuterios para pensar um paradigma para a realizaccedilatildeo do homem Por isso
Francamente eu por minha parte gostaria muito mais servindo-me de um physiologoacutes profetizar as coisas que trazem proveito a todos os homens
98 Οὐ κομποὺς οὐδὲ φωνῆς ἐργαστικοὺς οὐδὲ τὴν περιμάχητον παρὰ τοῖς πολλοῖς παιδείαν ἐνδει-κνυμένους φυσιολογία παρασκευάζει ἀλλὰ σοβαροὺς καὶ αὐτάρκεις καὶ ἐπὶ τοῖς ἰδίοις ἀγαθοῖς οὐκ ἐπὶ τοῖς τῶν πραγμάτων μέγα φρονοῦντες 99 Ὁ τῆς φύσεως πλοῦτος καὶ ὥρισται καὶ εὐπόριστός ἐστιν ὁ δὲ τῶν κενῶν δοξῶν εἰς ἄπειρον ἐκπίπτει 100 Παιδείαν δὲ πᾶσαν μακάριε φεῦγε τἀκάτιον ἀράμενος
52 mesmo que ningueacutem vaacute me compreender do que me colocando de acordo com as opiniotildees desfrutar do elogio rude que proveacutem da maioria (SV 29)101
Distanciar-se da Paideacuteia desses saberes valorizados pela maioria deve ser entendido
como um movimento de negaccedilatildeo dos valores cristalizados e convencionados pela cultura que
falseiam os limites a partir dos quais se devem pensar o campo da realizaccedilatildeo humana Jaacute a
perspectiva epicurista eacute de elaborar uma filosofia como um saber para a vida (teacutechnen tinaacute
periacute ton biacuteon) cuja finalidade eacute ldquoassegurar a paz de espiacuterito e a convicccedilatildeo firmerdquo (DL X
85)102 ensejando ldquoa conquista de uma vida felizrdquo (DL X 84)103 Daiacute porque a compreensatildeo a
respeito dos limites da phyacutesis tem sua importacircncia na medida em que permite ao saacutebio
identificar e se desviar das opiniotildees ou concepccedilotildees que remetem para uma imposiccedilatildeo de
valores e de um modo de vida apartados de uma medida natural Considerar esses limites eacute
fundamental para que o homem pense e estabeleccedila a partir da phyacutesis um modo saacutebio de agir
122 A repleccedilatildeo dos desejos
O projeto eacutetico de Epicuro se fundamenta em um modo de vida orientado para a
satisfaccedilatildeo dos prazeres104 mas para isso eacute preciso que o homem goze da liberdade necessaacuteria
para fazer as escolhas e as recusas essenciais para direcionar sua vida para essa finalidade Por
isso o percurso traccedilado ateacute aqui tem buscado mostrar a physiologiacutea como um exerciacutecio de
investigaccedilatildeo da natureza que ao tentar explicar os modos de ser da natureza e as forccedilas que
nela operam pretende esclarecer a respeito dos limites e das possibilidades do agir humano
Isso diz respeito a por um lado fazer entender a diferenccedila entre o que acontece por
necessidade (anaacutenke) e o que depende de cada um (paacuterrsquohemaacutes) e por outro estabelecer uma
compreensatildeo da phyacutesis como limite onde deve se circunscrever toda possibilidade de
entendimento da realidade Nesse sentido se estabelece um trabalho de afastamento de
crenccedilas que destituem o homem do papel de protagonista de seu proacuteprio destino seja porque
o pensam submisso a um fatalismo natural ou aos caprichos de divindades Aleacutem disso outras
formas impositivas de vontades se datildeo pela religiatildeo pela cultura e pela doacutexa Todas podendo
exogenamente definir um modo de viver em funccedilatildeo das finalidades pretendidas
101 Παρρησίᾳ γὰρ ἔγωγε χρώμενος φυσιολογῶν χρησμῳδεῖν τὰ συμφέροντα πᾶσιν ἀνθρώποις μᾶλλον ἂν βουλοίμην κἂν μηδεὶς μέλλῃ συνήσειν ἢ συγκατατιθέμενος ταῖς δόξαις καρποῦσθαι τὸν πυκνὸν παραπίπτοντα παρὰ τῶν πολλῶν ἔπαινον 102 ἀταραξίαν καὶ πίστιν βέβαιον 103 μακάριον βίον συντεινόντων 104 No item 123 deste capiacutetulo nos deteremos nesse aspecto
53 Eacute diante desse quadro que Epicuro vai dar um tratamento especiacutefico agrave questatildeo dos
desejos (epithymiacuteai) Pois por meio deles tambeacutem pode ocorrer uma tirania sobre o homem
E isso impede qualquer projeto de realizaccedilatildeo de vida saacutebia afinal um dos pressupostos para
isso eacute ser capaz de definir por si mesmo sua conduta seu modo de agir Quem natildeo tem o
domiacutenio sobre si proacuteprio sobre as proacuteprias vontades sucumbe agrave desmedida adoece o corpo e
desequilibra a alma
Sobre isso Platatildeo jaacute dizia que a alma do homem eacute tiranizada pelo desejo105 de coisas
pensadas como importantes mas que efetivamente natildeo satildeo necessaacuterias Na poacutelis isso remete
agrave gloacuteria agrave fama agrave ambiccedilatildeo de ser grande tal qual Alexandre Como decorrecircncia tem-se um
apetite sem limites capaz de cativar o homem fazendo-o escravo de seu querer sendo
governado pelo asseacutedio das proacuteprias vontades A mercecirc de inclinaccedilotildees desmesuradas perde-
se a medida para o agir Assim Soacutecrates se refere a esse tipo
() o homem que governa mal seu iacutentimo aquele que agora mesmo julgaste ser o mais desgraccedilado o homem tiracircnico quando natildeo vive como um particular mas eacute forccedilado por qualquer acaso a ser tirano e sendo incapaz de se dominar a si mesmo tenta mandar nos outros como se uma pessoa doente e deacutebil em vez de estar em casa fosse forccedilada a passar a vida a competir em forccedila fiacutesica (Platatildeo A Repuacuteblica IX 579c -579d)106
O conflito se daacute na proacutepria alma quando a parte desiderativa e irasciacutevel se sobrepotildee agrave
racional Daiacute a necessidade de estabelecer uma medida um limite para se opor a esse estado
de desequiliacutebrio que encontra nas opiniotildees vazias (kenaigrave doacutexai) um estiacutemulo para pensar a
liberdade como condiccedilatildeo para poder tudo Mas para fazer frente a isso eacute preciso se opor aos
valores da doacutexa Portanto o conhecimento acerca da natureza vai ser fundamental pois
permite pensar limites para os desejos Esse saber vai instrumentalizar o saacutebio para que ele
possa se contrapor a toda opiniatildeo que projeta a proacutepria realizaccedilatildeo naquilo que eacute inalcanccedilaacutevel
ou traz perturbaccedilotildees e dor Assim os desejos devem considerar a finalidade da phyacutesis e visar
o que conduz agrave ataraxiacutea Em decorrecircncia o eacutethos vai ser concebido tendo em vista um
referencial ao qual o homem recorra para saber que prazer escolher e qual recusar E isso vai
resultar em um estilo de vida frugal dado que o modo proacuteprio de ser da natureza natildeo se daacute em
um regime de desmesura Afinal ldquouma dieta simples proporciona um prazer anaacutelogo ao de
105 ldquo() o homem se torna rigorosamente um tirano quando por natureza ou por haacutebito ou pelos dois motivos se torna eacutebrio apaixonado e louco () Depois disso haveraacute festas orgias festins concubinas e todos os gozos dessa espeacutecie naqueles em cujo peito o tirano Eros habita governando toda sua almardquo (PLATAtildeO A Repuacuteblica 573 c d) Ediccedilatildeo referida na nota 106 106 PLATAtildeO A Repuacuteblica Lisboa Fundaccedilatildeo Caloustre Gulbenkian 1993 Traduccedilatildeo Maria Helena da Rocha Pereira
54 uma mesa suntuosa desde que se elimine a dor causada pela vontaderdquo (DL X 130)107
Eacute sob a perspectiva de frugalidade de simplicidade que a sabedoria vai ser delineada
O prazer buscado eacute aquele mais uacutetil para uma vida feliz e isso estaacute relacionado com os limites
estabelecidos a partir da proacutepria phyacutesis Uma vida katagrave phyacutesin implica na premecircncia de limitar
os desejos aos que natildeo desequilibram nem a alma nem o corpo Ao pensar suas necessidades
tendo em vista satisfazer apenas os desejos que concorrem para o seu bem-estar o saacutebio passa
a ouvir mais o corpo e menos as opiniotildees vazias Afinal ldquoinsaciaacutevel natildeo eacute o estocircmago como
a maior parte das pessoas dizem mas a opiniatildeo falsa sobre o ilimitado enchimento do
estocircmagordquo (SV 59)108 Portanto o saacutebio sabe desejar em funccedilatildeo do que aprendeu sobre a
natureza e natildeo considerando o que os muitos professam E isso o leva a fazer um exerciacutecio de
distinccedilatildeo e separaccedilatildeo (diaiacuteresis) para rejeitar os desejos que adoecem e desequilibram em
prol dos que estatildeo de acordo com a natureza
Daiacute Epicuro ter diferenciado os desejos entre aqueles que satildeo naturais e necessaacuterios
os naturais e desnecessaacuterios e os nem naturais e nem necessaacuterios Dos naturais ldquoalguns satildeo
necessaacuterios agrave felicidade outros agrave tranquilidade sem perturbaccedilatildeo do corpo e outros agrave proacutepria
vidardquo (DL X 127)109
Os desejos naturais e necessaacuterios (physikaiacute anankaiai) satildeo aqueles que afastam o
sofrimento cessam a dor ldquocomo beber quando temos sederdquo (DL X 29) Eles estatildeo
relacionados agrave manutenccedilatildeo da vida ao equiliacutebrio orgacircnico agrave proteccedilatildeo e ao bem-estar do
corpo Sem satisfazecirc-los sucede-se um estado de dor de desarmonia que pode ocasionar
adoecimento e morte A Sentenccedila Vaticana 33 reforccedila esse sentido ao explicar que ldquoa voz da
carne eacute natildeo ter fome natildeo ter sede e natildeo ter frio pois quem tem essas coisas e espera haver de
tecirc-las lutaria pela felicidade ateacute com Zeusrdquo110
Desejos naturais e necessaacuterios podem ser compreendidos como referecircncia a uma vida
simples e frugal E isso estaacute relacionado a um modo autaacuterkes e sereno de viver Eacute nessa
perspectiva que entendemos o comentaacuterio de Porfiacuterio ldquomelhor vale para ti estar sem
perturbaccedilatildeo dormindo sobre um pallet do que estar agitado dispondo de uma cama de ouro e
de uma mesa suntuosardquo111 Contudo Epicuro natildeo estaacute postulando uma vida de privaccedilotildees nem
107 ὅτι τε λιτοὶ χυλοὶ ἴσην πολυτελεῖ διαίτῃ τὴν ἡδονὴν ἐπιφέ ρουσιν ὅταν ἅπαν τὸ ἀλγοῦν κατrsquo ἔνδειαν ἐξαιρεθῇ 108 Ἄπληστον οὐ γαστήρ ὥσπερ οἱ πολλοί φασιν ἀλλrsquo ἡ δόξα ψευδὴς ὑπὲρ τοῦ ltτῆςgt γαστρὸς ἀορίστου πληρώματος 109 αἱ μὲν πρὸς εὐδαιμονίαν εἰσὶν ἀναγκαῖαι αἱ δὲ πρὸς τὴν τοῦ σώματος ἀοχλησίαν αἱ δὲ πρὸς αὐτὸ τὸ ζῆν 110 Σαρκὸς φωνὴ τὸ μὴ πεινῆν τὸ μὴ διψῆν τὸ μὴ ῥιγοῦνmiddot ταῦτα γὰρ ἔχων τις καὶ ἐλπίζων ἕξειν κἂν ltΔιὶgt ὑπὲρ εὐδαιμονίας μαχέσαιτο 111 PORPHYRE Lettre agrave Marcella 29 Apud SOLOVINE Maurice Eacutepicure Doutrines et Maximes Paris Hermann 1965 p 152
55 um regresso a formas primitivas de viver nem exorta a pobreza Sua mensagem eacute para viver
feliz natildeo precisamos de muito pois ldquonada eacute suficiente para quem o suficiente eacute poucordquo (SV
68)112 Daiacute ele se referir ao saacutebio dizendo ldquoseraacute previdente quanto ao seu patrimocircnio e ao
futurordquo (DL X 120) Ou seja eacute preciso dispor do que permita viver com tranquilidade
podendo gozar de uma condiccedilatildeo de bem-estar
Essa compreensatildeo permite estabelecer uma relaccedilatildeo entre physikaiacute anankaiai e
autaacuterkeia O saacutebio ao compreender o que de fato se constitui como necessidade - e para isso
basta ouvir a proacutepria natureza - e ao perceber os desejos estimulados pela doacutexa que relaciona
a obtenccedilatildeo de bens agrave felicidade exercita o discernimento para se orientar em direccedilatildeo ao que
vai realizar o sentido de sua existecircncia Quanto menos necessidade se tem mais se estabelece
um modo de viver autaacuterkes (e vice-versa) posto natildeo se depender da obtenccedilatildeo de bens vatildeos
para realizar uma vida feliz Entatildeo ldquoo saacutebio depois de julgar as coisas em funccedilatildeo da
necessidade sabe mais dar em partilha do que tomar em partilha Tatildeo grande tesouro da
autarquia ele encontrourdquo (SV 44)113
Os desejos naturais e natildeo necessaacuterios satildeo compreendidos como aqueles que se natildeo
satisfeitos natildeo causam dor ou outra forma de sofrimento natildeo afetam o equiliacutebrio vital do
organismo Como afirma a Maacutexima Capital 26 ldquodos desejos todos os que natildeo levam a uma
sensaccedilatildeo de sofrimento se natildeo satildeo satisfeitos natildeo satildeo necessaacuterios mas envolvem um anseio
facilmente dissipaacutevel quando o objeto eacute difiacutecil de obter ou se tendem a prejudicarrdquo (DL X
148)114 Nesse conjunto podemos por exemplo pensar os apetites sexuais ou por pratos
elaborados ou os desejos luacutedicos
Basta lembrar que para Epicuro patildeo e aacutegua jaacute eram suficientes para ele natildeo se
lamentar da vida mas - sempre que podia - um pedaccedilo de queijo servia-lhe como banquete115
Da mesma forma divertir-se com os amigos e dar vazatildeo agrave lubricidade do corpo tambeacutem satildeo
concebidos como naturais pois estatildeo em acordo com a natureza - visto que conduzem ao
equiliacutebrio agrave harmonia ao prazer Contudo a pergunta que conveacutem fazer eacute esses desejos que
satildeo naturais mas natildeo satildeo necessaacuterios (pois se satisfeitos apenas adicionam mais prazer agrave
vida sem que sua subtraccedilatildeo possa gerar dor) devem ser realizados Para pensar sobre isso
112 Οὐδὲν ἱκανὸν ᾧ ὀλίγον τὸ ἱκανόν 113 Ὁ σοφὸς εἰς τὰ ἀναγκαῖα συγκριθεὶς μᾶλλον ἐπίσταται μεταδιδόναι ἢ μεταλαμβάνεινmiddot τηλικοῦτον αὐταρκείας εὗρε θησαυρόν 114 Τῶν ἐπιθυμιῶν ὅσαι μὴ ἐπrsquo ἀλγοῦν ἐπανάγουσιν ἐὰν μὴ συμπληρωθῶσιν οὐκ εἰσὶν ἀναγκαῖαι ἀλλrsquo εὐδιάχυτον τὴν ὄρεξιν ἔχουσιν ὅταν δυσπορίστων ἢ βλάβης ἀπεργαστικαὶ δόξωσιν εἶναι 115 DL X 11 ldquoO proacuteprio Epicuro diz em suas cartas que se contentava apenas com aacutegua e um simples patildeo E diz lsquomanda-me um pequeno pote de queijo para que eu possa banquetear-me quanto tiver vontadersquo rdquo
56 vamos considerar que
O haacutebito de alimentar-se com simplicidade e natildeo suntuosamente natildeo soacute garante a boa sauacutede e faz com que o homem enfrente sem hesitaccedilatildeo as inevitaacuteveis necessidades da vida mais ainda o predispotildee melhor a apreciar as mesas suntuosas que se lhe oferecem agraves vezes e o torna destemeroso diante da sorte (DL X 131)116
Como vemos Epicuro deixa claro que para suprir as nossas necessidades precisamos
de pouco e eacute a isso que o saacutebio deve se ater primordialmente A sorte (tyacuteche) que tanto pode
por exemplo trazer a chuva que vai multiplicar o plantio ou impor a estiagem que miacutengua o
campo natildeo lhe traraacute perturbaccedilatildeo pois ldquoser ou natildeo ser rico lhe eacute indiferenterdquo (DL X 120)
Entatildeo o que eacute natural e necessaacuterio basta ao saacutebio para viver satisfeito Ele natildeo precisa
procurar acrescentar mais prazer agrave vida Mas se quiser dar vazatildeo aos desejos que satildeo naturais
mas natildeo satildeo necessaacuterios deve considerar o ensinamento da Maacutexima Capital 8 onde ele
afirma ldquonenhum prazer eacute um mal por si mesmo poreacutem aquilo que produz alguns prazeres
traz perturbaccedilotildees muitas vezes maiores que os proacuteprios prazeresrdquo (DL X 141)117 Isso nos
remete para a necessidade de uma ponderaccedilatildeo de fazer um caacutelculo O saacutebio deve se perguntar
o que adveacutem com a realizaccedilatildeo de tal desejo Se a resposta contrastar com o sentido de
harmonia de equiliacutebrio e de serenidade inteligido por meio do estudo da natureza entatildeo isso
deve ser evitado Em fazendo isso o sophoacutes estaacute se guiando pela phroacutenesis que nesse sentido
pode ser compreendida como o exerciacutecio praacutetico da sabedoria ou uma capacidade de
discernimento E eacute essa atividade permanente de refletir a respeito dos proacuteprios desejos de
ponderar sobre o que adveacutem com a satisfaccedilatildeo deles e relacionar isso com o estabelecimento
de um modo de viver de acordo com a natureza que vai caracterizar o modo de viver do saacutebio
e nos permitir entender como se efetiva a pragmateiacutea epicurista por meio da meditaccedilatildeo e da
praacutexis como veremos nos capiacutetulos II e III
Agora com relaccedilatildeo aos desejos que natildeo satildeo nem naturais e nem necessaacuterios podemos
tambeacutem nos referir a eles como desejos vatildeos Isso porque se fundamentam naquilo que as
opiniotildees vazias (kenaigrave doacutexai) pensam a respeito do que pode proporcionar felicidade e em que
medida isso se daacute Daiacute se tem um problema pois sem a natureza como medida incorre-se no
erro de buscar o inalcanccedilaacutevel Tal aspecto fica melhor explicitado na Maacutexima Capital 15
onde se diz ldquoa riqueza conforme a natureza eacute limitada e faacutecil de obter a requerida pelas
116 τὸ συνεθίζειν οὖν ἐν ταῖς ἁπλαῖς καὶ οὐ πολυτελέσι διαίταις καὶ ὑγιείας ἐστὶ συμπληρωτικὸν καὶ πρὸς τὰς ἀναγκαίας τοῦ βίου χρήσεις ἄοκνον ποιεῖ τὸν ἄνθρωπον καὶ τοῖς πολυτελέσιν ἐκ διαλειμμάτων προσερχομένοις κρεῖττον ἡμᾶς διατίθησι καὶ πρὸς τὴν τύχην ἀφόβους παρασκευάζει 117 Οὐδεμία ἡδονὴ καθrsquo ἑαυτὴν κακόνmiddot ἀλλὰ τὰ τινῶν ἡδονῶν ποιητικὰ πολλαπλασίους ἐπιφέρει τὰς ὀχλήσεις τῶν ἡδονῶν
57 opiniotildees vatildes estende-se ao infinitordquo (DL X 144)118 Assim se o tamanho do estocircmago pode
ser pensado como um limite natural para o quanto se pode comer indicando um niacutevel de
saciedade qual a medida para a riqueza a gloacuteria as honrarias a imortalidade e outros tantos
desejos consagrados pela opiniatildeo dos muitos da poacutelis Dessa forma um modo saacutebio de viver
soacute pode ser estabelecido tendo a natureza como referecircncia E isso se opotildee ao estilo de vida
postulado pelas kenaigrave doacutexai para quem o ter fundamenta uma falsa ideia sobre o que
proporciona a felicidade
Vemos que o aspecto distintivo estaacute (novamente) na questatildeo do limite Se podemos
desejar tanto o bem conforme a natureza quanto aquele conforme a opiniatildeo o primeiro eacute
alcanccedilaacutevel pois ldquoo bem da natureza eacute limitado porque ele existe O outro escapardquo
(BOLLACK 1975 p 293) O problema estaacute em desejar bens que se estendem ao infinito ndash
caracteriacutestica do que eacute natildeo-natural resultando numa busca sem fim e portanto em adotar
para a vida uma finalidade irrealizaacutevel ldquoOs desejos vazios natildeo satildeo vazios nem de objeto nem
de prazer eles satildeo vazios da felicidade que se pensa erradamente usufruirrdquo (HELMER
2013 p 19) Eis porque o saacutebio orienta-se para observar e suprir os desejos dentro dos limites
das necessidades de seu bem-estar
Viver de acordo com a natureza que vai ser condiccedilatildeo para realizaccedilatildeo de uma vida
feliz pressupotildee a observacircncia aos limites da phyacutesis em seus dois aspectos O primeiro tratado
no item 111 diz respeito aos seus contornos imanentes Isso implica em natildeo pensar para
aleacutem do mundo sensiacutevel o campo da realizaccedilatildeo humana As coisas acontecem ou por
necessidade ou por acaso ou dependem de noacutes O saacutebio se percebe como ser da natureza e
como tal define dentro do que pode o homem um modo autaacuterkes de viver Essa
compreensatildeo permite fundamentar uma relaccedilatildeo de confianccedila (piacutestis) com a natureza O
sophoacutes quanto mais aprende sobre a phyacutesis mais confia na possibilidade de realizaccedilatildeo de
uma vida feliz
O segundo aspecto diz respeito agrave necessidade de regulaccedilatildeo dos desejos o que tambeacutem
remete para um uso praacutetico da filosofia por meio de um exerciacutecio de examinar as proacuteprias
vontades Isso tem em vista a necessidade de os desejos espelharem no modo de viver um
estado equilibrado correspondente agravequele que verificamos na natureza e tomado como um
modelo de realizaccedilatildeo Daiacute porque ldquopara todos os desejos eacute preciso colocar esta questatildeo o que
me adviraacute se realizar o que estaacute sendo buscado segundo o meu desejo e o que se natildeo se
118 Ὁ τῆς φύσεως πλοῦτος καὶ ὥρισται καὶ εὐπόριστός ἐστιν ὁ δὲ τῶν κενῶν δοξῶν εἰς ἄπειρον ἐκπίπτει
58 realizarrdquo (SV 71)119 Ou seja a sabedoria vai ser relacionada a uma atividade de caacutelculo e
moderaccedilatildeo E aiacute fica evidenciado o papel da phroacutenesis que orientada pelo conhecimento da
phyacutesis e pela experiecircncia conduz toda escolha e toda rejeiccedilatildeo em funccedilatildeo de fazer o saacutebio
experimentar em sua vida a ausecircncia de dor e a autaacuterkeia
123 Tograve teacutelos tecircs phyacuteseos
Na Carta a Meneceu eacute dito ldquo() e chamamos o prazer de princiacutepio e fim da vida
felizrdquo (DL X 128)120 Ao relacionar o prazer (hedoneacute) com archeacute e teacutelos Epicuro postula se
tratar do nosso bem maior assim sendo eacute em funccedilatildeo de experimentaacute-lo que o saacutebio vai
definir seu modo de viver de acordo com a natureza Eacute princiacutepio porque estaacute na origem de
nossos instintos eacute finalidade porque eacute para onde se inclina nossa natureza
Epicuro ldquoaduz o fato de os seres vivos imediatamente apoacutes o nascimento estarem
contentes com o prazer (hedoneacute) enquanto rebelam-se contra a dor por disposiccedilatildeo natural
sem a intervenccedilatildeo da razatildeordquo (DL X 137)121 O prazer eacute o que realiza o homem ser da
natureza e diz respeito a uma condiccedilatildeo de equiliacutebrio vital de sauacutede Hedoneacute vai ser um
indicativo de boa realizaccedilatildeo se a dor ou o desequiliacutebrio remetem para um modo de viver
afastado da natureza o prazer indica um eacutethos katagrave phyacutesin
Ao tratar dos prazeres Epicuro faz uma distinccedilatildeo entre os cineacuteticos (hedonegrave kinetikeacute)
e os catastemaacuteticos (hedonegrave katastematikeacute) Os primeiros remetem a uma condiccedilatildeo de
movimento para atividades que visam a repleccedilatildeo do que eacute necessaacuterio agrave harmonia e bem-estar
Assim o prazer de beber e de se alimentar vai ser tatildeo fundamental quanto aquele que proveacutem
da amizade Eacute compreendido como um prazer positivo pois evoca consigo uma accedilatildeo que
resulta em hedoneacute
Catastemaacuteticos se referem aos prazeres em repouso Implicam na definiccedilatildeo de hedoneacute
como ausecircncia de dor e de perturbaccedilatildeo Dizem respeito ao ldquoestado de equiliacutebrio do organismo
em todas as suas partesrdquo (CONCHE 1977 p 71) Eacute o que no corpo se percebe como aponiacutea e
na alma como ataraxiacutea Alguns inteacuterpretes122 da doutrina epicurista pensam isso como um
119 Πρὸς πάσας τὰς ἐπιθυμίας προσακτέον τὸ ἐπερώτημα τοῦτοmiddot τί μοι γενήσεται ἂν τελεσθῇ τὸ κατὰ ἐπιθυμίαν ἐπιζητούμενον καὶ τί ἐὰν μὴ τελεσθῇ 120 Καὶ διὰ τοῦτο τὴν ἡδονὴν ἀρχὴν καὶ τέλος λέγομεν εἶναι τοῦ μακαρίως ζῆν 121 ἀποδείξει δὲ χρῆται τοῦ τέλος εἶναι τὴν ἡδονὴν τῶι τὰ ζῶια ἅμα τῶι γεννηθῆναι τῆι μὲν εὐαρεστεῖσθαι τῶι δὲ πόνωι προσκρούειν φυσικῶς καὶ χωρὶς λόγου Temos aiacute uma convergecircncia com a visatildeo cirenaica para quem ldquotodos os seres animados aspiram ao prazer e repelem a dorrdquo (DL II 87) 122 Markus Silva Acerca de uma Eacutetica do Agradaacutevel Natal EDUFRN 2005 Esse artigo cita a tendecircncia de alguns estudiosos para pensar o prazer catastemaacutetico sob a oacuteptica de um ldquocaraacuteter negativo do prazerrdquo
59 ldquoprazer negativordquo pois natildeo resulta de uma accedilatildeo mas reflete um estado em que as
perturbaccedilotildees natildeo afetam o corpo
Assim podemos entrever como infundadas as acusaccedilotildees de que o epicurismo pensa o
prazer nos mesmos termos dos dissolutos como seus detratores quiseram fazer crer Epiteto
se refere a Epicuro como ldquopregador de obscenidadesrdquo (DL X 6) Timon fala dele como ldquoo
mais porco e mais catildeordquo (DL X 3) Provavelmente ao se relacionar por desconhecimento ou
para denegrir a concepccedilatildeo de prazer epicurista com a busca desbragada para realizar o prazer
tout court colocando o homem no mesmo patamar dos animais a filosofia do Jardim foi vista
como uma doutrina escandalosa Mas na Carta a Meneceu Epicuro explica
Quando dizemos que o prazer eacute a realizaccedilatildeo suprema da felicidade natildeo pretendemos relacionaacute-lo com a voluptuosidade dos dissolutos e com gozos sensuais como querem algumas pessoas por ignoracircncia preconceito ou maacute compreensatildeo por prazer entendemos a ausecircncia de sofrimento no corpo e a ausecircncia de perturbaccedilatildeo na alma (DL X 131)123
Desse modo a concepccedilatildeo de hedoneacute para os epicuristas implica em caracteriacutesticas que
a diferencia daquelas de outras escolas como a dos cirenaicos Dioacutegenes Laeacutercio124 fornece os
elementos para estabelecer uma comparaccedilatildeo entre o que foi pensado por Epicuro (livro X) e o
que foi defendido por Aristipo de Cirene (livro II) Em siacutentese essa discordacircncia compreende
dois pontos baacutesicos
Jaacute falamos que Epicuro concebe um prazer em movimento e outro em repouso Para
ele ldquoa tranquilidade perfeita e a ausecircncia completa de sofrimento satildeo prazeres estaacuteticos a
alegria e o deleite satildeo prazeres em movimento enquanto vistos em sua atividaderdquo (DL X
136) Em contrapartida os cirenaicos defendem apenas a existecircncia dos prazeres cineacuteticos
(DL II 89) Eles entendem que tanto a dor quanto o prazer satildeo movimentos sendo esse
suave e aquele brusco (DL II 86) Mas Aristipo natildeo concebe que a ausecircncia de dor possa
ser pensada como um estado de prazer (DL II 89) A aponiacutea e a ataraxiacutea natildeo se
constituiriam como estados prazerosos pois natildeo implicam em movimento mas em um estado
neutro Aleacutem disso o prazer eacute o fiacutesico que eacute o fim supremo (DL II 87) Para a escola de
Cirene ldquosoacute no corpo haacute o prazer e eacute a uacutenica finalidaderdquo (BOLLACK 1975 p 150) Poreacutem
para Epicuro tanto o sarkoacutes quanto a psycheacute satildeo afetados pelo prazer O gozo do corpo eacute
sentido pela alma tanto quanto a imperturbabilidade da alma tem seu reflexo no organismo
123 Ὅταν οὖν λέγωμεν ἡδονὴν τέλος ὑπάρχειν οὐ τὰς τῶν ἀσώτων ἡδονὰς καὶ τὰς ἐν ἀπολαύσει κειμένας λέγομεν ὥς τινες ἀγνοοῦντες καὶ οὐχ ὁμολογοῦντες ἢ κακῶς ἐκδεχόμενοι νομίζουσιν ἀλλὰ τὸ μήτε ἀλγεῖν κατὰ σῶμα μήτε ταράττεσθαι κατὰ ψυχήνmiddot 124 Vidas e Doutrinas dos Filoacutesofos Ilustres Op Cit
60 (athroiacutesma)
Outro aspecto de divergecircncia entre essas duas escolas estaacute ligado ao peso que cada
prazer tem na construccedilatildeo de uma vida feliz Em Aristipo os prazeres satildeo todos iguais (DL II
87) todos devem ser buscados e nisto consiste a virtude Do mesmo modo de toda dor se
deve fugir Mas para Epicuro nem todo prazer deve ser desejado assim como nem toda dor
deve ser evitada Tal seria o caso por exemplo de atividades fiacutesicas que no momento de sua
execuccedilatildeo podem trazer desconfortos mas que vatildeo servir para a manutenccedilatildeo da sauacutede e bem-
estar do corpo Tambeacutem podemos considerar que seja por desconhecimento a respeito das
coisas da natureza ou por engano (hamathiacutea) a busca por certos prazeres pode levar a
experimentar o indesejado Afinal ldquonenhum prazer eacute um mal por si mesmo poreacutem aquilo que
produz alguns prazeres traz perturbaccedilotildees muitas vezes maiores que os proacuteprios prazeresrdquo (MC
8)125 Isso ocorre quando o homem se deixa guiar pela opiniatildeo vazia pelos valores
convencionados que se projetam em ambiccedilotildees e desejos desmedidos Nesse caminho ele se
distancia do gozo da tranquilidade Isso porque o prazer pensado sem criteacuterios e distanciado
de sua finalidade - que eacute a de proporcionar uma vida feliz - submete o homem a uma tirania
dos desejos Para esse homem natildeo basta se saciar com o essencial para um estado de
harmonia eacute preciso ter mais e de acordo com a opiniatildeo dos muitos Como resultado tem-se
um modo de vida atribulado e infeliz E isso vai de encontro agrave noccedilatildeo de hedoneacute postulada por
Epicuro
Desse modo o prazer natildeo eacute desejaacutevel por si mesmo como defendem os cirenaicos
(DL II 90) mas na medida em que ele proporciona o equiliacutebrio para o corpo e para a alma
Da mesma forma agrave dor cabe uma reflexatildeo quanto agrave possibilidade de ela trazer algum
beneficio para a sauacutede do homem Afinal a filosofia epicurista se apresenta como uma
therapeiacutea entatildeo eacute preciso direcionar toda escolha (aiacuterisis) e toda recusa (phygeacute) para esse
estado saudaacutevel E eacute aiacute que se percebe o papel da phroacutenesis e do logismoacutes na regulaccedilatildeo dos
desejos e na escolha dos prazeres a serem buscados Eacute por meio desses mecanismos operados
pela psycheacute que o saacutebio vai poder escolher em funccedilatildeo do seu proacuteprio bem-estar
No que diz respeito agrave finalidade uma diferenciaccedilatildeo eacute necessaacuteria de ser destacada
Quando Epicuro postula que o bem a ser alcanccedilado eacute o prazer ele o faz se contrapondo agrave ideia
de que eacute na busca da felicidade (eudaimoniacutea) que encontramos o sentido de nossa existecircncia
Se ldquoa eudaimoniacutea supotildee uma soma de prazeres (prazeres presentes passados e a esperanccedila de
125 Οὐκ ἐπαύξεται ἐν τῆι σαρκὶ ἡ ἡδονὴ ἐπειδὰν ἅπαξ τὸ κατ ἔνδειαν ἀλγοῦν ἐξαιρεθῆι ἀλλὰ μόνον ποικίλλεται τῆς δὲ διανοίας τὸ πέρας τὸ κατὰ τὴν ἡδονὴν ἀπεγέννησεν ἥ τε τούτων αὐτῶν ἐκλόγισις καὶ τῶν ὁμογενῶν τούτοις ὅσα τοὺς μεγίστους φόβους παρεσκεύαζε τῆι διανοίαι
61 realizaacute-los no futuro)rdquo (SILVA 2017 97)126 a noccedilatildeo de hedoneacute por outro lado implica em
uma atividade que traz consigo o seu fim O prazer de beber aacutegua quando se estaacute com sede
vem junto com o ato de beber aacutegua Nesse sentido o que se tem na vida eacute um descontiacutenuo
onde aos momentos de prazer podem se suceder momentos de dor Mas conveacutem notar que
quando Epicuro se refere ao prazer natildeo estaacute limitando o significado desse termo ao gozo
sexual prazeroso eacute tudo o que se relaciona com nosso equiliacutebrio vital expresso na ausecircncia
de dores fiacutesicas (aponiacutea) e de atribulaccedilotildees da psycheacute
O escopo da filosofia epicurista como se pode ver eacute a realizaccedilatildeo do prazer Hedoneacute eacute
o bem buscado o teacutelos ou a finalidade natural para a qual converge a pragmateiacutea do saacutebio
Por isso ele deve submeter suas accedilotildees ao ldquoobjetivo da naturezardquo (tograve teacutelos tecircs phyacuteseos)127 Daiacute
a necessidade de refletir intensamente sobre ldquoa finalidade da naturezardquo (tograve tecircs phyacuteseos
epilelogismeacutenou teacutelos)128 para poder estabelecer um modo de viver de acordo com o
conhecimento que se pode ter sobre a phyacutesis
Ocorre que pensar a finalidade da natureza dotando essa expressatildeo de um valor
teleoloacutegico e dentro do contexto de uma filosofia que procura derrogar qualquer sentido
providencial sugere uma contradiccedilatildeo que precisa ser explicada A physiologiacutea ao tratar dos
modos de ser da natureza e das forccedilas que operam para a realizaccedilatildeo desses modos natildeo alude a
nenhum desiacutegnio ou preacute-disposiccedilatildeo anterior ou fora da phyacutesis atuando no vir-a-ser e no
deixar-de-ser daquilo que compotildee a realidade ldquoA natureza seja a natureza considerada como
um todo ou a natureza proacutepria a cada coisa particular eacute fundamentalmente sem finalidade
porque ela natildeo eacute orientada em seu desenvolvimento por nenhum programa preexistente agrave sua
existecircnciardquo (MOREL 2009 p 168) Entatildeo como entender o sentido emergido da articulaccedilatildeo
das noccedilotildees de teacutelos e phyacutesis sem pensar em ldquoorientaccedilatildeo lsquoteleoloacutegicarsquo (idem p 169)
Epicuro se refere a um bem segundo a natureza (tograve tecircs phyacuteseos agathoacuten)129 agrave riqueza
segundo a natureza (ho tecircs phyacuteseos ploucirctos)130agrave justiccedila segundo a natureza (tograve tecircs phyacuteseos
dikaioacuten)131 Todas essas formas podem sugerir haver no epicurismo uma menccedilatildeo a uma
prescriccedilatildeo da natureza para o homem como condiccedilatildeo para realizaccedilatildeo dele E isso pode induzir
a se tentar ver na phyacutesis uma intenccedilatildeo nos seus modos de ser
Para tentar esclarecer esse aspecto evocamos a tese segundo a qual Epicuro quando 126 SILVA Markus O Hedonismo na Obra Vidas e Doutrinas dos Filoacutesofos Ilustres de Dioacutegenes Laeacutercio Os Cirenaicos e Epicuro Rio de Janeiro Phoicircnix 2017 127 Maacutexima Capital 25 τὸ τέλος τῆς φύσεως 128 DL X 133 τὸ τῆς φύσεως ἐπιλελογισμένου τέλος 129 Maacutexima Capital 7 τὸ τῆς φύσεως ἀγαθόν 130 Maacutexima Capital 15 Ὁ τῆς φύσεως πλοῦτος 131 Maacutexima Capital 31 Τὸ τῆς φύσεως δίκαιόν
62 faz referecircncia ao termo teacutelos o faz tendo em vista uma acepccedilatildeo mais restrita de seu
significado Ao se referir agrave finalidade da natureza ele estaacute se remetendo ao ldquolimite fixado pela
natureza fiacutesica em noacutes como fora de noacutesrdquo (MOREL 2009 p 171) Isso estaacute relacionado com
a possibilidade que temos para perceber esses limites por meio das sensaccedilotildees de prazer e dor
Assim pensar a vida de acordo com a natureza ou considerar o fim da natureza diz respeito a
conhecer os limites naturais e estabelecer um modo de viver de acordo com eles A vida katagrave
phyacutesin natildeo eacute uma ordenaccedilatildeo da natureza Natildeo haacute uma ldquoorientaccedilatildeordquo natural nesse sentido No
epicurismo a physiologiacutea permite inteligir da natureza um saber que a coloca como modelo e
medida para a realizaccedilatildeo do homem Mas cabe a ele estabelecer um eacutethos dentro dessa
medida Nesse sentido viver de acordo com a natureza consiste em estabelecer um
espelhamento desse modelo trazendo esses limites para guiar a maneira de viver
Encontramos essa perspectiva expressa em duas metaacuteforas poeacuteticas Uma delas eacute
apresentada no poema de Lucreacutecio no livro II de Da Natureza
Eacute bom quando os ventos revolvem a superfiacutecie do grande mar ver da terra os rudes trabalhos por que estatildeo passando os outros natildeo porque haja qualquer prazer na desgraccedila de algueacutem mas porque eacute bom presenciar os males que natildeo se sofrem () Mas nada haacute de mais agradaacutevel do que ocupar os altos e serenos lugares fortificados pelas doutrinas dos saacutebios donde se podem ver os mais errar por um lado e procurar ao acaso o caminho da vida () (Lucr II)132
Da terra firme o poeta olha para o mar furioso e sente a calma por estar ali ao abrigo
dos ventos e das ondas Eacute essa tranquilidade que eacute identificada agrave finalidade da natureza E a
filosofia ao conduzir o pensamento para inteligir da phyacutesis os bens que devem ser buscados e
a medida para a realizaccedilatildeo de cada coisa mostra sua utilidade para a consecuccedilatildeo de uma vida
feliz (makariacuteos zecircn) Eacute nessa mesma palheta que outra analogia eacute desenhada por Epicuro
quando usa o termo galenismoacutes133 para se referir agrave serenidade que a alma do sophoacutes deve
experimentar A palavra evoca a imagem de um mar que de tatildeo calmo quase natildeo tem
ondulaccedilotildees Eacute essa serenidade que traduz o que busca o saacutebio ao viver de acordo com ou
conforme as finalidades da natureza Nesse sentido os limites vatildeo ser colocados como uma
defesa contra armadilhas da imaginaccedilatildeo e a repleccedilatildeo vai ser o limite contra a paixatildeo
desmedida
132 LUCREacuteCIO Da Natureza Satildeo Paulo Abril Cultural 1985 (Os Pensadores) Traduccedilatildeo de Agostinho da Silva p 110 133 DL X 83 πρὸς γαληνισμὸν ποιοῦνται
63 13 A finalidade do saber
Um olhar histoacuterico sobre a produccedilatildeo do pensamento filosoacutefico nos mostra diferentes
modos de tentar compreender a origem das coisas e de si mesmo Nos poemas de Homero134 e
de Hesiacuteodo135 percebemos a tendecircncia a se valer do miacutetico do maacutegico-religioso para pensar o
homem o cosmos e as forccedilas que nele operam ldquoEacute pela voz dos poetas que o mundo dos
deuses em sua distacircncia e sua estranheza eacute apresentado aos humanos em narrativas que
potildeem em cena as potecircncias do aleacutem revestindo-as de uma forma familiar acessiacutevel agrave
inteligecircnciardquo (VERNANT 2009 p 15)136 Mas por volta do seacuteculo VI aC Tales de
Mileto137 iniciou outra tradiccedilatildeo no jeito de explicar a realidade Deixando de lado o divino-
fantaacutestico a alusatildeo ao miacutetico ele postulou que o princiacutepio de tudo era a aacutegua num sinal de
que as explicaccedilotildees para os fenocircmenos da natureza podiam ser buscadas nela mesma
Os epicuristas satildeo tributaacuterios dessa tradiccedilatildeo iniciada por Tales e continuada por outros
filoacutesofos naturalistas138 No Jardim busca-se compreender a phyacutesis pelo que ela mostra de si
proacutepria sem necessidade de recorrer a nenhuma natureza exterior a ela mesma de evocar
mitos nem valer-se da crenccedila no sobrenatural Para tanto a multiplicidade das coisas e dos
fenocircmenos eacute explicada a partir de princiacutepios inteligiacuteveis existentes ontologicamente e
inscritos na phyacutesis aacutetomo e vazio Dessa forma a natureza eacute pensada tendo como referecircncia o
sensiacutevel o imanente e portanto pertence ao campo do que eacute conheciacutevel (gnostoacutes)139 Cabe ao
homem a partir das impressotildees que a realidade-phyacutesis lhe coloca diante dos sentidos fazer o
desvelamento dela ateacute onde ele eacute capaz
Estabelecer um saber acerca da natureza fundamentado no que ela apresenta aos
nossos sentidos eacute uma perspectiva que evoca opiniotildees divergentes Diante do questionamento
a respeito de ateacute que ponto eacute possiacutevel estabelecer uma verdade ancorada na natureza sensiacutevel
encontramos respostas que vatildeo de encontro a esse entendimento Tal eacute o caso de Xenoacutefanes
que afirmava ldquohomem nenhum conhece a certeza e homem nenhum jamais a conheceraacuterdquo
(DL IX 72) Demoacutecrito dizia ldquode fato nada sabemos pois a verdade estaacute num abismordquo (DL
134 A tradiccedilatildeo atribui a Homero (teria vivido por volta do seacuteculo VIII aC) a autoria de Iliacuteada e Odisseia Esses poemas satildeo considerados como determinantes para a formaccedilatildeo do homem grego Nessas obras os mitos eram utilizados para explicar e justificar as coisas do homem do mundo e dos deuses 135 Hesiacuteodo (poeta grego do fim do seacuteculo VIII - iniacutecio seacutec VII ac) na Teogonia faz uma genealogia dos deuses e procura explicar o ordenamento do mundo a partir de um estado inicial de caos Em certo sentido ele anuncia um trabalho de reflexatildeo sobre o cosmos que seraacute desenvolvido por outros preacute-Socraacuteticos 136 VERNANT Jean-Pierre Mito e Religiatildeo na Greacutecia Antiga Satildeo Paulo Martins Fontes 2009 137 Tales de Mileto (fim do seacutec VII ndash primeira metade do seacutec VI aC) 138 Nessa linha temos Anaximandro Anaxiacutemenes Heraacuteclito Leucipo Demoacutecrito 139 DL X 68 Γνωστός
64 IX 72) E Empeacutedocles explicava que ldquoos homens natildeo sabem perceber essas coisas nem com
os olhos nem com os ouvidos e nem com a menterdquo (DL IX 73)
Por traacutes dessas afirmaccedilotildees podemos entrever seja uma postura ceacutetica quanto agrave
possibilidade de obter um conhecimento verdadeiro seja a descrenccedila no testemunho dos
sentidos E isso remete para uma discussatildeo parmeniacutedica em que se faz uma contraposiccedilatildeo
entre a verdade (aleacutetheia) e a opiniatildeo (doacutexa) A questatildeo eacute de saber se o que se percebe pela
via dos sentidos pode ser pensado como um conhecimento verdadeiro ou trata-se tatildeo somente
de opiniatildeo Ou como podemos alcanccedilar a verdade sobre a natureza
Ora o conhecimento definido como a possibilidade de se estabelecer ldquoa verdaderdquo
acerca da realidade natildeo eacute o que postula Epicuro ldquoEle procura natildeo a explicaccedilatildeo mas uma
explicaccedilatildeo dos diversos fenocircmenos naturaisrdquo (SALEM 1982 p 18) Trata-se de constituir
um saber que sirva para fundamentar um modo saacutebio de viver Em vista disso o escopo da
physiologiacutea eacute ldquoo entendimento da natureza das coisas fundamentaisrdquo (DL X 45)140 e isso
implica em explicar a phyacutesis dentro de sua imanecircncia Nesse sentido ldquoo mito deve ser
excluiacutedo e seraacute excluiacutedo se nos apegarmos corretamente aos fenocircmenos e a partir destes
procedermos por induccedilatildeo agrave interpretaccedilatildeo das coisas que natildeo caem no acircmbito dos sentidosrdquo
(DL X 104)141 Com isso postula-se que a investigaccedilatildeo da phyacutesis estaacute ligada agrave necessidade
do saacutebio estabelecer um loacutegos sobre a natureza sem ter que recorrer a explicaccedilotildees que
transcendam os limites dela E isso segue no sentido de uma tendecircncia de laicizaccedilatildeo142 do
conhecimento que vai caracterizar a passagem do seacuteculo V para o seacuteculo IV aC Se no
poema de Parmecircnides143 o poeta eacute levado num carro pelas ldquofilhas do Solrdquo ateacute o encontro da
deusa144 que vai lhe revelar a verdade acerca do ser em Epicuro busca-se aprender por meio
de um exerciacutecio de investigaccedilatildeo da natureza o que pode conduzir a um estado de destemor
com relaccedilatildeo ao desconhecido Daiacute a necessidade do loacutegos se distanciar do myacutethos e se
fundamentar na sensibilidade (aiacutesthesis)
Vale destacar que no movimento do pensamento buscar um saber sobre a realidade o
saacutebio caminha pela via do loacutegos mas ele se daacute conta de que nem tudo se revela totalmente ao
140 ὑποβάλλει ltταῖς περὶgt τῆς τῶν ὄντων φύσεως ἐπινοίαις 141 μόνον ὁ μῦθος ἀπέστωmiddot ἀπέσται δέ ἐάν τις καλῶς τοῖς φαινομένοις ἀκολουθῶν περὶ τῶν ἀφανῶν σημειῶται 142 Sobre essa transformaccedilatildeo Marcel Detienne trata por meio da relaccedilatildeo antiteacutetica entre a ldquopalavra maacutegico-religiosardquo e a ldquopalavra-diaacutelogordquo em especial no capiacutetulo V onde discute ldquoO processo de Laicizaccedilatildeordquo DETIENNE Marcel Os Mestres da Verdade na Greacutecia Arcaica Rio de Janeiro Zahar 2003 143 Parmecircnides de Eleia (cerca de 515 - 460 aC) Seu poema Sobre a natureza foi conservado pela tradiccedilatildeo por meio de fragmentos 144 ldquoPercebemos agora que o jovem eacute o lsquohomem sabedorrsquo e que a intenccedilatildeo de sua demanda eacute buscar o saber que soacute os deuses podem proporcionar aos mortaisrdquo destaca Joseacute Trindade Santos em seus comentaacuterios a PARMEcircNIDES Da Natureza Satildeo Paulo Loyola 2013 p 54
65 pensamento racional Eacute preciso ldquoter em vista quais as coisas que o homem pode discernir e
quais as que natildeo poderdquo (DL X 94)145 Isso considera tanto as limitaccedilotildees do entendimento
quanto as da comunicaccedilatildeo Afinal nem tudo que incita a intuiccedilatildeo eacute possiacutevel colocar em
termos de uma linguagem clara objetiva Esse niacutevel da phyacutesis - fugidio agraves palavras - Epicuro
busca traduzir no num loacutegos fundamentado no sensiacutevel Ao considerar que o inteligiacutevel eacute da
ordem do imanente pode-se tratar dele por meio de comparaccedilotildees metaacuteforas analogias
similitude com o aquilo que compotildee nosso campo de experiecircncias
Assim embora os sentidos natildeo alcancem o inteligiacutevel eacute possiacutevel estabelecer um loacutegos
a respeito dele Quando se pensa na poeira refletida contra a luz pode-se falar por
semelhanccedila a essa imagem dos aacutetomos e de como eles podem se comportar no interior dos
corpos O saber edificado a partir da sensibilidade eacute dessa forma ponto de partida para toda
analogia feita em direccedilatildeo ao microcosmo ou ao macrocosmo Nosso modo de conceber o
mundo se daacute portanto a partir de uma relaccedilatildeo sensiacutevel com ele Para Epicuro esse eacute o uacutenico
recurso que o homem tem para pensar a natureza imperceptiacutevel (aacutedelos)
Nesse sentido natildeo haacute a finalidade de dogmatizar a compreensatildeo da natureza no
epicurismo mas de fazer entender a possibilidade de pensar o mundo a partir de sua
naturalidade sem necessidade de recorrer ao mito Afinal ldquoem nenhum caso deve adotar-se
para uma explicaccedilatildeo desse gecircnero a natureza divina ao contraacuterio cumpre-nos conservaacute-la
livre de qualquer tarefa e em perfeita bem-aventuranccedilardquo (DL X 97)146 A finalidade do saber
que decorre da physiologiacutea estaacute ligada agrave necessidade de afastar a crenccedila em causas
sobrenaturais intervindo na natureza E para isso Epicuro estabelece um meacutetodo de
investigaccedilatildeo que tanto pode estabelecer explicaccedilotildees para problemas fiacutesicos por meio da
admissatildeo de causa uacutenica (a natureza da alma eacute corpoacuterea por exemplo) como pode tratar dos
fenocircmenos celestes por meio de causas muacuteltiplas (o surgir e o pocircr-do-sol se devem ao
ldquoacendimento e apagamentordquo mas tambeacutem podem ocorrer ldquopor apariccedilatildeo sobre a terra e
novamente por ocultaccedilatildeordquo147) Em qualquer caso as explicaccedilotildees devem remeter aos
fenocircmenos sensiacuteveis
Disso eacute preciso reter que natildeo havendo condiccedilotildees de esclarecer todos os fenocircmenos
que acontecem na natureza procede-se com esse meacutetodo com aqueles que podem ser
explicados enquanto aguarda-se a possibilidade de elucidar o modo de ser dos outros Isso
145 τεθεωρηκὼς τί δυνατὸν ἀνθρώπῳ θεωρῆσαι καὶ τί ἀδύνατον καὶ διὰ τοῦτο ἀδύνατα θεωρεῖν ἐπιθυμῶν 146 ἔνια καὶ παρrsquo ἡμῖν τῶν τυχόντων γίνεται λαμβανέσθωmiddot καὶ ἡ θεία φύσις πρὸς ταῦτα μηδαμῇ προσαγέσθω ἀλλrsquo ἀλειτούργητος διατηρείσθω καὶ ἐν τῇ πάσῃ μακαριότητι 147 DL X 92 γίνεσθαι δυνατὸν καὶ κατὰ σβέσιν ou por ἐκφάνειάν τε ὑπὲρ γῆς καὶ πάλιν ἐπιπρόσθησιν
66 porque ldquoa razatildeo desenvolve escrupulosamente o que recebe da natureza e faz descobertas em
alguns campos mais velozmente e em outros mais lentamente e em algumas ocasiotildees e
eacutepocas faz progressos maiores e em outras faz progressos menoresrdquo (DL X 75)148 Ou seja
mesmo que em dado momento natildeo seja possiacutevel elucidar certo aspecto ou acontecimento da
natureza isso natildeo significa dizer que natildeo haja uma explicaccedilatildeo para tal O saber eacute um processo
de construccedilatildeo de elaboraccedilatildeo de um loacutegos que pode ainda natildeo estar suficientemente
desenvolvido para definir uma seacuterie de coisas que jaacute inquietam a alma do sophoacutes mas que
ainda natildeo ganharam forma explicativa Ademais Epicuro tambeacutem natildeo estaacute tentando explicar
tudo mas apontando para a possibilidade de entender a natureza sem recorrer aos deuses E
isso estaacute de acordo com o aspecto utilitaacuterio de sua filosofia que consiste em livrar o homem
de irracionalidades e de opiniotildees vazias (DL X 87) condiccedilatildeo para ele viver sem
perturbaccedilotildees Eacute em torno dessa finalidade que Epicuro vai dar agrave questatildeo do conhecimento
uma dimensatildeo praacutetica como veremos a seguir
131 O conhecimento (gnoacutesis)
A noccedilatildeo de conhecimento no epicurismo estaacute ligada agrave necessidade de apresentar uma
orientaccedilatildeo para levar o saacutebio a vivenciar a autaacuterkeia e experimentar uma vida feliz (makariacuteos
zecircn) Em delineando o saacutebio como aquele que estabelece um eacutethos de acordo com a
compreensatildeo que tem da natureza Epicuro vai pensar a physiologiacutea como uma investigaccedilatildeo
que direciona o sentido do conhecer a natureza para estabelecer o modo de viver do saacutebio
Essa perspectiva contrasta com aquela percebida no Mito da Caverna descrito por
Platatildeo149 Aliacute um dos homens que vivia aprisionado consegue sair e descobrir o que lhe
parece ser o mundo real Ele volta para compartilhar sua descoberta com aqueles que ficaram
na caverna Mas o conhecimento trazido por ele causa estranheza e desconfianccedila aos outros Eacute
como se eles vissem uma distacircncia entre o que aquele homem apresentava como verdade e as
necessidades que eles percebiam em suas vidas
Jaacute no epicurismo o conhecimento estaacute diretamente vinculado agrave utilidade que ele tem
para a vida (biacuteos)150 ou seja para auxiliar o homem em seu exerciacutecio cotidiano de existir O
148
τὸν δὲ λογισμὸν τὰ ὑπὸ ταύτης παρεγγυηθέντα ὕστερον ἐπακριβοῦν καὶ προσεξευρίσκειν ἐν μέν τισι θᾶττον ἐν δέ τισι βραδύτερον καὶ ἐν μέν τισι περιόδοις καὶ χρόνοις [ἀπὸ τῶν ἀπὸ τοῦ ἀπείρου] ltκατὰ μείζους ἐπιδόσειςgt ἐν δέ τισι κατrsquo ἐλάττους 149 PLATAtildeO A Repuacuteblica 514a-517c 150 Para se referir agrave vida Epicuro usa dois termos ζην e βίος Considerando os estudos filoloacutegicos de Bollack ζην se reporta ao ldquoprocesso de existecircncia bioloacutegicardquo enquanto βίος exprime a noccedilatildeo de uma realizaccedilatildeo humana
67 saber que resulta da physiologiacutea deve servir para que na impossibilidade de se alcanccedilar a
verdade se possa ter uma opiniatildeo verdadeira (doacutexa aletheacutes) a respeito da phyacutesis e com isso
poder agir conforme a finalidade da natureza (teacutelos tecircs phyacuteseos)
Entretanto esse aspecto da filosofia epicurista tem sido mal compreendido por aqueles
que a analisam buscando nela uma ciecircncia um sistema teoacuterico uma verdade comprovaacutevel E
isso eacute desconsiderar que a physiologiacutea tem como escopo permitir a construccedilatildeo de um
entendimento sobre a phyacutesis relacionado com o proceder do homem no dia a dia eacute a partir do
saber que ela engendra que o saacutebio vai exercitar sua pragmateiacutea (como trataremos nos
capiacutetulos II III e IV) Ela natildeo pretende apresentar provas fazer demonstraccedilatildeo (apoacutedeixis)151
constituir-se como uma epistemologia mas expor mostrar (epiacutedeixis)152 a possibilidade de
pensar a natureza a partir do que ela revela aos nossos sentidos sem recorrer ao teoloacutegico
nem se tutelar por opiniotildees vazias (kenaigrave doacutexai)
O conhecimento dos fenocircmenos do ceacuteu natildeo tem outro fim que a ataraxiacutea Ora para alcanccedilar a ataraxiacutea natildeo eacute necessaacuterio saber positivamente de que maneira esses fenocircmenos se produzem basta saber negativamente de que maneira eles natildeo se produzem (pela intervenccedilatildeo dos deuses) (CONCHE 1977 p 38)
Nesse sentido cabe mais falar de conhecimento como gnose (gnoacutesis) e eacute esse o termo
que Epicuro usa na Carta a Heroacutedoto153 na Carta a Meneceu154 e na sentenccedila vaticana 27
Trata-se de um saber decorrente de um exerciacutecio de pensar a proacutepria vida e a natureza na qual
aquela se situa tendo como referecircncia aquilo que eacute fenomecircnico fiacutesico Em outros termos a
gnoacutesis epicurista tem como princiacutepio e fim a experiecircncia de viver Ela eacute elaborada a partir das
impressotildees que adquirimos da realidade sensiacutevel e ldquonatildeo tem outra finalidade aleacutem de
assegurar a paz de espiacuterito e a convicccedilatildeo firmerdquo (DL X 85)155
A necessidade de ancorar esse discurso (loacutegos) de verdade em evidencias
cosmoloacutegicas fisioloacutegicas e antropoloacutegicas eacute o que vai auferir agrave gnose uma condiccedilatildeo
diferente daqueles mitos e das opiniotildees vazias Por essa razatildeo a lsquomostraccedilatildeorsquo (epiacutedeixis) estaacute
sempre atrelada ao mundo sensiacutevel Eacute visando esse mostrar que o pensamento vai operar por
que se estabelece ao se considerar o devir do tempo Para que a vida seja feliz (μακαρίως ζῆν) e isso seja sentido organicamente eacute preciso que a vida (βίος) seja organizada direcionada para estar de acordo com a natureza (κατὰ φύσιν) (BOLLACK 1975 p 521) 151 Para expor o sentido de ἀπόδειξις Anatole Bailly Op Cit fala de accedilatildeo de fazer ver expor demonstrar apresentar prova 152 Anatole Bailly Op Cit trata o termo ἐπίδειξις no sentido de exibiccedilatildeo de tornar notoacuterio de declamaccedilatildeo de ldquomostraccedilatildeordquo 153 DL X 78 79 85 154 DL X 123 124 155 οὖν μὴ ἄλλο τι τέλος () νομίζειν ltδεῖgt εἶναι ἤπερ ἀταραξίαν καὶ πίστιν βέβαιον
68 meio de analogias (analogiacuteai) para estabelecer uma reflexatildeo a respeito daquilo a que natildeo se
tem acesso direto pelos sentidos Isso acontece quando se estabelece uma comparaccedilatildeo entre
aquilo que compotildee nossas impressotildees sensiacuteveis (proleacutepseis) e o que escapa aos nossos
sentidos mas eacute phyacutesis Dessa forma eacute possiacutevel estabelecer um loacutegos acerca do que se
inscreve no niacutevel macrocoacutesmico ou microcoacutesmico da realidade Ao tratar disso Epicuro
tambeacutem se refere agraves projeccedilotildees imaginaacuterias do pensamento (phantastikegraves epiboleacutes tecircs
dianoiacuteas)156 como uma maneira de falar do que eacute inteligiacutevel recorrendo a uma imagem
explicativa originada da natureza sensiacutevel Em outras palavras parte-se do acervo das
proacutelepseis para projetar um loacutegos acerca do que natildeo eacute percebido pelos sentidos Eacute o que se daacute
quando se busca ter uma ldquovisatildeo de conjuntordquo (athroacuteas epiboleacutes)157 da natureza Se natildeo posso
alcanccedilar a totalidade do que existe posso contudo projetar o pensamento de maneira a
permitir metafisicamente um conceito de totalidade e pensar a realidade como todo
ilimitado Desse modo o pensamento daacute um lsquosaltorsquo para falar do que eacute desconhecido (aacutedelos)
Tudo isso estaacute relacionado ao logismoacutes que pode ser definido158 como uma
capacidade da psycheacute para calcular raciocinar para fazer uma operaccedilatildeo racional Eacute por meio
dessa atividade (que permite fazer analogias e projeccedilotildees) que mesmo sem poder ver o
universo infinito nem sentir o aacutetomo em sua minuacutescula existecircncia o homem pode tentar
entender essas dimensotildees da realidade Dessa forma busca-se estabelecer uma reflexatildeo
metafiacutesica mas fundamentada na imanecircncia uma vez que eacute a partir do referencial sensiacutevel
constitutivo do acervo de memoacuteria do homem que o pensamento vai poder se projetar tanto
para o macrocosmos quanto para o niacutevel micro da realidade Assim o loacutegos resulta dessa
possibilidade do pensamento racional e imaginativo Embora ele natildeo seja capaz de estabelecer
a verdade (aleacutetheia) ele pode por meio das proleacutepseis interpretar a realidade constituindo
uma orthegrave doacutexa
Estamos com isso dizendo que o conhecimento origina-se na realidade sensiacutevel
conforme Epicuro trata na Carta a Heroacutedoto O entendimento desse processo gnoseoloacutegico
passa pela compreensatildeo de que o iniacutecio do conhecer estaacute no corpo que eacute quem percebe o
mundo Isso se daacute quando nossas vias de percepccedilatildeo (tato visatildeo audiccedilatildeo olfato paladar)
recebem ou captam do objeto da realidade suas imagens (eiacutedola)159 Eacute desse encontro que se
gera uma afecccedilatildeo (paacutethos) que pode ser entendida como um contato estabelecido entre o
156 DL X 147 φανταστικὴν ἐπιβολὴν τῆς διανοίας 157 DL X 35 ἀθρόας ἐπιβολῆς 158 Markus Silva Termos Filosoacuteficos de Epicuro Op Cit 159 Satildeo emanaccedilotildees que chegam aos nossos oacutergatildeos sensoriais sob variadas formas emanaccedilotildees imageacuteticas olfativas sonoras
69 corpo senciente e o corpo sensiacutevel seja diretamente ou por meio de suas eiacutedola ldquoEacute pela
penetraccedilatildeo em noacutes de qualquer coisa vinda de fora que vemos as figuras das coisas e fazemos
delas objeto de nosso pensamentordquo (DL X 49) Em outros termos tudo que se conhece pelos
oacutergatildeos sensiacuteveis se daacute por afecccedilatildeo Noacutes somos tocados pelo cheiro pela imagem pelo som
satildeo aacutetomos que chegam ateacute noacutes Essa afecccedilatildeo gera no homem a sensaccedilatildeo (aiacutesthesis) que eacute
para Epicuro a base de todo conhecimento Satildeo as sensaccedilotildees que seratildeo gravadas em nossa
memoacuteria (mneacuteme) e vatildeo constituir na psycheacute uma imagerie do mundo o repertoacuterio de
impressotildees sensiacuteveis ou preacute-noccedilotildees (proleacutepseis) de nossa alma Eacute a partir dessas impressotildees
que o pensamento faz as projeccedilotildees imaginaacuterias do pensamento (phantastikegraves epibolegraves tecircs
dianoiacuteas) e pode estabelecer um loacutegos a respeito tanto do niacutevel macro quanto do microfiacutesico
132 Criteacuterios de verdade
Uma vez que ldquoa representaccedilatildeo que recebemos com a impressatildeo direta da mente ou nos
oacutergatildeos sensoriais seja da forma seja das outras propriedades eacute a mesma forma do corpo
soacutelido tal qual resulta da coesatildeo iacutentima da imagem ou de seus vestiacutegios restantesrdquo (DL X
50)160 o erro natildeo estaacute na sensaccedilatildeo mas pode decorrer das afirmaccedilotildees estabelecidas sobre ela
Em outros termos a realidade sensiacutevel natildeo eacute subjetividade eacute fenocircmeno real e como tal eacute
percebida pelo homem Eacute por haver essa relaccedilatildeo direta objetiva entre a imagem (eiacutedola)
percebida e o objeto do qual ela emana que Epicuro reconhece a autenticidade desse saber
Desse modo eacute a opiniatildeo que deve ser considerada como uma suposiccedilatildeo que pode ou natildeo ter
valor de verdade Daiacute ser necessaacuterio considerar a veracidade ou a falsidade dessas afirmaccedilotildees
e para isso
() devemos compatibilizar todas as nossas investigaccedilotildees com nossas sensaccedilotildees e particularmente com as apreensotildees imediatas sejam elas da mente ou de qualquer outro instrumento de juiacutezo e compatibilizaacute-las igualmente com os sentimentos existentes em noacutes para podermos ter indicaccedilotildees que nos permitam julgar o problema da percepccedilatildeo por via dos sentidos e do que eacute imperceptiacutevel aos sentidos (DL X 38)161
Essa passagem nos remete para pensar que se a sensaccedilatildeo eacute verdade mas o que se diz
sobre ela pode natildeo ser entatildeo eacute preciso estabelecer um criteacuterio de distinccedilatildeo entre opiniatildeo
160 καὶ ἣν ἂν λάβωμεν φαντασίαν ἐπιβλητικῶς τῇ διανοίᾳ ἢ τοῖς αἰσθητηρίοις εἴτε μορφῆς εἴτε συμβεβηκότων μορφή ἐστιν αὕτη τοῦ στερεμνίου γινομένη κατὰ τὸ ἑξῆς πύκνωμα ἢ ἐγκατάλειμμα τοῦ εἰδώλουmiddot 161 ἔτι τε καὶ τὰς αἰσθήσεις δεῖ πάντως τηρεῖν καὶ ἁπλῶς τὰς παρούσας ἐπιβολὰς εἴτε διανοίας εἴθrsquo ὅτου δήποτε τῶν κριτηρίων ὁμοίως δὲ καὶ τὰ ὑπάρχοντα πάθη ὅπως ἂν καὶ τὸ προσμένον καὶ τὸ ἄδηλον ἔχωμεν οἷς σημειωσόμεθα
70 verdadeira e falsa Na Carta a Heroacutedoto se explica ldquoa opiniatildeo eacute verdadeira se a evidecircncia dos
sentidos a confirma ou natildeo a contradiz eacute falsa se a evidecircncia dos sentidos natildeo a confirma ou a
contradizrdquo (DL X 34) Assim essa diferenciaccedilatildeo eacute estabelecida por Epicuro a partir de
ldquocriteacuterios da verdaderdquo (DL X 31) Tais criteacuterios se datildeo em observacircncia agraves sensaccedilotildees
(aiacutestheseos) agraves antecipaccedilotildees (proleacutepseis) e agraves projeccedilotildees imaginaacuterias do pensamento
Como apontado acima as sensaccedilotildees (aiacutestheseos) se constituem como uma via para o
conhecimento Delas se tem a evidecircncia fundamental da realidade do que experimentamos
Uma vez que os objetos da phyacutesis produzem imagens ou simulacros formados por
corpuacutesculos partiacuteculas que se desprendem dos corpos e atingem nossa percepccedilatildeo a afecccedilatildeo
sentida nos faz entender que esses objetos existem Trata-se de um indicativo de que o corpo
sente (diretamente ou por meio da captaccedilatildeo de suas eiacutedola) o outro corpo Assim ldquoa
existecircncia de corpos eacute atestada em toda parte pelos proacuteprios sentidosrdquo (DL X 39)162
As antecipaccedilotildees ou preacute-noccedilotildees quando remetem para imagens plenamente fundadas
sobre o testemunho das sensaccedilotildees podem ser entendidas como um criteacuterio de verdade Isso
pois satildeo representaccedilotildees formadas a partir da repeticcedilatildeo de sensaccedilotildees anaacutelogas entre si Ao ver
vaacuterias vezes a imagem de um navio grava-se na alma uma noccedilatildeo diretamente relacionada a
esse tipo de embarcaccedilatildeo Portanto essas imagens ao se relacionarem com objetos da
experiecircncia evidenciam a existecircncia deles
As phantastikai epibolai tecircs dianoiacuteas permitem projetar o pensamento de maneira a
poder tratar sobre que natildeo se abarca por nossos oacutergatildeos sencientes E isso poderia ser
considerado um prolongamento dos sentidos para alcanccedilar niacuteveis que eles natildeo o atingem As
reflexotildees sobre o aacutetomo e o todo (tograve pacircn) resultam dessa possibilidade Mas esse movimento
da inteligecircncia deve sempre remeter agrave memoacuteria das sensaccedilotildees Eacute nesse acervo que o
pensamento (diaacutenoia) vai buscar essas imagens para projetar e construir analogias
Com relaccedilatildeo agraves afecccedilotildees (paacutethes) elas podem ser compreendidas como indicativos de
uma conformidade ou inadequaccedilatildeo aos limites da natureza A veracidade do que eacute bom ou
mal eacute estabelecida na medida em que elas nos trazem a sensaccedilatildeo de prazer ou dor Eacute nessa
evidecircncia do sentir que as afecccedilotildees ldquonos fornecem o criteacuterio da verdade eacuteticardquo (CONCHE
1977 25) Tal aspecto vai ser fundamental para guiar o saacutebio em sua pragmateiacutea lhe
indicando o que escolher e o que evitar para alcanccedilar uma vida feliz (makariacuteos zecircn) e
autaacuterquica
Dessa forma para um loacutegos ter valor de verdade eacute preciso que ele esteja ancorado na
162 σώματα μὲν γὰρ ὡς ἔστιν αὐτὴ ἡ αἴσθησις ἐπὶ πάντων μαρτυρεῖ
71 realidade-phyacutesis ldquoEacute verdadeiro apenas aquilo que se percebe por meio dos sentidos ou se
apreende por meio da menterdquo (DL X 62)163 Ressalte-se contudo que essa apreensatildeo mental
tambeacutem deve estar coerente com a percepccedilatildeo que temos do mundo fiacutesico Epicuro com isso
visa trabalhar um discurso de verdade que se apresenta como opiniatildeo verdadeira (doacutexa
alethegraves) que difere das opiniotildees falsas (doacutexa pseudegraves) por atender a criteacuterios ancorados na
realidade imanente Natildeo se trata de um loacutegos estabelecido em cima de um pensamento
categorial mas do que poderiacuteamos entender como um pensamento fiacutesico E isso se relaciona
com a noccedilatildeo de que a verdade estaacute relacionada ao existir das coisas Como testemunha Sexto
Empiacuterico ldquoele natildeo fazia diferenccedila entre dizer que alguma coisa eacute lsquoverdadersquo (aletheacutes) e dizer
existente (hypaacuterchon)rdquo164
133 Saber teacutechne e aacuteskesis
Quando recorremos ao testemunho de Sexto Empiacuterico lemos que os epicuristas
buscavam apresentar em sua filosofia uma arte (teacutechne)165 de viver que por discurso (loacutegois)
e pensamento (dialogismoiacutes) se direciona para a felicidade da vida (ton eudaiacutemona biacuteon)
Essa perspectiva eacute sintetizada na definiccedilatildeo que Empiacuterico atribui a Epicuro para quem a
filosofia seria uma teacutechnen tinaacute periacute ton biacuteon166 ou em outros termos um saber em torno da
vida167 A mesma ideia consta nos fragmentos Us 227 e 227b168 onde eacute dito que Epicuro
definiu tal arte ou teacutecnica como um procedimento (meacutethodos) que busca ser uacutetil agrave vida
Graziano Arrighetti169 vecirc o termo teacutechne como arte perspectiva que eacute seguida por
muitos entre eles John Sellars170 que traduz a expressatildeo como ldquothe art concerned with onersquos
way of life the art of livingrdquo Outra modulaccedilatildeo de entendimento da teacutechnen tinaacute periacute ton biacuteon
poderia ser a de um saber para a vida ou em torno dela171 Em todo caso uma ideia
permanece a de uma arte ndash epicurista - de viver que aponta para a articulaccedilatildeo entre as
necessidades do homem e o direcionamento da atividade filosoacutefica
163 ἐπεὶ τό γε θεωρούμενον πᾶν ἢ κατrsquo ἐπιβολὴν λαμβανόμενον τῇ διανοίᾳ ἀληθές ἐστι 164 Sexto Empiacuterico (Adv Math VIII 9) apud CONCHE 1977 p 29 165 O termo teacutechne pode ser entendido como teacutecnica arte ou saber 166 Ver nota 02 deste capiacutetulo 167 Conforme traduz Markus Figueira Silva em Epicuro Sabedoria e Jardim Op Cit 168 Us 227b Scholiasta Dionysii Thracis BAG p 649 26 οι μεν Επικούρειοι ούτως ορίζονται την τέχνην middot τέχνη εστί μέθοδος ενεργούσα τω βίω το συμφέρον ενεργούσα δε οίον εργαζομένη 169 ARRIGHETTI Graziano Epicuro - Opere Torino Giulio Einaudi 1962 170 SELLARS John The Art of Living The Stoics on the Nature and Function of Philosophy London Bloomsbury 2009 171 Markus Silva Epicuro Sabedoria e Jardim Op Cit
72 A partir dessas referecircncias pode-se entrever que a felicidade o modo de viver e o
saber filosoacutefico satildeo temas interligados e prementes no pensamento epicurista E isso diz
respeito agrave maneira de compreender a realidade de pensar valores de fazer escolhas de
estabelecer relacionamentos de problematizar o proacuteprio sentido de existir e demais questotildees
que envolvam a realizaccedilatildeo de uma vida feliz (makariacuteos zecircn) Por meio de um saber em torno
do viver Epicuro visa inscrever no campo das discussotildees filosoacuteficas a necessidade de
apresentar um meio de conduzir o homem a experimentar a felicidade no seu dia a dia Com
isso ele se opotildee agraves concepccedilotildees que orientam a filosofia para as questotildees retoacutericas para a
erudiccedilatildeo ou para a investigaccedilatildeo do que ultrapassa o niacutevel da experiecircncia humana Em linhas
gerais podemos dizer que essa arte teacutecnica ou saber vai remeter para o desenvolvimento de
uma filosofia que considerando o campo das experiecircncias fornecidas pela vida ao homem e
os limites de sua capacidade de conhecer a natureza desenvolva nele uma sabedoria para
ajudaacute-lo - de maneira praacutetica - a se conduzir no mundo
Eacute por meio de uma relaccedilatildeo estabelecida entre a vida feliz e a teacutechne filosoacutefica que
Epicuro concebe a figura do saacutebio (sophoacutes) como sendo aquele que busca estabelecer uma
maneira de viver a partir de uma compreensatildeo da natureza (phyacutesis) procurando conferir mais
naturalidade ao seu modo de ser Afinal o sentido de equiliacutebrio e de autaacuterkeia (ter o princiacutepio
da accedilatildeo em si mesmo172) percebidos na phyacutesis eacute relacionado a um estado de bem estar de
tranquilidade de liberdade e de realizaccedilatildeo que o saacutebio busca trazer para sua proacutepria
existecircncia E isso implica em exercitar uma teacutecnica ou arte tendo em vista espelhar em sua
alma e em seu modo de viver esse estado equilibrado e autaacuterquico de ser Dessa forma o
exerciacutecio da sabedoria eacute orientado para que o entendimento sobre a natureza e sobre si proacuteprio
resulte em um modo saacutebio de agir pois quanto maior o esclarecimento sobre esses aspectos
maior a compreensatildeo daquilo que determina seus desejos e as possibilidades e limites de
realizaacute-los
A ideia daiacute decorrente eacute a de que quando o saacutebio busca exercitar o sentido de sua
realizaccedilatildeo a partir da compreensatildeo que estabelece sobre a natureza ele vai se apercebendo de
que sua vontade tanto pode ser definida a partir desse saber quanto pode ser determinada por
desejos que o levam a um estado desequilibrado e subjugado de ser natildeo sendo a expressatildeo de
uma necessidade vital ou de uma vida conforme a natureza (katagrave phyacutesin) mas de um
equivoco da opiniatildeo quanto ao sentido de existir do homem e quanto aos modos de ser da
172 Essa concepccedilatildeotraduccedilatildeo eacute defendida por Markus Figueira Silva em Epicuro Sabedoria e Jardim Op Cit Para ele o saacutebio tem em si mesmo (tograves autograves) o princiacutepio (archeacute) que determina sua accedilatildeo
73 natureza Por isso ele efetiva essa arte de viver na medida em que procura estabelecer e
vivenciar uma identificaccedilatildeo desse exerciacutecio constante de investigaccedilatildeo da phyacutesis (physiologiacutea)
com a praacutetica de um modo de vida voltado para a proacutepria felicidade Eacute dessa associaccedilatildeo que
Epicuro nos fala nesta seccedilatildeo da Carta a Heroacutedoto
() sendo tal caminho uacutetil a todos que se familiarizaram com a investigaccedilatildeo da natureza (physiologiacutea) eu que dedico incessantemente minhas energias agrave investigaccedilatildeo da natureza e desse modo de viver tiro principalmente a minha calma preparei para teu uso uma espeacutecie de epiacutetome e um sumaacuterio dos elementos fundamentais de minha doutrina em sua totalidade (DL X 37) 173
Desta citaccedilatildeo fica destacado que viver e filosofar satildeo atividades inseparaacuteveis (e a
pragmateiacutea epicurista remete justamente para essa indissociaccedilatildeo) na medida em que se
constituem como uma ocupaccedilatildeo ou disposiccedilatildeo (diaacutethesis) permanente do sophoacutes-physiologoacutes
para tentar estabelecer um eacutethos fundamentado na natureza Em outros termos eacute na
indissociabilidade com o modo de viver visado pelo saacutebio que o exerciacutecio de compreensatildeo da
phyacutesis se caracteriza como esse saber que permite pensar os limites as possibilidades ou em
que medida se daacute a realizaccedilatildeo do homem E isso estaacute relacionado agrave compreensatildeo de como eacute e
como opera a realidade circunscrevendo o pensamento os desejos e as accedilotildees agraves fronteiras do
natural a partir do que eacute percebido pela sensibilidade e estaacute contido no campo das
experiecircncias de vida do homem como destacamos anteriormente
Para melhor compreender essa concepccedilatildeo de saber como teacutechne ou conhecimento
aplicado ao modo de viver podemos fazer uso de uma imagem comum na antiguidade Eacute
aquela que relaciona a vida (βίος) essa existecircncia histoacuterica agrave imagem do mar sobre o qual
navega o homem Sem o domiacutenio de uma teacutecnica de navegaccedilatildeo ele se perde na imensidatildeo dos
oceanos mas ao conhececirc-la e aplicaacute-la ele pode se guiar pelas estrelas pelos ventos pelo vocirco
dos paacutessaros e assim chegar tranquilo ao cais Eacute essa pragmateiacutea colocada em exerciacutecio pelo
navegador ao se valer das teacutecnicas de navegaccedilatildeo que conhece fundamental para sua
seguranccedila Disso vem uma tranquilidade anaacuteloga agrave do homem que da terra firme observa -
sereno - o mar furioso fazer seus naufraacutegios como expressou o poeta e filoacutesofo epicurista
Lucreacutecio174 revalidando a compreensatildeo de que a teacutecnica instrumentaliza o homem para
vencer os desafios colocados pela natureza e tambeacutem para tornar a existecircncia mais agradaacutevel
Eacute por meio da teacutechne que ele constroi o barco forja a acircncora ergue o cais tece a rede de
173 ὅθεν δὴ πᾶσι χρησίμης οὔσης τοῖς ᾠκειωμένοις φυσιολογίᾳ τῆς τοιαύτης ὁδοῦ παρεγγυῶν τὸ συνεχὲς ἐνέργημα ἐν φυσιολογίᾳ καὶ τοιούτῳ μάλιστα ἐγγαληνίζων τῷ βίῳ ἐποίησά σοι καὶ τοιαύτην τινὰ ἐπιτομὴν καὶ στοιχείωσιν τῶν ὅλων δοξῶν 174 Essa analogia feita por Lucreacutecio em Da Natureza consta no canto II 1 e segs)
74 pesca e produz o vinho que na refeiccedilatildeo vai bem com o peixe e o patildeo tornando mais alegre o
viver
Essa relaccedilatildeo que se estabelece entre o ser humano e a natureza por meio da teacutecnica
pode ser lembrada atraveacutes do mito de Prometeu175 o titatilde que fez o homem conhecer o fogo
Ao dominar esse elemento natural ele se distancia do modo de viver dos animais e
incrementa os meios para sua sobrevivecircncia O fogo nessa narrativa pode ser pensado como
siacutembolo das artes e das teacutecnicas para as quais o homem era ignorante Lucreacutecio poeticamente
traceja esse caminho sem recorrer aos mitos mas destacando a natureza e a necessidade como
condiccedilotildees que levam o homem ao desenvolvimento da teacutechne
Depois o Sol os ensinou a cozer o alimento a amolececirc-lo com a evaporaccedilatildeo da chama porque viam muita coisa tornar-se branda com o golpe de seus raios e ser atraveacutes dos campos vencida pelo seu calor De dia para dia modificavam mais a sua alimentaccedilatildeo e a sua vida em virtude de novas descobertas e do fogo graccedilas agraves demonstraccedilotildees dos que estavam mais agrave frente pela inteligecircncia e pela forccedila da alma (Lucr IV)176
Historicamente podemos dizer que ateacute por volta do seacuteculo V aC a marca do domiacutenio
humano sobre a natureza se faz no campo das habilidades teacutecnicas ou de um tipo de sabedoria
(entendida em uma acepccedilatildeo geral do termo) caracteriacutestica do trabalho dos artesatildeos e
especialistas de ofiacutecios (JAEGER 1995 p 265ss) Dessa forma se por um lado ldquoHomero
chama sophoacutes ao carpinteirordquo nos lembra que a arte da poesia tambeacutem era designada por
Piacutendaro por sophiacutea Isso nos leva a pensar na existecircncia de diferenccedilas na natureza do saber e
por conseguinte nas possibilidades e limitaccedilotildees de sua transmissatildeo A sabedoria reivindicada
pelo poeta era algo inato estava ligada agrave proacutepria inteligecircncia de quem a fazia evocava a ideia
de uma inseparaacutevel relaccedilatildeo entre forma e pensamento Por isso explica W Jaeger177 a
teacutecnica poeacutetica natildeo poderia ser ensinada como o oficio do sapateiro do tecelatildeo do pescador
Na mesma perspectiva que procura refinar a caracterizaccedilatildeo dos saberes Platatildeo nos
apresenta no Protaacutegoras178 a concepccedilatildeo sofiacutestica de uma arte poliacutetica compreendida como
uma teacutecnica distinta daquela do artesatildeo - uma vez que natildeo se presta a fazer da natureza
instrumento de melhoria de vida mas atuar nas relaccedilotildees entre os homens em sociedade
Contudo tambeacutem difere da poesia uma vez que se trata de saber teacutecnico passiacutevel de ser
175 Segundo a narrativa miacutetica Prometeu um titatilde enganou Zeus roubando-lhe o fogo para entregaacute-lo aos homens Por isso foi castigado pelos deuses sendo acorrentado no Caacuteucaso onde uma aacuteguia ia diariamente devorar-lhe o fiacutegado 176 LUCREacuteCIO Da Natureza Satildeo Paulo Abril Cultural 1985 (Os Pensadores) Traduccedilatildeo de Agostinho da Silva p 236 177 Werner Jaeger Paideacuteia A Formaccedilatildeo do Homem Grego Satildeo Paulo Martins Fontes 1995 178 PLATAtildeO Protaacutegoras In Diaacutelogos Beleacutem UFPA 1980
75 transmitido a outrem
Essas reivindicaccedilotildees quanto agrave especificidade de algumas teacutecnicas vatildeo estimular no
decorrer do tempo um debate sobre a educaccedilatildeo no que diz respeito agrave definiccedilatildeo do que eacute
teacutechne em oposiccedilatildeo ao que eacute sophiacutea E o tom dessas discussotildees comumente se manteacutem
voltado para saber o que poderia ser ensinado e o que seria uma ldquoarterdquo natural Tal como
aparece no Protaacutegoras onde se destaca a ideia de que o trabalho dos sofistas que era ensinar
constituiacutea-se como uma teacutechne e natildeo como sophiacutea Trata-se de uma teacutecnica que transmite
outras teacutecnicas Dessa forma a retoacuterica era ensinada para instrumentalizar o homem para o
domiacutenio da teacutechne poliacutetica tida pelos sofistas como a mais importante entre as artes
O que se pode observar eacute a insurgecircncia de uma necessidade de diferenciar as teacutecnicas
ligadas aos saberes profissionais daquelas ditas mais elevadas em funccedilatildeo de ldquoum sentido de
totalidade e de universalidaderdquo (JAEGER 1995 p 350) Daiacute a tendecircncia inicial a se colocar
em lados separados ciecircncia e teacutecnica teoria e praacutetica sophiacutea e phroacutenesis
Ocorre contudo que tal necessidade de separaccedilatildeo entre esses saberes encontra uma
especificidade da liacutengua grega que tanto W Jaeger quanto M Silva179 destacam τέχνη em
grego antigo exprime um sentido geral de saber adquirido pela accedilatildeo uma maneira de lidar
com a natureza no campo praacutetico ao mesmo passo em que tambeacutem traduz um conjunto de
saberes especiacutefico envolvidos nessas teacutecnicas Ou seja embora tragam vieses praacuteticos
metodoloacutegicos e saberes de uma ldquonaturezardquo diferente o meacutedico o poeta o poliacutetico o sofista e
outros tantos personagens que faziam o desenvolvimento econocircmico cultural e poliacutetico da
Greacutecia antiga tinham suas atividades circunscritas a um mesmo termo-definiccedilatildeo embora
buscassem afirmar as especificidades e necessidade de saber especializado de cada aacuterea E
isso eacute compreensiacutevel ao considerarmos a tiacutetulo de ilustraccedilatildeo que tanto o ofiacutecio meacutedico da
eacutepoca quanto a culinaacuteria tecircm como manifestaccedilatildeo praacutetica de sua atuaccedilatildeo a alimentaccedilatildeo mas
somente o meacutedico tem o saber sobre qual dieteacutetica prescrever para o doente
A conversatildeo da educaccedilatildeo numa teacutecnica eacute um caso particular da tendecircncia geral do tempo a dividir a vida inteira numa seacuterie de compartimentos separados concebidos com vistas a uma finalidade e teoricamente fundamentados num saber adequado e transmissiacutevel Eacute sobretudo em matemaacutetica medicina ginaacutestica teoria musical arte dramaacutetica etc que noacutes encontramos especialistas e obras especializadas Ateacute os escultores como Policleto escrevem a teoria da sua arte (JAEGER 1995 p 349)
Nesse contexto Platatildeo no Goacutergias180 pensa a medicina (teacutechne he ietrikeacute)181 como
179 Markus Silva Sabedoria e Jardim Op Cit p55 180 464a ndash 469d PLATAtildeO Goacutergias Lisboa Ediccedilotildees 70 1992
76 uma teacutechne por excelecircncia Eacute do entendimento que Platatildeo tem da medicina que se define ao
mesmo tempo um conceito para a teacutecnica e um paralelo entre a atividade do meacutedico e a do
filoacutesofo dado que tal qual o meacutedico se vale do que sabe sobre a natureza do homem para
diagnosticar doenccedilas e lhe restituir a sauacutede do corpo a filosofia faz o mesmo em prol da
sauacutede da alma Essa perspectiva enceta no campo do saber filosoacutefico um sentido de
therapeiacutea182 que visa curar a psycheacute do homem Vale destacar que essa relaccedilatildeo que Platatildeo
estabelece entre a medicina e a filosofia aponta para o fato de ambas constituiacuterem seu saber a
partir do conhecimento sobre a phyacutesis para poderem a seu tempo pensar a natureza do corpo
e a da alma Eacute a partir desse afunilamento que meacutedico e filoacutesofo vatildeo poder prescrever um
receituaacuterio ou condutas para manter ou restabelecer o equiliacutebriosauacutede do homem
Outro aspecto que verificamos ao acompanharmos a evoluccedilatildeo de sentido da teacutechne ao
longo do tempo eacute a ampliaccedilatildeo do seu campo de atuaccedilatildeo Antes ela incidia sobre a natureza
(phyacutesis) e o uso utilitaacuterio que dela poderia ser feito visava a conservaccedilatildeo e a melhoria da vida
Depois passou a se projetar tambeacutem de maneira mais especifica sobre o homem tentando
direcionar sua accedilatildeo social como atraveacutes da teacutecnica poliacutetica ou buscando favorecer seu bem-
estar e equiliacutebrio orgacircnico como atraveacutes da medicina (teacutechne he ietrikeacute) Nesse caso o saber
meacutedico vai partir do conceito estabelecido de natureza do universo183 (phyacutesis tou pantoacutes) -
desenvolvido pelos filoacutesofos naturalistas jocircnicos - para pensar as naturezas dos homens (taacutes
phyacuteseis totilden anthroacutepon)184 e sobre ela estabelecer e projetar sua teacutecnica Com a teacutechne he
ietrikeacute o fim praacutetico visado eacute o estado de sauacutede do corpo e a arte meacutedica vai buscar validar
um receituaacuterio de vida voltado para o equiliacutebrio e harmonia dos constituintes orgacircnicos do
homem (estados semelhantes aos postulados pela filosofia para alma)
Esse paralelo que se estabelece e se intensifica entre a medicina e a filosofia marca o
ideaacuterio grego da antiguidade Nele se estabelece uma relaccedilatildeo entre a ignoracircncia com a doenccedila
e a sabedoria com a sauacutede E da mesma forma que a medicina tem por funccedilatildeo curar o corpo
do homem das enfermidades de maneira semelhante a filosofia deve afastar a psycheacute da
ignoracircncia Esse prisma jaacute se encontra colocado desde Demoacutecrito para quem ldquoa medicina cura
as enfermidades do corpo mas a sabedoria liberta a alma do sofrimento185rdquo Consoante essa
181 Expressatildeo ligada agrave medicina antiga 182 VOELKE A J La Philosophie Comme Theacuterapie de lrsquoAcircme Paris Cerf 1993 183 ldquoA conexatildeo entre o pensamento meacutedico das obras de Hipoacutecrates e o estudo do conjunto da natureza tem jaacute uma expressatildeo grandiosa na introduccedilatildeo ao escrito Dos Ventos Aacuteguas e Regiotildeesrdquo (JAEGER 1995 p 1006) 184 Embora a traduccedilatildeo de Gama Cury se refira agrave ldquonatureza dos homensrdquo o texto grego coloca os termos no plural τὰς φύσεις τῶν ἀνθρώπων (DL X 75) 185 O fragmento foi transmitido por Clemente e consta em Diels (H) e Kranz (W) II B 31 Nossa traduccedilatildeo baseou-se naquela encontrada em Alberto Bernabeacute Fragmentos Presocraacuteticos de Tales a Demoacutecrit Madrid
77 tradiccedilatildeo Epicuro tambeacutem vai trabalhar em seus escritos a noccedilatildeo de uma medicina para a
alma Tanto que na Carta a Meneceu logo em suas primeiras linhas ele faz um convite aos
seus contemporacircneos para que vejam na filosofia um caminho para a cura dos seus males
ldquoNenhum jovem deve demorar a filosofar e nenhum velho deve parar de filosofar pois nunca
eacute cedo demais nem tarde demais para a sauacutede da almardquo (DL X 122)186 Nesse sentido
reproduz-se no epicurismo a imagem da filosofia como uma medicina para a alma um saber
que se coloca a serviccedilo da realizaccedilatildeo de um estado de bem-estar (eustatheiacutea) aspecto
consoante a ausecircncia de distuacuterbio no corpo (aponiacutea) e de perturbaccedilatildeo na alma (ataraxiacutea)
Com isso Epicuro traccedila um paralelo entre sabedoria e a sauacutede da psycheacute ressaltando uma
relaccedilatildeo entre a teacutechne filosoacutefica e a teacutechne meacutedica Ao conceber a filosofia em torno do
preceito de que ldquoeacute preciso vir a ser em torno da cura de noacutes mesmosrdquo (SV 64)187 ele nos
remete tanto para uma indissociabilidade entre sauacutede da alma e vida feliz (makariacuteos zecircn)
quanto para a ligaccedilatildeo entre a physiologiacutea e a conduta do saacutebio Isso porque conhecimento
(gnocircsis) phyacutesis e o modo de viver (eacutethos) compotildeem no epicurismo um todo uma unidade
na medida em que constituem e se constituem como uma praacutetica filosoacutefica contiacutenua voltada
para fazer o homem conquistar um estado de equiliacutebrio a partir da adoccedilatildeo de um modo natural
de viver
Ora assim como na arte meacutedica (teacutechne he ietrikeacute) a filosofia epicurista parte de um
saber acerca da phyacutesis a physiologiacutea para pensar o modo de ser e de agir do homem visando
igualmente um estado de equiliacutebrio do corpo e da alma Nisso ele ecoa a concepccedilatildeo de
meacutedico-filoacutesofo ao mesmo passo em que reflete a tendecircncia que se verificava jaacute no seacuteculo V
aC segundo a qual as relaccedilotildees estabelecidas entre a physiologiacutea e a teacutechne he ietrikeacute se datildeo a
partir do uso de conceitos comuns Isso se explica porque o saber ligado ao desenvolvimento
da atividade meacutedica vai estimular e contribuir para a reflexatildeo filosoacutefica que busca se
distanciar das opiniotildees convencionais e explicaccedilotildees miacuteticas
Um desses conceitos partilhados diz respeito agrave sauacutede (hyguiacuteeia) que tanto na medicina
quanto na filosofia remete para um estado de equiliacutebrio de bem-estar Quando Epicuro se
refere agrave sauacutede da alma (psychegraven hyguiaiacutenon) o faz a partir de uma relaccedilatildeo desse cuidado com
a realizaccedilatildeo de uma vida feliz (makariacuteos zecircn) Assim cada um meacutedico e filoacutesofo vai propor
o phaacutermakon adequado para estabelecer ou restabelecer esse estado No Epicurismo isso se
Alianza Editorial 2008 p 288 fragmento 31 186 Μήτε νέος τις ὢν μελλέτω φιλοσοφεῖν μήτε γέρων ὑπάρχων κοπιάτω φιλοσοφῶν οὔτε γὰρ ἄωρος οὐδείς ἐστιν οὔτε πάρωρος πρὸς τὸ κατὰ ψυχὴν ὑγιαῖνον 187 () ἡμᾶς δὲ γενέσθαι περὶ τὴν ἡμῶν ἰατρείαν
78 daacute por meio de um loacutegos-terapecircutico elaborado para combater os males do corpo e as
perturbaccedilotildees da psycheacute188 Esse receituaacuterio eacute encontrado na Carta a Meneceu onde se
apresenta um tetraphaacutermakon189 voltado para a cura de quaisquer afliccedilotildees do pensamento e
consequentemente com benefiacutecios para um corpo composto (athroiacutesma) Um unguento para
a alma que se faz a partir de quatro postulados 1) Natildeo haacute o que temer quanto aos deuses 2)
Natildeo haacute nada a temer quanto agrave morte 3) Pode-se alcanccedilar a felicidade 4) Pode-se suportar a dor
Na base dessa formulaccedilatildeo190 circunscreve-se o entendimento epicurista de que o
adoecimento ou estado de desarmonia tanto da psycheacute quanto do athroiacutesma daacute-se devido agraves
opiniotildees vazias (kenaigrave doacutexai) que o homem alimenta sobre si mesmo e sobre a natureza
Fundadas no engano nos mitos nas religiotildees institucionalizadas elas vatildeo resultar em temores
que afligem e desequilibram Como o medo dos deuses (temperamentais regentes dos
destinos) como o medo da morte (que arrebata e conduz para um mundo de agonias eternas)
como o medo da dor (intensa e constante como a sentida por Prometeu em seu fiacutegado) Daiacute a
necessidade de um loacutegos capaz de neutralizar outro loacutegos como um antiacutedoto o faz em relaccedilatildeo
agrave substacircncia que envenena o organismo Para Epicuro eacute desfazendo-se desses tipos de
crenccedilas substituindo-as por um conhecimento fundamentado sobre a phyacutesis por uma opiniatildeo
verdadeira (doacutexa alethegraves) que se consegue um estado de cura que vai se manifestar na forma
de aponiacutea e de ataraxiacutea
Para fazer esse loacutegos terapecircutico fundamentado na physiologiacutea resultar em um modo
de vida orientado para o ldquovir a ser em torno da cura de noacutes mesmosrdquo (SV 64)191 Epicuro
concebe a filosofia como uma teacutechne um saber que instrumentaliza o homem para estabelecer
um cuidado sobre o proacuteprio pensar e o agir - uma artesania sobre si mesmo - em funccedilatildeo dessa
necessidade de viver em um estado de equiliacutebrio A teacutechne ao voltar-se para o autocuidado ou
para uma therapeiacutea da psycheacute tem como escopo partindo de uma physiologiacutea estabelecer
um eacutethos que permita ao homem viver um estado de imperturbabilidade de harmonia de
autossuficiecircncia podendo com isso rivalizar com a divindade vivendo ldquocomo um deus entre
188 Em Tel un Dieu Parmi les Hommes (op Cit) Jean Salem faz uma abordagem luacutecida sobre essa relaccedilatildeo contextualizando a questatildeo no mundo antigo Epicuro eacute alccedilado agrave condiccedilatildeo de meacutedico cujo desejo eacute curar a humanidade das dores do corpo e da alma 189 Esse termo eacute tomado emprestado da farmacopeia que definia um unguento agrave base de cera sebo pez e resina No contexto epicurista remete para quatro ingredientes de um discurso terapecircutico O epicurista Dioacutegenes de Œnoanda mandou gravar no seacuteculo II dC a siacutentese desse phaacutermakom em um poacutertico para que os viajantes que passassem por ali pudessem ler As palavras levariam socorro aos doentes da alma contrapondo-se agraves falsas ideias a respeito do mundo 190 Essa formulaccedilatildeo do teacutetrapharmakos epicurista eacute atribuiacuteda a Filodemo (Pap Herc 1005 col IV 9-14) 191 ἡμᾶς δὲ γενέσθαι περὶ τὴν ἡμῶν ἰατρείαν
79 os homensrdquo (DL X 135)192
A teacutechne no entendimento epicuacutereo eacute ao mesmo tempo um exerciacutecio de compreensatildeo
da realidade e uma maneira de conduzir a vida em funccedilatildeo dessa compreensatildeo Seu aspecto
teacutecnico decorre do fato de que eacute a partir de um saber physioloacutegico que se estabelece um
procedimento uma metodologia para a vida feliz o que nos remete para a praacutetica de
exerciacutecios para guiar o pensamento e a accedilatildeo em vista de realizar um eacutethos de acordo com a
phyacutesis A filosofia pensada nesses termos vai se constituir como um saber teacutecnico que natildeo tem
um fim em si mesmo natildeo delineia uma finalidade teoreacutetica mas ganha sentido na medida em
que ldquoagerdquo no homem guiando-o para o bem viver ldquoA teacutechne consiste em conhecer a natureza
do objeto destinado a servir ao Homem e portanto soacute na sua aplicaccedilatildeo praacutetica se realiza
como tal saberrdquo (JAEGER 1995 p 1028)
Mas quando falamos em exerciacutecios em praacuteticas o vocabulaacuterio grego nos legou o
termo aacuteskesis Relacionam-se a ele em nosso leacutexico tanto a palavra ascese quanto o vocaacutebulo
exerciacutecio Embora o significado original de aacuteskesis nos remeta para a ideia de treinamento de
preparaccedilatildeo dos atletas para os trabalhos destinados ao desenvolvimento e aprimoramento das
suas competecircncias fiacutesicas seus derivados ao serem transportados para o campo das praacuteticas
filosoacuteficas passam a apontar ao longo do tempo para atividades distintas entre si no que diz
respeito agrave forma e agrave finalidade
De um lado a ascese passa a se remeter agraves praacuteticas de privaccedilatildeo e fustigaccedilatildeo voltadas
para fazer o aniacutemico ascender sobre o corpoacutereo e com isso conduzir o pensamento (diaacutenoia) agrave
sabedoria Trata-se de infligir uma austera disciplina agrave carne refreando-lhe suas formas de
desejos condiccedilatildeo necessaacuteria agrave libertaccedilatildeo da psycheacute para ascender a um saber que vai guiar o
asceta (aacutesketes) em sua existecircncia Eacute fundamentado nessa acepccedilatildeo que vai ser estabelecido
para nos referirmos ao cristianismo medieval um conjunto de exerciacutecios de conotaccedilatildeo
religiosa voltados para levar agrave sauacutede da alma
Do outro lado a aacuteskesis pensada como exerciacutecio - e no contexto do pensamento
epicurista - remete para atividades que englobam tanto o trabalho de tentar fazer um
descortinamento da phyacutesis quanto o de procurar a partir disso estabelecer um eacutethos que
confira ao corpo-alma um estado de equiliacutebrio Com isso a perspectiva eacute a de desenvolver no
homem uma disposiccedilatildeo (diaacutethesis)193 para procurar realizar o sentido natural de sua
existecircncia Portanto natildeo se trata da negaccedilatildeo ou do afastamento daquilo que proporciona
192 ζήσῃ δὲ ὡς θεὸς ἐν ἀνθρώποις 193 Œno fr 112 DL X 117 Us 222a (διάθεσις)
80 prazer tampouco isso se relaciona com procedimentos que tragam dor ou desconforto o
horizonte eacute o da praacutetica de uma sabedoria marcada pela frugalidade e moderaccedilatildeo Ademais eacute
preciso entender que o exerciacutecio que leva o saacutebio a realizar-se enquanto tal natildeo se daacute tendo o
corpo e o sensiacutevel como entraves agrave sabedoria Para Epicuro o corpo natildeo eacute obstaacuteculo agrave
obtenccedilatildeo do conhecimento nem elemento inepto nesse processo Pelo contraacuterio ele sente
pensa e age Eacute por meio dele que a phyacutesis eacute investigada desvelada (ateacute onde o entendimento
alcanccedila) e pode ser tomada como modelo de realizaccedilatildeo
Assim os exerciacutecios constituintes da filosofia epicurista devem ser compreendidos
como um movimento uma accedilatildeo ou uma atividade (eneacutergeia) que leva o sophoacutes a procurar
viver conforme um saber fundado a partir de um referencial sensiacutevel do qual se pode inteligir
os limites necessaacuterios para estabelecer um eacutethos do bem viver Assim feitas essa
consideraccedilotildees cabe tratar de como essa technē tis peri tograven biacuteon eacute exercitada por meio da
meditaccedilatildeo (meleacutetema) e da praacutexis (praacutexis) realizando um modo saacutebio de viver e por
extensatildeo definindo o sentido da pragmateiacutea epicurista
81
CAPIacuteTULO 02
DA MEDITACcedilAtildeO
OU DO MODO COMO A PRAGMATEIacuteA Eacute EXERCITADA PELA ALMA
A temaacutetica relativa agrave meditaccedilatildeo (tograve meleacutetema)1 vai estar presente em vaacuterias escolas
filosoacuteficas e religiosas desde a antiguidade ateacute hoje Cada uma com suas especificidades
teoacutericas praacuteticas e suas finalidades No epicurismo a meditaccedilatildeo eacute um aspecto fundamental
para compreender o sentido da pragmateiacutea que caracteriza a filosofia do Jardim na medida
em que permite pensar uma relaccedilatildeo entre um conhecimento acerca da realidade e um modo de
viver relacionado a ele Contudo natildeo haacute nos poucos textos preservados de Epicuro uma
definiccedilatildeo explicita do que seja meleacutetema Por isso precisamos percorrer seu pensamento para
tentar expor aqui uma noccedilatildeo que nos permita compreender o sentido dessa atividade e como
ela se constitui como um exerciacutecio que visa levar o saacutebio a experimentar a autarquia e o
equiliacutebrio em sua vida
Na Carta a Meneceu Epicuro faz quatro referecircncias diretas2 agrave meditaccedilatildeo Ο termo
tambeacutem consta em um fragmento repertoriado por G Arighetti3 Em todas essas apariccedilotildees
meditar se relaciona a uma atividade orientada agrave praacutetica da sabedoria ao exerciacutecio (aacuteskesis)
de investigaccedilatildeo da phyacutesis tendo em vista estabelecer um modo de vida de acordo com a
natureza (katagrave phyacutesin) Isso no leva a evocar o Testamento de Epicuro (DL 17-21) Laacute ele diz
da necessidade de se ocupar (endiatriacutebo) permanentemente da filosofia e para isso ele coloca
ldquoo Jardim e todas as suas dependecircncias agrave disposiccedilatildeo de Hecircrmaco filho de Agecircmorto
Mitilecircnio e de seus companheiros em filosofiardquo para laacute poderem se dedicar a essa atividade
(endiatriacutebein kataacute philosophiacutean)4
Esse sentido de ocupaccedilatildeo ou dedicaccedilatildeo a algo tambeacutem estaacute inscrito no significado da 1 Diante da ambiguumlidade que o termo meleacutetema evoca haacute um receio em traduzi-lo como meditaccedilatildeo no contexto da filosofia antiga Se pode ser compreendido como sinocircnimo de exerciacutecio como muitos preferem adotando uma visatildeo mais conservadora tambeacutem pode ser pensado como ldquoum esforccedilo para assimilar para tornar vivas na alma uma ideia uma noccedilatildeo um princiacutepiordquo (HADOT 2014 p 27) Adotamos a mesma perspectiva de Pierre Hadot por compreender que no contexto do epicurismo meleacutetema remete para atividades da alma ligadas agrave necessidade de memorizar assimilar relembrar ponderar e outras que entendemos estarem circunscritas ao termo meditaccedilatildeo 2 DL X 122 123 126 e 135 3 () ἅ τις ἂμ πρὸς ἡμᾶς ἐ[κεῖθ]εν ἀπο[διδ]ώιη ὁ ἐκ τῶν [λέ]ξεων συνορῶ[ν ὡ]ς ταὐτὸ σ[υ]νέβαινε μελε[τᾶν] ἐπὶ τῆς γραφῆς () (ARRIGHETTI 1960 p 304) Deperditorum librorum reliquiae [2914] 24 4 Ver nota 27 da introduccedilatildeo
82 forma verbal imperativa meletaacute (medita) cuja origem vem de meletaacuteo (μελετάω) e nos remete
para a accedilatildeo de se ocupar exercer praticar Dentro da mesma etimologia temos a forma
substantiva tograve meleacutetema (τὸ μελέτημα) nos remetendo para a ideia de estudo de exerciacutecio
praacutetico5 Mas para aleacutem do que nos diz a etimologia como podemos caracterizar a meleacutetema
no contexto da filosofia epicurista
21 Exerciacutecio dialoacutegico e dialeacutetico
O epicurista Dioacutegenes de Œnoanda por volta do seacuteculo II dC mandou gravar nos
muros da cidade onde viveu uma siacutentese do pensamento do mestre do Jardim Em um dos
fragmentos preservados eacute possiacutevel ler
Por que entatildeo ele sofre por Atena E certamente eacute [proacuteprio] ao homem virtuoso conversar consigo mesmo e de se dizer isso ldquoEu sou um ser humano e posso ser afetado pois fazem parte da carne isso aquilo e muitas outras coisas entre as quais nenhuma pode natildeo vir a ser (Œno fr 74)6
A partir dessa passagem podemos delinear uma concepccedilatildeo de meleacutetema como diaacutelogo
(dialoacutegos) interior uma conversa que se daacute com a proacutepria psycheacute Vale ressaltar natildeo se tratar
de uma praacutetica solitaacuteria e solipsista Se em um primeiro momento eu penso comigo mesmo
me indago sobre as coisas que podem proporcionar felicidade ouccedilo o que minha alma diz a
respeito posteriormente essa reflexatildeo eacute estendida compartilhada e pensada com os
ldquocompanheiros em filosofiardquo (DL X 17) Daiacute podermos no epicurismo observar uma
associaccedilatildeo entre a accedilatildeo de meditar e a amizade (philiacutea) A felicidade do saacutebio natildeo eacute
construiacuteda na solidatildeo nem para a solidatildeo mas para a alegria e para o encontro Ao meditar em
conjunto o saacutebio edifica laccedilos que constituem fonte de bem-estar ao mesmo tempo em que
reconhece no outro uma afinidade de pensamento quanto agrave finalidade da vida e ao modo como
realizaacute-la O escopo da filosofia epicurista natildeo eacute livrar o homem de perturbaccedilotildees afastando-o
do mundo isolando-o do conviacutevio social mas orientaacute-lo para que ele saiba se desviar das
relaccedilotildees que adoecem e se aproximar daquelas que lhe permitem exercitar a liberdade e o
prazer Em uma de suas sentenccedilas Epicuro diz ldquodentre as coisas que a sabedoria se
proporciona para a felicidade da vida inteira a amizade eacute em muito a maior delasrdquo (SV 13
5 Anatole Bailly Op Cit 6 Pourquoi donc souffre-t-il par Atheacutena Et certainement il est [propre] agrave lrsquohomme vertueux de converser avec soi-mecircme et de se dire ceci ldquoje suis un ecirctre humain et peux ecirctre affecteacute car font parties de la chair ceci et ceci et cela et quantiteacutes drsquoautres choses parmi lesquelles aucune ne peut pas ne pas devenirrdquo
83 DL X 148)7 Nessa afirmaccedilatildeo podemos ver a relaccedilatildeo estabelecida entre o exerciacutecio de uma
vida feliz a praacutetica da sabedoria e a afetividade A partir da articulaccedilatildeo dos termos sophiacutea e
philiacutea Epicuro pensa a possibilidade de estabelecer relaccedilotildees equilibradas onde cada um age
livremente sem a admoestaccedilatildeo das convenccedilotildees nem do desejo de assenhoramento sobre o
outro mas por um movimento de aproximaccedilatildeo com aqueles com quem se estabelece
afinidades
Por isso entendemos que meditar eacute uma atividade que se daacute tanto na psycheacute como um
exerciacutecio individual quanto entre amigos inscrevendo o outro em sua dinacircmica As cartas
maacuteximas ou outras formas que Epicuro encontrou de encapsular e transmitir8 sua filosofia satildeo
a construccedilatildeo de um pensamento que toma seus disciacutepulos e amigos (phiacuteloi) como partiacutecipes9
desse ato de meditaccedilatildeo seja porque a reflexatildeo foi feita em conjunto na coletividade que
permitia o Jardim seja porque o destinataacuterio daquela ponderaccedilatildeo estava presente na alma nas
lembranccedilas de quem a produzia
Perceba-se portanto que se por um lado a meditaccedilatildeo eacute realizada enquanto diaacutelogo
consigo mesmo isso nos sugere um aspecto individualizado do exerciacutecio filosoacutefico por outro
lado as cartas as maacuteximas e as sentenccedilas que nos chegaram de Epicuro bem como as
inscriccedilotildees nos muros de Œnoanda nos indicam a necessidade da inclusatildeo do outro nessa
praacutetica Isso porque seja em sua dimensatildeo individual ou conjunta a meleacutetema assenta-se em
um modelo dialoacutegico Queremos dizer com isso que a elaboraccedilatildeo e expressatildeo do loacutegos
filosoacutefico epicurista se estabelecem a partir da necessidade de perguntar e responder a si e
aos companheiros de filosofia num exerciacutecio comunicativo e participativo de construccedilatildeo de
um saber ancorado na physiologiacutea Eacute possiacutevel entretanto colocar a seguinte questatildeo se a
epistola nos remete para um gecircnero de comunicaccedilatildeo escrita que ldquonatildeo eacute diaacutelogo (no sentido
dos diaacutelogos de Platatildeo)rdquo (SILVA 2015 p 252) como podemos pensar que as cartas e outros
escritos de Epicuro nos remetam para essa relaccedilatildeo dialoacutegica com seus amigosdisciacutepulos
Ora por dialoacutegico estamos entendendo aqui aquilo que se refere ao debate ao diaacutelogo a uma
dinacircmica de questionamento e resposta que vai guiar o trabalho de investigar a phyacutesis e pensar
7 Ὧν ἡ σοφία παρασκευάζεται εἰς τὴν τοῦ ὅλου βίου μακαριότητα πολὺ μέγιστόν ἐστιν ἡ τῆς φιλίας κτῆσις 8 As Cartas Maacuteximas e Sentenccedilas podem ser entendidas como exemplos de exerciacutecio de meditaccedilatildeo Ao mesmo tempo em que medita o autor convida o leitor a tomar parte nessa atividade instigando-o a pensar sobre a natureza e sobre o modo como se vive Nesse sentido podemos entender as inscriccedilotildees de Œnoanda e o proacuteprio poema Da Natureza de Lucreacutecio no contexto de praacuteticas meditativas 9 Para aleacutem de comunicar uma filosofia e servir como um guia para meditaccedilatildeo as Sentenccedilas Vaticanas as Maacuteximas Capitais e as Cartas exercitam a philiacutea na medida em que visam dividir um saber que pode conduzir agrave vida feliz aqueles que compartilham do mesmo sentimento de afetividade Trata-se de uma atitude que traz consigo as marcas de uma simpatia (sympaacutetheia) de uma correspondecircncia com o outro no que diz respeito agrave maneira pensar e de viver
84 um modo de viver de acordo com a natureza E embora o interlocutor natildeo tenha sua voz
registrada de forma direta nos escritos de Epicuro sua demanda estaacute Veja-se por exemplo a
Carta a Piacutetocles que eacute uma resposta a outra que Epicuro recebera antes ldquoClecircon trouxe-me a
tua carta na qual continuas a mostrar-me teus sentimentos amistosos contrapartida de minha
devoccedilatildeo para contigo e natildeo sem sucesso procuras recordar os raciociacutenios capazes de ensejar a
conquista de uma vida felizrdquo (DL X 84)10 Vecirc-se aiacute um diaacutelogo que tem sido realizado por
meio de cartas As demandas por explicaccedilotildees a exposiccedilatildeo de opiniotildees advindas da
investigaccedilatildeo sobre a natureza jaacute chegaram ou satildeo conhecidas e servem como motivo para
meditar Nessa sucessatildeo de mensagens a meditaccedilatildeo sobre temas voltados para a realizaccedilatildeo de
um modo feliz de viver tambeacutem alimenta a amizade Se o outro natildeo estaacute presente fisicamente
naquele momento diante de quem escreve estaacute na alma de quem estaacute meditando sobre aqueles
assuntos na memoacuteria (mneacuteme) dos bons sentimentos Em outros termos estatildeo pressupostos
nesses escritos aleacutem de uma relaccedilatildeo de amizade um ato responsivo explicando orientando
compartilhando
() aos seus amigos um quadro sinoacuteptico um agregado de explicaccedilotildees seja sobre a phyacutesis seja sobre o modo de vida que sirva de guia para aqueles jaacute familiarizados com o seu pensamento ao mesmo tempo em que possa ser usado para iniciar os neoacutefitos (SILVA 2015 255)
Nesse processo dialogal cada carta eacute um momento mais longo num diaacutelogo onde ao
mesmo tempo se exprime um pensamento e se exercita a meditaccedilatildeo sobre a realidade a vida
a natureza sobre si mesmo sobre os proacuteprios sentimentos
Mas retomando o que diziacuteamos a meleacutetema eacute concebida como um diaacutelogo como
aponta o fragmento de Œnoanda nos daacute a indicaccedilatildeo de que natildeo se trata de uma praacutetica
voltada para guiar ou predispor a alma para uma espeacutecie de transe contemplativo ou para a
espera de alguma revelaccedilatildeo divina ou ainda para alcanccedilar uma experiecircncia miacutestico-
transcendente que vai resultar em um estado de imperturbabilidade A verdade natildeo vem de
fora verdadeiro eacute o pensamento construiacutedo a partir do exame da realidade percebida pelos
sentidos Tal perspectiva estaacute de acordo com a definiccedilatildeo de filosofia como uma teacutecnica que se
efetiva por meio de discurso (loacutegois) e pensamento (dialogismoiacutes)11 em busca de uma vida
feliz (makariacuteos zecircn) A meleacutetema pensada no contexto de uma teacutechne vai se constituir como
uma atividade que valendo-se da capacidade da alma para sentir memorizar assimilar
10 Ἤνεγκέ μοι Κλέων ἐπιστολὴν παρὰ σοῦ ἐν ᾗ φιλοφρονούμενός τε περὶ ἡμᾶς διετέλεις ἀξίως τῆς ἡμετέρας περὶ σεαυτὸν σπουδῆς καὶ οὐκ ἀπιθάνως ἐπειρῶ μνημονεύειν τῶν εἰς μακάριον βίον συντεινόντων διαλογισμῶν 11 Loacutegois tambeacutem pode ser traduzido por argumento e dialogismoiacutes pode ser compreendido por raciociacutenio conforme Markus Silva Sabedoria e Jardim Op Cit
85 estabelecer analogias calcular permite inscrever na psycheacute um loacutegos para guiar sua accedilatildeo
(praacutexis) no mundo tendo em vista o ldquovir a ser em torno da cura de noacutes mesmosrdquo (SV 64)12
Meditar vai ser assim um exerciacutecio de elaboraccedilatildeo de construccedilatildeo de um loacutegos uma
atividade que busca espelhar na psycheacute uma compreensatildeo de mundo estabelecida a partir de
uma investigaccedilatildeo da natureza tendo em vista um modo de viver de acordo com a phyacutesis Se a
vida saacutebia consiste em exercitar o que se pensa meditar vai ser o exerciacutecio de elaboraccedilatildeo de
um pensamento que considera a possibilidade da realizaccedilatildeo de um viver mais agradaacutevel a
despeito do que a cultura a religiatildeo e as convenccedilotildees impotildeem para o homem da Heacutelade como
um modelo de vida a ser seguido
Daiacute porque Dioacutegenes fala de conversa consigo mesmo Ele estaacute destacando que a
construccedilatildeo desse loacutegos acontece na psycheacute por meio de um exerciacutecio que pode se dar
individualmente ou em conjunto E esse sentido manteacutem coerecircncia com as palavras que
Epicuro dirige a Meneceu
Medita portanto sobre essas coisas e outras afins dia e noite por ti mesmo e com companheiros semelhantes a ti e nunca seraacutes perturbado desperto ou adormecido mas viveraacutes como um deus entre os homens pois em nada se assemelha a uma criatura mortal o homem que vive entre bens imortais (DL X 135)13
Outro aspecto que podemos destacar a partir dessa passagem estaacute ligado agrave finalidade
da filosofia Ao se voltar para livrar o homem de perturbaccedilotildees ela coloca em relevo seu
aspecto praacutetico sua inclinaccedilatildeo para se constituir como uma arte de vida ou teacutecnica em torno
do viver E a meditaccedilatildeo eacute um exerciacutecio que visa dar ao conhecimento advindo por meio da
physiologiacutea um sentido de pragmateiacutea ou seja orientaacute-lo para um fazer ou agir eacutetico para a
realizaccedilatildeo de um eacutethos livre e ldquohedonistardquo Por isso meditar visa levar a psycheacute a assimilar
esse saber physioloacutegico e fundamentar a convicccedilatildeo (piacutestis) necessaacuteria para conferir ao sophoacutes
uma disposiccedilatildeo (diaacutethesis) para a realizaccedilatildeo de uma vida feliz
Assim para retomarmos o testemunho de Œnoanda quando o homem se pensa como
um ser constituiacutedo de variados elementos corpoacutereos que ldquofazem parte da carnerdquo e -
dialogando consigo mesmo - busca relacionar isso agrave sua condiccedilatildeo mortal sujeito ao vir a ser e
ao deixar de ser das coisas ele estaacute edificando um loacutegos a partir de princiacutepios physioloacutegicos
Ao fazer isso ele contrapotildee agrave ideia de uma natureza onde somente operam forccedilas inexoraacuteveis
12 ἡμᾶς δὲ γενέσθαι περὶ τὴν ἡμῶν ἰατρείαν 13 Ταῦτα οὖν καὶ τὰ τούτοις συγγενῆ μελέτα πρὸς σεαυτὸν ἡμέρας καὶ νυκτὸς πρός ltτεgt τὸν ὅμοιον σεαυτῷ καὶ οὐδέποτε οὔθrsquo ὕπαρ οὔτrsquo ὄναρ διαταραχθήσῃ ζήσῃ δὲ ὡς θεὸς ἐν ἀνθρώποις οὐθὲν γὰρ ἔοικε θνητῷ ζῴῳ ζῶν ἄνθρωπος ἐν ἀθανάτοις ἀγαθοῖς
86 ou sobrenaturais uma concepccedilatildeo de phyacutesis que em seu modo proacuteprio de realizaccedilatildeo permite a
possibilidade de pensar a condiccedilatildeo mortal a partir da noccedilatildeo de prazer e de liberdade A vida
para o saacutebio dessa forma deixa de ser penosa fatiacutedica para se apresentar como espaccedilo para
seu protagonismo Meditando o homem busca se compreender como ser da natureza e
portanto tambeacutem natildeo estaria submetido a nenhuma intervenccedilatildeo demiuacutergica nem sujeito aos
desiacutegnios de nenhum deus nem aguardariam por ele no Hades os maiores tormentos
Dessa forma a meditaccedilatildeo ao exercitar o pensamento para procurar entender como
natural o que parece divino para se desvencilhar de concepccedilotildees que projetem para fora das
experiecircncias humanas o sentido da existecircncia o que castra desequilibra adoece e direciona o
pensar e a agir do homem para longe de sua realizaccedilatildeo configura-se tambeacutem como uma
atividade libertadora como discutiremos no proacuteximo item
Antes disso eacute preciso ainda destacar o aspecto dialeacutetico que perpassa os exerciacutecios de
meditaccedilatildeo Embora consideremos as vaacuterias acepccedilotildees que podem ser evocadas pelo termo e
natildeo eacute objeto desse trabalho discuti-las vemos no epicurismo um aspecto dialeacutetico que pode
ser pensado a partir da perspectiva geral do confronto de dois loacutegoi um ligado agrave poacutelis agraves
convenccedilotildees aos mitos e outro que nos remete ao Jardim ao fundamentado na natureza ao
corpoacutereo Esse panorama se delineia ao longo de toda a filosofia epicurista onde uma
ldquodialeacutetica estreitardquo (HOUDENOT 2018)14 se estabelece em torno de noccedilotildees que nos remetem
para a existecircncia de seu contraacuterio como por exemplo limiteilimitado justoinjusto
riquezapobreza Nesse sentido tomemos as seguintes passagens
A riqueza proveniente da natureza eacute limitada e viaacutevel e das opiniotildees vazias cai no inabordaacutevel (SV 8 DL X 144)15
A pobreza medida pelo limite da natureza eacute uma riqueza grande a riqueza natildeo delimitada eacute uma grande pobreza (SV 25)16
Da maioria das coisas dos homens o que estaacute em repouso entorpece o que estaacute em movimento enraivece (SV 11)17
O justo eacute o mais imperturbaacutevel o injusto eacute pleno de maacutexima perturbaccedilatildeo (SV 12 DL X 144)18
14 HOUDENOT Julie La poeacutetisation de la limite Camenulae 20 Revista da Faculdade de Letras da Universidade de Sorbone Mai 2018 ISSN 2494-212 X Esse artigo condensa a pesquisa de doutorado cujo tiacutetulo eacute La poeacutetisation de la limite chez Lucregravece Virgile et Horace defendida em 2017 na universidade Paris Sorbonne Nessa siacutentese a autora parte do conceito de limite elaborado por Epicuro para tratar de aspectos esteacuteticos adicionados por Lucreacutecio em seu poema Da Natureza 15 Ὁ τῆς φύσεως πλοῦτος καὶ ὥρισται καὶ εὐπoριστός ἐστιν ὁ δὲ τῶν κενῶν δοξῶν εἰς ἄπειρον ἐκπίπτει 16 Ἡ πενία μετρουμένη τῷ τῆς φύσεως τέλει μέγας ἐστὶ πλοῦτοςmiddot πλοῦτος δὲ μὴ ριζόμενος μεγάλη ἐστὶ πενία 17 Τῶν πλείστων ἀνθρώπων τὸ μὲν ἡσυχάζον ναρκᾷ τὸ δὲ κινούμενον λυττᾷ 18 Ὁ δίκαιος ἀταρακτότατος ὁ δrsquo ἄδικος πλείστης ταραχῆς γέμων
87 A magnitude do prazer atinge seu limite na remoccedilatildeo de todo sofrimento Quando o prazer estaacute presente durante todo o tempo em que ele permanece natildeo haacute dor no corpo nem na alma nem nos dois (DL 139 III)19
Podemos verificar na construccedilatildeo dessas sentenccedilas o uso de termos que no contexto da
physiologiacutea evocam entre si uma relaccedilatildeo dialeacutetica fundamental para a compreensatildeo dos
modos de ser da phyacutesis Satildeo conceitos cujo sentido estaacute relacionado agrave existecircncia de seu
oposto Assim repouso e movimento satildeo definiccedilotildees empregadas para pensar o aacutetomo os
corpos compostos os mundos Paralelamente satildeo empregados termos que tanto nos remetem
agrave investigaccedilatildeo da phyacutesis quanto podem ajudar as finalidades ligadas ao exerciacutecio de uma vida
conduzida com sabedoria Tal eacute o caso de inabordaacutevel (apeiacuteron) que tanto pode servir para
pensar o que natildeo tem limite na phyacutesis quanto agrave impossibilidade de alcanccedilar as riquezas
professadas pelas opiniotildees vazias Epicuro tambeacutem trabalha nesses enunciados palavras que
remetem diretamente agrave dimensatildeo do agir humano Ao articular nessas sentenccedilas pobreza e
riqueza torpor e raiva justo e injusto a mesma perspectiva de oposiccedilatildeo que se verifica no
campo da physiologiacutea eacute percebida com relaccedilatildeo ao modo de viver Do mesmo jeito essa
perspectiva de contraste se apresenta ao pensarmos naquele que vive em perturbaccedilatildeo em
sofrimento por oposiccedilatildeo agravequele que experimenta o prazer a ataraxiacutea
Ora esse tratamento discursivo aponta no sentido de indicar a possibilidade de
estender essa compreensatildeo dialeacutetica que permite descrever e refletir a realidade
physiologicamente para pensar as accedilotildees as escolhas e o modo de viver do sophoacutes Com isso
Epicuro visa evidenciar um conflito fundamental para entender a condiccedilatildeo do homem grego
de seu tempo que distanciado da participaccedilatildeo poliacutetica e sem o gozo de uma vida em
democracia volta-se para o cuidado consigo mesmo Ele precisa portanto definir qual a
melhor forma de viver para se sentir realizado e essa indagaccedilatildeo remete para uma dialeacutetica
que tem de um lado a natureza (phyacutesis) e do outro as opiniotildees vazias (kenaigrave doacutexai) E isso
implica em um conflito entre os loacutegoi que fazem referecircncia a essas duas possibilidades
Quanto mais se medita mais esse conflito se evidencia mais essa dialeacutetica se acentua pois o
pensamento fundamentado na physiologiacutea e assim tendo o prazer e a liberdade por
finalidades inclina-se para a vida katagrave phyacutesin em detrimento das opiniotildees contraacuterias
A meditaccedilatildeo portanto eacute exercitada tanto quanto se acentua esse ldquoprocesso dialeacuteticordquo
que se ldquoresolverdquo na medida em que o raciociacutenio (dialogismoiacutes) e o discurso (loacutegos) vatildeo
construindo na psycheacute uma vinculaccedilatildeo entre a physiologiacutea e o eacutethos Disso resulta uma
19 Ὅρος τοῦ μεγέθους τῶν ἡδονῶν ἡ παντὸς τοῦ ἀλγοῦντος ὑπεξαίρεσις ὅπου δrsquo ἂν τὸ ἡ δόμενον ἐνῇ καθrsquo ὃν ἂν χρόνον ᾖ οὐκ ἔστι τὸ ἀλγοῦν ἢ λυπούμενον ἢ τὸ συναμφότερον
88 seleccedilatildeo de um loacutegos e o ldquoexpurgordquo do outro como um antiacutedoto que anula ou minimiza a accedilatildeo
do veneno para retomarmos a metaacutefora de filosofia como medicina da alma Se ldquoningueacutem
olhando a coisa maacute a escolherdquo (SV 16)20 esse conflito entre loacutegoi permite colocar em questatildeo
os valores as finalidades e os modos de viver tendo em vista a busca de realizar uma vida
saacutebia Disso decorre uma inevitaacutevel problematizaccedilatildeo da religiatildeo da poliacutetica da Paideacuteia das
relaccedilotildees sociais da vida na poacutelis Assim a meleacutetema em sua feiccedilatildeo dialeacutetica acaba por
produzir um pensamento criacutetico (balizado na investigaccedilatildeo da natureza) que se opotildee aos
determinismos e convenccedilotildees cristalizados por uma cultura fundamentada em kenaigrave doacutexai Eacute a
partir dessa perspectiva dialeacutetica e dialoacutegica (como destacamos anteriormente) caracteriacutestica
da atividade meditativa que se estabelece uma compreensatildeo mais luacutecida do tempo e do
espaccedilo em que se vive e da possibilidade de conceber a vida como um exerciacutecio de
emancipaccedilatildeo e de realizaccedilatildeo de si mesmo
22 - Meleacutetema e mneacuteme
A meditaccedilatildeo eacute um exerciacutecio que visa desenvolver na alma uma inclinaccedilatildeo para buscar
viver de acordo com a phyacutesis Em torno dessa finalidade eacute preciso mobilizar a faculdade para
calcular raciocinar avaliar fazer analogias diferenciar e a capacidade para tomar decisotildees e
para fazer escolhas sensata e prudentemente A partir desses recursos a psycheacute vai procurar
estabelecer um loacutegos em consonacircncia com o saber oriundo da physiologiacutea para se contrapor
ao loacutegos relacionado agraves kenaigrave doacutexai Com isso objetiva-se exercitar uma disposiccedilatildeo para que
a phroacutenesis e o logismoacutes - que datildeo a medida do agir humano ndash conduzam a um modo de vida
em conformidade com um saber katagrave phyacutesin
Mas para que isso ocorra outra competecircncia da alma tambeacutem eacute mobilizada Trata-se
de sua capacidade para reter conhecimento e imagens e para relembrar sensaccedilotildees
experimentadas Estamos nos referindo agravequilo que na filosofia epicurista eacute designado por
memoacuteria (mneacuteme)21 Mas antes de recorremos as palavras de Epicuro vamos retomar o
fragmento 74 de Dioacutegenes de Œnoanda para a partir dele tentar estabelecer relaccedilotildees que
entre a meleacutetema e a mneacuteme nesse processo de conduccedilatildeo da psycheacute em direccedilatildeo a um modo
saacutebio de viver
20 Οὐδεὶς βλέπων τὸ κακὸν αἱρεῖται αὐτό 21 DL X 31 35 36 82 83 85 95
89 Assim em toda ocasiatildeo ele eacute capaz de lembrar dos elementos naturais das afecccedilotildees e que eles satildeo faacuteceis de circunscrever delimitados como que por um compasso [] (Œno fr 74)22
Evocamos esse fragmento porque ele daacute seguimento agravequele do iniacutecio do toacutepico 21
deste capiacutetulo (onde se diz que ao meditar o homem conversa consigo mesmo) e nos permite
tecer alguns comentaacuterios a respeito do papel da mneacuteme no processo de elaboraccedilatildeo de um
loacutegos para se opor as opiniotildees vazias bem como da sua importacircncia no desenvolvimento de
uma disposiccedilatildeo (diaacutethesis) da alma para buscar viver de acordo com o que depreendeu ao
investigar a phyacutesis
Essa conversa que acontece dentro de si mesmo eacute referenciada na natureza No
epicurismo esse diaacutelogo interior ou com os amigos (phiacuteloi) natildeo prescinde da recordaccedilatildeo dos
princiacutepios evidenciados a partir da investigaccedilatildeo da phyacutesis e nem da lembranccedila de momentos
que trouxeram consigo boas sensaccedilotildees Isso nos sugere de iniacutecio alguns aspectos que podem
ser relacionados agrave memoacuteria a mneacuteme como repertoacuterio dos princiacutepios de uma investigaccedilatildeo
physioloacutegica como conjunto das experiecircncias sensiacuteveis e como recordaccedilatildeo de afecccedilotildees
(paacutethes) e as sensaccedilotildees (aiacutestheseos) delas resultantes
O primeiro aspecto encontra testemunho na seguinte passagem da Carta a Heroacutedoto
Para os incapazes de estudar acuradamente cada um de meus escritos sobre a natureza Heroacutedoto ou de percorrer detidamente os tratados mais longos preparei uma epiacutetome de todo o meu sistema a fim de que possam conservar bem gravado na memoacuteria o essencial dos princiacutepios mais importantes e estejam em condiccedilotildees de sustentaacute-los em quaisquer circunstacircncias desde que se dediquem ao estudo da natureza Aqueles que progrediram suficientemente na contemplaccedilatildeo do universo devem ter na memoacuteria os elementos fundamentais de todo o sistema doutrinaacuterio pois necessitamos frequentemente de uma visatildeo de conjunto embora natildeo aconteccedila o mesmo com os detalhes (DL X 35)23
Perceba-se nessa passagem que Epicuro caracteriza o proacuteprio texto (a carta) como
um resumo de uma obra mais vasta sobre a natureza E isso estaacute ligado agrave necessidade de
tornar mais faacutecil e raacutepido o acesso a esse saber Tal preocupaccedilatildeo tem razatildeo pois
diuturnamente o homem estaacute submetido agrave influecircncia das opiniotildees vazias que sob a forma de
22 Ainsi en toute occasion il est capable de se rappeler les eacuteleacutements naturels des affections et qursquoils sont faciles agrave circonscrire delimiteacutes comme par un compas [] 23 Τοῖς μὴ δυναμένοις ὦ Ἡρόδοτε ἕκαστα τῶν περὶ φύσεως ἀναγεγραμμένων ἡμῖν ἐξακριβοῦν μηδὲ τὰς μείζους τῶν συντεταγμένων βίβλους διαθρεῖν ἐπιτομὴν τῆς ὅλης πραγματείας εἰς τὸ κατασχεῖν τῶν ὁλοσχερωτάτων δοξῶν τὴν μνήμην ἱκανῶς αὐτοῖς παρεσκεύασα ἵνα παρrsquo ἑκάστους τῶν καιρῶν ἐν τοῖς κυριωτάτοις βοηθεῖν αὑτοῖς δύνωνται καθrsquo ὅσον ἂνἐφάπτωνται τῆς περὶ φύσεως θεωρίας καὶ τοὺς προβεβηκότας δὲ ἱκανῶς ἐν τῇ τῶν ὅλων ἐπιβλέψει τὸν τύπον τῆς ὅλης πραγματείας τὸν κατεστοιχειωμένον δεῖ μνημονεύεινmiddot τῆς γὰρ ἀθρόας ἐπιβολῆς πυκνὸν δεόμεθα τῆς δὲ κατὰ μέρος οὐχ ὁμοίως
90 asseacutedio e ou de opressatildeo buscam instilar na alma desejos que nem satildeo naturais nem
necessaacuterios Assim seja para se opor agravequeles que querem impor uma concepccedilatildeo de vida
alheada da natureza seja para participar das discussotildees que acontecem no Jardim ou ainda
para fundamentar essa conversa consigo mesmo eacute preciso poder referenciar na physiologiacutea o
loacutegos acerca da realidade Essa eacute uma necessidade de todos aqueles que buscam trilhar o
caminho da sabedoria mas Epicuro faz uma ressalva considerando os diferentes graus de
aproximaccedilatildeo com a doutrina Para os iniciantes deve-se memorizar o essencial dos princiacutepios
que norteiam uma compreensatildeo physioloacutegica da realidade Jaacute os mais experientes devem
gravar na memoacuteria os elementos fundamentais de toda a physiologiacutea
Ora se retomarmos o testemunho de Epicuro citado anteriormente leremos que
estando na memoacuteria esses elementos fundamentais da doutrina vatildeo servir para serem usados
quando a necessidade se apresentar sendo preciso estar ldquoem condiccedilotildees de sustentaacute-los em
quaisquer circunstacircnciasrdquo Essa ideia eacute retomada no passo seguinte nestes termos
Com efeito tambeacutem para quem tiver chegado a uma perfeita maturidade o requisito baacutesico para todo conhecimento exato eacute a faculdade de adotar com presteza as concepccedilotildees principais porquanto cada particularidade se reduz a elementos simples e a termos igualmente simples (DL X 36)
Aqui eacute inserida mais uma ideia a de que a capacidade para prontamente fazer uso
desse saber memorizado estaacute relacionada ao grau de experiecircncia que se tem dentro da
doutrina como jaacute mencionamos Assim quanto mais experimentado na filosofia do Jardim
mais se faz uso dos princiacutepios que remetem ao saber physioloacutegico Eacute essa habilidade ou
teacutecnica para usar esse conhecimento acerca da phyacutesis nas situaccedilotildees concretas da vida que a
meditaccedilatildeo visa desenvolver Mas isso natildeo quer dizer que o neoacutefito natildeo possa se beneficiar
dessas siacutenteses que tratam dos fundamentos da physiologiacutea Para Epicuro ter na memoacuteria os
apontamentos de uma filosofia que se volta para afastar os temores fundados em opiniotildees
fantasiosas traz seus benefiacutecios Seja porque isso funciona como um convite para que o
iniciante possa por si mesmo pensar o modo como percebe a realidade e se questionar sobre a
forma de viver professada pelas kenaigrave doacutexai seja porque remete agrave possibilidade de realizar a
makariacuteos zecircn Eacute a essa perspectiva se remetem as seguintes palavras
Eis entatildeo Heroacutetodo os elementos fundamentais da doutrina sobre a natureza do universo em forma resumida Assim se esta exposiccedilatildeo for memorizada cuidadosamente e produzir efeito creio que qualquer pessoa seja ela quem for embora natildeo penetre em todos os detalhes miacutenimos conquistaraacute uma seguranccedila incomparavelmente forte em comparaccedilatildeo com o resto da humanidade Com efeito por si mesma ela esclareceraacute muitos pontos particulares por mim tratados exaustivamente no sistema completo de
91 minha doutrina e esses mesmos elementos uma vez fixados na memoacuteria jamais cessaratildeo de ajudaacute-la (DL X 82-83)24
Dessa forma a necessidade de tendo em vista a primordialidade de fazer uso praacutetico
desse saber colocar agrave disposiccedilatildeo da alma um conhecimento para balizar o pensamento e a
conduta eacute compatibilizada com o niacutevel de vivecircncia e de compreensatildeo filosoacutefica de cada um
Nada mais natural quando se entende que a pragmateiacutea epicurista se desenvolve como um
exerciacutecio e portanto a evoluccedilatildeo de cada seguidor se daacute de forma gradativa E quanto mais se
medita e se busca estabelecer uma praacutetica de vida em torno da natureza mais esse
conhecimento physioloacutegico eacute assimilado pela alma Com isso a ignoracircncia sobre a phyacutesis - o
que conduz ao erro (hamartiacutea) e agrave desmesura (hyacutebris) e consequentemente agrave perturbaccedilatildeo ao
sofrimento e agrave limitaccedilatildeo do sentido de liberdade do homem - eacute afastada
A mneacuteme conserva na psycheacute essas formas resumidas ou mais estendidas de um saber
sobre a natureza que vai despertar e fundamentar uma visatildeo criacutetica e distanciada com relaccedilatildeo
agraves crenccedilas aos valores e agraves normas relacionadas agrave finalidade do agir do homem Ao meditar
sobre o que resulta quando se vive a partir de um modelo natural e o que adveacutem quando
orientamos nosso pensamento e nossa conduta por convenccedilotildees alheadas da natureza a alma
se daacute conta de poder definir um melhor modo de vida se suas accedilotildees forem estabelecidas a
partir de um ldquocaacutelculo soacutebrio que investigue as causas de toda a escolha e de toda a rejeiccedilatildeo e
elimine as opiniotildees vatildes por obra das quais um imenso tumulto se apossa das almasrdquo (DL X
132)25
Daiacute podermos estabelecer uma relaccedilatildeo entre a memoacuteria o pensamento a sabedoria e a
meditaccedilatildeo A partir da mneacuteme os fundamentos da physiologiacutea satildeo resgatados e servem ao
logismoacutes e agrave phroacutenesis para a elaboraccedilatildeo de um raciociacutenio (dialogismoiacutes) voltado para fazer
convergir o modo de pensar e de agir para a consecuccedilatildeo de uma vida agradaacutevel equilibrada
frugal liberta Assim quando Epicuro afirma que eacute preciso ldquomeditar sobre tudo que possa
proporcionar a felicidaderdquo (DL X 122)26 ele estaacute nos falando de um exerciacutecio contiacutenuo e
integrado caracteriacutestico da atividade do saacutebio Isso porque a perspectiva eacute a de que quanto
mais ele investiga a phyacutesis mais ele se interroga a partir dela sobre seu modo de viver e
24 Ταῦτά σοι ὦ Ἡρόδοτε ἔστι κεφαλαιωδέστατα ὑπὲρ τῆς τῶν ὅλων φύσεως ἐπιτετμημέναmiddot ὥστrsquo ἐὰν γένηται οὗτος ὁ λόγος δυνατὸς κατασχεθεὶς μετrsquo ἀκριβείας οἶμαι ἐὰν μὴ καὶ πρὸς ἅπαντα βαδίσῃ τις τῶν κατὰ μέρος ἀκριβωμάτων ἀσύμβλητον αὐτὸν πρὸς τοὺς λοιποὺς ἀνθρώπους ἁδρότητα λήψεσθαι καὶ γὰρ καὶ καθαρὰ ἀφrsquo ἑαυτοῦ ποιήσει πολλὰ τῶν κατὰ μέρος ἐξακριβουμένων κατὰ τὴν ὅλην πραγματείαν ἡμῖν καὶ αὐτὰ ταῦτα ἐν μνήμῃ τιθέμενα συνεχῶς βοηθήσει 25 νήφων λογισμὸς καὶ τὰς αἰτίας ἐξερευνῶν πάσης αἱρέσεως καὶ φυγῆς καὶ τὰς δόξας ἐξελαύνων ἐξ ὧν πλεῖστος τὰς ψυχὰς καταλαμβάνει θόρυβος 26 μελετᾶν οὖν χρὴ τὰ ποιοῦντα τὴν εὐδαιμονίαν
92 quanto mais ele pensa sobre o teacutelos de suas accedilotildees mais ele recorre agrave physiologiacutea seja por
meio dos resumos ou de obras mais detalhadas para poder nela encontrar um paradigma para
seu eacutethos
Nesse contexto entendemos o destaque dado por Epicuro ao resumo agrave condensaccedilatildeo agrave
siacutentese das linhas gerais de sua filosofia As questotildees colocadas pela vida diante do saacutebio
precisam ser respondidas em um tempo pertinente (kairoacutes) quer dizer diante da necessidade
de fazer escolhas e recusas de se contrapor agraves kenaigrave doacutexai de se negar a seguir as
convenccedilotildees os mecanismos do pensamento devem estar em condiccedilatildeo guarnecer
(paraskeuaacutedzo) a alma de recurso de ajuda (boeacutetheia) em favor da afirmaccedilatildeo do loacutegos
physioloacutegico (DL X 35)27
Acredito que esta tenha sido tambeacutem a razatildeo pela qual [aleacutem das epiacutetomes] escreveu aforismos agrupados num conjunto de maacuteximas e sentenccedilas curtas de faacutecil memorizaccedilatildeo que pudessem ser retidas e citadas sempre que a ocasiatildeo demandasse o uso dessas expressotildees (SILVA 2015 p 247)
Eacute a partir desses formatos sinteacuteticos de expressatildeo do pensamento guardados na
memoacuteria que se medita e nesse exerciacutecio vai sendo elaborado um loacutegos criacutetico e alternativo
ao convencionado pela kenoacuten doacutexa Isso estaacute alinhado ao relato de Dioacutegenes Laeacutercio
informando que Epicuro exortava seus disciacutepulos a decorarem seus tratados (DL X 12)
afinal ldquoa tranquilidade perfeita da alma consiste em estar livre de todos esses terrores e
temores28 e em relembrar tenaz e constantemente a doutrina em suas linhas gerais e
fundamentaisrdquo (DL X 82)29 Seria entatildeo o caso de pensar esse conteuacutedo resumido como
caacutepsulas filosoacuteficas para retomarmos a metaacutefora de filosofia como medicina da alma Eacute por
meio desse medicamento potencializado pelo exerciacutecio de meditaccedilatildeo que a alma desenvolve
as defesas necessaacuterias para combater o que a adoece e com isso poder restabelecer sua sauacutede
Colocando em termos mais proacuteximos aos apresentados por Epicuro eacute a meditaccedilatildeo
permanente em torno da physiologiacutea que desenvolve na alma a convicccedilatildeo firme (piacutestin
beacutebaion) (DL X 85) necessaacuteria para se opor ao pensamento fantasioso (DL X 81) e agraves
opiniotildees equivocadas a respeito da natureza Meditando sobre o conhecimento physioloacutegico o
27 Ver nota 23 deste capiacutetulo 28 Haacute uma relaccedilatildeo entre livrar a psycheacute desses terrores e temores e a necessidade de ter na memoacuteria (mneacuteme) os princiacutepios elementares da physiologiacutea A libertaccedilatildeo das opiniotildees que desequilibram e perturbam a alma (tema que trataremos no item 23 deste capiacutetulo) soacute eacute possiacutevel a partir de uma compreensatildeo physioloacutegica da realidade Esses princiacutepios estando sempre acessiacuteveis na memoacuteria vatildeo servir ao pensamento para estabelecer um loacutegos que vai orientar o modo de viver do saacutebio para a imperturbabilidade ldquoa ataraxiacutea soacute eacute possiacutevel se nos afastamos de todas essas crenccedilas [opiniotildees vazias] e se guardamos lsquona memoacuteria os princiacutepios gerais do conjunto das coisasrsquordquo (SALEM 1993 p 18) 29 ἡ δὲ ἀταραξία τῷ τούτων πάντων ἀπολελύσθαι καὶ συνεχῆ μνήμην ἔχειν τῶν ὅλων καὶ υριωτάτων
93 sophoacutes ao mesmo tempo em que espelha na alma um saber que vai ser uacutetil para o domiacutenio de
uma arte de viver (teacutechnen tinaacute periacute ton biacuteon) o que lhe confere esse sentimento de confianccedila
(piacutestis) o coloca vigilante e avesso aos pensamentos que natildeo estatildeo de acordo com esse saber
Agora podemos colocar em pauta o segundo aspecto indispensaacutevel para compreender
no contexto da filosofia epicurista o sentido da mneacuteme e como ela se relaciona com a
atividade de meditaccedilatildeo Trata-se de pensar a memoacuteria tambeacutem como repositoacuterio das
impressotildees sensiacuteveis onde estatildeo reunidas as imagens que nos datildeo testemunho das coisas do
mundo e que nos chegam atraveacutes nossos sentidos Por meio dessa imagerie a psycheacute pode
estabelecer uma leitura da realidade fenomecircnica fazer analogias e imaginar projetando o
pensamento para aleacutem dos limites da nossa sensibilidade permitindo construir um loacutegos a
respeito do mundo que experimentamos mas tambeacutem se expandir para o micro e o para
macrocosmos
Ora vimos no capiacutetulo I que a experiecircncia sensiacutevel serve de fundamento para toda a
investigaccedilatildeo sobre a natureza e que as sensaccedilotildees (aiacutestheseos) decorrentes dessa experiecircncia
satildeo tomadas como criteacuterio de verdade para se pensar os modos de ser da phyacutesis Eacute balizado
por essa perspectiva que o pensamento busca se circunscrever ao imanente e natildeo recorrer aos
mitos nem ao misteacuterio para buscar compreender os fenocircmenos da realidade Dessa forma esse
conjunto de imagens ligadas agraves aiacutestheseos e acumuladas na mneacuteme vai orientar todo o
exerciacutecio de meditaccedilatildeo para fazer a phycheacute se ater agrave imanecircncia afinal eacute nesse campo que a
possibilidade de uma vida tranquila eacute projetada
Eacute nessa dimensatildeo imanente que eacute construiacuteda a relaccedilatildeo que no epicurismo se
estabelece entre a realidade sensiacutevel o pensamento e o modo de agir Ao pensar a partir de
uma memoacuteria que fornece um conjunto de referecircncias relacionadas agrave fisicalidade ou agrave
corporeidade e tomar as sensaccedilotildees como criteacuterio para afastar as imagens fantasiosas ou
miacuteticas o saacutebio projeta a finalidade de suas accedilotildees nos limites da phyacutesis no espaccedilo e no tempo
de sua existecircncia Eacute essa ancoragem no imanente que a meditaccedilatildeo exercita quando evoca essa
memoacuteria do sensiacutevel para se contrapor agraves concepccedilotildees que projetam o sentido de realizaccedilatildeo
das accedilotildees humanas para aleacutem de sua experiecircncia
Dizendo de outra maneira quando da memoacuteria se buscam as imagens do patildeo e da
aacutegua30 (elementos da realidade experimentada) para subsidiar a meditaccedilatildeo no exerciacutecio de
estabelecer um loacutegos em torno do teacutelos da conduta do homem eacute porque na alma esses
30 DL X 131 O patildeo e aacutegua proporcionam o prazer supremo quando levados a uma boca faminta Em grego καὶ μᾶζα καὶ ὕδωρ τὴν ἀκροτάτην ἀποδίδωσιν ἡδονήν ἐπειδὰν ἐνδέων τις αὐτὰ προσενέγκηται
94 elementos estatildeo relacionados ao sentimento de prazer que o saacutebio compreendeu por meio da
physiologiacutea serem naturais e necessaacuterios Assim partindo dessas imagens eacute possiacutevel meditar
sobre como o pensamento e a eacutethos devem ser orientados para a consecuccedilatildeo de um modo de
vida equilibrado e frugal e portanto exequiacutevel na temporalidade e na natureza em que se vive
Cabe salientar ao nos referirmos ao sentimento de prazer evocado pela alma e
podendo ser relacionado a uma imagem ou a uma experiecircncia estamos nos remetendo a mais
um aspecto para compreender a mneacuteme em sua relaccedilatildeo com a praacutetica da meditaccedilatildeo Trata-se
de pensaacute-la como um repertoacuterio de sentimentos acumulados ao longo do tempo e a partir da
diversidade de experiecircncias resultantes da interaccedilatildeo do homem com o mundo Vale lembrar
que os sentimentos satildeo impressotildees sensiacuteveis (proleacutepseis) gravadas na mneacuteme Eles estatildeo
ligados agraves sensaccedilotildees de prazer ou de dor que advecircm de quando entramos em contato com um
objeto externo Dessa experiecircncia daacute-se uma afecccedilatildeo (paacutethos) que gera em noacutes uma sensaccedilatildeo
(aiacutesthesis) prazerosa ou dolorosa Tais sensaccedilotildees satildeo guardadas na alma transformadas em
sentimentos Nesse processo a memoacuteria vai ser fundamental para trazer para a praacutetica da
meditaccedilatildeo as sensaccedilotildees agradaacuteveis que vatildeo servir para se opor agravequelas que infligem
sofrimento Sobre esse aspecto satildeo vaacuterias as referecircncias encontradas nos textos de Epicuro
Uma delas estaacute na carta que escreve pouco antes de morrer a Idomeneu Esse testemunho eacute
resgatado por Dioacutegenes Laeacutercio da seguinte forma
Neste dia feliz que tambeacutem eacute o uacuteltimo de minha vida escrevo-te esta carta As dores contiacutenuas resultantes da estranguacuteria e da disenteria satildeo tatildeo fortes que nada pode aumentaacute-las Minha alma entretanto resiste a todos esses males alegre ao relembrar os nossos coloacutequios passados (DL X 22)31
Esse relato chama a atenccedilatildeo primeiramente pelo contraste entre o sentimento de
felicidade que experimenta Epicuro e sua condiccedilatildeo fiacutesica marcada pelo sofrimento devido agrave
degeneraccedilatildeo de sua sauacutede Meio agraves dores extremas impostas ao corpo-carne a psycheacute resiste e
proporciona o gozo da alegria para quem jaacute espera a proacutepria morte Isso nos leva a fazer duas
indagaccedilotildees A primeira estaacute relacionada a esse resistir da alma A segunda diz respeito agrave
possibilidade de fazer cessar a dor sentida no presente ou minimizar sua forccedila por meio da
lembranccedila de experiecircncias prazerosas vividas no passado
Para tratarmos dessa questatildeo vamos considerar que a felicidade com a qual a filosofia
estaacute envolvida tem um soacute tempo o presente (BOLLACK 1975 p 88) Com isso natildeo se estaacute
31 Τὴν μακαρίαν ἄγοντες καὶ ἅμα τελευταίαν ἡμέραν τοῦ βίου ἐγράφομεν ὑμῖν ταυτί στραγγουρικά τε παρηκολούθει καὶ δυσεντερικὰ πάθη ὑπερβολὴν οὐκ ἀπολείποντα τοῦ ἐν ἑαυτοῖς μεγέθους ἀντιπαρετάττετο δὲ πᾶσι τούτοις τὸ κατὰ ψυχὴν χαῖρον ἐπὶ τῆι τῶν γεγονότων ἡμῖν διαλογισμῶν μνήμηι
95 apregoando a ldquonegaccedilatildeo do passadordquo nem que se ignore o futuro Estaacute sendo postulada a
atitude do saacutebio de exercitar a felicidade no momento em que vive Essa perspectiva nos
permite tentar entender quando Epicuro diz que a alma resiste a todos os males porque se
trata de um exerciacutecio de trazer para aquele instante o que pode se contrapor agrave dor que o estaacute
afetando Dessa forma o trabalho da alma em resistir consiste em tentar suplantar a dor
trazendo o prazer para si E isso implica em uma meditaccedilatildeo direcionada para trazer da mneacuteme
as lembranccedilas prazerosas para que a psycheacute tenha novamente as sensaccedilotildees de prazer que elas
provocam Quando relembradas as boas experiecircncias os bons conviacutevios as situaccedilotildees de
felicidade proporcionam um bem-estar (eustaacutetheia)32 que se estende para o corpo e para a
alma Trata-se de tentar opor um prazer sereno (hedonegrave katastematikeacute) a uma dor Diante
disso mais que lembrar a meditaccedilatildeo trabalha no sentido de estabelecer na alma a confianccedila
(piacutestis) em um princiacutepio que adveacutem da investigaccedilatildeo da natureza segundo o qual a dor e o
prazer natildeo estatildeo presentes ao mesmo tempo Assim verificamos que Epicuro ldquoparte do
princiacutepio segundo o qual prazer e dor se excluem e mais que isso natildeo haacute estado
intermediaacuterio entre eles ou estado neutro no qual natildeo se sente prazer nem dorrdquo (SILVA
2018 p 134)
Esse trabalho de resistir remete portanto agrave confianccedila que o saacutebio tem a respeito da
natureza poder ser tomada como um paradigma para a maneira de viver Por isso a
meditaccedilatildeo ao relembrar dos princiacutepios da physiologiacutea os relaciona a uma conduta de acordo
com a natureza e projeta isso no sentido de vida feliz que o saacutebio almeja Dessa forma
recuperar da memoacuteria a recordaccedilatildeo do que foi vivido e com isso fazer a alma experimentar o
sentimento de prazer associado a essa lembranccedila se constitui como um exerciacutecio de meditaccedilatildeo
que fazendo uso praacutetico de um saber physioloacutegico desvia a atenccedilatildeo do que causa dor para o
que proporciona alegria Eacute preciso assinalar que essa praacutetica se daacute na alma mas tem reflexos
no bem-estar do corpo como podemos evidenciar a partir de um exemplo oposto quando ao
lembrar de experiecircncias desagradaacuteveis faz-se o corpo sentir o mesmo mal relacionado agravequele
momento Sendo assim as relaccedilotildees de amizade satildeo tatildeo importantes no epicurismo Elas satildeo
fontes de alegria que guardadas na alma subsistem ao tempo e constituem um acervo
lembranccedilas que trazem consigo boas sensaccedilotildees que alimentam a felicidade Por isso se dizer
ldquodentre as coisas que a sabedoria se proporciona para a felicidade da vida inteira a amizade eacute
em muito a maior delasrdquo (SV 13)
32 Us 68
96 23 - A meditaccedilatildeo como exerciacutecio de libertaccedilatildeo
No epicurismo a filosofia eacute pensada como uma therapeiacutea e por conseguinte a
makariacuteos zecircn implica em afastar aquilo que adoece a alma trazendo perturbaccedilatildeo e
desarmonia Vimos que a principal causa de sofrimento para o homem estaacute em orientar sua
vida a partir do que professam as falsas opiniotildees a respeito dos bens necessaacuterios agrave realizaccedilatildeo
humana Fora dos limites da natureza a makariacuteos zecircn eacute inexequiacutevel33 Ou seja a sauacutede o
bem-estar o equiliacutebrio satildeo condiccedilotildees que tecircm uma relaccedilatildeo direta com a possibilidade de a
psycheacute se distanciar dessas opiniotildees e estabelecer um eacutethos de acordo com a natureza
Procuramos demonstrar no item 21 deste capiacutetulo que a meditaccedilatildeo (meleacutetema) pode
ser entendida como uma atividade visando reelaborar ou substituir um loacutegos assentado em
crenccedilas infundadas por outro ancorado em uma compreensatildeo physioloacutegica da natureza e em
criteacuterios de verdade relacionados ao sensiacutevel afinal ldquose lutares contra todas as sensaccedilotildees natildeo
teraacutes um criteacuterio de referecircncia e assim natildeo poderaacutes julgar sequer aqueles juiacutezos que qualificas
de falsosrdquo (DL X 146)34 Dito de outra forma trata-se de submeter o produto de nosso
raciociacutenio e de nossa imaginaccedilatildeo ao conhecimento que temos a respeito da phyacutesis A partir daiacute
seria possiacutevel fazer a uma separaccedilatildeo (diaiacuteresis) afastando o pensamento que natildeo estaacute
conforme a natureza e que poderia causar perturbaccedilotildees para a alma ou dor para o corpo
Eacute em torno dessa necessidade de orientar o pensamento para uma praacutetica
fundamentada na natureza que a meditaccedilatildeo vai favorecer uma libertaccedilatildeo da psycheacute das kenaigrave
doacutexai Isso seria necessaacuterio porque Epicuro atribui a essas opiniotildees dois
problemasconsequecircncias O primeiro pode ser entendido por meio de um aspecto opressor
Quando as opiniotildees professam a possibilidade de pensar o gozo de uma liberdade sem limite
ela conduz ao despotismo agrave anulaccedilatildeo da vontade de outrem Jaacute o segundo problema eacute
percebido quando essas doxaigrave visam legitimar a fama a gloacuteria a riqueza o poder e o prazer
sem criteacuterio como valores hegemocircnicos na poacutelis e portanto devendo ser buscados Com isso
o homem eacute enredado em uma procura sem fim e sem sossego Em qualquer caso o que se tem
eacute a mitigaccedilatildeo do sentido da liberdade fundamental para o exerciacutecio de um modo saacutebio de
viver seja porque ela foi tiranizada por quem impotildee sua vontade aos outros ou porque a alma
se tornou cativa de desejos que natildeo realizam sua natureza livre e feliz Eacute nesse sentido que
contextualizamos a seguinte sentenccedila
33 DL X 144 XV SV 8 11 25 45 59 34 Οὐθὲν ὄφελος ἦν τὴν κατὰ ἀνθρώπους ἀσφάλειαν παρασκευάζεσθαι τῶν ἄνωθεν πόπτων καθεστώτων καὶ τῶν ὑπὸ γῆς καὶ ἁπλῶς τῶν ἐν τῷ ἀπείρῳ
97 Uma vida livre natildeo pode adquirir bens numerosos pelo fato da coisa natildeo ser faacutecil fora da sujeiccedilatildeo agraves multidotildees e aos poderosos mas ela adquire tudo por uma abundacircncia contiacutenua Se por acaso em algum lugar ela encontra muitos bens tambeacutem essas coisas satildeo faacuteceis de distribuir em favor da boa disposiccedilatildeo do proacuteximo (SV 76)35
Essa passagem nos permite evidenciar a relaccedilatildeo que eacute estabelecida entre liberdade e
frugalidade uma perspectiva antiteacutetica agravequela revalidada pelas kenaigrave doacutexai A vida livre eacute
realizaacutevel na medida em que as necessidades satildeo reduzidas ao miacutenimo necessaacuterio Contudo
para os muitos prevalece a concepccedilatildeo de que a felicidade eacute adquirida por meio da abundacircncia
de bens ldquoA raiz do mal se encontra no descontrole doentio de nossos desejos que sobre o
efeito de falsas representaccedilotildees do prazer e da felicidade nos impelem a desejar possuir sem
limiterdquo (HELMER 2013 p 11) Eacute essa compreensatildeo vazia (descolada da natureza) que natildeo
considera a finalidade das accedilotildees do homem a partir de um modelo natural a partir do qual se
pensa o prazer (hedoneacute) como caminho para o equiliacutebrio e o exerciacutecio da autaacuterkeia como
possibilidade de experimentar uma vontade livre Por isso para se poder estabelecer um modo
autecircntico de viver eacute preciso meditar a respeito dos bens relacionados a essa finalidade Os
demais ligados agraves opiniotildees vazias engendram adoecimento desequiliacutebrio assenhoramento da
vontade e portanto devem ser recusados
Eacute nesse mesmo diapasatildeo que o epicurista Dioacutegenes de Œnoanda adverte ldquoa maior
parte dos homens estaacute doente por falsas opiniotildees sobre as coisas e natildeo escuta o corpordquo (Œno
fr 2)36 Ou seja ao natildeo se ouvir o que a natureza diz a respeito do que eacute importante para
experimentar bem-estar e ao se deixar guiar pelas concepccedilotildees que alheiam a psycheacute de si
mesma a liberdade eacute mitigada Nesse caso a meditaccedilatildeo atua no sentido de corrigir essa visatildeo
enviesada a respeito do que eacute imprescindiacutevel agrave vida agradaacutevel Ao evocar na alma a
concepccedilatildeo physioloacutegica de que podemos nos ater somente aos desejos que satildeo naturais e
necessaacuterios como vimos no item 122 do capiacutetulo I as necessidades ficam reduzidas ao
miacutenimo o que leva o homem a poder experimentar um sentimento de autossuficiecircncia e
emancipaccedilatildeo vis-agrave-vis demandas que natildeo satildeo suas A ideia eacute quanto menos necessidades
mais se vecirc abundar o que eacute fundamental e querer partilhar o excedente E isso caminha no
sentido contraacuterio daqueles que vivem de acordo com as opiniotildees vazias submetidos aos
desejos que a multidatildeo louva (aqueles que nem satildeo naturais nem necessaacuterios e portanto satildeo
vazios) e buscando acumular os bens para exercer suas desmesuras abdicam de viver serena e 35 Ἐλεύθερος βίος οὐ δύναται κτήσασθαι χρήματα πολλὰ διὰ τὸ τὸ πρᾶγμα ltμὴgt ῥᾴδιον εἶναι χωρὶς θητείας ὄχλων ἢ δυναστῶν ἀλλὰ συνεχεῖ δαψιλείᾳ πάντα κέκτηταιmiddot ἂν δέ που καὶ τύχη χρημάτων πολλῶν καὶ ταῦτα ῥᾳδίως ἂν εἰς τὴν τοῦ πλησίον εὔνοιαν διαμετρήσαι 36 [la plupart des hommes sont malades de fausses opinions sur les choses et nrsquoeacutecoutent pas le corps]
98 livremente Nesse contexto a meditaccedilatildeo adquire um papel importante para a compreensatildeo dos
proacuteprios desejos bem como para o domiacutenio e a limitaccedilatildeo que devem se impostos a eles E
isso se daacute agrave luz de um trabalho de investigaccedilatildeo da natureza e de procurar espelhar seus
paradigmas na proacutepria psycheacute por meio de um loacutegos katagrave phyacutesin
Ora se Epicuro vecirc nas opiniotildees vazias um mal na medida em que podem engendrar
sofrimento entatildeo fica clara a necessidade de um afastamento da poacutelis enquanto ambiente
onde as kenaigrave doacutexai predominam e compotildeem o loacutegos que adoece e assenhora a vontade do
homem Na visatildeo epicurista a poacutelis enferma impotildee uma tirania das vontades a partir da noccedilatildeo
de que eacute sempre preciso mais para ser feliz Felipe da Macedocircnia seguido por seu filho
Alexandre e apoacutes a morte dele o despotismo dos seus generais satildeo um reflexo dessa
imposiccedilatildeo colocada para o homem grego que vecirc na busca de poder riquezas e fama um
modelo de realizaccedilatildeo Mas para Epicuro natildeo eacute preciso muito para se sentir feliz o que eacute
preciso eacute ldquovir a ser em torno da cura de noacutes mesmosrdquo (SV 64)37 Por isso o caminho para o
gozo de uma vida saacutebia estaria em orientar a psycheacute para buscar na phyacutesis uma referecircncia para
o desejar tendo em vista um estado de equiliacutebrio Eacute em torno desse teacutelos que o saacutebio medita e
orienta a alma para uma liberaccedilatildeo um desvencilhamento dos valores convencionados a partir
das kenaigrave doacutexai
Podemos a partir daiacute relacionar a dimensatildeo terapecircutica da meditaccedilatildeo com a praacutetica de
uma libertaccedilatildeo pois quando distanciado do loacutegos que desequilibra adoece e aprisiona o
homem pode experimentar a ataraxiacutea (ausecircncia de perturbaccedilatildeo na alma) e a aponiacutea (ausecircncia
de dores no corpo) necessaacuterios ao seu bem-estar Quando a psycheacute submete o pensamento agrave
physiologiacutea a perspectiva eacute a de uma sensibilizaccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave ideia de que natildeo eacute
necessaacuterio viver com necessidades que extrapolem os limites do natural nem buscar um
modo de viver que natildeo seja katagrave phyacutesin E mudar o pensamento leva agrave mudanccedila no
comportamento no eacutethos Dessa forma a therapeiacutea da alma nos indica um sentido de
libertaccedilatildeo afinal ldquoliberdade quer dizer desvencilhar-se de todos aqueles noacutes ideoloacutegicos
mitos ritos religiosos prejuiacutezos culturais interpretaccedilotildees tradicionais apresentadas sem criacutetica
na linguagem e transmitidas inicialmente pela Paideiacutea e pelos usos sociaisrdquo (LLEDOacute 2003
p 20)
Assim o vir a ser do sophoacutes em torno da cura de si mesmo ou a compreensatildeo da
filosofia epicurista como uma therapeiacutea acabam por nos remeter a uma praacutetica de meditaccedilatildeo
que visa permitir a partir do que se conhece da phyacutesis pensar e agir a partir de si mesmo
37 Ver nota 187 do capiacutetulo I
99 (liberto das opiniotildees e convenccedilotildees) para fazer as escolhas e recusas necessaacuterias para
estabelecer um cuidado consigo mesmo Ao desenvolver na psycheacute a percepccedilatildeo a respeito da
necessidade de estabelecer as proacuteprias opiniotildees de refutar aquelas que anulam sua vontade e
distanciam o homem de uma finalidade natural a meditaccedilatildeo projeta no eacutethos uma
compreensatildeo da natureza que remete para a liberdade e o prazer Dessa forma meditar vai se
constituir como um exerciacutecio voltado para reaproximar o homem da natureza seja porque lhe
sensibiliza a psycheacute para ouvir as queixas e os clamores do corpo seja porque direciona o
pensamento para buscar fundamentar no saber elaborado a partir da physiologiacutea as accedilotildees e
escolhas que vatildeo delinear seu modo de viver Em suma meleacutetema nos remete ao que pode ser
referido como sendo um exerciacutecio eacutetico posto que traz consigo a experiecircncia de uma
liberdade ligada agrave possibilidade de poder de pensar a proacutepria existecircncia sem a imposiccedilatildeo de
convenccedilotildees de regras de normas
24 - Meditar
ldquoAdeus e lembrai-vos de minha doutrinardquo Estas foram as uacuteltimas palavras de Epicuro moribundo aos amigos entrando entatildeo na tina de aacutegua quente bebeu um gole de vinho puro e no mesmo gole o frio do Hades (DL X 16)38
Essa epigrama de autoria de Dioacutegenes Laeacutercio que teve por base o testemunho de
Hecircrmacos nos ajuda a examinar uma vida orientada para a busca do prazer ligado ao
equiliacutebrio Poderiacuteamos pensar que essas palavras foram proferidas por uma voz debilitada
mas mesmo assim procurando transmitir aos amigos a mesma serenidade com a qual
caminhou ateacute uma tina de bronze e deixou o corpo lentamente submergir em aacutegua quente e
repousante Isso porque apoacutes 14 dias sentindo as dores intensas provocadas por caacutelculos
renais e a fragilizaccedilatildeo da sauacutede aquele banho morno a companhia dos amigos e a recordaccedilatildeo
das alegrias passadas pareciam bastar para lhe trazer um lenitivo que se completava com
aquele pouco de vinho Isso evidencia um contraste o homem enfermo sofrendo os rigores
de uma crise renal antevendo o momento de sua morte parece - mesmo assim - experimentar
um estado de imperturbabilidade (ataraxiacutea) suportando serenamente as dores sem temor do
que estaacute por vir e se regozijando com prazeres triviais
38 χαίρετε καὶ μέμνησθε τὰ δόγματα τοῦτ Ἐπίκουρος ὕστατον εἶπε φίλοις τοὔπος ἀποφθίμενος θερμὴν δὲ πύελον γὰρ ἐληλύθεεν καὶ ἄκρατον ἔσπασεν εἶτ Ἀΐδην ψυχρὸν ἐπεσπάσατο
100 Isso nos chama a atenccedilatildeo porque o comum eacute observar nesses momentos in extremis o
homem se deixar levar pela fantasia abater-se pelo medo de um aleacutem-vida projetar no tempo
eterno a dor que sente o corpo Pois ao reverberar o que postulam as opiniotildees vazias sobre a
morte e o sofrimento quem desconhece a natureza veste o haacutebito escuro da desventura e da
resignaccedilatildeo e se entrega ao canto compadecido daqueles que testemunham seus uacuteltimos
momentos Mas a despeito de qualquer coisa Epicuro continuava manifestando em seu modo
de ser o que procurou ensinar durante toda a vida que a felicidade resulta de um exerciacutecio
permanente de se colocar no mundo em correspondecircncia ao saber assimilado a partir da
investigaccedilatildeo da phyacutesis ldquoFoi esta a vida desse homem e este foi seu fimrdquo (DL X 16)39
Considerando ainda o testemunho de Hecircrmacos poderiacuteamos imaginar que malgrado o
desfecho esperado por todos tudo ocorria de modo tranquilo no Jardim onde a amizade o
sentido de comunidade as discussotildees sobre as coisas da vida se projetavam do raiar ao pocircr
do sol Essa perspectiva pode ser legitimada a partir do relato de Dioacutegenes Laeacutercio (DL X
22) jaacute registrado anteriormente onde se diz que apesar de todo sofrimento imposto ao corpo
Epicuro resistia e se mantinha feliz ao relembrar de conversas com os amigos E isso natildeo eacute
difiacutecil de conceber pois para o saacutebio a iminecircncia da morte natildeo causa medo nem tristeza e a
dor pode ser suplantada pela lembranccedila de momentos prazerosos Quem exercita a alma a
meditar tendo por base os fundamentos da physiologiacutea experimenta a seguranccedila a confianccedila
(piacutestis) necessaacuteria para natildeo sofrer diante do natural e do que pode ser escolhido ou evitado E
isso se reflete em uma postura serena diante de eventos que para aqueles guiados pelas kenaigrave
doacutexai seriam motivos de inquietude
Essa postura imperturbaacutevel ou de ataraxiacutea tambeacutem eacute verificada quando Epicuro
aconselha ldquocompadeccedilamos com os amigos natildeo chorando mas pensandordquo (SV 66)40 E isso
tem uma razatildeo de ser devido agrave ignoracircncia a respeito das coisas da natureza o homem se torna
refeacutem das opiniotildees vazias e com isso projeta a existecircncia de sofrimento mesmo onde natildeo haacute
motivos para tal Por isso eacute preciso constantemente observar a phyacutesis investigar seus modos
de ser refletir sobre esse conhecimento e procurar traduzi-lo em um eacutethos voltado para o
agradaacutevel O saacutebio se exercita justamente nisso pensar a realidade busca compreender sua
constituiccedilatildeo e funcionamento perceber os limites da natureza e pensar a partir disso as
finalidades de suas accedilotildees Trata-se de buscar na phyacutesis um paradigma que sirva para conferir
mais naturalidade ao seu estilo de vida
39 οὗτος μὲν ὁ βίος τἀνδρός ἥδε δὲ ἡ τελευτή 40 Συμπαθῶμεν τοῖς φίλοις οὐ θρηνοῦντες ἀλλὰ φροντίζοντες
101 Na sentenccedila vaticana 66 o termo que Epicuro usa para se remeter a essa complexa
atividade que ocorre na psycheacute do sophoacutes eacute phrontiacutedzontes cujo infinitivo eacute phrontiacutedzo41 que
pode se traduzido como pensar mas tambeacutem traz o sentido de meditar Cremos ser essa uma
traduccedilatildeo mais adequada afinal a meditaccedilatildeo se configura como um exerciacutecio da alma que
envolve sua capacidade para calcular deliberar com prudecircncia resgatar na memoacuteria imagens
sentimentos e princiacutepios fundamentais da physiologiacutea necessaacuterios para estabelecer uma
compreensatildeo da realidade orientada para a autarquia e o prazer Assim natildeo eacute lamentando que
se demonstra cuidado e afeto mas meditando e ao fazecirc-lo libertando-se de concepccedilotildees
vazias e se alegrando com os bons sentimentos partilhados com os amigos no presente e pelas
boas lembranccedilas do que foi vivido no passado
Para isso ser possiacutevel natildeo basta decorar os fundamentos da physiologiacutea e remiti-los
como demonstraccedilatildeo de erudiccedilatildeo como condena Epicuro (SV 76) Eacute preciso assimilar esse
saber ou seja fazecirc-lo paradigma para o pensamento e para a conduta Disso resulta uma
convicccedilatildeo (piacutestis) com relaccedilatildeo agrave possibilidade de a partir de uma investigaccedilatildeo da natureza
dissipar da psycheacute as kenaigrave doacutexai e com isso afastar os medos que impedem o homem de
experimentar a ataraxiacutea e a autaacuterkeia A meditaccedilatildeo exercitando a alma para por meio do
logismoacutes do dialogismoiacutes e da phroacutenesis se valer desse saber para estabelecer um modo de
viver atua no sentido dessa assimilaccedilatildeo e no desenvolvimento de uma convicccedilatildeo firme (piacutestin
beacutebaion) a respeito da utilidade da physiologiacutea para o exerciacutecio de uma vida saacutebia A
serenidade que Epicuro demonstrou ateacute seu derradeiro momento essa imperturbabilidade nos
remete justamente para esse sentimento de confianccedila (piacutestis) com relaccedilatildeo ao uso desse
conhecimento physioloacutegico para nortear uma compreensatildeo da vida e definir uma conduta
saacutebia Ao meditar se desenvolve a convicccedilatildeo de que pensar o eacutethos a partir do que se conhece
sobre a phyacutesis resulta em uma perspectiva de vida mais feliz como sugere a seguinte
passagem
A mesma convicccedilatildeo que nos inspirou a confianccedila de que nada existe de terriacutevel que dure para sempre ou mesmo por muito tempo tambeacutem nos habilita a ver que nos limites mesmos da vida nada aumenta tanto a nossa seguranccedila como a amizade (DL X 148)42
Ou seja a mesma confianccedila que meditar sobre os modos de ser e sobre a constituiccedilatildeo
da natureza estimula tambeacutem desenvolve uma disposiccedilatildeo (diaacutethesis) para orientar a conduta
41 Cf Anatole Bailly Op Cit 42 Ἡ αὐτὴ γνώμη θαρρεῖν τε ἐποίησεν ὑπὲρ τοῦ μηθὲν αἰώνιον εἶναι δεινὸν μηδὲ ολυχρόνιον καὶ τὴν ἐν αὐτοῖς τοῖς ὡρισμένοις ἀσφάλειαν φιλίας μάλιστα κατεῖδε συντελουμένην
102 para a realizaccedilatildeo de um paradigma mais natural de vida Veja-se que Epicuro usa o termo
gnoacuteme (de gnoacutesis) para se referir a esse conhecimento e estabelece uma relaccedilatildeo com o termo
tharreiacuten (de tharreacuteo) que diz respeito a ter confianccedila Assim quanto mais se conhece a
natureza e se medita sobre ela mais se desenvolve a piacutestis que vai resultar em uma disposiccedilatildeo
para estabelecer um modo de viver a partir da physiologiacutea
Eacute essa disposiccedilatildeo da alma que leva o saacutebio a transformar seu eacutethos a querer
permanentemente fazer de sua vida um exerciacutecio de autenticidade liberdade e equiliacutebrio
perspectiva possiacutevel a partir da assimilaccedilatildeo de um conhecimento que instrumentalize a psycheacute
para o domiacutenio dos proacuteprios pensamentos e desejos permitindo escolher e recusar a partir de
uma vontade esclarecida (phroacutenesis) A diaacutethesis eacute o querer constantemente se ocupar com a
sauacutede da alma com o bem-estar em estar vigilante com relaccedilatildeo ao que pode comprometer seu
equiliacutebrio trazer perturbaccedilotildees impedi-lo de agir a partir do proacuteprio pensamento
Provavelmente por essas razotildees Dioacutegenes de Œnoanda mandou esculpir nos muros de sua
cidade para os habitantes e para os viajantes ao passassem por ali saberem a seguinte
inscriccedilatildeo ldquoo mais importante para a felicidade eacute a disposiccedilatildeo da qual nos somos mestresrdquo
(Œno fr 112)43 E para ter a maicirctrise sobre essa diaacutethesis a meditaccedilatildeo fundamentada na
physiologiacutea procura levar o homem a ter confianccedila de que natildeo haacute o que temer quanto aos
deuses natildeo haacute nada a temer quanto agrave morte pode-se alcanccedilar a felicidade e pode-se suportar a
dor Dessa forma delineia-se uma therapeiacutea que poderia suprimir os medos e as perturbaccedilotildees
que nascem das falsas ideias sobre a natureza Eacute no sentido de mostrar esse aspecto praacutetico
ou uacutetil da meditaccedilatildeo ndash ligado agrave disposiccedilatildeo do sophoacutes para contrapor agraves opiniotildees vazias um
saber delineado em torno da natureza e com isso fundamentar um modo saacutebio de compreender
a phyacutesis e viver dentro dos limites dela - que vamos tecer alguns comentaacuterios sobre esse
quaacutedruplo44 remeacutedio
43 Le plus important pour le bonheur crsquoest la disposition dont nous somes maicirctres 44 Eacute em torno dessas quatro assertivas que se formula o tetraphaacutermakon epicurista como foi expresso por Filodemo (Pap Herc 1005 col IV 9-14) Trata-se de um faacutermaco ou uma indicaccedilatildeo terapecircutica para livrar a alma do sofrimento originado nas opiniotildees vazias Essa therapeiacutea havia sido apresentada de maneira mais detalhada na Carta a Meneceu e retomada sinteticamente nas Maacuteximas Capitais (I-IV) Dioacutegenes de Œnoanda tambeacutem reproduziu esse tetraphaacutermakon nos muros de sua cidade para trazer aliacutevio inspiraccedilatildeo e servir como indicativo de meditaccedilatildeo para os que por ali passassem
103 241 - Sobre os deuses
Algumas estaacutetuas dos deuses lanccedilam flechas e satildeo esculpidas com um arco [] outras satildeo escoltadas por feras selvagens e outras se enfurecem contra as pessoas [] Mas eacute preciso fazer as estaacutetuas dos deuses alegres e sorridentes para que noacutes possamos retribuir o sorriso em vez de temecirc-los (Œno fr 19 I-II)45
Esse relato que Dioacutegenes de Œnoanda tambeacutem deixou registrado nos muros de sua
cidade nos mostra por um lado como alguns deuses (theoigrave) eram caracterizados na
antiguidade e por outro indica a concepccedilatildeo que os epicuristas faziam deles Isso nos revela
um contraste entre a representaccedilatildeo das divindades feita pela opiniatildeo geral e aquela adotada
pelo saacutebio No iniacutecio da Carta a Meneceu Epicuro nos daacute elementos para pensar essas
diferenccedilas quando firma a existecircncia dos deuses mas natildeo como retratada pelos muitos (DL
X 123) Para ele ldquoas afirmaccedilotildees da maioria sobre os deuses natildeo satildeo preacute-concepccedilotildees
verdadeiras e sim suposiccedilotildees falsas Por causa de tais suposiccedilotildees falsas imagina-se que
derivam dos deuses os maiores males e bensrdquo (DL X 124)46 Quando diz isso Epicuro nos
remete para uma distinccedilatildeo entre suposiccedilotildees falsas (hypoacutelepseis pseudeicircs) sobre as quais se
fundamentam as crenccedilas da maioria e aquilo que eacute impresso na alma pela natureza o que vai
remeter a impressotildees (proleacutepseis) As opiniotildees vazias se baseiam nessas suposiccedilotildees sem
relaccedilatildeo com a realidade physioloacutegica e alimentam o temor com relaccedilatildeo aos deuses o medo de
que eles possam infligir ao homem castigos impedir sua felicidade Para as kenaigrave doacutexai os
theoigrave seriam seres cujo poder e a vontade sem limites se estendem para aleacutem da phyacutesis
podendo criar ou destruir em funccedilatildeo de suas inclinaccedilotildees Como maneira de lidar com isso
caberia ao homem uma atitude submissa e temerosa
Por outro lado a representaccedilatildeo que o saacutebio estabelece a respeito dos deuses os coloca
como referecircncia de realizaccedilatildeo de um modelo natural de existecircncia Ao representaacute-los natildeo se
faz em um primeiro momento uso direto das proleacutepseis porque ldquoa visatildeo dos deuses se torna
possiacutevel pelos simulacros que chegam agrave alma (e natildeo aos sentidos em razatildeo de seus aacutetomos
tecircnues) (ETIENNE amp OrsquoMEARA 1996 p 86) ldquonesse caso satildeo percepccedilotildees mentaisrdquo
45 Com supressotildees na nossa na traduccedilatildeo O texto de referecircncia eacute [ Certaines statues des dieux] lancent [des flegraveches et sont eculpteacutees tenant] un arc [faites] comme Heacuteraclegraves chez Homeacutere drsquoautres sont escorteacutees par des becirctes sauvages et drsquoautres encore srsquoirritent contre les gens prosperes comme apparaicirct agrave la plupart Neacutemeacutesis Mais il faut faire les statues des dieux joyeuses et souriantes pour que nous leur sourrions en retour plutocirct que nous ne les craignions 46 οὐ γὰρ προλήψεις εἰσὶν ἀλλrsquo ὑπολήψεις ψευδεῖς αἱ τῶν πολλῶν ὑπὲρ θεῶν ἀποφάσεις ἔνθεν αἱ μέγισται βλάβαι αἴτιαι τοῖς κακοῖς ἐκ θεῶν ἐπάγονται καὶ ὠφέλειαι
104 (BOLLACK 1975 p 92) O uso das impressotildees sensiacuteveis se daacute como uma maneira do saacutebio
expressar essa percepccedilatildeo por meio de analogias com elementos mais comuns da realidade
experimentada pelo homem dentro de uma representaccedilatildeo ldquoconforme a noccedilatildeo comum de eus
traccedilada em noacutesrdquo (DL X 123)47 Eacute nesse sentido que ele vai buscar recorrer agraves proleacutepseis
buscando na memoacuteria as imagens que possam representar os deuses como seres vivos
autossuficientes e felizes ou seja dentro de uma naturalidade que o saacutebio procura reproduzir
por meio do exerciacutecio de uma vida katagrave physin
Eacute como contraponto a esse quadro pintado pela maioria cujas cores remetem mais agrave
imaginaccedilatildeo e agrave fantasia que Epicuro afirma ldquoos deuses realmente existem e o conhecimento
de sua existecircncia eacute manifestordquo (DL X 123)48 mas natildeo como a maioria acredita Para os
epicuristas a natureza dos deuses pode ser pensada como corpoacuterea e por isso estaacute circunscrita
agrave phyacutesis Satildeo imortais assim como eacute a proacutepria phyacutesis tomada em sua totalidade (a
imortalidade eacute a existecircncia num tempo que vai desde sempre e para sempre) e vivem no
intervalo entre os mundos (metacoacutesmion) (DL X 89) Ou seja os theoigrave epicuristas pertencem
agrave imanecircncia
Na concepccedilatildeo do saacutebio soacute eacute possiacutevel atribuir aos deuses aquilo que se coaduna com
sua natureza de bem-aventuranccedila de serenidade de imperturbabilidade Por natildeo terem
preocupaccedilotildees natildeo se ocupam com os afazeres dos homens Entatildeo natildeo se deve esperar nada
deles nem temecirc-los O mal natildeo adveacutem de intervenccedilotildees divinas mas do sofrimento que o
saacutebio procura evitar por meio de um caacutelculo soacutebrio (nephroacuten logismoacutes) (DL X 132) voltado
para orientar suas escolhas e eliminar da alma as opiniotildees vazias Por isso a afirmaccedilatildeo de que
natildeo haacute nada a temer quanto aos deuses eacute colocada como um dos quatro componentes do
tetraphaacutermakon natildeo satildeo eles os responsaacuteveis nem pelos infortuacutenios nem pelas alegrias da
vida humana Isso cabe a cada um ateacute onde se estende o poder de suas escolhas
Ora a negaccedilatildeo dessa concepccedilatildeo geral a respeito dos deuses para postular a existecircncia
deles como pertencente agrave mesma natureza do homem e que tem como principais
caracteriacutesticas a vida sem perturbaccedilotildees e autaacuterquica remete para um modo de viver a ser
buscado pelo saacutebio E essa busca implica em um trabalho um esforccedilo feito pelo proacuteprio
homem para fazer de sua vida um exerciacutecio de ataraxiacutea e de autaacuterkeia Trata-se natildeo de
esperar pelo poder divino mas de compreender que as condiccedilotildees para a makariacuteos zecircn
dependem dele e devem ser construiacutedas por ele mesmo E isso requer uma atividade de
47 ὡς ἡ κοινὴ τοῦ θεοῦ νόησις ὑπεγράφη Optamos aqui por uma questatildeo de dar mais clareza ao texto grego por registrar a traduccedilatildeo de Marcel Conche (Eacutepicure Lettres et Maximes 1977) 48 θεοὶ μὲν γὰρ εἰσίνmiddot
105 observaccedilatildeo e meditaccedilatildeo sobre a natureza tendo em vista afastar as opiniotildees vazias e
procurando estabelecer um modo de vida dentro dos limites e possibilidades da phyacutesis
Portanto natildeo se deve temer os deuses mas meditando sobre sua natureza imanente tomaacute-la
como um paradigma natural para estabelecer um modo de viver
242 - Sobre a morte
Epicuro ao tentar traduzir o sentimento geral de seu tempo com relaccedilatildeo agrave morte
(thaacutenatos) diz ser ela ldquoo mais pavoroso dos malesrdquo (DL X 125)49 A perspectiva da morte faz
sofrer aflige o homem lhe impede de experimentar a ataraxiacutea A crenccedila na imortalidade
(athanasiacutea) da alma o faz temer o Hades com sua possibilidade de castigos eternos e a
interrupccedilatildeo da vida contraria o desejo de poder eternamente gozar os prazeres sensiacuteveis Se ldquoa
maioria ora foge da morte como o maior dos malesrdquo (DL X 125)50 o mesmo natildeo acontece
com o saacutebio Isso porque ele aprendeu a orientar seus pensamentos a partir da investigaccedilatildeo
sobre a natureza e por isso compreende a morte sob um aspecto fenomecircnico
Por meio da physiologiacutea o sophoacutes aprendeu que a natureza da alma eacute corpoacuterea Ela
natildeo tem existecircncia anterior nem posterior ao corpo-carne a qual estaacute ligada (DL X 64-66)
Assim sendo ela natildeo sofre apoacutes a morte Se de acordo com a concepccedilatildeo epicurista o
sofrimento e o prazer estatildeo nas sensaccedilotildees a morte - ao privar a alma e o corpo de sentir -
coloca fim a toda possibilidade de prazer ou dor Daiacute Epicuro afirmar que a morte nada eacute para
noacutes (DL X 124 139) Essa assertiva pode conduzir a pensar que a ldquoa morte eacute um temor sem
objetordquo (SALEM 1994 p 204) Isso se explica porque ldquoenquanto existimos a morte natildeo estaacute
presente e quando a morte estaacute presente jaacute natildeo existimosrdquo (DL X 125)51 Ou seja quando
tememos eacute porque a morte natildeo chegou nesse caso o sofrimento eacute vatildeo E quando a morte
privou o homem dos sentidos ele jaacute natildeo pode temecirc-la e aiacute o sofrimento eacute impossiacutevel
Essa reflexatildeo estaacute assentada na compreensatildeo de que viver e morrer satildeo fenocircmenos da
natureza Do ponto de vista physioloacutegico a morte natildeo eacute mais que a corrupccedilatildeo de um corpo a
desagregaccedilatildeo a separaccedilatildeo dos aacutetomos que lhe constituiacutea Assim a morte estaacute dentro do
campo de accedilatildeo da natureza sem nenhuma intervenccedilatildeo divina antes nem durante nem depois
e por isso natildeo deveria trazer afliccedilatildeo Portanto natildeo haacute nada a temer quanto agrave morte como
tambeacutem orienta Filodemo em sua formulaccedilatildeo do tetraphaacutermakon O mundo eacute um continuo
49 τὸ φρικωδέστατον οὖν τῶν κακῶν ὁ θάνατος οὐθὲν πρὸς ἡμᾶς 50 Ἀλλrsquo οἱ πολλοὶ τὸν θάνατον ὁτὲ μὲν ὡς μέγιστον τῶν κακῶν φεύγουσιν 51 ἐπειδήπερ ὅταν μὲν ἡμεῖς ὦμεν ὁ θάνατος οὐ πάρεστιν ὅταν δὲ ὁ θάνατος παρῇ τόθrsquo ἡμεῖς οὐκ ἐσμέν
106 fazer-se e desfazer-se e o homem ser da natureza sujeita-se fisicamente aos mesmos
fenocircmenos Com isso deixa-se perturbar pelo medo de que a morte se aproxima eacute desperdiccedilar
a vida com temores infundados ldquoe tu natildeo sendo senhor do dia do amanhatilde tu estaacutes adiando a
alegria e a vida se consome pela demora e cada um de noacutes morre sem ter descansordquo (SV
14)52
Essa advertecircncia pode ser relacionada a uma orientaccedilatildeo encontrada na Carta a
Meneceu Laacute se diz ldquoa meditaccedilatildeo sobre uma vida bela coincide com a meditaccedilatildeo sobre uma
morte belardquo (DL X 126)53 Em questatildeo estaacute a necessidade de o saacutebio salvaguardar sua
serenidade com relaccedilatildeo agrave morte enquanto exercita sua disposiccedilatildeo para aproveitar a vida A
imortalidade eacute um desejo vazio tanto quanto vazio eacute o temor da morte O saacutebio orienta sua
vida para fazer do tempo presente o mais agradaacutevel possiacutevel ateacute onde depende dele O que ele
busca eacute viver equilibradamente orientado pelo saber depreendido ao investigar a phyacutesis e
isso natildeo estaacute relacionado com viver longamente Em razatildeo disso eacute importante meditar para
que a ideia da morte natildeo traga afliccedilatildeo e pelo contrario para que o saacutebio compreendendo a
morte em sua imanecircncia decirc-se conta da mesma dimensatildeo na qual se circunscreve a
felicidade por isso realizaacutevel enquanto se vive Tanto o sophoacutes quanto quem se deixa guiar
pelas opiniotildees vazias vatildeo morrer mas o primeiro natildeo eacute afligido pela ideia da morte Ao
contraacuterio experimenta a ataraxiacutea e ao fazecirc-lo jaacute estaacute construindo o sentido de uma vida
feliz A meditaccedilatildeo sobre a morte tendo por base a physiologiacutea exercita a compreensatildeo de que
a mortalidade deve ser vivida em sua imanecircncia isto eacute orientada para a liberdade e o prazer
243 - Sobre a felicidade
A realizaccedilatildeo da felicidade (eudaimoniacutea) eacute o problema filosoacutefico que vai caracterizar
todo o pensamento epicurista Em funccedilatildeo de procurar realizar o sentido de felicidade na vida
do homem vai ser pensado um eacutethos orientado para o equiliacutebrio e a liberdade Decorre dessa
necessidade o trabalho de investigaccedilatildeo da phyacutesis para poder conhecer os limites nos quais a
eudaimoniacutea pode ser circunscrita e realizada Por isso a eacutetica epicurista natildeo pode ser
entendida em sua totalidade apartada da physiologiacutea e vice-versa Se na Carta a Meneceu
encontramos meacutetodo para a felicidade (CONCHE 1977 p 40) eacute na Carta a Piacutetocles e na
Carta a Heroacutedoto que encontramos os fundamentos physioloacutegicos que permitem justificar ou
52 Τῆς ἀσφαλείας τῆς ἐξ ἀνθρώπων γενομένης μέχρι τινὸς δυνάμει τε ἐξερειστικῇ καὶ εὐπορίᾳ εἰλικρινεστάτη γίνεται ἡ ἐκ τῆς ἡσυχίας καὶ ἐκχωρήσεως τῶν πολλῶν ἀσφάλεια 53 ἀλλὰ καὶ διὰ τὸ τὴν αὐτὴν εἶναι μελέτην τοῦ καλῶς ζῆν καὶ τοῦ καλῶς ἀποθνῄσκειν
107 entender a maneira de viver postulada para o sophoacutes
Como se conduzir no mundo de maneira a ser feliz eacute uma indagaccedilatildeo que evoca
variados entendimentos e respostas Uma dessas maneiras de entender a felicidade tem
relaccedilatildeo com os mitos A eudaimoniacutea dependeria dos deuses que convencidos das accedilotildees
virtuosas do homem com relaccedilatildeo aos demais e devotas com relaccedilatildeo a eles o fariam apoacutes a
morte conhecer no Reino de Hades as tranquilas paisagens dos Campos Eliacutesios Dessa forma
ser feliz eacute uma conquista projetada no aleacutem-vida e dependente do julgamento divino Essa
seria uma opiniatildeo vigente na poacutelis entre os muitos E a isso a filosofia epicurista se contrapotildee
Na Carta a Meneceu Epicuro fala da possibilidade de viver ldquocomo um deus entre os
homens pois em nada se assemelha a uma criatura mortal o homem que vive entre bens
imortaisrdquo (DL X 135)54 Veja-se que ele projeta a felicidade dos deuses como uma
possibilidade de realizaccedilatildeo humana desde que o homem cultive os bens relacionados a essa
felicidade Se eacute assim entatildeo esse sentido pleno de realizaccedilatildeo eacute experimentado enquanto se
vive na convivecircncia com os outros na relaccedilatildeo estabelecida com os proacuteprios desejos Ser feliz
eacute uma questatildeo relacionada agrave ordem terrena ao campo do imanente ao momento em que se
vive Assim a eudaimoniacutea eacute identificada ao exerciacutecio de uma vida feliz o que remete para o
cultivo de bens como a philiacutea a autaacuterkeia a ataraxiacutea55 que resultam em bem-estar
(eustaacutetheia) alegria liberdade A remissatildeo aos deuses vai figurar aiacute como um modelo de
serenidade equiliacutebrio e autossuficiecircncia ldquoOs deuses de Epicuro satildeo a realizaccedilatildeo ideal de sua
concepccedilatildeo de eudaimoniacutea que domina toda sua filosofia Vivem sempre uma permanente
felicidade natildeo tem nenhuma preocupaccedilatildeo nem as causam aos outrosrdquo (GUAL 1985 p 170)
Sendo da ordem do humano a felicidade natildeo eacute daacutediva eacute resultado de um exerciacutecio
que tem como finalidade a realizaccedilatildeo desse ideal de vida evocado pela imagem dos theoigrave
Esse modelo quando projetado no homem por meio de um modo de viver de acordo com a
phyacutesis eacute o que vai remeter para a imagem do saacutebio Eacute procurando orientar sua accedilatildeo a partir de
um paradigma natural que ele busca experimentar esse sentido de felicidade relacionado a
essa concepccedilatildeo epicurista de deus Em outros termos a eudaimoniacutea ldquosuprema proacutepria da
divindade que natildeo pode ser mais intensardquo (DL X 121)56 serve como concepccedilatildeo para se
pensar a eudaimoniacutea que pode ser realizada pelo sophoacutes Essa diz respeito agrave felicidade
ldquosusceptiacutevel de adiccedilatildeo e subtraccedilatildeo de prazeresrdquo (idem) e portanto que estaacute ao alcance do
54 ζήσῃ δὲ ὡς θεὸς ἐν ἀνθρώποις οὐθὲν γὰρ ἔοικε θνητῷ ζῴῳ ζῶν ἄνθρωπος ἐν ἀθανάτοις ἀγαθοῖς 55 Por oposiccedilatildeo agrave gloacuteria agrave riqueza ao poder bens que trazem consigo o oacutedio a inveja o desprezo O que eacute incompatiacutevel com a condiccedilatildeo de divindade postulada por Epicuro 56 Τὴν εὐδαιμονίαν διχῆ νοεῖσθαι τήν τε ἀκροτάτην οἵα ἐστὶ περὶ τὸν θεόν ἐπίτασιν οὐκ ἔχουσαν καὶ τὴν ltκατὰ τὴνgt προσθήκην καὶ ἀφαίρεσιν ἡδονῶν
108 saacutebio Por isso Filodemo ao apresentar sua formulaccedilatildeo do tetraphaacutermakon afirma pode-se
alcanccedilar a felicidade Porque ao relacionaacute-la ao exerciacutecio de uma vida orientada de acordo
com a phyacutesis o que define o eacutethos do saacutebio a felicidade passa a depender de cada um das
escolhas e das recusas necessaacuterias para conduzir as accedilotildees em direccedilatildeo aos ldquobens imortaisrdquo
Para ser feliz o saacutebio precisa aprender a desejar e a escolher conforme a natureza
Eacute propagado pelas opiniotildees vazias que a felicidade estaacute relacionada agrave obtenccedilatildeo de
riquezas de poder de gloacuteria A proacutepria figura de Alexandre o Grande simboliza esse ideal ao
nos remeter a uma vida dedicada a ultrapassar limites a saciar os desejos de conquistas que
um a um eram substituiacutedos por outros ainda maiores Mas ldquoir sempre adiante eacute jamais
satisfazer o esforccedilordquo e as conquistas de Alexandre nesse sentido satildeo a ldquoanti-sabedoriardquo pois
nos remetem para pensar que a ldquoinsatisfaccedilatildeo resulta da natildeo-limitaccedilatildeo do desejordquo (SALEM
1994 p 67-68) Para Epicuro esse modelo de vida estaacute assentado em valores artificialmente
criados e que natildeo conduzem agrave serenidade e agrave autarquia que a representaccedilatildeo epicurista dos
deuses sugere Pelo contraacuterio essa maneira de se conduzir no mundo traz consigo o oacutedio a
inveja e o desprezo57 o que leva agrave infelicidade Essa busca por bens valorizados pelas kenaigrave
doacutexai gira em torno de necessidades que nem satildeo naturais nem necessaacuterias para a felicidade
Ao contraacuterio submete o homem a uma tirania das vontades e o impede de pensar e agir a
partir de si mesmo caracteriacutestica do ser autaacuterkes Por causa disso eacute recorrente nos textos
epicuristas a concepccedilatildeo segundo a qual uma vida feliz natildeo eacute determinada pela posse de bens
numerosos pela detenccedilatildeo de riquezas Um exemplo disso encontramos nesta sentenccedila
Nem a maior riqueza subsistente nem a estima e a admiraccedilatildeo junto agrave multidatildeo (maioria) nem algo outro das coisas paralelas a causas indefinidas engendram uma alegria digna de viver nem tampouco dissolvem a perturbaccedilatildeo da alma (SV 81)58
No epicurismo a realizaccedilatildeo da felicidade estaacute ligada fundamentalmente agrave
possibilidade de experimentar a ataraxiacutea finalidade maior das accedilotildees do saacutebio Por isso ele
precisa compreender a natureza e em funccedilatildeo dessa compreensatildeo meditar sobre as proacuteprias
vontades e administraacute-las de modo a circunscrevecirc-las aos limites da phyacutesis e natildeo ser
atormentado pela ambiccedilatildeo Decorre dessa meditaccedilatildeo o entendimento de que os bens
57 Epicuro relaciona o oacutedio a inveja e o desprezo com a infelicidade do homem (DL X 117) Esses sentimentos satildeo combatidos pelas virtudes que o saacutebio busca desenvolver sabedoria moderaccedilatildeo justiccedila (DL X 132 SV 5) Mas essas virtudes natildeo devem ser buscadas por si mesmas Elas satildeo um meio Devem ser praticadas tendo em vista o fim que miram a felicidade (o que estaacute relacionado agrave questatildeo da realizaccedilatildeo dos prazeres dentro dos limites da phyacutesis) 58 Οὐ λύει τὴν τῆς ψυχῆς ταραχὴν οὐδὲ τὴν ἀξιόλογον ἀπογεννᾷ χαρὰν οὔτε πλοῦτος ὑπάρχων ὁ μέγιστος οὔθrsquo ἡ παρὰ τοῖς πολλοῖς τιμὴ καὶ περίβλεψις οὔτrsquo ἄλλο τι τῶν παρὰ τὰς ἀδιορίστους αἰτίας
109 necessaacuterios agrave consecuccedilatildeo da felicidade satildeo faacuteceis de obter em contraste agravequeles propagados
pela multidatildeo e resultam de um exerciacutecio de dar mais naturalidade agrave vida Nesse sentido a
ataraxiacutea e a autaacuterkeia - que se quer projetar no modo de viver do saacutebio como equivalentes agrave
bem-aventuranccedila agrave eterna serenidade e agrave autossuficiecircncia (pensadas como atributo da vida
dos deuses) - remetem para um trabalho de limitaccedilatildeo dos desejos ao que eacute natural e
necessaacuterio Isso leva o saacutebio a se desvencilhar das opiniotildees vazias a respeito da felicidade e a
ver na amizade na vida frugal no equiliacutebrio a possibilidade de realizar a eudaimoniacutea
Eacute sob essa perspectiva que Epicuro apresenta sua filosofia como um meacutetodo para a
felicidade uma atividade identificada com o vir a ser do saacutebio Daiacute ele dizer na Carta a
Meneceu (DL X 122) que o tempo dedicado agrave filosofia eacute comparado agravequele dedicado agrave
felicidade Afinal o exerciacutecio filosoacutefico eacute o mesmo que liberta e cura a alma das opiniotildees que
resultam em perturbaccedilotildees e dor Logo a meditaccedilatildeo como uma dimensatildeo praacutetica desse
filosofar constitui-se como uma pragmateiacutea uma compreensatildeo da natureza voltada para
guiar as accedilotildees do saacutebio para a realizaccedilatildeo da felicidade
244 - Sobre a dor
Nos muros de Œnoanda Dioacutegenes mandou gravar as seguintes palavras ldquoquando um
homem eacute acometido por dores corporais ele diz que elas satildeo mais intensas que as da alma e
quando ele sente as afliccedilotildees da alma ele diz que essas satildeo as mais intensasrdquo (Œno fr 44 II ndash
III)59 Para aleacutem da discussatildeo a respeito de saber qual eacute o maior sofrimento nos importa eacute
perceber que a dor (poacutenos) eacute por muitos percebida como um mal do qual sempre se deve
fugir
Por traacutes dessa ideia estaacute o medo de que a dor dure indefinidamente ou ultrapasse os
niacuteveis do suportar Pode-se perceber nesses temores o reflexo das opiniotildees vazias seja
porque ignoram os limites da natureza ou por se permitirem guiar pelos mitos e pensamentos
fantasiosos Eacute nesse contexto que se concebe o sofrimento como resultado do castigo dos
deuses como aquele infligido a Prometeu acorrentado e punido por Zeus apoacutes ter roubado o
fogo e dado este ao homem Tambeacutem haacute quem pense na dor como fim inevitaacutevel e eterno para
aqueles apoacutes a morte conduzidos ao Hades e depois ao Taacutertaro60 Daiacute por um lado alimenta-
se a crenccedila sobre a necessidade de honrar os deuses para escapar agraves suas puniccedilotildees por outro
59 Mais quand um homme est affligeacute de douleurs corporelles il dit qursquoelles sont plus grandes que celles de lrsquoacircme et quand [il fait lrsquoexpeacuterience de celles de lrsquoacircme il dit que crsquoest celles-ci qui sont plus grandes] 60 Uma das partes do Hades (terra dos mortos) para onde satildeo enviados aqueles que devem ser castigados
110 difunde-se a noccedilatildeo de que eacute preciso buscar o prazer sempre e a qualquer custo para escapar do
sofrimento da afliccedilatildeo da dor Inebriados por essas opiniotildees estabelecem um modo de viver
dissoluto creacutedulo distanciado da sabedoria
Mas para aqueles que se exercitam na filosofia do Jardim a aponiacutea sendo fenocircmeno
fiacutesico requer que se compreenda physiologicamente suas causas ou seja dentro de uma
compreensatildeo ligada aos limites da natureza Eacute a partir dessa perspectiva que se busca um
modo de administrar essa afecccedilatildeo em vez de negaacute-la ou de procurar sempre fugir dela
Afinal eacute da relaccedilatildeo que o corpo tem com o mundo-realidade que resultam afecccedilotildees de dor (ou
prazer) que ficam guardadas na alma como imagem sensiacutevel (proleacutepseis) Por isso elas satildeo
importantes para pensar a natureza e o modo de viver do saacutebio - porque elas permitem ouvir o
corpo e refletir a respeito dos seus limites naturais
Claro que Epicuro afirma ldquoa finalidade de todas as nossas accedilotildees eacute nos livrarmos do
sofrimento e do temorrdquo (DL X 128)61 Mas com isso a ecircnfase recai sobre as opiniotildees que
trazem perturbaccedilatildeo ou desequiliacutebrio agrave alma E isso tem uma relaccedilatildeo direta com as kenaigrave doacutexai
Ou seja o sofrimento que resulta de concepccedilotildees falsas a respeito da natureza deve ser evitado
E isso se faz como procuramos mostrar por meio de uma meditaccedilatildeo orientada para por meio
da physiologiacutea levar a alma agrave ataraxiacutea privando-a dessas opiniotildees Para tanto eacute necessaacuteria a
elaboraccedilatildeo de um loacutegos que instile na psycheacute a confianccedila de que ao estabelecer um modo de
viver de acordo com a natureza eacute possiacutevel a makariacuteos zecircn
Por outro lado Epicuro esclarece ldquotoda dor eacute um mal mas nem por isso devemos
fugir de toda dor por sua proacutepria naturezardquo (DL X 129)62 Nesses termos ele estaacute postulando
uma compreensatildeo da dor como fenocircmeno da phyacutesis Assim ela natildeo seria um mal em si mas
poderia indicar a ultrapassagem de um limite orgacircnico ou a submissatildeo do corpo a algum fator
de desequiliacutebrio E isso pode ser relacionado ao exerciacutecio mesmo da sabedoria que consiste
em saber quando conveacutem sentir dor como no caso do atleta ao alongar os muacutesculos para um
melhor funcionamento do corpo ou no caso do agricultor submetido aos rigores impostos
pelo peso do arado e pela extensatildeo do campo em funccedilatildeo de obter uma boa colheita Assim
quando convier o saacutebio natildeo evitaraacute a dor Da mesma forma que se pode dizer da
conveniecircncia em se abster de alguns prazeres que resultam em sofrimento (DL X 129)
Portanto o sophoacutes precisa meditar sobre a vida katagrave phyacutesin e como nela estatildeo relacionados os
61 τούτου γὰρ χάριν πάντα πράττομεν ὅπως μήτε ἀλγῶμεν μήτε ταρβῶμεν 62 οὐ πᾶσα μέντοι αἱρετήmiddot καθάπερ καὶ ἀλγηδὼν πᾶσα κακόν οὐ πᾶσα δὲ ἀεὶ φευκτὴ πεφυκυῖα
111 limites da natureza e a repleccedilatildeo dos desejos para saber o que escolher e o que evitar63 Afinal
ldquoconveacutem entatildeo discriminar todas essas coisas com o caacutelculo daquilo que eacute uacutetil e a ponderaccedilatildeo
daquilo que eacute prejudicial porque em certas circunstacircncias o bem eacute um mal para noacutes e o mal eacute
um bem para noacutesrdquo (DL X 130)64
As dores pensadas enquanto fenocircmeno fazem parte da condiccedilatildeo da vida sujeita agraves
desarmonias aos desequiliacutebrios Por isso satildeo inevitaacuteveis ldquoElas estatildeo presentes mas eacute
possiacutevel para o saacutebio epicurista diminuir fortemente sua intensidade por meio de uma opiniatildeo
verdadeirardquo (ETIENNE amp OrsquoMEARA 1996 p 79) Mas a essa inevitabilidade corresponde
tambeacutem uma descontinuidade como testemunham estas sentenccedilas
O que doacutei natildeo dura continuamente na carne mas o que doi intensamente estaacute presente o tempo miacutenimo e o que sobrepassa o prazeroso segundo a carne acontece natildeo por muitos dias e nas doenccedilas de longa duraccedilatildeo eacute mais pleno o que causa prazer do que o que causa dor (SV 3 DL X 140)
Toda dor pode ser facilmente desprezada aquela que produz um sofrimento tem curta duraccedilatildeo aquela que perdura na carne tem um sofrimento brando (SV 4)
A partir desses passos podemos dizer que na concepccedilatildeo epicurista assim como o
prazer natildeo dura para sempre o mesmo se daacute com relaccedilatildeo agrave dor Quando ela eacute intensa dura
pouco (seja porque leva agrave morte ou deixa de ser intensa) quando ela eacute branda pode ser
suplantada pelo prazer Cabe ao saacutebio desenvolver uma percepccedilatildeo quanto a isso para poder
administrar o sofrimento Assim diante das dores intensas a alma pode experimentar algum
aliacutevio ao saber de sua brevidade e diante daquelas mais moderadas pode-se suplantaacute-las por
meio de uma meditaccedilatildeo voltada para trazer agrave psycheacute as memoacuterias que proporcionam um
prazer capaz de se sobrepor a esse sofrimento como procuramos mostrar no item 22 deste
capiacutetulo
Nesse sentido a meditaccedilatildeo vai se constituir ao mesmo tempo como um exerciacutecio de
compreensatildeo da dor (de saber se ela traz algum benefiacutecio) e como um modo de cuidar
terapeuticamente dela Essa possibilidade de therapeiacutea face ao sofrimento eacute afirmada como
um dos ingredientes do tetraphaacutermakon que Filodemo resumiu assim ldquopode-se suportar a
dorrdquo65 Esse princiacutepio servindo de tema para uma meditaccedilatildeo permite balizado pela
investigaccedilatildeo da natureza entender a naturalidade da dor e que ela pode ser vivida com
63 Vide capiacutetulo I toacutepico 12 deste trabalho 64 τῇ μέντοι συμμετρήσει καὶ συμφερόντων καὶ ἀσυμφόρων βλέψει ταῦτα πάντα κρίνειν καθήκει χρώμεθα γὰρ τῷ μὲν ἀγαθῷ κατά τινας χρόνους ὡς κακῷ τῷ δὲ κακῷ τοὔμπαλιν ὡς ἀγαθῷ 65 Pap Herc 1005 col IV 9-14
112 sabedoria Isso pode permitir ao sophoacutes orientar melhor suas accedilotildees de modo a realizar uma
vida agradaacutevel mesmo em situaccedilotildees de sofrimento
113
CAPIacuteTULO 03
A PRAacuteXIS COMO A PRAGMATEIacuteA NO MODO DE AGIR
No capiacutetulo anterior procuramos caracterizar a meditaccedilatildeo (tograve meleacutetema) como um
exerciacutecio que busca espelhar na alma um saber acerca da phyacutesis Trata-se de uma ocupaccedilatildeo
permanente e voltada para buscar compreender a proacutepria existecircncia e procurar viver conforme
esse entendimento em oposiccedilatildeo agraves kenaigrave doacutexai Eacute por meio de uma praacutetica orientada para
edificar um pensamento de acordo com a natureza que o saacutebio exercita a liberdade ante as
opiniotildees vazias e ao mesmo tempo administra uma therapeiacutea agrave psycheacute que liberta de
perturbaccedilotildees e temores infundados pode se voltar para a realizaccedilatildeo dos prazeres
fundamentais agrave makariacuteos zecircn Nesse entendimento a meditaccedilatildeo se constitui como um
exerciacutecio eacutetico ela desenvolve uma disposiccedilatildeo (diaacutethesis) para pensar e agir livre das
convenccedilotildees que natildeo tecircm na natureza um paradigma de realizaccedilatildeo e portanto natildeo resultaria
em um modo autecircntico de viver
Tambeacutem tentamos mostrar a meditaccedilatildeo como atividade relacionada agrave necessidade de
amadurecer no saacutebio a seguranccedila a confianccedila (piacutestis) com relaccedilatildeo agrave possibilidade de
realizaccedilatildeo de uma vida feliz quando o saber a respeito da phyacutesis eacute projetado em um eacutethos
conforme a natureza Para isso meditar engaja inclina a alma a querer por ela mesma buscar
as condiccedilotildees para sua felicidade a estabelecer uma praacutetica em torno de realizaacute-la Em tal
horizonte compreendemos a afirmaccedilatildeo de Epicuro segundo a qual ldquodevemos entatildeo meditar
sobre tudo o que possa proporcionar a felicidade para que se a temos tenhamos tudo e se
natildeo a temos faccedilamos tudo para tecirc-lardquo (DL X 122)1
Nesse mesmo sentido diz-se na Carta a Meneceu que para gozar de uma vida feliz eacute
necessaacuterio colocar em accedilatildeo (praacutette) o saber acerca da natureza (DL X 123)2 Tal afirmaccedilatildeo
delineia o sentido da pragmateiacutea epicurista tanto quanto remete para uma mudanccedila na
compreensatildeo sobre o que deve orientar a conduta humana Como discutimos em paacuteginas
anteriores a perspectiva epicurista eacute a de instrumentalizar a alma atraveacutes de exerciacutecios de
meditaccedilatildeo para afastaacute-la da influecircncia das opiniotildees vazias e a considerar um paracircmetro mais
1 μελετᾶν οὖν χρὴ τὰ ποιοῦντα τὴν εὐδαιμονίαν εἴπερ παρούσης μὲν αὐτῆς πάντα ἔχομεν ἀπούσης δὲ πάντα πράττομεν εἰς τὸ ταύτην ἔχειν 2 Cf nota 28 da introduccedilatildeo
114 natural a partir do qual se possa pensar a finalidade das accedilotildees A ideia eacute por meio de uma
investigaccedilatildeo da natureza chegar agrave definiccedilatildeo de um paradigma para o agir diferente daquele
que os muitos buscam nos deuses - sujeitos agrave desmesura (hyacutebris) encetada pelos desejos pela
coacutelera pela cupidez Se eacute preciso um modelo divino para inspirar o homem que seja
fundamentado na physiologiacutea e por isso expresse as noccedilotildees de equiliacutebrio e de autarquia
conforme defende Epicuro (DL X 123) Eacute nesse contexto que a praacutexis epicurista pode ser
concebida como sendo toda atividade do homem orientada por um saber que visa restituir a
mesma naturalidade divina ao exerciacutecio da vida humana
Isso nos remete para imaginar que ao delinear os caminhos para se alcanccedilar a
sabedoria Epicuro natildeo trabalha a partir de categorias de pensamento para depois aplicaacute-las ao
entendimento da realidade em especial da conduta humana O caminho eacute outro parte-se da
phyacutesis para compreender e postular o agir e o teacutelos das accedilotildees O sophoacutes eacute venerado porque ele
remete para uma forma de se conduzir orientada por necessidades naturais e para finalidades
pensadas dentro dos limites da natureza Daiacute Epicuro dizer que o exerciacutecio da sabedoria vai
consistir em pocircr em accedilatildeo os preceitos comunicados (pela physiologiacutea) com a confianccedila ou
bem persuadidos (pepeismeacutenoi gnesiacuteos)3 da possibilidade de ser feliz Eacute a compreensatildeo sobre
como a natureza pode servir de modelo para a makariacuteos zecircn que vai orientar o fazer do saacutebio
no mundo a partir de seu poder de escolher e rejeitar sem a sujeiccedilatildeo aos valores
convencionados artificialmente
Aqui vale ressaltar partindo do referenciado por Bailly4 e por Silva5 a forma
imperativa prᾶtte6 e a forma substantiva praacutexis7 tecircm origem no termo praacutesso8 que remete
para a noccedilatildeo de ato execuccedilatildeo tarefa A praacutexis (praacutexis) epicurista eacute accedilatildeo conduta praacutetica de
uma liberdade de escolha orientada para a definiccedilatildeo de um modo mais natural de ser Ao
refletir sobre a phyacutesis busca-se a partir dela uma fundamentaccedilatildeo para conduzir a uma accedilatildeo
saacutebia seja nas relaccedilotildees estabelecidas em sociedade seja na maneira de lidar com a proacutepria
natureza Sendo assim a praacutexis ao buscar realizar um modo saacutebio de se colocar no mundo a
partir de um saber sobre a natureza nos remete para uma indissociaccedilatildeo entre a eacutetica e a
physiologiacutea
Ora pensar a vida pelo prisma da physiologiacutea e procurar viver a partir desse
3 πεπεισμένοι γνησίως (DL X 130) Gama Cury traduz como ldquosinceramente persuadidordquo 4 Anatole Bailly Op Cit 5 Markus Silva Termos Filosoacuteficos de Epicuro Op Cit 6 DL X 123 7 DL X 81 135 148 185 8 Πράσσω
115 conhecimento ao mesmo tempo em que define o sentido da praacutexis epicurista tambeacutem nos
remete a uma concepccedilatildeo de filosofia elaborada como um saber em torno da vida ou uma arte
de viver No contexto desta inter-relaccedilatildeo entre uma compreensatildeo physioloacutegica do mundo e o
modo como se vive visando realizar uma vida feliz eacute possiacutevel sublinhar o papel praacutetico da
filosofia do Jardim projetado na figura do sophoacutes Nesse ideal a vida pretendida a vida
filosoacutefica consiste na aplicaccedilatildeo constante desse saber ao exerciacutecio de viver Nesses termos a
praacutexis eacute conhecimento aplicado ao dia a dia na construccedilatildeo cotidiana de atitudes voltadas para
a liberdade e o prazer E na medida em que a sabedoria remete para uma ocupaccedilatildeo com a
consecuccedilatildeo de um eacutethos katagrave phyacutesin ela estaacute realizando a pragmateiacutea epicurista Daiacute
podermos dizer que a pragmateiacutea se efetiva como modo de viver por meio do saacutebio de sua
praacutexis
Partindo da ideia segundo a qual o sentido da praacutexis estaacute em estabelecer uma maneira
de se conduzir na vida guiada pela physiologiacutea e tendo em vista a makariacuteos zecircn seria o caso
de tambeacutem compreender essa praacutexis como toda conduta orientada por um pensamento
esclarecido com relaccedilatildeo aos limites em que se circunscreve a felicidade e a possibilidade
praacutetica de experimentaacute-la Isso nos remete para pensar as accedilotildees do sophoacutes como o exerciacutecio
de uma disposiccedilatildeo (diaacutethesis) para natildeo soacute se desvencilhar dos valores e desejos que projetam
a felicidade para aleacutem da phyacutesis mas principalmente para encetar um agir autaacuterquico
condiccedilatildeo fundamental para edificar um modo de viver mais autecircntico mais natural Afinal ao
entender - dentro dos limites da phyacutesis - o que pode o homem o saacutebio direciona suas accedilotildees
essencialmente para o necessaacuterio agrave sua realizaccedilatildeo Isso permite identificar na praacutexis epicurista
uma ligaccedilatildeo entre a praacutetica da sabedoria a investigaccedilatildeo da natureza e o exerciacutecio da
liberdade Eacute como sophoacutes-physiologoacutes-autaacuterkes que se definem e realizam as condutas
transformadoras da experiecircncia de existir E isso se daacute meio agrave necessidade de estabelecer um
eacutethos espelhado em um paradigma natural Para tanto eacute preciso viver exercitando esse saber
sobre a natureza (DL X 123) e natildeo legitimando e reproduzindo o colocado socialmente como
norma convenccedilatildeo haacutebito
Postulamos no capitulo anterior que a meditaccedilatildeo liberta a alma das opiniotildees vazias e
isso permite ao saacutebio agir a partir de si mesmo Agora podemos dizer que aleacutem de agir a partir
de si mesmo ele age para si mesmo E natildeo cabe aqui nenhuma interpretaccedilatildeo dessa afirmaccedilatildeo
no sentido de uma atitude egoiacutesta do sophoacutes O direcionamento eacute outro o agir para si estaacute
relacionado agrave possibilidade de escolher uma maneira de viver afirmativa da proacutepria liberdade
com mais equiliacutebrio e mais prazer E isso como vimos remete para bem-estar (eustatheiacutea)
116 para a ausecircncia de distuacuterbio no corpo (aponiacutea) e de perturbaccedilatildeo na alma (ataraxiacutea) Se em
outros momentos da histoacuteria a filosofia pensava o homem virtuoso como aquele que
edificava os valores ligados agrave poacutelis agrave democracia agrave poliacutetica agora o direcionamento eacute para os
valores que remetem para uma vida tranquila livre autecircntica e feliz Essa perspectiva norteia
nossas reflexotildees a respeito da praacutexis epicurista de como ela define a imagem do saacutebio como
aquele que vive como um deus entre os homens e da filosofia como o exerciacutecio da sabedoria
31 ndash A praacutexis do saacutebio escolher e recusar
Epicuro acredita na possibilidade de viver ldquocomo um deus entre os homensrdquo (DL X
135)9 e em torno dessa projeccedilatildeo constroacutei o que jaacute foi referido como uma ldquoutopia epicuristardquo
(ETIENNE amp OrsquoMEARA 1996 p 101)10 Natildeo cremos ser o termo utoacutepico o mais adequado
para se referir a esse ideal afinal a experiecircncia vivida no Jardim por Epicuro e seus
disciacutepulos aponta no sentido contraacuterio de algo realizaacutevel factiacutevel como estamos tentando
mostrar aqui ao caracterizar a filosofia epicurista como uma pragmateiacutea que se realiza como
exerciacutecios eacuteticos E um testemunho de Dioacutegenes de Œnoanda usado para delinear o horizonte
dessa evocada ldquoutopiardquo nos serve justamente para evidenciar essa dimensatildeo do que eacute possiacutevel
ao homem quando orienta suas accedilotildees pelo saber inteligido ao investigar a phyacutesis Vejamos
[] uma vez que nem todos tecircm o poder Mas se noacutes o supomos possiacutevel entatildeo verdadeiramente a vida dos deuses passaraacute aos homens Porque todas as coisas seratildeo plenas de justiccedila e de amor muacutetuo e natildeo haveraacute necessidade de fortificaccedilotildees ou de leis e de todas essas coisas que noacutes criamos por causa dos outros (Œno fr 56 II)11
Embora o fragmento esteja incompleto podemos aventar a possibilidade em
consonacircncia ao conjunto da filosofia epicurista que esse poder do qual fala Dioacutegenes pode ser
o de escolher Como vimos no segundo capiacutetulo deste trabalho somente quem liberta a alma
das concepccedilotildees vazias das convenccedilotildees colocadas pela cultura religiatildeo pelas kenaigrave doacutexai
pode agir por si mesmo e direcionar suas escolhas para satisfazer os desejos ligados ao
exerciacutecio de uma vida autaacuterquica e feliz Saacutebio eacute quem pensa suas necessidades pelo prisma
do natural e do necessaacuterio pois isso lhe permite experimentar o mesmo sentido de autaacuterkeia
que Epicuro usa para caracterizar o permanente estado de liberdade e imperturbabilidade dos
9 ζήσῃ δὲ ὡς θεὸς ἐν ἀνθρώποις 10 La philosophie Eacutepicurienne sur Pierre op cit 11 [] puisque tous nrsquoen ont pas le pouvoir Mais si nous le supposons possible alors veacuteritablement la vie des dieux passera aux hommes Car toutes choses seront pleines de justice et drsquoamour mutuel e il nrsquoy aura pas besoin de fortifications ou de lois et de toutes ces choses que nous fabriquons agrave cause des autres
117 deuses Dessa forma eacute possiacutevel confiar que a vida deles pode ser experienciada pelos
homens mas natildeo por todos porque nem todos exercitam a alma para escolher livremente e
nem escolhem em funccedilatildeo do prazer E como para Epicuro ldquoo fruto maior do bastar-se a si
mesmo eacute a liberdaderdquo quem natildeo busca a autarquia distancia-se desse ideal
Entatildeo se Epicuro venera os theoigrave como modelo de serenidade de autarquia eacute para
projetar na figura do sophoacutes essa aspiraccedilatildeo de vida Ele o saacutebio eacute quem pode realizar essa
ldquoutopiardquo que consiste em viver ldquocomo um deus entre os homensrdquo (DL X 135)12 ou seja sem
preocupaccedilotildees sem medos sem ser assujeitado por desejos sem causar males aos outros nem
os sofrer Dioacutegenes fiel agrave filosofia epicurista tenta desenhar em seu testemunho um lugar
onde prevalece o justo (diacutekaios) e o amor muacutetuo Ora a justiccedila (dikaiosyacutene) para Epicuro
consiste em um ldquopacto no sentido de natildeo prejudicar nem ser prejudicadordquo (DL X 33)13 eacute
portanto algo construiacutedo entre os proacuteprios homens E o amor correspondido remete para a
noccedilatildeo de amizade (philiacutea) Esse termo se refere a relaccedilotildees estabelecidas livremente entre
pessoas em funccedilatildeo de afinidades do contentamento proporcionado Portanto tambeacutem remete
ao poder de escolher Considerando que onde o justo prevalece natildeo haacute desequiliacutebrio e onde a
amizade estaacute presente tambeacutem haacute seguranccedila tranquilidade e satisfaccedilatildeo entatildeo esse ideal de
vida divina eacute possiacutevel a depender da maneira de se portar no mundo e dos valores que guiam
o agir dos homens E isso estaacute relacionado a um modo especiacutefico de compreender a realidade
e de escolher em funccedilatildeo dessa compreensatildeo E o saacutebio traduz esse sentido ao orientar sua
praacutexis de modo a colocar-se na vida como justo e amigo
Para realizar esse modo de existir dos deuses - livre e feliz - eacute preciso conferir agrave vida
mais naturalidade E isso depende do homem fazer com que suas accedilotildees correspondam com o
modo proacuteprio de ser da natureza Vale lembrar que a physiologiacutea aponta para uma
compreensatildeo da phyacutesis a qual natildeo tem sua dyacutenamis determinada ou perturbada por nada
exterior a ela No mesmo paralelo um eacutethos liberto e tranquilo pode ser realizado mediante
escolhas e recusas voltadas para espelhar esse modo natural de ser Assim a liberdade como a
possibilidade de agir por si mesmo e a felicidade como um estado equilibrado dizem respeito
a um exerciacutecio a uma construccedilatildeo a uma praacutexis katagrave phyacutesin
Eacute nesse sentido que objetivo das accedilotildees do saacutebio vai ser orientado para a realizaccedilatildeo da
proacutepria felicidade e todas as escolhas e recusas vatildeo ter em mira esse teacutelos Em cima desse
direcionamento o homem procura exercitar a sabedoria no agir definindo uma praacutexis
12 ζήσῃ δὲ ὡς θεὸς ἐν ἀνθρώποις 13 συνθήκη τις ὑπὲρ τοῦ μὴ βλάπτειν ἢ βλάπτεσθαι
118 fundamentada no seu poder discernir o fundamental para uma vida feliz Dioacutegenes de
Œnoanda faz um comentaacuterio nesse sentido opondo o que se deve evitar ao que se deve
escolher e definindo a filosofia como uma praacutetica relacionada agrave escolha daquilo do que
proporciona felicidade
[ muitos] procuram filosofar a fim de obter para si coisas de indiviacuteduos ou de reis para quem a filosofia eacute tida como um bem precioso Natildeo eacute contudo para ter uma dessas coisas mencionadas que noacutes empreendemos essa praacutetica ltda filosofiagt mas para ser feliz tendo conquistado a finalidade da natureza (Œno fr 29 I e II)14
Essa relaccedilatildeo pretendida entre a realizaccedilatildeo de uma maneira saacutebia de viver e a filosofia
tem em conta que a makariacuteos zecircn buscada pelo saacutebio soacute eacute possiacutevel se ele escolher o prazer e
sobre essa finalidade estabelecer seu modo de viver E isso volta a nos remeter para a
importacircncia de ter a natureza como paradigma e natildeo as convenccedilotildees fundadas em opiniotildees
vazias Assim o teacutelos das accedilotildees do sophoacutes natildeo estaacute projetado no que os muitos professam
(riqueza gloacuteria poder) mas em estabelecer um eacutethos dentro dos limites da natureza A vida
saacutebia eacute tranquila frugal alegre e autaacuterquica e a praacutexis epicurista visa justamente isso Vale
lembrar quando tratamos da vida katagrave phyacutesin no capiacutetulo I destacamos que o saacutebio escolhe
em funccedilatildeo da necessidade e isso estaacute relacionado a buscar satisfazer os desejos naturais e
necessaacuterios e afastar-se daqueles que nem satildeo naturais e nem necessaacuterios Ao circunscrever
suas vontades aos limites da phyacutesis o saacutebio exercita o domiacutenio sobre si mesmo e experimenta
uma independecircncia para fazer escolhas e recusas objetivando edificar a proacutepria felicidade
Escolher e recusar com sabedoria depende nesse caso da possibilidade de se distanciar das
opiniotildees vazias Aiacute se mostra a importacircncia da physiologiacutea para a praacutexis epicurista O saacutebio
age a partir de criteacuterios e raciociacutenios que desconstruindo essas opiniotildees e edificando um
loacutegos de acordo com a phyacutesis conduzem a escolher em funccedilatildeo de ser feliz
Mas essas escolhas e recusas tambeacutem incidem sobre sentimentos pois haacute aqueles
relacionados agrave construccedilatildeo de uma vida feliz e aqueles que afastam o homem desse objetivo
Diante disso o saacutebio procura compreendecirc-los e administraacute-los uma vez que eles podem
direcionar a accedilatildeo tanto para o bem quanto para o mal Sobre esse aspecto Epicuro afirma ldquoas
causas dos males praticados pelos homens satildeo o oacutedio a inveja e o desprezordquo (DL X 75)
Ora o mal aqui eacute entendido como o sofrimento e natildeo eacute possiacutevel ser feliz se as accedilotildees satildeo
14 [beaucoup] cherchent agrave philosopher afin de se procurer ces choses aupregraves des particuliers ou des roacuteis chez qui la philosophie est tecircnue pour une grande et preacutecieuse possession Ce nrsquoest donc pas afin drsquoavoir une des choses susmentionneacutees que nous avons entrepris cete pratique ltde la philosophiegt mas pour ecirctre heureux ayant acquis la fin rechercheacutee par la nature
119 orientadas para essa finalidade assim como natildeo eacute possiacutevel pensar a ataraxiacutea e o equiliacutebrio por
meio de uma praacutexis motivada pela tristeza pelo rancor pelos desafetos
Em face desse problema a filosofia epicurista postula que ldquoas lsquoafecccedilotildeesrsquo15 natildeo satildeo
incompatiacuteveis com a busca da sabedoria Ainda que o epicurismo recuse a apaacutetheia a perfeita
insensibilidade do saacutebio estoico o saacutebio natildeo estaacute contudo assujeitado agraves paixotildees
propriamente ditasrdquo (RODIS-LEWIS 1975 p 204) Assim natildeo eacute o caso de negar a existecircncia
desses sentimentos nem de ficar agrave mercecirc deles nem de ficar indiferente a eles Ao contraacuterio
eacute em torno deles que o saacutebio coloca em exerciacutecio a pragmateiacutea fazendo convergir uma
compreensatildeo sobre a natureza para a praacutetica da autaacuterkeia o que resulta na possibilidade de
um autodomiacutenio pois incompatiacutevel agrave sabedoria eacute natildeo ter o domiacutenio sobre a vontade e isso
revela uma alma adoecida pelas paixotildees e enfraquecida em sua capacidade de determinaccedilatildeo
Nesse sentido o oacutedio a inveja o desprezo satildeo sentimentos relacionados aos deuses
dos muitos mas natildeo agrave concepccedilatildeo de divindade postulada pelo epicurismo e tomada como
modelo para a praacutexis humana Se os theoigrave epicuristas natildeo tecircm coacutelera nem desejam aleacutem de sua
autossuficiecircncia eacute porque esse eacute seu modo natural de existir e o saacutebio toma isso como
referecircncia para orientar suas escolhas e recusas Dessa forma o sentimento de inveja que o
sophoacutes poderia sentir ao perceber a riqueza dos outros eacute anulado pela compreensatildeo de que o
necessaacuterio basta e faz feliz enquanto o excessivo remete para uma busca sem fim e sem
sossego A esse sentimento ele contrapotildee a alegria de quem ri e governa sua vida orientado
pela reta filosofia (SV 41) Pois foi investigando a natureza e meditando sobre ela que ele
compreendeu que ldquonatildeo se deve ter inveja de ningueacutem os bons natildeo satildeo dignos de inveja e os
maus quanto mais afortunados tanto mais eles se prejudicam a si mesmosrdquo (SV 53)16 Do
mesmo modo a raiva o oacutedio o rancor e outros sentimentos da mesma espeacutecie tambeacutem
podem ser submetidos a uma ponderaccedilatildeo quanto agraves suas causas e consequecircncias Esta
sentenccedila de Epicuro pode ajudar na compreensatildeo desse aspecto
Com efeito as coacuteleras acontecem aos que geraram contra os que nasceram segundo o que eacute preciso eacute vatildeo por isso mesmo colocar-se em posiccedilatildeo
15 Nos textos de Epicuro o termo paacutethos diz respeito agraves afecccedilotildees que sentimos mediante o contato entre nossos sentidos e o mundo fenomecircnico Mas tambeacutem pode se referir em sentido menos teacutecnico aos sofrimentos da alma causados pelo desequiliacutebrio do corpo-carne No que diz respeito ao emprego desse vocaacutebulo para se referir agraves paixotildees encontramos apenas uma referecircncia nas Sentenccedilas Vaticanas onde se diz rdquosuprimindo o olho no olho (o olhar direcionado) as relaccedilotildees muacutetuas e a convivecircncia o sentimento amoroso se dissiparsquo Em grego Ἀφαιρουμένης προσόψεως καὶ ὁμιλίας καὶ συναναστροφῆς ἐκλύεται τὸ ἐρωτικὸν πάθος (SV 18) E aqui estamos tratando justamente desse tipo de sentimento dessas paixotildees que podem exercer um domiacutenio sobre o homem e condicionar suas accedilotildees 16 Οὐδενὶ φθονητέονmiddot ἀγαθοὶ γὰρ οὐκ ἄξιοι φθόνου πονηροὶ δὲ ὅσῳ ἂν μᾶλλον εὐτυχῶσι τοσούτῳ μᾶλλον αὑτοῖς λυμαίνονται
120 contraacuteria e natildeo ir em busca de encontrar compreensatildeo e se eacute segundo o que natildeo eacute preciso mas sem muita razatildeo eacute ridiacuteculo aquele que estaacute possuiacutedo pela emoccedilatildeo aticcedilar mais ainda a falta de razatildeo e natildeo procurar mudar segundo outros modos benevolentes (mais suaves) (SV 62) 17
Evidentemente temos aiacute como enquadramento a relaccedilatildeo entre pais (que geraram) e
filhos (que nasceram) Mas o entendimento pode ser aplicado a outras circunstacircncias da vida
onde haja uma disposiccedilatildeo para reagir movido por sentimentos de agressividade de irritaccedilatildeo
A ideia colocada eacute a da irracionalidade em alimentar esse paacutethos com relaccedilatildeo a quem frustra
com razatildeo os desejos de outrem tambeacutem de ser inuacutetil adotar accedilotildees movidas pela raiva contra
aquele que mesmo sem fundamento castra vontades ou tolhe opiniotildees No primeiro caso
porque eacute injusto no segundo porque incita ainda mais o confronto Com isso coloca-se a
necessidade de dominar essas inclinaccedilotildees por meio do logismoacutes e da phroacutenesis para rejeitar
todo comportamento reativo gerador para si e para os outros de perturbaccedilatildeo e desequiliacutebrio
A eacutetica epicurista estaacute centrada no poder de escolher e recusar do homem Mas eacute
preciso considerar que haacute coisas sobre as quais ele tem domiacutenio e outras natildeo A filosofia
entatildeo vai ter sua importacircncia ao desenvolver nele um discernimento para saber esses limites e
definir dentro deles uma praacutexis direcionada para o prazer a alegria a tranquilidade Dessa
forma para o saacutebio sentimentos como rancor inveja despeito estatildeo intimamente ligados a
uma compreensatildeo enviesada a respeito da phyacutesis e quanto aos valores fundamentais para a
realizaccedilatildeo da felicidade e por isso contaminam os relacionamentos e adoecem a alma Eles
remetem para a artificializaccedilatildeo da vida das relaccedilotildees e se opotildeem agrave noccedilatildeo de uma natureza
equilibrada
Por isso ao contraacuterio da poacutelis no Jardim se ensina que natildeo haacute necessidade de
estimular a ambiccedilatildeo a disputa de querer sempre mais do que o outro pode ter Ao contraacuterio
postula-se o bem-estar promovido por uma vida frugal Ao pensar um modo de vida onde a
inveja a competiccedilatildeo a disputa a exploraccedilatildeo natildeo prevalecem diante do sentimento de
comunidade de amizade esses sentimentos que causam inquietude inseguranccedila medo
perdem o sentido E isso estaacute ligado a escolher entre ter o necessaacuterio agrave felicidade ou querer
ter sempre mais O saacutebio escolhe guiado pelo saber a respeito da phyacutesis tendo em mira a
felicidade e os limites aos quais ela se circunscreve E isso lhe permite ter a compreensatildeo que
natildeo eacute da natureza do homem sentir oacutedio inveja desprezo e a escolher se afastar de relaccedilotildees
estimuladoras desses sentimentos
17 Εἰ γὰρ κατὰ τὸ δέον ὀργαὶ γίνονται τοῖς γεννήσασι πρὸς τὰ ἔκγονα μάταιον δήπουθέν ἐστι τὸ ντιτείνειν καὶ μὴ παραιτεῖσθαι συγγνώμης τυχεῖν εἰ δὲ μὴ κατὰ τὸ δέον ἀλλὰ ἀλογώτερον γελοῖον πᾶν τὸ πρὸς ἔκκλησιν ltἐκκαλεῖνgt τὴν ἀλογίαν θυμῷ κατέχοντα καὶ μὴ ζητεῖν μεταθεῖναι κατrsquo ἄλλους τρόπους εὐγνωμονοῦντα
121 32 ndash A accedilatildeo modulada pelo logismoacutes e pela phroacutenesis
Dissemos anteriormente que para Epicuro o mal deriva do oacutedio da inveja e do
desprezo E tambeacutem que esses natildeo satildeo sentimentos naturais mas reflexos de uma forma de
viver fundamentada em concepccedilotildees vazias Resultaria disso uma desmesura (hyacutebris) e
portanto um desequiliacutebrio que natildeo se repercute na alma do saacutebio nem nas accedilotildees dele Isso
porque ele guia suas conduta pelo logismoacutes e pela phroacutenesis ancorados na physiologiacutea Para
explicar esse raciociacutenio vamos considerar o seguinte testemunho da Carta a Meneceu
Natildeo eacute uma sucessatildeo ininterrupta de banquetes e festas nem o prazer sexual com meninos e mulheres nem a degustaccedilatildeo de peixes e outras iguarias oferecidas por uma mesa suntuosa que proporciona a vida agradaacutevel e sim um caacutelculo soacutebrio (logismograves) que investigue as causas de toda escolha e de toda rejeiccedilatildeo e elimine as opiniotildees vatildes por obra das quais um intenso tumulto de apossa das almas (DL X 132)18
A praacutexis epicurista edifica o modo de viver do saacutebio a partir de uma compreensatildeo da
phyacutesis e natildeo de acordo com os valores predominantes na poacutelis Por meio da physiologiacutea satildeo
pensados os limites naturais para o agir e as finalidades das accedilotildees Se o objetivo maior disso eacute
dar um direcionamento para tornar possiacutevel fazer da vida um exerciacutecio de liberdade
serenidade e equiliacutebrio entatildeo o foco recai em poder estabelecer uma medida que impeccedila o
saacutebio de agir contra a natureza Isso implica na necessidade de pensar a partir do saber
physioloacutegico para poder deliberar de forma a escolher e rejeitar visando realizar um modo
saacutebio de viver
O termo empregado por Epicuro para definir essa capacidade da psycheacute para calcular
avaliar e com isso poder fazer escolhas eacute logismoacutes19 Por meio dessa faculdade a alma pode
pensar uma conduta dentro dos limites do natural e necessaacuterio e evitar que a vontade se
projete em desmesuras e desequiliacutebrios O logismoacutes ldquotem a finalidade de na medida do
possiacutevel livraacute-la do erro e do engano nos julgamentos e opiniotildees que venha a manifestarrdquo
(SILVA 2003 73) Isso nos remete para uma ideia de intencionalidade que vai gerir toda a
conduta do saacutebio Sua praacutexis tem no logismoacutes a possibilidade de uma reflexatildeo voltada para
avaliar selecionar e escolher em funccedilatildeo da sua compreensatildeo da natureza e de realizar um
modo de vida identificado com ela Daiacute porque ldquoraramente a sorte prejudica um homem saacutebio
pois as coisas principais e fundamentais sempre foram governadas pela razatildeo (logismoacutes) e 18 οὐ γὰρ πότοι καὶ κῶμοι συνείροντες οὐδrsquo ἀπολαύσεις παίδων καὶ γυναικῶν οὐδrsquo ἰχθύων καὶ τῶν ἄλλων ὅσα φέρει πολυτελὴς τράπεζα τὸν ἡδὺν γεννᾷ βίον ἀλλὰ νήφων λογισμὸς καὶ τὰς αἰτίας ἐξερευνῶν πάσης αἱρέσεως καὶ φυγῆς καὶ τὰς δόξας ἐξελαύνων ἐξ ὧν πλεῖστος τὰς ψυχὰς αταλαμβάνει θόρυβος 19 DL X 32 39 75 76 117 132 144 145
122 por todo o curso da vida a razatildeo as governa e governaraacuterdquo (DL X 144)20 Por isso Epicuro
coloca o logismoacutes como essa faculdade da alma que proporciona uma vida agradaacutevel pois
sem ela os desejos se desgovernam e se projetam sem limites desequilibrando o homem e o
colocando agrave mercecirc de necessidades nem naturais e nem necessaacuterias
A accedilatildeo saacutebia eacute consequecircncia da deliberaccedilatildeo e esta eacute orientada por esse caacutelculo
racional Mas eacute preciso uma disposiccedilatildeo para agir segundo o logismoacutes Estamos aiacute no acircmbito
da phroacutenesis Esse vocaacutebulo eacute traduzido por sensatez prudecircncia ldquovontade esclarecidardquo e
sabedoria21 Mas para aleacutem de uma traduccedilatildeo eacute preciso entender o valor circunscrito por essa
palavra ldquoEpicuro utiliza o termo phroacutenesis num sentido muito similar agravequele desenvolvido
por Aristoacuteteles ou seja como lsquosabedoria praacuteticarsquordquo (SILVA 2003 p 74) Assim poderiacuteamos
pensar sob a perspectiva de uma sabedoria no agir A phroacutenesis em Epicuro diz respeito ao
aspecto praacutetico da sua filosofia a uma disposiccedilatildeo para se conduzir orientado por um saber
physioloacutegico tendo em vista realizar uma vida feliz
Isso nos permite estabelecer uma relaccedilatildeo entre phroacutenesis e praacutexis em torno da
realizaccedilatildeo de um eacutethos fundamentado na natureza Se a filosofia epicurista visa apontar um
caminho para viver naturalmente sem se assujeitar a convenccedilotildees vazias a phroacutenesis eacute a
virtude que conduz o exerciacutecio desse modo natural de vida Isso porque pela compreensatildeo
epicurista a makariacuteos zecircn consiste em agir orientado pela physiologiacutea e a phroacutenesis daacute a
medida desse agir Ela modula os desejos iacutempetos sentimentos e permite governar as accedilotildees
de modo a poder escolher e recusar em funccedilatildeo de um teacutelos katagrave phyacutesin Nesse sentido haacute uma
extensatildeo entre a filosofia e phroacutenesis onde esta remete para a praacutexis filosoacutefica atraveacutes da qual
a pragmateiacutea passa a ser espelhada no modo de viver do saacutebio
Nos textos de Epicuro tanto a noccedilatildeo de phroacutenesis quanto a de filosofia se referem a
um exerciacutecio que prepara os ldquoaacutegeis e autaacuterquicosrdquo22 termos que remetem para uma atividade
para uma disposiccedilatildeo mas tambeacutem para um aspecto de liberdade que caracteriza as accedilotildees do
saacutebio Sua conduta eacute determinada a partir de sua faculdade de pensar e escolher por si mesmo
Isso faz pensar o phroneacuteo como quem intelige do estudo da natureza a orientaccedilatildeo para seus
modos e projeta a finalidade das suas accedilotildees em conformidade com o sentido de uma vida katagrave
phyacutesin Em vista disso a praacutexis do sophoacutes vai se desenvolver orientada para a autaacuterkeia e
para o prazer
20 Βραχέα σοφῷ τύχη παρεμπίπτει τὰ δὲ μέγιστα καὶ κυριώτατα ὁ λογισμὸς διῴκηκε καὶ κατὰ τὸν συνεχῆ χρόνον τοῦ βίου διοικεῖ καὶ διοικήσει 21 Ver tambeacutem nota 74 do capitulo I 22 Cf nota 98 do capiacutetulo I
123 Podemos perceber diante do exposto que a phroacutenesis pensada como sabedoria praacutetica
natildeo se opotildee agrave investigaccedilatildeo da natureza nem estaacute distanciada dela A sabedoria epicurista
implica um saber sobre a phyacutesis a partir do qual satildeo definidas as accedilotildees para conduzir a uma
vida feliz A phroacutenesis ldquotraduzrdquo esse saber em uma disposiccedilatildeo para exercitar uma maneira de
ser fundamentada pela physiologiacutea Natildeo havendo esse conflito
a questatildeo passa a ser para Epicuro como tornar possiacutevel filosofar tanto no sentido praacutetico quanto no teoreacutetico portanto eacute forccediloso admitir que eacute a phroacutenesis que conduz este processo porque ela daacute ao homem o poder de refletir acerca do que eacute natural e necessaacuterio saber tanto do ponto de vista praacutetico quanto teoacuterico (SILVA 2003 p 74)
Dada essa importacircncia da phroacutenesis no contexto da filosofia epicurista precisamos
expor aqui uma discussatildeo com relaccedilatildeo agrave compreensatildeo do seguinte passo da Carta a Meneceu
O principio de tudo isso e o maior bem eacute a sabedoria (phroacutenesis) consequentemente a possessatildeo mais preciosa da proacutepria filosofia eacute a sabedoria origem natural de todas as outras formas de excelecircncias restantes com efeito ela nos ensina que natildeo se pode levar uma vida agradaacutevel se natildeo se vive com sabedoria moderaccedilatildeo e justiccedila nem se pode levar uma vida saacutebia moderada e justa se natildeo se vive agradavelmente As formas de excelecircncia satildeo concomitantes com a vida agradaacutevel e a vida agradaacutevel eacute inseparaacutevel delas (DL X 132)23
Essa traduccedilatildeo de Maacuterio da Gama Kury leva a entender a phroacutenesis como algo de que a
filosofia dispotildee Esse raciociacutenio comeccedila algumas linhas antes24 quando Epicuro fala ser
necessaacuterio investigar as causas de toda escolha e de toda rejeiccedilatildeo e eliminar as opiniotildees
vazias motivo de perturbaccedilatildeo da alma Essa atividade de investigaccedilatildeo e depuraccedilatildeo requer o
exerciacutecio da phroacutenesis no sentido de desenvolver uma vontade esclarecida e uma accedilatildeo
correspondente Mas esse esclarecimento eacute buscado na physiologiacutea Assim tanto a phroacutenesis
quanto a physiologiacutea satildeo pensadas como meio dos quais a filosofia epicurista faz uso para se
realizar enquanto saber para vida Nesse sentido fica difiacutecil postular que a physiologiacutea e
mesmo a phroacutenesis tenham importacircncia superior agrave proacutepria filosofia como postula M Conche
ao propor outra traduccedilatildeo para a frase em questatildeo ldquoe por isso mais preciosa mesmo que a
filosofia eacute a prudecircncia (phroacutenesis)25 da qual provecircm todas as outras virtudes ()rdquo (CONCHE
23 Τούτων δὲ πάντων ἀρχὴ καὶ τὸ μέγιστον ἀγαθὸν φρόνησις διὸ καὶ φιλοσοφίας τιμιώτερον ὑπάρχει φρόνησις ἐξ ἧς αἱ λοιπαὶ πᾶσαι πεφύκασιν ἀρεταί διδάσκουσα ὡς οὐκ ἔστιν ἡδέως ζῆν ἄνευ τοῦ φρονίμως καὶ καλῶς καὶ δικαίως ltοὐδὲ φρονίμως καὶ καλῶς καὶ δικαίωςgt ἄνευ τοῦ ἡδέως συμπεφύκασι γὰρ αἱ ἀρεταὶ τῷ ζῆν ἡδέως καὶ τὸ ζῆν ἡδέως τούτων ἐστὶν ἀχώριστον 24 Cf nota 18 deste capiacutetulo 25 O termo phroacutenesis eacute traduzido como sabedoria prudecircncia e tambeacutem como vontade esclarecida conforme sublinhamos na nota 74 do capiacutetulo I
124 1977 p 225)26
Podemos tambeacutem opor a esse entendimento de M Conche tambeacutem reproduzido por
G Rodis-Lewis27 a anaacutelise sintaacutetica segundo a qual a ldquoφιλοσοφία no nominativo eacute o sujeito
de uma proposiccedilatildeo da qual φρόνησις eacute o atributo e o comparativo neutro com valor
adverbial refere-se a ὑπάρχειrdquo (BOLLACK 1975 p 130) Por isso eacute o caso de pensar que a
filosofia conteacutem a phroacutenesis e natildeo o contraacuterio Eacute no sentido dessa anaacutelise sintaacutetica que
estudiosos como G Arrighetti J Bollack e M Silva compartilham da ideia de natildeo haver uma
primazia dessa virtude com relaccedilatildeo agrave filosofia Haacute de se considerar as virtudes como um
meio28 para alcanccedilar a felicidade enquanto a filosofia tomada como exerciacutecio seja sob a
forma de meditaccedilatildeo ou de praacutexis traz consigo no momento mesmo em que se exercita aquilo
que tem como finalidade a liberdade e o prazer Por esses motivos seguimos o entendimento
desses estudiosos assinalando que a phroacutenesis eacute um instrumento de discernimento da alma
(assim como o logismoacutes eacute uma faculdade que a psycheacute tem para avaliar calcular projetar
fazer analogias) com seu devido valor na construccedilatildeo no exerciacutecio filosoacutefico sem ela a
physiologiacutea se reduz a uma teoria e a ideia de postular uma filosofia como pragmateiacutea natildeo se
efetiva
33 ndash Praacutexis e exerciacutecio de liberdade (eleutheriacutea)
Ao investigar a phyacutesis Epicuro pocircde pensar a liberdade (eleutheriacutea) como uma
possibilidade do acaso Eacute o desvio do aacutetomo de sua trajetoacuteria explicitada na teoria do
pareacutenklisis29 que vai permitir conceber no campo metafiacutesico a derrogaccedilatildeo da necessidade
(anaacutenke) como um fatalismo natural E isso para alguns inteacuterpretes do epicurismo serve
como justificativa ontoloacutegica para a questatildeo da liberdade humana pois a alma tambeacutem eacute
composta por aacutetomos30 a eleutheriacutea seria assim algo que o homem traria consigo por
natureza Embora essa possa ser uma leitura possiacutevel como se daacute na tese de Karl Marx31
podemos aqui tratar da questatildeo da liberdade sob outros aspectos
26 Crsquoest pourquoi plus preacutecieuse mecircme que la philosophie est la prudence de laquelle proviennent toutes les autres vertus () 27 RODIS-LEWIS Geneviegraveve Eacutepicure et son Eacutecole Paris Gallimar 1975 28 ldquoA ideia de se ater agrave virtude por ela mesma defendida notadamente pelos estoicos eacute rejeitada pelos epicuristas Para eles as virtudes natildeo constituem um fim mais um meio em vista de um fimrdquo (ETIENNE amp OrsquoMEARA 1996 p 90) 29 Sobre isso ver capiacutetulo I item 111 30 Ver nota 35 do capiacutetulo I 31 MARX Karl Diferenccedila entre as Filosofias da Natureza em Demoacutecrito e Epicuro Satildeo Paulo Global Editora sd
125 Para Epicuro a eleutheriacutea natildeo eacute absoluta nem na phyacutesis nem com relaccedilatildeo agrave
anthropophyacutesis Se no campo atocircmico ela eacute percebida como um movimento que escapa agrave
anaacutenke eacute necessidade da natureza que isso ocorra Esse paralelo tambeacutem pode ser aplicado ao
homem para quem nem tudo estaacute ao seu domiacutenio mudar ou escolher mas que pode
desenvolver pensamentos e atitudes voltados para o estabelecimento de um modo proacuteprio de
viver mesmo sob a influecircncia das quais natildeo se possa escapar Afinal para Epicuro ldquocoisa maacute
eacute a necessidade mais natildeo haacute necessidade nenhuma de viver com necessidaderdquo (SV 9)32
Trata-se portanto de um esforccedilo um exerciacutecio que cada um precisa empreender
Quando fala da liberdade humana Epicuro a relaciona agrave noccedilatildeo de autaacuterkeia Para ele
ldquoo fruto maior do bastar-se a si mesmo eacute a liberdaderdquo (SV 77)33 Ser autaacuterkes eacute poder agir a
partir de si mesmo do saber depreendido ao investigar a natureza sem a imposiccedilatildeo de normas
ou convenccedilotildees fundadas em opiniotildees vazias Eacute nesse sentido que a physiologiacutea ganha
importacircncia pois permite compreender que na natureza operam apenas causas fiacutesicas sem
nenhuma finalidade (teacutelos) Isso aponta para um sentido inerente da proacutepria natureza cujos
modos de ser natildeo satildeo determinados por nada fora dela mesma ldquoporque aleacutem do todo nada haacute
que possa penetrar nele e provocar transformaccedilatildeordquo (DL X 39)34 Portanto o sentido para o
agir humano deve ser pensado tendo como referecircncia a proacutepria natureza cabendo a cada um
definir sua praacutexis em funccedilatildeo das finalidades que entende como fundamentais a sua realizaccedilatildeo
Contudo ao se viver sob um regime onde prevalecem opiniotildees crenccedilas e ateacute mesmo
uma educaccedilatildeo orientada no sentido de projetar falsas finalidades para o homem fora do que
lhe ensina a natureza a eleutheriacutea eacute mitigada devido ao asseacutedio de desejos Buscar conquistar
aleacutem do que basta a uma vida feliz assenhora a vontade fazendo a accedilatildeo ser comandada pelo
desejar sem limites Daiacute ser necessaacuterio ldquoextirpar as vaacuterias opiniotildees os desejos supeacuterfluos que
somente encobrem o quatildeo faacutecil eacute a felicidade terrestrerdquo (GUAL 1985 p 189)
Restabelecer o sentido de liberdade estaacute ligado assim a buscar ser autaacuterkes o que
resulta em uma praacutexis orientada pela natureza Nessa perspectiva quando a filosofia
epicurista postula a necessidade de exercitar a autaacuterkeia estaacute dizendo que o homem deve - ele
mesmo - guiar sua conduta de maneira a realizar o teacutelos katagrave phyacutesin Esse eacute o propoacutesito da
praacutexis do saacutebio Tal qual a phyacutesis que por si mesma realiza seu sentido proacuteprio de ser o
mesmo se daria com o homem cujo teacutelos vinculado aos prazeres conforme a natureza ele
deve procurar realizar Isso pode ocorrer pela praacutetica das virtudes (areteacutes) pois elas satildeo um
32 Κακὸν ἀνάγκη ἀλλrsquo οὐδεμία ἀνάγκη ζῆν μετὰ ἀνάγκης 33 Τῆς αὐταρκείας καρπὸς μέγιστος ἐλευθερία 34 Παρὰ γὰρ τὸ πᾶν οὐθέν ἐστιν ὃ ἂν εἰσελθὸν εἰς αὐτὸ τὴν μεταβολὴν ποιήσαιτο
126 meio para alcanccedilar o prazer ligado agrave vida autaacuterquica e ataraacutexica
A liberdade assim concebida remete para uma atividade uma construccedilatildeo a cargo do
proacuteprio homem naquilo que depende dele sobre o que ele tem domiacutenio Meio ao acaso e agrave
necessidade Epicuro entende haver o espaccedilo para a deliberaccedilatildeo humana Para ele quanto
mais algueacutem se exercita em investigar a natureza e a meditar sobre ela mais eacute possiacutevel
desenvolver o poder para conduzir a vida em direccedilatildeo agrave makariacuteos zecircn Conhecer a natureza e
os limites por ela colocados para a satisfaccedilatildeo dos prazeres permite uma liberdade ante os
desejos sem medidas Porque ldquoeacute duro lutar contra o desejo mas vencecirc-lo eacute proacuteprio do homem
de bom sensordquo (DK 68 B 236)35 Nesse sentido podemos perceber uma relaccedilatildeo entre a
eleutheriacutea e o desenvolvimento de uma praacutexis virtuosa Quanto mais o saacutebio age com
phroacutenesis bondade e justiccedila mais ele exercita a autaacuterkeia mais ele confere naturalidade agrave
sua existecircncia
Por isso a filosofia eacute fundamental para a liberdade na medida em que busca
desenvolver no homem aquilo que eacute proacuteprio de sua natureza Ao estimular uma compreensatildeo
criacutetica da realidade distanciando-se de vieses poliacuteticos religiosos e da ignoracircncia busca-se
estabelecer um agir definido pela eacutetica e natildeo pela moral pelas normas pelas convenccedilotildees
Cabe ao saacutebio a partir de si mesmo e de seu entendimento sobre a realidade e sobre o sentido
natural de sua existecircncia definir uma conduta virtuosa A pragmateiacutea vai permitir desenvolver
nele os instrumentos para a conquista de sua autonomia e para uma praacutexis orientada para a
realizaccedilatildeo de um modelo metafiacutesico de equiliacutebrio que o saacutebio encontra quando investiga a
phyacutesis e medita sobre os deuses vivendo felizes serenos sem causar perturbaccedilatildeo nem serem
perturbados E esse ideal eacute postulado como possiacutevel porque na concepccedilatildeo epicurista eacute pelo
desconhecimento sobre os bens que conduzem a uma vida feliz que os limites satildeo
transbordados e a liberdade se converte em crimes e a alma se perturba Afinal ldquonatildeo eacute a
necessidade natural que impulsiona o homem a cometer injusticcedila mas o desejo ligado agrave
opiniatildeo vaziardquo (ESTOBEU Florileacutegio XVII 35)36 Assim a liberdade pensada a partir de
uma vontade esclarecida da modulaccedilatildeo dos desejos e da emancipaccedilatildeo com relaccedilatildeo agraves
opiniotildees vazias implica em assimilar agrave praacutexis do saacutebio uma praacutetica das virtudes conforme a
natureza Isso pois
35 Esse fragmento eacute de Estobeu mas remete muito bem para a ideia da possibilidade que o saacutebio tem para governar os proacuteprios desejos A traduccedilatildeo eacute de Anna Lia Amaral Prado Extraiacutedo do vol I da coleccedilatildeo Os Pensadores Preacute-Socraacuteticos Satildeo Paulo Nova Cultural 1996 36 Apud RODIS-LEWIS Geneviegraveve Eacutepicure et son Eacutecole Paris Gallimar 1975 P 241
127 Natildeo se pode levar uma vida agradaacutevel se natildeo se vive com sabedoria moderaccedilatildeo e justiccedila nem se pode levar uma vida saacutebia moderada e justa se natildeo se vive agradavelmente As formas de excelecircncias satildeo concomitantes com a vida agradaacutevel e inseparaacutevel delas (DL X 132)37
A partir dessa passagem coloca-se claramente a correlaccedilatildeo entre as areteacutes e a
finalidade do modo de viver buscado pelo saacutebio a vida prazerosa (zecircn hedeacuteos) Eacute no contexto
desse viacutenculo que Epicuro pensa a liberdade natildeo enquanto questatildeo poliacutetica como construccedilatildeo
social na poacutelis o que remete para o circunstancial em funccedilatildeo do tempo e do lugar mas a
partir de uma ancoragem mais universal
Isso natildeo quer dizer que o saacutebio vai se insurgir contra toda forma de convenccedilatildeo
(noacutemos) e negar o valor da participaccedilatildeo poliacutetica nem que vaacute propor desobediecircncia agraves normas
Se o sophoacutes declina de participar da vida poliacutetica (DL X 119) salvo quando haacute motivo para
o contraacuterio eacute porque percebe nesse campo a impossibilidade de harmonizar o caraacuteter agonal
conflituoso caracteriacutestico da vida na poacutelis sem haver uma assujeiccedilatildeo agraves convenccedilotildees e agraves leis
E isso estaacute diretamente associado agrave limitaccedilatildeo do exerciacutecio da liberdade Aleacutem disso o saacutebio
tem sua conduta orientada por um sentido de justiccedila ligado ao seu proacuteprio estado de
equiliacutebrio Ele natildeo seraacute tirano (DL X 119) nem cometeraacute injusticcedila porque ldquoa vida do homem
justo eacute totalmente imune a perturbaccedilotildees interiores mas a do homem injusto eacute repleta de
inquietuderdquo (DL X 144)38 Em outros termos ele age a partir de uma motivaccedilatildeo eacutetica cujo
princiacutepio ele traz consigo e projeta em uma praacutexis que se realiza sem a necessidade de ser
orientada por formas impositivas
Ao buscar um fundamento mais universal para guiar as accedilotildees Epicuro trabalha a
noccedilatildeo de liberdade a partir de um movimento de aproximaccedilatildeo entre o homem e a phyacutesis
Quando se dedica agrave physiologiacutea Epicuro tem como foco perscrutar a natureza humana para
resolver os problemas ligados ao exerciacutecio de uma vida bem realizada A eleutheriacutea portanto
natildeo prescinde da physiologiacutea porque para compreender as naturezas dos homens (taacutes phyacuteseis
totilden anthroacutepon)39 eacute preciso vecirc-las tambeacutem como parte da natureza do todo de onde satildeo
inteligidas finalidades e modelos de conduta O todo (tograve pacircn) eacute phyacutesis e o aacutenthropos tambeacutem
eacute entatildeo quanto mais se investiga a natureza mais eacute possiacutevel pensar os limites e as
possibilidades de liberdade relacionadas ao agir do homem A physiologiacutea permite postular a
ideia de que a natureza eacute a mesma para todos e portanto o prazer compreendido como teacutelos
37 Οὐκ ἔστιν ἡδέως ζῆν ἄνευ τοῦ φρονίμως καὶ καλῶς καὶ δικαίως ltοὐδὲ φρονίμως καὶ καλῶς καὶ δικαίωςgt ἄνευ τοῦ ἡδέως συμπεφύκασι γὰρ αἱ ἀρεταὶ τῷ ζῆν ἡδέως καὶ τὸ ζῆν ἡδέως τούτων ἐστὶν ἀχώριστον 38 Ὁ δίκαιος ἀταρακτότατος ὁ δrsquo ἄδικος πλείστης ταραχῆς γέμων 39 τὰς φύσεις τῶν ἀνθρώπων (DL X 75)
128 natural diz respeito a todos os homens Decorre desse entendimento que a praacutexis estabelecida
pelo saacutebio tendo em vista realizar essa finalidade vai se dar como um permanente exerciacutecio
eacutetico de espelhamento da natureza Mas isso soacute eacute possiacutevel porque
() para Epicuro a natureza eacute a fonte ou o princiacutepio da vida fiacutesica psiacutequica e eacutetica Pois ela revela ao pensamento em si indiacutecios que tornam possiacutevel a medida de realizaccedilatildeo de cada coisa e dentre elas do proacuteprio homem que emerge em seu proacuteprio seio e tem a necessidade de viver de acordo com ela (katagrave phyacutesin) (SILVA 2003 p 23)
O homem como ser da natureza percebe dentro dele um sentido harmocircnico uma
disposiccedilatildeo para experimentar o prazer quando vive equilibradamente Eacute assim natildeo por obra de
alguma forccedila providencial mas como expressatildeo do modo natural que cada ser tem de se
realizar A funccedilatildeo da filosofia eacute fazer com que por meio de uma praacutetica de pensamento e de
comportamentos o homem se reencontre com esse sentido e procure estendecirc-lo para seu
modo de viver A praacutexis nesse contexto tem papel importante com exerciacutecio de
espelhamento dessa natureza no campo do agir social por isso ela nos remete para um modelo
de accedilatildeo voltado para a realizaccedilatildeo de uma vida equilibrada
A praacutexis epicurista projeta uma compreensatildeo da realidade physioloacutegica na realidade
histoacuterica sob a forma de um exerciacutecio contiacutenuo de liberdade O entendimento a respeito dos
limites verificados na natureza e a relaccedilatildeo deles com o modo como se vive satildeo fundamentais
para definir um eacutethos que leve o homem agrave sua realizaccedilatildeo mais autecircntica ou seja aquela
construiacuteda a partir de sua liberdade e conforme um delineamento natural Procurar viver a
eleutheriacutea dentro desses limites eacute o que direciona a praacutexis do saacutebio para a realizaccedilatildeo da zecircn
hedeacuteos Se por um lado a opiniatildeo eacute insaciaacutevel por outro a natureza eacute faacutecil de satisfazer
enquanto aquela aprisiona esta pode conduzir agrave libertaccedilatildeo
No capiacutetulo anterior falamos da autarquia sob a perspectiva de uma libertaccedilatildeo de O
asseacutedio dos desejos e a influecircncia das opiniotildees vazias e das proacuteprias paixotildees foram
interpretados como formas de mitigar o poder de agir a partir de si mesmo E a autaacuterkeia foi
compreendida sob a perspectiva de um exerciacutecio de vida fundamentado na capacidade de
deliberar a partir de uma vontade esclarecida e do conhecimento a respeito da natureza O
homem autaacuterkes age por si mesmo na medida em que consegue libertar a alma dos loacutegoi que
aprisionam Isso estaacute relacionado agrave retomada de um autodomiacutenio (enkraacuteteia) Mas essa
libertaccedilatildeo de opiniotildees opressivas vazias e apartadas na natureza embora seja aspecto
fundamental para o exerciacutecio da liberdade estaacute como estamos procurando mostrar neste
capiacutetulo intimamente ligada a outro tipo de libertaccedilatildeo exercitada pela praacutexis epicurista
129 Para deixar mais claro ocorre que quanto mais o homem eacute guiado pela phroacutenesis pelo
logismoacutes e pelo saber acerca da natureza mais ele passa a exercer um poder de governar a si
mesmo e experimentar uma liberdade para comandar a proacutepria vida A praacutexis remete
justamente para essa extensividade entre um homem autaacuterkes40 aquele que age a partir do
proacuteprio pensar e o homem autarcheacutes aquele que exprime por meio de sua praacutexis a liberdade
para conduzir sua maneira de viver Quem eacute autarcheacutes comanda dirige conduz reina e pode
ldquorir e em conjunto filosofar e governar sua casa e usar todas as outras coisas que nos satildeo
proacuteprias e de modo algum fazer cessar as vozes que vecircm da reta filosofia em se afastando
delasrdquo (SV 41)41 Com isso Epicuro estaacute querendo dizer que o exerciacutecio filosoacutefico vem
acompanhado de um sentimento agradaacutevel porque quando se ouve a natureza por meio da
investigaccedilatildeo physioloacutegica faz-se calar os loacutegoi vazios que impediam a felicidade e limitavam
o poder que o proacuteprio homem tem para construir sua realizaccedilatildeo O saacutebio dessa forma estaacute
experimentando um prazer ligado agrave liberdade de poder pensar e agir tendo em vista governar
sua alma e sua casa Assim ser feliz diz respeito a um exerciacutecio de libertaccedilatildeo dos noacutes
culturais e de liberdade para realizar uma vida prazerosa
Eacute importante destacar isso ao tratarmos da praacutexis epicurista pois haacute uma tendecircncia
acentuada para pensar a filosofia de Epicuro como centrada em uma liberdade interior
expressa a partir da noccedilatildeo de autaacuterkeia esquecendo-se de inter-relacionar isso com a conduta
do saacutebio enquanto ser social e histoacuterico o que destacaria o distanciamento do sophoacutes das
questotildees poliacuteticas de seu tempo Mas a accedilatildeo dele ocorre no mundo e sua praacutexis tem efeitos
exteriores Se o cultivo dessa liberdade interior aparece como uma reaccedilatildeo ante a
impossibilidade de liberdade poliacutetica caracteriacutestica da tirania de Alexandre eacute preciso
contudo sublinhar que ela natildeo estaacute desvinculada da liberdade para mesmo em tempo de
desmesuras estabelecer um modo de viver equilibrado Para aleacutem da alma a liberdade do
saacutebio se estende como praacutexis para o Jardim e outras formas de vida comunitaacuteria Afinal ele
escolhe em funccedilatildeo da proacutepria realizaccedilatildeo mas essas escolhas acontecem em meio ao conviacutevio
com outros nas relaccedilotildees entre afetos e desafetos
Eacute em torno da compreensatildeo de que a felicidade depende de um modo de viver do qual
ele eacute responsaacutevel que o homem deve procurar fazer de cada accedilatildeo um exerciacutecio de sabedoria E
isso se reflete em postular e estabelecer praacuteticas voltadas para uma vida mais natural mais
autecircntica A filosofia enquanto teacutechne implica em uma utilizaccedilatildeo desse saber para
40 Ver nota 95 do caacutepiacutetulo I 41 Γελᾶν ἅμα δεῖ καὶ φιλοσοφεῖν καὶ οἰκονομεῖν καὶ τοῖς λοιποῖς οἰκειώμασι χρῆσθαι καὶ μηδαμῇ λήγειν τὰς ἐκ τῆς ὀρθῆς φιλοσοφίας φωνὰς ἀφιέντας
130 experimentar bem-estar (eustaacutetheia) mesmo vivendo na poacutelis conturbada quando natildeo eacute
possiacutevel estar no Jardim O saacutebio age a partir de si mesmo e para si mesmo para realizar seu
equiliacutebrio Mas isso natildeo implica em accedilotildees egoiacutestas o que seria incompatiacutevel com a noccedilatildeo de
sabedoria e de philiacutea postuladas pelo epicurismo Afinal o sophoacutes procura fazer de sua praacutexis
um exemplo e por isso ldquovenerar o saacutebio eacute um grande bem para quem venerardquo (SV 32)42 A
accedilatildeo visando a si mesmo eacute aquela voltada para desenvolver a proacutepria harmonia Assim ao
observarmos a maneira como ele faz do seu eacutethos uma atividade (eneacutergema)43 orientada para
o equiliacutebrio percebemos essa aproximaccedilatildeo com um sentido mais natural de existir
Nesse panorama podemos entender que a filosofia de Epicuro natildeo eacute elaborada tendo
em vista querer transformar o mundo mas a maneira como o saacutebio se relaciona com ele A
praacutexis natildeo visa o cidadatildeodemocracia da poacutelis mas o homem realizando sua naturalidade
liberto de perturbaccedilotildees imposiccedilotildees repressotildees alheamentos Tanto quanto a meditaccedilatildeo
liberta das opiniotildees vazias a praacutexis exercita essa libertaccedilatildeo para vir a ser em torno da proacutepria
felicidade
Isso pode nos fazer pensar a filosofia epicurista sob um aspecto antropoloacutegico Ao
buscar colocar o homem em posse do poder de fazer de agir de transformar a forma de
compreender a realidade e a maneira de vivecirc-la ela permite uma concepccedilatildeo do homem sob
outro olhar onde o seu eacutethos se daacute em torno de si mesmo da proacutepria realizaccedilatildeo e natildeo mais
em torno da construccedilatildeo da poacutelis e dos valores que ela legitima Isso nos permite entender o
sentido dessa liberdade que o saacutebio constroacutei por meio de sua praacutexis A filosofia epicurista
projeta o sophoacutes como dono das proacuteprias vontades senhor das proacuteprias decisotildees e isso
remete agrave liberdade para poder se afastar da poacutelis para estabelecer amizades autecircnticas para
fazer da vida um exerciacutecio filosoacutefico para a convivecircncia no Jardim para estabelecer um
modo autentico de viver Satildeo esses aspectos que vamos destacar adiante
34 ndash Da poacutelis ao Kecircpos
A sociedade grega desenvolveu como forma de organizaccedilatildeo a sociedade-estado Nela
as aspiraccedilotildees os valores orbitam sobre temas como democracia coletividade poliacutetica Essas
preocupaccedilotildees movem a cidade e despertam a atenccedilatildeo e as investigaccedilotildees filosoacuteficas em torno
do ldquoanimal poliacuteticordquo O espaccedilo puacuteblico eacute privilegiado em relaccedilatildeo ao acircmbito do pessoal do
42 Ὁ τοῦ σοφοῦ σεβασμὸς ἀγαθὸν μέγα τῷ σεβομένῳ ἐστί 43 DL X 37
131 privado As questotildees ligadas ao homem buscam soluccedilatildeo no contexto das relaccedilotildees na poacutelis Na
democracia o interesse estaacute na consecuccedilatildeo do bem-estar coletivo e na realizaccedilatildeo das virtudes
que o homem precisa desenvolver para viver na cidade
Mas agrave eacutepoca de Epicuro o mundo grego vive um tempo de turbulecircncias e tirania44
Apoacutes a tomada do poder45 pelo rei Felipe da Macedocircnia a Greacutecia perde seu espaccedilo de
participaccedilatildeo democraacutetica Agrave nova configuraccedilatildeo poliacutetica marcada pelo autoritarismo e
centralizaccedilatildeo corresponde o esvaziamento da aacutegora a decadecircncia da poacutelis enquanto espaccedilo
de expressatildeo de autonomia liberdade e participaccedilatildeo poliacutetica Estamos diante do helenismo46
um periacuteodo marcado pela expansatildeo e imposiccedilatildeo da cultura grega agraves regiotildees conquistadas pelo
impeacuterio de Alexandre Magno
Esse contexto vai fazer emergir a demanda de um novo filosofar afinal ldquoeacute inegaacutevel
que as filosofias da eacutepoca heleniacutestica surgem de uma terriacutevel crise social histoacuterica mas a
filosofia eacute sempre produto de uma criserdquo (GUAL 1985 p 11) Se antes os pensadores se
voltavam para o problema da preparaccedilatildeo e participaccedilatildeo na vida poliacutetica tentando estabelecer
normas universais para a conduta humana uma vez que essa participaccedilatildeo fica esvaziada a
preocupaccedilatildeo filosoacutefica se altera Diante de uma Greacutecia politicamente degradada o desafio natildeo
eacute mais governar a poacutelis mas governar a si mesmo de forma que as accedilotildees conduzam agrave
realizaccedilatildeo da proacutepria felicidade O helenismo traz a necessidade de se questionar como diante
de uma realidade histoacuterica que afunda o homem em uma profunda crise existencial e lhe
transforma as necessidades eacute possiacutevel pensar uma eacutetica como caminho para a realizaccedilatildeo de
uma vida feliz (makariacuteos zecircn) e da liberdade (eleutheriacutea) Afinal ldquoo que interessaraacute aos
pensadores do periacuteodo seraacute antes de tudo a experiecircncia que algueacutem pode ter da liberdade ou
da felicidade e sobretudo de sua efetivaccedilatildeo praacuteticardquo (PAULA 2014 p 45) Somente com o
esgotamento desse ideal de sociedade que culmina com a dominaccedilatildeo macedocircnica eacute que a
eacutetica da virtude do bem comum da busca pela realizaccedilatildeo do homem ciacutevico e outras
aspiraccedilotildees vatildeo perdendo importacircncia para aquilo que eacute privado particular aquilo que eacute da
ordem da interioridade
Epicuro natildeo pocircde testemunhar essa experiecircncia de democracia grega que se tornou
referecircncia para o mundo ateacute hoje ressalvadas as particularidades de natildeo se tratar de uma
44 ldquoLa filosoffa de Epicuro es una filosofia de la crisis Nacida em tiempos de crisis y para hombres que viven su vida y la de los demaacutes en la crisisrdquo (MAYOR 1987 p 87) 45 Em 338 aC o rei Felipe da Macedocircnia daacute iniacutecio a uma campanha expansionista e uma a uma comeccedilando pelo Norte vai conquistando as cidades gregas 46 Essa terminologia foi estabelecida no trabalho do historiador alematildeo Droysen em 1833 no livro Histoire drsquoAlexandre Droysen se posicionava ldquosobretudo no ponto de vista poliacuteticordquo (FESTUGIEgraveRE 1985 p XXI)
132 democracia universalizada Mas pocircde sentir a tirania se acentuar principalmente apoacutes a morte
de Alexandre quando o impeacuterio conquistado foi disputado por seus generais Por tudo isso
para Epicuro natildeo haacute nem a possibilidade nem a necessidade de retomar os tempos antigos
para poder fundar seu projeto filosoacutefico Sua preocupaccedilatildeo eacute com o homem com a realizaccedilatildeo
dele independentemente de estar em tempos adversos Seu escopo eacute pensar como poder
estabelecer um modo agradaacutevel de viver Eacute diante desse quadro histoacuterico cultural e filosoacutefico
que se verifica no epicurismo uma oposiccedilatildeo ao desejo de universalizaccedilatildeo da poliacutetica para gerir
o conviacutevio social A perspectiva pretendida vai em sentido contraacuterio de pautar a vida a partir
de uma sociedade minuacutescula fora dos domiacutenios de Atenas Trata-se de um universo de
convivecircncia fundamentado na philiacutea na afetividade no acordo do modo de pensamento
341 ndash Laacutethe biocircsas
Na praacutexis epicurista a vida distanciada da poacutelis eacute exortada Quando escolheu fundar
seu Jardim fora dos muros da cidade foi para viver afastado da tirania das multidotildees do
barulho das opiniotildees vazias e de uma cultura ligada a valores artificiais como a riqueza o
poder a fama coisas incompatiacuteveis com seu projeto de uma existecircncia equilibrada e feliz
Para ele a vida na poacutelis eacute apartada de um sentido natural o que dificulta o homem de
experimentar a ataraxiacutea a autaacuterkeia de exercer a liberdade necessaacuteria para a realizaccedilatildeo de
uma existecircncia plena Daiacute Epicuro aconselhar a Piacutetocles ldquoalccedila tua vela amigo e foge de toda
cultura seja ela qual forrdquo (DL X 6)47 Veja com isso que Epicuro tambeacutem estaacute colocando a
necessidade de se afastar da vida puacuteblica de viver ignorado Pois a poliacutetica para ele eacute fonte de
perturbaccedilatildeo de embates ligados agrave construccedilatildeo da poacutelis e das relaccedilotildees nomoteacuteticas nela
estabelecidas
Ora o foco do epicurismo natildeo eacute a cidade eacute o saacutebio O interesse eacute pensar formas de
convivecircncia gerenciadas pela eacutetica e natildeo pela poliacutetica Daiacute ecoarem no epicurismo os lemas
ldquovive ignoradordquo (laacutethe biocircsas) ldquoo saacutebio natildeo participaraacute da vida poliacuteticardquo (DL X 119)48 ldquoeacute
preciso liberar-se a si mesmos dos afazeres rotineiros e puacuteblicos (SV 58)49 Por traacutes dessa
posiccedilatildeo estaacute a compreensatildeo de que a eacutetica pode se constituir como o princiacutepio norteador das
relaccedilotildees que vatildeo compor uma nova maneira de agregaccedilatildeo social Trata-se de um
posicionamento criacutetico ao modo como a poliacutetica se configura em seu tempo e natildeo uma
47 Παιδείαν δὲ πᾶσαν μακάριε φεῦγε τἀκάτιον ἀράμενος 48 Πολιτεύσεται ὡς ἐν τῆι πρώτηι Περὶ βίων 49 Ἐκλυτέον ἑαυτοὺς ἐκ τοῦ περὶ τὰ ἐγκύκλια καὶ πολιτικὰ δεσμωτηρίου
133 negaccedilatildeo a ela enquanto noccedilatildeo pensada pela filosofia A questatildeo eacute que a vida poliacutetica na
praacutetica configura-se como ldquouma perturbaccedilatildeo trazida agrave felicidaderdquo (SALEM 1994 p 142)
Contudo
A atividade poliacutetica natildeo eacute de forma alguma proibida ela eacute apenas fortemente desaconselhada ao saacutebio Como ele eacute sempre pragmaacutetico o epicurista natildeo exclui que em certas ocasiotildees haja mais perturbaccedilotildees em recusar que em aceitar provisoriamente alguma responsabilidade poliacutetica (SALEM 1994 p 145)
Epicuro natildeo participa da vida poliacutetica do seu tempo porque seu escopo eacute a realizaccedilatildeo
de um projeto de sophoacutes ligado agrave realizaccedilatildeo de uma vida katagrave phyacutesin Ocorre contudo que
ele natildeo acredita na possibilidade de edificaccedilatildeo de seu modelo de saacutebio nem em estabelecer um
tipo de vida ligada a essa construccedilatildeo dentro dos domiacutenios da cidade Para ele a poacutelis eacute o
ambiente onde tanto a poliacutetica quanto a religiatildeo a cultura e as opiniotildees vazias exercem forte
pressatildeo sobre o homem impondo-lhe uma compreensatildeo de mundo e valores direcionadores
da vontade para o que nem eacute natural nem necessaacuterio nem alcanccedilaacutevel Agindo a partir do que
lhe eacute colocado exogenamente como expectativa o homem abdica do exerciacutecio da proacutepria
liberdade e adia a possibilidade de realizar a si mesmo Nesse sentido a vida na poacutelis para
quem se exercita na sabedoria implica em estar sempre contestando as normas os costumes
as convenccedilotildees colocando em praacutetica a parresiacutea (liberdade de palavra) e anaiacutedeia (falta de
pudor) ou suportar os dissabores as infelicidades a agitaccedilatildeo o que levaria ao exerciacutecio da
apaacutetheia (indiferenccedila) estoica
Mas Epicuro quer exercitar eacute a ataraxiacutea a autaacuterkeia a eleutheriacutea Eacute em torno dessas
noccedilotildees que ele pensa o saacutebio e sua praacutexis E isso remete para um modo de vida simples
pacato sempre buscando minorar as dependecircncias que comprometam a tranquilidade Daiacute a
necessidade de afastamento da poacutelis de sua vida agitada e mediada pela poliacutetica e por valores
estabelecidos fora dos limites da natureza Esse distanciamento eacute a praacutetica de um exerciacutecio
eacutetico voltado para favorecer a vida katagrave phyacutesin Se na poacutelis natildeo eacute possiacutevel encontrar o
ambiente favoraacutevel para o sophoacutes desenvolver sua singularidade entatildeo ele vai escolher o
Jardim Por isso o saacutebio ldquofundaraacute uma escola filosoacutefica mas natildeo para reunir uma multidatildeo
em torno de sirdquo (DL X 120)50 Porque o objetivo natildeo eacute filosofar para os muitos mas atender
uma necessidade de aproximaccedilatildeo com a natureza por meio da realizaccedilatildeo de uma praacutexis cuja
fundamentaccedilatildeo natildeo eacute poliacutetica eacute eacutetica
50 Σχολὴν κατασκευάσειν ἀλλ οὐχ ὥστ ὀχλαγωγῆσαι
134 342 ndash A koinoniacutea
O movimento da filosofia epicurista de afastamento da poacutelis e de escolha pelo Kecircpos51
vai remeter para uma forma de organizaccedilatildeo referida como koinoniacutea52 O termo diz respeito a
uma maneira de associaccedilatildeo social reduzida a um grupo de pessoas que compartilham
afinidades no modo de viver e de pensar Em Epicuro koinoniacutea diz respeito a uma noccedilatildeo de
comunidade onde as relaccedilotildees sociais satildeo orientadas pela ideia de comunidade e de amizade
(philiacutea) Essa concepccedilatildeo de vida comunitaacuteria contrasta com a ideia de coletividade que pode
ser aplicada agrave poacutelis pois viver coletivamente natildeo implica em proximidade na forma do
pensamento nem de valores nem no estabelecimento de viacutenculos afetivos Na cidade as
diferenccedilas os conflitos os desafetos partilham os mesmos espaccedilos ordenados e apaziguados
pelas convenccedilotildees pelas normas Agravequele que natildeo se sente adequado ao pensamento dominante
resta o desconforto e a dificuldade de tentar estabelecer uma vida autecircntica Por isso a noccedilatildeo
de koinoniacutea vai se revelar fundamental para quem como o sophoacutes busca realizar uma praacutexis
voltada para um modo agradaacutevel de vida Essa foi a maneira que Epicuro encontrou de
escapar das constriccedilotildees dos espaccedilos puacuteblicos para pensar ambientes e grupos menores onde a
autaacuterkeia e a eleutheriacutea pudessem ser exercitadas aproximando o homem de seu sentido
natural de existir
Ao refletir sob a coexistecircncia em comunidades agremiaccedilotildees ou outras formas de
pequenas sociedades Epicuro considera que eacute a afinidade no modo de viver e de pensar que
permite realizar um modelo de convivecircncia mais confortaacutevel e natural E isso remete para
outro aspecto ldquoa comunidade (koinoniacutea) de amigos (phiacuteloi) epicuristas se tornou possiacutevel
graccedilas agrave Philiacutea entendida com o princiacutepio de movimento e de accedilatildeordquo (SILVA 2015 p 252)
Ou seja eacute em torno da amizade que Epicuro imagina ser possiacutevel a vida em comum e de
maneira a alcanccedilar um sentimento de acordo (homologiacutea) e equiliacutebrio Dioacutegenes de Œnoanda
nos fornece um testemunho que nos permite imaginar esse projeto epicurista de vida em
comunidade
() todas as coisas seratildeo plenas de justiccedila e de amor muacutetuo e natildeo haveraacute necessidade de fortificaccedilotildees ou de leis e de todas as coisas que noacutes criamos por causa dos outros E quanto ao necessaacuterio proveniente da agricultura como noacutes natildeo teremos escravos nesse tempo uma vez que [noacutes mesmos vamos arar] e cavar e manter os [ e] desviaremos os coacuterregos e assistiremos [] ndash e essas [atividades] seratildeo interrompidas de acordo com a
51 A escola ou o Jardim de Epicuro Ver nota 11 da introduccedilatildeo 52 MC 36 37 38
135 praacutetica contiacutenua e partilhada da filosofia pois os [trabalhos] agriacutecolas nos [forneceratildeo] as coisas das quais nossa natureza tem necessidade (Œno fr 56 I-II)53
Justiccedila e equiliacutebrio satildeo para Epicuro possiacuteveis apenas no contexto de agrupamentos
reduzidos de pessoas reunidas pelo acordo de pensamento No Jardim natildeo satildeo as leis nem o
noacutemos que regula as relaccedilotildees entre os homens Se na cidade isso estaacute ligado ao
estabelecimento de relaccedilotildees de forccedila e poder em koinoniacutea ldquoa justiccedila eacute a mesma para todos
pois representa uma espeacutecie de vantagem reciacuteproca nas relaccedilotildees dos homens uns com os
outrosrdquo (DL X 151)54 Daiacute Epicuro abdicar da convenccedilatildeo da poliacutetica pois postula que as
relaccedilotildees estabelecidas no interior do Jardim satildeo baseadas na conveniecircncia muacutetua (opheacuteleia)
A igualdade (isonomia) eacute regida pelo principio da philiacutea a partir do qual se estabelece um
acordo um pacto (syntheacuteke)55 permitindo uma coexistecircncia equilibrada justa e agradaacutevel
Reflexo disso eacute que Epicuro natildeo fazia distinccedilatildeo no Jardim entre homens livre e escravos e
tambeacutem permitia agraves mulheres participarem como membros da comunidade Esse equiliacutebrio eacute
buscado a partir de uma afinidade do pensar entre pessoas que se percebem e se compreendem
a partir dos mesmos valores Por isso se dizer ldquoum saacutebio soacute pode ser reconhecido por outro
saacutebiordquo56 e ldquonenhum saacutebio eacute mais saacutebio que outrordquo (DL X 119)57
No testemunho de Œnoanda nota-se a disposiccedilatildeo para fazer dessa comunidade de
amigos uma organizaccedilatildeo autossustentaacutevel por meio de um trabalho coletivo tornaacute-la dentro
do possiacutevel autossuficiente e liberta de dependecircncias externas E isso estaacute relacionado com o
exerciacutecio da liberdade Quanto mais exerce sua independecircncia mais livre o homem estaacute para
se organizar a partir de valores eacuteticos O limite do que deve ser produzido eacute dado pela proacutepria
necessidade natildeo sendo buscada a sobrepujanccedila A natureza daacute a medida para as accedilotildees e
define a praacutexis adequada agrave vida em koinoniacutea
Outro aspecto a se destacar eacute que certa vida social passa a ter relevo nesse tipo de
organizaccedilatildeo Perceba-se no relato o destaque dado agrave ldquopraacutetica contiacutenua e partilhada da
filosofiardquo Trata-se daqueles momentos em que os phiacuteloi investigam a phyacutesis para pensar as
53 () toutes choses seront pleines de justice et drsquoamour mutuel e il nrsquoy aura pas besoin de fortifications ou de lois et de toutes ces choses que nous fabriquons agrave cause des autres Et quant au neacutecessaire provenant de lrsquoagriculture comme nous nrsquoaurons pas drsquo[esclaves agrave ce moment] ndash car en effet [nous labourerons nous-mecircmes] et becirccherons et garderons les [et] deacutetournerons les cours drsquoeau et veillerons [] ndash et de telles [activiteacutes] interrompront selon le besoin la pratique continue et partageacutee de la philosophie car les [travaux] agricoles nous [fourniront] les choses dont notre nature a besoin 54 Τὸ δίκαιον τὸ αὐτόmiddot συμφέρον γάρ τι ἦν ἐν τῇ πρὸς ἀλλήλους κοινωνίᾳmiddot 55 MC XX XXIII 56 Us 226 57 Οὐκ εἶναί τε ἕτερον ἑτέρου σοφώτερον
136 questotildees da vida meditam em conjunto sobre a natureza e as finalidades que o homem a partir
dela acredita serem fundamentais para a realizaccedilatildeo da makariacuteos zecircn Nesse sentido no
Jardim o exerciacutecio da filosofia eacute identificado ao exerciacutecio da philiacutea Sendo composta por
pessoas que compartilham um modo de compreensatildeo da realidade e visam um fim de acordo
com a natureza a convivecircncia fortalece os viacutenculos e permite desfrutar do bem que eacute a
amizade e com ela a ataraxiacutea a seguranccedila o prazer a liberdade
343 ndash A philiacutea
O atomismo epicurista vecirc no desvio atocircmico a possibilidade de choques que tanto
podem afastar outros aacutetomos e levar ao desagrupamento de corpos quanto podem resultar na
uniatildeo por afinidade de tamanho e forma dando origem a novos corpos ou resultando em
aumento de aglomerados jaacute existentes Essa mesma analogiacutea tambeacutem norteia a concepccedilatildeo de
Epicuro com relaccedilatildeo agrave philiacutea Eacute em torno da afinidade do compartilhamento dos mesmos
interesses e opiniotildees que os homens se agrupam Isso nos remete para a adoccedilatildeo de um
referencial physioloacutegico para justificar as relaccedilotildees de amizade A philiacutea58 para Epicuro eacute um
fenocircmeno natural que se estabelece meio ao reconhecimento no outro de um acordo no pensar
com relaccedilatildeo agrave compreensatildeo da realidade ao entendimento quanto agrave finalidade da vida e ao
modo como realizaacute-la
Pela primeira vez o princiacutepio que reunia os membros dessa sociedade natildeo era nem religioso nem social nem mesmo poliacutetico Essa palavra [amizade] desde entatildeo designa outro conceito Isso eacute ela exprime uma relaccedilatildeo eacutetica e um comportamento livremente escolhido por homens que se reconhecem iguais e fundam essa igualdade tatildeo somente sobre o fundamento de seu ser individual e de sua comum condiccedilatildeo humana (DIANO 1976)59
Para Epicuro a philiacutea eacute manifestaccedilatildeo da natureza e nisso ele ecoa uma tradiccedilatildeo jaacute
verificada em Empeacutedocles de Agrigento60 Nos versos de sua filosofia traacutegica61 encontramos a
polifonia do pensamento de preacute-socraacuteticos que tentaram explicar a totalidade existente
58 42 48 56 68 76 245 (XL) 261 (XII) 59 DIANO C Eacutepicure la philosophie du plaisir et la socieacuteteacute des amis Conferecircncia reunida em Eacutetudes Philosophiques 1976 n 2 p 173-186 (apud FRAISSE J-Claude PHILIacuteA La notion drsquoamitieacute dans la philosophie antique Paris Vrin 1984 p 288) 60 Segundo doxografia colhida por Dioacutegenes Laeacutercio teria nascido em Agrigento (Aacutecragas) na Siciacutelia e vivido por volta de 484 ndash 424 aC Meacutedico e orador escreveu dois poemas em jocircnico Sobre a Natureza e Purificaccedilotildees Deles poucos fragmentos foram conservados ateacute nossos dias 61 Para Nietzsche uma marca da filosofia de Empeacutedocles eacute o ldquoextraordinaacuterio pessimismo mas um pessimismo ativo e natildeo quietistardquo NIETZSCHE Friedrich Preleccedilotildees sobre a Histoacuteria da Filosofia Os Preacute-Socraacuteticos Satildeo Paulo Nova Cultural Col Os Pensadores P 346-353
137 recorrendo agrave mesma perspectiva imanente que vai influenciar o pensamento epicurista No
poema Sobre a Natureza (perigrave physeos) o fogo de Heraacuteclito a aacutegua de Tales a terra de
Xenoacutefanes e ar de Anaxiacutemenes se encontram como ingredientes que vatildeo constituir a phyacutesis a
partir de um movimento provocado - natildeo por uma inteligecircncia ou por uma divindade62 - mas
por um suceder de forccedilas contraacuterias o Amor e o Oacutedio E isso vai de certa forma moldar
juntamente com a concepccedilatildeo atomiacutestica da realidade a compreensatildeo epicurista a respeito das
relaccedilotildees humanas
Em Empeacutedocles as referecircncias para pensar esse aspecto partem da mitologia que nos
conta que Filotes (Φιλότης) era um ser que personificava a amizade a afeiccedilatildeo a uniatildeo Seu
avesso era Neikoacutes (Νεικός) que experimentava sua existecircncia no sentido contraacuterio
provocando a intriga suscitando o oacutedio causando o afastamento Esses personagens trazem
ateacute noacutes o sentido daquilo que pode se ligar se agrupar ou por outro lado se desfazer se
separar Nesse caminho Filotes e Neikoacutes ou Amor e Oacutedio satildeo pensadas por Empeacutedocles
como forccedilas ou e energias de atraccedilatildeo e repulsatildeo responsaacuteveis pelo movimento dos elementos
constitutivos da realidade Em dado momento eles se agrupam convergem dando origem agrave
diversidade das coisas em outro satildeo apartados desfazendo os enlaces que davam formas aos
que se uniam por afinidade ldquoEstes quatro satildeo tudo o que haacute cada um se entranhando no outro
E ao misturar-se variedade ao mundo dandordquo (KRS 355)63 Essas mudanccedilas de estados se
produzem por alternacircncia dessas duas forccedilas num ciclo que se daacute desde sempre
acompanhando a eternidade desses elementos
Com isso Empeacutedocles postula uma phyacutesis onde natildeo haacute nascimento e morte para as
coisas mas processos de transformaccedilatildeo que geram a partir de unidades ou raiacutezes a
multiplicidade e dessa por separaccedilatildeo volta-se ao uno Dos quatros elementos fundamentais
(aacutegua fogo terra e ar) por combinaccedilatildeo e agrupamento engendrados como dito pela accedilatildeo do
Amor daacute-se a composiccedilatildeo da diversidade do que reside na realidade No sentido inverso pela
forccedila do Oacutedio os compostos se corrompem liberando seus constituintes baacutesicos e permitindo
que voltem a buscar harmonia na philiacutea com outros semelhantes Esse contraste dramaacutetico
embeleza a poesia empedocliana e remete para as questotildees de vivecircncias de amizades e
intrigas de uniotildees e afastamentos de equiliacutebrio e conflitos sobre as quais Epicuro tematiza
Se a philiacutea eacute compreendida como um movimento natural de aproximaccedilatildeo segundo a
afinidade entatildeo a amizade natildeo eacute definida pelas convenccedilotildees nem por modelos sociais
62 Platatildeo Leis X 889 b (DK 31 a 48) 63 KRS 355 (G S Kirk J E Raven M Schofield) Essa traduccedilatildeo consta em KENNY Anthony Uma Nova Histoacuteria da Filosofia Ocidental 2 ed Satildeo Paulo Loyola 2011 Vol I p46
138 organizados Ela pressupotildee liberdade para escolher em funccedilatildeo de uma finalidade que eacute a vida
prazerosa Eacute nas relaccedilotildees estabelecidas a partir de uma vontade livre e sem o interesse de
assenhorar a vontade do outro mas movida por um desejo natural de afinidade e prazer que o
sophoacutes experimenta uma fonte de satisfaccedilatildeo A importacircncia da amizade na filosofia epicurista
estaacute na sua relaccedilatildeo com a realizaccedilatildeo da felicidade do saacutebio Por meio da philiacutea ele edifica
laccedilos que constituem fonte de bem-estar Eis porque ldquodentre as coisas que a sabedoria
proporciona para a felicidade da vida inteira a amizade eacute em muito a maior delasrdquo (SV 13)64
Essa relaccedilatildeo entre amizade e natureza que pode ser verificada nesse estado de bem-
estar ou de equiliacutebrio implica em uma praacutexis orientada pela conveniecircncia muacutetua (opheacuteleia)
pois eacute nela que a amizade tem iniacutecio (SV 23) Esse aspecto quando interpretado a partir da
noccedilatildeo de um utilitarismo negativo aplicado agraves relaccedilotildees pode encetar a equivocada ideia de
um uso explorador do outro o que foge ao escopo eacutetico epicuacutereo marcado pela isonomia e
pela justiccedila Por isso cabe pensar essa conveniecircncia como um interesse autecircntico com relaccedilatildeo
ao amigo e no sentido de ambos obterem proveito reciacuteproco dessa amizade Nesse sentido a
opheacuteleia nos remete para uma concepccedilatildeo de solidariedade de correspondecircncia a partir de
interesses semelhantes e compartilhados Por isso
A philiacutea e a opheacuteleia satildeo fenocircmenos naturais circunscritos ao exerciacutecio da conduta humana poreacutem do ponto de vista epicuacutereo eles soacute se efetivam segundo condiccedilotildees especiacuteficas que natildeo encontramos em meio a qualquer agregado humano A sociabilidade humana enquanto fenocircmeno natural natildeo eacute suficiente para garantir o pleno exerciacutecio da philiacutea e da opheacuteleia (SILVA 2003 p 90)
Se o relacionamento com pessoas que nos levam a experimentar sentimentos de
equiliacutebrio e contentamento eacute uma necessidade natural do homem entatildeo somente vivendo e
filosofando entre amigos eacute possiacutevel realizar uma praacutexis que inscreve a felicidade no modo de
viver do sophoacutes Nesse sentido as escolhas feitas devem ter em mira essa perspectiva A
philiacutea deve ser buscada entre aqueles com quem haja acordo no pensar e possibilidade de
homologiacutea na relaccedilatildeo e afinidade de sentimentos Nesse contexto eacute possiacutevel desenvolver e
compartilhar um loacutegos relacionado a um modo de vida de acordo com a natureza
Meio a isso outro termo ganha importacircncia em todo esse processo asphaacuteleia65
Epicuro usa essa palavra no sentido de seguranccedila proteccedilatildeo confianccedila e se refere agrave
necessidade de ter preservada sua tranquilidade e seu bem-estar Ele lembra que ldquoalguns
homens procuram tornar-se famosos e ilustres pensando que desse modo garantiriam para si
64 Ὧν ἡ σοφία παρασκευάζεται εἰς τὴν τοῦ ὅλου βίου μακαριότητα πολὺ μέγιστόν ἐστιν ἡ τῆς φιλίας κτῆσις 65 MC 7 13 14 28
139 mesmos seguranccedila diante dos homens restantesrdquo (DL X 141 VII)66 E que ldquopara conseguir
seguranccedila em relaccedilatildeo a outros homens a instituiccedilatildeo do poder e da realeza deve ser incluiacuteda
entre os bens conforme a natureza sempre que por meio dessa instituiccedilatildeo os homens possam
obter aquela seguranccedilardquo (DL X 141 VI)67 Ou seja ele ateacute coloca esses modos de obtenccedilatildeo
de seguranccedila como vaacutelidos e necessaacuterios mas para quem vive na cidade meio aos valores e
opiniotildees da poacutelis Mas para quem vive em koinoniacutea no Jardim ou em outra forma de
comunidade fundada sobre o princiacutepio da philiacutea essa seguranccedila resulta de uma postura eacutetica
que perpassa todas essas relaccedilotildees Eacute a amizade que proporciona asphaacuteleia e com isso
tranquilidade e quietude diante do temor relativo a condutas agressivas e violentas Isso eacute
para Epicuro mais importante que outras formas de proteccedilatildeo buscadas pelos homens para
preservar sua paz porque estaacute ligado agrave conveniecircncia muacutetua ao agir guiado pela sabedoria e
dentro dos limites da phyacutesis
O que impede accedilotildees danosas ao outro natildeo eacute a norma mas a convicccedilatildeo de que aquilo
tambeacutem causa mal a quem fez Trata-se de um princiacutepio eacutetico realizado de dentro para fora
da alma para a accedilatildeo Desse modo a conduta do saacutebio eacute modulada e define uma praacutexis que
busca preserva e desenvolve a philiacutea e a vida em comunidade Afinal o exerciacutecio da amizade
estaacute relacionado ao da proacutepria felicidade ldquode todo os bens que a sabedoria proporciona para
produzir a felicidade por toda a vida o maior sem comparaccedilatildeo eacute a conquista da amizaderdquo
(DL X 148 XXVII)68
35 ndash Pragmateiacutea e sabedoria praacutetica
A noccedilatildeo de pragmateiacutea epicurista permite compreender a filosofia como exerciacutecio de
uma sabedoria fundamentada na phyacutesis Isso nos remete para pensar o uso praacutetico de um saber
tendo em vista a realizaccedilatildeo de uma vida feliz (makariacuteos zecircn) O desafio eacute colocar para o
homem um conhecimento que possa ser-lhe uacutetil para essa finalidade eacute apresentar uma
filosofia que aja no loacutegos e encete uma disposiccedilatildeo (diaacutethesis) para lidar com as situaccedilotildees
comuns a partir de um modelo de compreensatildeo da realidade que permita conferir mais
naturalidade ao modo de viver
66 Ἔνδοξοι καὶ περίβλεπτοί τινες ἐβουλήθησαν γενέσθαι τὴν ἐξ ἀνθρώπων ἀσφάλειαν οὕτω νομίζοντες περιποιήσεσθαι ὥστε 67 Ἕνεκα τοῦ θαρρεῖν ἐξ ἀνθρώπων ἦν κατὰ φύσιν ἀρχῆς καὶ βασιλείας ἀγαθόν ἐξ ὧν ἄν ποτε τοῦτο οἷός τrsquo ᾖ παρασκευάζεσθαι 68 Ὧν ἡ σοφία παρασκευάζεται εἰς τὴν τοῦ ὅλου βίου μακαριότητα πολὺ μέγιστόν ἐστιν ἡ τῆς φιλίας κτῆσις
140 Sob essa perspectiva Epicuro confere agrave vida cotidiana estatuto de tema filosoacutefico e
em torno de saber como realizaacute-la de maneira agradaacutevel pensa uma pragmateiacutea orientada
para fazer o homem experimentar um modo de ser voltado para a autaacuterkeia e para o
equiliacutebrio Um exemplo disso pode ser encontrado na proacutepria maneira de viver de Epicuro
Ela pelo que ficamos sabendo pelos testemunhos de Dioacutegenes Laeacutercio eacute a expressatildeo de um
modo de ser desenvolvido em torno da alegria da tranquilidade da simplicidade da amizade
aspectos que remetem para a busca da harmonia da alma e do corpo
() nosso filoacutesofo apresenta testemunhos suficientes de seus sentimentos insuperavelmente bons para com todos a paacutetria que o honrou com estaacutetuas de bronze os amigos cujo nuacutemero era tatildeo grande que natildeo podiam ser contados em cidades inteiras todos aqueles que conviviam intimamente com o filoacutesofo ligados a ele pelo viacutenculo do fasciacutenio de sua doutrina como se fosse uma sereia (DL X 9)69
A vida de Epicuro retratada como uma liccedilatildeo de realizaccedilatildeo de sua proacutepria doutrina daacute-
nos indicativos de que viver segundo um saber filosoacutefico eacute a atividade que caracteriza o modo
de ser do saacutebio E isso natildeo estaacute restrito ao mestre do Jardim amigos e disciacutepulos satildeo
lembrados pelo mesmo motivo Um deles eacute Metrodoro ldquoque foi excelente em tudordquo e ldquose
mostrou imperturbaacutevel ao enfrentar os tormentos e a morterdquo (DL X 23)70 A partir de
exemplos desse tipo pode-se notar a relaccedilatildeo entre a sabedoria e a imperturbabilidade
(ataraxiacutea) o que remete para a questatildeo dos prazeres ligados agrave vida agradaacutevel (zecircn hedeacuteos)
Como jaacute procuramos mostrar os prazeres satildeo fundamentais para a realizaccedilatildeo do homem
poreacutem a felicidade natildeo consiste na repleccedilatildeo de todos os desejos mas somente daqueles
ligados ao bem-estar e ao equiliacutebrio E isso implica na adoccedilatildeo de limites para o desejar pois
uma alma desregrada pelo asseacutedio das vontades natildeo se sossega Essa medida embora tambeacutem
preconizada por outras correntes filosoacuteficas tem em Epicuro particularidades que definem sua
pragmateiacutea
De modo geral haacute uma crenccedila em que a natureza natildeo coloca limitaccedilotildees aos prazeres
Competiria agraves convenccedilotildees dar o pudor e as constriccedilotildees aos impulsos dos homens Por traacutes
dessa perspectiva tem-se a ideia de que a forccedila eacute a lei natural e o mais forte pode dominar e
satisfazer suas vontades em detrimento do mais fraco Dessa maneira quando as normas natildeo
bastam a phyacutesis eacute apontada como justificativa mesma para o desregramento para a imposiccedilatildeo
da violecircncia para o gozo sem comedimento Assim caberia agrave educaccedilatildeo agrave cultura agrave religiatildeo
69 () τῶι γὰρ ἀνδρὶ μάρτυρες ἱκανοὶ τῆς ἀνυπερβλήτου πρὸς πάντας εὐγνωμοσύνης ἥ τε πατρὶς χαλκαῖς εἰκόσι τιμήσασα οἵ τε φίλοι τοσοῦτοι τὸ πλῆθος ὡς μηδ ἂν πόλεσιν ὅλαις μετρεῖσθαι δύνασθαι οἵ τε γνώριμοι πάντες ταῖς δογματικαῖς αὐτοῦ σειρῆσι προσκατασχεθέντες 70 Μαθητὰς δὲ ἔσχε πολλοὺς μέν () ἦν δὲ καὶ ἀκατάπληκτος πρός τε τὰς ὀχλήσεις καὶ τὸν θάνατον
141 agrave poliacutetica ao noacutemos o papel de limitar os impulsos naturais a partir de noccedilotildees de bem ou mal
certo ou errado usadas para legitimar ou proibir as accedilotildees
Mas para Epicuro haacute um equivoco nessa maneira de compreender a natureza A
phyacutesis natildeo eacute fonte de desregramento mas um modelo para pensar justamente as
possibilidades e as interdiccedilotildees para a conduta do homem A concepccedilatildeo ligada agrave necessidade
de satisfazer a todos os desejos e a qualquer custo se fundamenta em opiniatildeo a phyacutesis natildeo
determina nem viacutecios nem virtudes A disposiccedilatildeo para agir tanto para o bem quanto para o
mal decorre da compreensatildeo que temos da natureza e das finalidades inteligidas a partir da
sua investigaccedilatildeo e que relacionamos agrave realizaccedilatildeo do homem Em torno desse entendimento
pode-se estabelecer uma indissociaccedilatildeo entre a pragmateiacutea e a sabedoria elas visam direcionar
o agir para os limites do natural e natildeo do que eacute imposto pela opiniatildeo Assim o saacutebio orienta
sua praacutetica de vida por um saber ligado ao estudo da natureza tanto quanto faz dessa ocupaccedilatildeo
um modo de viver relacionado ao exerciacutecio da proacutepria ataraxiacutea71 Ou seja viver e filosofar
satildeo atividades inseparaacuteveis na pragmateiacutea do sophoacutes que estaacute permanentemente buscando
estabelecer um eacutethos circunscrito agraves finalidades pensadas a partir da sua compreensatildeo da
natureza
Nesse sentido ao contraacuterio do que acontece quando se toma como referecircncia as
opiniotildees natildeo haacute a necessidade de afastar o homem da natureza para ldquodomarrdquo ou calar seus
desejos ldquoNatildeo se deve violentar a natureza mas persuadi-la noacutes a persuadiremos satisfazendo
os desejos naturais e necessaacuterios caso natildeo causem danos mas os que causam danos
refutando-os arduamenterdquo (SV 21)72 Assim quanto mais o saacutebio se dedica agrave investigaccedilatildeo da
phyacutesis mais pode se dar conta de que a desmesura estaacute ligada agrave falsa ideia a respeito do que
proporciona felicidade e que a sabedoria consiste em compreender a natureza dos desejos e
vivecirc-los em funccedilatildeo do equiliacutebrio que podem proporcionar Desse modo o que precisa ser
calado satildeo os discursos (loacutegos) que pensam a realizaccedilatildeo da vida a partir de valores e fins
contraacuterios aos postulados pela physiologiacutea Ao pensar a pragmateiacutea como exerciacutecio de uma
sabedoria dirigida para dar mais naturalidade agrave existecircncia Epicuro projeta a realizaccedilatildeo do
homem em um modo de vida distanciado das opiniotildees que levam a ldquoviolentar a naturezardquo
O sentido praacutetico da filosofia epicurista tem como finalidades a experiecircncia da
autaacuterkeia do equiliacutebrio e do prazer Eacute em torno desse objetivo que a physiologiacutea ao conduzir
71 Em DL X 37 Epicuro relaciona a atividade de investigaccedilatildeo da natureza a um modo de vida calmo tranquilo Ver nota 9 do capiacutetulo I 72 Οὐ βιαστέον τὴν φύσιν ἀλλὰ πειστέονmiddot πείσομεν δὲ τὰς ἀναγ-καίας ἐπιθυμίας ἐκπληροῦντες τάς τε φυσικὰς ἂν μὴ βλάπτωσι τὰς δὲ βλαβερὰς πικρῶς ἐλέγχοντες
142 a uma compreensatildeo sobre os modos de ser da natureza permitindo inteligir a partir disso um
modelo de conduta para o homem vai ser o fundamento para a sabedoria Eacute da phyacutesis que
adveacutem um paradigma a partir do qual eacute possiacutevel pensar uma pragmateiacutea realizaacutevel como
praacutetica de vida condizente com o saber a respeito da natureza Nesse escopo o physiologoacutes
precisa ldquoler nas leis do universo as condiccedilotildees e os limites da felicidade humanardquo (FRAISSE
1984 p 316) e estabelecer um eacutethos conforme essa leitura Como ldquoa natureza eacute o princiacutepio de
nossa limitaccedilatildeo tanto quanto nossa felicidaderdquo (Idem p 319) eacute fundamental ancorar na
compreensatildeo physioloacutegica os valores que vatildeo guiar o modo de ser do saacutebio Isso remete para
a necessidade de uma atividade permanente de espelhamento de uma maneira de entender a
natureza e as finalidades da vida nas condutas do homem O caminho da sabedoria eacute o da
realizaccedilatildeo da pragmateiacutea um exerciacutecio desenvolvido ao longo de toda a vida e que se estende
do modo de pensar agrave maneira de viver Por isso Epicuro diz
Natildeo eacute o jovem que pode ser felicitado mas o anciatildeo que viveu belamente (bem) pois o jovem muacuteltiplo pela plenitude de sua idade comete erros e o anciatildeo como se fosse num porto estaacute ancorado pela velhice depois de ter trancado (fechado) com alegria serena (segura) aqueles dentre os bens antes vistos com desesperanccedila (SV 17)73
Essa vida bela que caracteriza o anciatildeo ou o saacutebio eacute reflexo da disposiccedilatildeo para buscar
os bens que conferem seguranccedila (asphaacuteleia) ao modo de viver A philiacutea a autaacuterkeia a
eleutheriacutea a sabedoria satildeo finalidades que tanto permitem pensar um sentido para a
pragmateiacutea epicurista quanto definem um direcionamento praacutetico para o saber physioloacutegico
Investigar a phyacutesis pensar a partir disso sobre a realidade histoacuterica (poliacutetica religiatildeo cultura
normas etc) que envolve a vida discernir nesse contexto o que pode conferir mais
naturalidade agrave existecircncia e estabelecer praacuteticas que aproximem o homem do seu sentido de
realizaccedilatildeo satildeo atividades que remetem para um meacutetodo de consecuccedilatildeo de sabedoria pensada
para ser possiacutevel exequiacutevel O saacutebio epicurista eacute aquele que valendo-se do que conhece sobre
a phyacutesis pratica uma artesania ou um cuidado sobre si mesmo a partir de exerciacutecios que visam
espelhar na alma essa leitura da natureza Eacute em torno da percepccedilatildeo de que a felicidade
depende de um trabalho sobre si mesmo por meio de meditaccedilatildeo e de praacutexis que Epicuro
concebe toda accedilatildeo dentro dos limites da natureza como um exerciacutecio de sabedoria e faz da
vida feliz a finalidade das accedilotildees do saacutebio Com isso busca-se projetar o paradigma da
natureza na alma e daiacute para o modo de viver
73 Οὐ νέος μακαριστὸς ἀλλὰ γέρων βεβιωκὼς καλῶςmiddot ὁ γὰρ νέος ἀκμῇ πολὺς ὑπὸ τῆς τύχης ἑτεροφρονῶν πλάζεταιmiddot ὁ δὲ γέρων καθάπερ ἐν λιμένι τῷ γήρᾳ καθώρμικεν τὰ πρότερον δυσελπιστούμενα τῶν ἀγαθῶν ἀσφαλεῖ κατακλείσας χάριτι
143 Vemos que a conduta do saacutebio eacute construiacuteda em torno de um pensamento eacutetico
fundamentado na natureza Isso ao mesmo tempo em que nos remete para pensar a felicidade
como uma finalidade inscrita no campo do imanente tambeacutem coloca diante do homem a
responsabilidade pela realizaccedilatildeo de uma vida coerente com esse teacutelos Se a physiologiacutea
permite uma leitura da natureza em que ele meio agrave necessidade e ao acaso pode compreender
o poder que tem para recusar o papel de conformado e temeroso e escolher o protagonismo de
sua proacutepria histoacuteria a pragmateiacutea vai colocar em exerciacutecio essa forma physioloacutegica
compreensatildeo da vida resultando em uma accedilatildeo livre e autecircntica E isso mesmo em um
contexto de tirania da impossibilidade de participar da vida poliacutetica ou outras formas de
interdiccedilotildees ou repressotildees que podem afetar a vida do homem Assim
() o saacutebio eacute aquele que age sempre a partir do seu poder de escolha e rejeiccedilatildeo e jamais de sujeiccedilatildeo Sua referecircncia uacutenica eacute a compreensatildeo dos limites e das possibilidades da natureza-realidade na qual vive e exercita-se na realizaccedilatildeo de uma vida apraziacutevel em cada ato ou deliberaccedilatildeo que dele dependa (SILVA 2003 p 87)
Para Epicuro a eacutetica eacute um principio que o saacutebio desenvolve dentro de si mesmo ela eacute
da ordem do indiviacuteduo e pode ser cultivada a despeito de modelos socialmente colocados para
todos Para ele o saacutebio deve buscar realizar uma existecircncia eacutetica e para isso toda conduta
precisa se configurar como accedilatildeo cujo princiacutepio estaacute em quem age eacute atitude gerada segundo a
autaacuterkeia guiada pela vontade esclarecida liberta coerente com a proacutepria compreensatildeo
acerca da realidade Trata-se de estabelecer um comportamento visando os fins de acordo com
a natureza e natildeo mais procurando ser a expressatildeo dos valores cristalizados pelas opiniotildees
vazias pela religiatildeo pelas convenccedilotildees da poacutelis Epicuro entende que a vida natildeo precisa mais
ser pensada como projeto ligado ao miacutetico-religioso ela eacute concebida como fenocircmeno da
phyacutesis A partir dessa compreensatildeo o saacutebio relaciona o que pode ser vivido agrave noccedilatildeo de
construccedilatildeo de criaccedilatildeo de elaboraccedilatildeo de um eacutethos definido por escolhas voltadas para o
agradaacutevel para a vida frugal e entre amigos
351 ndash Saber para a vida
Epicuro exorta agrave praacutetica filosoacutefica mas natildeo como manifestaccedilatildeo de erudiccedilatildeo nem nos
moldes de uma disciplina preocupada com a sophiacutea procurando a aleacutetheia ou conduzindo a
uma episteme No Jardim filosofar consiste em direcionar continuamente o pensamento para
o exame da vida que se coloca diante dos sentidos Busca-se ensinar uma maneira de pensar a
144 realidade sem ter de recorrer agraves crenccedilas aos mitos agraves opiniotildees vazias agraves explicaccedilotildees
concebidas fora do campo das experiecircncias humanas Afinal entende-se que a liberdade da
imaginaccedilatildeo aliada agrave retoacuterica e agrave insatisfaccedilatildeo quanto agraves respostas sobre o sentido da vida datildeo
asas para um loacutegos que se lanccedila em um vocirco para aleacutem dos limites da phyacutesis Nos mitos
projetam-se causas finalidades e uma realidade concebiacutevel mas inelutaacutevel para o homem
sujeito agraves normas aos modelos de virtudes e agraves expectativas de conduta que lhe privam de um
sentido autecircntico de realizaccedilatildeo Desse modo ele tem a alma adoecida pelo medo pelo
desequiliacutebrio pela imposiccedilatildeo da submissatildeo males que afastam a felicidade Se mesmo nos
momentos adversos Epicuro pratica a alegria ao relembrar momentos felizes eacute porque soube
contrapor a esse loacutegos que adoece aprisiona assenhora despotencializa outro que partindo
de uma investigaccedilatildeo da phyacutesis busca a realizaccedilatildeo humana dentro daquilo que a natureza
circunscreve Eacute esse sentido de buscar realizar uma vida saacutebia que vai definir os contornos da
pragmateiacutea epicurista
No passo 35 da Carta a Heroacutedoto o termo pragmateiacutea74 tem sido traduzido como
sistema (CURY 2008 CONCHE 1977)75 ou como o conjunto dos escritos de Epicuro
(SOLOVINE 1965 SALEM1982)76 Em ambos os casos faz-se referecircncia a uma doutrina a
um corpus de conhecimento ligado agrave compreensatildeo da natureza Mas essa perspectiva parece-
nos malgrado as limitaccedilotildees impostas agraves traduccedilotildees bem aqueacutem de expressar o conjunto de
inter-relaccedilotildees entre conhecimento (gnoacutesis) physiologiacutea eacutetica sabedoria e exerciacutecios (aacuteskesis)
estabelecidas na dinacircmica de realizaccedilatildeo de uma vida de acordo com a natureza como estamos
tentado mostrar nesse trabalho Por isso cabe pensar um sentido mais amplo e adequado para
o termo de maneira a poder traduzir o escopo da filosofia epicurista
Quando observamos a etimologia da palavra verificamos que o termo pragmateiacutea77
pode tambeacutem se referir agrave maneira como tratamos de algo ao cuidado que dedicamos ao fazer
alguma coisa Isso leva em conta a busca pela realizaccedilatildeo de um objetivo para o qual eacute preciso
se ocupar se aplicar Nesse sentido o termo remete para a procura por alcanccedilar uma
finalidade e tambeacutem pode fazer referecircncia a afazeres78 atividades praacuteticas Esse
enquadramento mais abrangente possibilita pensar a filosofia do Jardim sob uma perspectiva
74 DL X 35 77 83 Πραγματεία 75 Ver nota 30 da introduccedilatildeo 76 Maurice Solovine traduz como ldquotudo o que o que eu (Epicuro) escrevi sobre a naturezardquo em Eacutepicure doutrines et maximes Paris Hermann 1965 Jean Salem usa a expressatildeo ldquotoda a mateacuteria (assunto)rdquo em Epicure lettres Paris Nathan 1982 77 Anatole Bailly Op Cit 78 The Online Liddell-Scott-Jones Greek-English Lexicon (httpstephanustlguciedulsjeid=1 acessado em 13 de fevereiro 2019)
145 mais orgacircnica A relaccedilatildeo que se estabelece entre a vida feliz e o cuidado de si entre a
investigaccedilatildeo da natureza e o exerciacutecio da ataraxiacutea entre libertar a alma das opiniotildees vazias e
praticar a frugalidade entre os limites da phyacutesis e a repleccedilatildeo dos desejos naturais permite
inferir um saber que se efetiva justamente como aacuteskesis Eacute a isso que a pragmateiacutea se refere e
como tal procura ser realizada pelo saacutebio
O saber passiacutevel de ser colocado em praacutetica para fazer da vida um exerciacutecio de
contentamento vai ser o constituinte da pragmateiacutea Para o saacutebio poder agir de uma maneira
sensata a partir da phroacutenesis e do logismoacutes e fazer as escolhas e as recusas necessaacuterias para o
seu bem-estar eacute necessaacuterio um conhecimento (gnoacutesis) que lhe permita compreender as
finalidades e os bens relacionados ao gozo de uma existecircncia mais equilibrada
Evidentemente nem sempre eacute possiacutevel uma accedilatildeo racional diante de todas as situaccedilotildees mas o
agir consciente esclarecido vai caracterizar a conduta do saacutebio Por isso quanto mais ele
conhece os modos de ser da phyacutesis mais ele passa a compreender aquilo que estaacute relacionado
a um modo de vida natural e mais ele pode orientar sua conduta para esse teacutelos O
conhecimento sobre a natureza se traduz em um saber para a vida na medida em que eacute a partir
dessa investigaccedilatildeo que o saacutebio vai poder meditar e estabelecer uma praacutexis direcionada para
uma aproximaccedilatildeo com a natureza Assim a physiologiacutea se identifica com a pragmateiacutea na
medida em que busca apresentar um conhecimento que sirva para fazer da vida do homem um
exerciacutecio de autorrealizaccedilatildeo Nesses termos poder-se-ia falar de um discurso sapiencial onde
o conhecimento se converte em uma disposiccedilatildeo para a praacutetica de uma maneira saacutebia de viver
Nessa perspectiva podemos assinalar o papel da filosofia como sendo o de procurar
descortinar a phyacutesis ateacute onde o pensamento humano alcanccedila conduzindo a um saber que
permita ao homem a tranquilidade diante daquilo que eacute fenomecircnico e a confianccedila (piacutestis)
diante do que pode ser por ele realizado O saacutebio ao entender que a makariacuteos zecircn eacute construiacuteda
na imanecircncia por meio de exerciacutecios permanentes voltados para realizar uma vida katagrave
phyacutesin passa a confiar na possibilidade de ele mesmo ser responsaacutevel por estabelecer os
procedimentos que possam fazecirc-lo experimentar o sentido de uma existecircncia mais plena
Assim
() longe de se limitar a designar uma certeza epistecircmica no estudo dos fenocircmenos fiacutesicos essa piacutestis essa feacute exprime entre outras coisas a seguranccedila que confere ao saacutebio o alegre saber do qual ele goza no instante presente () A ldquofalta de certezardquo (apistiacutea) coloca ao contraacuterio os insensatos ldquona confusatildeo e na incapacidade de ir adianterdquo (SALEM 1994 p 60)
146 Essa atenccedilatildeo dada agrave compreensatildeo da phyacutesis como o ldquoterrenordquo onde a vida feliz pode
ser realizada estaacute ligada agrave necessidade de seguranccedila (asphaacuteleia) Uma referecircncia disso
encontramos na Sentenccedila Vaticana 57 onde se diz que ldquopor causa da incerteza sua vida
inteira seraacute levada agrave confusatildeo e jogada por terrardquo79 Se por um lado Epicuro ao dizer isso
parece estar se referindo a questotildees ligadas agrave amizade onde a apistiacutea pode ser remetida ldquoagrave
traiccedilatildeo agrave infidelidade do amigordquo e a piacutestis pode remeter ao caso em que o ldquoamigo ajudaraacute se a
necessidade vierrdquo (BOLLACK 1975 p 520) de qualquer forma ele estaacute relacionando a
confianccedila ao modo de vida do saacutebio pois natildeo haacute como pensar a tranquilidade o equiliacutebrio a
alegria se a alma estaacute tomada pela inseguranccedila pelo medo pela incerteza seja com relaccedilatildeo
aos outros homens agrave vida em sociedade ou com relaccedilatildeo agraves coisas do ceacuteu A morte os deuses
o aleacutem-vida assim como os acontecimentos que ora se datildeo por necessidade ora por acaso ou
pela accedilatildeo de outrem apontam para a dimensatildeo do desconhecido do imponderaacutevel que
permeia a vida e para o qual devemos estar em condiccedilatildeo de agir com sabedoria Isso implica
em poder recorrer aos ensinamentos physioloacutegicos e aplicaacute-los agraves mais distintas situaccedilotildees
Nesse sentido podemos entender a pragmateiacutea como esse saber que serve para que todos
ldquo() estejam em condiccedilotildees de sustentaacute-los em quaisquer circunstacircnciasrdquo (DL X 35)80 ou
seja que assiste quem precisa se colocar diante do que pode causar apreensatildeo duacutevida
incerteza Essa premecircncia tambeacutem eacute manifesta na Maacutexima 8 onde se fala que natildeo haveria
vantagem em proporcionar seguranccedila com relaccedilatildeo aos afazeres humanos se as coisas do alto
como os fenocircmenos celestes e toda sorte de possibilidade de interpretaccedilotildees que eles suscitam
permanecessem como causas de desassossego
Dessa forma percebemos que a filosofia epicurista eacute elaborada tendo em vista encetar
na alma do saacutebio uma convicccedilatildeo firme (piacutestin beacutebaion) a respeito da natureza como modelo e
espaccedilo para a felicidade do homem E essa convicccedilatildeo estaacute ligada a uma exigecircncia
instrumental pois ldquoaplicando atentamente esta doutrina determinaremos corretamente as
origens da perturbaccedilatildeo e do temor e nos livraremos delesrdquo (DL X 82)81 Eacute preciso aplicar
fazer uso do saber tornaacute-lo praticaacutevel Eacute nesse sentido que a pragmateiacutea pode ser
compreendida como a praacutetica de um saber que orienta a vida em torno de uma eacutetica
fundamentada na physiologiacutea Estamos falando de uma maneira de conduzir o saacutebio a
experimentar no seu vir a ser o sentido daquilo que ele inteligiu ao perquirir a phyacutesis
Investigar meditar e se ocupar por meio de uma praacutexis em estabelecer a partir desse saber
79 ὁ βίος αὐτοῦ πᾶς διrsquo ἀπιστίαν συγχυθήσεται καὶ ἀνακεχαιτισμένος ἔσται 80 () ἵνα παρrsquo ἑκάστους τῶν καιρῶν ἐν τοῖς κυριωτάτοις βοηθεῖν αὑτοῖς δύνωνται 81 ἂν γὰρ τούτοις προσέχωμεν τὸ ὅθεν ὁ τάραχος καὶ ὁ φόβος ἐγίνετο ἐξαιτιολογήσομεν ὀρθῶς καὶ ἀπολύσομεν
147 um modo de ser fundamentado na compreensatildeo de um estado de equiliacutebrio e liberdade
presentes na natureza satildeo atividades que ao mesmo tempo permitem compreender esse
aspecto pragmaacutetico da filosofia e tambeacutem remetem para um conhecimento elaborado tendo
em vista se estender agrave accedilatildeo do saacutebio sobre o mundo e em prol da proacutepria realizaccedilatildeo
Isso nos leva a entender que a pragmateiacutea conduz o sophoacutes a estabelecer com a
natureza e com o saber fundamentado nela uma relaccedilatildeo especiacutefica e fundamental para a
compreensatildeo da filosofia epicurista Ele acredita que a felicidade eacute possiacutevel que ele tem papel
na construccedilatildeo dessa felicidade porque no exerciacutecio de investigar a phyacutesis de orientar seu
modo de viver para uma forma mais natural ele experimenta no dia a dia o equiliacutebrio o
prazer e a liberdade que advecircm de se viver dentro dos limites depreendidos dessa
compreensatildeo da natureza A convicccedilatildeo dele eacute construiacuteda ao exercitar esse conhecimento e
com isso vai percebendo a realizaccedilatildeo de uma vida agradaacutevel na medida em que haacute o
espelhamento desse saber em seu eacutethos E aiacute se verifica o estabelecimento de uma relaccedilatildeo que
natildeo eacute de feacute eacute de confianccedila natildeo eacute adesatildeo a uma concepccedilatildeo fundada nos mitos eacute assimilaccedilatildeo
de um loacutegos fundamentado no imanente Quanto mais ele vive em funccedilatildeo de uma
compreensatildeo ancorada no sensiacutevel mais confia na possibilidade de sua realizaccedilatildeo A
confianccedila ou convicccedilatildeo nesse sentido estaacute ligada agrave percepccedilatildeo de que a vida tem sua
finalidade nela mesma na imanecircncia dos fenocircmenos que a compotildeem e que definem um
sentido para ela e tambeacutem estaacute relacionada agrave compreensatildeo de que a makariacuteos zecircn decorre de
uma postura ativa e protagonista do homem que deve fazer da sua existecircncia um exerciacutecio de
cuidado consigo mesmo
A pragmateiacutea exercitada como teacutechnen tinaacute periacute ton biacuteon enceta a asphaacuteleia que
produz na alma essa disposiccedilatildeo para cada vez mais se distanciar dos mitos das opiniotildees e de
concepccedilotildees que colocam a existecircncia humana como submetida agrave providecircncia ou agrave necessidade
e distante de sua realizaccedilatildeo Se ldquotodo homem sai da vida como se tivesse acabado de nascerrdquo
(SV 60)82 essa brevidade da vida (zecircn) evocada por Epicuro coloca em relevo a premecircncia
de pensar na melhor forma de conduzir nossa realidade histoacuterica A Sentenccedila 7583 sugere que
o tempo pode ser desperdiccedilado e diante da proximidade da morte levar o homem a lamentar
ldquoos bens que passaramrdquo Isso acontece quando se deixa a vida (biacuteos)84 aos sabores da
irracionalidade da desmesura ou quando as vontades ligadas agraves necessidades naturais e
82 Πᾶς ὥσπερ ἄρτι γεγονὼς ἐκ τοῦ ζῆν ἀπέρχεται Preferimos por uma questatildeo de clareza a segunte traduccedilatildeo Tout homme sort de la vie comme srsquoil eacutetait juste neacute (BOLLACK 1975 p 525) 83 Εἰς τὰ παρῳχηκότα ἀγαθὰ ἀχάριστος φωνὴ ἡ λέγουσα τέλος ὅρα μακροῦ βίου Eacute ingrata a voz que diz para os bens que passaram olha o fim de uma vida longa 84 Sobre essa diferenccedila entre zecircn e biacuteos ver nota 150 do capiacutetulo I
148 necessaacuterias satildeo substituiacutedas por desejos artificialmente criados pela cultura da poacutelis Por isso
o saacutebio deve exercitar a confianccedila e a disposiccedilatildeo para transformar a proacutepria existecircncia e viver
segundo seu pensamento
Nessa perspectiva a pragmateiacutea direciona o saacutebio para que medite sobre a natureza
sobre os bens circunscritos aos limites dela e sobre os modos de obtecirc-los Isso implica em
uma praacutexis do pensamento que se estende ateacute o campo das accedilotildees das condutas que estabelece
no mundo e orientam suas relaccedilotildees sociais definindo modos de convivecircncia com os outros A
vida saacutebia eacute definida por esse trabalho essa atividade contiacutenua de procurar sempre
correlacionar os pensamentos e as accedilotildees com um modelo natural de existecircncia Eacute nessa
relaccedilatildeo de aproximaccedilatildeo entre o pensar e a maneira como se viver que a pragmateiacutea nos
aponta para a indissociaccedilatildeo entre o saber physioloacutegico e a eacutetica Ou em temos mais
epicuristas a finalidade da pragmateiacutea eacute fazer com que ldquoo pensamento tendo atingido um
entendimento racional da finalidade do corpo e seus limites e tendo dissipado os temores
relativos agrave eternidade proporcione a vida integralrdquo85 (DL X 145 XX)86
352 - Exerciacutecio eacutetico
No livro VI de Vida e Doutrinas dos Filoacutesofos Ilustres lemos a seguinte passagem
atribuiacuteda a Dioacutegenes de Sinope da escola ciacutenica
Com efeito nada na vida se pode obter sem exerciacutecio e este eacute capaz de sobrepor-se a tudo Eliminados entatildeo os esforccedilos inuacuteteis o homem que escolhe os esforccedilos requeridos pela natureza vive feliz A falta de discernimento para perceber os esforccedilos necessaacuterios eacute a causa da infelicidade humana (DL VI 71)
Essa citaccedilatildeo coloca em relevo uma relaccedilatildeo entre a praacutetica de exerciacutecios e a felicidade
ao mesmo passo em que aponta para a importacircncia da phroacutenesis e do logismoacutes instrumentos
de discernimentos da alma Tal perspectiva tambeacutem se verifica no epicurismo que busca por
meio de uma praacutetica sobre si mesmo o espelhamento na psycheacute de um loacutegos fundamentado na
natureza A aacuteskesis epicurista incide sobre a maneira de pensar e de agir de forma a fazer com
que o saacutebio possa cuidar do seu bem-estar e realizar uma vida bela (kalocircs zecircn) O exerciacutecio de
vida do sophoacutes consiste em uma therapeiacutea para afastar da alma as opiniotildees que adoecem e
85 Traduccedilatildeo de Maacuterio da Gama Kury do texto de Dioacutegenes Laeacutercio com reparos 86 ἡ δὲ διάνοια τοῦ τῆς σαρκὸς τέλους καὶ πέρατος λαβοῦσα τὸν ἐπιλογισμὸν καὶ τοὺς ὑπὲρ τοῦ αἰῶνος φόβους ἐκλύσασα τὸν παντελῆ βίον παρεσκεύασεmiddot
149 viver a partir de uma dieteacutetica orientada para a repleccedilatildeo do que se circunscreve aos desejos
naturais e necessaacuterios Esse cuidado tambeacutem pode ser compreendido pelo prisma de uma
esteacutetica existencial na medida em que um modelo inteligido a partir da natureza eacute adotado
como referecircncia para a definiccedilatildeo do modo de ser do saacutebio Quando ele busca fazer sua vida
corresponder agrave imagem de equiliacutebrio de autaacuterkeia de imperturbabilidade (ataraxiacutea) que
estatildeo presentes na definiccedilatildeo de phyacutesis compreendida em sua totalidade ele estaacute buscando
fazer de seu eacutethos um reflexo do proacuteprio koacutesmos
Daiacute a tendecircncia a se pensar a filosofia epicurista como uma arte (teacutechne) de viver E a
noccedilatildeo de aacuteskesis traduz justamente essa ideia de um trabalho de uma artesania desenvolvida
em torno de fazer da experiecircncia de existir algo que proporcione felicidade E isso eacute atividade
eacute praacutetica contiacutenua de ldquoexperimentar fazer do dia posterior melhor que o anterior ateacute que
estejamos a caminhordquo (SV 48)87 Nesse sentido o homem eacute pensado como o principal agente
de transformaccedilatildeo de sua realidade cabe a ele a responsabilidade dentro do que eacute possiacutevel
sobre o proacuteprio destino Eacute por meio de exerciacutecios sejam de meditaccedilatildeo ou de praacutexis que ele
trabalha na alma uma compreensatildeo de si mesmo e daquilo que ele pode realizar A arte
epicurista consiste em traduzir um conhecimento em um fazer que torne efetiva a experiecircncia
do contentamento do bem-estar da philiacutea da liberdade Por isso a filosofia eacute definida por
Epicuro conforme relato de Sexto Empiacuterico como ldquouma atividade que por meio de discurso
(loacutegois) e raciociacutenio (dialogismoiacutes) proporciona uma vida felizrdquo88 Nesses termos percebe-se
uma concepccedilatildeo de praacutetica filosoacutefica que age no interior da alma e se projeta na forma do saacutebio
compreender o mundo e de se relacionar nele Eacute uma teacutechne concebida para transformar a
maneira de pensar do homem e por extensatildeo transformar sua forma de viver
Trata-se de um trabalho que incide sobre o proacuteprio pensamento e por extensatildeo tem
reflexos na conduta no haacutebito e portanto requer esforccedilo e dedicaccedilatildeo Por isso Epicuro
entende que a sabedoria natildeo estaacute ao alcance de todos Assim como o cuidado com a sauacutede
implica em uma dieteacutetica em haacutebitos voltados para o equiliacutebrio a vida filosoacutefica tambeacutem
demanda atenccedilatildeo uma ocupaccedilatildeo para a qual nem todos se dispotildeem vide os muitos que
preferem viver sob os valores da poacutelis e que vecircem em Alexandre o Grande um modelo de vida
a ser seguido Um fragmento de Dioacutegenes de Œnoanda embora incompleto permite ver
sugerida essa ideia de que nem todo mundo pode vir a ser saacutebio ldquo[] posto que nem todos
tecircm o poder Mais se noacutes o supuseacutessemos possiacutevel entatildeo verdadeiramente a vida dos deuses
87 Πειρᾶσθαι τὴν ὑστέραν τῆς προτέρας κρείττω ποιεῖν ἕως ἂν ἐν ὁδῷ ὦμενmiddot 88 Us 219 Sexto Empiacuterico (Adv Math V 9) 169 φιλοσοφίαν ένέργειαν εΐναι λόγοις καΐ διᾰλογισμοΐς τον εύδαίμονα βίον περιποιοθσαν
150 passaria aos homensrdquo (Œno fr 56)89 A doxografia tambeacutem nos coloca diante de um
testemunho de Clemente de Alexandria segundo ele ldquoEpicuro supotildee que soacute os gregos satildeo
qualificados para praticar a filosofiardquo90 Dioacutegenes Laeacutercio ao falar da concepccedilatildeo epicurista de
sophoacutes relata que ldquonem toda constituiccedilatildeo fiacutesica nem toda nacionalidade permite a um
homem tornar-se saacutebiordquo (DL X 117)91 Por traacutes desses registros fica colocada a existecircncia de
questotildees que impedem o exerciacutecio da sabedoria estejam ligadas a contextos poliacuteticos e
culturais a limitaccedilotildees individuas ou agrave escolha de cada um
A aacuteskesis epicurista natildeo remete para nenhum aspecto ligado agrave revelaccedilatildeo ou despertar
que tomando conta da alma a coloca no caminho da sabedoria Essa atividade estaacute ligada a
um procedimento de transformaccedilatildeo na maneira de compreender a realidade e do papel do
homem diante dela E como vimos nos capiacutetulos anteriores a meditaccedilatildeo e a praacutexis tecircm papel
fundamental nesse processo Eacute por meio desses exerciacutecios que o homem se coloca
criticamente com relaccedilatildeo agraves opiniotildees que fundamentam um loacutegos afastado da natureza e busca
realizar um modo de vida de acordo com a compreensatildeo que desenvolve ao se dedicar a
observar e refletir sobre os modos de ser da natureza Considerando que o escopo da filosofia
epicurista eacute a realizaccedilatildeo de uma vida prazerosa a aacuteskesis se relaciona agrave necessidade de
submeter o pensamento e as accedilotildees agrave ldquofinalidade da naturezardquo (tograve teacutelos tecircs phyacuteseos)92 e com
isso poder estabelecer um eacutethos katagrave phyacutesin Sendo assim na medida em que desenvolvem a
capacidade para estabelecer uma compreensatildeo a respeito de como afastar-se dos valores
convencionados e realizar um modo de ser mais natural os exerciacutecios estimulam um sentido
de resistecircncia de natildeo-conformismo de destemor Quanto mais o homem exercita a sabedoria
mais ele amadurece a confianccedila e a disposiccedilatildeo para transformar a proacutepria existecircncia
A pragmateiacutea pensada como exerciacutecio de vida filosoacutefica estabelece uma relaccedilatildeo com a
eacutetica em torno do cuidado de si o que evoca a ideia de um modo de viver mais equilibrado Eacute
por meio de uma meditaccedilatildeo e de uma praacutexis voltada para o prazer e a serenidade que se busca
exercitar essa vida fazendo dela uma experiecircncia praacutetica A finalidade da pragmateiacutea natildeo eacute
ser uma teoria a qual se subordina uma praacutexis natildeo eacute formar o homem para que depois ele
possa viver melhor o objetivo eacute se constituir como uma praacutetica de pensar a proacutepria praacutetica e
desenvolvecirc-la em funccedilatildeo de fazer experimentar essa makariacuteos zecircn A perspectiva epicurista eacute
a de uma ldquoformaccedilatildeordquo que vem com a experiecircncia O que a ldquoteoriardquo faz eacute traduzir o sentido de
89 [] puisque tous nrsquoen ont pas le pouvoir Mais si nous le supposons possible alors veacuteritablement la vie des dieux passera aux hommes 90 Us 226 Clemente de Alexandria Miscelacircnea I15 91 πάθεσι μᾶλλον συσχεθήσεσθαι οὐκ ἂν ἐμποδίσαι πρὸς τὴν σοφίαν 92 Maacutexima 25 τὸ τέλος τῆς φύσεως
151 uma praacutetica de vida saacutebia ou de acordo com a natureza Assim physiologiacutea vida e eacutetica satildeo
aspectos inseparaacuteveis na aacuteskesis epicurista Dai Epicuro afirmar que ldquovenerar o saacutebio eacute um
grande bem para quem venerardquo (SV 32)93 A intenccedilatildeo eacute mostrar que no modo de viver do
sophoacutes se encontra uma referecircncia a como eacute possiacutevel se colocar no mundo a partir de uma
vivecircncia eacutetica do exerciacutecio cotidiano de realizaccedilatildeo de liberdade e de prazer
Na Carta a Meneceu se diz que para gozar de uma vida feliz eacute preciso colocar em accedilatildeo
(praacutette) o saber acerca da natureza (DL X 123)94 Com isso Epicuro estaacute postulando uma
concepccedilatildeo de filosofia que eacute ao mesmo tempo exerciacutecio de uma forma de pensar e modo
saacutebio de viver Na medida em que se assimila o saber physioloacutegico mais haacute uma aproximaccedilatildeo
com um modelo natural e com isso se experimenta a autaacuterkeia e o equiliacutebrio A pragmateiacutea eacute
conhecimento relacionado agrave accedilatildeo ou atividade (eneacutergeia) de viver em funccedilatildeo de experimentar
sensaccedilotildees agradaacuteveis de sentir tranquilidade de contentar-se com o necessaacuterio para uma vida
saudaacutevel de alegrar-se com a amizade Colocar em praacutetica esse saber consiste em procurar
viver a sabedoria no dia a dia Isso implica em um assenhoramento da proacutepria vontade
condiccedilatildeo necessaacuteria para poder agir como autaacuterkes e orientar as accedilotildees tendo em vista uma
medida-limite (peacuteras) fundamentada na natureza Nesse sentido a pragmateiacutea eacute exerciacutecio de
compreensatildeo da phyacutesis de seus modos de ser e seus limites e tambeacutem eacute o exerciacutecio de uma
medida para o agir fundamental para orientar a conduta do saacutebio
Lembremos de que no capiacutetulo II deste trabalho dedicado a buscar compreender como
a pragmateiacutea eacute exercitada pela alma dissemos que a filosofia epicurista eacute elaborada como
uma therapeiacutea e que como tal tinha como finalidade afastar da alma de inquietudes temores
e desequiliacutebrios E isso implicava em mitigar na psycheacute a forccedila de um loacutegos fundamentado em
opiniotildees vazias ou em crenccedilas que natildeo resistiam aos criteacuterios de verdade relacionados ao
sensiacutevel projetando para aleacutem da phyacutesis o sentido imanente da realizaccedilatildeo do homem
A meditaccedilatildeo nesse contexto eacute tratada como uma atividade que leva a psycheacute a
estabelecer por meio da phroacutenesis e do logismoacutes um distanciamento dessas opiniotildees ou
desse loacutegos que adoece e aprisiona a alma Para isso a vida feliz eacute identificada ao exerciacutecio
do prazer e esse eacute pensado como fonte de equiliacutebrio porque estaacute dentro dos limites de uma
medida natural Eacute sob essa perspectiva que se pensa em um loacutegos-terapecircutico pois ldquoa
filosofia trabalha a alma humana mediante um loacutegos depurador esclarecedor acerca dos
limites e medidas proacuteprias agrave sua natureza O loacutegos enquanto um phaacutermakon visa sobretudo
93 Ὁ τοῦ σοφοῦ σεβασμὸς ἀγαθὸν μέγα τῷ σεβομένῳ ἐστί 94 Cf nota 28 da introduccedilatildeo
152 esclarecer as noccedilotildees de natureza alma valor e finalidaderdquo (SILVA 2003 p 80) Assim o
exerciacutecio de compreensatildeo da phyacutesis remete para essa (re)construccedilatildeo do loacutegos voltado para
conduzir agrave ataraxiacutea
Compreender a natureza eacute inteligir dela limites para os desejos de maneira a se
contrapor agrave desmesura de quem deseja estimulado pelas kenaigrave doacutexai A alma liberta de um
loacutegos que a desequilibra que a oprime que remete para uma vontade artificial pode escolher
em funccedilatildeo de sua compreensatildeo da realidade e do papel que percebe poder desenvolver nela
E aiacute reside um aspecto importante para entender o significado epicurista da praacutetica de um
saber fundamentado na natureza na medida em que visa curar desvencilhar ou afastar a alma
dos valores que a impedem de realizar uma vontade livre tambeacutem se constitui como praacutetica
eacutetica Ou seja a pragmateiacutea quando pensada como uma atividade voltada para exercitar um
entendimento da phyacutesis visando a ataraxiacutea (ausecircncia de perturbaccedilatildeo na alma) e a autaacuterkeia
(ter o princiacutepio da accedilatildeo em si mesmo)95 pode ser entendida como um exerciacutecio eacutetico Nesse
contexto eacutetico diz respeito a um modo de ser de viver ligado agrave possibilidade de poder de
pensar a proacutepria existecircncia sem a imposiccedilatildeo de convenccedilotildees de regras de normas Eacute viver
conforme um entendimento da natureza eacute trazer o sentido de uma filosofia que postula a
liberdade e o equiliacutebrio para a praacutetica de uma vida saacutebia Isso acontece quando se exercita
essa compreensatildeo da phyacutesis que ao levar agrave rejeiccedilatildeo de todo entendimento da realidade
fundamentada em mitos crenccedilas opiniotildees vazias exercita a liberdade da alma
Tambeacutem cabe destacar que nessa pesquisa tratamos de como a pragmateiacutea se
relaciona com a accedilatildeo saacutebia Tentamos evidenciar a concepccedilatildeo de sabedoria como exerciacutecio de
uma medida para o agir buscada na investigaccedilatildeo da natureza e que isso definiria o sentido da
praacutexis epicurista Eacute nesse contexto que a conduta do saacutebio eacute pensada como estando ligada agrave
realizaccedilatildeo de um teacutelos katagrave phyacutesin o que remete ao espelhamento de uma modelo natural de
vida equilibrada e livre no campo do agir social Cabe ao homem considerando as limitaccedilotildees
inerentes agrave possibilidade do conhecer e o discernimento que lhe permite a phroacutenesis e o
logismoacutes com relaccedilatildeo ao que estaacute ao seu alcance traduzir essa medida em escolhas e recusas
que possam trazer mais contentamento agrave sua maneira de existir e de se relacionar no mundo
Ao fazer isso a experiecircncia da liberdade (eleutheriacutea) eacute sentida enquanto atividade de
construccedilatildeo pelo proacuteprio homem de sua histoacuteria Para tanto o saacutebio define suas atitudes sem as
constriccedilotildees das convenccedilotildees das leis ele encontra na investigaccedilatildeo da phyacutesis os limites aos
quais subordinar a vontade O exerciacutecio da liberdade vai par e passo ao de circunscrever os
95 Ver nota 172 do capiacutetulo I
153 desejos ao acircmbito do natural e necessaacuterio Exercitar a sabedoria eacute viver segundo uma medida
que o saacutebio identifica na natureza e natildeo na cultura na religiatildeo na poliacutetica Os limites que vatildeo
definir o sentido de uma accedilatildeo saacutebia satildeo inteligidos a partir da physiologiacutea Assim no
epicurismo a vida deve ser medida a partir de um modelo universal e que remeta para o gozo
de uma vida serena e alegre
O agir do sophoacutes tem portanto uma motivaccedilatildeo eacutetica a accedilatildeo eacute livre e esclarecida natildeo
havendo imposiccedilatildeo da ordem do noacutemos Na origem desse comportamento vemos o
entendimento de que a realizaccedilatildeo do homem implica em uma conduta de vida que busque
trazer para sua realidade histoacuterica o sentido de autaacuterkeia e de liberdade que caracteriza uma
eacutetica katagrave phyacutesin Eacute em funccedilatildeo disso que se busca estabelecer um eacutethos que lhe propicie
realizar-se de forma mais autecircntica estabelecendo relaccedilotildees pautadas pela philiacutea pelo
equiliacutebrio pelo bem-estar (eustatheiacutea) Assim quando orienta sua conduta pelo saber acerca
da natureza o saacutebio exercita a liberdade para escolher e recusar em funccedilatildeo uma vida
equilibrada justa e agradaacutevel para estabelecer relaccedilotildees a partir de afinidades e da
conveniecircncia muacutetua (opheacuteleia) para governar a si mesmo sem delegar esse poder outrem Daiacute
podermos pensar que a pragmateiacutea epicurista compreendida como praacutetica de um modo de
viver ou de se conduzir no mundo tendo a phyacutesis como modelo a partir do qual satildeo definidas
as finalidades para agir tambeacutem nos remete para a noccedilatildeo de exerciacutecio eacutetico
Diante dessas reflexotildees percebemos ser possiacutevel nos remeter por meio da expressatildeo
exerciacutecios eacuteticos agrave pragmateiacutea e com isso traduzir um sentido de vivecircncia de um saber
fundamentado na natureza como uma praacutetica cotidiana de pensamento e de accedilatildeo que tem na
phyacutesis um princiacutepio de fundamentaccedilatildeo A meditaccedilatildeo e a praacutexis satildeo maneiras de realizaccedilatildeo
dessa aacuteskesis tendo em vista conduzir o homem do conhecimento acerca da realidade para o
estabelecimento de um modo de vida katagrave phyacutesin Dito de outra forma satildeo atividades que
permitem inter-relacionar na praacutetica a physiologiacutea e a eacutetica E esse aspecto eacute fundamental para
desenvolver uma convicccedilatildeo firme com relaccedilatildeo agrave possibilidade de tendo como referecircncia a
natureza experimentar uma vida feliz ao fazer da proacutepria existecircncia um exerciacutecio eacutetico
353 - A praacutetica da makariacuteos zecircn
A pragmateiacutea eacute a filosofia pensada e praticada tendo em vista a vida feliz (makariacuteos
zecircn) A sabedoria consiste em a partir da physiologiacutea estabelecer um modo de viver
equilibrado e prazeroso Nesse sentido ser saacutebio natildeo eacute uma conquista que apoacutes ser alcanccedilada
154 determina o fim da busca eacute atraveacutes de uma praacutetica contiacutenua que a sabedoria se realiza Assim
podemos dizer que a pragmateiacutea eacute o exerciacutecio de realizaccedilatildeo daquilo a que o sophoacutes aspira Na
aacuteskesis epicurista o teacutelos natildeo eacute projetado para depois ele estaacute no proacuteprio exerciacutecio ldquoO
mesmo tempo eacute tanto o do nascimento do maior bem quanto o da dissoluccedilatildeordquo (SV 42)96 Ou
seja quando nos livramos do que causa dor o prazer que eacute identificado ao maior dos bens se
apresenta
Daiacute percebemos que no epicurismo natildeo se professa uma ideia de teleologia colocando
o sentido da accedilatildeo para depois dela O exerciacutecio natildeo eacute expediente para se chegar agrave sabedoria
ele jaacute eacute a consecuccedilatildeo dela Eacute nessa perspectiva que a aacuteskesis natildeo eacute pensada como meio para
desenvolver as virtudes mas como forma de experimentar os prazeres ldquoNatildeo eacute para ter uma
dessas coisas mencionadas97 que noacutes empreendemos essa praacutetica ltda filosofiagt mas para ser
feliz tendo alcanccedilado a finalidade de acordo com a naturezardquo (Œno Fr 28)98 O exerciacutecio eacute
realizado porque ele traz consigo a experiecircncia do prazer ldquoPorque noacutes natildeo comemos o patildeo
para ter a satisfaccedilatildeo depois nem bebemos o vinho para sentir o deleite apoacutes nem ejaculamos
o esperma para gozar posteriormente mas a accedilatildeo provoca esses prazeres em noacutes
imediatamente sem esperar pelo futurordquo (Œno Fr 33 VII)99 Quer dizer os exerciacutecios
realizam aquilo que eles tecircm em mira Assim natildeo cabe por exemplo pensar a liberdade
praticaacute-la para depois ser livre Tanto a meditaccedilatildeo quanto a praacutexis em torno da liberdade jaacute
trazem consigo a experiecircncia da eleutheriacutea dessa libertaccedilatildeo de (capiacutetulo II) e da liberdade
para (capiacutetulo III)
Pode-se dizer que o que fundamenta a accedilatildeo do saacutebio epicuacutereo eacute a realizaccedilatildeo do prazer mediante a liberdade de escolha Aos olhos de Epicuro o que produz a liberdade eacute uma dyacutenamis isto eacute o poder de ter o princiacutepio da accedilatildeo em si mesmo que eacute precisamente neste contexto a definiccedilatildeo do termo autaacuterkeia (SILVA 2005 p 47)
Essa liberdade estaacute relacionada agrave busca de realizar uma forma autecircntica de viver a natildeo
perseguir os bens que as convenccedilotildees e as opiniotildees colocam como fundamentais agrave felicidade o
que conduz a uma forma inautecircntica de viver O sophoacutes vive a partir do que ele pensa estar
adequado com a realizaccedilatildeo de uma vida feliz ldquoO saacutebio conhece os valores autecircnticos da vida
frente agraves falsificaccedilotildees e enganos da sociedade captou o sabor do verdadeiro e de acordo com 96 Ὁ αὐτὸς χρόνος καὶ γενέσεως τοῦ μεγίστου ἀγαθοῦ καὶ ἀπολύσεως ltτοῦ κακοῦgt 97 Riquezas honrarias poder poliacutetico 98 Ce nrsquoest pas afin drsquoavoir une des choses susmentionneacutees que nous avons entrepris cette pratique ltde la philosophiegt mas pour ecirctre heureux ayant acquis la fin rechercheacutee par la nature 99 Car nou ne mangeons pas le pain pour prendre plaisir par la suiacutete ni ne buvons le vin pour y prendre plaisir apregraves ni nrsquoejectons le sperme pour en jouir par la suiacutete mais lrsquoaction atteint ces plaisir em nous immeacutediatement sans attendre lrsquoavenir
155 os bens conforme a natureza (tagrave katagrave physin) sabe dirigir seu comportamento sereno e livre
ateacute a felicidaderdquo (GUAL 1985 p 219) E isso remete para a praacutetica de se colocar distante do
asseacutedio dos desejos das opiniotildees vazias ou de outras formas de assenhoramento e de buscar
uma aproximaccedilatildeo com os bens inteligidos a partir da investigaccedilatildeo da natureza como a
liberdade o prazer a amizade a frugalidade a autaacuterkeia o equiliacutebrio Para Epicuro esse eacute o
motivo para buscar se afastar do burburinho da poacutelis e procurar o recolhimento ldquoNatildeo eacute sem
razatildeo que seu aluno Lucreacutecio viu e retratou com um olhar mais luacutecido e mais atento do que
qualquer outro poeta romano a vida no campo e a caracterizou como uma escola de sabedoria
e calma cujas vozes concordam com aqueles da doutrina do mestre (BIGNONE 1973 p
231) Essa busca por referecircncia na natureza aponta para essa necessidade permanente de
exercitar uma vida tranquila de fazer a alma experimentar a ataraxiacutea
A ataraxiacutea resulta da autaacuterkeia Quem age a partir de si mesmo pode escolher e
recusar tendo em vista afastar a alma de fontes de perturbaccedilatildeo Isso nos remete para pensar a
makariacuteos zecircn a partir de libertaccedilatildeo da alma de falsas concepccedilotildees A psycheacute livre de temores
experimenta a imperturbabilidade que Epicuro relaciona agrave vida feliz Nesse sentido a
ataraxiacutea e a autaacuterkeia estatildeo relacionadas agrave possibilidade de poder reorientar o pensamento
para buscar se referenciar na phyacutesis e natildeo nos mitos e nas crenccedilas Eacute a partir dessa inter-
relaccedilatildeo entre a physiologiacutea e o modo de viver que ela engendra que o saacutebio exercita a
liberdade eacutetica (eleutheriacutea) que lhe permite realizar a vida em funccedilatildeo de sua compreensatildeo da
realidadenatureza Viver conforme se pensa eacute o exerciacutecio que realiza a makariacuteos zecircn A vida
feliz eacute um exerciacutecio de liberdade eacute um exerciacutecio eacutetico sentido e finalidade da pragmateiacutea
epicurista
156
CONCLUSAtildeO
Epicuro foi sensiacutevel agrave condiccedilatildeo dos homens de seu tempo oprimidos politicamente e
presos agrave busca desenfreada pela satisfaccedilatildeo de desejos fora dos limites do natural Ele
acreditou que para assegurar uma vida feliz (makariacuteos zecircn) era preciso trabalhar na alma
(psycheacute) do homem um loacutegos acerca da realidade que pudesse levar a discernir a calcular e a
escolher entre os valores as ideias os bens as finalidades aqueles que estatildeo ligados ao bem-
estar ao equiliacutebrio agrave tranquilidade Eacute nesse sentido que a phyacutesis foi pensada como referecircncia
para um modo de viver A partir dela foram inteligidos os limites e as finalidades para um agir
sabiamente Dessa forma a sabedoria foi concebida como um exerciacutecio de aproximaccedilatildeo com
a natureza pois Epicuro via na vida katagrave phyacutesin a possibilidade de espelhar na alma o mesmo
sentido de harmonia que percebia na phyacutesis
A filosofia assim foi direcionada para a realizaccedilatildeo de um projeto de sabedoria
identificado com a construccedilatildeo da proacutepria felicidade Para tanto a sophiacutea foi pensada como
atividades (eneacutergeias) que tornam possiacutevel experienciar um eacutethos fundamentado na
physiologiacutea Eacute nesse contexto que Epicuro confere agrave praacutetica filosoacutefica o sentido de
pragmateiacutea ou seja ela eacute um saber em torno da vida (teacutechnen tinaacute periacute ton biacuteon) que se
efetiva como um exerciacutecio permanente de compreensatildeo da natureza e de vida a partir dessa
compreensatildeo
A philosophiacutea epicurista foi elaborada como uma pragmateiacutea que enquanto saber
remete para uma compreensatildeo physioloacutegica imanente da realidadenatureza como aacuteskesis
permite fazer da makariacuteos zecircn uma experiecircncia sentida no dia a dia Para realizar essa
pragmateiacutea Epicuro mandou meditar e praticar seus ensinamentos via nessas atividades a
possibilidade de o homem trazer para sua vida o sentido de liberdade necessaacuterio para poder
fruir de uma existecircncia autecircntica e equilibrada Eacute por meio dos exerciacutecios de meditaccedilatildeo
(meleacutetema) e de praacutexis (praacutexis) que o saacutebio vem a ser em torno da cura de si mesmo e do
prazer (hedoneacute) conforme a natureza (tagrave katagrave phyacutesin)
Viver filosoficamente ensina-nos Epicuro implica em meditar (exerciacutecio praacutetico que
liberta a alma das opiniotildees e crenccedilas e com isso restitui ao homem a autaacuterkeia o poder de
agir a partir de si mesmo das proacuteprias convicccedilotildees) e em tornar efetiva a praacutexis (atividade que
traz a autaacuterkeia para a maneira de conduzir no mundo na forma de se relacionar em
157 sociedade e com ela eacute o exerciacutecio da liberdade para estabelecer relaccedilotildees mais equilibradas e
realizar um modo e vida mais natural) Eacute dessa maneira que o saacutebio exerce uma disposiccedilatildeo
para viver autenticamente a partir de uma vontade esclarecida e livre para agir sem
admoestaccedilotildees A sabedoria vai assim sendo construiacuteda como um exerciacutecio eacutetico seja porque
realiza um modo de vida autaacuterkes e equilibrado ou porque exercita a liberdade para escolher e
evitar em funccedilatildeo do bem estar da alegria do prazer Esse eacute o princiacutepio e a finalidade da
pragmateiacutea epicurista e eacute em torno dessa maneira de conceber e praticar a filosofia que se
percebe o sentido de coerecircncia unidade e sustentaccedilatildeo presente no pensamento epicurista
Epicuro procurou mostrar ser possiacutevel fazer da filosofia algo uacutetil um saber orientado
para instrumentalizar o homem para viver agradavelmente Ao conduzir a escolhas e accedilotildees
voltadas para a realizaccedilatildeo de uma vida tranquila livre e frugal ele se contrapocircs a Paideacuteia
(cultura) cujos valores estimulavam a procura pela riqueza gloacuteria e pelo poder Essa cultura
seguida pela maioria traduzia as aspiraccedilotildees de uma poacutelis que cristalizava e transmitia valores
e saberes que alheavam o homem de si e do sentido de sua proacutepria realizaccedilatildeo Essa educaccedilatildeo
natildeo lhe dava autonomia nem lhe permitia compreender realmente o mundo como espaccedilo de
realizaccedilatildeo de si mesmo A sociedade agrave eacutepoca de Epicuro natildeo espelhava o ideal de uma vida
feliz mas de uma cidade assentada na busca do poder desmesurado e voltado para as batalhas
as conquistas e para o assenhoramento de outros povos e territoacuterios A cultura naqueles
tempos tinha em vista a realizaccedilatildeo do homem no contexto e na dependecircncia da poacutelis por isso
a Paideacuteia era para Epicuro vazia pois impedia a construccedilatildeo e uma existecircncia em torno da
autorrealizaccedilatildeo Daiacute ele procurar seguir por outro caminho inserindo a felicidade como um
valor cultural e finalidade maior Nesse sentido a filosofia do Jardim foi concebida para
mudar a concepccedilatildeo quantos aos valores fundamentais para uma vida feliz
O epicurismo natildeo teve como escopo a obtenccedilatildeo do poder poliacutetico nem econocircmico
nem assenhorar a vontade de outrem Ele buscou conduzir o homem a ter o domiacutenio sobre si
proacuteprio a exercitar a liberdade a compreender suas vontades e relacionaacute-las a uma forma
mais natural de compreensatildeo do mundo Para tanto foi preciso aproximaacute-lo do sentido de sua
natureza A realizaccedilatildeo dele precisou ser pensada a partir de valores inteligidas a partir do
estudo da phyacutesis Dessa forma seria possiacutevel a cada um viver de acordo com sua naturalidade
e realizar uma existecircncia pautada pelo prazer Tal perspectiva repercutiu sobre o eacutethos do
saacutebio pois o modo de vida dele precisou permitir expressar esse sentido Tratou-se de trazer
para o campo praacutetico da vida um saber que permitisse identificar a natureza dos desejos e
saber quais deviam ser realizados Em outros termos a questatildeo natildeo era mais pensar a
158 realizaccedilatildeo de si mesmo a partir dos valores e da cultura da poacutelis mas a partir de um
referencial natural Por isso o saacutebio se afastou da cidade e se voltou para a interioridade
Distanciando-se do burburinho das opiniotildees dos muitos e investigando a phyacutesis o homem
buscou esclarecer a proacutepria vontade e estabelecer uma praacutexis a partir de um pensamento
autecircntico
A relevacircncia que Epicuro deu agrave investigaccedilatildeo da natureza como fundamento para
estabelecer um saber para a vida (teacutechnen tinaacute periacute ton biacuteon) remete para uma ligaccedilatildeo estreita
com o que eacute empiacuterico O loacutegos epicurista natildeo foi desenvolvido para ser a verdade sobre as
coisas mas de se constituir como um discurso sapiencial que tem nos sentidos um criteacuterio de
verdade e eacute orientado para o exerciacutecio praacutetico de viver Dessa forma Epicuro distanciou sua
filosofia do ceticismo e da retoacuterica e fundamentou a pragmateiacutea sobre um conhecimento
empiacuterico-imanente O loacutegos foi elaborado a partir do campo das experiecircncias sensiacuteveis e as
questotildees filosoacuteficas buscaram ser resolvidas no campo da vida experimentada Dessa maneira
se buscou ensinar ao homem que a realidade natildeo eacute necessariamente aquilo que estabelece a
doacutexa ou a cultura Assim ele pocircde se perceber como um ser capaz de pensar as finalidades
que deviam ser buscadas e aquelas que deviam ser descartadas e com isso se autodeterminar
em direccedilatildeo a uma concepccedilatildeo de ser no mundo ligada ao bem viver
O epicurismo foi orientado para a gestatildeo da vida para as accedilotildees para saber que
escolhas e recusas fazer Com esse direcionamento a filosofia do Jardim buscou dar conta do
empiacuterico das necessidades do homem no mundo Ela natildeo foi pensada para ser apenas um
discurso um uso da razatildeo que resultasse em retoacuterica O objetivo foi dar um sentido agrave
realidade agrave sociedade ao homem colocando o prazer (hedoneacute) como finalidades (teacutelos) A
vida do saacutebio foi direcionada para a consecuccedilatildeo da felicidade que por sua vez foi identificada
ao prazer Ou seja a palavra e a vida do sophoacutes foram orientadas para a realizaccedilatildeo de um
modo feliz de vida Natildeo foi uma filosofia que se limitou ao loacutegos ela procurou se realizar no
exerciacutecio de um modo saacutebio de viver O escopo natildeo foi projetar um homem ideal em uma
cidade ideal mas pensar em como esse homem concreto poderia viver bem em harmonia
com a natureza e com seus semelhantes Nesse sentido podemos ver um aspecto
antropoloacutegico perpassando o pensamento epicurista O homem pensado foi aquele que trazia
consigo os seus desejos sua imaginaccedilatildeo sua capacidade de se autodirecionar Ele eacute ser da
phyacutesis e na phyacutesis e em torno dessa constataccedilatildeo se definem o fundamento do conhecimento e
os limites do conhecer para entatildeo poder estabelecer as finalidades de uma vida bem realizada
A physiologiacutea epicurista ensinou que a necessidade eacute derrogada pelo acaso Anaacutenke e
159 tycheacute existem por necessidade Da mesma forma que se pode pensar na phyacutesis a derrogaccedilatildeo
de um determinismo absoluto por analogiacutea podemos tambeacutem pensar no campo eacutetico a
possibilidade de o homem se desviar de concepccedilotildees fatalistas e traacutegicas e realizar uma vida
livre A pragmateiacutea se volta para desenvolver um esclarecimento a respeito da possibilidade
de autotransformaccedilatildeo autossuperaccedilatildeo na medida em que se realiza como uma praacutetica de
libertaccedilatildeo de amarras culturais morais e religiosas levando o homem a limitar a dependecircncia
das opiniotildees vazias e de libertaccedilatildeo para poder governar a si mesmo e agir a partir do que
conhece acerca da natureza Nisso reside a concepccedilatildeo de que ele natildeo eacute um ser irretocaacutevel
cujo destino fora previamente definido como obra acabada dos deuses ou trageacutedia histoacuterico-
cultural O homem ao qual remete a filosofia epicurista eacute ser em construccedilatildeo que pode
determinar a si mesmo e exercer uma artesania sobre o proacuteprio modo de pensar e de agir
Longe de aceitar os fatalismos da vida ele pode superar aquilo que faz mal desequilibra
adoece a alma e o corpo e dessa forma tambeacutem pode realizar o desejo de ter em seu proacuteprio
domiacutenio o sentido de sua realizaccedilatildeo no mundo A philosophiacutea nesse sentido se opotildee aos
condicionamentos histoacuterico-culturais aos valores cristalizados e difundidos na poacutelis por meio
da educaccedilatildeo da moral da religiatildeo dos mitos da Paideacuteia
A filosofia epicurista se realiza como exerciacutecio empiacuterico-reflexivo Satildeo as atividades
de meditaccedilatildeo (meleacutetema) e de praacutexis (praacutexis) que vatildeo constituiacute-la como uma pragmateiacutea O
sentido eacute o de espelhar um saber acerca da phyacutesis na alma do homem de tal modo que ele
possa estabelecer um modo de viver de acordo com a natureza (katagrave phyacutesin) ou seja
autaacuterquica em relaccedilatildeo agraves opiniotildees vazias (kenaigrave doacutexai) equilibrada e direcionada para os
prazeres naturais e necessaacuterios Trata-se de um exerciacutecio de amadurecimento que se daacute na
medida em que o homem busca fazer de sua existecircncia a praacutetica de uma vida filosoacutefica Eacute
dessa forma que ele trilha um caminho que vai da physiologiacutea ao eacutethos para poder trazer para
sua vida um sentido de liberdade autorrealizaccedilatildeo e felicidade
Cabe ressaltar que a pragmateiacutea epicurista natildeo busca num sentido religioso a
conversatildeo do homem a um conjunto de crenccedilas ou a adotar um modelo de viver
fundamentado em um sentimento de feacute A meditaccedilatildeo e a praacutexis buscam desenvolver uma
confianccedila (piacutestis) em se ter o conhecimento sobre a natureza como guia para estabelecer um
modelo de vida autecircntica e bem realizada Eacute o exerciacutecio de viver de acordo com o que se
pensa e de pensar de acordo com a natureza que faz o saacutebio acreditar no saber filosoacutefico como
um caminho para a felicidade Quanto mais ele se dedica a investigar e a aprender sobre a
phyacutesis mais ele desenvolve a confianccedila na possibilidade de experimentar uma vida agradaacutevel
160 E aiacute reside um traccedilo fundamental do epicurismo ele natildeo remete para um sentimento religioso
nem miacutestico nem se fundamenta em feacute eacute exerciacutecio de confianccedila no raciociacutenio empiacuterico
(epilogismos) sobre a natureza
Embora falar em meditaccedilatildeo hoje possa evocar a noccedilatildeo de um misticismo de
religiosidade meditar deve ser entendido no contexto do epicurismo como uma atividade
aproximaccedilatildeo da alma consigo mesmo e com a natureza Eacute um exerciacutecio que natildeo tem
fundamento nem finalidade religiosa Ela parte de uma reflexatildeo sobre a realidade empiacuterica
para estabelecer um saber direcionado para a praacutetica da sabedoria Dito de outra forma eacute
meditando que o saacutebio pensa a proacutepria existecircncia como um espelhamento da natureza e
procura viver de acordo com esse pensamento Essa natildeo separaccedilatildeo entre o pensar e o praticar
se expressa na forma de um saber para vida ou de uma pragmateiacutea
Haacute uma dificuldade em conceber nos dias atuais a meditaccedilatildeo como um exerciacutecio
praacutetico A tendecircncia eacute vecirc-la apenas como ato reflexivo Mas para Epicuro ela eacute um fazer da
psycheacute que se volta para compreender a realidade e para procurar a melhor maneira de agir
diante dela tendo em vista a realizaccedilatildeo de uma vida feliz Nesse sentido a meditaccedilatildeo se
relaciona com a aacuteskesis no sentido de exerciacutecio e natildeo de contemplaccedilatildeo Na pragmateiacutea
epicurista a meditaccedilatildeo eacute um atividade praacutetica porque natildeo basta meditar sobre o prazer por
exemplo eacute preciso que essa meditaccedilatildeo traga consigo a sensaccedilatildeo do prazer como aquele que
vem na forma de um estado de imperturbabilidade da alma (ataraxiacutea) Meditaccedilatildeo e praacutexis
constituem em conjunto um exerciacutecio de compreensatildeo da vida buscando uma aproximaccedilatildeo
com a natureza Assim a pragmateiacutea tem como sentido um agir eacutetico uma accedilatildeo no mundo
voltada para experimentar a liberdade para ser o que se eacute para pensar e escolher o proacuteprio
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161
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HESIacuteODO Teogonia a origem dos deuses Estudo e traduccedilatildeo Jaa Torrano 5 ed Satildeo Paulo Iluminuras 2003
KENNY Anthony Uma Nova Histoacuteria da Filosofia Ocidental 2 ed Satildeo Paulo Loyola 2011 (Vol I)
MAYOR Carmelo Blanco El Inicio de la Filosofia em Grecia Platon Aristoteles Epicuro Ensayos Revista de la Facultad de Educacioacuten de Albacete Nordm 1 paacutegs 71-92 Ano 1987 ISSN 0214-4824
NIETZSCHE Frierich Preleccedilotildees sobre a Histoacuteria da Filosofia In Os Preacute-Socraacuteticos Satildeo Paulo Nova Cultural (Os Pensadores) P 346-353
PAULA Marcos Ferreira de Sobre a Felicidade Belo Horizonte Autecircntica Editora 2014
PARMEcircNIDES Da Natureza Satildeo Paulo Loyola 2013
PLATAtildeO Protaacutegoras Traduccedilatildeo Ana Piedade Elias Pinheiro Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua Editores1999
________ Protaacutegoras In Diaacutelogos Traduccedilatildeo Carlos Alberto Nunes Beleacutem EdUFPA 1980
________ Timeu Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes Beleacutem EdUFPA 1973
________ Goacutergias Portugual Ediccedilotildees 70 1992
________ Caacutermides In Diaacutelogos de Platatildeo Carmides ndash Liacutesis Traduccedilatildeo Carlos Alberto Nunes Beleacutem EdUFPA 2014
________ Diaacutelogos Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes Beleacutem EdUFPA 1980
________ Oeuvres Complegravetes Paris Belles Lettres 1948
________ A Repuacuteblica Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes 3ed Beleacutem EdUFPA 2000
________ A Repuacuteblica Enrico Corvisieri Satildeo Paulo Nova Cultural 1997
________ Leis Traduccedilatildeo Edson Bini Satildeo Paulo Edipro 1999
VEGETTI Mario A Eacutetica dos Antigos Satildeo Paulo 2014 (Coleccedilatildeo Caacutetedra)
VERNANT Jean-Pierre Mito e Religiatildeo na Greacutecia Antiga Satildeo Paulo Martins Fontes 2009
WOLF Francis A Invenccedilatildeo Materialista da Liberdade In NOVAES Adauto (org) O Avesso da Liberdade Satildeo Paulo Companhia das Letras 2002
DICIONAacuteRIOS
ALEXANDRE Charles Dictionnaire Francais-Grec Paris Hachette 1861
BAILLY A Grand Bailly Dictionnaire Grec-Franccedilais Paris Hachette 1935
167 CHANTRAINE Pierre Dictionaire Eacutetymologique de la Langue Grecque ndash Histoire des mots Paris Klincksieck 1968
CHASSANG Alexis Dictionnaire Grec-Franccedilais Paris Garnier Fregraveres 1865
LIDDELL Henry George A Greek-English Lexicon New York Harper amp Brothers 1883
PABOacuteN Joseacute M Diccionario Manual Griego Claacutesico-Espantildeol Madrid Vox 1967
TALBOT E Dictionnaire Franccedilais-Grec Paris Delalain Fregraveres 1894
VIAL Claude Lexique de la Gregravece Ancienne Paris Armand Colin 1972
LIDDELL H G SCOTT Jones The Online Liddell-Scott-Jones Greek-English Lexicon (httpstephanustlguciedulsjeid=1) acessado em 13 de fevereiro 2019
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas - SISBI
Catalogaccedilatildeo de Publicaccedilatildeo na Fonte UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciecircncias Humanas Letras e Artes - CCHLA
Maffezzolli Marcone de Oliveira O sentido da Pragmateiacutea Epicurista Marcone de Oliveira Maffezzolli - Natal 2020 166f Tese (doutorado) - Centro de Ciecircncias Humanas Letras e Artes Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia Universidade Federal do Rio Grande do Norte 2020 Orientador Prof Dr Markus Figueira da Silva 1 Pragmateiacutea - Tese 2 Eacutetica - Tese 3 Physiologiacutea - Tese 4 Meditaccedilatildeo - Tese 5 Praacutexis - Tese 6 Aacuteskesis - Tese I Silva Markus Figueira da II Tiacutetulo RNUFBS-CCHLA CDU 17
Elaborado por Heverton Thiago Luiz da Silva - CRB-15710
Nome Marcone de Oliveira Maffezzolli Tiacutetulo O sentido da pragmateiacutea epicurista
Tese apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia da UFRN como requisito parcial para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutor em Filosofia Aprovada em de de 2020
Banca Examinadora
Prof Dr Markus Figueira da Silva (OrientadorPresidente ndash UFRN)
Prof Dr Edrisi de Arauacutejo Fernandes (Examinador Interno ndash UFRN)
Prof Dr Antocircnio Juacutelio Garcia Freire (Examinador Externo ndash UERN)
Prof Dr Marcus Reis Pinheiro (Examinador Externo ndash UFF)
Prof Dr Celso Martins Azar Filho (Examinador Externo ndash UFF)
4
Agrave minha matildee
que me ensinou sobre a importacircncia da educaccedilatildeo
para a realizaccedilatildeo de uma vida melhor
5 AGRADECIMENTOS
Agrave Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Ao Departamento de Filosofia da UFRN atraveacutes do qual estendo meus
agradecimentos a todos os professores que contribuiacuteram com minha formaccedilatildeo iniciada em
2004 (especializaccedilatildeo em Eacutetica)
Ao professor e amigo Markus Figueira que acompanhou minha trajetoacuteria no campo da
Filosofia Antiga com sua orientaccedilatildeo precisa e segura e sobretudo sendo um exemplo de
quem exercita a philiacutea e procura viver epicuristicamente
Aos professores Edrisi de Arauacutejo Fernandes Antocircnio Juacutelio Garcia Freire Marcus Reis
Pinheiro e Celso Martins Azar Filho pelas criacuteticas orientaccedilotildees e sugestotildees
A todos os amigos e familiares que souberam entender minha ausecircncia durante o
periacuteodo de realizaccedilatildeo desta pesquisa
6 EPIacuteGRAFE
Eu que dedico incessantemente minhas energias agrave investigaccedilatildeo da natureza e desse modo de viver tiro principalmente a minha calma
(Epicuro Carta a Heroacutedoto)
Traduzir-se uma par te na outra parte - que eacute uma questatildeo de vida ou morte ndash
seraacute ar te (Ferreira Gullar Traduzir-se 1980)
Nenhum jovem deve demorar a filosofar e nenhum velho deve parar de filosofar pois nunca eacute cedo demais nem tarde demais para a sauacutede da alma
(Epicuro Carta a Meneceu)
() quanto a noacutes eacute preciso vir a ser em torno da cura de noacutes mesmos (Epicuro Sentenccedilas Vaticanas 64)
7 RESUMO
Este trabalho postula que por meio de uma pragmateiacutea (πραγματεία) Epicuro busca espelhar um conhecimento acerca da natureza (physiologiacutea) num eacutethos equivalente revalidando a concepccedilatildeo epicurista de filosofia como um saber para a vida (teacutechnen tinaacute periacute ton biacuteon) e de sabedoria como atividade constante de reflexatildeo sobre a natureza (phyacutesis) e de realizaccedilatildeo de um modo de ser de acordo com ela (katagrave phyacutesin) Eacute em tal panorama onde o homem busca uma aproximaccedilatildeo com a natureza para reproduzir em sua alma um estado de imperturbabilidade (ataraxiacutea) que se delineia a possibilidade de autorrealizaccedilatildeo ou do exerciacutecio de uma vida saacutebia Nesse sentido a pragmateiacutea epicurista remete para uma praacutetica filosoacutefica desenvolvida na consecuccedilatildeo de um conjunto de atividades (eneacutergeias) que traduzem em atitudes condutas escolhas accedilotildees e pensamentos um eacutethos filosoacutefico voltado para a busca do equiliacutebrio Se nos textos de Epicuro satildeo limitadas as ocorrecircncias do termo pragmateiacutea por outro lado ao exortar a praacutetica filosoacutefica por meio de exerciacutecios de meditaccedilatildeo (meleacutetema) e de praacutexis (praacutexis) ele nos permite a partir do uso dessas noccedilotildees e de outras a essas vinculadas evidenciar um sentido para a pragmateiacutea o que permite compreender como a physiologiacutea resulta em um modo de vida saacutebio Nessa perspectiva visamos demonstrar que a pragmateiacutea epicurista estabelece seu sentido mais proacuteprio quando compreendida como exerciacutecio eacutetico Isso porque eacute como trabalho permanente e inter-relacionado de meditaccedilatildeo e praacutexis que ela conduz o pensamento e a accedilatildeo para restabelecer no homem o sentido de autarquia (autaacuterkeia) condiccedilatildeo necessaacuteria para encetar-lhe a disposiccedilatildeo para definir um eacutethos a partir do entendimento que tem da natureza e com isso poder fruir de uma vida livre autecircntica equilibrada e feliz Palavras-chave pragmateiacutea meditaccedilatildeo praacutexis physiologiacutea exerciacutecio teacutecnica eacutetica
8
REacuteSUMEacuteE
Ce travail postule que agrave travers drsquoune pragmateiacutea (πραγματεία) Epicure cherche agrave refleacuteter une connaissance de la nature (physiologiacutea) dans un eacutethos eacutequivalent revalidant la conception eacutepicurienne de la philosophie comme savoir pour la vie (teacutechnen tinaacute periacute ton biacuteon) et de la sagesse comme activiteacute constante de reacuteflexion sur la nature (phyacutesis) et de reacutealisation dune maniegravere decirctre selon elle (katagrave phyacutesin) Cest dans un tel panorama ougrave lhomme cherche une approximation avec la nature pour reproduire dans son acircme un eacutetat dimperturbabiliteacute (ataraxiacutea) que se dessine la possibiliteacute de reacutealisation de soi ou lexercice dune vie sage En ce sens la pragmateiacutea eacutepicurienne fait reacutefeacuterence agrave une pratique philosophique deacuteveloppeacutee dans la reacutealisation dun ensemble dactiviteacutes (eneacutergeias) qui se traduisent par des attitudes des conduites des choix des actions et des penseacutees un eacutethos philosophique visant la recherche de leacutequilibre Si dans les textes dEacutepicure les occurrences du terme pragmateiacutea sont limiteacutees en revanche en exhortant la pratique philosophique agrave travers des exercices de meacuteditation (meleacutetema) et praxis (praacutexis) cela nous permet de montrer agrave partir de lutilisation de ces notions et dautres lieacutes agrave eux un sens agrave la pragmateiacutea ce qui nous permet de comprendre comment la physiologiacutea se traduit par un mode de vie sage Dans cette perspective nous visons agrave deacutemontrer que la pragmateiacutea eacutepicurienne eacutetablit sa signification la plus approprieacutee lorsquil est compris comme un exercice eacutethique En effet cest en tant que travail permanent et interdeacutependant de meacuteditation et de praxis quelle conduit la penseacutee et laction agrave reacutetablir chez lhomme le sens de lautarcie (autaacuterkeia) condition neacutecessaire pour le entamer la disposeacute agrave deacutefinir un eacutethos baseacutee sur la compreacutehension de la nature et avec cela de pouvoir jouir dune vie libre authentique eacutequilibreacutee et heureuse Mots-cleacutes pragmateiacutea meacuteditation praxis physiologiacutea exercice technique eacutethique
9
SUMAacuteRIO
INTRODUCcedilAtildeO 12
CAPITULO 01
Da physiologiacutea ao eacutethos - os fundamentos da pragmateiacutea epicurista
11 A physiologiacutea
111 A phyacutesis
112 Necessidade e acaso
113 A anthropophyacutesis (acerca da natureza humana)
12 A vida katagrave phyacutesin
121 Nos limites da phyacutesis
122 A repleccedilatildeo dos desejos
123 Tograve teacutelos tecircs phyacuteseos
13 A finalidade do saber
131 O conhecimento (gnoacutesis)
132 Criteacuterios de verdade
133 Saber teacutechne e aacuteskesis
23
23
26
32
37
43
45
52
58
63
66
69
71
CAPIacuteTULO 02
Da Meditaccedilatildeo ou do modo como a pragmateiacutea eacute exercitada pela alma
21 Exerciacutecio dialoacutegico e dialeacutetico
22 Meleacutetema e mneacuteme
23 A meditaccedilatildeo como exerciacutecio de libertaccedilatildeo
24 Meditar
241 Sobre os deuses
242 Sobre a morte
243 Sobre a felicidade
244 Sobre a dor
81
82
88
96
99
103
105
106
109
10 CAPIacuteTULO 03
A praacutexis como a pragmateiacutea no modo de agir
31 A praacutexis do saacutebio escolher e recusar
32 A accedilatildeo modulada pelo logismoacutes e pela phroacutenesis
33 Praacutexis e exerciacutecio de liberdade (eleutheriacutea)
34 Da poacutelis ao Kecircpos
341 Laacutethe biocircsas
342 Koinoniacutea
343 A philiacutea
35 Pragmateiacutea e sabedoria praacutetica
351 Saber para a vida
352 Exerciacutecio eacutetico
353 A praacutetica da makariacuteos zecircn
113
116
121
124
130
132
134
136
139
143
148
153
CONCLUSAtildeO
156
BIBLIOGRAFIA
161
11 PRINCIPAIS ABREVIACcedilOtildeES
Tst = Epicuro Testamento
Hdt = Epicuro Carta a Heroacutedoto
Pit = Epicuro Carta a Pitocleacutes
Men = Epicuro Carta a Meneceu
MC = Epicuro Maacuteximas Capitais
SV = Epicuro Sentenccedilas Vaticanas
Us = H Usener Epicurea Stuttgart 1887
DL = Dioacutegenes Laeacutercio Vida e Doutrinas dos Filoacutesofos Ilustres Brasiacutelia UnB 2008
Lucr = Lucreacutecio Da Natureza Satildeo Paulo 1985 (Os Pensadores)
Œno = Dioacutegenes de Œnoanda Fragmentos Fribourg Editions Universitaires 1996
PH = Papiros Herculanenses
Obs As citaccedilotildees das cartas maacuteximas e do Testamento de Epicuro reproduzem a
traduccedilatildeo de Maacuterio da Gama Kury do texto de Dioacutegenes Laeacutercio Jaacute as referecircncias agraves
Sentenccedilas Vaticanas acompanham a traduccedilatildeo de Markus Figueira da Silva e Henrique G
Murachco ineacuteditas As possiacuteveis divergecircncias de traduccedilotildees que possam comprometer o
entendimento do pensamento epicurista satildeo indicadas e abordadas em notas explicativas
Quando expomos a citaccedilatildeo do texto em grego salvo indicaccedilatildeo contraacuteria ela foi colhida da
biblioteca digital Thesaurus Linguae Graecae (httpstephanustlgucieduindexphp)
12
INTRODUCcedilAtildeO
aacute uma tradiccedilatildeo que postula uma compreensatildeo das ldquoescolas1rdquo filosoacuteficas heleniacutesticas2 a
partir de uma sistematizaccedilatildeo apoiada em trecircs pilares a Canocircnica a Fiacutesica e a Eacutetica
Essa tendecircncia eacute vista retratada nas exposiccedilotildees que Dioacutegenes Laeacutercio faz em Vida e
Doutrinas dos Filoacutesofos Ilustres datada iniacutecio do seacuteculo trecircs dC Nessa obra ao falar dos
estoicos ele afirma que essa divisatildeo3 estaria postulada nos livros de Zenatildeo Criacutesipo
Apolodoro Silo Eudromo e Poseidocircnio Com isso ficava sugerida uma diferenciaccedilatildeo
presente no estoicismo entre o discurso filosoacutefico e a filosofia enquanto praacutetica No mesmo
sentido ao tratar a questatildeo no acircmbito do pensamento dos ciacutenicos essa fragmentaccedilatildeo eacute
retomada embora apenas balizada por um relatado desprezo deles pela Loacutegica e pela Fiacutesica e
por uma dedicaccedilatildeo agrave Eacutetica4 A tendecircncia eacute estendida e tambeacutem aplicada em relaccedilatildeo a Epicuro5
(plusmn342-271 aC6) para quem tal segmentaccedilatildeo seria a base de uma divisatildeo da filosofia7 que
teria na Canocircnica uma introduccedilatildeo ao pensamento epicurista a Fiacutesica cuidaria da natureza e a
Eacutetica versaria sobre o que escolher e o que rejeitar
Tal concepccedilatildeo tripartite parece jaacute encetar uma compreensatildeo da filosofia como
exposiccedilatildeo de um ldquosistema conceitualrdquo construiacutedo a partir da articulaccedilatildeo de disciplinas
constituiacutedas como campo de teorizaccedilatildeo e demonstraccedilatildeo sobre aquilo de que se pretende algum
desvelamento Dessa forma cada uma delas a Fiacutesica a Canocircnica e a Eacutetica se estabeleceria
como espaccedilo teoreacutetico ou doutrinaacuterio sobre aspectos distintos do discurso filosoacutefico Assim
cada uma das partes poderia ser tomada autonomamente como uma teoria sobre a Canocircnica
sobre a Fiacutesica e outra sobre a Eacutetica e a partir daiacute depois de reconsideradas em conjunto eacute que
1 Haacute uma classificaccedilatildeo aludida por Dioacutegenes Laeacutercio que alguns autores usam para ldquoenquadrarrdquo certas filosofias como escolas e outras como modo de vida Para Dioacutegenes o cinismo por exemplo se constituiu como escola filosoacutefica autecircntica (DLVI 103) 2 Considera-se o Periacuteodo Heleniacutestico como aquele compreendido entre a morte de Alexandre Grande em 323 aC e a batalha de Actium em 31 aC Nesse periacuteodo o estoicismo ceticismo epicurismo e cinismo eclodiram exercendo grande influecircncia no modo de pensar e de viver do povo grego 3 DL VII 39 4 DL VI 103 5 Epicuro teria nascido em Samos Aos 18 anos vai a Atenas para o serviccedilo militar Segundo a tradiccedilatildeo teria tido liccedilotildees com o peripateacutetico Praxiacutefanes em Rodes Tambeacutem teria estudado com Nausiacutefanes disciacutepulo de Demoacutecrito de Abdera Aventa-se ainda a possibilidade de ter sido aluno de Pirro de Eacutelis precursor do ceticismo no seacuteculo IV aC Em Mitilene na ilha de Lesbos Epicuro comeccedila a ensinar sua filosofia em 311 aC Posteriormente muda para Lacircmpsaco onde fica ateacute 306 aC quando com 35 anos volta para Atenas e cria o Keacutepos o Jardim Apoacutes a sua morte em 271 aC quatorze escolarcas mantiveram as atividades no jardim ateacute 44 aC 6 DL X 1 7 DL X 29
H
13 se teria a dimensatildeo total da filosofia desta ou daquela escola a partir da leitura desses
ldquosistemas teoacutericosrdquo
Essa tendecircncia a compartimentalizar a filosofia parece ter se disseminado e conduzido
a uma uniformizaccedilatildeo na compreensatildeo de movimentos do pensamento que - ao eclodirem na
Heacutelade a partir do fim do seacuteculo IV aC - mostraram convergecircncias mas sobretudo
diferenccedilas em seus modos de concepccedilatildeo e de realizaccedilatildeo Isso porque tal separaccedilatildeo induz
estudiosos munidos dessas ldquopartesrdquo do discurso filosoacutefico a postular e sublinhar uma primazia
da Eacutetica em contraste com o decliacutenio da poacutelis que deixa de ser espaccedilo puacuteblico e poliacutetico onde
se costumava pensar e exprimir os ideais de virtudes que deveriam nortear a vida do homem
grego Afinal apoacutes a dominaccedilatildeo macedocircnica e consequentes mudanccedilas poliacuteticas sociais e
culturais a tendecircncia eacute natildeo mais pensar na realizaccedilatildeo do homem como politikograven zocircon (animal
ciacutevico8) posto que estaacute submetido a um governo tiracircnico mas na possibilidade que ele pode
ter de realizar a proacutepria felicidade9 ou cultivar sua cidadela interior
Essa conjectura ganha relevo ao lembrarmos que apoacutes dizer da triparticcedilatildeo da filosofia
em Epicuro Dioacutegenes remarca que os epicuristas ndash todavia ndash costumam reunir agrupar a
Canocircnica e a Fiacutesica10 Desse modo se induz a possibilidade de poder considerar a Eacutetica
apartada desse conjunto Assim de um lado ficaria delimitado o espaccedilo para uma ldquoteoriardquo
sobre a phyacutesis e o conhecimento e do outro a aacuterea para tratar sobre os modos de viver ou do
fim supremo Ou seja teriacuteamos algo como um campo onde se desenvolveria o pensamento
especulativo sobre a natureza e outro dedicado a lidar com os modos de agir do homem com
os problemas praacuteticos da vida Essa ldquoorganizaccedilatildeordquo da filosofia supostamente legitimada pelos
proacuteprios epicuristas ao mesmo passo em que possibilitaria conceber uma Eacutetica elaborada a
partir de certo niacutevel de independecircncia em relaccedilatildeo agrave Canocircnica e agrave Fiacutesica permitiria - tambeacutem
no epicurismo - fazer alusotildees a dimensotildees antiteacuteticas como teoriapraacutetica pensarfazer
discursoaccedilatildeo Mas seraacute que esse tipo de enquadramento daacute conta do real sentido do que foi a
philosophiacutea no periacuteodo heleniacutestico E mais especificamente pensar a atividade filosoacutefica do
Jardim11 a partir da separaccedilatildeo entre Canocircnica Fiacutesica e Eacutetica conduz a uma reta compreensatildeo
do que foi postulado por Epicuro
8 Como prefere traduzir Joseacute Ameacuterico Motta Pessanha na tese Empeacutedocles e a Democracia RJ 1965 (Kleacuteos n 78 97-182 20034) 9 Salvo indicaccedilatildeo contraacuteria usamos o termo felicidade natildeo no sentido de eudaimoniacutea mas para nos referirmos ao gozo de uma vida feliz Uma distinccedilatildeo mais clara sobre isso consta no capiacutetulo I item 122 10 DL X 30 11 O Jardim ou Keacutepos foi a escola que Epicuro fundou em Atenas quando tinha por volta de 35 anos Trata-se de uma propriedade localizada a noroeste de Atenas onde Epicuro vivia frugalmente e estabelecia uma convivecircncia com seus disciacutepulosamigos Eacute considerado o berccedilo do epicurismo
14 Ao nos debruccedilarmos sobre estudos mais recentes observamos ser em torno da ideia de
exerciacutecio visando agrave transformaccedilatildeo de si e do modo de viver que Pierre Hadot se contrapotildee a
essa leitura da filosofia antiga como sendo um sistema ou conjunto teoacuterico e disciplinar cuja
tendecircncia identificamos nos relatos de Dioacutegenes Laeacutercio Para tanto Hadot interpreta a
philosophiacutea no mundo antigo a partir da noccedilatildeo de exerciacutecios espirituais12 Atraveacutes desse
tratamento ele afianccedila que a atividade filosoacutefica na antiguidade natildeo visa agrave exposiccedilatildeo de um
sistema de ideias A finalidade natildeo eacute de informar sobre uma teoria mas de produzir no
homem um ldquoefeito formativordquo (HADOT 2014 p 8) Para ele
Os exerciacutecios espirituais satildeo precisamente destinados a essa formaccedilatildeo de si a essa paideacuteia que nos ensinaraacute a viver natildeo em conformidade com os preconceitos humanos e com as convenccedilotildees sociais (pois a vida social eacute ela proacutepria um produto das paixotildees) mas em conformidade com a natureza do homem que natildeo eacute outra senatildeo a razatildeo (HADOT 2014 p 56)
Em torno dessa concepccedilatildeo Hadot postula que ldquoesses exerciacutecios pretendem realizar
uma transformaccedilatildeo da visatildeo de mundo e uma metamorfose do serrdquo (HADOT 2014 p 68)
Nesse sentido ele defende que para aleacutem de um valor ldquomoralrdquo a filosofia antiga se reveste de
um valor ldquoexistencialrdquo Por isso os exerciacutecios espirituais deveriam ser compreendidos a partir
de sua finalidade que eacute ensinar ldquoum meacutetodo de orientaccedilatildeo tanto no pensamento quanto na
vidardquo (HADOT 2016 p 118) Assim ao definir a filosofia como um ato e esse como uma
orientaccedilatildeo da atenccedilatildeo ele postula que a finalidade dos exerciacutecios eacute obtida quando se orienta
essa atenccedilatildeo para o prazer
No estoicismo como no epicurismo filosofar eacute um ato contiacutenuo um ato permanente que se identifica com a vida um ato que eacute preciso renovar a cada instante Nos dois casos pode-se definir esse ato como uma orientaccedilatildeo da atenccedilatildeo () No epicurismo a atenccedilatildeo estaacute orientada para o prazer que eacute em uacuteltima instacircncia o prazer de ser (HADOT 2014 p 266)
Percebemos com isso que na interpretaccedilatildeo de Hadot a finalidade dos exerciacutecios
espirituais eacute projetada para depois para aleacutem do que eles satildeo ou constituem Eles satildeo um
meio para alcanccedilar a sabedoria o prazer a liberdade mas natildeo satildeo eles mesmos a atividade
que traz consigo a experiecircncia de viver a sabedoria o prazer ou a liberdade Sendo voltado
para orientaccedilatildeo para formaccedilatildeo ensinam ou conduzem para a consecuccedilatildeo de algo mas natildeo
satildeo pensados como sendo eles mesmos a realizaccedilatildeo do que se deseja alcanccedilar Daiacute ele afirmar
que ldquograccedilas a esses exerciacutecios dever-se-ia chegar agrave sabedoria isto eacute a um estado de liberaccedilatildeo
total das paixotildees de lucidez perfeita de conhecimento de si e do mundo (HADOT 2014 p
12 HADOT Pierre Exerciacutecios Espirituais e Filosofia Antiga Satildeo Paulo Eacute Editora 2014
15 57) Mas natildeo se chega a esse estado pois na visatildeo hadotiana a sabedoria eacute algo irrealizaacutevel13 e
ldquoum ideal ao qual se tende sem esperar chegar a elerdquo poreacutem cabe destacar ldquosalvo talvez no
epicurismordquo (HADOT 2014 p 57-58) Desse modo pensar a filosofia antiga como
exerciacutecios espirituais embora permita escapar ao enquadramento facetaacuterio encontrado em
Dioacutegenes Laeacutercio parece levar a outro problema a homogeneizaccedilatildeo de aspectos distintos e
fundamentais para caracterizar a originalidade de escolas filosoacuteficas sobretudo aquelas que
eclodiram agrave eacutepoca do helenismo No tocante ao epicurismo isso implica em embaccedilar a
compreensatildeo da filosofia como uma praacutetica em que o viver o pensar e o agir convergem para
a experiecircncia do prazer e da autarquia Curiosamente essa problemaacutetica natildeo eacute clarificada por
Hadot
Talvez esse lapso sentido nos textos de Pierre Hadot se decirc porque a relaccedilatildeo entre
exerciacutecios e sabedoria eacute pensada de maneira diferente no epicurismo e natildeo se possa falar de
separaccedilatildeo ou distanciamento entre eles A praacutetica filosoacutefica epicurista visa fazer experimentar
aquilo que se almeja no momento mesmo em que ela se realiza A ldquoformaccedilatildeordquo vem junto com
a vivecircncia a finalidade do exerciacutecio estaacute dentro dele mesmo Natildeo se exercita para ser saacutebio
eacute-se saacutebio no exerciacutecio Claro que haacute diferentes graus de sabedoria mas podemos dizer que
no epicurismo os exerciacutecios jaacute satildeo a consecuccedilatildeo de uma experiecircncia de vida filosoacutefica
Dessa forma o saacutebio eacute concebido como aquele que se realiza como tal ao exercitar a
sabedoria e essa eacute entendida como a atividade de viver de acordo com a phyacutesis (katagrave phyacutesin)
o que aponta para uma vida ldquohedonistardquo e autaacuterquica Com isso nos remetemos para a
inexistecircncia de uma teleologia na aacuteskesis14 epicurista Em outras palavras a finalidade dos
exerciacutecios natildeo estaacute deslocada para fora deles ou para depois A accedilatildeo do sophoacutes eacute a expressatildeo
da sua sabedoria tanto quanto essa implica em uma accedilatildeo que o caracteriza no mundo
Nas outras ocupaccedilotildees com dificuldade o fruto chega ao amadurecimento e na filosofia o agradaacutevel vem junto com o conhecimento pois o gozo natildeo vem depois do aprendizado ao contraacuterio aprendizado e gozo vecircm juntos (SV 27)15
Podemos assinalar que a accedilatildeo ou a praacutetica filosoacutefica traz consigo o proacuteprio sentido de
realizaccedilatildeo do sophoacutes na medida em que espelha no campo das suas escolhas e atitudes a
compreensatildeo que ele desenvolve a respeito da realidade Por isso eacute forccediloso destacar que a
13 ldquoO uacutenico estado normalmente acessiacutevel ao homem eacute a filo-sofia isto eacute o amor pela sabedoria o progresso em direccedilatildeo agrave sabedoriardquo (HADOT 2014 p 58) 14 Exerciacutecio praacutetica 15 Οὐ Ἐπὶ μὲν τῶν ἄλλων ἐπιτηδευμάτων μόλις τελειωθεῖσιν ὁ καρπὸς ἔρχεται ἐπὶ δὲ φιλοσοφίας συντρέχει τῇ γνώσει τὸ τερπνόνmiddot οὐ γὰρ μετὰ μάθησιν ἀπόλαυσις ἀλλὰ ἅμα μάθησις καὶ ἀπόλαυσις
16 aacuteskesis epicurista eacute ao mesmo tempo principio e finalidade do modo de ser do saacutebio Ao
dizer que ldquoaprendizado e gozo vecircm juntosrdquo Epicuro evoca a partir do termo gozo (apoacutelaysis)
a noccedilatildeo de utilidade proveito benefiacutecio conquista de algo que adveacutem com a praacutetica
filosoacutefica E qual proveito maior pode advir para o saacutebio epicurista
Eacute conhecida a afirmaccedilatildeo de Epicuro que diz ldquoa pobreza medida pelo limite da
natureza eacute uma riqueza grande e riqueza natildeo delimitada eacute uma grande pobrezardquo (SV 25)16
Para viver dentro desse limite eacute necessaacuterio investigar a natureza compreender seus modos de
realizaccedilatildeo Isso permite agir liberto das opiniotildees vazias (kenaigrave doacutexai) a partir da capacidade
que a alma (psycheacute) tem de pensar calcular17 avaliar - a fim de definir o que se circunscreve
aos limites da phyacutesis ndash e junto agrave faculdade que ela tem de deliberar de escolher tendo em
vista o que eacute natural e necessaacuterio em detrimento do que nem eacute natural e nem necessaacuterio18
Com isso o saacutebio pode estabelecer para si um criteacuterio a partir da compreensatildeo que adveio ao
investigar a phyacutesis para buscar refletir tanto na alma quanto em seu eacutethos um modo natural
de ser Tal medida eacute que vai lhe permitir gozar uma vida equilibrada ou saudaacutevel fazecirc-lo
experimentar nas relaccedilotildees que estabelece no mundo o sentido de realizaccedilatildeo de um modo de
viver kagraveta phyacutesin19
Daiacute a intriacutenseca relaccedilatildeo da aacuteskesis epicurista com a eacutetica e com a physiologiacutea O eacutethos
do saacutebio resulta de um constante trabalho para restabelecer o domiacutenio sobre si sobre a proacutepria
vontade para agir a partir do entendimento a respeito da phyacutesis fazendo frente agraves opiniotildees
aos valores e aos costumes que tendem para aleacutem do que eacute natural e necessaacuterio Saacutebio eacute pois
quem estabelece uma disposiccedilatildeo permanente para viver a autenticidade da proacutepria existecircncia
que soacute a liberdade de um ser esclarecido quanto agrave natureza permite realizar Eis porque
Agraves vezes consideramos a autossuficiecircncia (autaacuterkeia) um grande bem natildeo porque em todos os casos devemos contentar-nos com pouco mas para que se natildeo tivermos o muito nos contentemos com o pouco sinceramente persuadidos de que quanto maior a moderaccedilatildeo com que se goza a abundacircncia tanto menor a necessidade dela e de que todo desejo conforme a natureza pode ser facilmente satisfeito ao passo que todo desejo vatildeo eacute difiacutecil de satisfazer (DL X 130)20
16 Ἡ πενία μετρουμένη τῷ τῆς φύσεως τέλει μέγας ἐστὶ πλοῦτοςmiddot πλοῦτος δὲ μὴ ὁριζόμενος μεγάλη ἐστὶ πενία 17 Para se referir a essa atividade da alma Epicuro emprega o termo λογισμὸς (logismoacutes) vide DL X 39 75 117 132 144 145 18 Estamos falando da φρόνησις (phroacutenesis) vide DL X 132 19 Kagraveta phyacutesin eacute uma expressatildeo que significa viver de acordo com a natureza No capiacutetulo I item 12 trataremos dessa questatildeo 20 Καὶ τὴν αὐτάρκειαν δὲ ἀγαθὸν μέγα νομίζομεν οὐχ ἵνα πάντως τοῖς ὀλίγοις χρώμεθα ἀλλrsquo ὅπως ἐὰν μὴ ἔχωμεν τὰ πολλά τοῖς ὀλίγοις ἀρκώμεθα πεπεισμένοι γνησίως ὅτι ἥδιστα πολυτελείας ἀπολαύουσιν οἱ ἥκιστα ταύτης δεόμενοι καὶ ὅτι τὸ μὲν φυσικὸν πᾶν εὐπόριστόν ἐστι τὸ δὲ κενὸν δυσπόριστον
17 Dessa forma ao colocar por si mesmo os limites que conduzem agrave proacutepria realizaccedilatildeo
tendo exclusivamente a natureza como medida do que pode o homem Epicuro relaciona a
physiologiacutea eacutetica e o exerciacutecio de viver com o movimento ou a atitude de desvios das
opiniotildees ou de outras formas de assenhoramentos que possam tolher o homem de vivenciar a
experiecircncia de ser a partir daquilo que descobriu no exerciacutecio de pensar a phyacutesis Com isso o
que vai caracterizar o exerciacutecio da sabedoria eacute a accedilatildeo fundamentada na physiologiacutea
Para Epicuro exercitar a sabedoria faz sobrevir a ataraxiacutea21 para a alma e a aponiacutea22
para o corpo-carne23 ao mesmo passo em que realiza a experiecircncia da liberdade (eleutheriacutea)
no campo eacutetico E isso estaacute relacionado com a proposta filosoacutefica epicurista que eacute por um
lado assegurar que o homem natildeo dependa nem das circunstacircncias24 nem dos deuses25 para ser
feliz e por outro proporcionar o conhecimento necessaacuterio para que ele natildeo guie sua vida por
valores que possam ir contra a sua realizaccedilatildeo Entatildeo pensar a filosofia postulada por Epicuro
sob o prisma de exerciacutecios espirituais como propocircs Hadot parece minorar o sentido
fundamental de uma accedilatildeo filosoacutefica ancorada na compreensatildeo de que a sabedoria se realiza
enquanto praacutetica permanente de construccedilatildeo de um eacutethos a partir de uma physiologiacutea que
aponta para a autaacuterkeia e equiliacutebrio e que concomitante a essa praacutetica a experiecircncia de uma
vida feliz (makariacuteos zecircn) eacute realizada pelo proacuteprio saacutebio ateacute onde depende dele e na medida
em que ele se ocupe da filosofia exercitando a sabedoria Mas como isso se daacute
Se retomarmos o paralelo entre a medicina e a filosofia - no qual se inspira Epicuro
para evidenciar o valor praacutetico de filosofar - tanto a arte meacutedica (teacutechne heacute ietrike) quanto a
arte de viver (teacutechnen tinaacute periacute ton biacuteon) vatildeo remeter para uma atividade contiacutenua voltada
para o cuidado consigo mesmo visando favorecer o modo natural de realizaccedilatildeo do homem
Para isso ambas vatildeo propor alteraccedilotildees no estilo de vida prescrevendo dieteacuteticas ou faacutermacos
voltados para restituir um equiliacutebrio vital Nesse sentido ocupar-se da filosofia diz respeito agrave
praacutetica de atividades que gravem na alma um loacutegos terapecircutico (expurgando do pensamento
as concepccedilotildees da realidade que distanciam o homem da phyacutesis e apontando os limites que
conduzem ao gozo de uma vida satilde) e constituam um eacutethos voltado para dar naturalidade agrave
21 Imperturbabilidade da alma 22 Ausecircncia de dor 23 Como veremos no capiacutetulo I o homem tem uma natureza corpoacuterea A psycheacute (alma) eacute formada por aacutetomos mais sutis e velozes dispersos pelo sarkoacutes (carne) Trata-se de um corpo-alma e de um corpo-carne que mantecircm uma inter-relaccedilatildeo fundamental para pensarmos as interaccedilotildees que o homem estabelece com o mundo-realidade Isso porque eacute por meio do corpo-carne que a alma sente as afecccedilotildees (paacutethe) que geram as sensaccedilotildees (aiacutestheseos) que podem ser agradaacuteveis ou desagradaacuteveis 24 SV 9 ldquoCoisa maacute eacute a necessidade mas natildeo haacute necessidade nenhuma de viver com necessidaderdquo 25 SV 65 ldquoEacute vatildeo exigir dos deuses aquilo que algueacutem pode provir por si proacutepriordquo
18 vida para estabelecer relaccedilotildees sociais livre de dominaccedilotildees e convenccedilotildees para buscar as
experiecircncias que confiram o prazer que equilibra para ser a expressatildeo de uma vida livre e
autecircntica
Para Epicuro a filosofia natildeo eacute um conhecimento apartado da experiecircncia praacutetica de
existir e por isso natildeo pode ser pensada a partir de saberes descolados uns dos outros Uma reta
compreensatildeo da philosophiacutea postulada por Epicuro precisa evidenciar o sentido de unidade
que perpassa seus ensinamentos e a confluecircncia deles para uma filosofia que se realiza como
sabedoria praacutetica Contudo isso natildeo implica em interpretaacute-la como um exerciacutecio que conduz agrave
sabedoria mas como a praacutetica mesma de uma sabedoria ancorada no entendimento
physioloacutegico da natureza Eacute a partir desse aspecto que nos referimos a uma pragmateiacutea
epicurista ou seja a atividade que orientada para espelhar a physiologiacutea em um eacutethos saacutebio
exercita a autaacuterkeia e o equiliacutebrio Em torno desse entendimento podemos pensar como no
epicurismo um saber acerca da natureza engendra uma disposiccedilatildeo (diaacutethesis)26 para viver a
partir de um conhecimento filosoacutefico
Essa relaccedilatildeo entre o que se sabe e como se vive percebemo-la mesmo em textos que
aparentemente poderiam estar desprovidos de algum tipo de ensinamento filosoacutefico Mas em
sendo o pensamento epicurista indissociado da vida praacutetica ateacute em seu Testamento Epicuro nos
remete para a realizaccedilatildeo de um modo saacutebio de viver Em certo trecho ele diz que apoacutes sua morte o
Jardim deveria ficar agrave disposiccedilatildeo de Hermarco e de seus companheiros em filosofia e
daqueles que o sucederiam ocupando-se com ela (endiatriacutebein katagrave philosophiacutean) 27 Dessa
forma para aleacutem de reconhecer e agraciar aqueles que fazem da filosofia um modo de viver
Epicuro alccedila sua conduta generosa com relaccedilatildeo a Hermarco e seus amigos agrave condiccedilatildeo de
exemplo de como exercitar a sabedoria a justiccedila e o equiliacutebrio ao lidar com as coisas praacuteticas
do dia a dia
Essa ocupaccedilatildeo permanente com a filosofia que caracterizou a vida de Epicuro
tambeacutem vem expressa em duas diretrizes apresentadas no passo 123 da Carta a Meneceu
Nela ele diz ao seu disciacutepulo da necessidade de pocircr em accedilatildeo os preceitos ensinados e meditar
sobre eles e que nisso residem as condiccedilotildees de felicidade ou de sauacutede da alma Os termos
principais dessa assertiva satildeo apresentados de forma imperativa ldquoPotildee em accedilatildeo (praacutette) os
preceitos que te comuniquei ininterruptamente e medita (kaiacute meleacuteta) com a niacutetida consciecircncia
26 DL X 117 Us 222a 27 DL X 17 ἐνδιατρίβειν κατὰ φιλοσοφίαν
19 de que eles satildeo os elementos fundamentais de uma vida belardquo28
Esses dois conceitos que traduzimos29 por meditaccedilatildeo (tograve meleacutetema) e praacutexis (heacute
praacutexis) vatildeo ser evocados quando Epicuro exorta essa necessidade de se dedicar agrave filosofia de
se ocupar com ela (endiatriacutebo) Se o sophoacutes eacute o modelo de homem que se ocupa com a
realizaccedilatildeo de um modo de viver kagraveta phyacutesin traduzindo o conhecimento que tem a respeito da
natureza em um eacutethos equivalente eacute por meio da meditaccedilatildeo e da praacutexis que essa ocupaccedilatildeo
define o sentido da pragmateiacutea epicurista
Eacute nessa perspectiva que a meditaccedilatildeo vai ser entendida como a atividade de reflexatildeo da
alma que partindo do referencial sensiacutevel para pensar a natureza estabelece um saber que vai
servir para guiar o sophoacutes para fazer as escolhas e as recusas que conduzem ao bem-viver
Ela natildeo visa ser um exerciacutecio especulativo do pensamento sobre a natureza nem produzir
sobre ela uma epistemologia ou sistema teoacuterico A meditaccedilatildeo vai ser a atividade que resulta
em um saber que se faz em torno dos desafios das necessidades das possibilidades que se
apresentam ao homem no decurso praacutetico de sua vida Meditar eacute antes de tudo uma reflexatildeo
em torno do cuidado que se deve ter com a proacutepria maneira de viver de como se livrar da
ignoracircncia e das crenccedilas que alheiam o homem de se aperceber do domiacutenio que pode ter sobre
as proacuteprias vontades sobre as accedilotildees sobre seu destino E isso tem uma relaccedilatildeo essencial com
a eacutetica uma vez que com essa reflexatildeo se pretende desenvolver na psycheacute um loacutegos curativo
ou libertador que a desembarace ou a purgue de opiniotildees que possam fazer adoecer
desequilibrar aprisionar
E quando Epicuro diz da necessidade de pocircr em accedilatildeo (praacutette) ou seja estabelecer uma
praacutexis orientada para a vida feliz ele tem como perspectiva que a filosofia se realiza enquanto
atividade de construccedilatildeo continuada de um modo de pensar e de agir A praacutexis eacute o que vai
caracterizar a conduta do saacutebio ao fazer um uso praacutetico da filosofia Nesse sentido trata-se de
postular que a sabedoria eacute realizaacutevel e a praacutetica de vida eacute saacutebia Assim para livrar o sophoacutes do
que causa dor e perturbaccedilatildeo as accedilotildees dele precisam estar de acordo com a natureza ser um
reflexo de um pensamento fundamentado naquilo que ele conhece sobre a phyacutesis A praacutexis
nos reporta para uma correlaccedilatildeo entre o modo de compreender a natureza e a consequente
28 Ἃ δέ σοι συνεχῶς παρήγγελλον ταῦτα καὶ πρᾶττε καὶ μελέτα στοιχεῖα τοῦ καλῶς ζῆν ταῦτrsquo εἶναι διαλαμβάνων 29 A meditaccedilatildeo (tograve meleacutetema) eacute o substantivo relacionado agrave forma verbal imperativa em meletaacute (medita) cuja origem vem de meletaacuteo (μελετάω) Como verbo traz o sentido de se ocupar exercer praticar Como nome traduz a ideia de estudo exerciacutecio praacutetico A praacutexis (praacutexis) eacute o substantivo ligado ao verbo pratte ambos originados da raiz praacutesso (πράσσω) Embora praacutexis e praacutetica tenham origem na mesma raiz etimoloacutegica optamos por empregar o termo praacutexis para nos referir agrave conduta ou agraves accedilotildees ligadas agrave compreensatildeo physioloacutegica da realidade enquanto faremos uso da palavra praacutetica em sentido mais geral (BAILLY Anatole Grand Bailly Dictionnaire Grec-Franccedilais Paris Hachette 1935)
20 praacutetica de vida que decorre dessa compreensatildeo Tambeacutem remete agrave necessidade de aplicar a
doutrina de maneira que a conduta do saacutebio se decirc meio a um distanciamento das opiniotildees
vazias da ignoracircncia e de tudo o que obscurece a compreensatildeo da imanecircncia da vida Dessa
forma a partir da investigaccedilatildeo physioloacutegica e de uma reflexatildeo sobre como esse entendimento
pode levar agrave boa realizaccedilatildeo da vida vai ser possiacutevel agir de maneira que toda escolha e toda
recusa conduzam para uma aproximaccedilatildeo entre o modo de viver do saacutebio e um paradigma
natural pensado a partir do que se conhece da phyacutesis
Ao pensar a meditaccedilatildeo como uma ocupaccedilatildeo da psycheacute voltada para compreender a
realidade e como se conduzir diante dela de maneira a que o modo de ser produza um estado
de imperturbabilidade e ao conceber a praacutexis como as accedilotildees as escolhas e recusas que o
saacutebio faz a partir do conhecimento que tem sobre a natureza e tendo em vista realizar uma
vida equilibrada e frugal - o que nos remete para um exerciacutecio continuo de espelhamento em
seu modo de viver da compreensatildeo que tem sobre o modo proacuteprio que a natureza tem de se
realizar - Epicuro nos remete para o que podemos pensar como exerciacutecios eacuteticos e eacute como tal
que a pragmateiacutea epicurista se efetiva
Embora o uso desse substantivo na Carta a Heroacutedoto seja comumente interpretado
como uma referecircncia a um sistema ou doutrina30 sem que se relacione isso com uma
dinacircmica que inter-relaciona physiologiacutea eacutetica e aacuteskesis ao modo de ser do saacutebio ou ao
exerciacutecio da sabedoria eacute preciso lembrar que o sentido do termo pragmateiacutea31 tambeacutem diz
respeito agrave maneira de tratar de algo ao cuidado que dedicamos ao fazer alguma coisa32 o que
implica em buscar um objetivo em se ocupar em se aplicar em procurar alcanccedilar uma
finalidade e tambeacutem pode fazer referecircncia a afazeres33 atividades praacuteticas
Nesse sentido e considerando o disposto ateacute aqui aventamos que para escapar agrave
tendecircncia para se pensar a filosofia de Epicuro a partir de recortes ou descolamentos de
ldquocampos de saberrdquo o que embota o sentido orgacircnico que caracteriza a tradiccedilatildeo do Jardim e
para natildeo conceber a aacuteskesis epicurista como um exerciacutecio-meio posto que a vida feliz se faz
enquanto exerciacutecio de uma vida saacutebia cabe interpretar o epicurismo como uma pragmateiacutea
como uma atividade permanente de realizaccedilatildeo de um modo de viver em consonacircncia com a
compreensatildeo que se tem da phyacutesis A pragmateiacutea epicurista remete para como o saacutebio pensa a
30 Gama Cury traduz como sistema sistema doutrinaacuterio em Vida e Doutrinas dos Filoacutesofos Ilustres Brasiacutelia UnB 2008 Marcel Conche traduz como sistema em Epicure lettres et maximesVillers-Sur-Mer Mecare 1977 31 DL X 35 77 83 Πραγματεία 32 BAILLY Anatole Grand Bailly Dictionnaire Grec-Franccedilais Paris Hachette 1935 33 The Online Liddell-Scott-Jones Greek-English Lexicon (httpstephanustlguciedulsjeid=1 acessado em 13 de fevereiro 2019)
21 realidade e a partir disso atua sobre si mesmo e nas relaccedilotildees que estabelece no mundo
tencionando realizar o sentido natural de sua existecircncia Isso se efetiva por meio de meditaccedilatildeo
e de praacutexis praacuteticas que restabelecem a autarquia e o equiliacutebrio na medida em que buscam um
espelhamento da physiologiacutea no eacutethos do saacutebio
Eacute a partir dessa hipoacutetese que estabelecemos uma interpretaccedilatildeo do pensamento
epicurista a partir da explicitaccedilatildeo do sentido de sua pragmateiacutea como um exerciacutecio eacutetico que
articula a physiologiacutea a um modo de vida autaacuterquico e equilibrado A tal desafio dedicamos
este trabalho de arqueologia do pensamento epicurista a partir da anaacutelise e interpretaccedilatildeo do
limitado acervo de textos de Epicuro34 que a tradiccedilatildeo conservou Trata-se de uma produccedilatildeo
que ainda requer mais atenccedilatildeo dado o valor das discussotildees que envolvem entre tantos temas
a relaccedilatildeo entre filosofia e sabedoria homem e natureza liberdade e necessidade eacutetica e modo
de viver Ainda que a influecircncia do epicurismo tenha se estendido ateacute o mundo greco-romano
por cerca de sete seacuteculos apoacutes a morte de Epicuro a quase totalidade da obra dele se perdeu
(tenha sido por accedilatildeo deliberada daqueles que combatiam sua forma de pensar avessa agrave
poliacutetica agrave religiatildeo aos mitos tenha sido por desastre como a erupccedilatildeo do Monte Vesuacutevio que
em 79 dC calcinou e soterrou a cidade de Herculano e com ela toda uma biblioteca
epicurista ou pelos mais de 23 seacuteculos que nos separam da philosophiacutea de Epicuro) o que
implica muitas vezes em leituras enviesadas lacunares ou sem o devido rigor acadecircmico
Dadas essas razotildees destacamos que recorremos a publicaccedilotildees claacutessicas e recentes para
recompor o legado do pensamento epicurista como o trabalho de Arrighetti Bollack Conche
Festugiegravere Gual Joyau Lledoacute Salem Solovine e Silva entre outros Tomamos por base o
conteuacutedo expresso em trecircs cartas35 e 40 Maacuteximas Capitais conservadas por Dioacutegenes Laeacutercio
no livro X de Vidas e Doutrinas de Filoacutesofos Ilustres Tambeacutem nos detemos sobre as 81
sentenccedilas que foram descobertas em um manuscrito da Biblioteca Vaticana e publicadas em
1888 por Karl Wotke como Sentenccedilas Vaticanas36 Analisamos ainda a doxografia
preservada e reunida por Hermann Usener em Epicurea Ademais nos debruccedilamos sobre o
conteuacutedo de alguns fragmentos dos Papiros Herculanenses37 (estima-se que eles pertenciam agrave
biblioteca do epicurista romano Filodemo) e dos fragmentos descobertos no siacutetio arqueoloacutegico
34 Teria escrito mais de 300 volumes Ainda que se trate de um pensador com vasta produccedilatildeo como relatou Dioacutegenes Laeacutercio pouco desse material foi conservado 35 Carta a Meneceu Carta a Piacutetocles e Carta a Heroacutedoto 36 Embora estudos digam que nem todas satildeo de Epicuro podendo algumas serem atribuiacutedas aos disciacutepulos Metrodoro e Hermarco 37 Fragmentos de papiros recuperados da Biblioteca de Herculano Localizada ao sul da Itaacutelia a cidade de Herculano foi soterrada no ano de 79 pela erupccedilatildeo do Monte Vesuacutevio Os restos da biblioteca foram descobertos em 1750 quando mais de 1500 rolos de papiros foram achados parcialmente carbonizados
22 de Œnoanda (na Turquia) Satildeo inscriccedilotildees que o epicurista Dioacutegenes de Œnoanda mandou
esculpir por volta do seacuteculo II dC em um muro para que os viajantes que passassem por ali
tivessem contato com a filosofia epicurista E consideramos como uma referecircncia importante
para a compreensatildeo do epicurismo o poema em seis livros Da Natureza do poeta romano
Lucreacutecio
Dividimos o trabalho em trecircs capiacutetulos
O primeiro apresenta os fundamentos da pragmateiacutea epicurista ou de como a
physiologiacutea o conhecimento (gnoacutesis) e a teacutecnica (teacutechne) satildeo pensados por Epicuro O
objetivo eacute mostrar que a filosofia visa colocar diante do homem um saber que possa ser uacutetil agrave
sua realizaccedilatildeo Para isso destacaremos como a alma (psycheacute) opera para a partir do que a
sensibilidade lhe apresenta como dados da realidade imanente pensar sobre sua finalidade e
sobre um modo de viver que possa realizaacute-la
O segundo capiacutetulo discorre sobre a meditaccedilatildeo ou como a pragmateiacutea eacute exercitada
pela alma Tem-se por escopo explicar como agrave luz da physiologiacutea a reflexatildeo sobre temas
como a morte os deuses a felicidade e a dor por exemplo vai constituir um loacutegos
terapecircutico fundamental para estabelecer um distanciamento das opiniotildees vazias e incitar uma
disposiccedilatildeo para efetivar um eacutethos voltado para alegria e a tranquilidade
E o terceiro capiacutetulo vai discorrer sobre a praacutexis Trata-se de expor como a pragmateiacutea
se delineia na conduta do saacutebio a partir do saber physioloacutegico Para isso vatildeo ser enfocadas as
praacuteticas de relacionamento social A vida discreta (relacionada ao laacutethe biocircsas) a amizade
(philiacutea) a vida em comunidade (koinoniacutea) satildeo aspectos do eacutethos do saacutebio que permitem
pensar sua accedilatildeo a partir de uma busca por conviacutevios assentados em sentimentos de afinidade e
de homologiacutea (igualdadeequiliacutebrio) levando agrave liberdade para realizar a autenticidade de cada
um Tambeacutem destacamos nesse capiacutetulo como a pragmateiacutea se constitui como um exerciacutecio
da sabedoria voltada para a realizaccedilatildeo de uma vida autecircntica frugal livre e feliz Para tanto
vamos discutir como a eacuteticaphysiologiacutea epicuacuterea eacute realizada enquanto praacutetica libertadora e
terapecircutica
23
CAPIacuteTULO 01
DA PHYSIOLOGIacuteA AO EacuteTHOS ndash
OS FUNDAMENTOS DA PRAGMATEIacuteA EPICURISTA
No pensamento epicurista eacute estabelecida uma relaccedilatildeo entre a compreensatildeo que se tem
da realidade (phyacutesis) e o modo de viver Considera-se que a partir da investigaccedilatildeo acerca da
natureza (physiologiacutea) eacute possiacutevel orientar o eacutethos do homem para realizaccedilatildeo de uma vida feliz
(makariacuteos zecircn)1 Essa perspectiva estaacute presente na definiccedilatildeo que Sexto Empiacuterico2 apresenta da
filosofia do Jardim quando diz que os epicuristas buscavam apresentar uma ldquoarte de vidardquo
sentido advindo da expressatildeo teacutechnen tinaacute periacute ton biacuteon3 Em seguida diz-se que por essa
razatildeo Epicuro afirmava ser a filosofia uma arte que por discurso e razatildeo busca uma vida
feliz4 A mesma ideia consta nos fragmentos Us 227 e 227b onde eacute dito que Epicuro definiu
tal arte como um procedimento que busca ser uacutetil a vida5 Eacute nesse enquadramento e com essa
finalidade que a physiologiacutea eacute desenvolvida por Epicuro e sobre isso falamos a seguir
11 ndash A physiologiacutea
A physiologiacutea em sentido geral diz respeito agrave investigaccedilatildeo ou exposiccedilatildeo sobre a
natureza (phyacutesis) No livro primeiro da Metafiacutesica Aristoacuteteles usa esse termo para se referir
ao modelo de filosofia praticado pelos primeiros pensadores que chamava de physiologoacutes6 Eacute
neles em especial nos da Jocircnia7 que Epicuro se inspira para pensar a natureza como fonte de
um conhecimento que possa servir para encetar um modelo de realizaccedilatildeo para o homem Em
busca de dar uma fundamentaccedilatildeo ontoloacutegica e um vieacutes praacutetico para a eacutetica Epicuro tambeacutem
1 A vida feliz (μακαρίως ζην) eacute a expressatildeo de um sentido de equiliacutebrio (aqui expresso em uma noccedilatildeo geral) mas que eacute trabalhada por Epicuro em termos de ἀταραξία (ausecircncia de perturbaccedilatildeo na alma) ἀπονία (ausecircncia de dores do corpo) ευσταθέια (boa disposiccedilatildeo) Essas definiccedilotildees encontram-se desenvolvidas por Markus Silva Epicuro Sabedoria e Jardim Rio de Janeiro Relume-Dumaraacute 2003 2 Us 219 Sexto Empiacuterico (Adv Math V 9) 169 επαγγέλλονται γαρ τέχνην τινά περί τον βίον παραδώσειν καΐ δια τούτο Έπίκούρος μεν έλεγε την φιλοσοφίαν ένέργειαν εΐναι λόγοις καΐ διᾰλογισμοΐς τον εύδαίμονα βίον περιποιοθσαν 3 τέχνην τινά περί τον βίον 4 τον εύδαίμονα βίον περιποιοσαν 5 τέχνη εστί μέθοδος ενεργούσα τω βίψ το συμφέρον 6 Aristoacuteteles Metafiacutesica Α5 986b10 7 Anaximandro Anaxaacutegoras Heraacuteclito
24 vai recorrer ao legado de Demoacutecrito Leucipo e Empeacutedocles entre outros preacute-socraacuteticos Isso
porque ele pretende retomando o pensamento que o antecedeu fundamentar na natureza um
modo de viver Seu projeto eacute elaborar uma filosofia que possa conduzir ao esclarecimento
com relaccedilatildeo aos modos de ser da phyacutesis a como ela opera e ateacute que ponto ela determina as
condiccedilotildees de realizaccedilatildeo do homem Eacute preciso haver essa compreensatildeo para se estabelecer um
discernimento a respeito dos propoacutesitos que estatildeo de acordo com a natureza e devem ser
perseguidos e aqueles que resultam das opiniotildees vazias (kenaigrave doacutexai) e devem ser rejeitados
Esse esclarecimento vai ser fundamental para fazer uma correspondecircncia entre o discurso
filosoacutefico e a maneira como se vive
Pensar e viver de acordo com o que se pensa foi um ideal de algumas escolas
filosoacuteficas helenistas8 e Epicuro conservando essa premissa vai elaborar uma compreensatildeo
da phyacutesis cujas repercussotildees vatildeo estar diretamente ligadas agrave necessidade de transformar o
eacutethos do homem grego Eacute a partir de uma redefiniccedilatildeo da forma de perceber a realidade e o
papel de si mesmo no mundo que se pretende redirecionar o estilo de vida Trata-se de
postular um exerciacutecio de investigaccedilatildeo e de entendimento sobre a natureza que jaacute se constitui
como expressatildeo de uma alteraccedilatildeo no modo de existir Eacute nesses termos que a physiologiacutea eacute
apresentada na Carta a Heroacutedoto
Portanto sendo tal caminho uacutetil a todos que se familiarizaram com a investigaccedilatildeo da natureza eu que dedico incessantemente minhas energias agrave investigaccedilatildeo da natureza e desse modo de viver tiro principalmente a minha calma preparei para teu uso uma espeacutecie de epiacutetome e um sumaacuterio dos elementos fundamentais de minha doutrina em sua totalidade (DL X 37) 9
Dessa citaccedilatildeo podemos destacar alguns aspectos O primeiro diz respeito ao caraacuteter
uacutetil do estudo da natureza Ela natildeo eacute apresentada como uma disciplina ou um sistema teoacuterico
sobre a phyacutesis mas relacionada - pelo uso do termo eneacutergema10- a uma ocupaccedilatildeo accedilatildeo ou
atividade cotidiana visando o bem-estar Dessa forma a physiologiacutea para aleacutem de uma visatildeo
acerca da realidade estaacute atrelada a um modo especiacutefico de viver o saacutebio (sophoacutes) ao
perquirir a phyacutesis exercita a proacutepria imperturbabilidade (ataraxiacutea) Isso porque para Epicuro
eacute dessa permanente atividade de buscar compreender a phyacutesis que o saacutebio por si mesmo
estabelece um eacutethos fundamentado na natureza a despeito do que eacute convencionado exoacutegeno
artificial Eacute ancorada nessa perspectiva que a physiologiacutea vai ser delineada como um saber
8 Cinismo estoicismo 9 ὅθεν δὴ πᾶσι χρησίμης οὔσης τοῖς ᾠκειωμένοις φυσιολογίᾳ τῆς τοιαύτης ὁδοῦ παρεγγυῶν τὸ συνεχὲς ἐνέργημα ἐν φυσιολογίᾳ καὶ τοιούτῳ μάλιστα ἐγγαληνίζων τῷ βίῳ ἐποίησά σοι καὶ τοιαύτην τινὰ ἐπιτομὴν καὶ στοιχείωσιν τῶν ὅλων δοξῶν 10 ἐνέργημα pode ser traduzida por ato operaccedilatildeo (no sentido de atividade) Cf Anatole Bailly Op Cit
25 para ser uacutetil no projeto de construccedilatildeo de um modo de viver com base no que eacute inteligido ao se
estudar a phyacutesis Eis o porquecirc de Epicuro afirmar
() a funccedilatildeo da ciecircncia da natureza (physiologiacutea) eacute a determinaccedilatildeo precisa da causa dos elementos principais e nesse conhecimento consiste a felicidade e tambeacutem no conhecimento da natureza real dos corpos que vemos no ceacuteu e na aquisiccedilatildeo de conhecimentos afins que contribuem para o conhecimento completo a esse respeito indispensaacutevel tambeacutem agrave felicidade (DL X 78)11
Quanto mais o homem se exercita na physiologiacutea buscando compreender as forccedilas
que operam no movimento de realizaccedilatildeo da phyacutesis e como se daacute essa dinacircmica mais ele pode
pensar sobre seu sentido de ser no mundo e com isso definir a melhor maneira de viver para
a finalidade que intelige a partir dessa investigaccedilatildeo Assim a physiologiacutea eacute elaborada tendo
em vista e se constituindo como um exerciacutecio de viver a partir do que se pode saber sobre a
natureza Se como afirma SILVA (2003 p 23) ldquoEpicuro define a physiologiacutea como um
exerciacutecio (aacuteskesis) constante de compreensatildeo dessa realidade que eacute para ele a phyacutesisrdquo esse
entendimento remete para uma praacutetica de vida dado que o saacutebio vai colocar para si como
finalidade a tranquilidade - que remete para a percepccedilatildeo de equiliacutebrio que se tem ao observar
a natureza Em outros termos se o eacutethos do saacutebio implica em uma investigaccedilatildeo da phyacutesis eacute
no exerciacutecio de pensar a phyacutesis que ele intelige dela o conhecimento necessaacuterio para orientaacute-
lo na consecuccedilatildeo desse eacutethos Porquanto o saacutebio contempla a natureza calma e estabelece uma
analogia entre como ela se realiza externamente e como ela pode ser realizar internamente
nele mesmo ele vai estabelecer um modo de viver que o faccedila ter essa experiecircncia de
harmonia dentro de si
Daiacute podemos evidenciar outro aspecto da filosofia epicurista a indissociabilidade
entre a physiologiacutea e a eacutetica A investigaccedilatildeo da natureza permite conceber a phyacutesis como um
paradigma de realizaccedilatildeo a partir do qual o saacutebio pensa os limites e os propoacutesitos de sua
existecircncia e busca viver conforme esse entendimento Eacute nesse sentido que vai a advertecircncia de
Epicuro
Se em cada ocasiatildeo em vez de submeter tuas accedilotildees ao objetivo da natureza preferires voltar-te para qualquer outro padratildeo de referecircncia mais proacuteximo quando estiveres fazendo uma escolha ou rejeiccedilatildeo tuas accedilotildees natildeo se coadunaratildeo com teus princiacutepios (DL X 14812)
11 Καὶ μὴν καὶ τὴν ὑπὲρ τῶν κυριωτάτων αἰτίαν ἐξακριβῶσαι φυσιολογίας ἔργον εἶναι δεῖ νομίζειν καὶ τὸ μακάριον ἐν τῇ περὶ μετεώρων γνώσει ἐνταῦθα πεπτωκέναι καὶ ἐν τῷ τίνες φύσεις αἱ θεωρούμεναι κατὰ τὰ μετέωρα ταυτί καὶ ὅσα συγγενῆ πρὸς τὴν εἰς τοῦτο ἀκρίβειανmiddot 12 Εἰ μὴ παρὰ πάντα καιρὸν ἐπανοίσεις ἕκαστον τῶν πραττομένων ἐπὶ τὸ τέλος τῆς φύσεως ἀλλὰ προκαταστρέψεις
26 Ao alicerccedilar sua filosofia no estudo da natureza Epicuro estaacute buscando transformar a
compreensatildeo que o homem tem sobre a phyacutesis e fazecirc-lo relacionar isso com o seu proacuteprio
modo de agir Se sua conduta era pensada no contexto da poacutelis13 visando o exerciacutecio da
cidadania e da poliacutetica trata-se de entatildeo apresentar uma alternativa ao modo de entender o
mundo e nele o papel que o homem pode pensar para si mesmo Natildeo mais a poacutelis mas a
phyacutesis natildeo mais o homem ciacutevico mas o homem para si para experimentar uma vida feliz
(makariacuteos zecircn) Isso porque como esclarece SILVA (2003 p 23) ldquopara Epicuro a natureza
eacute a fonte ou o princiacutepio da vida fiacutesica psiacutequica e eacuteticardquo
Vemos com isso uma mudanccedila na maneira de enxergar o homem A perspectiva eacute
pensar o sentido da existecircncia dele como ser da natureza Dessa maneira a physiologiacutea vai
delinear um movimento de (re)aproximaccedilatildeo entre ele e uma phyacutesis que lhe serve como
espelho para sua realizaccedilatildeo Daiacute que eacute a partir de um desvelamento da phyacutesis ateacute onde eacute
possiacutevel que satildeo pensados o sentido da vida e as accedilotildees do saacutebio - que levam a realizaccedilatildeo
desse sentido Eacute nesses termos que a physiologiacutea vai fundamentar a eacutetica epicurista tanto
quanto remete para a necessidade de uma aproximaccedilatildeo homemnatureza
Eacute no contexto dessa sinergia que posicionamos o postulado segundo o qual uma vida
saacutebia eacute aquela que se realiza como um exerciacutecio de viver de acordo com a natureza (katagrave
phyacutesin) Mas o que significa uma vida katagrave phyacutesin e como ela se relaciona com o estudo da
phyacutesis Antes de entrarmos nessa questatildeo cabe contudo apresentar aqui mesmo que de
modo sumaacuterio a compreensatildeo que Epicuro tem acerca da phyacutesis
111 A phyacutesis
Eacute do entendimento de como a natureza se realiza que vai ser possiacutevel estabelecer uma
relaccedilatildeo com um modo saacutebio de viver Daiacute porque compreender o sentido atribuiacutedo ao uso do
termo phyacutesis vai ser fundamental para destacar o percurso e o projeto filosoacutefico epicurista E eacute
em torno disso que vatildeo orbitar questotildees de natureza gnosioloacutegica e eacutetica como veremos
A histoacuteria natildeo nos possibilitou o acesso aos trinta e sete volumes14 que Epicuro
dedicou ao estudo da phyacutesis restando-nos sobre esse tema apenas as proposiccedilotildees
εἴτε φυγὴν εἴτε δίωξιν ποιούμενος εἰς ἄλλο τι οὐκ ἔσονταί σοι τοῖς λόγοις αἱ πράξεις ἀκόλουθοι 13 O que se postula eacute uma vida de acordo com a natureza (katagrave phyacutesin) portanto mais proacutexima do Jardim e mais afastada da poacutelis da Aacutegora como veremos no item 12 Para os epicuristas uma vida katagrave phyacutesin passa por natildeo ser influenciado nem pela poliacutetica nem pela religiatildeo nem pela cultura nem pelas opiniotildees vazias (kenaigrave doacutexai) 14 Em DL X 27 Dioacutegenes Laeacutercio nos fala da existecircncia da obra Da Natureza em 37 livros dedicados a examinar a phyacutesis
27 fundamentais que constam na Carta a Heroacutedoto que se constitui como um resumo dessa obra
maior (Perigrave Physeos) Entatildeo eacute a partir desse escasso material que precisamos evidenciar o
entendimento de Epicuro com relaccedilatildeo agrave phyacutesis e de que forma o saber que se pode ter sobre
ela pode definir a conduta do saacutebio
Em sentido geral tem sido corrente traduzir o termo phyacutesis por meio de conceitos
como natureza universo ou mesmo realidade Mas conveacutem fazer algumas observaccedilotildees quanto
ao uso que dele faz Epicuro Etimologicamente15 phyacutesis (φύσις -εως) traz a ideia de gerar
fazer crescer engendrar E eacute nessa acepccedilatildeo que Epicuro usa o termo quando trata da geraccedilatildeo
dos corpos compostos e dos mundos (koacutesmoi) Para usarmos as palavras de A Bailly16 ele faz
referecircncia agrave phyacutesis no sentido de ldquoaccedilatildeo de fazer nascer formaccedilatildeo produccedilatildeordquo Verificamos
isso no passo 45 da Carta a Heroacutedoto onde se fala do movimento dos aacutetomos que se
chocando contra outros tanto pode gerar novos compostos quanto pode levar agrave desagregaccedilatildeo
de agrupamentos que jaacute existem Processo que se repete desde sempre e para sempre Assim
ldquoessa repeticcedilatildeo se tivermos em mente todos os pontos mencionados proporciona um esboccedilo
suficiente para o entendimento da natureza (phyacuteseos) das coisas fundamentaisrdquo (DL X 45)17
Mas o termo tambeacutem eacute empregado quando se trata daquilo que eacute origem princiacutepio
(archeacute) de algo Isso diz respeito aos compostos e ao vazio (soacutemata kai kenoacuten) como se
mostra respectivamente nestas passagens ldquoDisso resulta necessariamente que esses
elementos que se agrupam de vaacuterias maneiras satildeo indestrutiacuteveis e natildeo tem a natureza (phyacutesin)
do mutaacutevel ()rdquo (DL X 54)18 ldquoSe aquilo que chamamos vazio ou espaccedilo ou aquilo que por
natureza (phyacutesin) eacute intangiacutevel ()rdquo (DL X 40)19
Epicuro tambeacutem usa phyacutesis quando quer aludir ao todo ou ao que eacute tomado em sua
totalidade ou em sua constituiccedilatildeo Tal eacute o caso verificado no passo 35 tambeacutem da Carta a
Heroacutedoto Nele se diz ldquopara os incapazes de estudar acuradamente cada um de meus escritos
sobre a natureza (Perigrave Physeos) ()rdquo (DL X 35) Note-se que ao dizer ldquosobre a naturezardquo
Epicuro se refere agrave ldquonatureza ou maneira de serrdquo20 tanto daquilo que compotildee o microcosmo
quanto do que eacute percebido pelos sentidos Nesse caso a phyacutesis eacute considerada como
ldquodisposiccedilatildeo naturalrdquo21 para ser o que se eacute ou em outros termos em seus modos de realizaccedilatildeo
15 CHASSANG A Dictionnaire Grec-Franccedilais Paris Garnier Fregraveres 1865 16 Anatole Bailly Op Cit 17 Ἡ τοσαύτη δὴ φωνὴ τούτων πάντων μνημονευομένων τὸν ἱκανὸν τύπον ὑποβάλλει ltταῖς περὶgt τῆς τῶν ὄντων φύσεως ἐπινοίαις 18 ὅθεν ἀναγκαῖον τὰ [μὴ] μετατιθέμενα ἄφθαρτα εἶναι καὶ τὴν τοῦ μεταβάλλοντος φύσιν οὐκ ἔχοντα 19 εἰ ltδὲgt μὴ ἦν ὃ κενὸν καὶ χώραν καὶ ἀναφῆ φύσιν ὀνομάζομεν 20 Anatole Bailly OpCit 21 Anatole Bailly Idem
28 Considerando essas nuances podemos falar da compreensatildeo que a physiologiacutea tem a
respeito de como se realiza a phyacutesis22 Para Epicuro ela se apresenta segundo quatro
maneiras
O todo (tograve pacircn) eacute a realizaccedilatildeo da phyacutesis tomada em seu niacutevel macrofiacutesico Diz respeito
agrave totalidade de tudo o que haacute se estendendo indefinidamente no tempo e espaccedilo pois ldquoo todo
eacute infinitordquo (DL X 41)23 Enquanto totalidade a phyacutesis eacute imutaacutevel ldquoporque aleacutem do todo
nada haacute que possa penetrar nele e provocar transformaccedilatildeordquo (DL X 39)24 e porque as
mudanccedilas que acontecem com os corpos mundos e microcosmos natildeo alteram sua constituiccedilatildeo
geral ldquoo todo sempre foi exatamente como eacute agora e sempre seraacute assimrdquo (idem)25 As
alteraccedilotildees apenas se datildeo no niacutevel dos compostos que o constituem Dessa forma o todo pode
ser compreendido como uno na sua integralidade e muacuteltiplo naquilo que o compotildee corpos
(ser) e vazio (natildeo ser)26
Sendo o todo constituiacutedo de corpos e vazios entatildeo outra forma de realizaccedilatildeo da
phyacutesis apontada por Epicuro se verifica na dimensatildeo microcoacutesmica dela Aiacute encontramos o
que tambeacutem natildeo se modifica se caracterizando como fundamento de toda a realidade Esse
entendimento estabelecido a respeito desse outro modo de realizaccedilatildeo da phyacutesis tem suas bases
no pensamento preacute-socraacutetico sob a forma do atomismo de Leucipo e Demoacutecrito27 ldquoos
primeiros princiacutepios do universo satildeo os aacutetomos e o vaziordquo Lucreacutecio diraacute a esse respeito ldquotoda
a natureza enquanto existe por si mesma eacute formada de duas coisas existem com efeito os
corpos e o vazio no qual estes se encontram e onde se movimentam nas vaacuterias direccedilotildeesrdquo
(Lucr I 419-421)28 Eacute a partir dessa concepccedilatildeo atomiacutestica preacute-socraacutetica que Epicuro vai tentar
explicar a pluralidade daquilo que existe
O conceito de aacutetomo29 (aacutetomos) remete ao que eacute pequeno impenetraacutevel maciccedilo
22 Uma discussatildeo mais detalhada sobre os modos de realizaccedilatildeo da phyacutesis pode ser encontrada no capiacutetulo 01 de Sabedoria e Jardim de Markus Figueira da Silva Op Cit 23 τὸ πᾶν ἄπειρόν ἐστι 24 παρὰ γὰρ τὸ πᾶν οὐθέν ἐστιν ὃ ἂν εἰσελθὸν εἰς αὐτὸ τὴν μεταβολὴν ποιήσαιτο 25 Καὶ μὴν καὶ τὸ πᾶν ἀεὶ τοιοῦτον ἦν οἷον νῦν ἐστι καὶ ἀεὶ τοιοῦτον ἔσται 26 Temos aqui uma ontologia que admite o natildeo-ser como ser O vazio tem existecircncia eacute o natildeo-ser com propriedade de ser Vale lembrar que desde Demoacutecrito o vazio eacute dotado de existecircncia uma vez que eacute preciso admitir isso para que haja movimento 27 Conforme DL IX 44 Em Leucipo e Demoacutecrito de Abdera (460-360 aC) Epicuro encontra as bases de uma concepccedilatildeo atomista que vai lhe servir para a elaboraccedilatildeo de sua physiologiacutea 28 Omnis ut est igitur per se natura duabus constitit in rebus nam corpora sunt et inane haec in quo sita sunt et qua diversa moventur LUCREacuteCIO De Rerum Natura Joatildeo Pessoa Ideia 2016 Traduccedilatildeo introduccedilatildeo e notas de Juvino Alves Maia Junior Hermes Oriacutegenes Duarte Vieira e Felipe dos Santos Almeida 29 Aacutetomos (singular) aacutetomoi (plural) DL X 41 42 43 44 45 48 50 54 55 56 59 61 62 65 66 86 99 102 110 115
29 indivisiacutevel imutaacutevel uno Epicuro fala dos aacutetomos (aacutetomoi) como ldquoessecircncias inteirasrdquo30
reverberando a concepccedilatildeo atomista a respeito da menor partiacutecula corpoacuterea constitutiva da
phyacutesis Assim natildeo estaacute sujeito a sofrer modificaccedilatildeo em sua constituiccedilatildeo e nenhuma alteraccedilatildeo
qualitativa Ele natildeo vem a ser e natildeo deixa de ser Natildeo estando sujeito a mudanccedilas o aacutetomo eacute
pensado como um princiacutepio corpoacutereo de permanecircncia da phyacutesis o que nos remete assim como
o todo (tograve pan) para uma realidade ontologicamente definida como sendo sempre a mesma
Esses elementos satildeo os aacutetomos indivisiacuteveis e imutaacuteveis se eacute verdade que nem todas as coisas poderatildeo parecer e resolver-se no natildeo-ser Com efeito os aacutetomos satildeo dotados da forccedila necessaacuteria para permanecerem intactos e para resistirem enquanto os compostos se dissolvem pois satildeo impenetraacuteveis por sua proacutepria natureza e natildeo estatildeo sujeitos a uma eventual dissoluccedilatildeo Consequentemente os princiacutepios das coisas satildeo indivisiacuteveis e de natureza corpoacuterea (DL X 41)31
Como propriedades os aacutetomoi possuem forma (schematoacutes) tamanho (megeacutethous) e
peso (baacuterous) Eles satildeo inteligiacuteveis agrave psycheacute por meio de analogias a partir do que eacute percebido
pelos sentidos Eacute por meio dessa operaccedilatildeo que eacute possiacutevel estabelecer uma compreensatildeo a
respeito de suas caracteriacutesticas Sobre elas se diz que quanto agrave forma haacute aacutetomos diferentes
entre si o que permite a agregaccedilatildeo mais facilmente com uns e a incompatibilidade com
outros Mas essa variaccedilatildeo natildeo eacute infinita apenas incalculaacutevel Seu tamanho varia mas natildeo
infinitamente dado que nenhum pode ser percebido pelos sentidos Quanto ao peso eacute a causa
do movimento dos aacutetomos no vazio
O aacutetomos como explica Epicuro existe em quantidade infinita porque o todo eacute
infinito Ao se agregar a outros aacutetomos gera os corpos compostos Mas para que haja a
formaccedilatildeo desses outros corpos eacute preciso admitir que ldquoos aacutetomos estatildeo em movimento
contiacutenuo por toda a eternidaderdquo (DL X 43)32 e isso pressupotildee a existecircncia do vazio Afinal
eacute nele que os aacutetomos se movimentam E quando colidem uns com outros datildeo origem a novos
aglomerados ou desfazem desagregam devido a esses choques aqueles que foram formados
anteriormente
Mas esse vazio natildeo eacute o a causa do movimento atocircmico Para explicaacute-lo se faz
referecircncia a trecircs fatores o peso os choques e a declinaccedilatildeo Eacute o peso33 que faz com que os
30 Em grego ὅλας φύσεις Marcel Conche Op Cit traduz por naturezas completas 31 Ταῦτα δέ ἐστιν ἄτομα καὶ ἀμετάβλητα εἴπερ μὴ μέλλει πάντα εἰς τὸ μὴ ὂν φθαρήσεσθαι ἀλλrsquo ἰσχύοντα ὑπομενεῖν ἐν ταῖς διαλύσεσι τῶν συγκρίσεων πλήρη τὴν φύσιν ὄντα καὶ οὐκ ἔχοντα ὅπῃ ἢ ὅπως διαλυθήσεται ὥστε τὰς ἀρχὰς ἀτόμους ἀναγκαῖον εἶναι σωμάτων φύσεις 32 Κινοῦνταί τε συνεχῶς αἱ ἄτομοι τὸν αἰῶνα 33 J A M Pessanha em um estudo introdutoacuterio agrave traduccedilatildeo em portuguecircs da tese de doutoramento de Karl Marx destaca que o movimento atocircmico seguindo em linha reta como decorrecircncia de uma concepccedilatildeo de peso do aacutetomo
30 aacutetomos caiam retiliacuteneos vertical e paralelamente em velocidade constante no vazio infinito
Jaacute pelo choque algum aacutetomo em movimento colide com outro podendo redefinir sua
trajetoacuteria e produzir ou desfazer agregados atocircmicos Mas para haver esses choques entre
aacutetomos que caem paralelamente no vazio eacute preciso considerar a possibilidade de que eles
escapem a sua trajetoacuteria e assim colidam com outros A esse desvio se chama declinaccedilatildeo
(pareacutenklisis) o que seraacute traduzido por Lucreacutecio por clinamen34
Aqui precisamos tecer algumas consideraccedilotildees sobre o parecircnklisis dada a importacircncia
desse conceito para a fundamentaccedilatildeo da eacutetica epicurista Esses desvios que os aacutetomoi
descrevem em sua trajetoacuteria original satildeo no plano fiacutesico necessaacuterios para que haja as colisotildees
que levam agrave formaccedilatildeo de corpos compostos e dos mundos Trata-se de postular mais uma
causa para um movimento sutil do aacutetomos que se daacute sem fator externo a ele Tal declinaccedilatildeo
resulta de um princiacutepio intriacutenseco do aacutetomo da mesma forma que o peso E isso seria
suficiente para poder justificar um niacutevel de indeterminismo ou acaso operando junto agrave
causalidade mecacircnica da natureza
Eacute a partir desse fenocircmeno que vai ser possiacutevel a Epicuro defender a liberdade35
(eleutheriacutea) no campo eacutetico Para evitar o riacutegido determinismo engendrado ao se admitir
causas puramente mecacircnicas no movimento do aacutetomo a adoccedilatildeo uma casualidade permite
fundamentar ontologicamente o que - no plano eacutetico - diz respeito agrave liberdade humana
Mas a tese do parecircnklisis natildeo consta nos escritos que a tradiccedilatildeo nos legou de Epicuro
Neles observamos que tal desvio estaacute impliacutecito mas apenas na doxografia posterior eacute exposto
claramente Daiacute porque se abrem em torno dessa questatildeo vaacuterias discussotildees natildeo conclusivas A
principal delas levantada por Hermann Usener eacute que haveria uma lacuna textual no passo 43
da Carta a Heroacutedoto E ali poderia estar localizada a menccedilatildeo ao parecircnklisis Essa hipoacutetese eacute
acompanhada por Maurice Solovine (1965) e Jean Salem (1993)
Jean Pierre Faye em introduccedilatildeo ao texto de Maurice Solovine (1965) destaca o
trabalho de Aeacutecio Lucreacutecio Ciacutecero e Dioacutegenes de Œnoanda para tentar legitimar o
parecircnklisis como uma elaboraccedilatildeo de Epicuro para pensar no campo da phyacutesis um
existiria apenas em Epicuro MARX Karl Diferenccedila entre as Filosofias da Natureza em Demoacutecrito e Epicuro Satildeo Paulo Global Edtora sd 34 No canto II do poema Da Natureza onde Lucreacutecio versa sobre os fundamentos da eacutetica e sobre a filosofia como terapecircutica eacute explicitada a questatildeo do clinamen termo que aparece apenas uma vez no verso 292 Para se remeter ao desvio do aacutetomo ele tambeacutem usa palavras como depellere declinare inclinare (Lucr 219 221 243 250 253 259) ldquoClinamen parece ter sido criado por Lucreacutecio para evitar clinatio que natildeo podia entrar em seus versos hexacircmetrosrdquo (SALEM 1997 p 67) apud SILVA 2018 p 53 35 ldquoSe em bom materialismo filosoacutefico nada nasce do nada a liberdade que noacutes experimentamos agrave maneira de tudo que eacute vivo deve certamente traduzir em nossa escala uma propriedade presente no aacutetomo a declinaccedilatildeo seria precisamente essa propriedaderdquo (SALEM 1993 p 38)
31 fundamento para a liberdade humana Mas trata-se de uma incorreccedilatildeo pois natildeo haacute nos textos
atribuiacutedos a Epicuro o uso desse termo Ocorre que como explica Solovine teria havido a
inserccedilatildeo de um conceito pensado por epicuristas tardios mas seria errado afirmar estar
expressa nos escritos de Epicuro essa definiccedilatildeo ldquoE Solovine pensa mesmo em poder localizar
a zona de erro36 sem duacutevida com Zenatildeo de Sidon ou com Feacutedro o epicuristardquo (p 10) De
acordo com Faye eles eacute que teriam apresentado a noccedilatildeo de parecircnklisis Mas ldquoa uacutenica coisa
certa ateacute o presente eacute que nenhum texto antigo colocou em questatildeo a atribuiccedilatildeo da declinaccedilatildeo
ao pai dos epicuristasrdquo (p 12)37
Para suprir essa lacuna o poema de Lucreacutecio Da Natureza38 nos versos 216 a 293 do
canto II ao argumentar sobre o parecircnklisis diz que sem ele natildeo haveria o encontro dos
aacutetomos o que eacute fundamental para a criaccedilatildeo e para a diversidade daquilo que existe No verso
244 ele explica que esse movimento eacute um desvio nec plus quam minimum (natildeo mais que
miacutenimo) o que poderiacuteamos pensar como algo iacutenfimo e natildeo percebido pelos sentidos E nos
fragmentos de Dioacutegenes de Œnoanda podemos ler ldquonatildeo sabes tu quem quer sejas que haacute um
tipo de movimento livre nos aacutetomos que Demoacutecrito natildeo descobriu mas que Epicuro tornou
conhecido sendo uma declinaccedilatildeo como ele mostra a partir dos fenocircmenosrdquo (Œno fr 54
II)39 Ao dizer que Epicuro ldquomostra a partir dos fenocircmenosrdquo Dioacutegenes estaacute se referindo a um
recurso do pensamento que por meio de analogiacuteas com realidade sensiacutevel possibilita falar
daquilo que natildeo pode ser percebido pelos sentidos como os aacutetomos
Agora retomando o que diziacuteamos sobre os modos de ser da natureza quando Epicuro
se refere a corpos ele usa o termo socircma40 (σῶμα ατος) Mas cabe notar que haacute tanto os corpos
simples (o aacutetomo tomado individualmente) quanto os corpos compostos - formados por
agrupamento de aacutetomos e vazio a que ele tambeacutem se refere como de synkriacuteseis41 Eacute ao se
referir a esses compostos que Epicuro faz alusatildeo a mais uma maneira de realizaccedilatildeo da phyacutesis
Isso considera que as coisas vecircm a ser pela agregaccedilatildeo de aacutetomos e deixam de ser pela
desagregaccedilatildeo deles A synkriacuteseis diferentemente dos aacutetomos estaacute sujeita ao movimento de
geraccedilatildeo e corrupccedilatildeo E para isso como vimos tem um papel fundamental o movimento e o
36 Ou seja a partir dessa inserccedilatildeo conceitual feita por Zenatildeo e Feacutedro teria sido estabelecida a crenccedila de que a noccedilatildeo de parecircnklisis proveacutem dos textos de Epicuro 37 Essas possibilidades constam em MAFFEZZOLLI Marcone Eleutheriacutea a noccedilatildeo de liberdade na eacutetica de Epicuro Dissertaccedilatildeo de Mestrado UFRN 2010 38 LUCREacuteCIO Da Natureza Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 (Os Pensadores) 39 Ne sais-tu donc pas qui que tu puisses ecirctre qursquoil y a une sorte de mouvement libre dans les atomes que Deacutemocrite nrsquoa pas deacutecouvert mais qursquoEpicure fit connaicirctre eacutetant une deacuteclinaison comme il le montre agrave partir des pheacutenomenegraves 40 DL X 39 40 41 42 47 48 55 56 63 66 67 68 69 70 71 86 94 41 DL X 40 41 42 54 55 62 66 73 110
32 desvio de trajetoacuteria dos aacutetomoi permitindo que eles se agreguem a outros ou que seja a causa
da desagregaccedilatildeo dos conjuntos atocircmicos jaacute existentes Eacute esse movimento que explica que tais
corpos alterem sua forma aumentem ou diminuam de tamanho e de peso Estatildeo assim
sujeitos agraves mudanccedilas em suas caracteriacutesticas qualitativas na medida em que o ordenamento e a
quantidade de aacutetomos tambeacutem satildeo alterados Se a forma tamanho e peso inclinam certos
aacutetomos a se agregarem com outros em funccedilatildeo de similaridades quanto a essas caracteriacutesticas
do mesmo modo a incompatibilidade ou desacordo dessas caracteriacutesticas podem impedir ou
dificultar a formaccedilatildeo de outros arranjos corpoacutereos Em todo caso os aacutetomos que lhes formam
natildeo sofrem alteraccedilatildeo mas ldquoformam os compostos e nos aacutetomos os compostos se dissolvemrdquo
(DL X 42)42
Por fim quando Epicuro se refere aos mundos e para isso usa o termo koacutesmoi
tambeacutem estaacute se remetendo a mais uma forma de realizaccedilatildeo da phyacutesis
O mundo eacute uma porccedilatildeo circunscrita do universo compreendendo astros e terra e todas as coisas visiacuteveis destacado do infinito tem um periacutemetro redondo ou triangular ou de qualquer outra forma e termina num limite poroso ou denso em rotaccedilatildeo ou imoacutevel cuja dissoluccedilatildeo levaraacute agrave ruiacutena tudo que estaacute nele (DL X 88)43
O mundo eacute um ldquomegacorpordquo44 disperso pelo universo infinito meio a um nuacutemero
infinito de outros mundos Sendo constituiacutedo por outros corpos compostos mundos e por
aacutetomos e vazio estaacute sujeito a tanto ganhar elementos quanto perder Assim pode surgir
devido agrave agregaccedilatildeo de aacutetomos e corpos compostos e pode deixar de ser por desagregaccedilatildeo Em
suma eacute no mundo onde as coisas estatildeo
112 Necessidade e acaso
Ao falarmos de como Epicuro pensa os modos de realizaccedilatildeo da phyacutesis (tograve pan soacutemata
kaigrave kenoacuten synkriacuteseis e koacutesmos) procuramos destacar como o movimento dos aacutetomos
determinado pelo peso (baacuterous) e pela declinaccedilatildeo (parecircnklisis)45 eacute indispensaacutevel para
conceber os processos de geraccedilatildeo e corrupccedilatildeo dos corpos compostos e dos mundos
42 τὰ ἄτομα τῶν σωμάτων καὶ μεστά ἐξ ὧν καὶ αἱ συγκρίσεις γίνονται καὶ εἰς ἃ διαλύονται 43 Κόσμος ἐστὶ περιοχή τις οὐρανοῦ ἄστρα τε καὶ γῆν καὶ πάντα τὰ φαινόμενα περιέχουσα ἀποτομὴν ἔχουσα ἀπὸ τοῦ ἀπείρου καὶ [κατα]λήγουσα ἐν πέρατι ἢ ἀραιῷ ἢ πυκνῷ καὶ οὗ λυομένου πάντα τὰ ἐν αὐτῷ σύγχυσιν λήψεται [καὶ λήγουσαν] ἢ ἐν περιαγομένῳ ἢ ἐν στάσιν ἔχοντι καὶ στρογγύλην ἢ τρίγωνον ἢ οἵαν δήποτε περιγραφήνmiddot πανταχῶς γὰρ ἐνδέχεταιmiddot 44 SILVA Markus Termos Filosoacuteficos de Epicuro Coimbra Coimbra University Press 2018 p 48 45 Vale lembrar que o parecircnklisis natildeo eacute um termo encontrado nos textos que a tradiccedilatildeo nos legou de Epicuro mas a doxografia nos permite ver nessa definiccedilatildeo uma tese epicurista
33 Sublinhamos contudo que eacute a partir da noccedilatildeo de clinamen46 que o epicurismo explica como
os aacutetomoi desviam de sua trajetoacuteria e se chocam com outros dando origem no plano fiacutesico a
agregados tanto quanto podem desfazer os jaacute existentes E isso se daacute por meio de choques ou
encontros47 (apaacutentesis) em uma dinacircmica onde natildeo operam outras causas aleacutem das fiacutesicas
Esse desvio de rumo que se daacute ao acaso devido a um princiacutepio inerente ao proacuteprio aacutetomo vai
permitir compreender os fenocircmenos da natureza natildeo somente a partir de causas mecacircnicas
das quais natildeo se pode escapar Resulta daiacute a possibilidade de conceber os modos de realizaccedilatildeo
da phyacutesis a partir de uma relaccedilatildeo entre o que eacute inexoraacutevel e o que eacute contingente
Essa discussatildeo traz consigo duas noccedilotildees que vatildeo ser evocadas ao se pensar a
construccedilatildeo da conduta do saacutebio a necessidade (anaacutenke) e o acaso (tycheacute) Eacute considerando
uma reflexatildeo sobre esses aspectos que vai se buscar uma clareza quanto ao que concerne ao
homem mudar transformar quanto ao que ele pode evitar e o que ele deve buscar - e Epicuro
se refere a isso como o que ldquodepende de noacutesrdquo48 (parrsquohemacircs)49 Tambeacutem o sophoacutes deve ter o
discernimento para perceber aquilo que natildeo estaacute sob o seu alcance mudar o que ele natildeo pode
evitar circunstacircncias sobre as quais ele natildeo consegue intervir Assim tendo clara a percepccedilatildeo
sobre como opera a realidade eacute possiacutevel pensar a proacutepria realizaccedilatildeo meio ao que eacute inevitaacutevel
e ao que pode se fazer de outra maneira Afinal se ldquoalgumas coisas acontecem
necessariamente outras por acaso e outras dependem de noacutesrdquo (DL X 133)50 eacute preciso
entender a relaccedilatildeo entre a necessidade (anaacutenke) e o acaso (tycheacute) operando na natureza e
definindo os modos de realizaccedilatildeo da phyacutesis para poder postular a liberdade possiacutevel e
necessaacuteria para definir e praticar um modo de vida voltado para a realizaccedilatildeo de um modo
autecircntico de existir
A noccedilatildeo de anaacutenke no atomismo estaacute relacionada com a ldquonecessidade mecacircnica das
causas puramente fiacutesicas que operam sem finalidade (teacutelos)rdquo (SILVA 2003 p 36) Nos textos
de Epicuro anaacutenke se remete para a ldquonecessidade de realizaccedilatildeo de uma natureza particular
(corpo ou mundo) segundo seu modo proacuteprio de ser isto eacute ser por natureza eacute ser por
46 Essa referecircncia ao parecircnklisis eacute apresentada por Lucreacutecio no poema Da Natureza Ver nota 34 deste capiacutetulo Vale destacar que o clinamen eacute uma indeterminaccedilatildeo Na cineacutetica epicurista se trata de uma propriedade incerta indeterminada que poderia estar relacionada a uma propriedade determinada como o movimento baacutesico dos aacutetomos 47 Idem 48 DL X 133 49 A noccedilatildeo de parrsquohemacircs pode ser pensada como fazendo referecircncia ao que estaacute ao ldquonosso poderrdquo cf BARBOSA Renato dos Santos A Noccedilatildeo de Parrsquohemacircs na Filosofia de Epicuro o que pode o homem Tese apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia UFRN 2019 Ainda natildeo publicada 50 γίνεσθαι ἃ μὲν κατrsquo ἀνάγκην ἃ δὲ ἀπὸ τύχης ἃ δὲ παρrsquo ἡμᾶς διὰ τὸ τὴν μὲν ἀνάγκην ἀνυπεύθυνον εἶναι τὴν δὲ τύχην ἄστατον ὁρᾶν τὸ δὲ παρrsquo ἡμᾶς ἀδέσποτον
34 necessidaderdquo (Idem) Em Epicuro isso diz respeito a como as coisas tem naturalmente que ser
e acontecer Dessa forma natildeo haacute uma compreensatildeo de anaacutenke como algo relativo ao que eacute
fatalista determinista ou que remete para alguma divindade capaz de definir destinos a seu
gosto
Contudo verificamos que essa tem sido uma interpretaccedilatildeo corrente Nesse vieacutes
postula-se a anaacutenke como riacutegido determinismo natural que se estenderia ateacute o campo da
decisatildeo e da atuaccedilatildeo humana Observamos essa tendecircncia por exemplo na tese de Karl Marx
onde ele discute as Diferenccedilas entre as Filosofias da Natureza em Demoacutecrito e Epicuro51
Nela Epicuro e Demoacutecrito satildeo contrastados e as diferenccedilas de suas proposiccedilotildees filosoacuteficas
acerca da phyacutesis satildeo ldquoexageradamenterdquo acentuadas enfatizando no campo eacutetico um
distanciamento entre eles em prol da filosofia epicurista
Demoacutecrito na visatildeo de Marx eacute reduzido a um ceacutetico e empiacuterico que considera a
natureza tatildeo somente do ponto de vista da necessidade Jaacute Epicuro eacute apresentado como um
filoacutesofo dogmaacutetico que centra sua visatildeo de mundo a partir da noccedilatildeo de um acaso libertador
Mas ldquoessas contradiccedilotildees parecem encerrar um absurdo Eacute difiacutecil pensar que esses dois
homens que se opotildee em tudo defendam a mesma doutrina E todavia aparentemente
acham-se relacionados entre sirdquo avalia Pessanha52 Assim se a natureza eacute regida pela anaacutenke
que estabelece um riacutegido mecanismo e um determinismo extensivo tanto agrave phyacutesis e quanto agrave
anthropophyacutesis como pensar valores e modelos de conduta para o homem Como diante
daquilo que parece derrogar a possibilidade de liberdade ele pode julgar e escolher o que lhe
cabe Admitir apenas um princiacutepio gerador do movimento dos aacutetomos pensando-os com
regidos apenas por leis mecacircnicas implica em enredar o homem em um encadeamento de
eventos do qual ele natildeo poderia se desviar
Mas para aleacutem desse enquadramento o que Epicuro postula eacute que a anaacutenke deve ser
entendida com relaccedilatildeo ao modo de ser dos corpos e dos mundos que satildeo o que satildeo por
natureza ou seja por necessidade Mas essa necessidade natildeo se estende ao campo eacutetico daiacute
ele dizer que ldquocoisa maacute eacute a necessidaderdquo quando projetada ao campo do agir humano ldquomas
natildeo haacute necessidade nenhuma de viver com necessidaderdquo (SV 9)53 porque a anankeacute natildeo se
contrapotildee agrave liberdade que caracteriza o eacutethos do homem O sophoacutes sabe que algumas coisas
acontecem por necessidade outras por acaso mas tambeacutem haacute o que lhe compete54
51 Karl Marx Op Cit 52 Joseacute Ameacuterico Motta Pessanha em texto introdutoacuterio agrave tese de Marx (Op Cit) p 7 53 Κακὸν ἀνάγκη ἀλλrsquo οὐδεμία ἀνάγκη ζῆν μετὰ ἀνάγκης 54 DL X 133
35 Outra noccedilatildeo importante para pensar a conduta do saacutebio eacute estabelecida em torno do
termo tyacuteche Segundo definiccedilatildeo de Bailly55 o vocaacutebulo τύχη se refere ldquoao que o homem
espera por decisatildeo dos deusesrdquo Isso implica em colocaacute-lo na condiccedilatildeo de quem vecirc a proacutepria
realizaccedilatildeo como decorrente da sorte ou do acaso Uma vez que depende da deusa Tyacuteche
definir a fortuna ou os infortuacutenios que cabe a cada um isso lhe tira a possibilidade de ser o
protagonista de sua existecircncia
Aleacutem disso admitir esse tipo de forccedila divina agindo na natureza deixa margem para a
apreensatildeo e o medo quanto ao que haacute de acontecer Como nada poderia ser previsto o homem
viveria na anguacutestia de poder a qualquer momento se deparar com desventuras Ora ldquopor
causa da incerteza sua vida inteira seraacute levada agrave confusatildeo e jogada por terrardquo (SV 57)56 e isso
vai contra agrave necessidade de viver tranquilamente postulada por Epicuro
Mas na filosofia epicurista natildeo estaacute em questatildeo a accedilatildeo dos deuses mas das forccedilas que
naturalmente operam na phyacutesis E nesse sentido tyacuteche vai ser entendida como o acaso o
fortuito o que escapa agrave necessidade E isso estaacute relacionado agrave ldquonegaccedilatildeo de toda finalidade que
poderia existir no movimento necessaacuterio de constituiccedilatildeo e desconstituiccedilatildeo dos corpos e
mundosrdquo (SILVA 1993 p 36) Assim a ocorrecircncia do acaso nos fenocircmenos da natureza
restringe limita a anaacutenke permitindo conceber a phyacutesis desprovida de uma orientaccedilatildeo
teleoloacutegica e o homem sem a imposiccedilatildeo do destino O acaso existe como fenocircmeno fiacutesico
tanto quando a necessidade natildeo havendo nenhum aspecto miacutetico ou religioso determinando
os modos deles atuarem na natureza Eles se relacionam aos mecanismos de produccedilatildeo das
coisas agrave pluralidade dos mundos e agrave variedade dos corpos ou seja integram e permitem
compreender fenomenicamente os modos de realizaccedilatildeo da phyacutesis
Nesse sentido quando projetamos as noccedilotildees de anaacutenke e tyacuteche para o acircmbito da eacutetica
epicurista podemos preconizar que Epicuro quer ao defender a possibilidade de acaso na
phyacutesis aleacutem de circunscrever as causa do movimento no campo do imanente advogar um
niacutevel de liberdade para a deliberaccedilatildeo humana na anthropophyacutesis Afinal se a necessidade ao
evocar o sentido de destino ou divindade que define a trajetoacuteria de vida do homem prevalece
na natureza entatildeo ele estaria preso a uma teia de acontecimentos inexoraacuteveis diante dos quais
ele natildeo conseguiria exercitar sua vontade Nesse sentido natildeo caberia imputar a ele a
responsabilidade por suas accedilotildees uma vez que o homem natildeo poderia por si mesmo definir
sua maneira de viver Do mesmo modo se o acaso somente ele operasse na natureza o medo
55 Anatole Bailly Op Cit 56 εἰ γὰρ προήσεται τὸν φίλον ὁ βίος αὐτοῦ πᾶς διrsquo ἀπιστίαν συγχυθήσεται καὶ ἀνακεχαιτισμένος ἔσται
36 e a incerteza do que estaria por vir mitigaria a possibilidade de pensar uma vida tranquila
Assim ldquoeacute evidente que a necessidade gera a irresponsabilidade e que o acaso eacute inconstanterdquo
(DL X 133)57
De sorte que para Epicuro a natureza eacute regida a partir de uma relaccedilatildeo anaacutenketychegrave
onde o que acontece mesmo o acaso acontece por necessidade e portanto sem uma
finalidade (teacutelos) Ou seja os corpos satildeo gerados se desenvolvem e se desagregam por
necessidade Mas por necessidade o acaso tambeacutem interfere nessa natureza trazendo o
fortuito o contingencial para a realidade e permitindo explicar a pluralidade dos
acontecimentos E assim como a phyacutesis natildeo eacute acontecimento tatildeo somente da necessidade o
homem natildeo estaacute sempre enredado em uma teia fatalista da qual ele natildeo possa escapar No
campo eacutetico o acaso vai remeter agrave possibilidade de autodeterminaccedilatildeo do sophoacutes que pode
por si mesmo por analogia ao aacutetomo desviar sua trajetoacuteria definir seu modo de viver e
assumir as responsabilidades por suas escolhas Afinal
Se em bom materialismo filosoacutefico nada nasce do nada a liberdade que noacutes experimentamos como todos os seres vivos deve certamente traduzir em nossa escala uma propriedade realmente presente nos aacutetomos a declinaccedilatildeo seria precisamente essa propriedade (SALEM 1993 p 38)
E com base nessa relaccedilatildeo anaacutenketychegrave que se estabelece uma inter-relaccedilatildeo
fundamental entre a physiologiacutea e o eacutethos na medida em que permite pensar um
espelhamento no modo de viver do saacutebio daquilo que se estaacute inteligindo a partir de uma
reflexatildeo sobre as forccedilas que operam na natureza Note-se que eacute em torno da noccedilatildeo de acaso
que Karl Marx58 vai tematizar a liberdade humana Para ele da mesma forma que a phyacutesis natildeo
estaacute sujeita somente agrave necessidade a natureza humana tambeacutem natildeo E isso se estende para o
campo social onde haacute portanto a possibilidade do homem escapar a qualquer determinismo
pois ldquoas coisas que dependem de noacutes satildeo livremente escolhidas e satildeo naturalmente
acompanhadas de censura e louvorrdquo (DL X 133)59
Como resultado o saacutebio precisa meditar sobre toda essa relaccedilatildeo entre acaso e
necessidade e sobre os modos de ser da phyacutesis uma vez que isso diz respeito agrave sua proacutepria
realizaccedilatildeo Ao tentar explicar como a natureza se realiza e que forccedilas operam nesse processo
Epicuro o faz dentro dos limites de uma compreensatildeo sensiacutevel da realidade ldquoNa criaccedilatildeo dos
compostos atocircmicos na formaccedilatildeo de mundos complexos natildeo haacute intervenccedilatildeo nem da
57 διὰ τὸ τὴν μὲν ἀνάγκην ἀνυπεύθυνον εἶναι τὴν δὲ τύχην ἄστατον ὁρᾶν 58 Op Cit 59 τὸ δὲ παρrsquo ἡμᾶς ἀδέσποτον ᾧ καὶ τὸ μεμπτὸν καὶ τὸ ἐναντίον παρακολουθεῖν πέφυκεν
37 Divindade na forma de Providecircncia nem tampouco a Necessidade Natildeo haacute teleologia
coacutesmica neste sistema atocircmicordquo (GUAL 1985 p 113)
113 A Anthropophyacutesis (acerca da natureza humana)
O conhecimento acerca da phyacutesis e seus modos de ser vai ser fundamental para o
homem pensar as relaccedilotildees que ele estabelece no mundo e com a natureza Se Epicuro natildeo
recorre ao divino para pensar a phyacutesis tambeacutem natildeo o faz com relaccedilatildeo agrave anthropophyacutesis Esta
eacute concebida a partir do mesmo modelo explicativo que tem o aacutetomo (aacutetomos) como princiacutepio
(archeacute) de toda realidade e como elemento corpoacutereo (stoicheiacuteon) (portanto dotado de
qualidades como forma e peso) que vai constituir - devido aos movimentos aos choques agraves
agregaccedilotildees que resultam em corpos mundos - a realidade fenomecircnica Por este prisma o
homem eacute pensado como tendo uma natureza corpoacuterea como tudo mais que faz parte da
phyacutesis Ele eacute ser da natureza um corpo composto ou melhor um organismo (athroiacutesma) que
como outros tambeacutem tem seu modo de realizaccedilatildeo
Pelas definiccedilotildees que jaacute apresentamos podemos retomar uma que tambeacutem nos permite
falar do homem corpo (socircma) Esse termo tanto se refere a um corpo isolado (aacutetomos) quanto
a um agregado de aacutetomos e vazio Nessa acepccedilatildeo nos remetemos para o que vem a ser pela
agregaccedilatildeo e deixa de ser pela desagregaccedilatildeo de suas partes constitutivas Com isso o homem
enquanto - corpo-mateacuteria - estaacute sujeito agraves mudanccedilas advindas pelo tempo pelo movimento
pela relaccedilatildeo anaacutenketychegrave
Em outro sentido enquanto organismo vivo ele eacute pensado por Epicuro por meio do
termo sarkoacutes que etimologicamente como esclarece Bailly60 se refere agrave carne humana e dos
animais Assim o corpo-mateacuteria eacute concebido como corpo-carne quando pensamos nas
interaccedilotildees que o homem estabelece com o mundo Eacute esse sentido que Epicuro o usa para falar
da capacidade de sentir as coisas Eacute pelo sarkoacutes que as sensaccedilotildees da realidade fenomecircnica satildeo
percebidas Na Sentenccedila Vaticana 4 percebemos a indicaccedilatildeo desse papel do corpo-carne para
sentir as impressotildees que o meio coloca diante dele Ao falar da dor que pode incidir sobre o
homem e lhe causar sofrimento diz que ldquoaquela que perdura na carne (sarkiacute) tem um
dolorimento brandordquo61 Eacute o corpo quem recebe as impressotildees sensiacuteveis do mundo que vatildeo
servir ao pensamento para estabelecer um conhecimento (gnoacutesis) para fundamentar o modo de
60 Anatole Bailly Op Cit 61 αἱ δὲ πολυχρόνιοι τῶν ἀρρωστιῶν πλεονάζον ἔχουσι τὸ ἡδόμενον ἐν τῇ σαρκὶ ἤπερ τὸ ἀλγοῦν
38 viver do saacutebio Eacute a partir dessa compreensatildeo que vai se constituir uma relaccedilatildeo entre o corpo e
a sabedoria posto ser por meio dele que um saber eacute pensado e direcionado para estabelecer
um eacutethos de acordo com a natureza voltado para a autonomia e o equiliacutebrio como veremos
no item 13 deste capiacutetulo
Haacute tambeacutem a possibilidade de se referir ao homem como um athroiacutesma que eacute nas
palavras de Bailly62 um agregado uma coesatildeo Embora o termo possa ser usado para se
remeter a qualquer conjunto atocircmico existente na natureza o uso que Epicuro faz dessa
palavra evoca o sentido de organismo O homem seria entatildeo um corpo-organismo cujas
funccedilotildees vitais se voltam para o equiliacutebrio para o bem-estar para a sauacutede O corpo
desequilibrado tende a enfraquecer adoecer e morrer (se desagregar) Eacute a esse corpo-
organismo que Epicuro se refere quando afirma que ldquoa voz da carne eacute natildeo ter fome natildeo ter
sede e natildeo ter friordquo (SV 33)63 uma vez que ele busca satisfazer suas necessidades
fundamentais
Mas compreender o corop como athroiacutesma Epicuro tambeacutem estaacute falando de um
corpo-organismo que reuacutene duas propriedades distintas mas complementares Uma diz
respeito a essa capacidade de sentir o mundo de perceber pela via da sensibilidade a
realidade que o rodeia como falamos anteriormente Mas paralelamente a essa capacidade de
perceber os fenocircmenos da phyacutesis haacute outra que tambeacutem faz parte desse organismo a de
imaginar de pensar de estabelecer - a partir dessas impressotildees sensiacuteveis - um conhecimento
acerca do mundo em que se vive A essa capacidade Epicuro relaciona a alma que ele define
nos seguintes termos no passo 63 da Carta a Heroacutedoto
() a alma eacute corpoacuterea e constituiacuteda de partiacuteculas sutis dispersas por todo o organismo extremamente parecida com um sopro consistente numa mistura de calor semelhante em muitos aspectos ao sopro e em outros ao calor Haacute ainda uma terceira parte que pela sutileza de suas partiacuteculas difere consideravelmente das outras duas e por isso estaacute em contato mais iacutentimo com o resto do organismo (DL X 63)64
A partir dessa passagem evidenciamos que a corporeidade da alma eacute a afirmaccedilatildeo de
sua existecircncia (heacute psychegrave socircmaacute esti) pois se ela natildeo fosse corpoacuterea65 ldquoela natildeo existiria porque
incorpoacutereo soacute o vaziordquo (SILVA 2003 p 39) Disso resulta que mesmo sendo composta por
62 Anatole Bailly Op Cit 63 Σαρκὸς φωνὴ τὸ μὴ πεινῆν τὸ μὴ διψῆν τὸ μὴ ῥιγοῦνmiddot 64 ἡ ψυχὴ σῶμά ἐστι λεπτομερὲς παρrsquo ὅλον τὸ ἄθροισμα παρεσπαρμένον προσεμφερέστατον δὲ πνεύματι θερμοῦ τινα κρᾶσιν ἔχοντι καὶ πῇ μὲν τούτῳ προσεμφερές πῇ δὲ τούτῳmiddot ἔστι δέ τι μέρος πολλὴν παραλλαγὴν εἰληφὸς τῇ λεπτομερείᾳ καὶ αὐτῶν τούτων συμπαθὲς δὲ τούτῳ μᾶλλον καὶ τῷ λοιπῷ ἀθροίσματιmiddot 65 Embora o vazio natildeo seja corpoacutereo ele tem existecircncia ontoloacutegica Eacute preciso admitir que ele existe para poder postular o movimento dos aacutetomos
39 aacutetomos mais sutis (leptomeregraves) eacute phyacutesis eacute corpo dentro de outro corpo e ambos vecircm a ser e
deixam de ser pois estatildeo sujeitos aos fatores que tanto levam agrave geraccedilatildeo quanto agrave
decomposiccedilatildeo ou melhor agrave desagregaccedilatildeo Se essas partiacuteculas satildeo mais sutis mais tecircnues
mais velozes do que aquelas formadoras do corpo-carne isso permite que elas estejam
espalhadas e em movimento por todo o organismo permitindo captar as sensaccedilotildees que
chegam ateacute o athroiacutesma Pois ldquonatildeo podemos pensar na alma como senciente a natildeo ser que ela
esteja nesse todo composto e se mova com esses movimentosrdquo (DL X 66)66 Portanto nem a
alma sente sem estar contida no corpo-carne nem este sem ela Eacute o organismo ou seja essa
inter-relaccedilatildeo que permite agrave alma ter a causa da sensaccedilatildeo e agrave carne participar dessa faculdade
de sentir
Contudo dizer que a alma eacute formada por aacutetomos eacute insuficiente para explicar o que ela
eacute em um sentido mais especiacutefico Novamente precisamos aqui enfatizar as lacunas sobre esse
tema nos poucos textos remanescentes de Epicuro Assim temos que extrair das analogias
apresentadas no passo 63 mais informaccedilotildees Nela a alma eacute comparada a ldquoum sopro
consistente numa mistura de calorrdquo Temos aiacute dois termos que nos ajudam nessa
compreensatildeo pois tanto o sopro (tograve pneucircma) quanto o calor (tograve thermoacuten) nos remetem para
elementos ou forccedilas que existem na natureza enfatizando ainda mais a compreensatildeo da
fisicalidade da alma Nesse sentido o sopro (sugerindo um princiacutepio de movimento) e o calor
(nos remetendo para um princiacutepio de vitalidade) nos indicam que a alma tem sua archeacute e seu
modo de ser inscritos na proacutepria phyacutesis
Essa comparaccedilatildeo a elementos que se dispersam se dissipam permite entender
tambeacutem porque Epicuro afirma que a alma tem uma parte espalhada por todo o corpo como o
calor estaacute disseminado da cabeccedila aos peacutes Seria essa a parte irracional (agravelogon) da psycheacute que
recebe as sensaccedilotildees que chegam pelo sarkoacutes E aleacutem dessa haveria outra localizada no peito
(thoacuterax) e que seria responsaacutevel pela parte racional (logikoacuten) como testemunha a seguinte
passagem
A alma eacute composta de aacutetomos extremamente lisos e arredondados muito diferentes dos aacutetomos do fogo que a parte esparsa por todo o resto do corpo eacute irracional enquanto a parte racional reside no peito como podemos perceber claramente em nossos temores e em nossa alegria (DL X 66)67
Aleacutem desses dois aspectos da alma outro eacute apresentado para completar a definiccedilatildeo
66 οὐ γὰρ οἷόν τε νοεῖν αὐτὸ αἰσθανόμενον μὴ ἐν τούτῳ τῷ συστήματι καὶ ταῖς κινήσεσι ταύταις χρώμενον 67 ἐξ ἀτόμων αὐτὴν συγκεῖσθαι λειοτάτων καὶ στρογγυλωτάτων πολλῷ τινι διαφερουσῶν τῶν τοῦ πυρόςmiddot καὶ τὸ μέν τι ἄλογον αὐτῆς ὃ τῷ λοιπῷ παρεσπάρθαι σώματιmiddot τὸ δὲ λογικὸν ἐν τῷ θώρακι ὡς δῆλον ἔκ τε τῶν φόβων καὶ τῆς χαρᾶς
40 Mas natildeo se encontra na natureza nenhuma comparaccedilatildeo que permita nomeaacute-lo Daiacute porque o
terceiro constituinte Epicuro chama de sem-nome (akatonocircmastom) Trata-se da parte que
ldquogoverna particularmente as operaccedilotildees intelectuais da almardquo (SALEM 1993 15) partindo
das impressotildees sensiacuteveis (proacutelepseis) para estabelecer as projeccedilotildees (phantastikai epibolai tecircs
dianoiacuteas) que permitem pensar e expor um conhecimento acerca da realidade Daiacute se dizer
que no epicurismo o corpo (sarkoacutes mais psycheacute) eacute fundamental para conhecer ou desvelar a
phyacutesis Aleacutem disso esse aspecto permite localizar na alma o iniacutecio da accedilatildeo da decisatildeo da
deliberaccedilatildeo para o agir Eacute em suma o que Lucreacutecio definiu como ldquoa proacutepria alma de toda
almardquo (Lucr III 274)68
Diante disso eacute possiacutevel falar tambeacutem da necessidade de estabelecer um cuidado com o
athroiacutesma dada a interaccedilatildeo orgacircnica e constante entre corpo-alma e corpo-carne Pois se
verifica que por um lado a psycheacute age sobre o sarkoacutes ldquoquando a vemos impelir os membros
arrebatar o corpo ao sono demudar o rosto reger e dirigir todo o corpordquo (Lucr III 162-4)69
percebe-se por outro que o saacuterkos sente as afecccedilotildees (paacutethos) que acometem a psycheacute que
ldquosofre com o corpo e com o corpo sente em noacutesrdquo (Lucr III 168-9)70 Dessa forma o que
desequilibra um adoece o outro E isso vai ser pensado ao se estabelecer uma filosofia voltada
para conduzir o homem a uma vida feliz afinal natildeo se pode gozar de ataraxiacutea (ausecircncia de
perturbaccedilatildeo) e de aponiacutea (ausecircncia de dor) se
Quando o espiacuterito eacute abalado por um medo violento vemos que toda a alma sente o mesmo pelos membros e que por todo o corpo aparecem suores e palidez a liacutengua se entaramela a voz se prende os olhos se obscurecem os ouvidos ressoam os membros desfalecem finalmente vemos que muitas vezes caem os homens pelo terror do espiacuterito (Lucr III 150-8)71
Pois bem Antes de fazer esse panorama a respeito do que Epicuro havia postulado a
respeito de uma anthropophyacutesis haviacuteamos questionado se o modelo explicativo que ele
aplicou para estabelecer um entendimento a respeito da phyacutesis seria suficiente para falar do
homem e do seu sentido de realizaccedilatildeo Ora a partir do que foi exposto destacamos que todo o
trabalho de compreensatildeo da anthropophyacutesis feito por Epicuro e apresentado na Carta a
Heroacutedoto se daacute por meio de relaccedilotildees explicaccedilotildees analogias que tecircm a realidade fenomecircnica
por referecircncia e fonte de conhecimento Assim a physiologiacutea nos remete para um exerciacutecio
filosoacutefico que visa fazer o homem se identificar com a phyacutesis Isso significa que eacute nela que ele
68 LUCREacuteCIO Da Natureza Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 (Os Pensadores) 69 Idem 70 Ibidem 71 Ibidem
41 deve buscar as respostas necessaacuterias para compreender o sentido de sua realizaccedilatildeo e poder
definir um modo de viver que o leve a alcanccedilar essa finalidade
Natildeo por acaso Epicuro faz um retorno agrave filosofia preacute-socraacutetica retomando o
pensamento atomista de Demoacutecrito e Leucipo para estabelecer uma compreensatildeo de mundo
fundamentada na imanecircncia um entendimento da vida a partir das experiecircncias que ela traz
consigo Trata-se de definir um conhecimento possiacutevel e que possa guiar o homem para que
ele nem seja conduzido pelas opiniotildees vazias (kenaigrave doacutexai) nem pelos mitos (myacutethoi) nem
pelas concepccedilotildees que extrapolam o campo do sensiacutevel projetando finalidades para aleacutem do
que estaacute na natureza
Mas essa relaccedilatildeo ou melhor essa extensatildeo estabelecida no epicurismo entre
anthropophyacutesis e phyacutesis natildeo significa que o devir do homem eacute definido unicamente em
termos de fisicalidade o aacutenthropos natildeo eacute pensado como meramente assujeitado pelas malhas
do acaso e da necessidade Ao considerarmos os modos de ser da phyacutesis verificamos que
devido agrave anaacutenke as coisas acontecem como naturalmente devem ser e a tyacuteche inscreve na
natureza o fortuito podendo alterar o quando e a forma das coisas acontecerem Mas no
campo da anthropophyacutesis eacute preciso considerar que meio a essa dinacircmica haacute ainda aquilo que
pode o homem aquilo que ele pode fazer por si mesmo Porque ldquoeacute vatildeo exigir dos deuses
aquilo que algueacutem pode provir por si proacutepriordquo72 pois
O homem [dotado de razatildeo e da faculdade de prever] o que haacute de vir [capaz de viver] feliz agrave condiccedilatildeo que ele se ligue agrave [virtude por] ela mesma e tenha boas [disposiccedilotildees] (Œno Fr 21 IV)73
Se como foi dito a alma tem uma parte que pensa conhece e delibera entatildeo a
phroacutenesis (prudecircncia vontade esclarecida)74 e o logismoacutes (caacutelculo racional)75 satildeo os
instrumentos que ela tem de esclarecimento Isso permite que orientada por essa capacidade
de pensar ela possa definir um modo de viver e desenvolver a disposiccedilatildeo para praticar as
virtudes que a levem a experimentar sua realizaccedilatildeo
Verificamos que essa aproximaccedilatildeo homemnatureza estabelecida a partir da leitura
physioloacutegica da realidade ao mesmo tempo em que caracteriza a anthropophyacutesis tambeacutem
72 Μάταιόν ἐστι παρὰ θεῶν αἰτεῖσθαι ἅ τις ἑαυτῷ χορηγῆσαι ἱκανός ἐστι 73 Traduccedilatildeo a partir do francecircs La Philosophie Epicurienne sur Pierre Op Cit p 36 74 As expressotildees ldquovontade refletidardquo (volonteacute reacutefleacutechie) p 224 246 ldquovontade livrerdquo (volonteacute libre) p 239 e ldquovontade esclarecidardquo (volonteacute eacuteclaireacutee) p 248 satildeo empregadas por Eacutemile Breacutehier para se referir agrave vontade submetida agrave razatildeo BREacuteHIER Eacutemile Histoire de la Philosophie V I Paris Librairie Feacutelix Alcan 1928 Ediccedilatildeo eletrocircnica disponiacutevel em httpclassiquesuqaccaclassiquesbrehier_emileHistoire_de_philo_t1brephi_1pdf Acesso em 15 de outubro de 2019 75 Idem
42 remete para uma contiguidade entre a physiologiacutea e a eacutetica Isso porque a compreensatildeo da
natureza possibilita fundamentar uma perspectiva libertadora para o homem na medida em
que permite estabelecer um modo de pensar e de viver distanciado das opiniotildees infundadas
das concepccedilotildees apartadas do referencial sensiacutevel E isso pode levar a fantasiar a respeito do
porvir a temer aquilo que eacute natural a desejar para aleacutem do necessaacuterio para uma vida feliz
(makariacuteos zecircn) Em outros termos a ignoracircncia sobre a phyacutesis conduz ao engano (hamarthiacutea)
e agrave desmesura (hyacutebris) Eacute preciso investigar a natureza e com isso estabelecer os limites para
os desejos e exercitar a liberdade necessaacuteria para fazer as escolhas e recusas necessaacuterias agrave
proacutepria realizaccedilatildeo Por meio da physiologiacutea o saacutebio se daacute conta de que ldquoa tranquilidade
perfeita da alma consiste em estar livre de todos esses terrores e temores e em relembrar tenaz
e constantemente a doutrina em suas linhas gerais e fundamentaisrdquo (DL X 82)76
Ao olhar para si mesmo como um aspecto da realizaccedilatildeo da phyacutesis despindo-se de
qualquer concepccedilatildeo demiuacutergica eacute possiacutevel pensar a liberdade como disposiccedilatildeo para por si
mesmo construir o proacuteprio destino Talvez aiacute esteja um aspecto antropoloacutegico importante no
pensamento epicurista Pois o homem natildeo sendo gerado por deuses nem mero produto do
acaso nem da necessidade eacute ser da natureza que como resultado daquilo que pode o ser eacute
capaz de pensar e deliberar a partir de si mesmo e do conhecimento que tem para estabelecer
um modo de ser e de agir no mundo visando a autorrealizaccedilatildeo Dito de outra forma ele eacute
pensado como ser inacabado de possibilidades que pode exercitar uma artesania sobre si
mesmo para desenhar-se conforme o sentido de realizaccedilatildeo que consegue inteligir a partir da
investigaccedilatildeo da natureza Por isso Epicuro busca destituir o homem da ideia de providecircncia e
lhe instila a compreensatildeo de que cabe a ele a possibilidade de escolher os rumos para
conquistar sua felicidade Para tanto eacute preciso desatar-se das crenccedilas que levam ao medo e ao
assenhoramento da vontade O entendimento acerca da phyacutesis pretende tanto lhe permitir isso
quanto fazecirc-lo vislumbrar que eacute possiacutevel realizar uma vida autecircntica Saacutebio eacute pois quem se
vale desse saber acerca da natureza e por si mesmo pensa a proacutepria existecircncia como deve
viver Eacute na phyacutesis que ele vecirc um paradigma que o guia no sentido de conferir mais liberdade e
naturalidade ao seu modo de viver Afinal como afirma Epicuro na Carta a Piacutetocles a ldquovida
natildeo precisa de irracionalidade nem de opiniotildees vatildes precisa eacute que vivamos sem perturbaccedilatildeordquo
(DL X 87)77
76 ἡ δὲ ἀταραξία τῷ τούτων πάντων ἀπολελύσθαι καὶ συνεχῆ μνήμην ἔχειν τῶν ὅλων καὶ κυριωτάτων 77 οὐ γὰρ ἰδιολογίας καὶ κενῆς δόξης ὁ βίος ἡμῶν ἔχει χρείαν ἀλλὰ τοῦ ἀθορύβως ἡμᾶς ζῆν
43 12 A vida katagrave phyacutesin
A transiccedilatildeo do seacuteculo IVndashIII aC foi marcada por uma problemaacutetica que mobilizou a
atenccedilatildeo de ciacutenicos estoicos cirenaicos e epicuristas Uma discussatildeo que se ampliou a partir
do seacuteculo V aC quando os sofistas repercutiam um debate em torno da diferenccedila e oposiccedilatildeo
entre natureza (phyacutesis) e convenccedilatildeo (noacutemos) Eacute preciso lembrar contudo que Demoacutecrito jaacute
teria em seu tempo questionado se as sensaccedilotildees existem por natureza ou por convenccedilatildeo
ldquoPor convenccedilatildeo (noacutemoi) existe o frio por convenccedilatildeo existe o calor mas em verdade existem
apenas os aacutetomos e o vaziordquo (DL IX 72)
Um aspecto desse questionamento se daacute relacionando a noccedilatildeo de noacutemos com o que eacute
percebido pelos sentidos E aiacute se tem um problema pois o que adveacutem da percepccedilatildeo natildeo eacute
fiaacutevel afinal os sentidos podem conduzir ao engano E diante da dinacircmica da natureza onde
as coisas estatildeo em constante movimento o conhecimento apenas poderia ser ancorado em
algo imutaacutevel perene e isso diz respeito aos aacutetomos e vazio Contrariamente a essa maneira
de pensar Epicuro vai colocar as sensaccedilotildees como fundamentais para o desvelamento da
natureza e portanto indispensaacuteveis para o processo de conhecer algo Disso trataremos no
item 13 desse capiacutetulo
Mas natildeo foi a partir dessa perspectiva que a oposiccedilatildeo noacutemosphyacutesis reapareceu nas
discussotildees filosoacuteficas do helenismo A questatildeo que perpassa essa relaccedilatildeo antiteacutetica se
configurou quando noacutemos passou a se referir ao que eacute convencionado pelo homem em
oposiccedilatildeo ao que eacute natural (phyacutesis) Encontramos reflexos dessa polecircmica no Craacutetilo de
Platatildeo onde essas duas noccedilotildees satildeo excludentes entre si O que existiria por noacutemos natildeo
existiria por natureza e vice-versa
Sumariamente lembramos que noacutemos se refere agravequilo que eacute estabelecido pelo loacutegos
(pensamento) e de acordo com Bailly78 se refere agrave opiniatildeo geral aos costumes ao habitual
Essas acepccedilotildees nos remetem para regras normas leis enfim ao que estaacute convencionado para
o exerciacutecio da vida social Em sendo assim natildeo satildeo definitivas permanentes nem
universalizaacuteveis posto natildeo se fundamentarem na natureza Tratar-se-ia de um ldquoacordordquo
estabelecido para que os homens pudessem viver em sociedade
Por outro lado phyacutesis eacute entendida como anterior a qualquer convenccedilatildeo ou definiccedilatildeo
que a ela eacute atribuiacuteda eacute o que se daacute por natureza Trata-se de pensaacute-la como referecircncia para
estabelecer um eacutethos uma justiccedila uma educaccedilatildeo uma linguagem ou seja o que eacute necessaacuterio
78 Anatole Bailly Op Cit
44 para tornar efetivas e harmoniosas as agregaccedilotildees entre os homens
Decorre disso que as escolas filosoacuteficas do helenismo passaram a participar desse
debate em torno da relaccedilatildeo noacutemosphyacutesis Isso porque cada uma por meio de suas
especificidades estava tentando definir de que maneira se realiza a sabedoria e por isso era
preciso dizer se o modo de vida do saacutebio (sophoacutes) devia ser de acordo com o noacutemos ou com a
phyacutesis Assim a discussatildeo era tratada em torno do conflito expresso entre o que resulta de se
viver de acordo com o convencionado socialmente e o que sucede de uma vida fundamentada
na phyacutesis Diante desse questionamento os ciacutenicos entendem que os seres da natureza natildeo
tecircm noacutemos eles satildeo em funccedilatildeo da naturalidade do seu ser79 Ao postular essa perspectiva eles
defendem que o homem tambeacutem possa agir conforme sua natureza proacutepria Viver em funccedilatildeo
do noacutemos seria esconder ou sufocar sua naturalidade com regras ou convenccedilotildees Eis porque
viver de acordo com a natureza (katagrave phyacutesin) eacute o modo de o homem poder realizar o sentido
de sua existecircncia Dessa forma defende-se que - pelo noacutemos pelas regras e valores
estabelecidos sem ancoragem na phyacutesis - ele se afasta dessa realizaccedilatildeo Com isso vive-se uma
artificialidade que o impede de experimentar a autenticidade de sua proacutepria existecircncia
criando para si mesmo o sofrimento e o alheamento da proacutepria vontade Essa premissa vai ser
defendida e praticada aleacutem dos ciacutenicos por estoicos ceacuteticos cirenaicos e epicuristas mas
cada um modulando esse entendimento em funccedilatildeo de suas finalidades filosoacuteficas o que vai
resultar em eacuteticas diferentes80
Um aspecto em comum entre essas escolas eacute que esse retorno agrave phyacutesis ou esse
movimento para conferir mais naturalidade ao modo de viver exige um esforccedilo pessoal um
trabalho sobre si mesmo que tem como ponto de partida uma indagaccedilatildeo como viver segundo
a natureza No pensamento epicuacutereo a resposta a esse questionamento nos remete para dois
aspectos principais os limites e a repleccedilatildeo
79 Desdobramentos dessa perspectiva podem ser verificados modernamente no Marquecircs de Sade Em Os 120 Dias de Sodoma (Coleccedilatildeo Peacuterolas Furiosas editora Iluminuras formato Kindle) por exemplo se lecirc ldquoRecebi essas inclinaccedilotildees na natureza e irritaacute-la-ia se a elas resistisserdquo (posiccedilatildeo 233) E tambeacutem ldquo() plenamente convencida de que todos os bens devem ser iguais na terra e que apenas a forccedila e a violecircncia se opotildeem a essa igualdade primeira lei da natureza ()rdquo (posiccedilatildeo 2935) 80 Destacamos que os ciacutenicos pensam que a vida kagraveta phyacutesin remete a uma volta agrave natureza em seu aspecto animal Vale lembrar que o termo ciacutenico vem de kynikoacutes se referindo ao catildeo ou a ele relativo Por sua vez os estoicos entendem que suportando as vicissitudes da vida se fortalece a naturalidade do proacuteprio ser
45 121 Nos limites da phyacutesis
Uma perspectiva importante para a compreensatildeo do que significa katagrave phyacutesin81 no
contexto do epicurismo diz respeito agrave necessidade de o saacutebio se ocupar em viver dentro dos
limites da natureza Mas que limites satildeo esses e como circunscrever nossa experiecircncia de
existir a eles Para entendermos esse ponto eacute preciso evocar uma assertiva de Epicuro Ele
afirma no passo 39 da Carta a Heroacutedoto que ldquoo todo sempre foi exatamente como eacute agora e
sempre seraacute assim Entatildeo nada existe em que ele poderia transformar-se porque aleacutem do
todo nada haacute que possa penetrar nele e provocar transformaccedilatildeordquo (DL X 39)82 Com isso ele
quer dizer que a natureza - tomada em sua totalidade ndash eacute imutaacutevel Ela natildeo seraacute nem mais nem
menos do que sempre foi E uma vez que nada se transforma em nada e nem nada se cria a
partir do nada o que existe e o que deixa de existir eacute o resultado do movimento de agregaccedilatildeo
e desagregaccedilatildeo dos corpos (ou geraccedilatildeo e corrupccedilatildeo) que constituem a natureza Eacute nesse
enquadramento que vai ser postulado que as coisas da existecircncia pertencem ao campo do que
eacute constituiacutedo por aacutetomos se movendo no vazio ou dos agrupamentos deles que formam
corpos e mundos Assim ele tambeacutem estaacute dizendo que a natureza nos remete exclusivamente
ao campo do sensiacutevel uma vez que os elementos constituintes da phyacutesis estatildeo ao alcance da
apreensatildeo de nossos sentidos ou - diante daquilo que escapa a percepccedilatildeo da nossa
sensibilidade - satildeo por meio de analogias entendidos dessa forma como eacute o caso da
compreensatildeo que se estabelece acerca do aacutetomo
Consequentemente Epicuro postula que a realidade eacute imanente e por isso o
pensamento deve se fundamentar no campo das experiecircncias sensiacuteveis para tentar falar das
coisas da vida Ter em conta esse aspecto ligado agrave noccedilatildeo de limite da natureza leva o
physiologoacutes (aquele que se dedica agrave investigaccedilatildeo da phyacutesis) a considerar que ldquoeacute verdadeiro
apenas aquilo que se percebe por meio dos sentidos ou se apreende por meio da menterdquo (DL
X 62)83 quando opera a partir de analogias fundadas na memoacuteria das impressotildees sensiacuteveis
Com isso ele estabelece um criteacuterio para o pensamento natildeo projetar nenhuma finalidade para
o homem que esteja aleacutem do que ele possa experimentar em sua vida E aqui se identifica
81 As expressotildees katagrave phyacutesin katagrave to teacutes phyacuteseos e hoacute teacutes phyacuteseos remetem para um mesmo sentido viver de acordo com a natureza Esse foi um lema de vaacuterias escolas filosoacuteficas do helenismo O estoico Zenatildeo teria sido o primeiro a fazer uso dessa expressatildeo para ldquodefinir o bem supremo como viver de acordo com a naturezardquo (DLVII 87) 82 Καὶ μὴν καὶ τὸ πᾶν ἀεὶ τοιοῦτον ἦν οἷον νῦν ἐστι καὶ ἀεὶ τοιοῦτον ἔσται οὐθὲν γάρ ἐστιν εἰς ὃ μεταβαλεῖ παρὰ γὰρ τὸ πᾶν οὐθέν ἐστιν ὃ ἂν εἰσελθὸν εἰς αὐτὸ τὴν μεταβολὴν ποιήσαιτο 83 ἐπεὶ τό γε θεωρούμενον πᾶν ἢ κατrsquo ἐπιβολὴν λαμβανόμενον τῇ διανοίᾳ ἀληθές ἐστι
46 uma relaccedilatildeo entre a compreensatildeo desse limite e o modo de viver do saacutebio pois ele vai
procurar deixar de se fiar em explicaccedilotildees que evocam a crenccedila na possibilidade de felicidade
humana - se projetando em mitos - para pensar o exerciacutecio de uma vida feliz (makariacuteos zecircn)
fundamentado na physiologiacutea O saacutebio compreende que estendendo para aleacutem da natureza as
explicaccedilotildees para os fenocircmenos inerentes agrave phyacutesis o homem se distancia da possibilidade de
experimentar o equiliacutebrio a alegria e o prazer Eacute consoante a esse prisma que o principal
responsaacutevel pela divulgaccedilatildeo do pensamento epicurista para a cultura romana o poeta e
filoacutesofo Tito Lucreacutecio vai nos falar
Ora eacute preciso que afugentem esse temor e estas trevas do espiacuterito natildeo os raios do Sol nem os dardos luacutecidos do dia mas o espetaacuteculo da natureza e as suas leis E para iniacutecio tomaremos como base que natildeo haacute coisa alguma que tenha jamais surgido do nada por qualquer accedilatildeo divina De fato o terror oprime todos os mortais apenas porque vecircem operar-se no ceacuteu e na terra muitas coisas de que natildeo podem de nenhum modo perceber as causas e cuja origem atribuem a um poder dos deuses (Lucr I 146-158)84
Perceba-se que por um lado Lucreacutecio estaacute se fererindo a um aspecto da natureza
relacionado agrave regularidade dos fenocircmenos por outro estaacute ecoando o sentido da filosofia de
Epicuro relaciona nesse trecho a necessidade de livrar o homem de perturbaccedilotildees atraveacutes do
conhecimento ldquoda natureza e as suas leisrdquo E isso decorre do entendimento de que para
Epicuro o estudo acerca da phyacutesis visa conduzir a uma maneira de ler a realidade que afaste
toda forma de obscurantismo que resulta de se tentar projetar o teacutelos da vida para fora dela
As causas para os fenocircmenos e as finalidades que satildeo inteligidas a partir da
investigaccedilatildeo dos modos de ser da natureza vatildeo ser observadas e postuladas dentro do campo
de realizaccedilatildeo da proacutepria phyacutesis esse eacute o limite que deve balizar o pensamento em seu
movimento de tentar fazer o desvelamento do mundo-realidade
Se considerarmos a exposiccedilatildeo de Jean Salem85 nos damos conta de que Epicuro ao
falar de limites emprega dois temos indistintamente peacuteras e hoacuteros Esse uso estaacute associado
agraves discussotildees sobre os prazeres e desejos e ldquoparticularmente quando a reflexatildeo orbita em
torno de questotildees de ordem eacuteticardquo (SALEM 1994 p 83) Mas tanto na Carta a Meneceu
84 Hunc igitur terrorem animi tenebrasque necessest non radii solis neque lucida tela diei discutiant sed naturae species ratioque Principium cuius hinc nobis exordia sumet nullam rem e nihilo gigni divinitus umquam Quippe ita formido mortalis continet omnis quod multa in terris fieri caeloque tuentur quorum operum causas nulla ratione videre possunt ac fieri divino numine rentur Quas ob res ubi viderimus nil posse creari de nihilo tum quod sequimur iam rectius inde perspiciemus et unde queat res quaeque creari et quo quaeque modo fiant opera sine divom 85 SALEM Jean Tel un Dieu parmi les Hommes Paris Vrin 1994
47 passo 13386 quanto na Maacutexima Capital 2587 se estabelece uma relaccedilatildeo entre peacuteras e teacutelos E
isso se daacute associando o que se apresenta como finalidade da natureza (teacutelos tecircs phyacuteseos) com
os limites dos desejos (tograve peacuteras tocircn epithymiocircn) Isso se explica porque somente
circunscrevendo os proacuteprios desejos aos limites ou finalidade da natureza eacute que o saacutebio realiza
seu modo de ser Mas Salem vai aleacutem nessa anaacutelise da noccedilatildeo de limite na filosofia epicurista e
apresenta cinco acepccedilotildees para esse termo O de limite como 1) demarcaccedilatildeo de um conjunto
finito (as formas atocircmicas) 2) teacutermino de um campo de variaccedilatildeo (se referindo agraves
caracteriacutesticas especiacuteficas de um ser natural) 3) medida do maacuteximo (tendo por exemplo o
limite de intensidade da dor) 4) medida do miacutenimo (como as medidas do miacutenimo percebido
pelo pensamento tal qual o aacutetomo) Contudo parece-nos importante acrescentar outra
acepccedilatildeo a esse rol aquela de limite como criteacuterio para pensar a phyacutesis no contexto de sua
imanecircncia como mostramos aqui E isso estaacute ligado agrave necessidade de suprimir a ignoracircncia
por meio da physiologiacutea impedindo de aceitar crenccedilas que levam agrave alma as perturbaccedilotildees e
desviam o modo de viver do homem da finalidade de uma vida saacutebia
A principal perturbaccedilatildeo das almas humanas tem sua origem na crenccedila de que esses corpos celestes satildeo bem-aventurados e indestrutiacuteveis e que ao mesmo tempo tecircm vontades e praticam accedilotildees () na expectativa e na apreensatildeo constante de algum castigo eterno sob a influecircncia dos mitos () essas pessoas sofrem perturbaccedilatildeo igual ou ainda mais intensa que a daquelas que nesses assuntos seguem opiniotildees vatildes (DL X 81)88
Nesses termos Epicuro nos remete ao direcionamento da physiologiacutea para trazer agrave
alma a calma na medida em que serve para purgaacute-la dos medos insurgidos de uma
compreensatildeo a respeito da phyacutesis que projeta para fora dela as explicaccedilotildees para fenocircmenos
que satildeo da ordem do natural Quando o homem passa a compreender o que eacute acontecimento
da natureza e a se reconhecer como tal portanto dentro desses limites ele tambeacutem pensa sua
realizaccedilatildeo tendo em vista a possibilidade de evitar a dor o medo e consequentemente
alcanccedilar a imperturbabilidade da alma (ataraxiacutea)
Por isso iniciamos esse trabalho traccedilando uma panoracircmica a respeito da concepccedilatildeo
epicurista sobre a natureza e seus modos de realizaccedilatildeo destacando aquilo que compotildee tanto a
86 τὸ τῆς φύσεως ἐπιλελογισμένου τέλος καὶ τὸ μὲν τῶν ἀγαθῶν πέρας ὡς ἔστιν εὐσυμπλήρωτόν τε καὶ εὐπόριστον διαλαμβάνοντος () 87 Εἰ μὴ παρὰ πάντα καιρὸν ἐπανοίσεις ἕκαστον τῶν πραττομένων ἐπὶ τὸ τέλος τῆς φύσεως ἀλλὰ προκαταστρέψεις εἴτε φυγὴν εἴτε δίωξιν ποιούμενος εἰς ἄλλο τι οὐκ ἔσονταί σοι τοῖςe () 88 ὅτι τάραχος ὁ κυριώτατος ταῖς ἀνθρωπίναις ψυχαῖς γίνεται ἐν τῷ ταὐτὰ μακάριά τε δοξάζειν ltεἶναιgt καὶ ἄφθαρτα καὶ ὑπεναντίας ἔχειν τούτοις ἅμα βουλήσεις καὶ πράξεις καὶ αἰτίας καὶ ἐν τῷ αἰώνιόν τι δεινὸν ἢ προσδοκᾶν ἢ ὑποπτεύειν κατὰ τοὺς μύθους εἴτε καὶ αὐτὴν τὴν ἀναισθησίαν τὴν ἐν τῷ τεθνάναι φοβουμένους ὥσπερ οὖσαν κατrsquo αὐτούς καὶ ἐν τῷ μὴ δόξαις ταῦτα πάσχειν ἀλλrsquo ἀλόγῳ γέ τινι παραστάσει ὅθεν μὴ ὁρίζοντας τὸ δεινὸν τὴν ἴσην ἢ καὶ ἐπιτεταμένην ταραχὴν λαμβάνειν τῷ εἰ καὶ ἐδόξαζον ταῦταmiddot
48 totalidade do universo quanto as menores partiacuteculas que o constituem e remetendo para uma
contiguidade entre phyacutesis e anthropophyacutesis Eacute a partir desse escopo que se busca compreender
o homem como ser da natureza mas que - por sua capacidade para pensar deliberar e agir
como consequecircncia do que cabe ao homem - pode viver de acordo com o que pensa E o
fizemos para ressaltar que a physiologiacutea eacute fundamental para (re)direcionar a opiniatildeo a partir
de um entendimento da phyacutesis que se daacute dentro dela mesma O mundo em que se vive no
qual estabelecemos as mais diversas relaccedilotildees e do qual recebemos as impressotildees que seratildeo a
fonte para todo o conhecimento pode ser explicado a partir do que ele mostra aos nossos
sentidos
Resulta disso que toda crenccedila estabelecida para aleacutem desses limites do sensiacutevel acaba
por distanciar o homem da natureza na medida em que projeta o sentido de sua realizaccedilatildeo
para um aleacutem-mundo para um aleacutem-vida Nessa perspectiva delineia-se um terreno propiacutecio
para postular a existecircncia de uma vontade maior definindo uma finalidade (teacutelos) para a
natureza e seus constituintes Como consequecircncia temos o homem enredado em uma teia de
acontecimentos onde o espaccedilo para definir sua conduta no mundo lhe eacute alheado Eacute a partir
desse ponto de vista que a physiologiacutea vai ser pensada como a ldquocondiccedilatildeo das condiccedilotildeesrdquo
(CONCHE 1997 p 40) para uma vida feliz Isso porque sem ela para estabelecer os limites
para o homem pensar sua condiccedilatildeo no mundo e como se conduzir na vida ele vecirc adiada ldquoa
alegria e a vida se consome pela demora e cada um de noacutes morre sem ter descansordquo (SV
14)89 Natildeo eacute concebiacutevel para Epicuro entatildeo que se fique agrave mercecirc de que um dia a felicidade
lhe chegue quando eacute possiacutevel por meio de uma atividade de investigar a realidade pensar
sobre ldquoa via seguida e a seguirrdquo (CONCHE idem) e transformar o agora
Eacute em funccedilatildeo desse limite para o pensar que se estabelece um conflito entre a proposta
epicurista fundamentada na physiologiacutea e a religiatildeo Isso porque o estudo da natureza na
medida em que exclui das explicaccedilotildees sobre as coisas do mundo qualquer intervenccedilatildeo divina
busca desconstruir a crenccedila segundo a qual os deuses intervecircm nas questotildees humanas Desse
modo o medo de que eles possam interferir no destino do homem reservando-lhe seja o
infortuacutenio seja o paraiacuteso passa a natildeo ter mais sentido
Mas isso natildeo significa que Epicuro tenha negado a existecircncia dos deuses como os
detratores de sua filosofia quiseram fazer crer Natildeo Tanto que ele afirma na Carta a
Meneceu ldquoos deuses realmente existem e o conhecimento de sua existecircncia eacute manifestordquo
89 σὺ () ἀναβάλλῃ τὸ χαῖρονmiddot ὁ δὲ βίος μελλησμῷ παραπόλλυται καὶ εἷς ἕκαστος ἡμῶν ἀσχολούμενος ἀποθνῄσκει
49 (DL X 123)90 O que ele combate eacute a representaccedilatildeo dos deuses apresentada pela doacutexa As
divindades eram retratadas como tomadas pelos desejos pelas emoccedilotildees pela coacutelera pela
inveja pelo orgulho pela vaidade etc A crenccedila geral era a de seres prestes a irradiar toda sua
fuacuteria ou toda sua benevolecircncia dependendo do quatildeo capazes os homens fossem de agradaacute-los
com oferendas com sacrifiacutecios com oraccedilotildees
E eacute isso que Epicuro nega essa noccedilatildeo de divindade que por um lado gera temor e
por outro coloca o homem numa posiccedilatildeo de assenhoramento de minimizaccedilatildeo de seu poder
de deliberaccedilatildeo Como ldquoas afirmaccedilotildees da maioria sobre os deuses natildeo satildeo preacute-concepccedilotildees
verdadeiras e sim suposiccedilotildees falsas Por causa de tais suposiccedilotildees falsas imagina-se que
derivam dos deuses os maiores males e bensrdquo (DL X 124)91 E a filosofia epicurista vem em
oposiccedilatildeo a isso
Para ele os deuses gozam de imortalidade92 nos intermundos (metakoacutesmion =
intervalo entre os mundos) onde vivem autaacuterquica e serenamente Ora ldquoum ser bem-
aventurado e eterno natildeo tem perturbaccedilotildees nem perturba outro serrdquo (MC 1)93 Os deuses natildeo
satildeo afetados por nada daiacute seu estado de eterno equiliacutebrio e tranquilidade Tambeacutem natildeo
seguem a nenhum desiacutegnio a natildeo ser aquele que vem de si proacuteprio e isso vai caracterizar sua
autossuficiecircncia Por isso Epicuro orienta ldquoconsidera a divindade um ser vivo e feliz de
acordo com a noccedilatildeo da divindade impressa em noacutes pela natureza e natildeo lhe atribuas coisa
alguma estranha agrave imortalidade ou incompatiacutevel com a felicidaderdquo (DL X 123)94 Daiacute ele
considerar que a imperturbabilidade (ataraxiacutea) e a autarquia (autaacuterkeia)95 que caracterizam a
existecircncia dos deuses satildeo bens imortais e devem ser buscados pelo saacutebio E eacute tendo por base
esses bens que Epicuro vai postular a sabedoria como a arte de viver ldquocomo um deus entre os
homensrdquo (DL X 135)96
90 θεοὶ μὲν γὰρ εἰσίνmiddot ἐναργὴς γὰρ αὐτῶν ἐστιν ἡ γνῶσιςmiddot 91 οὐ γὰρ προλήψεις εἰσὶν ἀλλrsquo ὑπολήψεις ψευδεῖς αἱ τῶν πολλῶν ὑπὲρ θεῶν ἀποφάσεις ἔνθεν αἱ μέγισται βλάβαι αἴτιαι τοῖς κακοῖς ἐκ θεῶν ἐπάγονται καὶ ὠφέλειαι 92 Embora de natureza corpoacuterea natildeo estatildeo sujeitos agrave corrupccedilatildeo ou morte E isso pode ser explicado pois sua imagem (eiacutedolon) emite contiacutenuamente aacutetomos que satildeo substituiacutedos por outros eternamente 93 Τὸ μακάριον καὶ ἄφθαρτον οὔτε αὐτὸ πράγματα ἔχει οὔτε ἄλλῳ παρέχειmiddot 94 Πρῶτον μὲν τὸν θεὸν ζῷον ἄφθαρτον καὶ μακάριον νομίζων ὡς ἡ κοινὴ τοῦ θεοῦ νόησις ὑπεγράφη 95 Cabe natildeo confundir os substantivos αὐτάρκης formado a partir da raiz verbal ἀρκέω que evoca a ideia de ser suficiente com αὐταρxῆς derivado da raiz ἀρxεύω que diz respeito a comandar reinar governar Αὐτάρκης pode ser traduzido como bastar a si mesmo ser auto-suficiente enquanto αὐταρκῆς remete para aquele que governa a si mesmo Temos aiacute portanto sentidos diferentes O problema se daacute quando ao tentar se referir em portuguecircs para a condiccedilatildeo daquele que tem o principio da accedilatildeo em si mesmo (αὐτάρκης) recorremos agrave palavra autarquia que tambeacutem pode trazer conotaccedilotildees ligadas a αὐταρxῆς como ao se referir a instituiccedilotildees de poder autocircnomo Embora pudeacutessemos usar o vocaacutebulo autarcia para demarcar a opccedilatildeo pelo sentido advindo de αὐτάρκης preferimos manter autarquia mas sublinhado que neste trabalho ele remete para um sentido de autossuficiencia 96 ζήσῃ δὲ ὡς θεὸς ἐν ἀνθρώποις
50 Mas perceba-se ao admitir a existecircncia dos deuses Epicuro natildeo os imagina como
seres de outra realidade de natureza distinta dessa constituiacuteda por aacutetomos e vazio Nem como
entidades que inspiram temores e apreensotildees Eles satildeo pensados dentro dos limites da phyacutesis e
como um modelo de realizaccedilatildeo de um modo de existir bem-aventurado Para ele acreditar
naquilo que escapa aos limites da natureza significa postular a existecircncias de duas realidades
uma natural e outra sobrenatural Com isso acentua-se a tendecircncia para separar o homem e a
phyacutesis concebendo-o como criaccedilatildeo divina e natildeo como fenocircmeno da natureza Resulta dessa
clivagem alhear o homem da compreensatildeo da possibilidade de realizaccedilatildeo de uma vida
autaacuterquica (em que ele define por si mesmo - a partir do que conhece sobre a natureza - como
ser e agir no mundo) e projetar o sentido de sua existecircncia para aleacutem da realidade que ele
experimenta
Outra batalha travada eacute com relaccedilatildeo agrave cultura ou seja agrave Paideacuteia tomada em seu
sentido mais geral Se os limites colocados para se pensar a realidade levam a um conflito
com a compreensatildeo que o senso geral tem a respeito dos deuses tambeacutem acabam por se
chocar com o panorama cultural da eacutepoca E isso estaacute ligado agrave finalidade do saber Para o
epicurismo essa finalidade eacute conduzir a uma vida feliz e autaacuterquica E isso estaacute afinado com
os limites que a phyacutesis coloca diante do homem Diferentemente dos deuses somos mortais e
sob essa condiccedilatildeo precisamos pensar a vida e estabelecer um saber para realizaacute-la da melhor
forma possiacutevel Trata-se de considerar a existecircncia em sua imanecircncia e na sua urgecircncia posto
que ldquoa morte natildeo significa outra vida mas uma eternidade de natildeo-vidardquo (CONCHE 1997 p
41)97 Nesse sentido o saber que cabe cultivar eacute aquele que serve para ajudar a viver nossa
mortalidade ldquoNoacutes podemos morrer antes mesmo de saber a estereometria Daiacute a hostilidade
de Epicuro agrave Paideacuteiardquo (CONCHE idem)
Ressalte-se que o termo Paideacuteia deve ser entendido no sentido especiacutefico de
conhecimento relativo agrave cultura liberal como aqueles que os sofistas evidenciaram como
importantes para a educaccedilatildeo do homem (filologia astronomia retoacuterica muacutesica geometria
aritmeacutetica) Esses saberes para Epicuro natildeo satildeo fundamentais pois ldquoa cultura liberal natildeo
pode ser de nenhuma utilidade dado que se trata de acumular conhecimentos particulares e
natildeo de se apoiar sobre os saberes particulares para se elevar mais alto () de fundar sua vida
sobre o pensamento uacutenico e necessaacuteriordquo (CONCHE idem) Nessa perspectiva entendemos a
ponderaccedilatildeo epicurista
97 CONCHE Marcel Eacutepicure Lettres et Maximes Paris Eacuteditions de Meacutegare 1977
51 O estudo da natureza (physiologiacutea) prepara natildeo os jactanciosos nem os fazedores de expressotildees nem os exibidores de educaccedilatildeo muito valorizada junto agrave maioria mas os aacutegeis e autaacuterquicos e que pensam grande sobre os seus proacuteprios bens e natildeo sobre os bens das coisas (SV 45) 98
Esses bens o saacutebio deve buscar pois estatildeo relacionados agrave sauacutede ao bem-estar agrave
liberdade agrave imperturbabilidade agrave alegria Satildeo eles que conduzem a uma vida realizada Daiacute a
importacircncia de uma educaccedilatildeo que faccedila conhecer ao homem esses limites sob os quais ele
deve pensar sua existecircncia A gloacuteria a riqueza o poder a erudiccedilatildeo nada isso contribui para
deixar a alma em equiliacutebrio Ao contraacuterio adoecem-na e com ela todo o athroiacutesma Se para a
maioria a vida cheia de luxos remete para um ideal a ser buscado para Epicuro isso eacute
justamente o que se deve evitar pois escapa aos limites da phyacutesis Isso fica evidenciado
quando ele afirma que ldquoa riqueza proveniente da natureza eacute limitada e viaacutevel e das opiniotildees
vazias cai no inabordaacutevelrdquo (SV 8 ndash MC 15)99 Assim ldquoo sophoacutes conhece os valores autecircnticos
da vida diante das falsificaccedilotildees e enganos da sociedade captou o sabor do verdadeiro e de
acordo com os bens conforme a natureza (tagrave katagrave phyacutesin) sabe dirigir seu comportamento
sereno e livre ateacute a felicidaderdquo (GUAL 1985 p 218)
A oposiccedilatildeo agrave Paideacuteia se daacute portanto porque se vecirc nela um repertoacuterio de
conhecimentos que satildeo inuacuteteis para a felicidade do homem Ao contraacuterio o enreda em uma
teia de valores que o distancia de uma vida feliz Daiacute porque Epicuro apenas admite a cultura
sob a perspectiva de resultado de um ldquoprogresso material e como uma conquista civilizadorardquo
(GUAL 1985 p 60) Satildeo saberes culturais mas natildeo satildeo de uso praacutetico e imediato para a
consecuccedilatildeo de uma vida saacutebia Tanto que Epicuro aconselha a Piacutetocles ldquoalccedila tua vela amigo
e foge de toda cultura (paideiacutean) seja ela qual forrdquo (DL X 6 e Us fr 163)100 Se o faz eacute
porque percebe que na poacutelis a poliacutetica a religiatildeo e a cultura espelham um entendimento
acerca da realidade da finalidade da existecircncia humana que eacute incompatiacutevel com o projeto de
uma vontade esclarecida e de um pensamento que busca inteligir da natureza os limites
necessaacuterios para pensar um paradigma para a realizaccedilatildeo do homem Por isso
Francamente eu por minha parte gostaria muito mais servindo-me de um physiologoacutes profetizar as coisas que trazem proveito a todos os homens
98 Οὐ κομποὺς οὐδὲ φωνῆς ἐργαστικοὺς οὐδὲ τὴν περιμάχητον παρὰ τοῖς πολλοῖς παιδείαν ἐνδει-κνυμένους φυσιολογία παρασκευάζει ἀλλὰ σοβαροὺς καὶ αὐτάρκεις καὶ ἐπὶ τοῖς ἰδίοις ἀγαθοῖς οὐκ ἐπὶ τοῖς τῶν πραγμάτων μέγα φρονοῦντες 99 Ὁ τῆς φύσεως πλοῦτος καὶ ὥρισται καὶ εὐπόριστός ἐστιν ὁ δὲ τῶν κενῶν δοξῶν εἰς ἄπειρον ἐκπίπτει 100 Παιδείαν δὲ πᾶσαν μακάριε φεῦγε τἀκάτιον ἀράμενος
52 mesmo que ningueacutem vaacute me compreender do que me colocando de acordo com as opiniotildees desfrutar do elogio rude que proveacutem da maioria (SV 29)101
Distanciar-se da Paideacuteia desses saberes valorizados pela maioria deve ser entendido
como um movimento de negaccedilatildeo dos valores cristalizados e convencionados pela cultura que
falseiam os limites a partir dos quais se devem pensar o campo da realizaccedilatildeo humana Jaacute a
perspectiva epicurista eacute de elaborar uma filosofia como um saber para a vida (teacutechnen tinaacute
periacute ton biacuteon) cuja finalidade eacute ldquoassegurar a paz de espiacuterito e a convicccedilatildeo firmerdquo (DL X
85)102 ensejando ldquoa conquista de uma vida felizrdquo (DL X 84)103 Daiacute porque a compreensatildeo a
respeito dos limites da phyacutesis tem sua importacircncia na medida em que permite ao saacutebio
identificar e se desviar das opiniotildees ou concepccedilotildees que remetem para uma imposiccedilatildeo de
valores e de um modo de vida apartados de uma medida natural Considerar esses limites eacute
fundamental para que o homem pense e estabeleccedila a partir da phyacutesis um modo saacutebio de agir
122 A repleccedilatildeo dos desejos
O projeto eacutetico de Epicuro se fundamenta em um modo de vida orientado para a
satisfaccedilatildeo dos prazeres104 mas para isso eacute preciso que o homem goze da liberdade necessaacuteria
para fazer as escolhas e as recusas essenciais para direcionar sua vida para essa finalidade Por
isso o percurso traccedilado ateacute aqui tem buscado mostrar a physiologiacutea como um exerciacutecio de
investigaccedilatildeo da natureza que ao tentar explicar os modos de ser da natureza e as forccedilas que
nela operam pretende esclarecer a respeito dos limites e das possibilidades do agir humano
Isso diz respeito a por um lado fazer entender a diferenccedila entre o que acontece por
necessidade (anaacutenke) e o que depende de cada um (paacuterrsquohemaacutes) e por outro estabelecer uma
compreensatildeo da phyacutesis como limite onde deve se circunscrever toda possibilidade de
entendimento da realidade Nesse sentido se estabelece um trabalho de afastamento de
crenccedilas que destituem o homem do papel de protagonista de seu proacuteprio destino seja porque
o pensam submisso a um fatalismo natural ou aos caprichos de divindades Aleacutem disso outras
formas impositivas de vontades se datildeo pela religiatildeo pela cultura e pela doacutexa Todas podendo
exogenamente definir um modo de viver em funccedilatildeo das finalidades pretendidas
101 Παρρησίᾳ γὰρ ἔγωγε χρώμενος φυσιολογῶν χρησμῳδεῖν τὰ συμφέροντα πᾶσιν ἀνθρώποις μᾶλλον ἂν βουλοίμην κἂν μηδεὶς μέλλῃ συνήσειν ἢ συγκατατιθέμενος ταῖς δόξαις καρποῦσθαι τὸν πυκνὸν παραπίπτοντα παρὰ τῶν πολλῶν ἔπαινον 102 ἀταραξίαν καὶ πίστιν βέβαιον 103 μακάριον βίον συντεινόντων 104 No item 123 deste capiacutetulo nos deteremos nesse aspecto
53 Eacute diante desse quadro que Epicuro vai dar um tratamento especiacutefico agrave questatildeo dos
desejos (epithymiacuteai) Pois por meio deles tambeacutem pode ocorrer uma tirania sobre o homem
E isso impede qualquer projeto de realizaccedilatildeo de vida saacutebia afinal um dos pressupostos para
isso eacute ser capaz de definir por si mesmo sua conduta seu modo de agir Quem natildeo tem o
domiacutenio sobre si proacuteprio sobre as proacuteprias vontades sucumbe agrave desmedida adoece o corpo e
desequilibra a alma
Sobre isso Platatildeo jaacute dizia que a alma do homem eacute tiranizada pelo desejo105 de coisas
pensadas como importantes mas que efetivamente natildeo satildeo necessaacuterias Na poacutelis isso remete
agrave gloacuteria agrave fama agrave ambiccedilatildeo de ser grande tal qual Alexandre Como decorrecircncia tem-se um
apetite sem limites capaz de cativar o homem fazendo-o escravo de seu querer sendo
governado pelo asseacutedio das proacuteprias vontades A mercecirc de inclinaccedilotildees desmesuradas perde-
se a medida para o agir Assim Soacutecrates se refere a esse tipo
() o homem que governa mal seu iacutentimo aquele que agora mesmo julgaste ser o mais desgraccedilado o homem tiracircnico quando natildeo vive como um particular mas eacute forccedilado por qualquer acaso a ser tirano e sendo incapaz de se dominar a si mesmo tenta mandar nos outros como se uma pessoa doente e deacutebil em vez de estar em casa fosse forccedilada a passar a vida a competir em forccedila fiacutesica (Platatildeo A Repuacuteblica IX 579c -579d)106
O conflito se daacute na proacutepria alma quando a parte desiderativa e irasciacutevel se sobrepotildee agrave
racional Daiacute a necessidade de estabelecer uma medida um limite para se opor a esse estado
de desequiliacutebrio que encontra nas opiniotildees vazias (kenaigrave doacutexai) um estiacutemulo para pensar a
liberdade como condiccedilatildeo para poder tudo Mas para fazer frente a isso eacute preciso se opor aos
valores da doacutexa Portanto o conhecimento acerca da natureza vai ser fundamental pois
permite pensar limites para os desejos Esse saber vai instrumentalizar o saacutebio para que ele
possa se contrapor a toda opiniatildeo que projeta a proacutepria realizaccedilatildeo naquilo que eacute inalcanccedilaacutevel
ou traz perturbaccedilotildees e dor Assim os desejos devem considerar a finalidade da phyacutesis e visar
o que conduz agrave ataraxiacutea Em decorrecircncia o eacutethos vai ser concebido tendo em vista um
referencial ao qual o homem recorra para saber que prazer escolher e qual recusar E isso vai
resultar em um estilo de vida frugal dado que o modo proacuteprio de ser da natureza natildeo se daacute em
um regime de desmesura Afinal ldquouma dieta simples proporciona um prazer anaacutelogo ao de
105 ldquo() o homem se torna rigorosamente um tirano quando por natureza ou por haacutebito ou pelos dois motivos se torna eacutebrio apaixonado e louco () Depois disso haveraacute festas orgias festins concubinas e todos os gozos dessa espeacutecie naqueles em cujo peito o tirano Eros habita governando toda sua almardquo (PLATAtildeO A Repuacuteblica 573 c d) Ediccedilatildeo referida na nota 106 106 PLATAtildeO A Repuacuteblica Lisboa Fundaccedilatildeo Caloustre Gulbenkian 1993 Traduccedilatildeo Maria Helena da Rocha Pereira
54 uma mesa suntuosa desde que se elimine a dor causada pela vontaderdquo (DL X 130)107
Eacute sob a perspectiva de frugalidade de simplicidade que a sabedoria vai ser delineada
O prazer buscado eacute aquele mais uacutetil para uma vida feliz e isso estaacute relacionado com os limites
estabelecidos a partir da proacutepria phyacutesis Uma vida katagrave phyacutesin implica na premecircncia de limitar
os desejos aos que natildeo desequilibram nem a alma nem o corpo Ao pensar suas necessidades
tendo em vista satisfazer apenas os desejos que concorrem para o seu bem-estar o saacutebio passa
a ouvir mais o corpo e menos as opiniotildees vazias Afinal ldquoinsaciaacutevel natildeo eacute o estocircmago como
a maior parte das pessoas dizem mas a opiniatildeo falsa sobre o ilimitado enchimento do
estocircmagordquo (SV 59)108 Portanto o saacutebio sabe desejar em funccedilatildeo do que aprendeu sobre a
natureza e natildeo considerando o que os muitos professam E isso o leva a fazer um exerciacutecio de
distinccedilatildeo e separaccedilatildeo (diaiacuteresis) para rejeitar os desejos que adoecem e desequilibram em
prol dos que estatildeo de acordo com a natureza
Daiacute Epicuro ter diferenciado os desejos entre aqueles que satildeo naturais e necessaacuterios
os naturais e desnecessaacuterios e os nem naturais e nem necessaacuterios Dos naturais ldquoalguns satildeo
necessaacuterios agrave felicidade outros agrave tranquilidade sem perturbaccedilatildeo do corpo e outros agrave proacutepria
vidardquo (DL X 127)109
Os desejos naturais e necessaacuterios (physikaiacute anankaiai) satildeo aqueles que afastam o
sofrimento cessam a dor ldquocomo beber quando temos sederdquo (DL X 29) Eles estatildeo
relacionados agrave manutenccedilatildeo da vida ao equiliacutebrio orgacircnico agrave proteccedilatildeo e ao bem-estar do
corpo Sem satisfazecirc-los sucede-se um estado de dor de desarmonia que pode ocasionar
adoecimento e morte A Sentenccedila Vaticana 33 reforccedila esse sentido ao explicar que ldquoa voz da
carne eacute natildeo ter fome natildeo ter sede e natildeo ter frio pois quem tem essas coisas e espera haver de
tecirc-las lutaria pela felicidade ateacute com Zeusrdquo110
Desejos naturais e necessaacuterios podem ser compreendidos como referecircncia a uma vida
simples e frugal E isso estaacute relacionado a um modo autaacuterkes e sereno de viver Eacute nessa
perspectiva que entendemos o comentaacuterio de Porfiacuterio ldquomelhor vale para ti estar sem
perturbaccedilatildeo dormindo sobre um pallet do que estar agitado dispondo de uma cama de ouro e
de uma mesa suntuosardquo111 Contudo Epicuro natildeo estaacute postulando uma vida de privaccedilotildees nem
107 ὅτι τε λιτοὶ χυλοὶ ἴσην πολυτελεῖ διαίτῃ τὴν ἡδονὴν ἐπιφέ ρουσιν ὅταν ἅπαν τὸ ἀλγοῦν κατrsquo ἔνδειαν ἐξαιρεθῇ 108 Ἄπληστον οὐ γαστήρ ὥσπερ οἱ πολλοί φασιν ἀλλrsquo ἡ δόξα ψευδὴς ὑπὲρ τοῦ ltτῆςgt γαστρὸς ἀορίστου πληρώματος 109 αἱ μὲν πρὸς εὐδαιμονίαν εἰσὶν ἀναγκαῖαι αἱ δὲ πρὸς τὴν τοῦ σώματος ἀοχλησίαν αἱ δὲ πρὸς αὐτὸ τὸ ζῆν 110 Σαρκὸς φωνὴ τὸ μὴ πεινῆν τὸ μὴ διψῆν τὸ μὴ ῥιγοῦνmiddot ταῦτα γὰρ ἔχων τις καὶ ἐλπίζων ἕξειν κἂν ltΔιὶgt ὑπὲρ εὐδαιμονίας μαχέσαιτο 111 PORPHYRE Lettre agrave Marcella 29 Apud SOLOVINE Maurice Eacutepicure Doutrines et Maximes Paris Hermann 1965 p 152
55 um regresso a formas primitivas de viver nem exorta a pobreza Sua mensagem eacute para viver
feliz natildeo precisamos de muito pois ldquonada eacute suficiente para quem o suficiente eacute poucordquo (SV
68)112 Daiacute ele se referir ao saacutebio dizendo ldquoseraacute previdente quanto ao seu patrimocircnio e ao
futurordquo (DL X 120) Ou seja eacute preciso dispor do que permita viver com tranquilidade
podendo gozar de uma condiccedilatildeo de bem-estar
Essa compreensatildeo permite estabelecer uma relaccedilatildeo entre physikaiacute anankaiai e
autaacuterkeia O saacutebio ao compreender o que de fato se constitui como necessidade - e para isso
basta ouvir a proacutepria natureza - e ao perceber os desejos estimulados pela doacutexa que relaciona
a obtenccedilatildeo de bens agrave felicidade exercita o discernimento para se orientar em direccedilatildeo ao que
vai realizar o sentido de sua existecircncia Quanto menos necessidade se tem mais se estabelece
um modo de viver autaacuterkes (e vice-versa) posto natildeo se depender da obtenccedilatildeo de bens vatildeos
para realizar uma vida feliz Entatildeo ldquoo saacutebio depois de julgar as coisas em funccedilatildeo da
necessidade sabe mais dar em partilha do que tomar em partilha Tatildeo grande tesouro da
autarquia ele encontrourdquo (SV 44)113
Os desejos naturais e natildeo necessaacuterios satildeo compreendidos como aqueles que se natildeo
satisfeitos natildeo causam dor ou outra forma de sofrimento natildeo afetam o equiliacutebrio vital do
organismo Como afirma a Maacutexima Capital 26 ldquodos desejos todos os que natildeo levam a uma
sensaccedilatildeo de sofrimento se natildeo satildeo satisfeitos natildeo satildeo necessaacuterios mas envolvem um anseio
facilmente dissipaacutevel quando o objeto eacute difiacutecil de obter ou se tendem a prejudicarrdquo (DL X
148)114 Nesse conjunto podemos por exemplo pensar os apetites sexuais ou por pratos
elaborados ou os desejos luacutedicos
Basta lembrar que para Epicuro patildeo e aacutegua jaacute eram suficientes para ele natildeo se
lamentar da vida mas - sempre que podia - um pedaccedilo de queijo servia-lhe como banquete115
Da mesma forma divertir-se com os amigos e dar vazatildeo agrave lubricidade do corpo tambeacutem satildeo
concebidos como naturais pois estatildeo em acordo com a natureza - visto que conduzem ao
equiliacutebrio agrave harmonia ao prazer Contudo a pergunta que conveacutem fazer eacute esses desejos que
satildeo naturais mas natildeo satildeo necessaacuterios (pois se satisfeitos apenas adicionam mais prazer agrave
vida sem que sua subtraccedilatildeo possa gerar dor) devem ser realizados Para pensar sobre isso
112 Οὐδὲν ἱκανὸν ᾧ ὀλίγον τὸ ἱκανόν 113 Ὁ σοφὸς εἰς τὰ ἀναγκαῖα συγκριθεὶς μᾶλλον ἐπίσταται μεταδιδόναι ἢ μεταλαμβάνεινmiddot τηλικοῦτον αὐταρκείας εὗρε θησαυρόν 114 Τῶν ἐπιθυμιῶν ὅσαι μὴ ἐπrsquo ἀλγοῦν ἐπανάγουσιν ἐὰν μὴ συμπληρωθῶσιν οὐκ εἰσὶν ἀναγκαῖαι ἀλλrsquo εὐδιάχυτον τὴν ὄρεξιν ἔχουσιν ὅταν δυσπορίστων ἢ βλάβης ἀπεργαστικαὶ δόξωσιν εἶναι 115 DL X 11 ldquoO proacuteprio Epicuro diz em suas cartas que se contentava apenas com aacutegua e um simples patildeo E diz lsquomanda-me um pequeno pote de queijo para que eu possa banquetear-me quanto tiver vontadersquo rdquo
56 vamos considerar que
O haacutebito de alimentar-se com simplicidade e natildeo suntuosamente natildeo soacute garante a boa sauacutede e faz com que o homem enfrente sem hesitaccedilatildeo as inevitaacuteveis necessidades da vida mais ainda o predispotildee melhor a apreciar as mesas suntuosas que se lhe oferecem agraves vezes e o torna destemeroso diante da sorte (DL X 131)116
Como vemos Epicuro deixa claro que para suprir as nossas necessidades precisamos
de pouco e eacute a isso que o saacutebio deve se ater primordialmente A sorte (tyacuteche) que tanto pode
por exemplo trazer a chuva que vai multiplicar o plantio ou impor a estiagem que miacutengua o
campo natildeo lhe traraacute perturbaccedilatildeo pois ldquoser ou natildeo ser rico lhe eacute indiferenterdquo (DL X 120)
Entatildeo o que eacute natural e necessaacuterio basta ao saacutebio para viver satisfeito Ele natildeo precisa
procurar acrescentar mais prazer agrave vida Mas se quiser dar vazatildeo aos desejos que satildeo naturais
mas natildeo satildeo necessaacuterios deve considerar o ensinamento da Maacutexima Capital 8 onde ele
afirma ldquonenhum prazer eacute um mal por si mesmo poreacutem aquilo que produz alguns prazeres
traz perturbaccedilotildees muitas vezes maiores que os proacuteprios prazeresrdquo (DL X 141)117 Isso nos
remete para a necessidade de uma ponderaccedilatildeo de fazer um caacutelculo O saacutebio deve se perguntar
o que adveacutem com a realizaccedilatildeo de tal desejo Se a resposta contrastar com o sentido de
harmonia de equiliacutebrio e de serenidade inteligido por meio do estudo da natureza entatildeo isso
deve ser evitado Em fazendo isso o sophoacutes estaacute se guiando pela phroacutenesis que nesse sentido
pode ser compreendida como o exerciacutecio praacutetico da sabedoria ou uma capacidade de
discernimento E eacute essa atividade permanente de refletir a respeito dos proacuteprios desejos de
ponderar sobre o que adveacutem com a satisfaccedilatildeo deles e relacionar isso com o estabelecimento
de um modo de viver de acordo com a natureza que vai caracterizar o modo de viver do saacutebio
e nos permitir entender como se efetiva a pragmateiacutea epicurista por meio da meditaccedilatildeo e da
praacutexis como veremos nos capiacutetulos II e III
Agora com relaccedilatildeo aos desejos que natildeo satildeo nem naturais e nem necessaacuterios podemos
tambeacutem nos referir a eles como desejos vatildeos Isso porque se fundamentam naquilo que as
opiniotildees vazias (kenaigrave doacutexai) pensam a respeito do que pode proporcionar felicidade e em que
medida isso se daacute Daiacute se tem um problema pois sem a natureza como medida incorre-se no
erro de buscar o inalcanccedilaacutevel Tal aspecto fica melhor explicitado na Maacutexima Capital 15
onde se diz ldquoa riqueza conforme a natureza eacute limitada e faacutecil de obter a requerida pelas
116 τὸ συνεθίζειν οὖν ἐν ταῖς ἁπλαῖς καὶ οὐ πολυτελέσι διαίταις καὶ ὑγιείας ἐστὶ συμπληρωτικὸν καὶ πρὸς τὰς ἀναγκαίας τοῦ βίου χρήσεις ἄοκνον ποιεῖ τὸν ἄνθρωπον καὶ τοῖς πολυτελέσιν ἐκ διαλειμμάτων προσερχομένοις κρεῖττον ἡμᾶς διατίθησι καὶ πρὸς τὴν τύχην ἀφόβους παρασκευάζει 117 Οὐδεμία ἡδονὴ καθrsquo ἑαυτὴν κακόνmiddot ἀλλὰ τὰ τινῶν ἡδονῶν ποιητικὰ πολλαπλασίους ἐπιφέρει τὰς ὀχλήσεις τῶν ἡδονῶν
57 opiniotildees vatildes estende-se ao infinitordquo (DL X 144)118 Assim se o tamanho do estocircmago pode
ser pensado como um limite natural para o quanto se pode comer indicando um niacutevel de
saciedade qual a medida para a riqueza a gloacuteria as honrarias a imortalidade e outros tantos
desejos consagrados pela opiniatildeo dos muitos da poacutelis Dessa forma um modo saacutebio de viver
soacute pode ser estabelecido tendo a natureza como referecircncia E isso se opotildee ao estilo de vida
postulado pelas kenaigrave doacutexai para quem o ter fundamenta uma falsa ideia sobre o que
proporciona a felicidade
Vemos que o aspecto distintivo estaacute (novamente) na questatildeo do limite Se podemos
desejar tanto o bem conforme a natureza quanto aquele conforme a opiniatildeo o primeiro eacute
alcanccedilaacutevel pois ldquoo bem da natureza eacute limitado porque ele existe O outro escapardquo
(BOLLACK 1975 p 293) O problema estaacute em desejar bens que se estendem ao infinito ndash
caracteriacutestica do que eacute natildeo-natural resultando numa busca sem fim e portanto em adotar
para a vida uma finalidade irrealizaacutevel ldquoOs desejos vazios natildeo satildeo vazios nem de objeto nem
de prazer eles satildeo vazios da felicidade que se pensa erradamente usufruirrdquo (HELMER
2013 p 19) Eis porque o saacutebio orienta-se para observar e suprir os desejos dentro dos limites
das necessidades de seu bem-estar
Viver de acordo com a natureza que vai ser condiccedilatildeo para realizaccedilatildeo de uma vida
feliz pressupotildee a observacircncia aos limites da phyacutesis em seus dois aspectos O primeiro tratado
no item 111 diz respeito aos seus contornos imanentes Isso implica em natildeo pensar para
aleacutem do mundo sensiacutevel o campo da realizaccedilatildeo humana As coisas acontecem ou por
necessidade ou por acaso ou dependem de noacutes O saacutebio se percebe como ser da natureza e
como tal define dentro do que pode o homem um modo autaacuterkes de viver Essa
compreensatildeo permite fundamentar uma relaccedilatildeo de confianccedila (piacutestis) com a natureza O
sophoacutes quanto mais aprende sobre a phyacutesis mais confia na possibilidade de realizaccedilatildeo de
uma vida feliz
O segundo aspecto diz respeito agrave necessidade de regulaccedilatildeo dos desejos o que tambeacutem
remete para um uso praacutetico da filosofia por meio de um exerciacutecio de examinar as proacuteprias
vontades Isso tem em vista a necessidade de os desejos espelharem no modo de viver um
estado equilibrado correspondente agravequele que verificamos na natureza e tomado como um
modelo de realizaccedilatildeo Daiacute porque ldquopara todos os desejos eacute preciso colocar esta questatildeo o que
me adviraacute se realizar o que estaacute sendo buscado segundo o meu desejo e o que se natildeo se
118 Ὁ τῆς φύσεως πλοῦτος καὶ ὥρισται καὶ εὐπόριστός ἐστιν ὁ δὲ τῶν κενῶν δοξῶν εἰς ἄπειρον ἐκπίπτει
58 realizarrdquo (SV 71)119 Ou seja a sabedoria vai ser relacionada a uma atividade de caacutelculo e
moderaccedilatildeo E aiacute fica evidenciado o papel da phroacutenesis que orientada pelo conhecimento da
phyacutesis e pela experiecircncia conduz toda escolha e toda rejeiccedilatildeo em funccedilatildeo de fazer o saacutebio
experimentar em sua vida a ausecircncia de dor e a autaacuterkeia
123 Tograve teacutelos tecircs phyacuteseos
Na Carta a Meneceu eacute dito ldquo() e chamamos o prazer de princiacutepio e fim da vida
felizrdquo (DL X 128)120 Ao relacionar o prazer (hedoneacute) com archeacute e teacutelos Epicuro postula se
tratar do nosso bem maior assim sendo eacute em funccedilatildeo de experimentaacute-lo que o saacutebio vai
definir seu modo de viver de acordo com a natureza Eacute princiacutepio porque estaacute na origem de
nossos instintos eacute finalidade porque eacute para onde se inclina nossa natureza
Epicuro ldquoaduz o fato de os seres vivos imediatamente apoacutes o nascimento estarem
contentes com o prazer (hedoneacute) enquanto rebelam-se contra a dor por disposiccedilatildeo natural
sem a intervenccedilatildeo da razatildeordquo (DL X 137)121 O prazer eacute o que realiza o homem ser da
natureza e diz respeito a uma condiccedilatildeo de equiliacutebrio vital de sauacutede Hedoneacute vai ser um
indicativo de boa realizaccedilatildeo se a dor ou o desequiliacutebrio remetem para um modo de viver
afastado da natureza o prazer indica um eacutethos katagrave phyacutesin
Ao tratar dos prazeres Epicuro faz uma distinccedilatildeo entre os cineacuteticos (hedonegrave kinetikeacute)
e os catastemaacuteticos (hedonegrave katastematikeacute) Os primeiros remetem a uma condiccedilatildeo de
movimento para atividades que visam a repleccedilatildeo do que eacute necessaacuterio agrave harmonia e bem-estar
Assim o prazer de beber e de se alimentar vai ser tatildeo fundamental quanto aquele que proveacutem
da amizade Eacute compreendido como um prazer positivo pois evoca consigo uma accedilatildeo que
resulta em hedoneacute
Catastemaacuteticos se referem aos prazeres em repouso Implicam na definiccedilatildeo de hedoneacute
como ausecircncia de dor e de perturbaccedilatildeo Dizem respeito ao ldquoestado de equiliacutebrio do organismo
em todas as suas partesrdquo (CONCHE 1977 p 71) Eacute o que no corpo se percebe como aponiacutea e
na alma como ataraxiacutea Alguns inteacuterpretes122 da doutrina epicurista pensam isso como um
119 Πρὸς πάσας τὰς ἐπιθυμίας προσακτέον τὸ ἐπερώτημα τοῦτοmiddot τί μοι γενήσεται ἂν τελεσθῇ τὸ κατὰ ἐπιθυμίαν ἐπιζητούμενον καὶ τί ἐὰν μὴ τελεσθῇ 120 Καὶ διὰ τοῦτο τὴν ἡδονὴν ἀρχὴν καὶ τέλος λέγομεν εἶναι τοῦ μακαρίως ζῆν 121 ἀποδείξει δὲ χρῆται τοῦ τέλος εἶναι τὴν ἡδονὴν τῶι τὰ ζῶια ἅμα τῶι γεννηθῆναι τῆι μὲν εὐαρεστεῖσθαι τῶι δὲ πόνωι προσκρούειν φυσικῶς καὶ χωρὶς λόγου Temos aiacute uma convergecircncia com a visatildeo cirenaica para quem ldquotodos os seres animados aspiram ao prazer e repelem a dorrdquo (DL II 87) 122 Markus Silva Acerca de uma Eacutetica do Agradaacutevel Natal EDUFRN 2005 Esse artigo cita a tendecircncia de alguns estudiosos para pensar o prazer catastemaacutetico sob a oacuteptica de um ldquocaraacuteter negativo do prazerrdquo
59 ldquoprazer negativordquo pois natildeo resulta de uma accedilatildeo mas reflete um estado em que as
perturbaccedilotildees natildeo afetam o corpo
Assim podemos entrever como infundadas as acusaccedilotildees de que o epicurismo pensa o
prazer nos mesmos termos dos dissolutos como seus detratores quiseram fazer crer Epiteto
se refere a Epicuro como ldquopregador de obscenidadesrdquo (DL X 6) Timon fala dele como ldquoo
mais porco e mais catildeordquo (DL X 3) Provavelmente ao se relacionar por desconhecimento ou
para denegrir a concepccedilatildeo de prazer epicurista com a busca desbragada para realizar o prazer
tout court colocando o homem no mesmo patamar dos animais a filosofia do Jardim foi vista
como uma doutrina escandalosa Mas na Carta a Meneceu Epicuro explica
Quando dizemos que o prazer eacute a realizaccedilatildeo suprema da felicidade natildeo pretendemos relacionaacute-lo com a voluptuosidade dos dissolutos e com gozos sensuais como querem algumas pessoas por ignoracircncia preconceito ou maacute compreensatildeo por prazer entendemos a ausecircncia de sofrimento no corpo e a ausecircncia de perturbaccedilatildeo na alma (DL X 131)123
Desse modo a concepccedilatildeo de hedoneacute para os epicuristas implica em caracteriacutesticas que
a diferencia daquelas de outras escolas como a dos cirenaicos Dioacutegenes Laeacutercio124 fornece os
elementos para estabelecer uma comparaccedilatildeo entre o que foi pensado por Epicuro (livro X) e o
que foi defendido por Aristipo de Cirene (livro II) Em siacutentese essa discordacircncia compreende
dois pontos baacutesicos
Jaacute falamos que Epicuro concebe um prazer em movimento e outro em repouso Para
ele ldquoa tranquilidade perfeita e a ausecircncia completa de sofrimento satildeo prazeres estaacuteticos a
alegria e o deleite satildeo prazeres em movimento enquanto vistos em sua atividaderdquo (DL X
136) Em contrapartida os cirenaicos defendem apenas a existecircncia dos prazeres cineacuteticos
(DL II 89) Eles entendem que tanto a dor quanto o prazer satildeo movimentos sendo esse
suave e aquele brusco (DL II 86) Mas Aristipo natildeo concebe que a ausecircncia de dor possa
ser pensada como um estado de prazer (DL II 89) A aponiacutea e a ataraxiacutea natildeo se
constituiriam como estados prazerosos pois natildeo implicam em movimento mas em um estado
neutro Aleacutem disso o prazer eacute o fiacutesico que eacute o fim supremo (DL II 87) Para a escola de
Cirene ldquosoacute no corpo haacute o prazer e eacute a uacutenica finalidaderdquo (BOLLACK 1975 p 150) Poreacutem
para Epicuro tanto o sarkoacutes quanto a psycheacute satildeo afetados pelo prazer O gozo do corpo eacute
sentido pela alma tanto quanto a imperturbabilidade da alma tem seu reflexo no organismo
123 Ὅταν οὖν λέγωμεν ἡδονὴν τέλος ὑπάρχειν οὐ τὰς τῶν ἀσώτων ἡδονὰς καὶ τὰς ἐν ἀπολαύσει κειμένας λέγομεν ὥς τινες ἀγνοοῦντες καὶ οὐχ ὁμολογοῦντες ἢ κακῶς ἐκδεχόμενοι νομίζουσιν ἀλλὰ τὸ μήτε ἀλγεῖν κατὰ σῶμα μήτε ταράττεσθαι κατὰ ψυχήνmiddot 124 Vidas e Doutrinas dos Filoacutesofos Ilustres Op Cit
60 (athroiacutesma)
Outro aspecto de divergecircncia entre essas duas escolas estaacute ligado ao peso que cada
prazer tem na construccedilatildeo de uma vida feliz Em Aristipo os prazeres satildeo todos iguais (DL II
87) todos devem ser buscados e nisto consiste a virtude Do mesmo modo de toda dor se
deve fugir Mas para Epicuro nem todo prazer deve ser desejado assim como nem toda dor
deve ser evitada Tal seria o caso por exemplo de atividades fiacutesicas que no momento de sua
execuccedilatildeo podem trazer desconfortos mas que vatildeo servir para a manutenccedilatildeo da sauacutede e bem-
estar do corpo Tambeacutem podemos considerar que seja por desconhecimento a respeito das
coisas da natureza ou por engano (hamathiacutea) a busca por certos prazeres pode levar a
experimentar o indesejado Afinal ldquonenhum prazer eacute um mal por si mesmo poreacutem aquilo que
produz alguns prazeres traz perturbaccedilotildees muitas vezes maiores que os proacuteprios prazeresrdquo (MC
8)125 Isso ocorre quando o homem se deixa guiar pela opiniatildeo vazia pelos valores
convencionados que se projetam em ambiccedilotildees e desejos desmedidos Nesse caminho ele se
distancia do gozo da tranquilidade Isso porque o prazer pensado sem criteacuterios e distanciado
de sua finalidade - que eacute a de proporcionar uma vida feliz - submete o homem a uma tirania
dos desejos Para esse homem natildeo basta se saciar com o essencial para um estado de
harmonia eacute preciso ter mais e de acordo com a opiniatildeo dos muitos Como resultado tem-se
um modo de vida atribulado e infeliz E isso vai de encontro agrave noccedilatildeo de hedoneacute postulada por
Epicuro
Desse modo o prazer natildeo eacute desejaacutevel por si mesmo como defendem os cirenaicos
(DL II 90) mas na medida em que ele proporciona o equiliacutebrio para o corpo e para a alma
Da mesma forma agrave dor cabe uma reflexatildeo quanto agrave possibilidade de ela trazer algum
beneficio para a sauacutede do homem Afinal a filosofia epicurista se apresenta como uma
therapeiacutea entatildeo eacute preciso direcionar toda escolha (aiacuterisis) e toda recusa (phygeacute) para esse
estado saudaacutevel E eacute aiacute que se percebe o papel da phroacutenesis e do logismoacutes na regulaccedilatildeo dos
desejos e na escolha dos prazeres a serem buscados Eacute por meio desses mecanismos operados
pela psycheacute que o saacutebio vai poder escolher em funccedilatildeo do seu proacuteprio bem-estar
No que diz respeito agrave finalidade uma diferenciaccedilatildeo eacute necessaacuteria de ser destacada
Quando Epicuro postula que o bem a ser alcanccedilado eacute o prazer ele o faz se contrapondo agrave ideia
de que eacute na busca da felicidade (eudaimoniacutea) que encontramos o sentido de nossa existecircncia
Se ldquoa eudaimoniacutea supotildee uma soma de prazeres (prazeres presentes passados e a esperanccedila de
125 Οὐκ ἐπαύξεται ἐν τῆι σαρκὶ ἡ ἡδονὴ ἐπειδὰν ἅπαξ τὸ κατ ἔνδειαν ἀλγοῦν ἐξαιρεθῆι ἀλλὰ μόνον ποικίλλεται τῆς δὲ διανοίας τὸ πέρας τὸ κατὰ τὴν ἡδονὴν ἀπεγέννησεν ἥ τε τούτων αὐτῶν ἐκλόγισις καὶ τῶν ὁμογενῶν τούτοις ὅσα τοὺς μεγίστους φόβους παρεσκεύαζε τῆι διανοίαι
61 realizaacute-los no futuro)rdquo (SILVA 2017 97)126 a noccedilatildeo de hedoneacute por outro lado implica em
uma atividade que traz consigo o seu fim O prazer de beber aacutegua quando se estaacute com sede
vem junto com o ato de beber aacutegua Nesse sentido o que se tem na vida eacute um descontiacutenuo
onde aos momentos de prazer podem se suceder momentos de dor Mas conveacutem notar que
quando Epicuro se refere ao prazer natildeo estaacute limitando o significado desse termo ao gozo
sexual prazeroso eacute tudo o que se relaciona com nosso equiliacutebrio vital expresso na ausecircncia
de dores fiacutesicas (aponiacutea) e de atribulaccedilotildees da psycheacute
O escopo da filosofia epicurista como se pode ver eacute a realizaccedilatildeo do prazer Hedoneacute eacute
o bem buscado o teacutelos ou a finalidade natural para a qual converge a pragmateiacutea do saacutebio
Por isso ele deve submeter suas accedilotildees ao ldquoobjetivo da naturezardquo (tograve teacutelos tecircs phyacuteseos)127 Daiacute
a necessidade de refletir intensamente sobre ldquoa finalidade da naturezardquo (tograve tecircs phyacuteseos
epilelogismeacutenou teacutelos)128 para poder estabelecer um modo de viver de acordo com o
conhecimento que se pode ter sobre a phyacutesis
Ocorre que pensar a finalidade da natureza dotando essa expressatildeo de um valor
teleoloacutegico e dentro do contexto de uma filosofia que procura derrogar qualquer sentido
providencial sugere uma contradiccedilatildeo que precisa ser explicada A physiologiacutea ao tratar dos
modos de ser da natureza e das forccedilas que operam para a realizaccedilatildeo desses modos natildeo alude a
nenhum desiacutegnio ou preacute-disposiccedilatildeo anterior ou fora da phyacutesis atuando no vir-a-ser e no
deixar-de-ser daquilo que compotildee a realidade ldquoA natureza seja a natureza considerada como
um todo ou a natureza proacutepria a cada coisa particular eacute fundamentalmente sem finalidade
porque ela natildeo eacute orientada em seu desenvolvimento por nenhum programa preexistente agrave sua
existecircnciardquo (MOREL 2009 p 168) Entatildeo como entender o sentido emergido da articulaccedilatildeo
das noccedilotildees de teacutelos e phyacutesis sem pensar em ldquoorientaccedilatildeo lsquoteleoloacutegicarsquo (idem p 169)
Epicuro se refere a um bem segundo a natureza (tograve tecircs phyacuteseos agathoacuten)129 agrave riqueza
segundo a natureza (ho tecircs phyacuteseos ploucirctos)130agrave justiccedila segundo a natureza (tograve tecircs phyacuteseos
dikaioacuten)131 Todas essas formas podem sugerir haver no epicurismo uma menccedilatildeo a uma
prescriccedilatildeo da natureza para o homem como condiccedilatildeo para realizaccedilatildeo dele E isso pode induzir
a se tentar ver na phyacutesis uma intenccedilatildeo nos seus modos de ser
Para tentar esclarecer esse aspecto evocamos a tese segundo a qual Epicuro quando 126 SILVA Markus O Hedonismo na Obra Vidas e Doutrinas dos Filoacutesofos Ilustres de Dioacutegenes Laeacutercio Os Cirenaicos e Epicuro Rio de Janeiro Phoicircnix 2017 127 Maacutexima Capital 25 τὸ τέλος τῆς φύσεως 128 DL X 133 τὸ τῆς φύσεως ἐπιλελογισμένου τέλος 129 Maacutexima Capital 7 τὸ τῆς φύσεως ἀγαθόν 130 Maacutexima Capital 15 Ὁ τῆς φύσεως πλοῦτος 131 Maacutexima Capital 31 Τὸ τῆς φύσεως δίκαιόν
62 faz referecircncia ao termo teacutelos o faz tendo em vista uma acepccedilatildeo mais restrita de seu
significado Ao se referir agrave finalidade da natureza ele estaacute se remetendo ao ldquolimite fixado pela
natureza fiacutesica em noacutes como fora de noacutesrdquo (MOREL 2009 p 171) Isso estaacute relacionado com
a possibilidade que temos para perceber esses limites por meio das sensaccedilotildees de prazer e dor
Assim pensar a vida de acordo com a natureza ou considerar o fim da natureza diz respeito a
conhecer os limites naturais e estabelecer um modo de viver de acordo com eles A vida katagrave
phyacutesin natildeo eacute uma ordenaccedilatildeo da natureza Natildeo haacute uma ldquoorientaccedilatildeordquo natural nesse sentido No
epicurismo a physiologiacutea permite inteligir da natureza um saber que a coloca como modelo e
medida para a realizaccedilatildeo do homem Mas cabe a ele estabelecer um eacutethos dentro dessa
medida Nesse sentido viver de acordo com a natureza consiste em estabelecer um
espelhamento desse modelo trazendo esses limites para guiar a maneira de viver
Encontramos essa perspectiva expressa em duas metaacuteforas poeacuteticas Uma delas eacute
apresentada no poema de Lucreacutecio no livro II de Da Natureza
Eacute bom quando os ventos revolvem a superfiacutecie do grande mar ver da terra os rudes trabalhos por que estatildeo passando os outros natildeo porque haja qualquer prazer na desgraccedila de algueacutem mas porque eacute bom presenciar os males que natildeo se sofrem () Mas nada haacute de mais agradaacutevel do que ocupar os altos e serenos lugares fortificados pelas doutrinas dos saacutebios donde se podem ver os mais errar por um lado e procurar ao acaso o caminho da vida () (Lucr II)132
Da terra firme o poeta olha para o mar furioso e sente a calma por estar ali ao abrigo
dos ventos e das ondas Eacute essa tranquilidade que eacute identificada agrave finalidade da natureza E a
filosofia ao conduzir o pensamento para inteligir da phyacutesis os bens que devem ser buscados e
a medida para a realizaccedilatildeo de cada coisa mostra sua utilidade para a consecuccedilatildeo de uma vida
feliz (makariacuteos zecircn) Eacute nessa mesma palheta que outra analogia eacute desenhada por Epicuro
quando usa o termo galenismoacutes133 para se referir agrave serenidade que a alma do sophoacutes deve
experimentar A palavra evoca a imagem de um mar que de tatildeo calmo quase natildeo tem
ondulaccedilotildees Eacute essa serenidade que traduz o que busca o saacutebio ao viver de acordo com ou
conforme as finalidades da natureza Nesse sentido os limites vatildeo ser colocados como uma
defesa contra armadilhas da imaginaccedilatildeo e a repleccedilatildeo vai ser o limite contra a paixatildeo
desmedida
132 LUCREacuteCIO Da Natureza Satildeo Paulo Abril Cultural 1985 (Os Pensadores) Traduccedilatildeo de Agostinho da Silva p 110 133 DL X 83 πρὸς γαληνισμὸν ποιοῦνται
63 13 A finalidade do saber
Um olhar histoacuterico sobre a produccedilatildeo do pensamento filosoacutefico nos mostra diferentes
modos de tentar compreender a origem das coisas e de si mesmo Nos poemas de Homero134 e
de Hesiacuteodo135 percebemos a tendecircncia a se valer do miacutetico do maacutegico-religioso para pensar o
homem o cosmos e as forccedilas que nele operam ldquoEacute pela voz dos poetas que o mundo dos
deuses em sua distacircncia e sua estranheza eacute apresentado aos humanos em narrativas que
potildeem em cena as potecircncias do aleacutem revestindo-as de uma forma familiar acessiacutevel agrave
inteligecircnciardquo (VERNANT 2009 p 15)136 Mas por volta do seacuteculo VI aC Tales de
Mileto137 iniciou outra tradiccedilatildeo no jeito de explicar a realidade Deixando de lado o divino-
fantaacutestico a alusatildeo ao miacutetico ele postulou que o princiacutepio de tudo era a aacutegua num sinal de
que as explicaccedilotildees para os fenocircmenos da natureza podiam ser buscadas nela mesma
Os epicuristas satildeo tributaacuterios dessa tradiccedilatildeo iniciada por Tales e continuada por outros
filoacutesofos naturalistas138 No Jardim busca-se compreender a phyacutesis pelo que ela mostra de si
proacutepria sem necessidade de recorrer a nenhuma natureza exterior a ela mesma de evocar
mitos nem valer-se da crenccedila no sobrenatural Para tanto a multiplicidade das coisas e dos
fenocircmenos eacute explicada a partir de princiacutepios inteligiacuteveis existentes ontologicamente e
inscritos na phyacutesis aacutetomo e vazio Dessa forma a natureza eacute pensada tendo como referecircncia o
sensiacutevel o imanente e portanto pertence ao campo do que eacute conheciacutevel (gnostoacutes)139 Cabe ao
homem a partir das impressotildees que a realidade-phyacutesis lhe coloca diante dos sentidos fazer o
desvelamento dela ateacute onde ele eacute capaz
Estabelecer um saber acerca da natureza fundamentado no que ela apresenta aos
nossos sentidos eacute uma perspectiva que evoca opiniotildees divergentes Diante do questionamento
a respeito de ateacute que ponto eacute possiacutevel estabelecer uma verdade ancorada na natureza sensiacutevel
encontramos respostas que vatildeo de encontro a esse entendimento Tal eacute o caso de Xenoacutefanes
que afirmava ldquohomem nenhum conhece a certeza e homem nenhum jamais a conheceraacuterdquo
(DL IX 72) Demoacutecrito dizia ldquode fato nada sabemos pois a verdade estaacute num abismordquo (DL
134 A tradiccedilatildeo atribui a Homero (teria vivido por volta do seacuteculo VIII aC) a autoria de Iliacuteada e Odisseia Esses poemas satildeo considerados como determinantes para a formaccedilatildeo do homem grego Nessas obras os mitos eram utilizados para explicar e justificar as coisas do homem do mundo e dos deuses 135 Hesiacuteodo (poeta grego do fim do seacuteculo VIII - iniacutecio seacutec VII ac) na Teogonia faz uma genealogia dos deuses e procura explicar o ordenamento do mundo a partir de um estado inicial de caos Em certo sentido ele anuncia um trabalho de reflexatildeo sobre o cosmos que seraacute desenvolvido por outros preacute-Socraacuteticos 136 VERNANT Jean-Pierre Mito e Religiatildeo na Greacutecia Antiga Satildeo Paulo Martins Fontes 2009 137 Tales de Mileto (fim do seacutec VII ndash primeira metade do seacutec VI aC) 138 Nessa linha temos Anaximandro Anaxiacutemenes Heraacuteclito Leucipo Demoacutecrito 139 DL X 68 Γνωστός
64 IX 72) E Empeacutedocles explicava que ldquoos homens natildeo sabem perceber essas coisas nem com
os olhos nem com os ouvidos e nem com a menterdquo (DL IX 73)
Por traacutes dessas afirmaccedilotildees podemos entrever seja uma postura ceacutetica quanto agrave
possibilidade de obter um conhecimento verdadeiro seja a descrenccedila no testemunho dos
sentidos E isso remete para uma discussatildeo parmeniacutedica em que se faz uma contraposiccedilatildeo
entre a verdade (aleacutetheia) e a opiniatildeo (doacutexa) A questatildeo eacute de saber se o que se percebe pela
via dos sentidos pode ser pensado como um conhecimento verdadeiro ou trata-se tatildeo somente
de opiniatildeo Ou como podemos alcanccedilar a verdade sobre a natureza
Ora o conhecimento definido como a possibilidade de se estabelecer ldquoa verdaderdquo
acerca da realidade natildeo eacute o que postula Epicuro ldquoEle procura natildeo a explicaccedilatildeo mas uma
explicaccedilatildeo dos diversos fenocircmenos naturaisrdquo (SALEM 1982 p 18) Trata-se de constituir
um saber que sirva para fundamentar um modo saacutebio de viver Em vista disso o escopo da
physiologiacutea eacute ldquoo entendimento da natureza das coisas fundamentaisrdquo (DL X 45)140 e isso
implica em explicar a phyacutesis dentro de sua imanecircncia Nesse sentido ldquoo mito deve ser
excluiacutedo e seraacute excluiacutedo se nos apegarmos corretamente aos fenocircmenos e a partir destes
procedermos por induccedilatildeo agrave interpretaccedilatildeo das coisas que natildeo caem no acircmbito dos sentidosrdquo
(DL X 104)141 Com isso postula-se que a investigaccedilatildeo da phyacutesis estaacute ligada agrave necessidade
do saacutebio estabelecer um loacutegos sobre a natureza sem ter que recorrer a explicaccedilotildees que
transcendam os limites dela E isso segue no sentido de uma tendecircncia de laicizaccedilatildeo142 do
conhecimento que vai caracterizar a passagem do seacuteculo V para o seacuteculo IV aC Se no
poema de Parmecircnides143 o poeta eacute levado num carro pelas ldquofilhas do Solrdquo ateacute o encontro da
deusa144 que vai lhe revelar a verdade acerca do ser em Epicuro busca-se aprender por meio
de um exerciacutecio de investigaccedilatildeo da natureza o que pode conduzir a um estado de destemor
com relaccedilatildeo ao desconhecido Daiacute a necessidade do loacutegos se distanciar do myacutethos e se
fundamentar na sensibilidade (aiacutesthesis)
Vale destacar que no movimento do pensamento buscar um saber sobre a realidade o
saacutebio caminha pela via do loacutegos mas ele se daacute conta de que nem tudo se revela totalmente ao
140 ὑποβάλλει ltταῖς περὶgt τῆς τῶν ὄντων φύσεως ἐπινοίαις 141 μόνον ὁ μῦθος ἀπέστωmiddot ἀπέσται δέ ἐάν τις καλῶς τοῖς φαινομένοις ἀκολουθῶν περὶ τῶν ἀφανῶν σημειῶται 142 Sobre essa transformaccedilatildeo Marcel Detienne trata por meio da relaccedilatildeo antiteacutetica entre a ldquopalavra maacutegico-religiosardquo e a ldquopalavra-diaacutelogordquo em especial no capiacutetulo V onde discute ldquoO processo de Laicizaccedilatildeordquo DETIENNE Marcel Os Mestres da Verdade na Greacutecia Arcaica Rio de Janeiro Zahar 2003 143 Parmecircnides de Eleia (cerca de 515 - 460 aC) Seu poema Sobre a natureza foi conservado pela tradiccedilatildeo por meio de fragmentos 144 ldquoPercebemos agora que o jovem eacute o lsquohomem sabedorrsquo e que a intenccedilatildeo de sua demanda eacute buscar o saber que soacute os deuses podem proporcionar aos mortaisrdquo destaca Joseacute Trindade Santos em seus comentaacuterios a PARMEcircNIDES Da Natureza Satildeo Paulo Loyola 2013 p 54
65 pensamento racional Eacute preciso ldquoter em vista quais as coisas que o homem pode discernir e
quais as que natildeo poderdquo (DL X 94)145 Isso considera tanto as limitaccedilotildees do entendimento
quanto as da comunicaccedilatildeo Afinal nem tudo que incita a intuiccedilatildeo eacute possiacutevel colocar em
termos de uma linguagem clara objetiva Esse niacutevel da phyacutesis - fugidio agraves palavras - Epicuro
busca traduzir no num loacutegos fundamentado no sensiacutevel Ao considerar que o inteligiacutevel eacute da
ordem do imanente pode-se tratar dele por meio de comparaccedilotildees metaacuteforas analogias
similitude com o aquilo que compotildee nosso campo de experiecircncias
Assim embora os sentidos natildeo alcancem o inteligiacutevel eacute possiacutevel estabelecer um loacutegos
a respeito dele Quando se pensa na poeira refletida contra a luz pode-se falar por
semelhanccedila a essa imagem dos aacutetomos e de como eles podem se comportar no interior dos
corpos O saber edificado a partir da sensibilidade eacute dessa forma ponto de partida para toda
analogia feita em direccedilatildeo ao microcosmo ou ao macrocosmo Nosso modo de conceber o
mundo se daacute portanto a partir de uma relaccedilatildeo sensiacutevel com ele Para Epicuro esse eacute o uacutenico
recurso que o homem tem para pensar a natureza imperceptiacutevel (aacutedelos)
Nesse sentido natildeo haacute a finalidade de dogmatizar a compreensatildeo da natureza no
epicurismo mas de fazer entender a possibilidade de pensar o mundo a partir de sua
naturalidade sem necessidade de recorrer ao mito Afinal ldquoem nenhum caso deve adotar-se
para uma explicaccedilatildeo desse gecircnero a natureza divina ao contraacuterio cumpre-nos conservaacute-la
livre de qualquer tarefa e em perfeita bem-aventuranccedilardquo (DL X 97)146 A finalidade do saber
que decorre da physiologiacutea estaacute ligada agrave necessidade de afastar a crenccedila em causas
sobrenaturais intervindo na natureza E para isso Epicuro estabelece um meacutetodo de
investigaccedilatildeo que tanto pode estabelecer explicaccedilotildees para problemas fiacutesicos por meio da
admissatildeo de causa uacutenica (a natureza da alma eacute corpoacuterea por exemplo) como pode tratar dos
fenocircmenos celestes por meio de causas muacuteltiplas (o surgir e o pocircr-do-sol se devem ao
ldquoacendimento e apagamentordquo mas tambeacutem podem ocorrer ldquopor apariccedilatildeo sobre a terra e
novamente por ocultaccedilatildeordquo147) Em qualquer caso as explicaccedilotildees devem remeter aos
fenocircmenos sensiacuteveis
Disso eacute preciso reter que natildeo havendo condiccedilotildees de esclarecer todos os fenocircmenos
que acontecem na natureza procede-se com esse meacutetodo com aqueles que podem ser
explicados enquanto aguarda-se a possibilidade de elucidar o modo de ser dos outros Isso
145 τεθεωρηκὼς τί δυνατὸν ἀνθρώπῳ θεωρῆσαι καὶ τί ἀδύνατον καὶ διὰ τοῦτο ἀδύνατα θεωρεῖν ἐπιθυμῶν 146 ἔνια καὶ παρrsquo ἡμῖν τῶν τυχόντων γίνεται λαμβανέσθωmiddot καὶ ἡ θεία φύσις πρὸς ταῦτα μηδαμῇ προσαγέσθω ἀλλrsquo ἀλειτούργητος διατηρείσθω καὶ ἐν τῇ πάσῃ μακαριότητι 147 DL X 92 γίνεσθαι δυνατὸν καὶ κατὰ σβέσιν ou por ἐκφάνειάν τε ὑπὲρ γῆς καὶ πάλιν ἐπιπρόσθησιν
66 porque ldquoa razatildeo desenvolve escrupulosamente o que recebe da natureza e faz descobertas em
alguns campos mais velozmente e em outros mais lentamente e em algumas ocasiotildees e
eacutepocas faz progressos maiores e em outras faz progressos menoresrdquo (DL X 75)148 Ou seja
mesmo que em dado momento natildeo seja possiacutevel elucidar certo aspecto ou acontecimento da
natureza isso natildeo significa dizer que natildeo haja uma explicaccedilatildeo para tal O saber eacute um processo
de construccedilatildeo de elaboraccedilatildeo de um loacutegos que pode ainda natildeo estar suficientemente
desenvolvido para definir uma seacuterie de coisas que jaacute inquietam a alma do sophoacutes mas que
ainda natildeo ganharam forma explicativa Ademais Epicuro tambeacutem natildeo estaacute tentando explicar
tudo mas apontando para a possibilidade de entender a natureza sem recorrer aos deuses E
isso estaacute de acordo com o aspecto utilitaacuterio de sua filosofia que consiste em livrar o homem
de irracionalidades e de opiniotildees vazias (DL X 87) condiccedilatildeo para ele viver sem
perturbaccedilotildees Eacute em torno dessa finalidade que Epicuro vai dar agrave questatildeo do conhecimento
uma dimensatildeo praacutetica como veremos a seguir
131 O conhecimento (gnoacutesis)
A noccedilatildeo de conhecimento no epicurismo estaacute ligada agrave necessidade de apresentar uma
orientaccedilatildeo para levar o saacutebio a vivenciar a autaacuterkeia e experimentar uma vida feliz (makariacuteos
zecircn) Em delineando o saacutebio como aquele que estabelece um eacutethos de acordo com a
compreensatildeo que tem da natureza Epicuro vai pensar a physiologiacutea como uma investigaccedilatildeo
que direciona o sentido do conhecer a natureza para estabelecer o modo de viver do saacutebio
Essa perspectiva contrasta com aquela percebida no Mito da Caverna descrito por
Platatildeo149 Aliacute um dos homens que vivia aprisionado consegue sair e descobrir o que lhe
parece ser o mundo real Ele volta para compartilhar sua descoberta com aqueles que ficaram
na caverna Mas o conhecimento trazido por ele causa estranheza e desconfianccedila aos outros Eacute
como se eles vissem uma distacircncia entre o que aquele homem apresentava como verdade e as
necessidades que eles percebiam em suas vidas
Jaacute no epicurismo o conhecimento estaacute diretamente vinculado agrave utilidade que ele tem
para a vida (biacuteos)150 ou seja para auxiliar o homem em seu exerciacutecio cotidiano de existir O
148
τὸν δὲ λογισμὸν τὰ ὑπὸ ταύτης παρεγγυηθέντα ὕστερον ἐπακριβοῦν καὶ προσεξευρίσκειν ἐν μέν τισι θᾶττον ἐν δέ τισι βραδύτερον καὶ ἐν μέν τισι περιόδοις καὶ χρόνοις [ἀπὸ τῶν ἀπὸ τοῦ ἀπείρου] ltκατὰ μείζους ἐπιδόσειςgt ἐν δέ τισι κατrsquo ἐλάττους 149 PLATAtildeO A Repuacuteblica 514a-517c 150 Para se referir agrave vida Epicuro usa dois termos ζην e βίος Considerando os estudos filoloacutegicos de Bollack ζην se reporta ao ldquoprocesso de existecircncia bioloacutegicardquo enquanto βίος exprime a noccedilatildeo de uma realizaccedilatildeo humana
67 saber que resulta da physiologiacutea deve servir para que na impossibilidade de se alcanccedilar a
verdade se possa ter uma opiniatildeo verdadeira (doacutexa aletheacutes) a respeito da phyacutesis e com isso
poder agir conforme a finalidade da natureza (teacutelos tecircs phyacuteseos)
Entretanto esse aspecto da filosofia epicurista tem sido mal compreendido por aqueles
que a analisam buscando nela uma ciecircncia um sistema teoacuterico uma verdade comprovaacutevel E
isso eacute desconsiderar que a physiologiacutea tem como escopo permitir a construccedilatildeo de um
entendimento sobre a phyacutesis relacionado com o proceder do homem no dia a dia eacute a partir do
saber que ela engendra que o saacutebio vai exercitar sua pragmateiacutea (como trataremos nos
capiacutetulos II III e IV) Ela natildeo pretende apresentar provas fazer demonstraccedilatildeo (apoacutedeixis)151
constituir-se como uma epistemologia mas expor mostrar (epiacutedeixis)152 a possibilidade de
pensar a natureza a partir do que ela revela aos nossos sentidos sem recorrer ao teoloacutegico
nem se tutelar por opiniotildees vazias (kenaigrave doacutexai)
O conhecimento dos fenocircmenos do ceacuteu natildeo tem outro fim que a ataraxiacutea Ora para alcanccedilar a ataraxiacutea natildeo eacute necessaacuterio saber positivamente de que maneira esses fenocircmenos se produzem basta saber negativamente de que maneira eles natildeo se produzem (pela intervenccedilatildeo dos deuses) (CONCHE 1977 p 38)
Nesse sentido cabe mais falar de conhecimento como gnose (gnoacutesis) e eacute esse o termo
que Epicuro usa na Carta a Heroacutedoto153 na Carta a Meneceu154 e na sentenccedila vaticana 27
Trata-se de um saber decorrente de um exerciacutecio de pensar a proacutepria vida e a natureza na qual
aquela se situa tendo como referecircncia aquilo que eacute fenomecircnico fiacutesico Em outros termos a
gnoacutesis epicurista tem como princiacutepio e fim a experiecircncia de viver Ela eacute elaborada a partir das
impressotildees que adquirimos da realidade sensiacutevel e ldquonatildeo tem outra finalidade aleacutem de
assegurar a paz de espiacuterito e a convicccedilatildeo firmerdquo (DL X 85)155
A necessidade de ancorar esse discurso (loacutegos) de verdade em evidencias
cosmoloacutegicas fisioloacutegicas e antropoloacutegicas eacute o que vai auferir agrave gnose uma condiccedilatildeo
diferente daqueles mitos e das opiniotildees vazias Por essa razatildeo a lsquomostraccedilatildeorsquo (epiacutedeixis) estaacute
sempre atrelada ao mundo sensiacutevel Eacute visando esse mostrar que o pensamento vai operar por
que se estabelece ao se considerar o devir do tempo Para que a vida seja feliz (μακαρίως ζῆν) e isso seja sentido organicamente eacute preciso que a vida (βίος) seja organizada direcionada para estar de acordo com a natureza (κατὰ φύσιν) (BOLLACK 1975 p 521) 151 Para expor o sentido de ἀπόδειξις Anatole Bailly Op Cit fala de accedilatildeo de fazer ver expor demonstrar apresentar prova 152 Anatole Bailly Op Cit trata o termo ἐπίδειξις no sentido de exibiccedilatildeo de tornar notoacuterio de declamaccedilatildeo de ldquomostraccedilatildeordquo 153 DL X 78 79 85 154 DL X 123 124 155 οὖν μὴ ἄλλο τι τέλος () νομίζειν ltδεῖgt εἶναι ἤπερ ἀταραξίαν καὶ πίστιν βέβαιον
68 meio de analogias (analogiacuteai) para estabelecer uma reflexatildeo a respeito daquilo a que natildeo se
tem acesso direto pelos sentidos Isso acontece quando se estabelece uma comparaccedilatildeo entre
aquilo que compotildee nossas impressotildees sensiacuteveis (proleacutepseis) e o que escapa aos nossos
sentidos mas eacute phyacutesis Dessa forma eacute possiacutevel estabelecer um loacutegos acerca do que se
inscreve no niacutevel macrocoacutesmico ou microcoacutesmico da realidade Ao tratar disso Epicuro
tambeacutem se refere agraves projeccedilotildees imaginaacuterias do pensamento (phantastikegraves epiboleacutes tecircs
dianoiacuteas)156 como uma maneira de falar do que eacute inteligiacutevel recorrendo a uma imagem
explicativa originada da natureza sensiacutevel Em outras palavras parte-se do acervo das
proacutelepseis para projetar um loacutegos acerca do que natildeo eacute percebido pelos sentidos Eacute o que se daacute
quando se busca ter uma ldquovisatildeo de conjuntordquo (athroacuteas epiboleacutes)157 da natureza Se natildeo posso
alcanccedilar a totalidade do que existe posso contudo projetar o pensamento de maneira a
permitir metafisicamente um conceito de totalidade e pensar a realidade como todo
ilimitado Desse modo o pensamento daacute um lsquosaltorsquo para falar do que eacute desconhecido (aacutedelos)
Tudo isso estaacute relacionado ao logismoacutes que pode ser definido158 como uma
capacidade da psycheacute para calcular raciocinar para fazer uma operaccedilatildeo racional Eacute por meio
dessa atividade (que permite fazer analogias e projeccedilotildees) que mesmo sem poder ver o
universo infinito nem sentir o aacutetomo em sua minuacutescula existecircncia o homem pode tentar
entender essas dimensotildees da realidade Dessa forma busca-se estabelecer uma reflexatildeo
metafiacutesica mas fundamentada na imanecircncia uma vez que eacute a partir do referencial sensiacutevel
constitutivo do acervo de memoacuteria do homem que o pensamento vai poder se projetar tanto
para o macrocosmos quanto para o niacutevel micro da realidade Assim o loacutegos resulta dessa
possibilidade do pensamento racional e imaginativo Embora ele natildeo seja capaz de estabelecer
a verdade (aleacutetheia) ele pode por meio das proleacutepseis interpretar a realidade constituindo
uma orthegrave doacutexa
Estamos com isso dizendo que o conhecimento origina-se na realidade sensiacutevel
conforme Epicuro trata na Carta a Heroacutedoto O entendimento desse processo gnoseoloacutegico
passa pela compreensatildeo de que o iniacutecio do conhecer estaacute no corpo que eacute quem percebe o
mundo Isso se daacute quando nossas vias de percepccedilatildeo (tato visatildeo audiccedilatildeo olfato paladar)
recebem ou captam do objeto da realidade suas imagens (eiacutedola)159 Eacute desse encontro que se
gera uma afecccedilatildeo (paacutethos) que pode ser entendida como um contato estabelecido entre o
156 DL X 147 φανταστικὴν ἐπιβολὴν τῆς διανοίας 157 DL X 35 ἀθρόας ἐπιβολῆς 158 Markus Silva Termos Filosoacuteficos de Epicuro Op Cit 159 Satildeo emanaccedilotildees que chegam aos nossos oacutergatildeos sensoriais sob variadas formas emanaccedilotildees imageacuteticas olfativas sonoras
69 corpo senciente e o corpo sensiacutevel seja diretamente ou por meio de suas eiacutedola ldquoEacute pela
penetraccedilatildeo em noacutes de qualquer coisa vinda de fora que vemos as figuras das coisas e fazemos
delas objeto de nosso pensamentordquo (DL X 49) Em outros termos tudo que se conhece pelos
oacutergatildeos sensiacuteveis se daacute por afecccedilatildeo Noacutes somos tocados pelo cheiro pela imagem pelo som
satildeo aacutetomos que chegam ateacute noacutes Essa afecccedilatildeo gera no homem a sensaccedilatildeo (aiacutesthesis) que eacute
para Epicuro a base de todo conhecimento Satildeo as sensaccedilotildees que seratildeo gravadas em nossa
memoacuteria (mneacuteme) e vatildeo constituir na psycheacute uma imagerie do mundo o repertoacuterio de
impressotildees sensiacuteveis ou preacute-noccedilotildees (proleacutepseis) de nossa alma Eacute a partir dessas impressotildees
que o pensamento faz as projeccedilotildees imaginaacuterias do pensamento (phantastikegraves epibolegraves tecircs
dianoiacuteas) e pode estabelecer um loacutegos a respeito tanto do niacutevel macro quanto do microfiacutesico
132 Criteacuterios de verdade
Uma vez que ldquoa representaccedilatildeo que recebemos com a impressatildeo direta da mente ou nos
oacutergatildeos sensoriais seja da forma seja das outras propriedades eacute a mesma forma do corpo
soacutelido tal qual resulta da coesatildeo iacutentima da imagem ou de seus vestiacutegios restantesrdquo (DL X
50)160 o erro natildeo estaacute na sensaccedilatildeo mas pode decorrer das afirmaccedilotildees estabelecidas sobre ela
Em outros termos a realidade sensiacutevel natildeo eacute subjetividade eacute fenocircmeno real e como tal eacute
percebida pelo homem Eacute por haver essa relaccedilatildeo direta objetiva entre a imagem (eiacutedola)
percebida e o objeto do qual ela emana que Epicuro reconhece a autenticidade desse saber
Desse modo eacute a opiniatildeo que deve ser considerada como uma suposiccedilatildeo que pode ou natildeo ter
valor de verdade Daiacute ser necessaacuterio considerar a veracidade ou a falsidade dessas afirmaccedilotildees
e para isso
() devemos compatibilizar todas as nossas investigaccedilotildees com nossas sensaccedilotildees e particularmente com as apreensotildees imediatas sejam elas da mente ou de qualquer outro instrumento de juiacutezo e compatibilizaacute-las igualmente com os sentimentos existentes em noacutes para podermos ter indicaccedilotildees que nos permitam julgar o problema da percepccedilatildeo por via dos sentidos e do que eacute imperceptiacutevel aos sentidos (DL X 38)161
Essa passagem nos remete para pensar que se a sensaccedilatildeo eacute verdade mas o que se diz
sobre ela pode natildeo ser entatildeo eacute preciso estabelecer um criteacuterio de distinccedilatildeo entre opiniatildeo
160 καὶ ἣν ἂν λάβωμεν φαντασίαν ἐπιβλητικῶς τῇ διανοίᾳ ἢ τοῖς αἰσθητηρίοις εἴτε μορφῆς εἴτε συμβεβηκότων μορφή ἐστιν αὕτη τοῦ στερεμνίου γινομένη κατὰ τὸ ἑξῆς πύκνωμα ἢ ἐγκατάλειμμα τοῦ εἰδώλουmiddot 161 ἔτι τε καὶ τὰς αἰσθήσεις δεῖ πάντως τηρεῖν καὶ ἁπλῶς τὰς παρούσας ἐπιβολὰς εἴτε διανοίας εἴθrsquo ὅτου δήποτε τῶν κριτηρίων ὁμοίως δὲ καὶ τὰ ὑπάρχοντα πάθη ὅπως ἂν καὶ τὸ προσμένον καὶ τὸ ἄδηλον ἔχωμεν οἷς σημειωσόμεθα
70 verdadeira e falsa Na Carta a Heroacutedoto se explica ldquoa opiniatildeo eacute verdadeira se a evidecircncia dos
sentidos a confirma ou natildeo a contradiz eacute falsa se a evidecircncia dos sentidos natildeo a confirma ou a
contradizrdquo (DL X 34) Assim essa diferenciaccedilatildeo eacute estabelecida por Epicuro a partir de
ldquocriteacuterios da verdaderdquo (DL X 31) Tais criteacuterios se datildeo em observacircncia agraves sensaccedilotildees
(aiacutestheseos) agraves antecipaccedilotildees (proleacutepseis) e agraves projeccedilotildees imaginaacuterias do pensamento
Como apontado acima as sensaccedilotildees (aiacutestheseos) se constituem como uma via para o
conhecimento Delas se tem a evidecircncia fundamental da realidade do que experimentamos
Uma vez que os objetos da phyacutesis produzem imagens ou simulacros formados por
corpuacutesculos partiacuteculas que se desprendem dos corpos e atingem nossa percepccedilatildeo a afecccedilatildeo
sentida nos faz entender que esses objetos existem Trata-se de um indicativo de que o corpo
sente (diretamente ou por meio da captaccedilatildeo de suas eiacutedola) o outro corpo Assim ldquoa
existecircncia de corpos eacute atestada em toda parte pelos proacuteprios sentidosrdquo (DL X 39)162
As antecipaccedilotildees ou preacute-noccedilotildees quando remetem para imagens plenamente fundadas
sobre o testemunho das sensaccedilotildees podem ser entendidas como um criteacuterio de verdade Isso
pois satildeo representaccedilotildees formadas a partir da repeticcedilatildeo de sensaccedilotildees anaacutelogas entre si Ao ver
vaacuterias vezes a imagem de um navio grava-se na alma uma noccedilatildeo diretamente relacionada a
esse tipo de embarcaccedilatildeo Portanto essas imagens ao se relacionarem com objetos da
experiecircncia evidenciam a existecircncia deles
As phantastikai epibolai tecircs dianoiacuteas permitem projetar o pensamento de maneira a
poder tratar sobre que natildeo se abarca por nossos oacutergatildeos sencientes E isso poderia ser
considerado um prolongamento dos sentidos para alcanccedilar niacuteveis que eles natildeo o atingem As
reflexotildees sobre o aacutetomo e o todo (tograve pacircn) resultam dessa possibilidade Mas esse movimento
da inteligecircncia deve sempre remeter agrave memoacuteria das sensaccedilotildees Eacute nesse acervo que o
pensamento (diaacutenoia) vai buscar essas imagens para projetar e construir analogias
Com relaccedilatildeo agraves afecccedilotildees (paacutethes) elas podem ser compreendidas como indicativos de
uma conformidade ou inadequaccedilatildeo aos limites da natureza A veracidade do que eacute bom ou
mal eacute estabelecida na medida em que elas nos trazem a sensaccedilatildeo de prazer ou dor Eacute nessa
evidecircncia do sentir que as afecccedilotildees ldquonos fornecem o criteacuterio da verdade eacuteticardquo (CONCHE
1977 25) Tal aspecto vai ser fundamental para guiar o saacutebio em sua pragmateiacutea lhe
indicando o que escolher e o que evitar para alcanccedilar uma vida feliz (makariacuteos zecircn) e
autaacuterquica
Dessa forma para um loacutegos ter valor de verdade eacute preciso que ele esteja ancorado na
162 σώματα μὲν γὰρ ὡς ἔστιν αὐτὴ ἡ αἴσθησις ἐπὶ πάντων μαρτυρεῖ
71 realidade-phyacutesis ldquoEacute verdadeiro apenas aquilo que se percebe por meio dos sentidos ou se
apreende por meio da menterdquo (DL X 62)163 Ressalte-se contudo que essa apreensatildeo mental
tambeacutem deve estar coerente com a percepccedilatildeo que temos do mundo fiacutesico Epicuro com isso
visa trabalhar um discurso de verdade que se apresenta como opiniatildeo verdadeira (doacutexa
alethegraves) que difere das opiniotildees falsas (doacutexa pseudegraves) por atender a criteacuterios ancorados na
realidade imanente Natildeo se trata de um loacutegos estabelecido em cima de um pensamento
categorial mas do que poderiacuteamos entender como um pensamento fiacutesico E isso se relaciona
com a noccedilatildeo de que a verdade estaacute relacionada ao existir das coisas Como testemunha Sexto
Empiacuterico ldquoele natildeo fazia diferenccedila entre dizer que alguma coisa eacute lsquoverdadersquo (aletheacutes) e dizer
existente (hypaacuterchon)rdquo164
133 Saber teacutechne e aacuteskesis
Quando recorremos ao testemunho de Sexto Empiacuterico lemos que os epicuristas
buscavam apresentar em sua filosofia uma arte (teacutechne)165 de viver que por discurso (loacutegois)
e pensamento (dialogismoiacutes) se direciona para a felicidade da vida (ton eudaiacutemona biacuteon)
Essa perspectiva eacute sintetizada na definiccedilatildeo que Empiacuterico atribui a Epicuro para quem a
filosofia seria uma teacutechnen tinaacute periacute ton biacuteon166 ou em outros termos um saber em torno da
vida167 A mesma ideia consta nos fragmentos Us 227 e 227b168 onde eacute dito que Epicuro
definiu tal arte ou teacutecnica como um procedimento (meacutethodos) que busca ser uacutetil agrave vida
Graziano Arrighetti169 vecirc o termo teacutechne como arte perspectiva que eacute seguida por
muitos entre eles John Sellars170 que traduz a expressatildeo como ldquothe art concerned with onersquos
way of life the art of livingrdquo Outra modulaccedilatildeo de entendimento da teacutechnen tinaacute periacute ton biacuteon
poderia ser a de um saber para a vida ou em torno dela171 Em todo caso uma ideia
permanece a de uma arte ndash epicurista - de viver que aponta para a articulaccedilatildeo entre as
necessidades do homem e o direcionamento da atividade filosoacutefica
163 ἐπεὶ τό γε θεωρούμενον πᾶν ἢ κατrsquo ἐπιβολὴν λαμβανόμενον τῇ διανοίᾳ ἀληθές ἐστι 164 Sexto Empiacuterico (Adv Math VIII 9) apud CONCHE 1977 p 29 165 O termo teacutechne pode ser entendido como teacutecnica arte ou saber 166 Ver nota 02 deste capiacutetulo 167 Conforme traduz Markus Figueira Silva em Epicuro Sabedoria e Jardim Op Cit 168 Us 227b Scholiasta Dionysii Thracis BAG p 649 26 οι μεν Επικούρειοι ούτως ορίζονται την τέχνην middot τέχνη εστί μέθοδος ενεργούσα τω βίω το συμφέρον ενεργούσα δε οίον εργαζομένη 169 ARRIGHETTI Graziano Epicuro - Opere Torino Giulio Einaudi 1962 170 SELLARS John The Art of Living The Stoics on the Nature and Function of Philosophy London Bloomsbury 2009 171 Markus Silva Epicuro Sabedoria e Jardim Op Cit
72 A partir dessas referecircncias pode-se entrever que a felicidade o modo de viver e o
saber filosoacutefico satildeo temas interligados e prementes no pensamento epicurista E isso diz
respeito agrave maneira de compreender a realidade de pensar valores de fazer escolhas de
estabelecer relacionamentos de problematizar o proacuteprio sentido de existir e demais questotildees
que envolvam a realizaccedilatildeo de uma vida feliz (makariacuteos zecircn) Por meio de um saber em torno
do viver Epicuro visa inscrever no campo das discussotildees filosoacuteficas a necessidade de
apresentar um meio de conduzir o homem a experimentar a felicidade no seu dia a dia Com
isso ele se opotildee agraves concepccedilotildees que orientam a filosofia para as questotildees retoacutericas para a
erudiccedilatildeo ou para a investigaccedilatildeo do que ultrapassa o niacutevel da experiecircncia humana Em linhas
gerais podemos dizer que essa arte teacutecnica ou saber vai remeter para o desenvolvimento de
uma filosofia que considerando o campo das experiecircncias fornecidas pela vida ao homem e
os limites de sua capacidade de conhecer a natureza desenvolva nele uma sabedoria para
ajudaacute-lo - de maneira praacutetica - a se conduzir no mundo
Eacute por meio de uma relaccedilatildeo estabelecida entre a vida feliz e a teacutechne filosoacutefica que
Epicuro concebe a figura do saacutebio (sophoacutes) como sendo aquele que busca estabelecer uma
maneira de viver a partir de uma compreensatildeo da natureza (phyacutesis) procurando conferir mais
naturalidade ao seu modo de ser Afinal o sentido de equiliacutebrio e de autaacuterkeia (ter o princiacutepio
da accedilatildeo em si mesmo172) percebidos na phyacutesis eacute relacionado a um estado de bem estar de
tranquilidade de liberdade e de realizaccedilatildeo que o saacutebio busca trazer para sua proacutepria
existecircncia E isso implica em exercitar uma teacutecnica ou arte tendo em vista espelhar em sua
alma e em seu modo de viver esse estado equilibrado e autaacuterquico de ser Dessa forma o
exerciacutecio da sabedoria eacute orientado para que o entendimento sobre a natureza e sobre si proacuteprio
resulte em um modo saacutebio de agir pois quanto maior o esclarecimento sobre esses aspectos
maior a compreensatildeo daquilo que determina seus desejos e as possibilidades e limites de
realizaacute-los
A ideia daiacute decorrente eacute a de que quando o saacutebio busca exercitar o sentido de sua
realizaccedilatildeo a partir da compreensatildeo que estabelece sobre a natureza ele vai se apercebendo de
que sua vontade tanto pode ser definida a partir desse saber quanto pode ser determinada por
desejos que o levam a um estado desequilibrado e subjugado de ser natildeo sendo a expressatildeo de
uma necessidade vital ou de uma vida conforme a natureza (katagrave phyacutesin) mas de um
equivoco da opiniatildeo quanto ao sentido de existir do homem e quanto aos modos de ser da
172 Essa concepccedilatildeotraduccedilatildeo eacute defendida por Markus Figueira Silva em Epicuro Sabedoria e Jardim Op Cit Para ele o saacutebio tem em si mesmo (tograves autograves) o princiacutepio (archeacute) que determina sua accedilatildeo
73 natureza Por isso ele efetiva essa arte de viver na medida em que procura estabelecer e
vivenciar uma identificaccedilatildeo desse exerciacutecio constante de investigaccedilatildeo da phyacutesis (physiologiacutea)
com a praacutetica de um modo de vida voltado para a proacutepria felicidade Eacute dessa associaccedilatildeo que
Epicuro nos fala nesta seccedilatildeo da Carta a Heroacutedoto
() sendo tal caminho uacutetil a todos que se familiarizaram com a investigaccedilatildeo da natureza (physiologiacutea) eu que dedico incessantemente minhas energias agrave investigaccedilatildeo da natureza e desse modo de viver tiro principalmente a minha calma preparei para teu uso uma espeacutecie de epiacutetome e um sumaacuterio dos elementos fundamentais de minha doutrina em sua totalidade (DL X 37) 173
Desta citaccedilatildeo fica destacado que viver e filosofar satildeo atividades inseparaacuteveis (e a
pragmateiacutea epicurista remete justamente para essa indissociaccedilatildeo) na medida em que se
constituem como uma ocupaccedilatildeo ou disposiccedilatildeo (diaacutethesis) permanente do sophoacutes-physiologoacutes
para tentar estabelecer um eacutethos fundamentado na natureza Em outros termos eacute na
indissociabilidade com o modo de viver visado pelo saacutebio que o exerciacutecio de compreensatildeo da
phyacutesis se caracteriza como esse saber que permite pensar os limites as possibilidades ou em
que medida se daacute a realizaccedilatildeo do homem E isso estaacute relacionado agrave compreensatildeo de como eacute e
como opera a realidade circunscrevendo o pensamento os desejos e as accedilotildees agraves fronteiras do
natural a partir do que eacute percebido pela sensibilidade e estaacute contido no campo das
experiecircncias de vida do homem como destacamos anteriormente
Para melhor compreender essa concepccedilatildeo de saber como teacutechne ou conhecimento
aplicado ao modo de viver podemos fazer uso de uma imagem comum na antiguidade Eacute
aquela que relaciona a vida (βίος) essa existecircncia histoacuterica agrave imagem do mar sobre o qual
navega o homem Sem o domiacutenio de uma teacutecnica de navegaccedilatildeo ele se perde na imensidatildeo dos
oceanos mas ao conhececirc-la e aplicaacute-la ele pode se guiar pelas estrelas pelos ventos pelo vocirco
dos paacutessaros e assim chegar tranquilo ao cais Eacute essa pragmateiacutea colocada em exerciacutecio pelo
navegador ao se valer das teacutecnicas de navegaccedilatildeo que conhece fundamental para sua
seguranccedila Disso vem uma tranquilidade anaacuteloga agrave do homem que da terra firme observa -
sereno - o mar furioso fazer seus naufraacutegios como expressou o poeta e filoacutesofo epicurista
Lucreacutecio174 revalidando a compreensatildeo de que a teacutecnica instrumentaliza o homem para
vencer os desafios colocados pela natureza e tambeacutem para tornar a existecircncia mais agradaacutevel
Eacute por meio da teacutechne que ele constroi o barco forja a acircncora ergue o cais tece a rede de
173 ὅθεν δὴ πᾶσι χρησίμης οὔσης τοῖς ᾠκειωμένοις φυσιολογίᾳ τῆς τοιαύτης ὁδοῦ παρεγγυῶν τὸ συνεχὲς ἐνέργημα ἐν φυσιολογίᾳ καὶ τοιούτῳ μάλιστα ἐγγαληνίζων τῷ βίῳ ἐποίησά σοι καὶ τοιαύτην τινὰ ἐπιτομὴν καὶ στοιχείωσιν τῶν ὅλων δοξῶν 174 Essa analogia feita por Lucreacutecio em Da Natureza consta no canto II 1 e segs)
74 pesca e produz o vinho que na refeiccedilatildeo vai bem com o peixe e o patildeo tornando mais alegre o
viver
Essa relaccedilatildeo que se estabelece entre o ser humano e a natureza por meio da teacutecnica
pode ser lembrada atraveacutes do mito de Prometeu175 o titatilde que fez o homem conhecer o fogo
Ao dominar esse elemento natural ele se distancia do modo de viver dos animais e
incrementa os meios para sua sobrevivecircncia O fogo nessa narrativa pode ser pensado como
siacutembolo das artes e das teacutecnicas para as quais o homem era ignorante Lucreacutecio poeticamente
traceja esse caminho sem recorrer aos mitos mas destacando a natureza e a necessidade como
condiccedilotildees que levam o homem ao desenvolvimento da teacutechne
Depois o Sol os ensinou a cozer o alimento a amolececirc-lo com a evaporaccedilatildeo da chama porque viam muita coisa tornar-se branda com o golpe de seus raios e ser atraveacutes dos campos vencida pelo seu calor De dia para dia modificavam mais a sua alimentaccedilatildeo e a sua vida em virtude de novas descobertas e do fogo graccedilas agraves demonstraccedilotildees dos que estavam mais agrave frente pela inteligecircncia e pela forccedila da alma (Lucr IV)176
Historicamente podemos dizer que ateacute por volta do seacuteculo V aC a marca do domiacutenio
humano sobre a natureza se faz no campo das habilidades teacutecnicas ou de um tipo de sabedoria
(entendida em uma acepccedilatildeo geral do termo) caracteriacutestica do trabalho dos artesatildeos e
especialistas de ofiacutecios (JAEGER 1995 p 265ss) Dessa forma se por um lado ldquoHomero
chama sophoacutes ao carpinteirordquo nos lembra que a arte da poesia tambeacutem era designada por
Piacutendaro por sophiacutea Isso nos leva a pensar na existecircncia de diferenccedilas na natureza do saber e
por conseguinte nas possibilidades e limitaccedilotildees de sua transmissatildeo A sabedoria reivindicada
pelo poeta era algo inato estava ligada agrave proacutepria inteligecircncia de quem a fazia evocava a ideia
de uma inseparaacutevel relaccedilatildeo entre forma e pensamento Por isso explica W Jaeger177 a
teacutecnica poeacutetica natildeo poderia ser ensinada como o oficio do sapateiro do tecelatildeo do pescador
Na mesma perspectiva que procura refinar a caracterizaccedilatildeo dos saberes Platatildeo nos
apresenta no Protaacutegoras178 a concepccedilatildeo sofiacutestica de uma arte poliacutetica compreendida como
uma teacutecnica distinta daquela do artesatildeo - uma vez que natildeo se presta a fazer da natureza
instrumento de melhoria de vida mas atuar nas relaccedilotildees entre os homens em sociedade
Contudo tambeacutem difere da poesia uma vez que se trata de saber teacutecnico passiacutevel de ser
175 Segundo a narrativa miacutetica Prometeu um titatilde enganou Zeus roubando-lhe o fogo para entregaacute-lo aos homens Por isso foi castigado pelos deuses sendo acorrentado no Caacuteucaso onde uma aacuteguia ia diariamente devorar-lhe o fiacutegado 176 LUCREacuteCIO Da Natureza Satildeo Paulo Abril Cultural 1985 (Os Pensadores) Traduccedilatildeo de Agostinho da Silva p 236 177 Werner Jaeger Paideacuteia A Formaccedilatildeo do Homem Grego Satildeo Paulo Martins Fontes 1995 178 PLATAtildeO Protaacutegoras In Diaacutelogos Beleacutem UFPA 1980
75 transmitido a outrem
Essas reivindicaccedilotildees quanto agrave especificidade de algumas teacutecnicas vatildeo estimular no
decorrer do tempo um debate sobre a educaccedilatildeo no que diz respeito agrave definiccedilatildeo do que eacute
teacutechne em oposiccedilatildeo ao que eacute sophiacutea E o tom dessas discussotildees comumente se manteacutem
voltado para saber o que poderia ser ensinado e o que seria uma ldquoarterdquo natural Tal como
aparece no Protaacutegoras onde se destaca a ideia de que o trabalho dos sofistas que era ensinar
constituiacutea-se como uma teacutechne e natildeo como sophiacutea Trata-se de uma teacutecnica que transmite
outras teacutecnicas Dessa forma a retoacuterica era ensinada para instrumentalizar o homem para o
domiacutenio da teacutechne poliacutetica tida pelos sofistas como a mais importante entre as artes
O que se pode observar eacute a insurgecircncia de uma necessidade de diferenciar as teacutecnicas
ligadas aos saberes profissionais daquelas ditas mais elevadas em funccedilatildeo de ldquoum sentido de
totalidade e de universalidaderdquo (JAEGER 1995 p 350) Daiacute a tendecircncia inicial a se colocar
em lados separados ciecircncia e teacutecnica teoria e praacutetica sophiacutea e phroacutenesis
Ocorre contudo que tal necessidade de separaccedilatildeo entre esses saberes encontra uma
especificidade da liacutengua grega que tanto W Jaeger quanto M Silva179 destacam τέχνη em
grego antigo exprime um sentido geral de saber adquirido pela accedilatildeo uma maneira de lidar
com a natureza no campo praacutetico ao mesmo passo em que tambeacutem traduz um conjunto de
saberes especiacutefico envolvidos nessas teacutecnicas Ou seja embora tragam vieses praacuteticos
metodoloacutegicos e saberes de uma ldquonaturezardquo diferente o meacutedico o poeta o poliacutetico o sofista e
outros tantos personagens que faziam o desenvolvimento econocircmico cultural e poliacutetico da
Greacutecia antiga tinham suas atividades circunscritas a um mesmo termo-definiccedilatildeo embora
buscassem afirmar as especificidades e necessidade de saber especializado de cada aacuterea E
isso eacute compreensiacutevel ao considerarmos a tiacutetulo de ilustraccedilatildeo que tanto o ofiacutecio meacutedico da
eacutepoca quanto a culinaacuteria tecircm como manifestaccedilatildeo praacutetica de sua atuaccedilatildeo a alimentaccedilatildeo mas
somente o meacutedico tem o saber sobre qual dieteacutetica prescrever para o doente
A conversatildeo da educaccedilatildeo numa teacutecnica eacute um caso particular da tendecircncia geral do tempo a dividir a vida inteira numa seacuterie de compartimentos separados concebidos com vistas a uma finalidade e teoricamente fundamentados num saber adequado e transmissiacutevel Eacute sobretudo em matemaacutetica medicina ginaacutestica teoria musical arte dramaacutetica etc que noacutes encontramos especialistas e obras especializadas Ateacute os escultores como Policleto escrevem a teoria da sua arte (JAEGER 1995 p 349)
Nesse contexto Platatildeo no Goacutergias180 pensa a medicina (teacutechne he ietrikeacute)181 como
179 Markus Silva Sabedoria e Jardim Op Cit p55 180 464a ndash 469d PLATAtildeO Goacutergias Lisboa Ediccedilotildees 70 1992
76 uma teacutechne por excelecircncia Eacute do entendimento que Platatildeo tem da medicina que se define ao
mesmo tempo um conceito para a teacutecnica e um paralelo entre a atividade do meacutedico e a do
filoacutesofo dado que tal qual o meacutedico se vale do que sabe sobre a natureza do homem para
diagnosticar doenccedilas e lhe restituir a sauacutede do corpo a filosofia faz o mesmo em prol da
sauacutede da alma Essa perspectiva enceta no campo do saber filosoacutefico um sentido de
therapeiacutea182 que visa curar a psycheacute do homem Vale destacar que essa relaccedilatildeo que Platatildeo
estabelece entre a medicina e a filosofia aponta para o fato de ambas constituiacuterem seu saber a
partir do conhecimento sobre a phyacutesis para poderem a seu tempo pensar a natureza do corpo
e a da alma Eacute a partir desse afunilamento que meacutedico e filoacutesofo vatildeo poder prescrever um
receituaacuterio ou condutas para manter ou restabelecer o equiliacutebriosauacutede do homem
Outro aspecto que verificamos ao acompanharmos a evoluccedilatildeo de sentido da teacutechne ao
longo do tempo eacute a ampliaccedilatildeo do seu campo de atuaccedilatildeo Antes ela incidia sobre a natureza
(phyacutesis) e o uso utilitaacuterio que dela poderia ser feito visava a conservaccedilatildeo e a melhoria da vida
Depois passou a se projetar tambeacutem de maneira mais especifica sobre o homem tentando
direcionar sua accedilatildeo social como atraveacutes da teacutecnica poliacutetica ou buscando favorecer seu bem-
estar e equiliacutebrio orgacircnico como atraveacutes da medicina (teacutechne he ietrikeacute) Nesse caso o saber
meacutedico vai partir do conceito estabelecido de natureza do universo183 (phyacutesis tou pantoacutes) -
desenvolvido pelos filoacutesofos naturalistas jocircnicos - para pensar as naturezas dos homens (taacutes
phyacuteseis totilden anthroacutepon)184 e sobre ela estabelecer e projetar sua teacutecnica Com a teacutechne he
ietrikeacute o fim praacutetico visado eacute o estado de sauacutede do corpo e a arte meacutedica vai buscar validar
um receituaacuterio de vida voltado para o equiliacutebrio e harmonia dos constituintes orgacircnicos do
homem (estados semelhantes aos postulados pela filosofia para alma)
Esse paralelo que se estabelece e se intensifica entre a medicina e a filosofia marca o
ideaacuterio grego da antiguidade Nele se estabelece uma relaccedilatildeo entre a ignoracircncia com a doenccedila
e a sabedoria com a sauacutede E da mesma forma que a medicina tem por funccedilatildeo curar o corpo
do homem das enfermidades de maneira semelhante a filosofia deve afastar a psycheacute da
ignoracircncia Esse prisma jaacute se encontra colocado desde Demoacutecrito para quem ldquoa medicina cura
as enfermidades do corpo mas a sabedoria liberta a alma do sofrimento185rdquo Consoante essa
181 Expressatildeo ligada agrave medicina antiga 182 VOELKE A J La Philosophie Comme Theacuterapie de lrsquoAcircme Paris Cerf 1993 183 ldquoA conexatildeo entre o pensamento meacutedico das obras de Hipoacutecrates e o estudo do conjunto da natureza tem jaacute uma expressatildeo grandiosa na introduccedilatildeo ao escrito Dos Ventos Aacuteguas e Regiotildeesrdquo (JAEGER 1995 p 1006) 184 Embora a traduccedilatildeo de Gama Cury se refira agrave ldquonatureza dos homensrdquo o texto grego coloca os termos no plural τὰς φύσεις τῶν ἀνθρώπων (DL X 75) 185 O fragmento foi transmitido por Clemente e consta em Diels (H) e Kranz (W) II B 31 Nossa traduccedilatildeo baseou-se naquela encontrada em Alberto Bernabeacute Fragmentos Presocraacuteticos de Tales a Demoacutecrit Madrid
77 tradiccedilatildeo Epicuro tambeacutem vai trabalhar em seus escritos a noccedilatildeo de uma medicina para a
alma Tanto que na Carta a Meneceu logo em suas primeiras linhas ele faz um convite aos
seus contemporacircneos para que vejam na filosofia um caminho para a cura dos seus males
ldquoNenhum jovem deve demorar a filosofar e nenhum velho deve parar de filosofar pois nunca
eacute cedo demais nem tarde demais para a sauacutede da almardquo (DL X 122)186 Nesse sentido
reproduz-se no epicurismo a imagem da filosofia como uma medicina para a alma um saber
que se coloca a serviccedilo da realizaccedilatildeo de um estado de bem-estar (eustatheiacutea) aspecto
consoante a ausecircncia de distuacuterbio no corpo (aponiacutea) e de perturbaccedilatildeo na alma (ataraxiacutea)
Com isso Epicuro traccedila um paralelo entre sabedoria e a sauacutede da psycheacute ressaltando uma
relaccedilatildeo entre a teacutechne filosoacutefica e a teacutechne meacutedica Ao conceber a filosofia em torno do
preceito de que ldquoeacute preciso vir a ser em torno da cura de noacutes mesmosrdquo (SV 64)187 ele nos
remete tanto para uma indissociabilidade entre sauacutede da alma e vida feliz (makariacuteos zecircn)
quanto para a ligaccedilatildeo entre a physiologiacutea e a conduta do saacutebio Isso porque conhecimento
(gnocircsis) phyacutesis e o modo de viver (eacutethos) compotildeem no epicurismo um todo uma unidade
na medida em que constituem e se constituem como uma praacutetica filosoacutefica contiacutenua voltada
para fazer o homem conquistar um estado de equiliacutebrio a partir da adoccedilatildeo de um modo natural
de viver
Ora assim como na arte meacutedica (teacutechne he ietrikeacute) a filosofia epicurista parte de um
saber acerca da phyacutesis a physiologiacutea para pensar o modo de ser e de agir do homem visando
igualmente um estado de equiliacutebrio do corpo e da alma Nisso ele ecoa a concepccedilatildeo de
meacutedico-filoacutesofo ao mesmo passo em que reflete a tendecircncia que se verificava jaacute no seacuteculo V
aC segundo a qual as relaccedilotildees estabelecidas entre a physiologiacutea e a teacutechne he ietrikeacute se datildeo a
partir do uso de conceitos comuns Isso se explica porque o saber ligado ao desenvolvimento
da atividade meacutedica vai estimular e contribuir para a reflexatildeo filosoacutefica que busca se
distanciar das opiniotildees convencionais e explicaccedilotildees miacuteticas
Um desses conceitos partilhados diz respeito agrave sauacutede (hyguiacuteeia) que tanto na medicina
quanto na filosofia remete para um estado de equiliacutebrio de bem-estar Quando Epicuro se
refere agrave sauacutede da alma (psychegraven hyguiaiacutenon) o faz a partir de uma relaccedilatildeo desse cuidado com
a realizaccedilatildeo de uma vida feliz (makariacuteos zecircn) Assim cada um meacutedico e filoacutesofo vai propor
o phaacutermakon adequado para estabelecer ou restabelecer esse estado No Epicurismo isso se
Alianza Editorial 2008 p 288 fragmento 31 186 Μήτε νέος τις ὢν μελλέτω φιλοσοφεῖν μήτε γέρων ὑπάρχων κοπιάτω φιλοσοφῶν οὔτε γὰρ ἄωρος οὐδείς ἐστιν οὔτε πάρωρος πρὸς τὸ κατὰ ψυχὴν ὑγιαῖνον 187 () ἡμᾶς δὲ γενέσθαι περὶ τὴν ἡμῶν ἰατρείαν
78 daacute por meio de um loacutegos-terapecircutico elaborado para combater os males do corpo e as
perturbaccedilotildees da psycheacute188 Esse receituaacuterio eacute encontrado na Carta a Meneceu onde se
apresenta um tetraphaacutermakon189 voltado para a cura de quaisquer afliccedilotildees do pensamento e
consequentemente com benefiacutecios para um corpo composto (athroiacutesma) Um unguento para
a alma que se faz a partir de quatro postulados 1) Natildeo haacute o que temer quanto aos deuses 2)
Natildeo haacute nada a temer quanto agrave morte 3) Pode-se alcanccedilar a felicidade 4) Pode-se suportar a dor
Na base dessa formulaccedilatildeo190 circunscreve-se o entendimento epicurista de que o
adoecimento ou estado de desarmonia tanto da psycheacute quanto do athroiacutesma daacute-se devido agraves
opiniotildees vazias (kenaigrave doacutexai) que o homem alimenta sobre si mesmo e sobre a natureza
Fundadas no engano nos mitos nas religiotildees institucionalizadas elas vatildeo resultar em temores
que afligem e desequilibram Como o medo dos deuses (temperamentais regentes dos
destinos) como o medo da morte (que arrebata e conduz para um mundo de agonias eternas)
como o medo da dor (intensa e constante como a sentida por Prometeu em seu fiacutegado) Daiacute a
necessidade de um loacutegos capaz de neutralizar outro loacutegos como um antiacutedoto o faz em relaccedilatildeo
agrave substacircncia que envenena o organismo Para Epicuro eacute desfazendo-se desses tipos de
crenccedilas substituindo-as por um conhecimento fundamentado sobre a phyacutesis por uma opiniatildeo
verdadeira (doacutexa alethegraves) que se consegue um estado de cura que vai se manifestar na forma
de aponiacutea e de ataraxiacutea
Para fazer esse loacutegos terapecircutico fundamentado na physiologiacutea resultar em um modo
de vida orientado para o ldquovir a ser em torno da cura de noacutes mesmosrdquo (SV 64)191 Epicuro
concebe a filosofia como uma teacutechne um saber que instrumentaliza o homem para estabelecer
um cuidado sobre o proacuteprio pensar e o agir - uma artesania sobre si mesmo - em funccedilatildeo dessa
necessidade de viver em um estado de equiliacutebrio A teacutechne ao voltar-se para o autocuidado ou
para uma therapeiacutea da psycheacute tem como escopo partindo de uma physiologiacutea estabelecer
um eacutethos que permita ao homem viver um estado de imperturbabilidade de harmonia de
autossuficiecircncia podendo com isso rivalizar com a divindade vivendo ldquocomo um deus entre
188 Em Tel un Dieu Parmi les Hommes (op Cit) Jean Salem faz uma abordagem luacutecida sobre essa relaccedilatildeo contextualizando a questatildeo no mundo antigo Epicuro eacute alccedilado agrave condiccedilatildeo de meacutedico cujo desejo eacute curar a humanidade das dores do corpo e da alma 189 Esse termo eacute tomado emprestado da farmacopeia que definia um unguento agrave base de cera sebo pez e resina No contexto epicurista remete para quatro ingredientes de um discurso terapecircutico O epicurista Dioacutegenes de Œnoanda mandou gravar no seacuteculo II dC a siacutentese desse phaacutermakom em um poacutertico para que os viajantes que passassem por ali pudessem ler As palavras levariam socorro aos doentes da alma contrapondo-se agraves falsas ideias a respeito do mundo 190 Essa formulaccedilatildeo do teacutetrapharmakos epicurista eacute atribuiacuteda a Filodemo (Pap Herc 1005 col IV 9-14) 191 ἡμᾶς δὲ γενέσθαι περὶ τὴν ἡμῶν ἰατρείαν
79 os homensrdquo (DL X 135)192
A teacutechne no entendimento epicuacutereo eacute ao mesmo tempo um exerciacutecio de compreensatildeo
da realidade e uma maneira de conduzir a vida em funccedilatildeo dessa compreensatildeo Seu aspecto
teacutecnico decorre do fato de que eacute a partir de um saber physioloacutegico que se estabelece um
procedimento uma metodologia para a vida feliz o que nos remete para a praacutetica de
exerciacutecios para guiar o pensamento e a accedilatildeo em vista de realizar um eacutethos de acordo com a
phyacutesis A filosofia pensada nesses termos vai se constituir como um saber teacutecnico que natildeo tem
um fim em si mesmo natildeo delineia uma finalidade teoreacutetica mas ganha sentido na medida em
que ldquoagerdquo no homem guiando-o para o bem viver ldquoA teacutechne consiste em conhecer a natureza
do objeto destinado a servir ao Homem e portanto soacute na sua aplicaccedilatildeo praacutetica se realiza
como tal saberrdquo (JAEGER 1995 p 1028)
Mas quando falamos em exerciacutecios em praacuteticas o vocabulaacuterio grego nos legou o
termo aacuteskesis Relacionam-se a ele em nosso leacutexico tanto a palavra ascese quanto o vocaacutebulo
exerciacutecio Embora o significado original de aacuteskesis nos remeta para a ideia de treinamento de
preparaccedilatildeo dos atletas para os trabalhos destinados ao desenvolvimento e aprimoramento das
suas competecircncias fiacutesicas seus derivados ao serem transportados para o campo das praacuteticas
filosoacuteficas passam a apontar ao longo do tempo para atividades distintas entre si no que diz
respeito agrave forma e agrave finalidade
De um lado a ascese passa a se remeter agraves praacuteticas de privaccedilatildeo e fustigaccedilatildeo voltadas
para fazer o aniacutemico ascender sobre o corpoacutereo e com isso conduzir o pensamento (diaacutenoia) agrave
sabedoria Trata-se de infligir uma austera disciplina agrave carne refreando-lhe suas formas de
desejos condiccedilatildeo necessaacuteria agrave libertaccedilatildeo da psycheacute para ascender a um saber que vai guiar o
asceta (aacutesketes) em sua existecircncia Eacute fundamentado nessa acepccedilatildeo que vai ser estabelecido
para nos referirmos ao cristianismo medieval um conjunto de exerciacutecios de conotaccedilatildeo
religiosa voltados para levar agrave sauacutede da alma
Do outro lado a aacuteskesis pensada como exerciacutecio - e no contexto do pensamento
epicurista - remete para atividades que englobam tanto o trabalho de tentar fazer um
descortinamento da phyacutesis quanto o de procurar a partir disso estabelecer um eacutethos que
confira ao corpo-alma um estado de equiliacutebrio Com isso a perspectiva eacute a de desenvolver no
homem uma disposiccedilatildeo (diaacutethesis)193 para procurar realizar o sentido natural de sua
existecircncia Portanto natildeo se trata da negaccedilatildeo ou do afastamento daquilo que proporciona
192 ζήσῃ δὲ ὡς θεὸς ἐν ἀνθρώποις 193 Œno fr 112 DL X 117 Us 222a (διάθεσις)
80 prazer tampouco isso se relaciona com procedimentos que tragam dor ou desconforto o
horizonte eacute o da praacutetica de uma sabedoria marcada pela frugalidade e moderaccedilatildeo Ademais eacute
preciso entender que o exerciacutecio que leva o saacutebio a realizar-se enquanto tal natildeo se daacute tendo o
corpo e o sensiacutevel como entraves agrave sabedoria Para Epicuro o corpo natildeo eacute obstaacuteculo agrave
obtenccedilatildeo do conhecimento nem elemento inepto nesse processo Pelo contraacuterio ele sente
pensa e age Eacute por meio dele que a phyacutesis eacute investigada desvelada (ateacute onde o entendimento
alcanccedila) e pode ser tomada como modelo de realizaccedilatildeo
Assim os exerciacutecios constituintes da filosofia epicurista devem ser compreendidos
como um movimento uma accedilatildeo ou uma atividade (eneacutergeia) que leva o sophoacutes a procurar
viver conforme um saber fundado a partir de um referencial sensiacutevel do qual se pode inteligir
os limites necessaacuterios para estabelecer um eacutethos do bem viver Assim feitas essa
consideraccedilotildees cabe tratar de como essa technē tis peri tograven biacuteon eacute exercitada por meio da
meditaccedilatildeo (meleacutetema) e da praacutexis (praacutexis) realizando um modo saacutebio de viver e por
extensatildeo definindo o sentido da pragmateiacutea epicurista
81
CAPIacuteTULO 02
DA MEDITACcedilAtildeO
OU DO MODO COMO A PRAGMATEIacuteA Eacute EXERCITADA PELA ALMA
A temaacutetica relativa agrave meditaccedilatildeo (tograve meleacutetema)1 vai estar presente em vaacuterias escolas
filosoacuteficas e religiosas desde a antiguidade ateacute hoje Cada uma com suas especificidades
teoacutericas praacuteticas e suas finalidades No epicurismo a meditaccedilatildeo eacute um aspecto fundamental
para compreender o sentido da pragmateiacutea que caracteriza a filosofia do Jardim na medida
em que permite pensar uma relaccedilatildeo entre um conhecimento acerca da realidade e um modo de
viver relacionado a ele Contudo natildeo haacute nos poucos textos preservados de Epicuro uma
definiccedilatildeo explicita do que seja meleacutetema Por isso precisamos percorrer seu pensamento para
tentar expor aqui uma noccedilatildeo que nos permita compreender o sentido dessa atividade e como
ela se constitui como um exerciacutecio que visa levar o saacutebio a experimentar a autarquia e o
equiliacutebrio em sua vida
Na Carta a Meneceu Epicuro faz quatro referecircncias diretas2 agrave meditaccedilatildeo Ο termo
tambeacutem consta em um fragmento repertoriado por G Arighetti3 Em todas essas apariccedilotildees
meditar se relaciona a uma atividade orientada agrave praacutetica da sabedoria ao exerciacutecio (aacuteskesis)
de investigaccedilatildeo da phyacutesis tendo em vista estabelecer um modo de vida de acordo com a
natureza (katagrave phyacutesin) Isso no leva a evocar o Testamento de Epicuro (DL 17-21) Laacute ele diz
da necessidade de se ocupar (endiatriacutebo) permanentemente da filosofia e para isso ele coloca
ldquoo Jardim e todas as suas dependecircncias agrave disposiccedilatildeo de Hecircrmaco filho de Agecircmorto
Mitilecircnio e de seus companheiros em filosofiardquo para laacute poderem se dedicar a essa atividade
(endiatriacutebein kataacute philosophiacutean)4
Esse sentido de ocupaccedilatildeo ou dedicaccedilatildeo a algo tambeacutem estaacute inscrito no significado da 1 Diante da ambiguumlidade que o termo meleacutetema evoca haacute um receio em traduzi-lo como meditaccedilatildeo no contexto da filosofia antiga Se pode ser compreendido como sinocircnimo de exerciacutecio como muitos preferem adotando uma visatildeo mais conservadora tambeacutem pode ser pensado como ldquoum esforccedilo para assimilar para tornar vivas na alma uma ideia uma noccedilatildeo um princiacutepiordquo (HADOT 2014 p 27) Adotamos a mesma perspectiva de Pierre Hadot por compreender que no contexto do epicurismo meleacutetema remete para atividades da alma ligadas agrave necessidade de memorizar assimilar relembrar ponderar e outras que entendemos estarem circunscritas ao termo meditaccedilatildeo 2 DL X 122 123 126 e 135 3 () ἅ τις ἂμ πρὸς ἡμᾶς ἐ[κεῖθ]εν ἀπο[διδ]ώιη ὁ ἐκ τῶν [λέ]ξεων συνορῶ[ν ὡ]ς ταὐτὸ σ[υ]νέβαινε μελε[τᾶν] ἐπὶ τῆς γραφῆς () (ARRIGHETTI 1960 p 304) Deperditorum librorum reliquiae [2914] 24 4 Ver nota 27 da introduccedilatildeo
82 forma verbal imperativa meletaacute (medita) cuja origem vem de meletaacuteo (μελετάω) e nos remete
para a accedilatildeo de se ocupar exercer praticar Dentro da mesma etimologia temos a forma
substantiva tograve meleacutetema (τὸ μελέτημα) nos remetendo para a ideia de estudo de exerciacutecio
praacutetico5 Mas para aleacutem do que nos diz a etimologia como podemos caracterizar a meleacutetema
no contexto da filosofia epicurista
21 Exerciacutecio dialoacutegico e dialeacutetico
O epicurista Dioacutegenes de Œnoanda por volta do seacuteculo II dC mandou gravar nos
muros da cidade onde viveu uma siacutentese do pensamento do mestre do Jardim Em um dos
fragmentos preservados eacute possiacutevel ler
Por que entatildeo ele sofre por Atena E certamente eacute [proacuteprio] ao homem virtuoso conversar consigo mesmo e de se dizer isso ldquoEu sou um ser humano e posso ser afetado pois fazem parte da carne isso aquilo e muitas outras coisas entre as quais nenhuma pode natildeo vir a ser (Œno fr 74)6
A partir dessa passagem podemos delinear uma concepccedilatildeo de meleacutetema como diaacutelogo
(dialoacutegos) interior uma conversa que se daacute com a proacutepria psycheacute Vale ressaltar natildeo se tratar
de uma praacutetica solitaacuteria e solipsista Se em um primeiro momento eu penso comigo mesmo
me indago sobre as coisas que podem proporcionar felicidade ouccedilo o que minha alma diz a
respeito posteriormente essa reflexatildeo eacute estendida compartilhada e pensada com os
ldquocompanheiros em filosofiardquo (DL X 17) Daiacute podermos no epicurismo observar uma
associaccedilatildeo entre a accedilatildeo de meditar e a amizade (philiacutea) A felicidade do saacutebio natildeo eacute
construiacuteda na solidatildeo nem para a solidatildeo mas para a alegria e para o encontro Ao meditar em
conjunto o saacutebio edifica laccedilos que constituem fonte de bem-estar ao mesmo tempo em que
reconhece no outro uma afinidade de pensamento quanto agrave finalidade da vida e ao modo como
realizaacute-la O escopo da filosofia epicurista natildeo eacute livrar o homem de perturbaccedilotildees afastando-o
do mundo isolando-o do conviacutevio social mas orientaacute-lo para que ele saiba se desviar das
relaccedilotildees que adoecem e se aproximar daquelas que lhe permitem exercitar a liberdade e o
prazer Em uma de suas sentenccedilas Epicuro diz ldquodentre as coisas que a sabedoria se
proporciona para a felicidade da vida inteira a amizade eacute em muito a maior delasrdquo (SV 13
5 Anatole Bailly Op Cit 6 Pourquoi donc souffre-t-il par Atheacutena Et certainement il est [propre] agrave lrsquohomme vertueux de converser avec soi-mecircme et de se dire ceci ldquoje suis un ecirctre humain et peux ecirctre affecteacute car font parties de la chair ceci et ceci et cela et quantiteacutes drsquoautres choses parmi lesquelles aucune ne peut pas ne pas devenirrdquo
83 DL X 148)7 Nessa afirmaccedilatildeo podemos ver a relaccedilatildeo estabelecida entre o exerciacutecio de uma
vida feliz a praacutetica da sabedoria e a afetividade A partir da articulaccedilatildeo dos termos sophiacutea e
philiacutea Epicuro pensa a possibilidade de estabelecer relaccedilotildees equilibradas onde cada um age
livremente sem a admoestaccedilatildeo das convenccedilotildees nem do desejo de assenhoramento sobre o
outro mas por um movimento de aproximaccedilatildeo com aqueles com quem se estabelece
afinidades
Por isso entendemos que meditar eacute uma atividade que se daacute tanto na psycheacute como um
exerciacutecio individual quanto entre amigos inscrevendo o outro em sua dinacircmica As cartas
maacuteximas ou outras formas que Epicuro encontrou de encapsular e transmitir8 sua filosofia satildeo
a construccedilatildeo de um pensamento que toma seus disciacutepulos e amigos (phiacuteloi) como partiacutecipes9
desse ato de meditaccedilatildeo seja porque a reflexatildeo foi feita em conjunto na coletividade que
permitia o Jardim seja porque o destinataacuterio daquela ponderaccedilatildeo estava presente na alma nas
lembranccedilas de quem a produzia
Perceba-se portanto que se por um lado a meditaccedilatildeo eacute realizada enquanto diaacutelogo
consigo mesmo isso nos sugere um aspecto individualizado do exerciacutecio filosoacutefico por outro
lado as cartas as maacuteximas e as sentenccedilas que nos chegaram de Epicuro bem como as
inscriccedilotildees nos muros de Œnoanda nos indicam a necessidade da inclusatildeo do outro nessa
praacutetica Isso porque seja em sua dimensatildeo individual ou conjunta a meleacutetema assenta-se em
um modelo dialoacutegico Queremos dizer com isso que a elaboraccedilatildeo e expressatildeo do loacutegos
filosoacutefico epicurista se estabelecem a partir da necessidade de perguntar e responder a si e
aos companheiros de filosofia num exerciacutecio comunicativo e participativo de construccedilatildeo de
um saber ancorado na physiologiacutea Eacute possiacutevel entretanto colocar a seguinte questatildeo se a
epistola nos remete para um gecircnero de comunicaccedilatildeo escrita que ldquonatildeo eacute diaacutelogo (no sentido
dos diaacutelogos de Platatildeo)rdquo (SILVA 2015 p 252) como podemos pensar que as cartas e outros
escritos de Epicuro nos remetam para essa relaccedilatildeo dialoacutegica com seus amigosdisciacutepulos
Ora por dialoacutegico estamos entendendo aqui aquilo que se refere ao debate ao diaacutelogo a uma
dinacircmica de questionamento e resposta que vai guiar o trabalho de investigar a phyacutesis e pensar
7 Ὧν ἡ σοφία παρασκευάζεται εἰς τὴν τοῦ ὅλου βίου μακαριότητα πολὺ μέγιστόν ἐστιν ἡ τῆς φιλίας κτῆσις 8 As Cartas Maacuteximas e Sentenccedilas podem ser entendidas como exemplos de exerciacutecio de meditaccedilatildeo Ao mesmo tempo em que medita o autor convida o leitor a tomar parte nessa atividade instigando-o a pensar sobre a natureza e sobre o modo como se vive Nesse sentido podemos entender as inscriccedilotildees de Œnoanda e o proacuteprio poema Da Natureza de Lucreacutecio no contexto de praacuteticas meditativas 9 Para aleacutem de comunicar uma filosofia e servir como um guia para meditaccedilatildeo as Sentenccedilas Vaticanas as Maacuteximas Capitais e as Cartas exercitam a philiacutea na medida em que visam dividir um saber que pode conduzir agrave vida feliz aqueles que compartilham do mesmo sentimento de afetividade Trata-se de uma atitude que traz consigo as marcas de uma simpatia (sympaacutetheia) de uma correspondecircncia com o outro no que diz respeito agrave maneira pensar e de viver
84 um modo de viver de acordo com a natureza E embora o interlocutor natildeo tenha sua voz
registrada de forma direta nos escritos de Epicuro sua demanda estaacute Veja-se por exemplo a
Carta a Piacutetocles que eacute uma resposta a outra que Epicuro recebera antes ldquoClecircon trouxe-me a
tua carta na qual continuas a mostrar-me teus sentimentos amistosos contrapartida de minha
devoccedilatildeo para contigo e natildeo sem sucesso procuras recordar os raciociacutenios capazes de ensejar a
conquista de uma vida felizrdquo (DL X 84)10 Vecirc-se aiacute um diaacutelogo que tem sido realizado por
meio de cartas As demandas por explicaccedilotildees a exposiccedilatildeo de opiniotildees advindas da
investigaccedilatildeo sobre a natureza jaacute chegaram ou satildeo conhecidas e servem como motivo para
meditar Nessa sucessatildeo de mensagens a meditaccedilatildeo sobre temas voltados para a realizaccedilatildeo de
um modo feliz de viver tambeacutem alimenta a amizade Se o outro natildeo estaacute presente fisicamente
naquele momento diante de quem escreve estaacute na alma de quem estaacute meditando sobre aqueles
assuntos na memoacuteria (mneacuteme) dos bons sentimentos Em outros termos estatildeo pressupostos
nesses escritos aleacutem de uma relaccedilatildeo de amizade um ato responsivo explicando orientando
compartilhando
() aos seus amigos um quadro sinoacuteptico um agregado de explicaccedilotildees seja sobre a phyacutesis seja sobre o modo de vida que sirva de guia para aqueles jaacute familiarizados com o seu pensamento ao mesmo tempo em que possa ser usado para iniciar os neoacutefitos (SILVA 2015 255)
Nesse processo dialogal cada carta eacute um momento mais longo num diaacutelogo onde ao
mesmo tempo se exprime um pensamento e se exercita a meditaccedilatildeo sobre a realidade a vida
a natureza sobre si mesmo sobre os proacuteprios sentimentos
Mas retomando o que diziacuteamos a meleacutetema eacute concebida como um diaacutelogo como
aponta o fragmento de Œnoanda nos daacute a indicaccedilatildeo de que natildeo se trata de uma praacutetica
voltada para guiar ou predispor a alma para uma espeacutecie de transe contemplativo ou para a
espera de alguma revelaccedilatildeo divina ou ainda para alcanccedilar uma experiecircncia miacutestico-
transcendente que vai resultar em um estado de imperturbabilidade A verdade natildeo vem de
fora verdadeiro eacute o pensamento construiacutedo a partir do exame da realidade percebida pelos
sentidos Tal perspectiva estaacute de acordo com a definiccedilatildeo de filosofia como uma teacutecnica que se
efetiva por meio de discurso (loacutegois) e pensamento (dialogismoiacutes)11 em busca de uma vida
feliz (makariacuteos zecircn) A meleacutetema pensada no contexto de uma teacutechne vai se constituir como
uma atividade que valendo-se da capacidade da alma para sentir memorizar assimilar
10 Ἤνεγκέ μοι Κλέων ἐπιστολὴν παρὰ σοῦ ἐν ᾗ φιλοφρονούμενός τε περὶ ἡμᾶς διετέλεις ἀξίως τῆς ἡμετέρας περὶ σεαυτὸν σπουδῆς καὶ οὐκ ἀπιθάνως ἐπειρῶ μνημονεύειν τῶν εἰς μακάριον βίον συντεινόντων διαλογισμῶν 11 Loacutegois tambeacutem pode ser traduzido por argumento e dialogismoiacutes pode ser compreendido por raciociacutenio conforme Markus Silva Sabedoria e Jardim Op Cit
85 estabelecer analogias calcular permite inscrever na psycheacute um loacutegos para guiar sua accedilatildeo
(praacutexis) no mundo tendo em vista o ldquovir a ser em torno da cura de noacutes mesmosrdquo (SV 64)12
Meditar vai ser assim um exerciacutecio de elaboraccedilatildeo de construccedilatildeo de um loacutegos uma
atividade que busca espelhar na psycheacute uma compreensatildeo de mundo estabelecida a partir de
uma investigaccedilatildeo da natureza tendo em vista um modo de viver de acordo com a phyacutesis Se a
vida saacutebia consiste em exercitar o que se pensa meditar vai ser o exerciacutecio de elaboraccedilatildeo de
um pensamento que considera a possibilidade da realizaccedilatildeo de um viver mais agradaacutevel a
despeito do que a cultura a religiatildeo e as convenccedilotildees impotildeem para o homem da Heacutelade como
um modelo de vida a ser seguido
Daiacute porque Dioacutegenes fala de conversa consigo mesmo Ele estaacute destacando que a
construccedilatildeo desse loacutegos acontece na psycheacute por meio de um exerciacutecio que pode se dar
individualmente ou em conjunto E esse sentido manteacutem coerecircncia com as palavras que
Epicuro dirige a Meneceu
Medita portanto sobre essas coisas e outras afins dia e noite por ti mesmo e com companheiros semelhantes a ti e nunca seraacutes perturbado desperto ou adormecido mas viveraacutes como um deus entre os homens pois em nada se assemelha a uma criatura mortal o homem que vive entre bens imortais (DL X 135)13
Outro aspecto que podemos destacar a partir dessa passagem estaacute ligado agrave finalidade
da filosofia Ao se voltar para livrar o homem de perturbaccedilotildees ela coloca em relevo seu
aspecto praacutetico sua inclinaccedilatildeo para se constituir como uma arte de vida ou teacutecnica em torno
do viver E a meditaccedilatildeo eacute um exerciacutecio que visa dar ao conhecimento advindo por meio da
physiologiacutea um sentido de pragmateiacutea ou seja orientaacute-lo para um fazer ou agir eacutetico para a
realizaccedilatildeo de um eacutethos livre e ldquohedonistardquo Por isso meditar visa levar a psycheacute a assimilar
esse saber physioloacutegico e fundamentar a convicccedilatildeo (piacutestis) necessaacuteria para conferir ao sophoacutes
uma disposiccedilatildeo (diaacutethesis) para a realizaccedilatildeo de uma vida feliz
Assim para retomarmos o testemunho de Œnoanda quando o homem se pensa como
um ser constituiacutedo de variados elementos corpoacutereos que ldquofazem parte da carnerdquo e -
dialogando consigo mesmo - busca relacionar isso agrave sua condiccedilatildeo mortal sujeito ao vir a ser e
ao deixar de ser das coisas ele estaacute edificando um loacutegos a partir de princiacutepios physioloacutegicos
Ao fazer isso ele contrapotildee agrave ideia de uma natureza onde somente operam forccedilas inexoraacuteveis
12 ἡμᾶς δὲ γενέσθαι περὶ τὴν ἡμῶν ἰατρείαν 13 Ταῦτα οὖν καὶ τὰ τούτοις συγγενῆ μελέτα πρὸς σεαυτὸν ἡμέρας καὶ νυκτὸς πρός ltτεgt τὸν ὅμοιον σεαυτῷ καὶ οὐδέποτε οὔθrsquo ὕπαρ οὔτrsquo ὄναρ διαταραχθήσῃ ζήσῃ δὲ ὡς θεὸς ἐν ἀνθρώποις οὐθὲν γὰρ ἔοικε θνητῷ ζῴῳ ζῶν ἄνθρωπος ἐν ἀθανάτοις ἀγαθοῖς
86 ou sobrenaturais uma concepccedilatildeo de phyacutesis que em seu modo proacuteprio de realizaccedilatildeo permite a
possibilidade de pensar a condiccedilatildeo mortal a partir da noccedilatildeo de prazer e de liberdade A vida
para o saacutebio dessa forma deixa de ser penosa fatiacutedica para se apresentar como espaccedilo para
seu protagonismo Meditando o homem busca se compreender como ser da natureza e
portanto tambeacutem natildeo estaria submetido a nenhuma intervenccedilatildeo demiuacutergica nem sujeito aos
desiacutegnios de nenhum deus nem aguardariam por ele no Hades os maiores tormentos
Dessa forma a meditaccedilatildeo ao exercitar o pensamento para procurar entender como
natural o que parece divino para se desvencilhar de concepccedilotildees que projetem para fora das
experiecircncias humanas o sentido da existecircncia o que castra desequilibra adoece e direciona o
pensar e a agir do homem para longe de sua realizaccedilatildeo configura-se tambeacutem como uma
atividade libertadora como discutiremos no proacuteximo item
Antes disso eacute preciso ainda destacar o aspecto dialeacutetico que perpassa os exerciacutecios de
meditaccedilatildeo Embora consideremos as vaacuterias acepccedilotildees que podem ser evocadas pelo termo e
natildeo eacute objeto desse trabalho discuti-las vemos no epicurismo um aspecto dialeacutetico que pode
ser pensado a partir da perspectiva geral do confronto de dois loacutegoi um ligado agrave poacutelis agraves
convenccedilotildees aos mitos e outro que nos remete ao Jardim ao fundamentado na natureza ao
corpoacutereo Esse panorama se delineia ao longo de toda a filosofia epicurista onde uma
ldquodialeacutetica estreitardquo (HOUDENOT 2018)14 se estabelece em torno de noccedilotildees que nos remetem
para a existecircncia de seu contraacuterio como por exemplo limiteilimitado justoinjusto
riquezapobreza Nesse sentido tomemos as seguintes passagens
A riqueza proveniente da natureza eacute limitada e viaacutevel e das opiniotildees vazias cai no inabordaacutevel (SV 8 DL X 144)15
A pobreza medida pelo limite da natureza eacute uma riqueza grande a riqueza natildeo delimitada eacute uma grande pobreza (SV 25)16
Da maioria das coisas dos homens o que estaacute em repouso entorpece o que estaacute em movimento enraivece (SV 11)17
O justo eacute o mais imperturbaacutevel o injusto eacute pleno de maacutexima perturbaccedilatildeo (SV 12 DL X 144)18
14 HOUDENOT Julie La poeacutetisation de la limite Camenulae 20 Revista da Faculdade de Letras da Universidade de Sorbone Mai 2018 ISSN 2494-212 X Esse artigo condensa a pesquisa de doutorado cujo tiacutetulo eacute La poeacutetisation de la limite chez Lucregravece Virgile et Horace defendida em 2017 na universidade Paris Sorbonne Nessa siacutentese a autora parte do conceito de limite elaborado por Epicuro para tratar de aspectos esteacuteticos adicionados por Lucreacutecio em seu poema Da Natureza 15 Ὁ τῆς φύσεως πλοῦτος καὶ ὥρισται καὶ εὐπoριστός ἐστιν ὁ δὲ τῶν κενῶν δοξῶν εἰς ἄπειρον ἐκπίπτει 16 Ἡ πενία μετρουμένη τῷ τῆς φύσεως τέλει μέγας ἐστὶ πλοῦτοςmiddot πλοῦτος δὲ μὴ ριζόμενος μεγάλη ἐστὶ πενία 17 Τῶν πλείστων ἀνθρώπων τὸ μὲν ἡσυχάζον ναρκᾷ τὸ δὲ κινούμενον λυττᾷ 18 Ὁ δίκαιος ἀταρακτότατος ὁ δrsquo ἄδικος πλείστης ταραχῆς γέμων
87 A magnitude do prazer atinge seu limite na remoccedilatildeo de todo sofrimento Quando o prazer estaacute presente durante todo o tempo em que ele permanece natildeo haacute dor no corpo nem na alma nem nos dois (DL 139 III)19
Podemos verificar na construccedilatildeo dessas sentenccedilas o uso de termos que no contexto da
physiologiacutea evocam entre si uma relaccedilatildeo dialeacutetica fundamental para a compreensatildeo dos
modos de ser da phyacutesis Satildeo conceitos cujo sentido estaacute relacionado agrave existecircncia de seu
oposto Assim repouso e movimento satildeo definiccedilotildees empregadas para pensar o aacutetomo os
corpos compostos os mundos Paralelamente satildeo empregados termos que tanto nos remetem
agrave investigaccedilatildeo da phyacutesis quanto podem ajudar as finalidades ligadas ao exerciacutecio de uma vida
conduzida com sabedoria Tal eacute o caso de inabordaacutevel (apeiacuteron) que tanto pode servir para
pensar o que natildeo tem limite na phyacutesis quanto agrave impossibilidade de alcanccedilar as riquezas
professadas pelas opiniotildees vazias Epicuro tambeacutem trabalha nesses enunciados palavras que
remetem diretamente agrave dimensatildeo do agir humano Ao articular nessas sentenccedilas pobreza e
riqueza torpor e raiva justo e injusto a mesma perspectiva de oposiccedilatildeo que se verifica no
campo da physiologiacutea eacute percebida com relaccedilatildeo ao modo de viver Do mesmo jeito essa
perspectiva de contraste se apresenta ao pensarmos naquele que vive em perturbaccedilatildeo em
sofrimento por oposiccedilatildeo agravequele que experimenta o prazer a ataraxiacutea
Ora esse tratamento discursivo aponta no sentido de indicar a possibilidade de
estender essa compreensatildeo dialeacutetica que permite descrever e refletir a realidade
physiologicamente para pensar as accedilotildees as escolhas e o modo de viver do sophoacutes Com isso
Epicuro visa evidenciar um conflito fundamental para entender a condiccedilatildeo do homem grego
de seu tempo que distanciado da participaccedilatildeo poliacutetica e sem o gozo de uma vida em
democracia volta-se para o cuidado consigo mesmo Ele precisa portanto definir qual a
melhor forma de viver para se sentir realizado e essa indagaccedilatildeo remete para uma dialeacutetica
que tem de um lado a natureza (phyacutesis) e do outro as opiniotildees vazias (kenaigrave doacutexai) E isso
implica em um conflito entre os loacutegoi que fazem referecircncia a essas duas possibilidades
Quanto mais se medita mais esse conflito se evidencia mais essa dialeacutetica se acentua pois o
pensamento fundamentado na physiologiacutea e assim tendo o prazer e a liberdade por
finalidades inclina-se para a vida katagrave phyacutesin em detrimento das opiniotildees contraacuterias
A meditaccedilatildeo portanto eacute exercitada tanto quanto se acentua esse ldquoprocesso dialeacuteticordquo
que se ldquoresolverdquo na medida em que o raciociacutenio (dialogismoiacutes) e o discurso (loacutegos) vatildeo
construindo na psycheacute uma vinculaccedilatildeo entre a physiologiacutea e o eacutethos Disso resulta uma
19 Ὅρος τοῦ μεγέθους τῶν ἡδονῶν ἡ παντὸς τοῦ ἀλγοῦντος ὑπεξαίρεσις ὅπου δrsquo ἂν τὸ ἡ δόμενον ἐνῇ καθrsquo ὃν ἂν χρόνον ᾖ οὐκ ἔστι τὸ ἀλγοῦν ἢ λυπούμενον ἢ τὸ συναμφότερον
88 seleccedilatildeo de um loacutegos e o ldquoexpurgordquo do outro como um antiacutedoto que anula ou minimiza a accedilatildeo
do veneno para retomarmos a metaacutefora de filosofia como medicina da alma Se ldquoningueacutem
olhando a coisa maacute a escolherdquo (SV 16)20 esse conflito entre loacutegoi permite colocar em questatildeo
os valores as finalidades e os modos de viver tendo em vista a busca de realizar uma vida
saacutebia Disso decorre uma inevitaacutevel problematizaccedilatildeo da religiatildeo da poliacutetica da Paideacuteia das
relaccedilotildees sociais da vida na poacutelis Assim a meleacutetema em sua feiccedilatildeo dialeacutetica acaba por
produzir um pensamento criacutetico (balizado na investigaccedilatildeo da natureza) que se opotildee aos
determinismos e convenccedilotildees cristalizados por uma cultura fundamentada em kenaigrave doacutexai Eacute a
partir dessa perspectiva dialeacutetica e dialoacutegica (como destacamos anteriormente) caracteriacutestica
da atividade meditativa que se estabelece uma compreensatildeo mais luacutecida do tempo e do
espaccedilo em que se vive e da possibilidade de conceber a vida como um exerciacutecio de
emancipaccedilatildeo e de realizaccedilatildeo de si mesmo
22 - Meleacutetema e mneacuteme
A meditaccedilatildeo eacute um exerciacutecio que visa desenvolver na alma uma inclinaccedilatildeo para buscar
viver de acordo com a phyacutesis Em torno dessa finalidade eacute preciso mobilizar a faculdade para
calcular raciocinar avaliar fazer analogias diferenciar e a capacidade para tomar decisotildees e
para fazer escolhas sensata e prudentemente A partir desses recursos a psycheacute vai procurar
estabelecer um loacutegos em consonacircncia com o saber oriundo da physiologiacutea para se contrapor
ao loacutegos relacionado agraves kenaigrave doacutexai Com isso objetiva-se exercitar uma disposiccedilatildeo para que
a phroacutenesis e o logismoacutes - que datildeo a medida do agir humano ndash conduzam a um modo de vida
em conformidade com um saber katagrave phyacutesin
Mas para que isso ocorra outra competecircncia da alma tambeacutem eacute mobilizada Trata-se
de sua capacidade para reter conhecimento e imagens e para relembrar sensaccedilotildees
experimentadas Estamos nos referindo agravequilo que na filosofia epicurista eacute designado por
memoacuteria (mneacuteme)21 Mas antes de recorremos as palavras de Epicuro vamos retomar o
fragmento 74 de Dioacutegenes de Œnoanda para a partir dele tentar estabelecer relaccedilotildees que
entre a meleacutetema e a mneacuteme nesse processo de conduccedilatildeo da psycheacute em direccedilatildeo a um modo
saacutebio de viver
20 Οὐδεὶς βλέπων τὸ κακὸν αἱρεῖται αὐτό 21 DL X 31 35 36 82 83 85 95
89 Assim em toda ocasiatildeo ele eacute capaz de lembrar dos elementos naturais das afecccedilotildees e que eles satildeo faacuteceis de circunscrever delimitados como que por um compasso [] (Œno fr 74)22
Evocamos esse fragmento porque ele daacute seguimento agravequele do iniacutecio do toacutepico 21
deste capiacutetulo (onde se diz que ao meditar o homem conversa consigo mesmo) e nos permite
tecer alguns comentaacuterios a respeito do papel da mneacuteme no processo de elaboraccedilatildeo de um
loacutegos para se opor as opiniotildees vazias bem como da sua importacircncia no desenvolvimento de
uma disposiccedilatildeo (diaacutethesis) da alma para buscar viver de acordo com o que depreendeu ao
investigar a phyacutesis
Essa conversa que acontece dentro de si mesmo eacute referenciada na natureza No
epicurismo esse diaacutelogo interior ou com os amigos (phiacuteloi) natildeo prescinde da recordaccedilatildeo dos
princiacutepios evidenciados a partir da investigaccedilatildeo da phyacutesis e nem da lembranccedila de momentos
que trouxeram consigo boas sensaccedilotildees Isso nos sugere de iniacutecio alguns aspectos que podem
ser relacionados agrave memoacuteria a mneacuteme como repertoacuterio dos princiacutepios de uma investigaccedilatildeo
physioloacutegica como conjunto das experiecircncias sensiacuteveis e como recordaccedilatildeo de afecccedilotildees
(paacutethes) e as sensaccedilotildees (aiacutestheseos) delas resultantes
O primeiro aspecto encontra testemunho na seguinte passagem da Carta a Heroacutedoto
Para os incapazes de estudar acuradamente cada um de meus escritos sobre a natureza Heroacutedoto ou de percorrer detidamente os tratados mais longos preparei uma epiacutetome de todo o meu sistema a fim de que possam conservar bem gravado na memoacuteria o essencial dos princiacutepios mais importantes e estejam em condiccedilotildees de sustentaacute-los em quaisquer circunstacircncias desde que se dediquem ao estudo da natureza Aqueles que progrediram suficientemente na contemplaccedilatildeo do universo devem ter na memoacuteria os elementos fundamentais de todo o sistema doutrinaacuterio pois necessitamos frequentemente de uma visatildeo de conjunto embora natildeo aconteccedila o mesmo com os detalhes (DL X 35)23
Perceba-se nessa passagem que Epicuro caracteriza o proacuteprio texto (a carta) como
um resumo de uma obra mais vasta sobre a natureza E isso estaacute ligado agrave necessidade de
tornar mais faacutecil e raacutepido o acesso a esse saber Tal preocupaccedilatildeo tem razatildeo pois
diuturnamente o homem estaacute submetido agrave influecircncia das opiniotildees vazias que sob a forma de
22 Ainsi en toute occasion il est capable de se rappeler les eacuteleacutements naturels des affections et qursquoils sont faciles agrave circonscrire delimiteacutes comme par un compas [] 23 Τοῖς μὴ δυναμένοις ὦ Ἡρόδοτε ἕκαστα τῶν περὶ φύσεως ἀναγεγραμμένων ἡμῖν ἐξακριβοῦν μηδὲ τὰς μείζους τῶν συντεταγμένων βίβλους διαθρεῖν ἐπιτομὴν τῆς ὅλης πραγματείας εἰς τὸ κατασχεῖν τῶν ὁλοσχερωτάτων δοξῶν τὴν μνήμην ἱκανῶς αὐτοῖς παρεσκεύασα ἵνα παρrsquo ἑκάστους τῶν καιρῶν ἐν τοῖς κυριωτάτοις βοηθεῖν αὑτοῖς δύνωνται καθrsquo ὅσον ἂνἐφάπτωνται τῆς περὶ φύσεως θεωρίας καὶ τοὺς προβεβηκότας δὲ ἱκανῶς ἐν τῇ τῶν ὅλων ἐπιβλέψει τὸν τύπον τῆς ὅλης πραγματείας τὸν κατεστοιχειωμένον δεῖ μνημονεύεινmiddot τῆς γὰρ ἀθρόας ἐπιβολῆς πυκνὸν δεόμεθα τῆς δὲ κατὰ μέρος οὐχ ὁμοίως
90 asseacutedio e ou de opressatildeo buscam instilar na alma desejos que nem satildeo naturais nem
necessaacuterios Assim seja para se opor agravequeles que querem impor uma concepccedilatildeo de vida
alheada da natureza seja para participar das discussotildees que acontecem no Jardim ou ainda
para fundamentar essa conversa consigo mesmo eacute preciso poder referenciar na physiologiacutea o
loacutegos acerca da realidade Essa eacute uma necessidade de todos aqueles que buscam trilhar o
caminho da sabedoria mas Epicuro faz uma ressalva considerando os diferentes graus de
aproximaccedilatildeo com a doutrina Para os iniciantes deve-se memorizar o essencial dos princiacutepios
que norteiam uma compreensatildeo physioloacutegica da realidade Jaacute os mais experientes devem
gravar na memoacuteria os elementos fundamentais de toda a physiologiacutea
Ora se retomarmos o testemunho de Epicuro citado anteriormente leremos que
estando na memoacuteria esses elementos fundamentais da doutrina vatildeo servir para serem usados
quando a necessidade se apresentar sendo preciso estar ldquoem condiccedilotildees de sustentaacute-los em
quaisquer circunstacircnciasrdquo Essa ideia eacute retomada no passo seguinte nestes termos
Com efeito tambeacutem para quem tiver chegado a uma perfeita maturidade o requisito baacutesico para todo conhecimento exato eacute a faculdade de adotar com presteza as concepccedilotildees principais porquanto cada particularidade se reduz a elementos simples e a termos igualmente simples (DL X 36)
Aqui eacute inserida mais uma ideia a de que a capacidade para prontamente fazer uso
desse saber memorizado estaacute relacionada ao grau de experiecircncia que se tem dentro da
doutrina como jaacute mencionamos Assim quanto mais experimentado na filosofia do Jardim
mais se faz uso dos princiacutepios que remetem ao saber physioloacutegico Eacute essa habilidade ou
teacutecnica para usar esse conhecimento acerca da phyacutesis nas situaccedilotildees concretas da vida que a
meditaccedilatildeo visa desenvolver Mas isso natildeo quer dizer que o neoacutefito natildeo possa se beneficiar
dessas siacutenteses que tratam dos fundamentos da physiologiacutea Para Epicuro ter na memoacuteria os
apontamentos de uma filosofia que se volta para afastar os temores fundados em opiniotildees
fantasiosas traz seus benefiacutecios Seja porque isso funciona como um convite para que o
iniciante possa por si mesmo pensar o modo como percebe a realidade e se questionar sobre a
forma de viver professada pelas kenaigrave doacutexai seja porque remete agrave possibilidade de realizar a
makariacuteos zecircn Eacute a essa perspectiva se remetem as seguintes palavras
Eis entatildeo Heroacutetodo os elementos fundamentais da doutrina sobre a natureza do universo em forma resumida Assim se esta exposiccedilatildeo for memorizada cuidadosamente e produzir efeito creio que qualquer pessoa seja ela quem for embora natildeo penetre em todos os detalhes miacutenimos conquistaraacute uma seguranccedila incomparavelmente forte em comparaccedilatildeo com o resto da humanidade Com efeito por si mesma ela esclareceraacute muitos pontos particulares por mim tratados exaustivamente no sistema completo de
91 minha doutrina e esses mesmos elementos uma vez fixados na memoacuteria jamais cessaratildeo de ajudaacute-la (DL X 82-83)24
Dessa forma a necessidade de tendo em vista a primordialidade de fazer uso praacutetico
desse saber colocar agrave disposiccedilatildeo da alma um conhecimento para balizar o pensamento e a
conduta eacute compatibilizada com o niacutevel de vivecircncia e de compreensatildeo filosoacutefica de cada um
Nada mais natural quando se entende que a pragmateiacutea epicurista se desenvolve como um
exerciacutecio e portanto a evoluccedilatildeo de cada seguidor se daacute de forma gradativa E quanto mais se
medita e se busca estabelecer uma praacutetica de vida em torno da natureza mais esse
conhecimento physioloacutegico eacute assimilado pela alma Com isso a ignoracircncia sobre a phyacutesis - o
que conduz ao erro (hamartiacutea) e agrave desmesura (hyacutebris) e consequentemente agrave perturbaccedilatildeo ao
sofrimento e agrave limitaccedilatildeo do sentido de liberdade do homem - eacute afastada
A mneacuteme conserva na psycheacute essas formas resumidas ou mais estendidas de um saber
sobre a natureza que vai despertar e fundamentar uma visatildeo criacutetica e distanciada com relaccedilatildeo
agraves crenccedilas aos valores e agraves normas relacionadas agrave finalidade do agir do homem Ao meditar
sobre o que resulta quando se vive a partir de um modelo natural e o que adveacutem quando
orientamos nosso pensamento e nossa conduta por convenccedilotildees alheadas da natureza a alma
se daacute conta de poder definir um melhor modo de vida se suas accedilotildees forem estabelecidas a
partir de um ldquocaacutelculo soacutebrio que investigue as causas de toda a escolha e de toda a rejeiccedilatildeo e
elimine as opiniotildees vatildes por obra das quais um imenso tumulto se apossa das almasrdquo (DL X
132)25
Daiacute podermos estabelecer uma relaccedilatildeo entre a memoacuteria o pensamento a sabedoria e a
meditaccedilatildeo A partir da mneacuteme os fundamentos da physiologiacutea satildeo resgatados e servem ao
logismoacutes e agrave phroacutenesis para a elaboraccedilatildeo de um raciociacutenio (dialogismoiacutes) voltado para fazer
convergir o modo de pensar e de agir para a consecuccedilatildeo de uma vida agradaacutevel equilibrada
frugal liberta Assim quando Epicuro afirma que eacute preciso ldquomeditar sobre tudo que possa
proporcionar a felicidaderdquo (DL X 122)26 ele estaacute nos falando de um exerciacutecio contiacutenuo e
integrado caracteriacutestico da atividade do saacutebio Isso porque a perspectiva eacute a de que quanto
mais ele investiga a phyacutesis mais ele se interroga a partir dela sobre seu modo de viver e
24 Ταῦτά σοι ὦ Ἡρόδοτε ἔστι κεφαλαιωδέστατα ὑπὲρ τῆς τῶν ὅλων φύσεως ἐπιτετμημέναmiddot ὥστrsquo ἐὰν γένηται οὗτος ὁ λόγος δυνατὸς κατασχεθεὶς μετrsquo ἀκριβείας οἶμαι ἐὰν μὴ καὶ πρὸς ἅπαντα βαδίσῃ τις τῶν κατὰ μέρος ἀκριβωμάτων ἀσύμβλητον αὐτὸν πρὸς τοὺς λοιποὺς ἀνθρώπους ἁδρότητα λήψεσθαι καὶ γὰρ καὶ καθαρὰ ἀφrsquo ἑαυτοῦ ποιήσει πολλὰ τῶν κατὰ μέρος ἐξακριβουμένων κατὰ τὴν ὅλην πραγματείαν ἡμῖν καὶ αὐτὰ ταῦτα ἐν μνήμῃ τιθέμενα συνεχῶς βοηθήσει 25 νήφων λογισμὸς καὶ τὰς αἰτίας ἐξερευνῶν πάσης αἱρέσεως καὶ φυγῆς καὶ τὰς δόξας ἐξελαύνων ἐξ ὧν πλεῖστος τὰς ψυχὰς καταλαμβάνει θόρυβος 26 μελετᾶν οὖν χρὴ τὰ ποιοῦντα τὴν εὐδαιμονίαν
92 quanto mais ele pensa sobre o teacutelos de suas accedilotildees mais ele recorre agrave physiologiacutea seja por
meio dos resumos ou de obras mais detalhadas para poder nela encontrar um paradigma para
seu eacutethos
Nesse contexto entendemos o destaque dado por Epicuro ao resumo agrave condensaccedilatildeo agrave
siacutentese das linhas gerais de sua filosofia As questotildees colocadas pela vida diante do saacutebio
precisam ser respondidas em um tempo pertinente (kairoacutes) quer dizer diante da necessidade
de fazer escolhas e recusas de se contrapor agraves kenaigrave doacutexai de se negar a seguir as
convenccedilotildees os mecanismos do pensamento devem estar em condiccedilatildeo guarnecer
(paraskeuaacutedzo) a alma de recurso de ajuda (boeacutetheia) em favor da afirmaccedilatildeo do loacutegos
physioloacutegico (DL X 35)27
Acredito que esta tenha sido tambeacutem a razatildeo pela qual [aleacutem das epiacutetomes] escreveu aforismos agrupados num conjunto de maacuteximas e sentenccedilas curtas de faacutecil memorizaccedilatildeo que pudessem ser retidas e citadas sempre que a ocasiatildeo demandasse o uso dessas expressotildees (SILVA 2015 p 247)
Eacute a partir desses formatos sinteacuteticos de expressatildeo do pensamento guardados na
memoacuteria que se medita e nesse exerciacutecio vai sendo elaborado um loacutegos criacutetico e alternativo
ao convencionado pela kenoacuten doacutexa Isso estaacute alinhado ao relato de Dioacutegenes Laeacutercio
informando que Epicuro exortava seus disciacutepulos a decorarem seus tratados (DL X 12)
afinal ldquoa tranquilidade perfeita da alma consiste em estar livre de todos esses terrores e
temores28 e em relembrar tenaz e constantemente a doutrina em suas linhas gerais e
fundamentaisrdquo (DL X 82)29 Seria entatildeo o caso de pensar esse conteuacutedo resumido como
caacutepsulas filosoacuteficas para retomarmos a metaacutefora de filosofia como medicina da alma Eacute por
meio desse medicamento potencializado pelo exerciacutecio de meditaccedilatildeo que a alma desenvolve
as defesas necessaacuterias para combater o que a adoece e com isso poder restabelecer sua sauacutede
Colocando em termos mais proacuteximos aos apresentados por Epicuro eacute a meditaccedilatildeo
permanente em torno da physiologiacutea que desenvolve na alma a convicccedilatildeo firme (piacutestin
beacutebaion) (DL X 85) necessaacuteria para se opor ao pensamento fantasioso (DL X 81) e agraves
opiniotildees equivocadas a respeito da natureza Meditando sobre o conhecimento physioloacutegico o
27 Ver nota 23 deste capiacutetulo 28 Haacute uma relaccedilatildeo entre livrar a psycheacute desses terrores e temores e a necessidade de ter na memoacuteria (mneacuteme) os princiacutepios elementares da physiologiacutea A libertaccedilatildeo das opiniotildees que desequilibram e perturbam a alma (tema que trataremos no item 23 deste capiacutetulo) soacute eacute possiacutevel a partir de uma compreensatildeo physioloacutegica da realidade Esses princiacutepios estando sempre acessiacuteveis na memoacuteria vatildeo servir ao pensamento para estabelecer um loacutegos que vai orientar o modo de viver do saacutebio para a imperturbabilidade ldquoa ataraxiacutea soacute eacute possiacutevel se nos afastamos de todas essas crenccedilas [opiniotildees vazias] e se guardamos lsquona memoacuteria os princiacutepios gerais do conjunto das coisasrsquordquo (SALEM 1993 p 18) 29 ἡ δὲ ἀταραξία τῷ τούτων πάντων ἀπολελύσθαι καὶ συνεχῆ μνήμην ἔχειν τῶν ὅλων καὶ υριωτάτων
93 sophoacutes ao mesmo tempo em que espelha na alma um saber que vai ser uacutetil para o domiacutenio de
uma arte de viver (teacutechnen tinaacute periacute ton biacuteon) o que lhe confere esse sentimento de confianccedila
(piacutestis) o coloca vigilante e avesso aos pensamentos que natildeo estatildeo de acordo com esse saber
Agora podemos colocar em pauta o segundo aspecto indispensaacutevel para compreender
no contexto da filosofia epicurista o sentido da mneacuteme e como ela se relaciona com a
atividade de meditaccedilatildeo Trata-se de pensar a memoacuteria tambeacutem como repositoacuterio das
impressotildees sensiacuteveis onde estatildeo reunidas as imagens que nos datildeo testemunho das coisas do
mundo e que nos chegam atraveacutes nossos sentidos Por meio dessa imagerie a psycheacute pode
estabelecer uma leitura da realidade fenomecircnica fazer analogias e imaginar projetando o
pensamento para aleacutem dos limites da nossa sensibilidade permitindo construir um loacutegos a
respeito do mundo que experimentamos mas tambeacutem se expandir para o micro e o para
macrocosmos
Ora vimos no capiacutetulo I que a experiecircncia sensiacutevel serve de fundamento para toda a
investigaccedilatildeo sobre a natureza e que as sensaccedilotildees (aiacutestheseos) decorrentes dessa experiecircncia
satildeo tomadas como criteacuterio de verdade para se pensar os modos de ser da phyacutesis Eacute balizado
por essa perspectiva que o pensamento busca se circunscrever ao imanente e natildeo recorrer aos
mitos nem ao misteacuterio para buscar compreender os fenocircmenos da realidade Dessa forma esse
conjunto de imagens ligadas agraves aiacutestheseos e acumuladas na mneacuteme vai orientar todo o
exerciacutecio de meditaccedilatildeo para fazer a phycheacute se ater agrave imanecircncia afinal eacute nesse campo que a
possibilidade de uma vida tranquila eacute projetada
Eacute nessa dimensatildeo imanente que eacute construiacuteda a relaccedilatildeo que no epicurismo se
estabelece entre a realidade sensiacutevel o pensamento e o modo de agir Ao pensar a partir de
uma memoacuteria que fornece um conjunto de referecircncias relacionadas agrave fisicalidade ou agrave
corporeidade e tomar as sensaccedilotildees como criteacuterio para afastar as imagens fantasiosas ou
miacuteticas o saacutebio projeta a finalidade de suas accedilotildees nos limites da phyacutesis no espaccedilo e no tempo
de sua existecircncia Eacute essa ancoragem no imanente que a meditaccedilatildeo exercita quando evoca essa
memoacuteria do sensiacutevel para se contrapor agraves concepccedilotildees que projetam o sentido de realizaccedilatildeo
das accedilotildees humanas para aleacutem de sua experiecircncia
Dizendo de outra maneira quando da memoacuteria se buscam as imagens do patildeo e da
aacutegua30 (elementos da realidade experimentada) para subsidiar a meditaccedilatildeo no exerciacutecio de
estabelecer um loacutegos em torno do teacutelos da conduta do homem eacute porque na alma esses
30 DL X 131 O patildeo e aacutegua proporcionam o prazer supremo quando levados a uma boca faminta Em grego καὶ μᾶζα καὶ ὕδωρ τὴν ἀκροτάτην ἀποδίδωσιν ἡδονήν ἐπειδὰν ἐνδέων τις αὐτὰ προσενέγκηται
94 elementos estatildeo relacionados ao sentimento de prazer que o saacutebio compreendeu por meio da
physiologiacutea serem naturais e necessaacuterios Assim partindo dessas imagens eacute possiacutevel meditar
sobre como o pensamento e a eacutethos devem ser orientados para a consecuccedilatildeo de um modo de
vida equilibrado e frugal e portanto exequiacutevel na temporalidade e na natureza em que se vive
Cabe salientar ao nos referirmos ao sentimento de prazer evocado pela alma e
podendo ser relacionado a uma imagem ou a uma experiecircncia estamos nos remetendo a mais
um aspecto para compreender a mneacuteme em sua relaccedilatildeo com a praacutetica da meditaccedilatildeo Trata-se
de pensaacute-la como um repertoacuterio de sentimentos acumulados ao longo do tempo e a partir da
diversidade de experiecircncias resultantes da interaccedilatildeo do homem com o mundo Vale lembrar
que os sentimentos satildeo impressotildees sensiacuteveis (proleacutepseis) gravadas na mneacuteme Eles estatildeo
ligados agraves sensaccedilotildees de prazer ou de dor que advecircm de quando entramos em contato com um
objeto externo Dessa experiecircncia daacute-se uma afecccedilatildeo (paacutethos) que gera em noacutes uma sensaccedilatildeo
(aiacutesthesis) prazerosa ou dolorosa Tais sensaccedilotildees satildeo guardadas na alma transformadas em
sentimentos Nesse processo a memoacuteria vai ser fundamental para trazer para a praacutetica da
meditaccedilatildeo as sensaccedilotildees agradaacuteveis que vatildeo servir para se opor agravequelas que infligem
sofrimento Sobre esse aspecto satildeo vaacuterias as referecircncias encontradas nos textos de Epicuro
Uma delas estaacute na carta que escreve pouco antes de morrer a Idomeneu Esse testemunho eacute
resgatado por Dioacutegenes Laeacutercio da seguinte forma
Neste dia feliz que tambeacutem eacute o uacuteltimo de minha vida escrevo-te esta carta As dores contiacutenuas resultantes da estranguacuteria e da disenteria satildeo tatildeo fortes que nada pode aumentaacute-las Minha alma entretanto resiste a todos esses males alegre ao relembrar os nossos coloacutequios passados (DL X 22)31
Esse relato chama a atenccedilatildeo primeiramente pelo contraste entre o sentimento de
felicidade que experimenta Epicuro e sua condiccedilatildeo fiacutesica marcada pelo sofrimento devido agrave
degeneraccedilatildeo de sua sauacutede Meio agraves dores extremas impostas ao corpo-carne a psycheacute resiste e
proporciona o gozo da alegria para quem jaacute espera a proacutepria morte Isso nos leva a fazer duas
indagaccedilotildees A primeira estaacute relacionada a esse resistir da alma A segunda diz respeito agrave
possibilidade de fazer cessar a dor sentida no presente ou minimizar sua forccedila por meio da
lembranccedila de experiecircncias prazerosas vividas no passado
Para tratarmos dessa questatildeo vamos considerar que a felicidade com a qual a filosofia
estaacute envolvida tem um soacute tempo o presente (BOLLACK 1975 p 88) Com isso natildeo se estaacute
31 Τὴν μακαρίαν ἄγοντες καὶ ἅμα τελευταίαν ἡμέραν τοῦ βίου ἐγράφομεν ὑμῖν ταυτί στραγγουρικά τε παρηκολούθει καὶ δυσεντερικὰ πάθη ὑπερβολὴν οὐκ ἀπολείποντα τοῦ ἐν ἑαυτοῖς μεγέθους ἀντιπαρετάττετο δὲ πᾶσι τούτοις τὸ κατὰ ψυχὴν χαῖρον ἐπὶ τῆι τῶν γεγονότων ἡμῖν διαλογισμῶν μνήμηι
95 apregoando a ldquonegaccedilatildeo do passadordquo nem que se ignore o futuro Estaacute sendo postulada a
atitude do saacutebio de exercitar a felicidade no momento em que vive Essa perspectiva nos
permite tentar entender quando Epicuro diz que a alma resiste a todos os males porque se
trata de um exerciacutecio de trazer para aquele instante o que pode se contrapor agrave dor que o estaacute
afetando Dessa forma o trabalho da alma em resistir consiste em tentar suplantar a dor
trazendo o prazer para si E isso implica em uma meditaccedilatildeo direcionada para trazer da mneacuteme
as lembranccedilas prazerosas para que a psycheacute tenha novamente as sensaccedilotildees de prazer que elas
provocam Quando relembradas as boas experiecircncias os bons conviacutevios as situaccedilotildees de
felicidade proporcionam um bem-estar (eustaacutetheia)32 que se estende para o corpo e para a
alma Trata-se de tentar opor um prazer sereno (hedonegrave katastematikeacute) a uma dor Diante
disso mais que lembrar a meditaccedilatildeo trabalha no sentido de estabelecer na alma a confianccedila
(piacutestis) em um princiacutepio que adveacutem da investigaccedilatildeo da natureza segundo o qual a dor e o
prazer natildeo estatildeo presentes ao mesmo tempo Assim verificamos que Epicuro ldquoparte do
princiacutepio segundo o qual prazer e dor se excluem e mais que isso natildeo haacute estado
intermediaacuterio entre eles ou estado neutro no qual natildeo se sente prazer nem dorrdquo (SILVA
2018 p 134)
Esse trabalho de resistir remete portanto agrave confianccedila que o saacutebio tem a respeito da
natureza poder ser tomada como um paradigma para a maneira de viver Por isso a
meditaccedilatildeo ao relembrar dos princiacutepios da physiologiacutea os relaciona a uma conduta de acordo
com a natureza e projeta isso no sentido de vida feliz que o saacutebio almeja Dessa forma
recuperar da memoacuteria a recordaccedilatildeo do que foi vivido e com isso fazer a alma experimentar o
sentimento de prazer associado a essa lembranccedila se constitui como um exerciacutecio de meditaccedilatildeo
que fazendo uso praacutetico de um saber physioloacutegico desvia a atenccedilatildeo do que causa dor para o
que proporciona alegria Eacute preciso assinalar que essa praacutetica se daacute na alma mas tem reflexos
no bem-estar do corpo como podemos evidenciar a partir de um exemplo oposto quando ao
lembrar de experiecircncias desagradaacuteveis faz-se o corpo sentir o mesmo mal relacionado agravequele
momento Sendo assim as relaccedilotildees de amizade satildeo tatildeo importantes no epicurismo Elas satildeo
fontes de alegria que guardadas na alma subsistem ao tempo e constituem um acervo
lembranccedilas que trazem consigo boas sensaccedilotildees que alimentam a felicidade Por isso se dizer
ldquodentre as coisas que a sabedoria se proporciona para a felicidade da vida inteira a amizade eacute
em muito a maior delasrdquo (SV 13)
32 Us 68
96 23 - A meditaccedilatildeo como exerciacutecio de libertaccedilatildeo
No epicurismo a filosofia eacute pensada como uma therapeiacutea e por conseguinte a
makariacuteos zecircn implica em afastar aquilo que adoece a alma trazendo perturbaccedilatildeo e
desarmonia Vimos que a principal causa de sofrimento para o homem estaacute em orientar sua
vida a partir do que professam as falsas opiniotildees a respeito dos bens necessaacuterios agrave realizaccedilatildeo
humana Fora dos limites da natureza a makariacuteos zecircn eacute inexequiacutevel33 Ou seja a sauacutede o
bem-estar o equiliacutebrio satildeo condiccedilotildees que tecircm uma relaccedilatildeo direta com a possibilidade de a
psycheacute se distanciar dessas opiniotildees e estabelecer um eacutethos de acordo com a natureza
Procuramos demonstrar no item 21 deste capiacutetulo que a meditaccedilatildeo (meleacutetema) pode
ser entendida como uma atividade visando reelaborar ou substituir um loacutegos assentado em
crenccedilas infundadas por outro ancorado em uma compreensatildeo physioloacutegica da natureza e em
criteacuterios de verdade relacionados ao sensiacutevel afinal ldquose lutares contra todas as sensaccedilotildees natildeo
teraacutes um criteacuterio de referecircncia e assim natildeo poderaacutes julgar sequer aqueles juiacutezos que qualificas
de falsosrdquo (DL X 146)34 Dito de outra forma trata-se de submeter o produto de nosso
raciociacutenio e de nossa imaginaccedilatildeo ao conhecimento que temos a respeito da phyacutesis A partir daiacute
seria possiacutevel fazer a uma separaccedilatildeo (diaiacuteresis) afastando o pensamento que natildeo estaacute
conforme a natureza e que poderia causar perturbaccedilotildees para a alma ou dor para o corpo
Eacute em torno dessa necessidade de orientar o pensamento para uma praacutetica
fundamentada na natureza que a meditaccedilatildeo vai favorecer uma libertaccedilatildeo da psycheacute das kenaigrave
doacutexai Isso seria necessaacuterio porque Epicuro atribui a essas opiniotildees dois
problemasconsequecircncias O primeiro pode ser entendido por meio de um aspecto opressor
Quando as opiniotildees professam a possibilidade de pensar o gozo de uma liberdade sem limite
ela conduz ao despotismo agrave anulaccedilatildeo da vontade de outrem Jaacute o segundo problema eacute
percebido quando essas doxaigrave visam legitimar a fama a gloacuteria a riqueza o poder e o prazer
sem criteacuterio como valores hegemocircnicos na poacutelis e portanto devendo ser buscados Com isso
o homem eacute enredado em uma procura sem fim e sem sossego Em qualquer caso o que se tem
eacute a mitigaccedilatildeo do sentido da liberdade fundamental para o exerciacutecio de um modo saacutebio de
viver seja porque ela foi tiranizada por quem impotildee sua vontade aos outros ou porque a alma
se tornou cativa de desejos que natildeo realizam sua natureza livre e feliz Eacute nesse sentido que
contextualizamos a seguinte sentenccedila
33 DL X 144 XV SV 8 11 25 45 59 34 Οὐθὲν ὄφελος ἦν τὴν κατὰ ἀνθρώπους ἀσφάλειαν παρασκευάζεσθαι τῶν ἄνωθεν πόπτων καθεστώτων καὶ τῶν ὑπὸ γῆς καὶ ἁπλῶς τῶν ἐν τῷ ἀπείρῳ
97 Uma vida livre natildeo pode adquirir bens numerosos pelo fato da coisa natildeo ser faacutecil fora da sujeiccedilatildeo agraves multidotildees e aos poderosos mas ela adquire tudo por uma abundacircncia contiacutenua Se por acaso em algum lugar ela encontra muitos bens tambeacutem essas coisas satildeo faacuteceis de distribuir em favor da boa disposiccedilatildeo do proacuteximo (SV 76)35
Essa passagem nos permite evidenciar a relaccedilatildeo que eacute estabelecida entre liberdade e
frugalidade uma perspectiva antiteacutetica agravequela revalidada pelas kenaigrave doacutexai A vida livre eacute
realizaacutevel na medida em que as necessidades satildeo reduzidas ao miacutenimo necessaacuterio Contudo
para os muitos prevalece a concepccedilatildeo de que a felicidade eacute adquirida por meio da abundacircncia
de bens ldquoA raiz do mal se encontra no descontrole doentio de nossos desejos que sobre o
efeito de falsas representaccedilotildees do prazer e da felicidade nos impelem a desejar possuir sem
limiterdquo (HELMER 2013 p 11) Eacute essa compreensatildeo vazia (descolada da natureza) que natildeo
considera a finalidade das accedilotildees do homem a partir de um modelo natural a partir do qual se
pensa o prazer (hedoneacute) como caminho para o equiliacutebrio e o exerciacutecio da autaacuterkeia como
possibilidade de experimentar uma vontade livre Por isso para se poder estabelecer um modo
autecircntico de viver eacute preciso meditar a respeito dos bens relacionados a essa finalidade Os
demais ligados agraves opiniotildees vazias engendram adoecimento desequiliacutebrio assenhoramento da
vontade e portanto devem ser recusados
Eacute nesse mesmo diapasatildeo que o epicurista Dioacutegenes de Œnoanda adverte ldquoa maior
parte dos homens estaacute doente por falsas opiniotildees sobre as coisas e natildeo escuta o corpordquo (Œno
fr 2)36 Ou seja ao natildeo se ouvir o que a natureza diz a respeito do que eacute importante para
experimentar bem-estar e ao se deixar guiar pelas concepccedilotildees que alheiam a psycheacute de si
mesma a liberdade eacute mitigada Nesse caso a meditaccedilatildeo atua no sentido de corrigir essa visatildeo
enviesada a respeito do que eacute imprescindiacutevel agrave vida agradaacutevel Ao evocar na alma a
concepccedilatildeo physioloacutegica de que podemos nos ater somente aos desejos que satildeo naturais e
necessaacuterios como vimos no item 122 do capiacutetulo I as necessidades ficam reduzidas ao
miacutenimo o que leva o homem a poder experimentar um sentimento de autossuficiecircncia e
emancipaccedilatildeo vis-agrave-vis demandas que natildeo satildeo suas A ideia eacute quanto menos necessidades
mais se vecirc abundar o que eacute fundamental e querer partilhar o excedente E isso caminha no
sentido contraacuterio daqueles que vivem de acordo com as opiniotildees vazias submetidos aos
desejos que a multidatildeo louva (aqueles que nem satildeo naturais nem necessaacuterios e portanto satildeo
vazios) e buscando acumular os bens para exercer suas desmesuras abdicam de viver serena e 35 Ἐλεύθερος βίος οὐ δύναται κτήσασθαι χρήματα πολλὰ διὰ τὸ τὸ πρᾶγμα ltμὴgt ῥᾴδιον εἶναι χωρὶς θητείας ὄχλων ἢ δυναστῶν ἀλλὰ συνεχεῖ δαψιλείᾳ πάντα κέκτηταιmiddot ἂν δέ που καὶ τύχη χρημάτων πολλῶν καὶ ταῦτα ῥᾳδίως ἂν εἰς τὴν τοῦ πλησίον εὔνοιαν διαμετρήσαι 36 [la plupart des hommes sont malades de fausses opinions sur les choses et nrsquoeacutecoutent pas le corps]
98 livremente Nesse contexto a meditaccedilatildeo adquire um papel importante para a compreensatildeo dos
proacuteprios desejos bem como para o domiacutenio e a limitaccedilatildeo que devem se impostos a eles E
isso se daacute agrave luz de um trabalho de investigaccedilatildeo da natureza e de procurar espelhar seus
paradigmas na proacutepria psycheacute por meio de um loacutegos katagrave phyacutesin
Ora se Epicuro vecirc nas opiniotildees vazias um mal na medida em que podem engendrar
sofrimento entatildeo fica clara a necessidade de um afastamento da poacutelis enquanto ambiente
onde as kenaigrave doacutexai predominam e compotildeem o loacutegos que adoece e assenhora a vontade do
homem Na visatildeo epicurista a poacutelis enferma impotildee uma tirania das vontades a partir da noccedilatildeo
de que eacute sempre preciso mais para ser feliz Felipe da Macedocircnia seguido por seu filho
Alexandre e apoacutes a morte dele o despotismo dos seus generais satildeo um reflexo dessa
imposiccedilatildeo colocada para o homem grego que vecirc na busca de poder riquezas e fama um
modelo de realizaccedilatildeo Mas para Epicuro natildeo eacute preciso muito para se sentir feliz o que eacute
preciso eacute ldquovir a ser em torno da cura de noacutes mesmosrdquo (SV 64)37 Por isso o caminho para o
gozo de uma vida saacutebia estaria em orientar a psycheacute para buscar na phyacutesis uma referecircncia para
o desejar tendo em vista um estado de equiliacutebrio Eacute em torno desse teacutelos que o saacutebio medita e
orienta a alma para uma liberaccedilatildeo um desvencilhamento dos valores convencionados a partir
das kenaigrave doacutexai
Podemos a partir daiacute relacionar a dimensatildeo terapecircutica da meditaccedilatildeo com a praacutetica de
uma libertaccedilatildeo pois quando distanciado do loacutegos que desequilibra adoece e aprisiona o
homem pode experimentar a ataraxiacutea (ausecircncia de perturbaccedilatildeo na alma) e a aponiacutea (ausecircncia
de dores no corpo) necessaacuterios ao seu bem-estar Quando a psycheacute submete o pensamento agrave
physiologiacutea a perspectiva eacute a de uma sensibilizaccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave ideia de que natildeo eacute
necessaacuterio viver com necessidades que extrapolem os limites do natural nem buscar um
modo de viver que natildeo seja katagrave phyacutesin E mudar o pensamento leva agrave mudanccedila no
comportamento no eacutethos Dessa forma a therapeiacutea da alma nos indica um sentido de
libertaccedilatildeo afinal ldquoliberdade quer dizer desvencilhar-se de todos aqueles noacutes ideoloacutegicos
mitos ritos religiosos prejuiacutezos culturais interpretaccedilotildees tradicionais apresentadas sem criacutetica
na linguagem e transmitidas inicialmente pela Paideiacutea e pelos usos sociaisrdquo (LLEDOacute 2003
p 20)
Assim o vir a ser do sophoacutes em torno da cura de si mesmo ou a compreensatildeo da
filosofia epicurista como uma therapeiacutea acabam por nos remeter a uma praacutetica de meditaccedilatildeo
que visa permitir a partir do que se conhece da phyacutesis pensar e agir a partir de si mesmo
37 Ver nota 187 do capiacutetulo I
99 (liberto das opiniotildees e convenccedilotildees) para fazer as escolhas e recusas necessaacuterias para
estabelecer um cuidado consigo mesmo Ao desenvolver na psycheacute a percepccedilatildeo a respeito da
necessidade de estabelecer as proacuteprias opiniotildees de refutar aquelas que anulam sua vontade e
distanciam o homem de uma finalidade natural a meditaccedilatildeo projeta no eacutethos uma
compreensatildeo da natureza que remete para a liberdade e o prazer Dessa forma meditar vai se
constituir como um exerciacutecio voltado para reaproximar o homem da natureza seja porque lhe
sensibiliza a psycheacute para ouvir as queixas e os clamores do corpo seja porque direciona o
pensamento para buscar fundamentar no saber elaborado a partir da physiologiacutea as accedilotildees e
escolhas que vatildeo delinear seu modo de viver Em suma meleacutetema nos remete ao que pode ser
referido como sendo um exerciacutecio eacutetico posto que traz consigo a experiecircncia de uma
liberdade ligada agrave possibilidade de poder de pensar a proacutepria existecircncia sem a imposiccedilatildeo de
convenccedilotildees de regras de normas
24 - Meditar
ldquoAdeus e lembrai-vos de minha doutrinardquo Estas foram as uacuteltimas palavras de Epicuro moribundo aos amigos entrando entatildeo na tina de aacutegua quente bebeu um gole de vinho puro e no mesmo gole o frio do Hades (DL X 16)38
Essa epigrama de autoria de Dioacutegenes Laeacutercio que teve por base o testemunho de
Hecircrmacos nos ajuda a examinar uma vida orientada para a busca do prazer ligado ao
equiliacutebrio Poderiacuteamos pensar que essas palavras foram proferidas por uma voz debilitada
mas mesmo assim procurando transmitir aos amigos a mesma serenidade com a qual
caminhou ateacute uma tina de bronze e deixou o corpo lentamente submergir em aacutegua quente e
repousante Isso porque apoacutes 14 dias sentindo as dores intensas provocadas por caacutelculos
renais e a fragilizaccedilatildeo da sauacutede aquele banho morno a companhia dos amigos e a recordaccedilatildeo
das alegrias passadas pareciam bastar para lhe trazer um lenitivo que se completava com
aquele pouco de vinho Isso evidencia um contraste o homem enfermo sofrendo os rigores
de uma crise renal antevendo o momento de sua morte parece - mesmo assim - experimentar
um estado de imperturbabilidade (ataraxiacutea) suportando serenamente as dores sem temor do
que estaacute por vir e se regozijando com prazeres triviais
38 χαίρετε καὶ μέμνησθε τὰ δόγματα τοῦτ Ἐπίκουρος ὕστατον εἶπε φίλοις τοὔπος ἀποφθίμενος θερμὴν δὲ πύελον γὰρ ἐληλύθεεν καὶ ἄκρατον ἔσπασεν εἶτ Ἀΐδην ψυχρὸν ἐπεσπάσατο
100 Isso nos chama a atenccedilatildeo porque o comum eacute observar nesses momentos in extremis o
homem se deixar levar pela fantasia abater-se pelo medo de um aleacutem-vida projetar no tempo
eterno a dor que sente o corpo Pois ao reverberar o que postulam as opiniotildees vazias sobre a
morte e o sofrimento quem desconhece a natureza veste o haacutebito escuro da desventura e da
resignaccedilatildeo e se entrega ao canto compadecido daqueles que testemunham seus uacuteltimos
momentos Mas a despeito de qualquer coisa Epicuro continuava manifestando em seu modo
de ser o que procurou ensinar durante toda a vida que a felicidade resulta de um exerciacutecio
permanente de se colocar no mundo em correspondecircncia ao saber assimilado a partir da
investigaccedilatildeo da phyacutesis ldquoFoi esta a vida desse homem e este foi seu fimrdquo (DL X 16)39
Considerando ainda o testemunho de Hecircrmacos poderiacuteamos imaginar que malgrado o
desfecho esperado por todos tudo ocorria de modo tranquilo no Jardim onde a amizade o
sentido de comunidade as discussotildees sobre as coisas da vida se projetavam do raiar ao pocircr
do sol Essa perspectiva pode ser legitimada a partir do relato de Dioacutegenes Laeacutercio (DL X
22) jaacute registrado anteriormente onde se diz que apesar de todo sofrimento imposto ao corpo
Epicuro resistia e se mantinha feliz ao relembrar de conversas com os amigos E isso natildeo eacute
difiacutecil de conceber pois para o saacutebio a iminecircncia da morte natildeo causa medo nem tristeza e a
dor pode ser suplantada pela lembranccedila de momentos prazerosos Quem exercita a alma a
meditar tendo por base os fundamentos da physiologiacutea experimenta a seguranccedila a confianccedila
(piacutestis) necessaacuteria para natildeo sofrer diante do natural e do que pode ser escolhido ou evitado E
isso se reflete em uma postura serena diante de eventos que para aqueles guiados pelas kenaigrave
doacutexai seriam motivos de inquietude
Essa postura imperturbaacutevel ou de ataraxiacutea tambeacutem eacute verificada quando Epicuro
aconselha ldquocompadeccedilamos com os amigos natildeo chorando mas pensandordquo (SV 66)40 E isso
tem uma razatildeo de ser devido agrave ignoracircncia a respeito das coisas da natureza o homem se torna
refeacutem das opiniotildees vazias e com isso projeta a existecircncia de sofrimento mesmo onde natildeo haacute
motivos para tal Por isso eacute preciso constantemente observar a phyacutesis investigar seus modos
de ser refletir sobre esse conhecimento e procurar traduzi-lo em um eacutethos voltado para o
agradaacutevel O saacutebio se exercita justamente nisso pensar a realidade busca compreender sua
constituiccedilatildeo e funcionamento perceber os limites da natureza e pensar a partir disso as
finalidades de suas accedilotildees Trata-se de buscar na phyacutesis um paradigma que sirva para conferir
mais naturalidade ao seu estilo de vida
39 οὗτος μὲν ὁ βίος τἀνδρός ἥδε δὲ ἡ τελευτή 40 Συμπαθῶμεν τοῖς φίλοις οὐ θρηνοῦντες ἀλλὰ φροντίζοντες
101 Na sentenccedila vaticana 66 o termo que Epicuro usa para se remeter a essa complexa
atividade que ocorre na psycheacute do sophoacutes eacute phrontiacutedzontes cujo infinitivo eacute phrontiacutedzo41 que
pode se traduzido como pensar mas tambeacutem traz o sentido de meditar Cremos ser essa uma
traduccedilatildeo mais adequada afinal a meditaccedilatildeo se configura como um exerciacutecio da alma que
envolve sua capacidade para calcular deliberar com prudecircncia resgatar na memoacuteria imagens
sentimentos e princiacutepios fundamentais da physiologiacutea necessaacuterios para estabelecer uma
compreensatildeo da realidade orientada para a autarquia e o prazer Assim natildeo eacute lamentando que
se demonstra cuidado e afeto mas meditando e ao fazecirc-lo libertando-se de concepccedilotildees
vazias e se alegrando com os bons sentimentos partilhados com os amigos no presente e pelas
boas lembranccedilas do que foi vivido no passado
Para isso ser possiacutevel natildeo basta decorar os fundamentos da physiologiacutea e remiti-los
como demonstraccedilatildeo de erudiccedilatildeo como condena Epicuro (SV 76) Eacute preciso assimilar esse
saber ou seja fazecirc-lo paradigma para o pensamento e para a conduta Disso resulta uma
convicccedilatildeo (piacutestis) com relaccedilatildeo agrave possibilidade de a partir de uma investigaccedilatildeo da natureza
dissipar da psycheacute as kenaigrave doacutexai e com isso afastar os medos que impedem o homem de
experimentar a ataraxiacutea e a autaacuterkeia A meditaccedilatildeo exercitando a alma para por meio do
logismoacutes do dialogismoiacutes e da phroacutenesis se valer desse saber para estabelecer um modo de
viver atua no sentido dessa assimilaccedilatildeo e no desenvolvimento de uma convicccedilatildeo firme (piacutestin
beacutebaion) a respeito da utilidade da physiologiacutea para o exerciacutecio de uma vida saacutebia A
serenidade que Epicuro demonstrou ateacute seu derradeiro momento essa imperturbabilidade nos
remete justamente para esse sentimento de confianccedila (piacutestis) com relaccedilatildeo ao uso desse
conhecimento physioloacutegico para nortear uma compreensatildeo da vida e definir uma conduta
saacutebia Ao meditar se desenvolve a convicccedilatildeo de que pensar o eacutethos a partir do que se conhece
sobre a phyacutesis resulta em uma perspectiva de vida mais feliz como sugere a seguinte
passagem
A mesma convicccedilatildeo que nos inspirou a confianccedila de que nada existe de terriacutevel que dure para sempre ou mesmo por muito tempo tambeacutem nos habilita a ver que nos limites mesmos da vida nada aumenta tanto a nossa seguranccedila como a amizade (DL X 148)42
Ou seja a mesma confianccedila que meditar sobre os modos de ser e sobre a constituiccedilatildeo
da natureza estimula tambeacutem desenvolve uma disposiccedilatildeo (diaacutethesis) para orientar a conduta
41 Cf Anatole Bailly Op Cit 42 Ἡ αὐτὴ γνώμη θαρρεῖν τε ἐποίησεν ὑπὲρ τοῦ μηθὲν αἰώνιον εἶναι δεινὸν μηδὲ ολυχρόνιον καὶ τὴν ἐν αὐτοῖς τοῖς ὡρισμένοις ἀσφάλειαν φιλίας μάλιστα κατεῖδε συντελουμένην
102 para a realizaccedilatildeo de um paradigma mais natural de vida Veja-se que Epicuro usa o termo
gnoacuteme (de gnoacutesis) para se referir a esse conhecimento e estabelece uma relaccedilatildeo com o termo
tharreiacuten (de tharreacuteo) que diz respeito a ter confianccedila Assim quanto mais se conhece a
natureza e se medita sobre ela mais se desenvolve a piacutestis que vai resultar em uma disposiccedilatildeo
para estabelecer um modo de viver a partir da physiologiacutea
Eacute essa disposiccedilatildeo da alma que leva o saacutebio a transformar seu eacutethos a querer
permanentemente fazer de sua vida um exerciacutecio de autenticidade liberdade e equiliacutebrio
perspectiva possiacutevel a partir da assimilaccedilatildeo de um conhecimento que instrumentalize a psycheacute
para o domiacutenio dos proacuteprios pensamentos e desejos permitindo escolher e recusar a partir de
uma vontade esclarecida (phroacutenesis) A diaacutethesis eacute o querer constantemente se ocupar com a
sauacutede da alma com o bem-estar em estar vigilante com relaccedilatildeo ao que pode comprometer seu
equiliacutebrio trazer perturbaccedilotildees impedi-lo de agir a partir do proacuteprio pensamento
Provavelmente por essas razotildees Dioacutegenes de Œnoanda mandou esculpir nos muros de sua
cidade para os habitantes e para os viajantes ao passassem por ali saberem a seguinte
inscriccedilatildeo ldquoo mais importante para a felicidade eacute a disposiccedilatildeo da qual nos somos mestresrdquo
(Œno fr 112)43 E para ter a maicirctrise sobre essa diaacutethesis a meditaccedilatildeo fundamentada na
physiologiacutea procura levar o homem a ter confianccedila de que natildeo haacute o que temer quanto aos
deuses natildeo haacute nada a temer quanto agrave morte pode-se alcanccedilar a felicidade e pode-se suportar a
dor Dessa forma delineia-se uma therapeiacutea que poderia suprimir os medos e as perturbaccedilotildees
que nascem das falsas ideias sobre a natureza Eacute no sentido de mostrar esse aspecto praacutetico
ou uacutetil da meditaccedilatildeo ndash ligado agrave disposiccedilatildeo do sophoacutes para contrapor agraves opiniotildees vazias um
saber delineado em torno da natureza e com isso fundamentar um modo saacutebio de compreender
a phyacutesis e viver dentro dos limites dela - que vamos tecer alguns comentaacuterios sobre esse
quaacutedruplo44 remeacutedio
43 Le plus important pour le bonheur crsquoest la disposition dont nous somes maicirctres 44 Eacute em torno dessas quatro assertivas que se formula o tetraphaacutermakon epicurista como foi expresso por Filodemo (Pap Herc 1005 col IV 9-14) Trata-se de um faacutermaco ou uma indicaccedilatildeo terapecircutica para livrar a alma do sofrimento originado nas opiniotildees vazias Essa therapeiacutea havia sido apresentada de maneira mais detalhada na Carta a Meneceu e retomada sinteticamente nas Maacuteximas Capitais (I-IV) Dioacutegenes de Œnoanda tambeacutem reproduziu esse tetraphaacutermakon nos muros de sua cidade para trazer aliacutevio inspiraccedilatildeo e servir como indicativo de meditaccedilatildeo para os que por ali passassem
103 241 - Sobre os deuses
Algumas estaacutetuas dos deuses lanccedilam flechas e satildeo esculpidas com um arco [] outras satildeo escoltadas por feras selvagens e outras se enfurecem contra as pessoas [] Mas eacute preciso fazer as estaacutetuas dos deuses alegres e sorridentes para que noacutes possamos retribuir o sorriso em vez de temecirc-los (Œno fr 19 I-II)45
Esse relato que Dioacutegenes de Œnoanda tambeacutem deixou registrado nos muros de sua
cidade nos mostra por um lado como alguns deuses (theoigrave) eram caracterizados na
antiguidade e por outro indica a concepccedilatildeo que os epicuristas faziam deles Isso nos revela
um contraste entre a representaccedilatildeo das divindades feita pela opiniatildeo geral e aquela adotada
pelo saacutebio No iniacutecio da Carta a Meneceu Epicuro nos daacute elementos para pensar essas
diferenccedilas quando firma a existecircncia dos deuses mas natildeo como retratada pelos muitos (DL
X 123) Para ele ldquoas afirmaccedilotildees da maioria sobre os deuses natildeo satildeo preacute-concepccedilotildees
verdadeiras e sim suposiccedilotildees falsas Por causa de tais suposiccedilotildees falsas imagina-se que
derivam dos deuses os maiores males e bensrdquo (DL X 124)46 Quando diz isso Epicuro nos
remete para uma distinccedilatildeo entre suposiccedilotildees falsas (hypoacutelepseis pseudeicircs) sobre as quais se
fundamentam as crenccedilas da maioria e aquilo que eacute impresso na alma pela natureza o que vai
remeter a impressotildees (proleacutepseis) As opiniotildees vazias se baseiam nessas suposiccedilotildees sem
relaccedilatildeo com a realidade physioloacutegica e alimentam o temor com relaccedilatildeo aos deuses o medo de
que eles possam infligir ao homem castigos impedir sua felicidade Para as kenaigrave doacutexai os
theoigrave seriam seres cujo poder e a vontade sem limites se estendem para aleacutem da phyacutesis
podendo criar ou destruir em funccedilatildeo de suas inclinaccedilotildees Como maneira de lidar com isso
caberia ao homem uma atitude submissa e temerosa
Por outro lado a representaccedilatildeo que o saacutebio estabelece a respeito dos deuses os coloca
como referecircncia de realizaccedilatildeo de um modelo natural de existecircncia Ao representaacute-los natildeo se
faz em um primeiro momento uso direto das proleacutepseis porque ldquoa visatildeo dos deuses se torna
possiacutevel pelos simulacros que chegam agrave alma (e natildeo aos sentidos em razatildeo de seus aacutetomos
tecircnues) (ETIENNE amp OrsquoMEARA 1996 p 86) ldquonesse caso satildeo percepccedilotildees mentaisrdquo
45 Com supressotildees na nossa na traduccedilatildeo O texto de referecircncia eacute [ Certaines statues des dieux] lancent [des flegraveches et sont eculpteacutees tenant] un arc [faites] comme Heacuteraclegraves chez Homeacutere drsquoautres sont escorteacutees par des becirctes sauvages et drsquoautres encore srsquoirritent contre les gens prosperes comme apparaicirct agrave la plupart Neacutemeacutesis Mais il faut faire les statues des dieux joyeuses et souriantes pour que nous leur sourrions en retour plutocirct que nous ne les craignions 46 οὐ γὰρ προλήψεις εἰσὶν ἀλλrsquo ὑπολήψεις ψευδεῖς αἱ τῶν πολλῶν ὑπὲρ θεῶν ἀποφάσεις ἔνθεν αἱ μέγισται βλάβαι αἴτιαι τοῖς κακοῖς ἐκ θεῶν ἐπάγονται καὶ ὠφέλειαι
104 (BOLLACK 1975 p 92) O uso das impressotildees sensiacuteveis se daacute como uma maneira do saacutebio
expressar essa percepccedilatildeo por meio de analogias com elementos mais comuns da realidade
experimentada pelo homem dentro de uma representaccedilatildeo ldquoconforme a noccedilatildeo comum de eus
traccedilada em noacutesrdquo (DL X 123)47 Eacute nesse sentido que ele vai buscar recorrer agraves proleacutepseis
buscando na memoacuteria as imagens que possam representar os deuses como seres vivos
autossuficientes e felizes ou seja dentro de uma naturalidade que o saacutebio procura reproduzir
por meio do exerciacutecio de uma vida katagrave physin
Eacute como contraponto a esse quadro pintado pela maioria cujas cores remetem mais agrave
imaginaccedilatildeo e agrave fantasia que Epicuro afirma ldquoos deuses realmente existem e o conhecimento
de sua existecircncia eacute manifestordquo (DL X 123)48 mas natildeo como a maioria acredita Para os
epicuristas a natureza dos deuses pode ser pensada como corpoacuterea e por isso estaacute circunscrita
agrave phyacutesis Satildeo imortais assim como eacute a proacutepria phyacutesis tomada em sua totalidade (a
imortalidade eacute a existecircncia num tempo que vai desde sempre e para sempre) e vivem no
intervalo entre os mundos (metacoacutesmion) (DL X 89) Ou seja os theoigrave epicuristas pertencem
agrave imanecircncia
Na concepccedilatildeo do saacutebio soacute eacute possiacutevel atribuir aos deuses aquilo que se coaduna com
sua natureza de bem-aventuranccedila de serenidade de imperturbabilidade Por natildeo terem
preocupaccedilotildees natildeo se ocupam com os afazeres dos homens Entatildeo natildeo se deve esperar nada
deles nem temecirc-los O mal natildeo adveacutem de intervenccedilotildees divinas mas do sofrimento que o
saacutebio procura evitar por meio de um caacutelculo soacutebrio (nephroacuten logismoacutes) (DL X 132) voltado
para orientar suas escolhas e eliminar da alma as opiniotildees vazias Por isso a afirmaccedilatildeo de que
natildeo haacute nada a temer quanto aos deuses eacute colocada como um dos quatro componentes do
tetraphaacutermakon natildeo satildeo eles os responsaacuteveis nem pelos infortuacutenios nem pelas alegrias da
vida humana Isso cabe a cada um ateacute onde se estende o poder de suas escolhas
Ora a negaccedilatildeo dessa concepccedilatildeo geral a respeito dos deuses para postular a existecircncia
deles como pertencente agrave mesma natureza do homem e que tem como principais
caracteriacutesticas a vida sem perturbaccedilotildees e autaacuterquica remete para um modo de viver a ser
buscado pelo saacutebio E essa busca implica em um trabalho um esforccedilo feito pelo proacuteprio
homem para fazer de sua vida um exerciacutecio de ataraxiacutea e de autaacuterkeia Trata-se natildeo de
esperar pelo poder divino mas de compreender que as condiccedilotildees para a makariacuteos zecircn
dependem dele e devem ser construiacutedas por ele mesmo E isso requer uma atividade de
47 ὡς ἡ κοινὴ τοῦ θεοῦ νόησις ὑπεγράφη Optamos aqui por uma questatildeo de dar mais clareza ao texto grego por registrar a traduccedilatildeo de Marcel Conche (Eacutepicure Lettres et Maximes 1977) 48 θεοὶ μὲν γὰρ εἰσίνmiddot
105 observaccedilatildeo e meditaccedilatildeo sobre a natureza tendo em vista afastar as opiniotildees vazias e
procurando estabelecer um modo de vida dentro dos limites e possibilidades da phyacutesis
Portanto natildeo se deve temer os deuses mas meditando sobre sua natureza imanente tomaacute-la
como um paradigma natural para estabelecer um modo de viver
242 - Sobre a morte
Epicuro ao tentar traduzir o sentimento geral de seu tempo com relaccedilatildeo agrave morte
(thaacutenatos) diz ser ela ldquoo mais pavoroso dos malesrdquo (DL X 125)49 A perspectiva da morte faz
sofrer aflige o homem lhe impede de experimentar a ataraxiacutea A crenccedila na imortalidade
(athanasiacutea) da alma o faz temer o Hades com sua possibilidade de castigos eternos e a
interrupccedilatildeo da vida contraria o desejo de poder eternamente gozar os prazeres sensiacuteveis Se ldquoa
maioria ora foge da morte como o maior dos malesrdquo (DL X 125)50 o mesmo natildeo acontece
com o saacutebio Isso porque ele aprendeu a orientar seus pensamentos a partir da investigaccedilatildeo
sobre a natureza e por isso compreende a morte sob um aspecto fenomecircnico
Por meio da physiologiacutea o sophoacutes aprendeu que a natureza da alma eacute corpoacuterea Ela
natildeo tem existecircncia anterior nem posterior ao corpo-carne a qual estaacute ligada (DL X 64-66)
Assim sendo ela natildeo sofre apoacutes a morte Se de acordo com a concepccedilatildeo epicurista o
sofrimento e o prazer estatildeo nas sensaccedilotildees a morte - ao privar a alma e o corpo de sentir -
coloca fim a toda possibilidade de prazer ou dor Daiacute Epicuro afirmar que a morte nada eacute para
noacutes (DL X 124 139) Essa assertiva pode conduzir a pensar que a ldquoa morte eacute um temor sem
objetordquo (SALEM 1994 p 204) Isso se explica porque ldquoenquanto existimos a morte natildeo estaacute
presente e quando a morte estaacute presente jaacute natildeo existimosrdquo (DL X 125)51 Ou seja quando
tememos eacute porque a morte natildeo chegou nesse caso o sofrimento eacute vatildeo E quando a morte
privou o homem dos sentidos ele jaacute natildeo pode temecirc-la e aiacute o sofrimento eacute impossiacutevel
Essa reflexatildeo estaacute assentada na compreensatildeo de que viver e morrer satildeo fenocircmenos da
natureza Do ponto de vista physioloacutegico a morte natildeo eacute mais que a corrupccedilatildeo de um corpo a
desagregaccedilatildeo a separaccedilatildeo dos aacutetomos que lhe constituiacutea Assim a morte estaacute dentro do
campo de accedilatildeo da natureza sem nenhuma intervenccedilatildeo divina antes nem durante nem depois
e por isso natildeo deveria trazer afliccedilatildeo Portanto natildeo haacute nada a temer quanto agrave morte como
tambeacutem orienta Filodemo em sua formulaccedilatildeo do tetraphaacutermakon O mundo eacute um continuo
49 τὸ φρικωδέστατον οὖν τῶν κακῶν ὁ θάνατος οὐθὲν πρὸς ἡμᾶς 50 Ἀλλrsquo οἱ πολλοὶ τὸν θάνατον ὁτὲ μὲν ὡς μέγιστον τῶν κακῶν φεύγουσιν 51 ἐπειδήπερ ὅταν μὲν ἡμεῖς ὦμεν ὁ θάνατος οὐ πάρεστιν ὅταν δὲ ὁ θάνατος παρῇ τόθrsquo ἡμεῖς οὐκ ἐσμέν
106 fazer-se e desfazer-se e o homem ser da natureza sujeita-se fisicamente aos mesmos
fenocircmenos Com isso deixa-se perturbar pelo medo de que a morte se aproxima eacute desperdiccedilar
a vida com temores infundados ldquoe tu natildeo sendo senhor do dia do amanhatilde tu estaacutes adiando a
alegria e a vida se consome pela demora e cada um de noacutes morre sem ter descansordquo (SV
14)52
Essa advertecircncia pode ser relacionada a uma orientaccedilatildeo encontrada na Carta a
Meneceu Laacute se diz ldquoa meditaccedilatildeo sobre uma vida bela coincide com a meditaccedilatildeo sobre uma
morte belardquo (DL X 126)53 Em questatildeo estaacute a necessidade de o saacutebio salvaguardar sua
serenidade com relaccedilatildeo agrave morte enquanto exercita sua disposiccedilatildeo para aproveitar a vida A
imortalidade eacute um desejo vazio tanto quanto vazio eacute o temor da morte O saacutebio orienta sua
vida para fazer do tempo presente o mais agradaacutevel possiacutevel ateacute onde depende dele O que ele
busca eacute viver equilibradamente orientado pelo saber depreendido ao investigar a phyacutesis e
isso natildeo estaacute relacionado com viver longamente Em razatildeo disso eacute importante meditar para
que a ideia da morte natildeo traga afliccedilatildeo e pelo contrario para que o saacutebio compreendendo a
morte em sua imanecircncia decirc-se conta da mesma dimensatildeo na qual se circunscreve a
felicidade por isso realizaacutevel enquanto se vive Tanto o sophoacutes quanto quem se deixa guiar
pelas opiniotildees vazias vatildeo morrer mas o primeiro natildeo eacute afligido pela ideia da morte Ao
contraacuterio experimenta a ataraxiacutea e ao fazecirc-lo jaacute estaacute construindo o sentido de uma vida
feliz A meditaccedilatildeo sobre a morte tendo por base a physiologiacutea exercita a compreensatildeo de que
a mortalidade deve ser vivida em sua imanecircncia isto eacute orientada para a liberdade e o prazer
243 - Sobre a felicidade
A realizaccedilatildeo da felicidade (eudaimoniacutea) eacute o problema filosoacutefico que vai caracterizar
todo o pensamento epicurista Em funccedilatildeo de procurar realizar o sentido de felicidade na vida
do homem vai ser pensado um eacutethos orientado para o equiliacutebrio e a liberdade Decorre dessa
necessidade o trabalho de investigaccedilatildeo da phyacutesis para poder conhecer os limites nos quais a
eudaimoniacutea pode ser circunscrita e realizada Por isso a eacutetica epicurista natildeo pode ser
entendida em sua totalidade apartada da physiologiacutea e vice-versa Se na Carta a Meneceu
encontramos meacutetodo para a felicidade (CONCHE 1977 p 40) eacute na Carta a Piacutetocles e na
Carta a Heroacutedoto que encontramos os fundamentos physioloacutegicos que permitem justificar ou
52 Τῆς ἀσφαλείας τῆς ἐξ ἀνθρώπων γενομένης μέχρι τινὸς δυνάμει τε ἐξερειστικῇ καὶ εὐπορίᾳ εἰλικρινεστάτη γίνεται ἡ ἐκ τῆς ἡσυχίας καὶ ἐκχωρήσεως τῶν πολλῶν ἀσφάλεια 53 ἀλλὰ καὶ διὰ τὸ τὴν αὐτὴν εἶναι μελέτην τοῦ καλῶς ζῆν καὶ τοῦ καλῶς ἀποθνῄσκειν
107 entender a maneira de viver postulada para o sophoacutes
Como se conduzir no mundo de maneira a ser feliz eacute uma indagaccedilatildeo que evoca
variados entendimentos e respostas Uma dessas maneiras de entender a felicidade tem
relaccedilatildeo com os mitos A eudaimoniacutea dependeria dos deuses que convencidos das accedilotildees
virtuosas do homem com relaccedilatildeo aos demais e devotas com relaccedilatildeo a eles o fariam apoacutes a
morte conhecer no Reino de Hades as tranquilas paisagens dos Campos Eliacutesios Dessa forma
ser feliz eacute uma conquista projetada no aleacutem-vida e dependente do julgamento divino Essa
seria uma opiniatildeo vigente na poacutelis entre os muitos E a isso a filosofia epicurista se contrapotildee
Na Carta a Meneceu Epicuro fala da possibilidade de viver ldquocomo um deus entre os
homens pois em nada se assemelha a uma criatura mortal o homem que vive entre bens
imortaisrdquo (DL X 135)54 Veja-se que ele projeta a felicidade dos deuses como uma
possibilidade de realizaccedilatildeo humana desde que o homem cultive os bens relacionados a essa
felicidade Se eacute assim entatildeo esse sentido pleno de realizaccedilatildeo eacute experimentado enquanto se
vive na convivecircncia com os outros na relaccedilatildeo estabelecida com os proacuteprios desejos Ser feliz
eacute uma questatildeo relacionada agrave ordem terrena ao campo do imanente ao momento em que se
vive Assim a eudaimoniacutea eacute identificada ao exerciacutecio de uma vida feliz o que remete para o
cultivo de bens como a philiacutea a autaacuterkeia a ataraxiacutea55 que resultam em bem-estar
(eustaacutetheia) alegria liberdade A remissatildeo aos deuses vai figurar aiacute como um modelo de
serenidade equiliacutebrio e autossuficiecircncia ldquoOs deuses de Epicuro satildeo a realizaccedilatildeo ideal de sua
concepccedilatildeo de eudaimoniacutea que domina toda sua filosofia Vivem sempre uma permanente
felicidade natildeo tem nenhuma preocupaccedilatildeo nem as causam aos outrosrdquo (GUAL 1985 p 170)
Sendo da ordem do humano a felicidade natildeo eacute daacutediva eacute resultado de um exerciacutecio
que tem como finalidade a realizaccedilatildeo desse ideal de vida evocado pela imagem dos theoigrave
Esse modelo quando projetado no homem por meio de um modo de viver de acordo com a
phyacutesis eacute o que vai remeter para a imagem do saacutebio Eacute procurando orientar sua accedilatildeo a partir de
um paradigma natural que ele busca experimentar esse sentido de felicidade relacionado a
essa concepccedilatildeo epicurista de deus Em outros termos a eudaimoniacutea ldquosuprema proacutepria da
divindade que natildeo pode ser mais intensardquo (DL X 121)56 serve como concepccedilatildeo para se
pensar a eudaimoniacutea que pode ser realizada pelo sophoacutes Essa diz respeito agrave felicidade
ldquosusceptiacutevel de adiccedilatildeo e subtraccedilatildeo de prazeresrdquo (idem) e portanto que estaacute ao alcance do
54 ζήσῃ δὲ ὡς θεὸς ἐν ἀνθρώποις οὐθὲν γὰρ ἔοικε θνητῷ ζῴῳ ζῶν ἄνθρωπος ἐν ἀθανάτοις ἀγαθοῖς 55 Por oposiccedilatildeo agrave gloacuteria agrave riqueza ao poder bens que trazem consigo o oacutedio a inveja o desprezo O que eacute incompatiacutevel com a condiccedilatildeo de divindade postulada por Epicuro 56 Τὴν εὐδαιμονίαν διχῆ νοεῖσθαι τήν τε ἀκροτάτην οἵα ἐστὶ περὶ τὸν θεόν ἐπίτασιν οὐκ ἔχουσαν καὶ τὴν ltκατὰ τὴνgt προσθήκην καὶ ἀφαίρεσιν ἡδονῶν
108 saacutebio Por isso Filodemo ao apresentar sua formulaccedilatildeo do tetraphaacutermakon afirma pode-se
alcanccedilar a felicidade Porque ao relacionaacute-la ao exerciacutecio de uma vida orientada de acordo
com a phyacutesis o que define o eacutethos do saacutebio a felicidade passa a depender de cada um das
escolhas e das recusas necessaacuterias para conduzir as accedilotildees em direccedilatildeo aos ldquobens imortaisrdquo
Para ser feliz o saacutebio precisa aprender a desejar e a escolher conforme a natureza
Eacute propagado pelas opiniotildees vazias que a felicidade estaacute relacionada agrave obtenccedilatildeo de
riquezas de poder de gloacuteria A proacutepria figura de Alexandre o Grande simboliza esse ideal ao
nos remeter a uma vida dedicada a ultrapassar limites a saciar os desejos de conquistas que
um a um eram substituiacutedos por outros ainda maiores Mas ldquoir sempre adiante eacute jamais
satisfazer o esforccedilordquo e as conquistas de Alexandre nesse sentido satildeo a ldquoanti-sabedoriardquo pois
nos remetem para pensar que a ldquoinsatisfaccedilatildeo resulta da natildeo-limitaccedilatildeo do desejordquo (SALEM
1994 p 67-68) Para Epicuro esse modelo de vida estaacute assentado em valores artificialmente
criados e que natildeo conduzem agrave serenidade e agrave autarquia que a representaccedilatildeo epicurista dos
deuses sugere Pelo contraacuterio essa maneira de se conduzir no mundo traz consigo o oacutedio a
inveja e o desprezo57 o que leva agrave infelicidade Essa busca por bens valorizados pelas kenaigrave
doacutexai gira em torno de necessidades que nem satildeo naturais nem necessaacuterias para a felicidade
Ao contraacuterio submete o homem a uma tirania das vontades e o impede de pensar e agir a
partir de si mesmo caracteriacutestica do ser autaacuterkes Por causa disso eacute recorrente nos textos
epicuristas a concepccedilatildeo segundo a qual uma vida feliz natildeo eacute determinada pela posse de bens
numerosos pela detenccedilatildeo de riquezas Um exemplo disso encontramos nesta sentenccedila
Nem a maior riqueza subsistente nem a estima e a admiraccedilatildeo junto agrave multidatildeo (maioria) nem algo outro das coisas paralelas a causas indefinidas engendram uma alegria digna de viver nem tampouco dissolvem a perturbaccedilatildeo da alma (SV 81)58
No epicurismo a realizaccedilatildeo da felicidade estaacute ligada fundamentalmente agrave
possibilidade de experimentar a ataraxiacutea finalidade maior das accedilotildees do saacutebio Por isso ele
precisa compreender a natureza e em funccedilatildeo dessa compreensatildeo meditar sobre as proacuteprias
vontades e administraacute-las de modo a circunscrevecirc-las aos limites da phyacutesis e natildeo ser
atormentado pela ambiccedilatildeo Decorre dessa meditaccedilatildeo o entendimento de que os bens
57 Epicuro relaciona o oacutedio a inveja e o desprezo com a infelicidade do homem (DL X 117) Esses sentimentos satildeo combatidos pelas virtudes que o saacutebio busca desenvolver sabedoria moderaccedilatildeo justiccedila (DL X 132 SV 5) Mas essas virtudes natildeo devem ser buscadas por si mesmas Elas satildeo um meio Devem ser praticadas tendo em vista o fim que miram a felicidade (o que estaacute relacionado agrave questatildeo da realizaccedilatildeo dos prazeres dentro dos limites da phyacutesis) 58 Οὐ λύει τὴν τῆς ψυχῆς ταραχὴν οὐδὲ τὴν ἀξιόλογον ἀπογεννᾷ χαρὰν οὔτε πλοῦτος ὑπάρχων ὁ μέγιστος οὔθrsquo ἡ παρὰ τοῖς πολλοῖς τιμὴ καὶ περίβλεψις οὔτrsquo ἄλλο τι τῶν παρὰ τὰς ἀδιορίστους αἰτίας
109 necessaacuterios agrave consecuccedilatildeo da felicidade satildeo faacuteceis de obter em contraste agravequeles propagados
pela multidatildeo e resultam de um exerciacutecio de dar mais naturalidade agrave vida Nesse sentido a
ataraxiacutea e a autaacuterkeia - que se quer projetar no modo de viver do saacutebio como equivalentes agrave
bem-aventuranccedila agrave eterna serenidade e agrave autossuficiecircncia (pensadas como atributo da vida
dos deuses) - remetem para um trabalho de limitaccedilatildeo dos desejos ao que eacute natural e
necessaacuterio Isso leva o saacutebio a se desvencilhar das opiniotildees vazias a respeito da felicidade e a
ver na amizade na vida frugal no equiliacutebrio a possibilidade de realizar a eudaimoniacutea
Eacute sob essa perspectiva que Epicuro apresenta sua filosofia como um meacutetodo para a
felicidade uma atividade identificada com o vir a ser do saacutebio Daiacute ele dizer na Carta a
Meneceu (DL X 122) que o tempo dedicado agrave filosofia eacute comparado agravequele dedicado agrave
felicidade Afinal o exerciacutecio filosoacutefico eacute o mesmo que liberta e cura a alma das opiniotildees que
resultam em perturbaccedilotildees e dor Logo a meditaccedilatildeo como uma dimensatildeo praacutetica desse
filosofar constitui-se como uma pragmateiacutea uma compreensatildeo da natureza voltada para
guiar as accedilotildees do saacutebio para a realizaccedilatildeo da felicidade
244 - Sobre a dor
Nos muros de Œnoanda Dioacutegenes mandou gravar as seguintes palavras ldquoquando um
homem eacute acometido por dores corporais ele diz que elas satildeo mais intensas que as da alma e
quando ele sente as afliccedilotildees da alma ele diz que essas satildeo as mais intensasrdquo (Œno fr 44 II ndash
III)59 Para aleacutem da discussatildeo a respeito de saber qual eacute o maior sofrimento nos importa eacute
perceber que a dor (poacutenos) eacute por muitos percebida como um mal do qual sempre se deve
fugir
Por traacutes dessa ideia estaacute o medo de que a dor dure indefinidamente ou ultrapasse os
niacuteveis do suportar Pode-se perceber nesses temores o reflexo das opiniotildees vazias seja
porque ignoram os limites da natureza ou por se permitirem guiar pelos mitos e pensamentos
fantasiosos Eacute nesse contexto que se concebe o sofrimento como resultado do castigo dos
deuses como aquele infligido a Prometeu acorrentado e punido por Zeus apoacutes ter roubado o
fogo e dado este ao homem Tambeacutem haacute quem pense na dor como fim inevitaacutevel e eterno para
aqueles apoacutes a morte conduzidos ao Hades e depois ao Taacutertaro60 Daiacute por um lado alimenta-
se a crenccedila sobre a necessidade de honrar os deuses para escapar agraves suas puniccedilotildees por outro
59 Mais quand um homme est affligeacute de douleurs corporelles il dit qursquoelles sont plus grandes que celles de lrsquoacircme et quand [il fait lrsquoexpeacuterience de celles de lrsquoacircme il dit que crsquoest celles-ci qui sont plus grandes] 60 Uma das partes do Hades (terra dos mortos) para onde satildeo enviados aqueles que devem ser castigados
110 difunde-se a noccedilatildeo de que eacute preciso buscar o prazer sempre e a qualquer custo para escapar do
sofrimento da afliccedilatildeo da dor Inebriados por essas opiniotildees estabelecem um modo de viver
dissoluto creacutedulo distanciado da sabedoria
Mas para aqueles que se exercitam na filosofia do Jardim a aponiacutea sendo fenocircmeno
fiacutesico requer que se compreenda physiologicamente suas causas ou seja dentro de uma
compreensatildeo ligada aos limites da natureza Eacute a partir dessa perspectiva que se busca um
modo de administrar essa afecccedilatildeo em vez de negaacute-la ou de procurar sempre fugir dela
Afinal eacute da relaccedilatildeo que o corpo tem com o mundo-realidade que resultam afecccedilotildees de dor (ou
prazer) que ficam guardadas na alma como imagem sensiacutevel (proleacutepseis) Por isso elas satildeo
importantes para pensar a natureza e o modo de viver do saacutebio - porque elas permitem ouvir o
corpo e refletir a respeito dos seus limites naturais
Claro que Epicuro afirma ldquoa finalidade de todas as nossas accedilotildees eacute nos livrarmos do
sofrimento e do temorrdquo (DL X 128)61 Mas com isso a ecircnfase recai sobre as opiniotildees que
trazem perturbaccedilatildeo ou desequiliacutebrio agrave alma E isso tem uma relaccedilatildeo direta com as kenaigrave doacutexai
Ou seja o sofrimento que resulta de concepccedilotildees falsas a respeito da natureza deve ser evitado
E isso se faz como procuramos mostrar por meio de uma meditaccedilatildeo orientada para por meio
da physiologiacutea levar a alma agrave ataraxiacutea privando-a dessas opiniotildees Para tanto eacute necessaacuteria a
elaboraccedilatildeo de um loacutegos que instile na psycheacute a confianccedila de que ao estabelecer um modo de
viver de acordo com a natureza eacute possiacutevel a makariacuteos zecircn
Por outro lado Epicuro esclarece ldquotoda dor eacute um mal mas nem por isso devemos
fugir de toda dor por sua proacutepria naturezardquo (DL X 129)62 Nesses termos ele estaacute postulando
uma compreensatildeo da dor como fenocircmeno da phyacutesis Assim ela natildeo seria um mal em si mas
poderia indicar a ultrapassagem de um limite orgacircnico ou a submissatildeo do corpo a algum fator
de desequiliacutebrio E isso pode ser relacionado ao exerciacutecio mesmo da sabedoria que consiste
em saber quando conveacutem sentir dor como no caso do atleta ao alongar os muacutesculos para um
melhor funcionamento do corpo ou no caso do agricultor submetido aos rigores impostos
pelo peso do arado e pela extensatildeo do campo em funccedilatildeo de obter uma boa colheita Assim
quando convier o saacutebio natildeo evitaraacute a dor Da mesma forma que se pode dizer da
conveniecircncia em se abster de alguns prazeres que resultam em sofrimento (DL X 129)
Portanto o sophoacutes precisa meditar sobre a vida katagrave phyacutesin e como nela estatildeo relacionados os
61 τούτου γὰρ χάριν πάντα πράττομεν ὅπως μήτε ἀλγῶμεν μήτε ταρβῶμεν 62 οὐ πᾶσα μέντοι αἱρετήmiddot καθάπερ καὶ ἀλγηδὼν πᾶσα κακόν οὐ πᾶσα δὲ ἀεὶ φευκτὴ πεφυκυῖα
111 limites da natureza e a repleccedilatildeo dos desejos para saber o que escolher e o que evitar63 Afinal
ldquoconveacutem entatildeo discriminar todas essas coisas com o caacutelculo daquilo que eacute uacutetil e a ponderaccedilatildeo
daquilo que eacute prejudicial porque em certas circunstacircncias o bem eacute um mal para noacutes e o mal eacute
um bem para noacutesrdquo (DL X 130)64
As dores pensadas enquanto fenocircmeno fazem parte da condiccedilatildeo da vida sujeita agraves
desarmonias aos desequiliacutebrios Por isso satildeo inevitaacuteveis ldquoElas estatildeo presentes mas eacute
possiacutevel para o saacutebio epicurista diminuir fortemente sua intensidade por meio de uma opiniatildeo
verdadeirardquo (ETIENNE amp OrsquoMEARA 1996 p 79) Mas a essa inevitabilidade corresponde
tambeacutem uma descontinuidade como testemunham estas sentenccedilas
O que doacutei natildeo dura continuamente na carne mas o que doi intensamente estaacute presente o tempo miacutenimo e o que sobrepassa o prazeroso segundo a carne acontece natildeo por muitos dias e nas doenccedilas de longa duraccedilatildeo eacute mais pleno o que causa prazer do que o que causa dor (SV 3 DL X 140)
Toda dor pode ser facilmente desprezada aquela que produz um sofrimento tem curta duraccedilatildeo aquela que perdura na carne tem um sofrimento brando (SV 4)
A partir desses passos podemos dizer que na concepccedilatildeo epicurista assim como o
prazer natildeo dura para sempre o mesmo se daacute com relaccedilatildeo agrave dor Quando ela eacute intensa dura
pouco (seja porque leva agrave morte ou deixa de ser intensa) quando ela eacute branda pode ser
suplantada pelo prazer Cabe ao saacutebio desenvolver uma percepccedilatildeo quanto a isso para poder
administrar o sofrimento Assim diante das dores intensas a alma pode experimentar algum
aliacutevio ao saber de sua brevidade e diante daquelas mais moderadas pode-se suplantaacute-las por
meio de uma meditaccedilatildeo voltada para trazer agrave psycheacute as memoacuterias que proporcionam um
prazer capaz de se sobrepor a esse sofrimento como procuramos mostrar no item 22 deste
capiacutetulo
Nesse sentido a meditaccedilatildeo vai se constituir ao mesmo tempo como um exerciacutecio de
compreensatildeo da dor (de saber se ela traz algum benefiacutecio) e como um modo de cuidar
terapeuticamente dela Essa possibilidade de therapeiacutea face ao sofrimento eacute afirmada como
um dos ingredientes do tetraphaacutermakon que Filodemo resumiu assim ldquopode-se suportar a
dorrdquo65 Esse princiacutepio servindo de tema para uma meditaccedilatildeo permite balizado pela
investigaccedilatildeo da natureza entender a naturalidade da dor e que ela pode ser vivida com
63 Vide capiacutetulo I toacutepico 12 deste trabalho 64 τῇ μέντοι συμμετρήσει καὶ συμφερόντων καὶ ἀσυμφόρων βλέψει ταῦτα πάντα κρίνειν καθήκει χρώμεθα γὰρ τῷ μὲν ἀγαθῷ κατά τινας χρόνους ὡς κακῷ τῷ δὲ κακῷ τοὔμπαλιν ὡς ἀγαθῷ 65 Pap Herc 1005 col IV 9-14
112 sabedoria Isso pode permitir ao sophoacutes orientar melhor suas accedilotildees de modo a realizar uma
vida agradaacutevel mesmo em situaccedilotildees de sofrimento
113
CAPIacuteTULO 03
A PRAacuteXIS COMO A PRAGMATEIacuteA NO MODO DE AGIR
No capiacutetulo anterior procuramos caracterizar a meditaccedilatildeo (tograve meleacutetema) como um
exerciacutecio que busca espelhar na alma um saber acerca da phyacutesis Trata-se de uma ocupaccedilatildeo
permanente e voltada para buscar compreender a proacutepria existecircncia e procurar viver conforme
esse entendimento em oposiccedilatildeo agraves kenaigrave doacutexai Eacute por meio de uma praacutetica orientada para
edificar um pensamento de acordo com a natureza que o saacutebio exercita a liberdade ante as
opiniotildees vazias e ao mesmo tempo administra uma therapeiacutea agrave psycheacute que liberta de
perturbaccedilotildees e temores infundados pode se voltar para a realizaccedilatildeo dos prazeres
fundamentais agrave makariacuteos zecircn Nesse entendimento a meditaccedilatildeo se constitui como um
exerciacutecio eacutetico ela desenvolve uma disposiccedilatildeo (diaacutethesis) para pensar e agir livre das
convenccedilotildees que natildeo tecircm na natureza um paradigma de realizaccedilatildeo e portanto natildeo resultaria
em um modo autecircntico de viver
Tambeacutem tentamos mostrar a meditaccedilatildeo como atividade relacionada agrave necessidade de
amadurecer no saacutebio a seguranccedila a confianccedila (piacutestis) com relaccedilatildeo agrave possibilidade de
realizaccedilatildeo de uma vida feliz quando o saber a respeito da phyacutesis eacute projetado em um eacutethos
conforme a natureza Para isso meditar engaja inclina a alma a querer por ela mesma buscar
as condiccedilotildees para sua felicidade a estabelecer uma praacutetica em torno de realizaacute-la Em tal
horizonte compreendemos a afirmaccedilatildeo de Epicuro segundo a qual ldquodevemos entatildeo meditar
sobre tudo o que possa proporcionar a felicidade para que se a temos tenhamos tudo e se
natildeo a temos faccedilamos tudo para tecirc-lardquo (DL X 122)1
Nesse mesmo sentido diz-se na Carta a Meneceu que para gozar de uma vida feliz eacute
necessaacuterio colocar em accedilatildeo (praacutette) o saber acerca da natureza (DL X 123)2 Tal afirmaccedilatildeo
delineia o sentido da pragmateiacutea epicurista tanto quanto remete para uma mudanccedila na
compreensatildeo sobre o que deve orientar a conduta humana Como discutimos em paacuteginas
anteriores a perspectiva epicurista eacute a de instrumentalizar a alma atraveacutes de exerciacutecios de
meditaccedilatildeo para afastaacute-la da influecircncia das opiniotildees vazias e a considerar um paracircmetro mais
1 μελετᾶν οὖν χρὴ τὰ ποιοῦντα τὴν εὐδαιμονίαν εἴπερ παρούσης μὲν αὐτῆς πάντα ἔχομεν ἀπούσης δὲ πάντα πράττομεν εἰς τὸ ταύτην ἔχειν 2 Cf nota 28 da introduccedilatildeo
114 natural a partir do qual se possa pensar a finalidade das accedilotildees A ideia eacute por meio de uma
investigaccedilatildeo da natureza chegar agrave definiccedilatildeo de um paradigma para o agir diferente daquele
que os muitos buscam nos deuses - sujeitos agrave desmesura (hyacutebris) encetada pelos desejos pela
coacutelera pela cupidez Se eacute preciso um modelo divino para inspirar o homem que seja
fundamentado na physiologiacutea e por isso expresse as noccedilotildees de equiliacutebrio e de autarquia
conforme defende Epicuro (DL X 123) Eacute nesse contexto que a praacutexis epicurista pode ser
concebida como sendo toda atividade do homem orientada por um saber que visa restituir a
mesma naturalidade divina ao exerciacutecio da vida humana
Isso nos remete para imaginar que ao delinear os caminhos para se alcanccedilar a
sabedoria Epicuro natildeo trabalha a partir de categorias de pensamento para depois aplicaacute-las ao
entendimento da realidade em especial da conduta humana O caminho eacute outro parte-se da
phyacutesis para compreender e postular o agir e o teacutelos das accedilotildees O sophoacutes eacute venerado porque ele
remete para uma forma de se conduzir orientada por necessidades naturais e para finalidades
pensadas dentro dos limites da natureza Daiacute Epicuro dizer que o exerciacutecio da sabedoria vai
consistir em pocircr em accedilatildeo os preceitos comunicados (pela physiologiacutea) com a confianccedila ou
bem persuadidos (pepeismeacutenoi gnesiacuteos)3 da possibilidade de ser feliz Eacute a compreensatildeo sobre
como a natureza pode servir de modelo para a makariacuteos zecircn que vai orientar o fazer do saacutebio
no mundo a partir de seu poder de escolher e rejeitar sem a sujeiccedilatildeo aos valores
convencionados artificialmente
Aqui vale ressaltar partindo do referenciado por Bailly4 e por Silva5 a forma
imperativa prᾶtte6 e a forma substantiva praacutexis7 tecircm origem no termo praacutesso8 que remete
para a noccedilatildeo de ato execuccedilatildeo tarefa A praacutexis (praacutexis) epicurista eacute accedilatildeo conduta praacutetica de
uma liberdade de escolha orientada para a definiccedilatildeo de um modo mais natural de ser Ao
refletir sobre a phyacutesis busca-se a partir dela uma fundamentaccedilatildeo para conduzir a uma accedilatildeo
saacutebia seja nas relaccedilotildees estabelecidas em sociedade seja na maneira de lidar com a proacutepria
natureza Sendo assim a praacutexis ao buscar realizar um modo saacutebio de se colocar no mundo a
partir de um saber sobre a natureza nos remete para uma indissociaccedilatildeo entre a eacutetica e a
physiologiacutea
Ora pensar a vida pelo prisma da physiologiacutea e procurar viver a partir desse
3 πεπεισμένοι γνησίως (DL X 130) Gama Cury traduz como ldquosinceramente persuadidordquo 4 Anatole Bailly Op Cit 5 Markus Silva Termos Filosoacuteficos de Epicuro Op Cit 6 DL X 123 7 DL X 81 135 148 185 8 Πράσσω
115 conhecimento ao mesmo tempo em que define o sentido da praacutexis epicurista tambeacutem nos
remete a uma concepccedilatildeo de filosofia elaborada como um saber em torno da vida ou uma arte
de viver No contexto desta inter-relaccedilatildeo entre uma compreensatildeo physioloacutegica do mundo e o
modo como se vive visando realizar uma vida feliz eacute possiacutevel sublinhar o papel praacutetico da
filosofia do Jardim projetado na figura do sophoacutes Nesse ideal a vida pretendida a vida
filosoacutefica consiste na aplicaccedilatildeo constante desse saber ao exerciacutecio de viver Nesses termos a
praacutexis eacute conhecimento aplicado ao dia a dia na construccedilatildeo cotidiana de atitudes voltadas para
a liberdade e o prazer E na medida em que a sabedoria remete para uma ocupaccedilatildeo com a
consecuccedilatildeo de um eacutethos katagrave phyacutesin ela estaacute realizando a pragmateiacutea epicurista Daiacute
podermos dizer que a pragmateiacutea se efetiva como modo de viver por meio do saacutebio de sua
praacutexis
Partindo da ideia segundo a qual o sentido da praacutexis estaacute em estabelecer uma maneira
de se conduzir na vida guiada pela physiologiacutea e tendo em vista a makariacuteos zecircn seria o caso
de tambeacutem compreender essa praacutexis como toda conduta orientada por um pensamento
esclarecido com relaccedilatildeo aos limites em que se circunscreve a felicidade e a possibilidade
praacutetica de experimentaacute-la Isso nos remete para pensar as accedilotildees do sophoacutes como o exerciacutecio
de uma disposiccedilatildeo (diaacutethesis) para natildeo soacute se desvencilhar dos valores e desejos que projetam
a felicidade para aleacutem da phyacutesis mas principalmente para encetar um agir autaacuterquico
condiccedilatildeo fundamental para edificar um modo de viver mais autecircntico mais natural Afinal ao
entender - dentro dos limites da phyacutesis - o que pode o homem o saacutebio direciona suas accedilotildees
essencialmente para o necessaacuterio agrave sua realizaccedilatildeo Isso permite identificar na praacutexis epicurista
uma ligaccedilatildeo entre a praacutetica da sabedoria a investigaccedilatildeo da natureza e o exerciacutecio da
liberdade Eacute como sophoacutes-physiologoacutes-autaacuterkes que se definem e realizam as condutas
transformadoras da experiecircncia de existir E isso se daacute meio agrave necessidade de estabelecer um
eacutethos espelhado em um paradigma natural Para tanto eacute preciso viver exercitando esse saber
sobre a natureza (DL X 123) e natildeo legitimando e reproduzindo o colocado socialmente como
norma convenccedilatildeo haacutebito
Postulamos no capitulo anterior que a meditaccedilatildeo liberta a alma das opiniotildees vazias e
isso permite ao saacutebio agir a partir de si mesmo Agora podemos dizer que aleacutem de agir a partir
de si mesmo ele age para si mesmo E natildeo cabe aqui nenhuma interpretaccedilatildeo dessa afirmaccedilatildeo
no sentido de uma atitude egoiacutesta do sophoacutes O direcionamento eacute outro o agir para si estaacute
relacionado agrave possibilidade de escolher uma maneira de viver afirmativa da proacutepria liberdade
com mais equiliacutebrio e mais prazer E isso como vimos remete para bem-estar (eustatheiacutea)
116 para a ausecircncia de distuacuterbio no corpo (aponiacutea) e de perturbaccedilatildeo na alma (ataraxiacutea) Se em
outros momentos da histoacuteria a filosofia pensava o homem virtuoso como aquele que
edificava os valores ligados agrave poacutelis agrave democracia agrave poliacutetica agora o direcionamento eacute para os
valores que remetem para uma vida tranquila livre autecircntica e feliz Essa perspectiva norteia
nossas reflexotildees a respeito da praacutexis epicurista de como ela define a imagem do saacutebio como
aquele que vive como um deus entre os homens e da filosofia como o exerciacutecio da sabedoria
31 ndash A praacutexis do saacutebio escolher e recusar
Epicuro acredita na possibilidade de viver ldquocomo um deus entre os homensrdquo (DL X
135)9 e em torno dessa projeccedilatildeo constroacutei o que jaacute foi referido como uma ldquoutopia epicuristardquo
(ETIENNE amp OrsquoMEARA 1996 p 101)10 Natildeo cremos ser o termo utoacutepico o mais adequado
para se referir a esse ideal afinal a experiecircncia vivida no Jardim por Epicuro e seus
disciacutepulos aponta no sentido contraacuterio de algo realizaacutevel factiacutevel como estamos tentando
mostrar aqui ao caracterizar a filosofia epicurista como uma pragmateiacutea que se realiza como
exerciacutecios eacuteticos E um testemunho de Dioacutegenes de Œnoanda usado para delinear o horizonte
dessa evocada ldquoutopiardquo nos serve justamente para evidenciar essa dimensatildeo do que eacute possiacutevel
ao homem quando orienta suas accedilotildees pelo saber inteligido ao investigar a phyacutesis Vejamos
[] uma vez que nem todos tecircm o poder Mas se noacutes o supomos possiacutevel entatildeo verdadeiramente a vida dos deuses passaraacute aos homens Porque todas as coisas seratildeo plenas de justiccedila e de amor muacutetuo e natildeo haveraacute necessidade de fortificaccedilotildees ou de leis e de todas essas coisas que noacutes criamos por causa dos outros (Œno fr 56 II)11
Embora o fragmento esteja incompleto podemos aventar a possibilidade em
consonacircncia ao conjunto da filosofia epicurista que esse poder do qual fala Dioacutegenes pode ser
o de escolher Como vimos no segundo capiacutetulo deste trabalho somente quem liberta a alma
das concepccedilotildees vazias das convenccedilotildees colocadas pela cultura religiatildeo pelas kenaigrave doacutexai
pode agir por si mesmo e direcionar suas escolhas para satisfazer os desejos ligados ao
exerciacutecio de uma vida autaacuterquica e feliz Saacutebio eacute quem pensa suas necessidades pelo prisma
do natural e do necessaacuterio pois isso lhe permite experimentar o mesmo sentido de autaacuterkeia
que Epicuro usa para caracterizar o permanente estado de liberdade e imperturbabilidade dos
9 ζήσῃ δὲ ὡς θεὸς ἐν ἀνθρώποις 10 La philosophie Eacutepicurienne sur Pierre op cit 11 [] puisque tous nrsquoen ont pas le pouvoir Mais si nous le supposons possible alors veacuteritablement la vie des dieux passera aux hommes Car toutes choses seront pleines de justice et drsquoamour mutuel e il nrsquoy aura pas besoin de fortifications ou de lois et de toutes ces choses que nous fabriquons agrave cause des autres
117 deuses Dessa forma eacute possiacutevel confiar que a vida deles pode ser experienciada pelos
homens mas natildeo por todos porque nem todos exercitam a alma para escolher livremente e
nem escolhem em funccedilatildeo do prazer E como para Epicuro ldquoo fruto maior do bastar-se a si
mesmo eacute a liberdaderdquo quem natildeo busca a autarquia distancia-se desse ideal
Entatildeo se Epicuro venera os theoigrave como modelo de serenidade de autarquia eacute para
projetar na figura do sophoacutes essa aspiraccedilatildeo de vida Ele o saacutebio eacute quem pode realizar essa
ldquoutopiardquo que consiste em viver ldquocomo um deus entre os homensrdquo (DL X 135)12 ou seja sem
preocupaccedilotildees sem medos sem ser assujeitado por desejos sem causar males aos outros nem
os sofrer Dioacutegenes fiel agrave filosofia epicurista tenta desenhar em seu testemunho um lugar
onde prevalece o justo (diacutekaios) e o amor muacutetuo Ora a justiccedila (dikaiosyacutene) para Epicuro
consiste em um ldquopacto no sentido de natildeo prejudicar nem ser prejudicadordquo (DL X 33)13 eacute
portanto algo construiacutedo entre os proacuteprios homens E o amor correspondido remete para a
noccedilatildeo de amizade (philiacutea) Esse termo se refere a relaccedilotildees estabelecidas livremente entre
pessoas em funccedilatildeo de afinidades do contentamento proporcionado Portanto tambeacutem remete
ao poder de escolher Considerando que onde o justo prevalece natildeo haacute desequiliacutebrio e onde a
amizade estaacute presente tambeacutem haacute seguranccedila tranquilidade e satisfaccedilatildeo entatildeo esse ideal de
vida divina eacute possiacutevel a depender da maneira de se portar no mundo e dos valores que guiam
o agir dos homens E isso estaacute relacionado a um modo especiacutefico de compreender a realidade
e de escolher em funccedilatildeo dessa compreensatildeo E o saacutebio traduz esse sentido ao orientar sua
praacutexis de modo a colocar-se na vida como justo e amigo
Para realizar esse modo de existir dos deuses - livre e feliz - eacute preciso conferir agrave vida
mais naturalidade E isso depende do homem fazer com que suas accedilotildees correspondam com o
modo proacuteprio de ser da natureza Vale lembrar que a physiologiacutea aponta para uma
compreensatildeo da phyacutesis a qual natildeo tem sua dyacutenamis determinada ou perturbada por nada
exterior a ela No mesmo paralelo um eacutethos liberto e tranquilo pode ser realizado mediante
escolhas e recusas voltadas para espelhar esse modo natural de ser Assim a liberdade como a
possibilidade de agir por si mesmo e a felicidade como um estado equilibrado dizem respeito
a um exerciacutecio a uma construccedilatildeo a uma praacutexis katagrave phyacutesin
Eacute nesse sentido que objetivo das accedilotildees do saacutebio vai ser orientado para a realizaccedilatildeo da
proacutepria felicidade e todas as escolhas e recusas vatildeo ter em mira esse teacutelos Em cima desse
direcionamento o homem procura exercitar a sabedoria no agir definindo uma praacutexis
12 ζήσῃ δὲ ὡς θεὸς ἐν ἀνθρώποις 13 συνθήκη τις ὑπὲρ τοῦ μὴ βλάπτειν ἢ βλάπτεσθαι
118 fundamentada no seu poder discernir o fundamental para uma vida feliz Dioacutegenes de
Œnoanda faz um comentaacuterio nesse sentido opondo o que se deve evitar ao que se deve
escolher e definindo a filosofia como uma praacutetica relacionada agrave escolha daquilo do que
proporciona felicidade
[ muitos] procuram filosofar a fim de obter para si coisas de indiviacuteduos ou de reis para quem a filosofia eacute tida como um bem precioso Natildeo eacute contudo para ter uma dessas coisas mencionadas que noacutes empreendemos essa praacutetica ltda filosofiagt mas para ser feliz tendo conquistado a finalidade da natureza (Œno fr 29 I e II)14
Essa relaccedilatildeo pretendida entre a realizaccedilatildeo de uma maneira saacutebia de viver e a filosofia
tem em conta que a makariacuteos zecircn buscada pelo saacutebio soacute eacute possiacutevel se ele escolher o prazer e
sobre essa finalidade estabelecer seu modo de viver E isso volta a nos remeter para a
importacircncia de ter a natureza como paradigma e natildeo as convenccedilotildees fundadas em opiniotildees
vazias Assim o teacutelos das accedilotildees do sophoacutes natildeo estaacute projetado no que os muitos professam
(riqueza gloacuteria poder) mas em estabelecer um eacutethos dentro dos limites da natureza A vida
saacutebia eacute tranquila frugal alegre e autaacuterquica e a praacutexis epicurista visa justamente isso Vale
lembrar quando tratamos da vida katagrave phyacutesin no capiacutetulo I destacamos que o saacutebio escolhe
em funccedilatildeo da necessidade e isso estaacute relacionado a buscar satisfazer os desejos naturais e
necessaacuterios e afastar-se daqueles que nem satildeo naturais e nem necessaacuterios Ao circunscrever
suas vontades aos limites da phyacutesis o saacutebio exercita o domiacutenio sobre si mesmo e experimenta
uma independecircncia para fazer escolhas e recusas objetivando edificar a proacutepria felicidade
Escolher e recusar com sabedoria depende nesse caso da possibilidade de se distanciar das
opiniotildees vazias Aiacute se mostra a importacircncia da physiologiacutea para a praacutexis epicurista O saacutebio
age a partir de criteacuterios e raciociacutenios que desconstruindo essas opiniotildees e edificando um
loacutegos de acordo com a phyacutesis conduzem a escolher em funccedilatildeo de ser feliz
Mas essas escolhas e recusas tambeacutem incidem sobre sentimentos pois haacute aqueles
relacionados agrave construccedilatildeo de uma vida feliz e aqueles que afastam o homem desse objetivo
Diante disso o saacutebio procura compreendecirc-los e administraacute-los uma vez que eles podem
direcionar a accedilatildeo tanto para o bem quanto para o mal Sobre esse aspecto Epicuro afirma ldquoas
causas dos males praticados pelos homens satildeo o oacutedio a inveja e o desprezordquo (DL X 75)
Ora o mal aqui eacute entendido como o sofrimento e natildeo eacute possiacutevel ser feliz se as accedilotildees satildeo
14 [beaucoup] cherchent agrave philosopher afin de se procurer ces choses aupregraves des particuliers ou des roacuteis chez qui la philosophie est tecircnue pour une grande et preacutecieuse possession Ce nrsquoest donc pas afin drsquoavoir une des choses susmentionneacutees que nous avons entrepris cete pratique ltde la philosophiegt mas pour ecirctre heureux ayant acquis la fin rechercheacutee par la nature
119 orientadas para essa finalidade assim como natildeo eacute possiacutevel pensar a ataraxiacutea e o equiliacutebrio por
meio de uma praacutexis motivada pela tristeza pelo rancor pelos desafetos
Em face desse problema a filosofia epicurista postula que ldquoas lsquoafecccedilotildeesrsquo15 natildeo satildeo
incompatiacuteveis com a busca da sabedoria Ainda que o epicurismo recuse a apaacutetheia a perfeita
insensibilidade do saacutebio estoico o saacutebio natildeo estaacute contudo assujeitado agraves paixotildees
propriamente ditasrdquo (RODIS-LEWIS 1975 p 204) Assim natildeo eacute o caso de negar a existecircncia
desses sentimentos nem de ficar agrave mercecirc deles nem de ficar indiferente a eles Ao contraacuterio
eacute em torno deles que o saacutebio coloca em exerciacutecio a pragmateiacutea fazendo convergir uma
compreensatildeo sobre a natureza para a praacutetica da autaacuterkeia o que resulta na possibilidade de
um autodomiacutenio pois incompatiacutevel agrave sabedoria eacute natildeo ter o domiacutenio sobre a vontade e isso
revela uma alma adoecida pelas paixotildees e enfraquecida em sua capacidade de determinaccedilatildeo
Nesse sentido o oacutedio a inveja o desprezo satildeo sentimentos relacionados aos deuses
dos muitos mas natildeo agrave concepccedilatildeo de divindade postulada pelo epicurismo e tomada como
modelo para a praacutexis humana Se os theoigrave epicuristas natildeo tecircm coacutelera nem desejam aleacutem de sua
autossuficiecircncia eacute porque esse eacute seu modo natural de existir e o saacutebio toma isso como
referecircncia para orientar suas escolhas e recusas Dessa forma o sentimento de inveja que o
sophoacutes poderia sentir ao perceber a riqueza dos outros eacute anulado pela compreensatildeo de que o
necessaacuterio basta e faz feliz enquanto o excessivo remete para uma busca sem fim e sem
sossego A esse sentimento ele contrapotildee a alegria de quem ri e governa sua vida orientado
pela reta filosofia (SV 41) Pois foi investigando a natureza e meditando sobre ela que ele
compreendeu que ldquonatildeo se deve ter inveja de ningueacutem os bons natildeo satildeo dignos de inveja e os
maus quanto mais afortunados tanto mais eles se prejudicam a si mesmosrdquo (SV 53)16 Do
mesmo modo a raiva o oacutedio o rancor e outros sentimentos da mesma espeacutecie tambeacutem
podem ser submetidos a uma ponderaccedilatildeo quanto agraves suas causas e consequecircncias Esta
sentenccedila de Epicuro pode ajudar na compreensatildeo desse aspecto
Com efeito as coacuteleras acontecem aos que geraram contra os que nasceram segundo o que eacute preciso eacute vatildeo por isso mesmo colocar-se em posiccedilatildeo
15 Nos textos de Epicuro o termo paacutethos diz respeito agraves afecccedilotildees que sentimos mediante o contato entre nossos sentidos e o mundo fenomecircnico Mas tambeacutem pode se referir em sentido menos teacutecnico aos sofrimentos da alma causados pelo desequiliacutebrio do corpo-carne No que diz respeito ao emprego desse vocaacutebulo para se referir agraves paixotildees encontramos apenas uma referecircncia nas Sentenccedilas Vaticanas onde se diz rdquosuprimindo o olho no olho (o olhar direcionado) as relaccedilotildees muacutetuas e a convivecircncia o sentimento amoroso se dissiparsquo Em grego Ἀφαιρουμένης προσόψεως καὶ ὁμιλίας καὶ συναναστροφῆς ἐκλύεται τὸ ἐρωτικὸν πάθος (SV 18) E aqui estamos tratando justamente desse tipo de sentimento dessas paixotildees que podem exercer um domiacutenio sobre o homem e condicionar suas accedilotildees 16 Οὐδενὶ φθονητέονmiddot ἀγαθοὶ γὰρ οὐκ ἄξιοι φθόνου πονηροὶ δὲ ὅσῳ ἂν μᾶλλον εὐτυχῶσι τοσούτῳ μᾶλλον αὑτοῖς λυμαίνονται
120 contraacuteria e natildeo ir em busca de encontrar compreensatildeo e se eacute segundo o que natildeo eacute preciso mas sem muita razatildeo eacute ridiacuteculo aquele que estaacute possuiacutedo pela emoccedilatildeo aticcedilar mais ainda a falta de razatildeo e natildeo procurar mudar segundo outros modos benevolentes (mais suaves) (SV 62) 17
Evidentemente temos aiacute como enquadramento a relaccedilatildeo entre pais (que geraram) e
filhos (que nasceram) Mas o entendimento pode ser aplicado a outras circunstacircncias da vida
onde haja uma disposiccedilatildeo para reagir movido por sentimentos de agressividade de irritaccedilatildeo
A ideia colocada eacute a da irracionalidade em alimentar esse paacutethos com relaccedilatildeo a quem frustra
com razatildeo os desejos de outrem tambeacutem de ser inuacutetil adotar accedilotildees movidas pela raiva contra
aquele que mesmo sem fundamento castra vontades ou tolhe opiniotildees No primeiro caso
porque eacute injusto no segundo porque incita ainda mais o confronto Com isso coloca-se a
necessidade de dominar essas inclinaccedilotildees por meio do logismoacutes e da phroacutenesis para rejeitar
todo comportamento reativo gerador para si e para os outros de perturbaccedilatildeo e desequiliacutebrio
A eacutetica epicurista estaacute centrada no poder de escolher e recusar do homem Mas eacute
preciso considerar que haacute coisas sobre as quais ele tem domiacutenio e outras natildeo A filosofia
entatildeo vai ter sua importacircncia ao desenvolver nele um discernimento para saber esses limites e
definir dentro deles uma praacutexis direcionada para o prazer a alegria a tranquilidade Dessa
forma para o saacutebio sentimentos como rancor inveja despeito estatildeo intimamente ligados a
uma compreensatildeo enviesada a respeito da phyacutesis e quanto aos valores fundamentais para a
realizaccedilatildeo da felicidade e por isso contaminam os relacionamentos e adoecem a alma Eles
remetem para a artificializaccedilatildeo da vida das relaccedilotildees e se opotildeem agrave noccedilatildeo de uma natureza
equilibrada
Por isso ao contraacuterio da poacutelis no Jardim se ensina que natildeo haacute necessidade de
estimular a ambiccedilatildeo a disputa de querer sempre mais do que o outro pode ter Ao contraacuterio
postula-se o bem-estar promovido por uma vida frugal Ao pensar um modo de vida onde a
inveja a competiccedilatildeo a disputa a exploraccedilatildeo natildeo prevalecem diante do sentimento de
comunidade de amizade esses sentimentos que causam inquietude inseguranccedila medo
perdem o sentido E isso estaacute ligado a escolher entre ter o necessaacuterio agrave felicidade ou querer
ter sempre mais O saacutebio escolhe guiado pelo saber a respeito da phyacutesis tendo em mira a
felicidade e os limites aos quais ela se circunscreve E isso lhe permite ter a compreensatildeo que
natildeo eacute da natureza do homem sentir oacutedio inveja desprezo e a escolher se afastar de relaccedilotildees
estimuladoras desses sentimentos
17 Εἰ γὰρ κατὰ τὸ δέον ὀργαὶ γίνονται τοῖς γεννήσασι πρὸς τὰ ἔκγονα μάταιον δήπουθέν ἐστι τὸ ντιτείνειν καὶ μὴ παραιτεῖσθαι συγγνώμης τυχεῖν εἰ δὲ μὴ κατὰ τὸ δέον ἀλλὰ ἀλογώτερον γελοῖον πᾶν τὸ πρὸς ἔκκλησιν ltἐκκαλεῖνgt τὴν ἀλογίαν θυμῷ κατέχοντα καὶ μὴ ζητεῖν μεταθεῖναι κατrsquo ἄλλους τρόπους εὐγνωμονοῦντα
121 32 ndash A accedilatildeo modulada pelo logismoacutes e pela phroacutenesis
Dissemos anteriormente que para Epicuro o mal deriva do oacutedio da inveja e do
desprezo E tambeacutem que esses natildeo satildeo sentimentos naturais mas reflexos de uma forma de
viver fundamentada em concepccedilotildees vazias Resultaria disso uma desmesura (hyacutebris) e
portanto um desequiliacutebrio que natildeo se repercute na alma do saacutebio nem nas accedilotildees dele Isso
porque ele guia suas conduta pelo logismoacutes e pela phroacutenesis ancorados na physiologiacutea Para
explicar esse raciociacutenio vamos considerar o seguinte testemunho da Carta a Meneceu
Natildeo eacute uma sucessatildeo ininterrupta de banquetes e festas nem o prazer sexual com meninos e mulheres nem a degustaccedilatildeo de peixes e outras iguarias oferecidas por uma mesa suntuosa que proporciona a vida agradaacutevel e sim um caacutelculo soacutebrio (logismograves) que investigue as causas de toda escolha e de toda rejeiccedilatildeo e elimine as opiniotildees vatildes por obra das quais um intenso tumulto de apossa das almas (DL X 132)18
A praacutexis epicurista edifica o modo de viver do saacutebio a partir de uma compreensatildeo da
phyacutesis e natildeo de acordo com os valores predominantes na poacutelis Por meio da physiologiacutea satildeo
pensados os limites naturais para o agir e as finalidades das accedilotildees Se o objetivo maior disso eacute
dar um direcionamento para tornar possiacutevel fazer da vida um exerciacutecio de liberdade
serenidade e equiliacutebrio entatildeo o foco recai em poder estabelecer uma medida que impeccedila o
saacutebio de agir contra a natureza Isso implica na necessidade de pensar a partir do saber
physioloacutegico para poder deliberar de forma a escolher e rejeitar visando realizar um modo
saacutebio de viver
O termo empregado por Epicuro para definir essa capacidade da psycheacute para calcular
avaliar e com isso poder fazer escolhas eacute logismoacutes19 Por meio dessa faculdade a alma pode
pensar uma conduta dentro dos limites do natural e necessaacuterio e evitar que a vontade se
projete em desmesuras e desequiliacutebrios O logismoacutes ldquotem a finalidade de na medida do
possiacutevel livraacute-la do erro e do engano nos julgamentos e opiniotildees que venha a manifestarrdquo
(SILVA 2003 73) Isso nos remete para uma ideia de intencionalidade que vai gerir toda a
conduta do saacutebio Sua praacutexis tem no logismoacutes a possibilidade de uma reflexatildeo voltada para
avaliar selecionar e escolher em funccedilatildeo da sua compreensatildeo da natureza e de realizar um
modo de vida identificado com ela Daiacute porque ldquoraramente a sorte prejudica um homem saacutebio
pois as coisas principais e fundamentais sempre foram governadas pela razatildeo (logismoacutes) e 18 οὐ γὰρ πότοι καὶ κῶμοι συνείροντες οὐδrsquo ἀπολαύσεις παίδων καὶ γυναικῶν οὐδrsquo ἰχθύων καὶ τῶν ἄλλων ὅσα φέρει πολυτελὴς τράπεζα τὸν ἡδὺν γεννᾷ βίον ἀλλὰ νήφων λογισμὸς καὶ τὰς αἰτίας ἐξερευνῶν πάσης αἱρέσεως καὶ φυγῆς καὶ τὰς δόξας ἐξελαύνων ἐξ ὧν πλεῖστος τὰς ψυχὰς αταλαμβάνει θόρυβος 19 DL X 32 39 75 76 117 132 144 145
122 por todo o curso da vida a razatildeo as governa e governaraacuterdquo (DL X 144)20 Por isso Epicuro
coloca o logismoacutes como essa faculdade da alma que proporciona uma vida agradaacutevel pois
sem ela os desejos se desgovernam e se projetam sem limites desequilibrando o homem e o
colocando agrave mercecirc de necessidades nem naturais e nem necessaacuterias
A accedilatildeo saacutebia eacute consequecircncia da deliberaccedilatildeo e esta eacute orientada por esse caacutelculo
racional Mas eacute preciso uma disposiccedilatildeo para agir segundo o logismoacutes Estamos aiacute no acircmbito
da phroacutenesis Esse vocaacutebulo eacute traduzido por sensatez prudecircncia ldquovontade esclarecidardquo e
sabedoria21 Mas para aleacutem de uma traduccedilatildeo eacute preciso entender o valor circunscrito por essa
palavra ldquoEpicuro utiliza o termo phroacutenesis num sentido muito similar agravequele desenvolvido
por Aristoacuteteles ou seja como lsquosabedoria praacuteticarsquordquo (SILVA 2003 p 74) Assim poderiacuteamos
pensar sob a perspectiva de uma sabedoria no agir A phroacutenesis em Epicuro diz respeito ao
aspecto praacutetico da sua filosofia a uma disposiccedilatildeo para se conduzir orientado por um saber
physioloacutegico tendo em vista realizar uma vida feliz
Isso nos permite estabelecer uma relaccedilatildeo entre phroacutenesis e praacutexis em torno da
realizaccedilatildeo de um eacutethos fundamentado na natureza Se a filosofia epicurista visa apontar um
caminho para viver naturalmente sem se assujeitar a convenccedilotildees vazias a phroacutenesis eacute a
virtude que conduz o exerciacutecio desse modo natural de vida Isso porque pela compreensatildeo
epicurista a makariacuteos zecircn consiste em agir orientado pela physiologiacutea e a phroacutenesis daacute a
medida desse agir Ela modula os desejos iacutempetos sentimentos e permite governar as accedilotildees
de modo a poder escolher e recusar em funccedilatildeo de um teacutelos katagrave phyacutesin Nesse sentido haacute uma
extensatildeo entre a filosofia e phroacutenesis onde esta remete para a praacutexis filosoacutefica atraveacutes da qual
a pragmateiacutea passa a ser espelhada no modo de viver do saacutebio
Nos textos de Epicuro tanto a noccedilatildeo de phroacutenesis quanto a de filosofia se referem a
um exerciacutecio que prepara os ldquoaacutegeis e autaacuterquicosrdquo22 termos que remetem para uma atividade
para uma disposiccedilatildeo mas tambeacutem para um aspecto de liberdade que caracteriza as accedilotildees do
saacutebio Sua conduta eacute determinada a partir de sua faculdade de pensar e escolher por si mesmo
Isso faz pensar o phroneacuteo como quem intelige do estudo da natureza a orientaccedilatildeo para seus
modos e projeta a finalidade das suas accedilotildees em conformidade com o sentido de uma vida katagrave
phyacutesin Em vista disso a praacutexis do sophoacutes vai se desenvolver orientada para a autaacuterkeia e
para o prazer
20 Βραχέα σοφῷ τύχη παρεμπίπτει τὰ δὲ μέγιστα καὶ κυριώτατα ὁ λογισμὸς διῴκηκε καὶ κατὰ τὸν συνεχῆ χρόνον τοῦ βίου διοικεῖ καὶ διοικήσει 21 Ver tambeacutem nota 74 do capitulo I 22 Cf nota 98 do capiacutetulo I
123 Podemos perceber diante do exposto que a phroacutenesis pensada como sabedoria praacutetica
natildeo se opotildee agrave investigaccedilatildeo da natureza nem estaacute distanciada dela A sabedoria epicurista
implica um saber sobre a phyacutesis a partir do qual satildeo definidas as accedilotildees para conduzir a uma
vida feliz A phroacutenesis ldquotraduzrdquo esse saber em uma disposiccedilatildeo para exercitar uma maneira de
ser fundamentada pela physiologiacutea Natildeo havendo esse conflito
a questatildeo passa a ser para Epicuro como tornar possiacutevel filosofar tanto no sentido praacutetico quanto no teoreacutetico portanto eacute forccediloso admitir que eacute a phroacutenesis que conduz este processo porque ela daacute ao homem o poder de refletir acerca do que eacute natural e necessaacuterio saber tanto do ponto de vista praacutetico quanto teoacuterico (SILVA 2003 p 74)
Dada essa importacircncia da phroacutenesis no contexto da filosofia epicurista precisamos
expor aqui uma discussatildeo com relaccedilatildeo agrave compreensatildeo do seguinte passo da Carta a Meneceu
O principio de tudo isso e o maior bem eacute a sabedoria (phroacutenesis) consequentemente a possessatildeo mais preciosa da proacutepria filosofia eacute a sabedoria origem natural de todas as outras formas de excelecircncias restantes com efeito ela nos ensina que natildeo se pode levar uma vida agradaacutevel se natildeo se vive com sabedoria moderaccedilatildeo e justiccedila nem se pode levar uma vida saacutebia moderada e justa se natildeo se vive agradavelmente As formas de excelecircncia satildeo concomitantes com a vida agradaacutevel e a vida agradaacutevel eacute inseparaacutevel delas (DL X 132)23
Essa traduccedilatildeo de Maacuterio da Gama Kury leva a entender a phroacutenesis como algo de que a
filosofia dispotildee Esse raciociacutenio comeccedila algumas linhas antes24 quando Epicuro fala ser
necessaacuterio investigar as causas de toda escolha e de toda rejeiccedilatildeo e eliminar as opiniotildees
vazias motivo de perturbaccedilatildeo da alma Essa atividade de investigaccedilatildeo e depuraccedilatildeo requer o
exerciacutecio da phroacutenesis no sentido de desenvolver uma vontade esclarecida e uma accedilatildeo
correspondente Mas esse esclarecimento eacute buscado na physiologiacutea Assim tanto a phroacutenesis
quanto a physiologiacutea satildeo pensadas como meio dos quais a filosofia epicurista faz uso para se
realizar enquanto saber para vida Nesse sentido fica difiacutecil postular que a physiologiacutea e
mesmo a phroacutenesis tenham importacircncia superior agrave proacutepria filosofia como postula M Conche
ao propor outra traduccedilatildeo para a frase em questatildeo ldquoe por isso mais preciosa mesmo que a
filosofia eacute a prudecircncia (phroacutenesis)25 da qual provecircm todas as outras virtudes ()rdquo (CONCHE
23 Τούτων δὲ πάντων ἀρχὴ καὶ τὸ μέγιστον ἀγαθὸν φρόνησις διὸ καὶ φιλοσοφίας τιμιώτερον ὑπάρχει φρόνησις ἐξ ἧς αἱ λοιπαὶ πᾶσαι πεφύκασιν ἀρεταί διδάσκουσα ὡς οὐκ ἔστιν ἡδέως ζῆν ἄνευ τοῦ φρονίμως καὶ καλῶς καὶ δικαίως ltοὐδὲ φρονίμως καὶ καλῶς καὶ δικαίωςgt ἄνευ τοῦ ἡδέως συμπεφύκασι γὰρ αἱ ἀρεταὶ τῷ ζῆν ἡδέως καὶ τὸ ζῆν ἡδέως τούτων ἐστὶν ἀχώριστον 24 Cf nota 18 deste capiacutetulo 25 O termo phroacutenesis eacute traduzido como sabedoria prudecircncia e tambeacutem como vontade esclarecida conforme sublinhamos na nota 74 do capiacutetulo I
124 1977 p 225)26
Podemos tambeacutem opor a esse entendimento de M Conche tambeacutem reproduzido por
G Rodis-Lewis27 a anaacutelise sintaacutetica segundo a qual a ldquoφιλοσοφία no nominativo eacute o sujeito
de uma proposiccedilatildeo da qual φρόνησις eacute o atributo e o comparativo neutro com valor
adverbial refere-se a ὑπάρχειrdquo (BOLLACK 1975 p 130) Por isso eacute o caso de pensar que a
filosofia conteacutem a phroacutenesis e natildeo o contraacuterio Eacute no sentido dessa anaacutelise sintaacutetica que
estudiosos como G Arrighetti J Bollack e M Silva compartilham da ideia de natildeo haver uma
primazia dessa virtude com relaccedilatildeo agrave filosofia Haacute de se considerar as virtudes como um
meio28 para alcanccedilar a felicidade enquanto a filosofia tomada como exerciacutecio seja sob a
forma de meditaccedilatildeo ou de praacutexis traz consigo no momento mesmo em que se exercita aquilo
que tem como finalidade a liberdade e o prazer Por esses motivos seguimos o entendimento
desses estudiosos assinalando que a phroacutenesis eacute um instrumento de discernimento da alma
(assim como o logismoacutes eacute uma faculdade que a psycheacute tem para avaliar calcular projetar
fazer analogias) com seu devido valor na construccedilatildeo no exerciacutecio filosoacutefico sem ela a
physiologiacutea se reduz a uma teoria e a ideia de postular uma filosofia como pragmateiacutea natildeo se
efetiva
33 ndash Praacutexis e exerciacutecio de liberdade (eleutheriacutea)
Ao investigar a phyacutesis Epicuro pocircde pensar a liberdade (eleutheriacutea) como uma
possibilidade do acaso Eacute o desvio do aacutetomo de sua trajetoacuteria explicitada na teoria do
pareacutenklisis29 que vai permitir conceber no campo metafiacutesico a derrogaccedilatildeo da necessidade
(anaacutenke) como um fatalismo natural E isso para alguns inteacuterpretes do epicurismo serve
como justificativa ontoloacutegica para a questatildeo da liberdade humana pois a alma tambeacutem eacute
composta por aacutetomos30 a eleutheriacutea seria assim algo que o homem traria consigo por
natureza Embora essa possa ser uma leitura possiacutevel como se daacute na tese de Karl Marx31
podemos aqui tratar da questatildeo da liberdade sob outros aspectos
26 Crsquoest pourquoi plus preacutecieuse mecircme que la philosophie est la prudence de laquelle proviennent toutes les autres vertus () 27 RODIS-LEWIS Geneviegraveve Eacutepicure et son Eacutecole Paris Gallimar 1975 28 ldquoA ideia de se ater agrave virtude por ela mesma defendida notadamente pelos estoicos eacute rejeitada pelos epicuristas Para eles as virtudes natildeo constituem um fim mais um meio em vista de um fimrdquo (ETIENNE amp OrsquoMEARA 1996 p 90) 29 Sobre isso ver capiacutetulo I item 111 30 Ver nota 35 do capiacutetulo I 31 MARX Karl Diferenccedila entre as Filosofias da Natureza em Demoacutecrito e Epicuro Satildeo Paulo Global Editora sd
125 Para Epicuro a eleutheriacutea natildeo eacute absoluta nem na phyacutesis nem com relaccedilatildeo agrave
anthropophyacutesis Se no campo atocircmico ela eacute percebida como um movimento que escapa agrave
anaacutenke eacute necessidade da natureza que isso ocorra Esse paralelo tambeacutem pode ser aplicado ao
homem para quem nem tudo estaacute ao seu domiacutenio mudar ou escolher mas que pode
desenvolver pensamentos e atitudes voltados para o estabelecimento de um modo proacuteprio de
viver mesmo sob a influecircncia das quais natildeo se possa escapar Afinal para Epicuro ldquocoisa maacute
eacute a necessidade mais natildeo haacute necessidade nenhuma de viver com necessidaderdquo (SV 9)32
Trata-se portanto de um esforccedilo um exerciacutecio que cada um precisa empreender
Quando fala da liberdade humana Epicuro a relaciona agrave noccedilatildeo de autaacuterkeia Para ele
ldquoo fruto maior do bastar-se a si mesmo eacute a liberdaderdquo (SV 77)33 Ser autaacuterkes eacute poder agir a
partir de si mesmo do saber depreendido ao investigar a natureza sem a imposiccedilatildeo de normas
ou convenccedilotildees fundadas em opiniotildees vazias Eacute nesse sentido que a physiologiacutea ganha
importacircncia pois permite compreender que na natureza operam apenas causas fiacutesicas sem
nenhuma finalidade (teacutelos) Isso aponta para um sentido inerente da proacutepria natureza cujos
modos de ser natildeo satildeo determinados por nada fora dela mesma ldquoporque aleacutem do todo nada haacute
que possa penetrar nele e provocar transformaccedilatildeordquo (DL X 39)34 Portanto o sentido para o
agir humano deve ser pensado tendo como referecircncia a proacutepria natureza cabendo a cada um
definir sua praacutexis em funccedilatildeo das finalidades que entende como fundamentais a sua realizaccedilatildeo
Contudo ao se viver sob um regime onde prevalecem opiniotildees crenccedilas e ateacute mesmo
uma educaccedilatildeo orientada no sentido de projetar falsas finalidades para o homem fora do que
lhe ensina a natureza a eleutheriacutea eacute mitigada devido ao asseacutedio de desejos Buscar conquistar
aleacutem do que basta a uma vida feliz assenhora a vontade fazendo a accedilatildeo ser comandada pelo
desejar sem limites Daiacute ser necessaacuterio ldquoextirpar as vaacuterias opiniotildees os desejos supeacuterfluos que
somente encobrem o quatildeo faacutecil eacute a felicidade terrestrerdquo (GUAL 1985 p 189)
Restabelecer o sentido de liberdade estaacute ligado assim a buscar ser autaacuterkes o que
resulta em uma praacutexis orientada pela natureza Nessa perspectiva quando a filosofia
epicurista postula a necessidade de exercitar a autaacuterkeia estaacute dizendo que o homem deve - ele
mesmo - guiar sua conduta de maneira a realizar o teacutelos katagrave phyacutesin Esse eacute o propoacutesito da
praacutexis do saacutebio Tal qual a phyacutesis que por si mesma realiza seu sentido proacuteprio de ser o
mesmo se daria com o homem cujo teacutelos vinculado aos prazeres conforme a natureza ele
deve procurar realizar Isso pode ocorrer pela praacutetica das virtudes (areteacutes) pois elas satildeo um
32 Κακὸν ἀνάγκη ἀλλrsquo οὐδεμία ἀνάγκη ζῆν μετὰ ἀνάγκης 33 Τῆς αὐταρκείας καρπὸς μέγιστος ἐλευθερία 34 Παρὰ γὰρ τὸ πᾶν οὐθέν ἐστιν ὃ ἂν εἰσελθὸν εἰς αὐτὸ τὴν μεταβολὴν ποιήσαιτο
126 meio para alcanccedilar o prazer ligado agrave vida autaacuterquica e ataraacutexica
A liberdade assim concebida remete para uma atividade uma construccedilatildeo a cargo do
proacuteprio homem naquilo que depende dele sobre o que ele tem domiacutenio Meio ao acaso e agrave
necessidade Epicuro entende haver o espaccedilo para a deliberaccedilatildeo humana Para ele quanto
mais algueacutem se exercita em investigar a natureza e a meditar sobre ela mais eacute possiacutevel
desenvolver o poder para conduzir a vida em direccedilatildeo agrave makariacuteos zecircn Conhecer a natureza e
os limites por ela colocados para a satisfaccedilatildeo dos prazeres permite uma liberdade ante os
desejos sem medidas Porque ldquoeacute duro lutar contra o desejo mas vencecirc-lo eacute proacuteprio do homem
de bom sensordquo (DK 68 B 236)35 Nesse sentido podemos perceber uma relaccedilatildeo entre a
eleutheriacutea e o desenvolvimento de uma praacutexis virtuosa Quanto mais o saacutebio age com
phroacutenesis bondade e justiccedila mais ele exercita a autaacuterkeia mais ele confere naturalidade agrave
sua existecircncia
Por isso a filosofia eacute fundamental para a liberdade na medida em que busca
desenvolver no homem aquilo que eacute proacuteprio de sua natureza Ao estimular uma compreensatildeo
criacutetica da realidade distanciando-se de vieses poliacuteticos religiosos e da ignoracircncia busca-se
estabelecer um agir definido pela eacutetica e natildeo pela moral pelas normas pelas convenccedilotildees
Cabe ao saacutebio a partir de si mesmo e de seu entendimento sobre a realidade e sobre o sentido
natural de sua existecircncia definir uma conduta virtuosa A pragmateiacutea vai permitir desenvolver
nele os instrumentos para a conquista de sua autonomia e para uma praacutexis orientada para a
realizaccedilatildeo de um modelo metafiacutesico de equiliacutebrio que o saacutebio encontra quando investiga a
phyacutesis e medita sobre os deuses vivendo felizes serenos sem causar perturbaccedilatildeo nem serem
perturbados E esse ideal eacute postulado como possiacutevel porque na concepccedilatildeo epicurista eacute pelo
desconhecimento sobre os bens que conduzem a uma vida feliz que os limites satildeo
transbordados e a liberdade se converte em crimes e a alma se perturba Afinal ldquonatildeo eacute a
necessidade natural que impulsiona o homem a cometer injusticcedila mas o desejo ligado agrave
opiniatildeo vaziardquo (ESTOBEU Florileacutegio XVII 35)36 Assim a liberdade pensada a partir de
uma vontade esclarecida da modulaccedilatildeo dos desejos e da emancipaccedilatildeo com relaccedilatildeo agraves
opiniotildees vazias implica em assimilar agrave praacutexis do saacutebio uma praacutetica das virtudes conforme a
natureza Isso pois
35 Esse fragmento eacute de Estobeu mas remete muito bem para a ideia da possibilidade que o saacutebio tem para governar os proacuteprios desejos A traduccedilatildeo eacute de Anna Lia Amaral Prado Extraiacutedo do vol I da coleccedilatildeo Os Pensadores Preacute-Socraacuteticos Satildeo Paulo Nova Cultural 1996 36 Apud RODIS-LEWIS Geneviegraveve Eacutepicure et son Eacutecole Paris Gallimar 1975 P 241
127 Natildeo se pode levar uma vida agradaacutevel se natildeo se vive com sabedoria moderaccedilatildeo e justiccedila nem se pode levar uma vida saacutebia moderada e justa se natildeo se vive agradavelmente As formas de excelecircncias satildeo concomitantes com a vida agradaacutevel e inseparaacutevel delas (DL X 132)37
A partir dessa passagem coloca-se claramente a correlaccedilatildeo entre as areteacutes e a
finalidade do modo de viver buscado pelo saacutebio a vida prazerosa (zecircn hedeacuteos) Eacute no contexto
desse viacutenculo que Epicuro pensa a liberdade natildeo enquanto questatildeo poliacutetica como construccedilatildeo
social na poacutelis o que remete para o circunstancial em funccedilatildeo do tempo e do lugar mas a
partir de uma ancoragem mais universal
Isso natildeo quer dizer que o saacutebio vai se insurgir contra toda forma de convenccedilatildeo
(noacutemos) e negar o valor da participaccedilatildeo poliacutetica nem que vaacute propor desobediecircncia agraves normas
Se o sophoacutes declina de participar da vida poliacutetica (DL X 119) salvo quando haacute motivo para
o contraacuterio eacute porque percebe nesse campo a impossibilidade de harmonizar o caraacuteter agonal
conflituoso caracteriacutestico da vida na poacutelis sem haver uma assujeiccedilatildeo agraves convenccedilotildees e agraves leis
E isso estaacute diretamente associado agrave limitaccedilatildeo do exerciacutecio da liberdade Aleacutem disso o saacutebio
tem sua conduta orientada por um sentido de justiccedila ligado ao seu proacuteprio estado de
equiliacutebrio Ele natildeo seraacute tirano (DL X 119) nem cometeraacute injusticcedila porque ldquoa vida do homem
justo eacute totalmente imune a perturbaccedilotildees interiores mas a do homem injusto eacute repleta de
inquietuderdquo (DL X 144)38 Em outros termos ele age a partir de uma motivaccedilatildeo eacutetica cujo
princiacutepio ele traz consigo e projeta em uma praacutexis que se realiza sem a necessidade de ser
orientada por formas impositivas
Ao buscar um fundamento mais universal para guiar as accedilotildees Epicuro trabalha a
noccedilatildeo de liberdade a partir de um movimento de aproximaccedilatildeo entre o homem e a phyacutesis
Quando se dedica agrave physiologiacutea Epicuro tem como foco perscrutar a natureza humana para
resolver os problemas ligados ao exerciacutecio de uma vida bem realizada A eleutheriacutea portanto
natildeo prescinde da physiologiacutea porque para compreender as naturezas dos homens (taacutes phyacuteseis
totilden anthroacutepon)39 eacute preciso vecirc-las tambeacutem como parte da natureza do todo de onde satildeo
inteligidas finalidades e modelos de conduta O todo (tograve pacircn) eacute phyacutesis e o aacutenthropos tambeacutem
eacute entatildeo quanto mais se investiga a natureza mais eacute possiacutevel pensar os limites e as
possibilidades de liberdade relacionadas ao agir do homem A physiologiacutea permite postular a
ideia de que a natureza eacute a mesma para todos e portanto o prazer compreendido como teacutelos
37 Οὐκ ἔστιν ἡδέως ζῆν ἄνευ τοῦ φρονίμως καὶ καλῶς καὶ δικαίως ltοὐδὲ φρονίμως καὶ καλῶς καὶ δικαίωςgt ἄνευ τοῦ ἡδέως συμπεφύκασι γὰρ αἱ ἀρεταὶ τῷ ζῆν ἡδέως καὶ τὸ ζῆν ἡδέως τούτων ἐστὶν ἀχώριστον 38 Ὁ δίκαιος ἀταρακτότατος ὁ δrsquo ἄδικος πλείστης ταραχῆς γέμων 39 τὰς φύσεις τῶν ἀνθρώπων (DL X 75)
128 natural diz respeito a todos os homens Decorre desse entendimento que a praacutexis estabelecida
pelo saacutebio tendo em vista realizar essa finalidade vai se dar como um permanente exerciacutecio
eacutetico de espelhamento da natureza Mas isso soacute eacute possiacutevel porque
() para Epicuro a natureza eacute a fonte ou o princiacutepio da vida fiacutesica psiacutequica e eacutetica Pois ela revela ao pensamento em si indiacutecios que tornam possiacutevel a medida de realizaccedilatildeo de cada coisa e dentre elas do proacuteprio homem que emerge em seu proacuteprio seio e tem a necessidade de viver de acordo com ela (katagrave phyacutesin) (SILVA 2003 p 23)
O homem como ser da natureza percebe dentro dele um sentido harmocircnico uma
disposiccedilatildeo para experimentar o prazer quando vive equilibradamente Eacute assim natildeo por obra de
alguma forccedila providencial mas como expressatildeo do modo natural que cada ser tem de se
realizar A funccedilatildeo da filosofia eacute fazer com que por meio de uma praacutetica de pensamento e de
comportamentos o homem se reencontre com esse sentido e procure estendecirc-lo para seu
modo de viver A praacutexis nesse contexto tem papel importante com exerciacutecio de
espelhamento dessa natureza no campo do agir social por isso ela nos remete para um modelo
de accedilatildeo voltado para a realizaccedilatildeo de uma vida equilibrada
A praacutexis epicurista projeta uma compreensatildeo da realidade physioloacutegica na realidade
histoacuterica sob a forma de um exerciacutecio contiacutenuo de liberdade O entendimento a respeito dos
limites verificados na natureza e a relaccedilatildeo deles com o modo como se vive satildeo fundamentais
para definir um eacutethos que leve o homem agrave sua realizaccedilatildeo mais autecircntica ou seja aquela
construiacuteda a partir de sua liberdade e conforme um delineamento natural Procurar viver a
eleutheriacutea dentro desses limites eacute o que direciona a praacutexis do saacutebio para a realizaccedilatildeo da zecircn
hedeacuteos Se por um lado a opiniatildeo eacute insaciaacutevel por outro a natureza eacute faacutecil de satisfazer
enquanto aquela aprisiona esta pode conduzir agrave libertaccedilatildeo
No capiacutetulo anterior falamos da autarquia sob a perspectiva de uma libertaccedilatildeo de O
asseacutedio dos desejos e a influecircncia das opiniotildees vazias e das proacuteprias paixotildees foram
interpretados como formas de mitigar o poder de agir a partir de si mesmo E a autaacuterkeia foi
compreendida sob a perspectiva de um exerciacutecio de vida fundamentado na capacidade de
deliberar a partir de uma vontade esclarecida e do conhecimento a respeito da natureza O
homem autaacuterkes age por si mesmo na medida em que consegue libertar a alma dos loacutegoi que
aprisionam Isso estaacute relacionado agrave retomada de um autodomiacutenio (enkraacuteteia) Mas essa
libertaccedilatildeo de opiniotildees opressivas vazias e apartadas na natureza embora seja aspecto
fundamental para o exerciacutecio da liberdade estaacute como estamos procurando mostrar neste
capiacutetulo intimamente ligada a outro tipo de libertaccedilatildeo exercitada pela praacutexis epicurista
129 Para deixar mais claro ocorre que quanto mais o homem eacute guiado pela phroacutenesis pelo
logismoacutes e pelo saber acerca da natureza mais ele passa a exercer um poder de governar a si
mesmo e experimentar uma liberdade para comandar a proacutepria vida A praacutexis remete
justamente para essa extensividade entre um homem autaacuterkes40 aquele que age a partir do
proacuteprio pensar e o homem autarcheacutes aquele que exprime por meio de sua praacutexis a liberdade
para conduzir sua maneira de viver Quem eacute autarcheacutes comanda dirige conduz reina e pode
ldquorir e em conjunto filosofar e governar sua casa e usar todas as outras coisas que nos satildeo
proacuteprias e de modo algum fazer cessar as vozes que vecircm da reta filosofia em se afastando
delasrdquo (SV 41)41 Com isso Epicuro estaacute querendo dizer que o exerciacutecio filosoacutefico vem
acompanhado de um sentimento agradaacutevel porque quando se ouve a natureza por meio da
investigaccedilatildeo physioloacutegica faz-se calar os loacutegoi vazios que impediam a felicidade e limitavam
o poder que o proacuteprio homem tem para construir sua realizaccedilatildeo O saacutebio dessa forma estaacute
experimentando um prazer ligado agrave liberdade de poder pensar e agir tendo em vista governar
sua alma e sua casa Assim ser feliz diz respeito a um exerciacutecio de libertaccedilatildeo dos noacutes
culturais e de liberdade para realizar uma vida prazerosa
Eacute importante destacar isso ao tratarmos da praacutexis epicurista pois haacute uma tendecircncia
acentuada para pensar a filosofia de Epicuro como centrada em uma liberdade interior
expressa a partir da noccedilatildeo de autaacuterkeia esquecendo-se de inter-relacionar isso com a conduta
do saacutebio enquanto ser social e histoacuterico o que destacaria o distanciamento do sophoacutes das
questotildees poliacuteticas de seu tempo Mas a accedilatildeo dele ocorre no mundo e sua praacutexis tem efeitos
exteriores Se o cultivo dessa liberdade interior aparece como uma reaccedilatildeo ante a
impossibilidade de liberdade poliacutetica caracteriacutestica da tirania de Alexandre eacute preciso
contudo sublinhar que ela natildeo estaacute desvinculada da liberdade para mesmo em tempo de
desmesuras estabelecer um modo de viver equilibrado Para aleacutem da alma a liberdade do
saacutebio se estende como praacutexis para o Jardim e outras formas de vida comunitaacuteria Afinal ele
escolhe em funccedilatildeo da proacutepria realizaccedilatildeo mas essas escolhas acontecem em meio ao conviacutevio
com outros nas relaccedilotildees entre afetos e desafetos
Eacute em torno da compreensatildeo de que a felicidade depende de um modo de viver do qual
ele eacute responsaacutevel que o homem deve procurar fazer de cada accedilatildeo um exerciacutecio de sabedoria E
isso se reflete em postular e estabelecer praacuteticas voltadas para uma vida mais natural mais
autecircntica A filosofia enquanto teacutechne implica em uma utilizaccedilatildeo desse saber para
40 Ver nota 95 do caacutepiacutetulo I 41 Γελᾶν ἅμα δεῖ καὶ φιλοσοφεῖν καὶ οἰκονομεῖν καὶ τοῖς λοιποῖς οἰκειώμασι χρῆσθαι καὶ μηδαμῇ λήγειν τὰς ἐκ τῆς ὀρθῆς φιλοσοφίας φωνὰς ἀφιέντας
130 experimentar bem-estar (eustaacutetheia) mesmo vivendo na poacutelis conturbada quando natildeo eacute
possiacutevel estar no Jardim O saacutebio age a partir de si mesmo e para si mesmo para realizar seu
equiliacutebrio Mas isso natildeo implica em accedilotildees egoiacutestas o que seria incompatiacutevel com a noccedilatildeo de
sabedoria e de philiacutea postuladas pelo epicurismo Afinal o sophoacutes procura fazer de sua praacutexis
um exemplo e por isso ldquovenerar o saacutebio eacute um grande bem para quem venerardquo (SV 32)42 A
accedilatildeo visando a si mesmo eacute aquela voltada para desenvolver a proacutepria harmonia Assim ao
observarmos a maneira como ele faz do seu eacutethos uma atividade (eneacutergema)43 orientada para
o equiliacutebrio percebemos essa aproximaccedilatildeo com um sentido mais natural de existir
Nesse panorama podemos entender que a filosofia de Epicuro natildeo eacute elaborada tendo
em vista querer transformar o mundo mas a maneira como o saacutebio se relaciona com ele A
praacutexis natildeo visa o cidadatildeodemocracia da poacutelis mas o homem realizando sua naturalidade
liberto de perturbaccedilotildees imposiccedilotildees repressotildees alheamentos Tanto quanto a meditaccedilatildeo
liberta das opiniotildees vazias a praacutexis exercita essa libertaccedilatildeo para vir a ser em torno da proacutepria
felicidade
Isso pode nos fazer pensar a filosofia epicurista sob um aspecto antropoloacutegico Ao
buscar colocar o homem em posse do poder de fazer de agir de transformar a forma de
compreender a realidade e a maneira de vivecirc-la ela permite uma concepccedilatildeo do homem sob
outro olhar onde o seu eacutethos se daacute em torno de si mesmo da proacutepria realizaccedilatildeo e natildeo mais
em torno da construccedilatildeo da poacutelis e dos valores que ela legitima Isso nos permite entender o
sentido dessa liberdade que o saacutebio constroacutei por meio de sua praacutexis A filosofia epicurista
projeta o sophoacutes como dono das proacuteprias vontades senhor das proacuteprias decisotildees e isso
remete agrave liberdade para poder se afastar da poacutelis para estabelecer amizades autecircnticas para
fazer da vida um exerciacutecio filosoacutefico para a convivecircncia no Jardim para estabelecer um
modo autentico de viver Satildeo esses aspectos que vamos destacar adiante
34 ndash Da poacutelis ao Kecircpos
A sociedade grega desenvolveu como forma de organizaccedilatildeo a sociedade-estado Nela
as aspiraccedilotildees os valores orbitam sobre temas como democracia coletividade poliacutetica Essas
preocupaccedilotildees movem a cidade e despertam a atenccedilatildeo e as investigaccedilotildees filosoacuteficas em torno
do ldquoanimal poliacuteticordquo O espaccedilo puacuteblico eacute privilegiado em relaccedilatildeo ao acircmbito do pessoal do
42 Ὁ τοῦ σοφοῦ σεβασμὸς ἀγαθὸν μέγα τῷ σεβομένῳ ἐστί 43 DL X 37
131 privado As questotildees ligadas ao homem buscam soluccedilatildeo no contexto das relaccedilotildees na poacutelis Na
democracia o interesse estaacute na consecuccedilatildeo do bem-estar coletivo e na realizaccedilatildeo das virtudes
que o homem precisa desenvolver para viver na cidade
Mas agrave eacutepoca de Epicuro o mundo grego vive um tempo de turbulecircncias e tirania44
Apoacutes a tomada do poder45 pelo rei Felipe da Macedocircnia a Greacutecia perde seu espaccedilo de
participaccedilatildeo democraacutetica Agrave nova configuraccedilatildeo poliacutetica marcada pelo autoritarismo e
centralizaccedilatildeo corresponde o esvaziamento da aacutegora a decadecircncia da poacutelis enquanto espaccedilo
de expressatildeo de autonomia liberdade e participaccedilatildeo poliacutetica Estamos diante do helenismo46
um periacuteodo marcado pela expansatildeo e imposiccedilatildeo da cultura grega agraves regiotildees conquistadas pelo
impeacuterio de Alexandre Magno
Esse contexto vai fazer emergir a demanda de um novo filosofar afinal ldquoeacute inegaacutevel
que as filosofias da eacutepoca heleniacutestica surgem de uma terriacutevel crise social histoacuterica mas a
filosofia eacute sempre produto de uma criserdquo (GUAL 1985 p 11) Se antes os pensadores se
voltavam para o problema da preparaccedilatildeo e participaccedilatildeo na vida poliacutetica tentando estabelecer
normas universais para a conduta humana uma vez que essa participaccedilatildeo fica esvaziada a
preocupaccedilatildeo filosoacutefica se altera Diante de uma Greacutecia politicamente degradada o desafio natildeo
eacute mais governar a poacutelis mas governar a si mesmo de forma que as accedilotildees conduzam agrave
realizaccedilatildeo da proacutepria felicidade O helenismo traz a necessidade de se questionar como diante
de uma realidade histoacuterica que afunda o homem em uma profunda crise existencial e lhe
transforma as necessidades eacute possiacutevel pensar uma eacutetica como caminho para a realizaccedilatildeo de
uma vida feliz (makariacuteos zecircn) e da liberdade (eleutheriacutea) Afinal ldquoo que interessaraacute aos
pensadores do periacuteodo seraacute antes de tudo a experiecircncia que algueacutem pode ter da liberdade ou
da felicidade e sobretudo de sua efetivaccedilatildeo praacuteticardquo (PAULA 2014 p 45) Somente com o
esgotamento desse ideal de sociedade que culmina com a dominaccedilatildeo macedocircnica eacute que a
eacutetica da virtude do bem comum da busca pela realizaccedilatildeo do homem ciacutevico e outras
aspiraccedilotildees vatildeo perdendo importacircncia para aquilo que eacute privado particular aquilo que eacute da
ordem da interioridade
Epicuro natildeo pocircde testemunhar essa experiecircncia de democracia grega que se tornou
referecircncia para o mundo ateacute hoje ressalvadas as particularidades de natildeo se tratar de uma
44 ldquoLa filosoffa de Epicuro es una filosofia de la crisis Nacida em tiempos de crisis y para hombres que viven su vida y la de los demaacutes en la crisisrdquo (MAYOR 1987 p 87) 45 Em 338 aC o rei Felipe da Macedocircnia daacute iniacutecio a uma campanha expansionista e uma a uma comeccedilando pelo Norte vai conquistando as cidades gregas 46 Essa terminologia foi estabelecida no trabalho do historiador alematildeo Droysen em 1833 no livro Histoire drsquoAlexandre Droysen se posicionava ldquosobretudo no ponto de vista poliacuteticordquo (FESTUGIEgraveRE 1985 p XXI)
132 democracia universalizada Mas pocircde sentir a tirania se acentuar principalmente apoacutes a morte
de Alexandre quando o impeacuterio conquistado foi disputado por seus generais Por tudo isso
para Epicuro natildeo haacute nem a possibilidade nem a necessidade de retomar os tempos antigos
para poder fundar seu projeto filosoacutefico Sua preocupaccedilatildeo eacute com o homem com a realizaccedilatildeo
dele independentemente de estar em tempos adversos Seu escopo eacute pensar como poder
estabelecer um modo agradaacutevel de viver Eacute diante desse quadro histoacuterico cultural e filosoacutefico
que se verifica no epicurismo uma oposiccedilatildeo ao desejo de universalizaccedilatildeo da poliacutetica para gerir
o conviacutevio social A perspectiva pretendida vai em sentido contraacuterio de pautar a vida a partir
de uma sociedade minuacutescula fora dos domiacutenios de Atenas Trata-se de um universo de
convivecircncia fundamentado na philiacutea na afetividade no acordo do modo de pensamento
341 ndash Laacutethe biocircsas
Na praacutexis epicurista a vida distanciada da poacutelis eacute exortada Quando escolheu fundar
seu Jardim fora dos muros da cidade foi para viver afastado da tirania das multidotildees do
barulho das opiniotildees vazias e de uma cultura ligada a valores artificiais como a riqueza o
poder a fama coisas incompatiacuteveis com seu projeto de uma existecircncia equilibrada e feliz
Para ele a vida na poacutelis eacute apartada de um sentido natural o que dificulta o homem de
experimentar a ataraxiacutea a autaacuterkeia de exercer a liberdade necessaacuteria para a realizaccedilatildeo de
uma existecircncia plena Daiacute Epicuro aconselhar a Piacutetocles ldquoalccedila tua vela amigo e foge de toda
cultura seja ela qual forrdquo (DL X 6)47 Veja com isso que Epicuro tambeacutem estaacute colocando a
necessidade de se afastar da vida puacuteblica de viver ignorado Pois a poliacutetica para ele eacute fonte de
perturbaccedilatildeo de embates ligados agrave construccedilatildeo da poacutelis e das relaccedilotildees nomoteacuteticas nela
estabelecidas
Ora o foco do epicurismo natildeo eacute a cidade eacute o saacutebio O interesse eacute pensar formas de
convivecircncia gerenciadas pela eacutetica e natildeo pela poliacutetica Daiacute ecoarem no epicurismo os lemas
ldquovive ignoradordquo (laacutethe biocircsas) ldquoo saacutebio natildeo participaraacute da vida poliacuteticardquo (DL X 119)48 ldquoeacute
preciso liberar-se a si mesmos dos afazeres rotineiros e puacuteblicos (SV 58)49 Por traacutes dessa
posiccedilatildeo estaacute a compreensatildeo de que a eacutetica pode se constituir como o princiacutepio norteador das
relaccedilotildees que vatildeo compor uma nova maneira de agregaccedilatildeo social Trata-se de um
posicionamento criacutetico ao modo como a poliacutetica se configura em seu tempo e natildeo uma
47 Παιδείαν δὲ πᾶσαν μακάριε φεῦγε τἀκάτιον ἀράμενος 48 Πολιτεύσεται ὡς ἐν τῆι πρώτηι Περὶ βίων 49 Ἐκλυτέον ἑαυτοὺς ἐκ τοῦ περὶ τὰ ἐγκύκλια καὶ πολιτικὰ δεσμωτηρίου
133 negaccedilatildeo a ela enquanto noccedilatildeo pensada pela filosofia A questatildeo eacute que a vida poliacutetica na
praacutetica configura-se como ldquouma perturbaccedilatildeo trazida agrave felicidaderdquo (SALEM 1994 p 142)
Contudo
A atividade poliacutetica natildeo eacute de forma alguma proibida ela eacute apenas fortemente desaconselhada ao saacutebio Como ele eacute sempre pragmaacutetico o epicurista natildeo exclui que em certas ocasiotildees haja mais perturbaccedilotildees em recusar que em aceitar provisoriamente alguma responsabilidade poliacutetica (SALEM 1994 p 145)
Epicuro natildeo participa da vida poliacutetica do seu tempo porque seu escopo eacute a realizaccedilatildeo
de um projeto de sophoacutes ligado agrave realizaccedilatildeo de uma vida katagrave phyacutesin Ocorre contudo que
ele natildeo acredita na possibilidade de edificaccedilatildeo de seu modelo de saacutebio nem em estabelecer um
tipo de vida ligada a essa construccedilatildeo dentro dos domiacutenios da cidade Para ele a poacutelis eacute o
ambiente onde tanto a poliacutetica quanto a religiatildeo a cultura e as opiniotildees vazias exercem forte
pressatildeo sobre o homem impondo-lhe uma compreensatildeo de mundo e valores direcionadores
da vontade para o que nem eacute natural nem necessaacuterio nem alcanccedilaacutevel Agindo a partir do que
lhe eacute colocado exogenamente como expectativa o homem abdica do exerciacutecio da proacutepria
liberdade e adia a possibilidade de realizar a si mesmo Nesse sentido a vida na poacutelis para
quem se exercita na sabedoria implica em estar sempre contestando as normas os costumes
as convenccedilotildees colocando em praacutetica a parresiacutea (liberdade de palavra) e anaiacutedeia (falta de
pudor) ou suportar os dissabores as infelicidades a agitaccedilatildeo o que levaria ao exerciacutecio da
apaacutetheia (indiferenccedila) estoica
Mas Epicuro quer exercitar eacute a ataraxiacutea a autaacuterkeia a eleutheriacutea Eacute em torno dessas
noccedilotildees que ele pensa o saacutebio e sua praacutexis E isso remete para um modo de vida simples
pacato sempre buscando minorar as dependecircncias que comprometam a tranquilidade Daiacute a
necessidade de afastamento da poacutelis de sua vida agitada e mediada pela poliacutetica e por valores
estabelecidos fora dos limites da natureza Esse distanciamento eacute a praacutetica de um exerciacutecio
eacutetico voltado para favorecer a vida katagrave phyacutesin Se na poacutelis natildeo eacute possiacutevel encontrar o
ambiente favoraacutevel para o sophoacutes desenvolver sua singularidade entatildeo ele vai escolher o
Jardim Por isso o saacutebio ldquofundaraacute uma escola filosoacutefica mas natildeo para reunir uma multidatildeo
em torno de sirdquo (DL X 120)50 Porque o objetivo natildeo eacute filosofar para os muitos mas atender
uma necessidade de aproximaccedilatildeo com a natureza por meio da realizaccedilatildeo de uma praacutexis cuja
fundamentaccedilatildeo natildeo eacute poliacutetica eacute eacutetica
50 Σχολὴν κατασκευάσειν ἀλλ οὐχ ὥστ ὀχλαγωγῆσαι
134 342 ndash A koinoniacutea
O movimento da filosofia epicurista de afastamento da poacutelis e de escolha pelo Kecircpos51
vai remeter para uma forma de organizaccedilatildeo referida como koinoniacutea52 O termo diz respeito a
uma maneira de associaccedilatildeo social reduzida a um grupo de pessoas que compartilham
afinidades no modo de viver e de pensar Em Epicuro koinoniacutea diz respeito a uma noccedilatildeo de
comunidade onde as relaccedilotildees sociais satildeo orientadas pela ideia de comunidade e de amizade
(philiacutea) Essa concepccedilatildeo de vida comunitaacuteria contrasta com a ideia de coletividade que pode
ser aplicada agrave poacutelis pois viver coletivamente natildeo implica em proximidade na forma do
pensamento nem de valores nem no estabelecimento de viacutenculos afetivos Na cidade as
diferenccedilas os conflitos os desafetos partilham os mesmos espaccedilos ordenados e apaziguados
pelas convenccedilotildees pelas normas Agravequele que natildeo se sente adequado ao pensamento dominante
resta o desconforto e a dificuldade de tentar estabelecer uma vida autecircntica Por isso a noccedilatildeo
de koinoniacutea vai se revelar fundamental para quem como o sophoacutes busca realizar uma praacutexis
voltada para um modo agradaacutevel de vida Essa foi a maneira que Epicuro encontrou de
escapar das constriccedilotildees dos espaccedilos puacuteblicos para pensar ambientes e grupos menores onde a
autaacuterkeia e a eleutheriacutea pudessem ser exercitadas aproximando o homem de seu sentido
natural de existir
Ao refletir sob a coexistecircncia em comunidades agremiaccedilotildees ou outras formas de
pequenas sociedades Epicuro considera que eacute a afinidade no modo de viver e de pensar que
permite realizar um modelo de convivecircncia mais confortaacutevel e natural E isso remete para
outro aspecto ldquoa comunidade (koinoniacutea) de amigos (phiacuteloi) epicuristas se tornou possiacutevel
graccedilas agrave Philiacutea entendida com o princiacutepio de movimento e de accedilatildeordquo (SILVA 2015 p 252)
Ou seja eacute em torno da amizade que Epicuro imagina ser possiacutevel a vida em comum e de
maneira a alcanccedilar um sentimento de acordo (homologiacutea) e equiliacutebrio Dioacutegenes de Œnoanda
nos fornece um testemunho que nos permite imaginar esse projeto epicurista de vida em
comunidade
() todas as coisas seratildeo plenas de justiccedila e de amor muacutetuo e natildeo haveraacute necessidade de fortificaccedilotildees ou de leis e de todas as coisas que noacutes criamos por causa dos outros E quanto ao necessaacuterio proveniente da agricultura como noacutes natildeo teremos escravos nesse tempo uma vez que [noacutes mesmos vamos arar] e cavar e manter os [ e] desviaremos os coacuterregos e assistiremos [] ndash e essas [atividades] seratildeo interrompidas de acordo com a
51 A escola ou o Jardim de Epicuro Ver nota 11 da introduccedilatildeo 52 MC 36 37 38
135 praacutetica contiacutenua e partilhada da filosofia pois os [trabalhos] agriacutecolas nos [forneceratildeo] as coisas das quais nossa natureza tem necessidade (Œno fr 56 I-II)53
Justiccedila e equiliacutebrio satildeo para Epicuro possiacuteveis apenas no contexto de agrupamentos
reduzidos de pessoas reunidas pelo acordo de pensamento No Jardim natildeo satildeo as leis nem o
noacutemos que regula as relaccedilotildees entre os homens Se na cidade isso estaacute ligado ao
estabelecimento de relaccedilotildees de forccedila e poder em koinoniacutea ldquoa justiccedila eacute a mesma para todos
pois representa uma espeacutecie de vantagem reciacuteproca nas relaccedilotildees dos homens uns com os
outrosrdquo (DL X 151)54 Daiacute Epicuro abdicar da convenccedilatildeo da poliacutetica pois postula que as
relaccedilotildees estabelecidas no interior do Jardim satildeo baseadas na conveniecircncia muacutetua (opheacuteleia)
A igualdade (isonomia) eacute regida pelo principio da philiacutea a partir do qual se estabelece um
acordo um pacto (syntheacuteke)55 permitindo uma coexistecircncia equilibrada justa e agradaacutevel
Reflexo disso eacute que Epicuro natildeo fazia distinccedilatildeo no Jardim entre homens livre e escravos e
tambeacutem permitia agraves mulheres participarem como membros da comunidade Esse equiliacutebrio eacute
buscado a partir de uma afinidade do pensar entre pessoas que se percebem e se compreendem
a partir dos mesmos valores Por isso se dizer ldquoum saacutebio soacute pode ser reconhecido por outro
saacutebiordquo56 e ldquonenhum saacutebio eacute mais saacutebio que outrordquo (DL X 119)57
No testemunho de Œnoanda nota-se a disposiccedilatildeo para fazer dessa comunidade de
amigos uma organizaccedilatildeo autossustentaacutevel por meio de um trabalho coletivo tornaacute-la dentro
do possiacutevel autossuficiente e liberta de dependecircncias externas E isso estaacute relacionado com o
exerciacutecio da liberdade Quanto mais exerce sua independecircncia mais livre o homem estaacute para
se organizar a partir de valores eacuteticos O limite do que deve ser produzido eacute dado pela proacutepria
necessidade natildeo sendo buscada a sobrepujanccedila A natureza daacute a medida para as accedilotildees e
define a praacutexis adequada agrave vida em koinoniacutea
Outro aspecto a se destacar eacute que certa vida social passa a ter relevo nesse tipo de
organizaccedilatildeo Perceba-se no relato o destaque dado agrave ldquopraacutetica contiacutenua e partilhada da
filosofiardquo Trata-se daqueles momentos em que os phiacuteloi investigam a phyacutesis para pensar as
53 () toutes choses seront pleines de justice et drsquoamour mutuel e il nrsquoy aura pas besoin de fortifications ou de lois et de toutes ces choses que nous fabriquons agrave cause des autres Et quant au neacutecessaire provenant de lrsquoagriculture comme nous nrsquoaurons pas drsquo[esclaves agrave ce moment] ndash car en effet [nous labourerons nous-mecircmes] et becirccherons et garderons les [et] deacutetournerons les cours drsquoeau et veillerons [] ndash et de telles [activiteacutes] interrompront selon le besoin la pratique continue et partageacutee de la philosophie car les [travaux] agricoles nous [fourniront] les choses dont notre nature a besoin 54 Τὸ δίκαιον τὸ αὐτόmiddot συμφέρον γάρ τι ἦν ἐν τῇ πρὸς ἀλλήλους κοινωνίᾳmiddot 55 MC XX XXIII 56 Us 226 57 Οὐκ εἶναί τε ἕτερον ἑτέρου σοφώτερον
136 questotildees da vida meditam em conjunto sobre a natureza e as finalidades que o homem a partir
dela acredita serem fundamentais para a realizaccedilatildeo da makariacuteos zecircn Nesse sentido no
Jardim o exerciacutecio da filosofia eacute identificado ao exerciacutecio da philiacutea Sendo composta por
pessoas que compartilham um modo de compreensatildeo da realidade e visam um fim de acordo
com a natureza a convivecircncia fortalece os viacutenculos e permite desfrutar do bem que eacute a
amizade e com ela a ataraxiacutea a seguranccedila o prazer a liberdade
343 ndash A philiacutea
O atomismo epicurista vecirc no desvio atocircmico a possibilidade de choques que tanto
podem afastar outros aacutetomos e levar ao desagrupamento de corpos quanto podem resultar na
uniatildeo por afinidade de tamanho e forma dando origem a novos corpos ou resultando em
aumento de aglomerados jaacute existentes Essa mesma analogiacutea tambeacutem norteia a concepccedilatildeo de
Epicuro com relaccedilatildeo agrave philiacutea Eacute em torno da afinidade do compartilhamento dos mesmos
interesses e opiniotildees que os homens se agrupam Isso nos remete para a adoccedilatildeo de um
referencial physioloacutegico para justificar as relaccedilotildees de amizade A philiacutea58 para Epicuro eacute um
fenocircmeno natural que se estabelece meio ao reconhecimento no outro de um acordo no pensar
com relaccedilatildeo agrave compreensatildeo da realidade ao entendimento quanto agrave finalidade da vida e ao
modo como realizaacute-la
Pela primeira vez o princiacutepio que reunia os membros dessa sociedade natildeo era nem religioso nem social nem mesmo poliacutetico Essa palavra [amizade] desde entatildeo designa outro conceito Isso eacute ela exprime uma relaccedilatildeo eacutetica e um comportamento livremente escolhido por homens que se reconhecem iguais e fundam essa igualdade tatildeo somente sobre o fundamento de seu ser individual e de sua comum condiccedilatildeo humana (DIANO 1976)59
Para Epicuro a philiacutea eacute manifestaccedilatildeo da natureza e nisso ele ecoa uma tradiccedilatildeo jaacute
verificada em Empeacutedocles de Agrigento60 Nos versos de sua filosofia traacutegica61 encontramos a
polifonia do pensamento de preacute-socraacuteticos que tentaram explicar a totalidade existente
58 42 48 56 68 76 245 (XL) 261 (XII) 59 DIANO C Eacutepicure la philosophie du plaisir et la socieacuteteacute des amis Conferecircncia reunida em Eacutetudes Philosophiques 1976 n 2 p 173-186 (apud FRAISSE J-Claude PHILIacuteA La notion drsquoamitieacute dans la philosophie antique Paris Vrin 1984 p 288) 60 Segundo doxografia colhida por Dioacutegenes Laeacutercio teria nascido em Agrigento (Aacutecragas) na Siciacutelia e vivido por volta de 484 ndash 424 aC Meacutedico e orador escreveu dois poemas em jocircnico Sobre a Natureza e Purificaccedilotildees Deles poucos fragmentos foram conservados ateacute nossos dias 61 Para Nietzsche uma marca da filosofia de Empeacutedocles eacute o ldquoextraordinaacuterio pessimismo mas um pessimismo ativo e natildeo quietistardquo NIETZSCHE Friedrich Preleccedilotildees sobre a Histoacuteria da Filosofia Os Preacute-Socraacuteticos Satildeo Paulo Nova Cultural Col Os Pensadores P 346-353
137 recorrendo agrave mesma perspectiva imanente que vai influenciar o pensamento epicurista No
poema Sobre a Natureza (perigrave physeos) o fogo de Heraacuteclito a aacutegua de Tales a terra de
Xenoacutefanes e ar de Anaxiacutemenes se encontram como ingredientes que vatildeo constituir a phyacutesis a
partir de um movimento provocado - natildeo por uma inteligecircncia ou por uma divindade62 - mas
por um suceder de forccedilas contraacuterias o Amor e o Oacutedio E isso vai de certa forma moldar
juntamente com a concepccedilatildeo atomiacutestica da realidade a compreensatildeo epicurista a respeito das
relaccedilotildees humanas
Em Empeacutedocles as referecircncias para pensar esse aspecto partem da mitologia que nos
conta que Filotes (Φιλότης) era um ser que personificava a amizade a afeiccedilatildeo a uniatildeo Seu
avesso era Neikoacutes (Νεικός) que experimentava sua existecircncia no sentido contraacuterio
provocando a intriga suscitando o oacutedio causando o afastamento Esses personagens trazem
ateacute noacutes o sentido daquilo que pode se ligar se agrupar ou por outro lado se desfazer se
separar Nesse caminho Filotes e Neikoacutes ou Amor e Oacutedio satildeo pensadas por Empeacutedocles
como forccedilas ou e energias de atraccedilatildeo e repulsatildeo responsaacuteveis pelo movimento dos elementos
constitutivos da realidade Em dado momento eles se agrupam convergem dando origem agrave
diversidade das coisas em outro satildeo apartados desfazendo os enlaces que davam formas aos
que se uniam por afinidade ldquoEstes quatro satildeo tudo o que haacute cada um se entranhando no outro
E ao misturar-se variedade ao mundo dandordquo (KRS 355)63 Essas mudanccedilas de estados se
produzem por alternacircncia dessas duas forccedilas num ciclo que se daacute desde sempre
acompanhando a eternidade desses elementos
Com isso Empeacutedocles postula uma phyacutesis onde natildeo haacute nascimento e morte para as
coisas mas processos de transformaccedilatildeo que geram a partir de unidades ou raiacutezes a
multiplicidade e dessa por separaccedilatildeo volta-se ao uno Dos quatros elementos fundamentais
(aacutegua fogo terra e ar) por combinaccedilatildeo e agrupamento engendrados como dito pela accedilatildeo do
Amor daacute-se a composiccedilatildeo da diversidade do que reside na realidade No sentido inverso pela
forccedila do Oacutedio os compostos se corrompem liberando seus constituintes baacutesicos e permitindo
que voltem a buscar harmonia na philiacutea com outros semelhantes Esse contraste dramaacutetico
embeleza a poesia empedocliana e remete para as questotildees de vivecircncias de amizades e
intrigas de uniotildees e afastamentos de equiliacutebrio e conflitos sobre as quais Epicuro tematiza
Se a philiacutea eacute compreendida como um movimento natural de aproximaccedilatildeo segundo a
afinidade entatildeo a amizade natildeo eacute definida pelas convenccedilotildees nem por modelos sociais
62 Platatildeo Leis X 889 b (DK 31 a 48) 63 KRS 355 (G S Kirk J E Raven M Schofield) Essa traduccedilatildeo consta em KENNY Anthony Uma Nova Histoacuteria da Filosofia Ocidental 2 ed Satildeo Paulo Loyola 2011 Vol I p46
138 organizados Ela pressupotildee liberdade para escolher em funccedilatildeo de uma finalidade que eacute a vida
prazerosa Eacute nas relaccedilotildees estabelecidas a partir de uma vontade livre e sem o interesse de
assenhorar a vontade do outro mas movida por um desejo natural de afinidade e prazer que o
sophoacutes experimenta uma fonte de satisfaccedilatildeo A importacircncia da amizade na filosofia epicurista
estaacute na sua relaccedilatildeo com a realizaccedilatildeo da felicidade do saacutebio Por meio da philiacutea ele edifica
laccedilos que constituem fonte de bem-estar Eis porque ldquodentre as coisas que a sabedoria
proporciona para a felicidade da vida inteira a amizade eacute em muito a maior delasrdquo (SV 13)64
Essa relaccedilatildeo entre amizade e natureza que pode ser verificada nesse estado de bem-
estar ou de equiliacutebrio implica em uma praacutexis orientada pela conveniecircncia muacutetua (opheacuteleia)
pois eacute nela que a amizade tem iniacutecio (SV 23) Esse aspecto quando interpretado a partir da
noccedilatildeo de um utilitarismo negativo aplicado agraves relaccedilotildees pode encetar a equivocada ideia de
um uso explorador do outro o que foge ao escopo eacutetico epicuacutereo marcado pela isonomia e
pela justiccedila Por isso cabe pensar essa conveniecircncia como um interesse autecircntico com relaccedilatildeo
ao amigo e no sentido de ambos obterem proveito reciacuteproco dessa amizade Nesse sentido a
opheacuteleia nos remete para uma concepccedilatildeo de solidariedade de correspondecircncia a partir de
interesses semelhantes e compartilhados Por isso
A philiacutea e a opheacuteleia satildeo fenocircmenos naturais circunscritos ao exerciacutecio da conduta humana poreacutem do ponto de vista epicuacutereo eles soacute se efetivam segundo condiccedilotildees especiacuteficas que natildeo encontramos em meio a qualquer agregado humano A sociabilidade humana enquanto fenocircmeno natural natildeo eacute suficiente para garantir o pleno exerciacutecio da philiacutea e da opheacuteleia (SILVA 2003 p 90)
Se o relacionamento com pessoas que nos levam a experimentar sentimentos de
equiliacutebrio e contentamento eacute uma necessidade natural do homem entatildeo somente vivendo e
filosofando entre amigos eacute possiacutevel realizar uma praacutexis que inscreve a felicidade no modo de
viver do sophoacutes Nesse sentido as escolhas feitas devem ter em mira essa perspectiva A
philiacutea deve ser buscada entre aqueles com quem haja acordo no pensar e possibilidade de
homologiacutea na relaccedilatildeo e afinidade de sentimentos Nesse contexto eacute possiacutevel desenvolver e
compartilhar um loacutegos relacionado a um modo de vida de acordo com a natureza
Meio a isso outro termo ganha importacircncia em todo esse processo asphaacuteleia65
Epicuro usa essa palavra no sentido de seguranccedila proteccedilatildeo confianccedila e se refere agrave
necessidade de ter preservada sua tranquilidade e seu bem-estar Ele lembra que ldquoalguns
homens procuram tornar-se famosos e ilustres pensando que desse modo garantiriam para si
64 Ὧν ἡ σοφία παρασκευάζεται εἰς τὴν τοῦ ὅλου βίου μακαριότητα πολὺ μέγιστόν ἐστιν ἡ τῆς φιλίας κτῆσις 65 MC 7 13 14 28
139 mesmos seguranccedila diante dos homens restantesrdquo (DL X 141 VII)66 E que ldquopara conseguir
seguranccedila em relaccedilatildeo a outros homens a instituiccedilatildeo do poder e da realeza deve ser incluiacuteda
entre os bens conforme a natureza sempre que por meio dessa instituiccedilatildeo os homens possam
obter aquela seguranccedilardquo (DL X 141 VI)67 Ou seja ele ateacute coloca esses modos de obtenccedilatildeo
de seguranccedila como vaacutelidos e necessaacuterios mas para quem vive na cidade meio aos valores e
opiniotildees da poacutelis Mas para quem vive em koinoniacutea no Jardim ou em outra forma de
comunidade fundada sobre o princiacutepio da philiacutea essa seguranccedila resulta de uma postura eacutetica
que perpassa todas essas relaccedilotildees Eacute a amizade que proporciona asphaacuteleia e com isso
tranquilidade e quietude diante do temor relativo a condutas agressivas e violentas Isso eacute
para Epicuro mais importante que outras formas de proteccedilatildeo buscadas pelos homens para
preservar sua paz porque estaacute ligado agrave conveniecircncia muacutetua ao agir guiado pela sabedoria e
dentro dos limites da phyacutesis
O que impede accedilotildees danosas ao outro natildeo eacute a norma mas a convicccedilatildeo de que aquilo
tambeacutem causa mal a quem fez Trata-se de um princiacutepio eacutetico realizado de dentro para fora
da alma para a accedilatildeo Desse modo a conduta do saacutebio eacute modulada e define uma praacutexis que
busca preserva e desenvolve a philiacutea e a vida em comunidade Afinal o exerciacutecio da amizade
estaacute relacionado ao da proacutepria felicidade ldquode todo os bens que a sabedoria proporciona para
produzir a felicidade por toda a vida o maior sem comparaccedilatildeo eacute a conquista da amizaderdquo
(DL X 148 XXVII)68
35 ndash Pragmateiacutea e sabedoria praacutetica
A noccedilatildeo de pragmateiacutea epicurista permite compreender a filosofia como exerciacutecio de
uma sabedoria fundamentada na phyacutesis Isso nos remete para pensar o uso praacutetico de um saber
tendo em vista a realizaccedilatildeo de uma vida feliz (makariacuteos zecircn) O desafio eacute colocar para o
homem um conhecimento que possa ser-lhe uacutetil para essa finalidade eacute apresentar uma
filosofia que aja no loacutegos e encete uma disposiccedilatildeo (diaacutethesis) para lidar com as situaccedilotildees
comuns a partir de um modelo de compreensatildeo da realidade que permita conferir mais
naturalidade ao modo de viver
66 Ἔνδοξοι καὶ περίβλεπτοί τινες ἐβουλήθησαν γενέσθαι τὴν ἐξ ἀνθρώπων ἀσφάλειαν οὕτω νομίζοντες περιποιήσεσθαι ὥστε 67 Ἕνεκα τοῦ θαρρεῖν ἐξ ἀνθρώπων ἦν κατὰ φύσιν ἀρχῆς καὶ βασιλείας ἀγαθόν ἐξ ὧν ἄν ποτε τοῦτο οἷός τrsquo ᾖ παρασκευάζεσθαι 68 Ὧν ἡ σοφία παρασκευάζεται εἰς τὴν τοῦ ὅλου βίου μακαριότητα πολὺ μέγιστόν ἐστιν ἡ τῆς φιλίας κτῆσις
140 Sob essa perspectiva Epicuro confere agrave vida cotidiana estatuto de tema filosoacutefico e
em torno de saber como realizaacute-la de maneira agradaacutevel pensa uma pragmateiacutea orientada
para fazer o homem experimentar um modo de ser voltado para a autaacuterkeia e para o
equiliacutebrio Um exemplo disso pode ser encontrado na proacutepria maneira de viver de Epicuro
Ela pelo que ficamos sabendo pelos testemunhos de Dioacutegenes Laeacutercio eacute a expressatildeo de um
modo de ser desenvolvido em torno da alegria da tranquilidade da simplicidade da amizade
aspectos que remetem para a busca da harmonia da alma e do corpo
() nosso filoacutesofo apresenta testemunhos suficientes de seus sentimentos insuperavelmente bons para com todos a paacutetria que o honrou com estaacutetuas de bronze os amigos cujo nuacutemero era tatildeo grande que natildeo podiam ser contados em cidades inteiras todos aqueles que conviviam intimamente com o filoacutesofo ligados a ele pelo viacutenculo do fasciacutenio de sua doutrina como se fosse uma sereia (DL X 9)69
A vida de Epicuro retratada como uma liccedilatildeo de realizaccedilatildeo de sua proacutepria doutrina daacute-
nos indicativos de que viver segundo um saber filosoacutefico eacute a atividade que caracteriza o modo
de ser do saacutebio E isso natildeo estaacute restrito ao mestre do Jardim amigos e disciacutepulos satildeo
lembrados pelo mesmo motivo Um deles eacute Metrodoro ldquoque foi excelente em tudordquo e ldquose
mostrou imperturbaacutevel ao enfrentar os tormentos e a morterdquo (DL X 23)70 A partir de
exemplos desse tipo pode-se notar a relaccedilatildeo entre a sabedoria e a imperturbabilidade
(ataraxiacutea) o que remete para a questatildeo dos prazeres ligados agrave vida agradaacutevel (zecircn hedeacuteos)
Como jaacute procuramos mostrar os prazeres satildeo fundamentais para a realizaccedilatildeo do homem
poreacutem a felicidade natildeo consiste na repleccedilatildeo de todos os desejos mas somente daqueles
ligados ao bem-estar e ao equiliacutebrio E isso implica na adoccedilatildeo de limites para o desejar pois
uma alma desregrada pelo asseacutedio das vontades natildeo se sossega Essa medida embora tambeacutem
preconizada por outras correntes filosoacuteficas tem em Epicuro particularidades que definem sua
pragmateiacutea
De modo geral haacute uma crenccedila em que a natureza natildeo coloca limitaccedilotildees aos prazeres
Competiria agraves convenccedilotildees dar o pudor e as constriccedilotildees aos impulsos dos homens Por traacutes
dessa perspectiva tem-se a ideia de que a forccedila eacute a lei natural e o mais forte pode dominar e
satisfazer suas vontades em detrimento do mais fraco Dessa maneira quando as normas natildeo
bastam a phyacutesis eacute apontada como justificativa mesma para o desregramento para a imposiccedilatildeo
da violecircncia para o gozo sem comedimento Assim caberia agrave educaccedilatildeo agrave cultura agrave religiatildeo
69 () τῶι γὰρ ἀνδρὶ μάρτυρες ἱκανοὶ τῆς ἀνυπερβλήτου πρὸς πάντας εὐγνωμοσύνης ἥ τε πατρὶς χαλκαῖς εἰκόσι τιμήσασα οἵ τε φίλοι τοσοῦτοι τὸ πλῆθος ὡς μηδ ἂν πόλεσιν ὅλαις μετρεῖσθαι δύνασθαι οἵ τε γνώριμοι πάντες ταῖς δογματικαῖς αὐτοῦ σειρῆσι προσκατασχεθέντες 70 Μαθητὰς δὲ ἔσχε πολλοὺς μέν () ἦν δὲ καὶ ἀκατάπληκτος πρός τε τὰς ὀχλήσεις καὶ τὸν θάνατον
141 agrave poliacutetica ao noacutemos o papel de limitar os impulsos naturais a partir de noccedilotildees de bem ou mal
certo ou errado usadas para legitimar ou proibir as accedilotildees
Mas para Epicuro haacute um equivoco nessa maneira de compreender a natureza A
phyacutesis natildeo eacute fonte de desregramento mas um modelo para pensar justamente as
possibilidades e as interdiccedilotildees para a conduta do homem A concepccedilatildeo ligada agrave necessidade
de satisfazer a todos os desejos e a qualquer custo se fundamenta em opiniatildeo a phyacutesis natildeo
determina nem viacutecios nem virtudes A disposiccedilatildeo para agir tanto para o bem quanto para o
mal decorre da compreensatildeo que temos da natureza e das finalidades inteligidas a partir da
sua investigaccedilatildeo e que relacionamos agrave realizaccedilatildeo do homem Em torno desse entendimento
pode-se estabelecer uma indissociaccedilatildeo entre a pragmateiacutea e a sabedoria elas visam direcionar
o agir para os limites do natural e natildeo do que eacute imposto pela opiniatildeo Assim o saacutebio orienta
sua praacutetica de vida por um saber ligado ao estudo da natureza tanto quanto faz dessa ocupaccedilatildeo
um modo de viver relacionado ao exerciacutecio da proacutepria ataraxiacutea71 Ou seja viver e filosofar
satildeo atividades inseparaacuteveis na pragmateiacutea do sophoacutes que estaacute permanentemente buscando
estabelecer um eacutethos circunscrito agraves finalidades pensadas a partir da sua compreensatildeo da
natureza
Nesse sentido ao contraacuterio do que acontece quando se toma como referecircncia as
opiniotildees natildeo haacute a necessidade de afastar o homem da natureza para ldquodomarrdquo ou calar seus
desejos ldquoNatildeo se deve violentar a natureza mas persuadi-la noacutes a persuadiremos satisfazendo
os desejos naturais e necessaacuterios caso natildeo causem danos mas os que causam danos
refutando-os arduamenterdquo (SV 21)72 Assim quanto mais o saacutebio se dedica agrave investigaccedilatildeo da
phyacutesis mais pode se dar conta de que a desmesura estaacute ligada agrave falsa ideia a respeito do que
proporciona felicidade e que a sabedoria consiste em compreender a natureza dos desejos e
vivecirc-los em funccedilatildeo do equiliacutebrio que podem proporcionar Desse modo o que precisa ser
calado satildeo os discursos (loacutegos) que pensam a realizaccedilatildeo da vida a partir de valores e fins
contraacuterios aos postulados pela physiologiacutea Ao pensar a pragmateiacutea como exerciacutecio de uma
sabedoria dirigida para dar mais naturalidade agrave existecircncia Epicuro projeta a realizaccedilatildeo do
homem em um modo de vida distanciado das opiniotildees que levam a ldquoviolentar a naturezardquo
O sentido praacutetico da filosofia epicurista tem como finalidades a experiecircncia da
autaacuterkeia do equiliacutebrio e do prazer Eacute em torno desse objetivo que a physiologiacutea ao conduzir
71 Em DL X 37 Epicuro relaciona a atividade de investigaccedilatildeo da natureza a um modo de vida calmo tranquilo Ver nota 9 do capiacutetulo I 72 Οὐ βιαστέον τὴν φύσιν ἀλλὰ πειστέονmiddot πείσομεν δὲ τὰς ἀναγ-καίας ἐπιθυμίας ἐκπληροῦντες τάς τε φυσικὰς ἂν μὴ βλάπτωσι τὰς δὲ βλαβερὰς πικρῶς ἐλέγχοντες
142 a uma compreensatildeo sobre os modos de ser da natureza permitindo inteligir a partir disso um
modelo de conduta para o homem vai ser o fundamento para a sabedoria Eacute da phyacutesis que
adveacutem um paradigma a partir do qual eacute possiacutevel pensar uma pragmateiacutea realizaacutevel como
praacutetica de vida condizente com o saber a respeito da natureza Nesse escopo o physiologoacutes
precisa ldquoler nas leis do universo as condiccedilotildees e os limites da felicidade humanardquo (FRAISSE
1984 p 316) e estabelecer um eacutethos conforme essa leitura Como ldquoa natureza eacute o princiacutepio de
nossa limitaccedilatildeo tanto quanto nossa felicidaderdquo (Idem p 319) eacute fundamental ancorar na
compreensatildeo physioloacutegica os valores que vatildeo guiar o modo de ser do saacutebio Isso remete para
a necessidade de uma atividade permanente de espelhamento de uma maneira de entender a
natureza e as finalidades da vida nas condutas do homem O caminho da sabedoria eacute o da
realizaccedilatildeo da pragmateiacutea um exerciacutecio desenvolvido ao longo de toda a vida e que se estende
do modo de pensar agrave maneira de viver Por isso Epicuro diz
Natildeo eacute o jovem que pode ser felicitado mas o anciatildeo que viveu belamente (bem) pois o jovem muacuteltiplo pela plenitude de sua idade comete erros e o anciatildeo como se fosse num porto estaacute ancorado pela velhice depois de ter trancado (fechado) com alegria serena (segura) aqueles dentre os bens antes vistos com desesperanccedila (SV 17)73
Essa vida bela que caracteriza o anciatildeo ou o saacutebio eacute reflexo da disposiccedilatildeo para buscar
os bens que conferem seguranccedila (asphaacuteleia) ao modo de viver A philiacutea a autaacuterkeia a
eleutheriacutea a sabedoria satildeo finalidades que tanto permitem pensar um sentido para a
pragmateiacutea epicurista quanto definem um direcionamento praacutetico para o saber physioloacutegico
Investigar a phyacutesis pensar a partir disso sobre a realidade histoacuterica (poliacutetica religiatildeo cultura
normas etc) que envolve a vida discernir nesse contexto o que pode conferir mais
naturalidade agrave existecircncia e estabelecer praacuteticas que aproximem o homem do seu sentido de
realizaccedilatildeo satildeo atividades que remetem para um meacutetodo de consecuccedilatildeo de sabedoria pensada
para ser possiacutevel exequiacutevel O saacutebio epicurista eacute aquele que valendo-se do que conhece sobre
a phyacutesis pratica uma artesania ou um cuidado sobre si mesmo a partir de exerciacutecios que visam
espelhar na alma essa leitura da natureza Eacute em torno da percepccedilatildeo de que a felicidade
depende de um trabalho sobre si mesmo por meio de meditaccedilatildeo e de praacutexis que Epicuro
concebe toda accedilatildeo dentro dos limites da natureza como um exerciacutecio de sabedoria e faz da
vida feliz a finalidade das accedilotildees do saacutebio Com isso busca-se projetar o paradigma da
natureza na alma e daiacute para o modo de viver
73 Οὐ νέος μακαριστὸς ἀλλὰ γέρων βεβιωκὼς καλῶςmiddot ὁ γὰρ νέος ἀκμῇ πολὺς ὑπὸ τῆς τύχης ἑτεροφρονῶν πλάζεταιmiddot ὁ δὲ γέρων καθάπερ ἐν λιμένι τῷ γήρᾳ καθώρμικεν τὰ πρότερον δυσελπιστούμενα τῶν ἀγαθῶν ἀσφαλεῖ κατακλείσας χάριτι
143 Vemos que a conduta do saacutebio eacute construiacuteda em torno de um pensamento eacutetico
fundamentado na natureza Isso ao mesmo tempo em que nos remete para pensar a felicidade
como uma finalidade inscrita no campo do imanente tambeacutem coloca diante do homem a
responsabilidade pela realizaccedilatildeo de uma vida coerente com esse teacutelos Se a physiologiacutea
permite uma leitura da natureza em que ele meio agrave necessidade e ao acaso pode compreender
o poder que tem para recusar o papel de conformado e temeroso e escolher o protagonismo de
sua proacutepria histoacuteria a pragmateiacutea vai colocar em exerciacutecio essa forma physioloacutegica
compreensatildeo da vida resultando em uma accedilatildeo livre e autecircntica E isso mesmo em um
contexto de tirania da impossibilidade de participar da vida poliacutetica ou outras formas de
interdiccedilotildees ou repressotildees que podem afetar a vida do homem Assim
() o saacutebio eacute aquele que age sempre a partir do seu poder de escolha e rejeiccedilatildeo e jamais de sujeiccedilatildeo Sua referecircncia uacutenica eacute a compreensatildeo dos limites e das possibilidades da natureza-realidade na qual vive e exercita-se na realizaccedilatildeo de uma vida apraziacutevel em cada ato ou deliberaccedilatildeo que dele dependa (SILVA 2003 p 87)
Para Epicuro a eacutetica eacute um principio que o saacutebio desenvolve dentro de si mesmo ela eacute
da ordem do indiviacuteduo e pode ser cultivada a despeito de modelos socialmente colocados para
todos Para ele o saacutebio deve buscar realizar uma existecircncia eacutetica e para isso toda conduta
precisa se configurar como accedilatildeo cujo princiacutepio estaacute em quem age eacute atitude gerada segundo a
autaacuterkeia guiada pela vontade esclarecida liberta coerente com a proacutepria compreensatildeo
acerca da realidade Trata-se de estabelecer um comportamento visando os fins de acordo com
a natureza e natildeo mais procurando ser a expressatildeo dos valores cristalizados pelas opiniotildees
vazias pela religiatildeo pelas convenccedilotildees da poacutelis Epicuro entende que a vida natildeo precisa mais
ser pensada como projeto ligado ao miacutetico-religioso ela eacute concebida como fenocircmeno da
phyacutesis A partir dessa compreensatildeo o saacutebio relaciona o que pode ser vivido agrave noccedilatildeo de
construccedilatildeo de criaccedilatildeo de elaboraccedilatildeo de um eacutethos definido por escolhas voltadas para o
agradaacutevel para a vida frugal e entre amigos
351 ndash Saber para a vida
Epicuro exorta agrave praacutetica filosoacutefica mas natildeo como manifestaccedilatildeo de erudiccedilatildeo nem nos
moldes de uma disciplina preocupada com a sophiacutea procurando a aleacutetheia ou conduzindo a
uma episteme No Jardim filosofar consiste em direcionar continuamente o pensamento para
o exame da vida que se coloca diante dos sentidos Busca-se ensinar uma maneira de pensar a
144 realidade sem ter de recorrer agraves crenccedilas aos mitos agraves opiniotildees vazias agraves explicaccedilotildees
concebidas fora do campo das experiecircncias humanas Afinal entende-se que a liberdade da
imaginaccedilatildeo aliada agrave retoacuterica e agrave insatisfaccedilatildeo quanto agraves respostas sobre o sentido da vida datildeo
asas para um loacutegos que se lanccedila em um vocirco para aleacutem dos limites da phyacutesis Nos mitos
projetam-se causas finalidades e uma realidade concebiacutevel mas inelutaacutevel para o homem
sujeito agraves normas aos modelos de virtudes e agraves expectativas de conduta que lhe privam de um
sentido autecircntico de realizaccedilatildeo Desse modo ele tem a alma adoecida pelo medo pelo
desequiliacutebrio pela imposiccedilatildeo da submissatildeo males que afastam a felicidade Se mesmo nos
momentos adversos Epicuro pratica a alegria ao relembrar momentos felizes eacute porque soube
contrapor a esse loacutegos que adoece aprisiona assenhora despotencializa outro que partindo
de uma investigaccedilatildeo da phyacutesis busca a realizaccedilatildeo humana dentro daquilo que a natureza
circunscreve Eacute esse sentido de buscar realizar uma vida saacutebia que vai definir os contornos da
pragmateiacutea epicurista
No passo 35 da Carta a Heroacutedoto o termo pragmateiacutea74 tem sido traduzido como
sistema (CURY 2008 CONCHE 1977)75 ou como o conjunto dos escritos de Epicuro
(SOLOVINE 1965 SALEM1982)76 Em ambos os casos faz-se referecircncia a uma doutrina a
um corpus de conhecimento ligado agrave compreensatildeo da natureza Mas essa perspectiva parece-
nos malgrado as limitaccedilotildees impostas agraves traduccedilotildees bem aqueacutem de expressar o conjunto de
inter-relaccedilotildees entre conhecimento (gnoacutesis) physiologiacutea eacutetica sabedoria e exerciacutecios (aacuteskesis)
estabelecidas na dinacircmica de realizaccedilatildeo de uma vida de acordo com a natureza como estamos
tentado mostrar nesse trabalho Por isso cabe pensar um sentido mais amplo e adequado para
o termo de maneira a poder traduzir o escopo da filosofia epicurista
Quando observamos a etimologia da palavra verificamos que o termo pragmateiacutea77
pode tambeacutem se referir agrave maneira como tratamos de algo ao cuidado que dedicamos ao fazer
alguma coisa Isso leva em conta a busca pela realizaccedilatildeo de um objetivo para o qual eacute preciso
se ocupar se aplicar Nesse sentido o termo remete para a procura por alcanccedilar uma
finalidade e tambeacutem pode fazer referecircncia a afazeres78 atividades praacuteticas Esse
enquadramento mais abrangente possibilita pensar a filosofia do Jardim sob uma perspectiva
74 DL X 35 77 83 Πραγματεία 75 Ver nota 30 da introduccedilatildeo 76 Maurice Solovine traduz como ldquotudo o que o que eu (Epicuro) escrevi sobre a naturezardquo em Eacutepicure doutrines et maximes Paris Hermann 1965 Jean Salem usa a expressatildeo ldquotoda a mateacuteria (assunto)rdquo em Epicure lettres Paris Nathan 1982 77 Anatole Bailly Op Cit 78 The Online Liddell-Scott-Jones Greek-English Lexicon (httpstephanustlguciedulsjeid=1 acessado em 13 de fevereiro 2019)
145 mais orgacircnica A relaccedilatildeo que se estabelece entre a vida feliz e o cuidado de si entre a
investigaccedilatildeo da natureza e o exerciacutecio da ataraxiacutea entre libertar a alma das opiniotildees vazias e
praticar a frugalidade entre os limites da phyacutesis e a repleccedilatildeo dos desejos naturais permite
inferir um saber que se efetiva justamente como aacuteskesis Eacute a isso que a pragmateiacutea se refere e
como tal procura ser realizada pelo saacutebio
O saber passiacutevel de ser colocado em praacutetica para fazer da vida um exerciacutecio de
contentamento vai ser o constituinte da pragmateiacutea Para o saacutebio poder agir de uma maneira
sensata a partir da phroacutenesis e do logismoacutes e fazer as escolhas e as recusas necessaacuterias para o
seu bem-estar eacute necessaacuterio um conhecimento (gnoacutesis) que lhe permita compreender as
finalidades e os bens relacionados ao gozo de uma existecircncia mais equilibrada
Evidentemente nem sempre eacute possiacutevel uma accedilatildeo racional diante de todas as situaccedilotildees mas o
agir consciente esclarecido vai caracterizar a conduta do saacutebio Por isso quanto mais ele
conhece os modos de ser da phyacutesis mais ele passa a compreender aquilo que estaacute relacionado
a um modo de vida natural e mais ele pode orientar sua conduta para esse teacutelos O
conhecimento sobre a natureza se traduz em um saber para a vida na medida em que eacute a partir
dessa investigaccedilatildeo que o saacutebio vai poder meditar e estabelecer uma praacutexis direcionada para
uma aproximaccedilatildeo com a natureza Assim a physiologiacutea se identifica com a pragmateiacutea na
medida em que busca apresentar um conhecimento que sirva para fazer da vida do homem um
exerciacutecio de autorrealizaccedilatildeo Nesses termos poder-se-ia falar de um discurso sapiencial onde
o conhecimento se converte em uma disposiccedilatildeo para a praacutetica de uma maneira saacutebia de viver
Nessa perspectiva podemos assinalar o papel da filosofia como sendo o de procurar
descortinar a phyacutesis ateacute onde o pensamento humano alcanccedila conduzindo a um saber que
permita ao homem a tranquilidade diante daquilo que eacute fenomecircnico e a confianccedila (piacutestis)
diante do que pode ser por ele realizado O saacutebio ao entender que a makariacuteos zecircn eacute construiacuteda
na imanecircncia por meio de exerciacutecios permanentes voltados para realizar uma vida katagrave
phyacutesin passa a confiar na possibilidade de ele mesmo ser responsaacutevel por estabelecer os
procedimentos que possam fazecirc-lo experimentar o sentido de uma existecircncia mais plena
Assim
() longe de se limitar a designar uma certeza epistecircmica no estudo dos fenocircmenos fiacutesicos essa piacutestis essa feacute exprime entre outras coisas a seguranccedila que confere ao saacutebio o alegre saber do qual ele goza no instante presente () A ldquofalta de certezardquo (apistiacutea) coloca ao contraacuterio os insensatos ldquona confusatildeo e na incapacidade de ir adianterdquo (SALEM 1994 p 60)
146 Essa atenccedilatildeo dada agrave compreensatildeo da phyacutesis como o ldquoterrenordquo onde a vida feliz pode
ser realizada estaacute ligada agrave necessidade de seguranccedila (asphaacuteleia) Uma referecircncia disso
encontramos na Sentenccedila Vaticana 57 onde se diz que ldquopor causa da incerteza sua vida
inteira seraacute levada agrave confusatildeo e jogada por terrardquo79 Se por um lado Epicuro ao dizer isso
parece estar se referindo a questotildees ligadas agrave amizade onde a apistiacutea pode ser remetida ldquoagrave
traiccedilatildeo agrave infidelidade do amigordquo e a piacutestis pode remeter ao caso em que o ldquoamigo ajudaraacute se a
necessidade vierrdquo (BOLLACK 1975 p 520) de qualquer forma ele estaacute relacionando a
confianccedila ao modo de vida do saacutebio pois natildeo haacute como pensar a tranquilidade o equiliacutebrio a
alegria se a alma estaacute tomada pela inseguranccedila pelo medo pela incerteza seja com relaccedilatildeo
aos outros homens agrave vida em sociedade ou com relaccedilatildeo agraves coisas do ceacuteu A morte os deuses
o aleacutem-vida assim como os acontecimentos que ora se datildeo por necessidade ora por acaso ou
pela accedilatildeo de outrem apontam para a dimensatildeo do desconhecido do imponderaacutevel que
permeia a vida e para o qual devemos estar em condiccedilatildeo de agir com sabedoria Isso implica
em poder recorrer aos ensinamentos physioloacutegicos e aplicaacute-los agraves mais distintas situaccedilotildees
Nesse sentido podemos entender a pragmateiacutea como esse saber que serve para que todos
ldquo() estejam em condiccedilotildees de sustentaacute-los em quaisquer circunstacircnciasrdquo (DL X 35)80 ou
seja que assiste quem precisa se colocar diante do que pode causar apreensatildeo duacutevida
incerteza Essa premecircncia tambeacutem eacute manifesta na Maacutexima 8 onde se fala que natildeo haveria
vantagem em proporcionar seguranccedila com relaccedilatildeo aos afazeres humanos se as coisas do alto
como os fenocircmenos celestes e toda sorte de possibilidade de interpretaccedilotildees que eles suscitam
permanecessem como causas de desassossego
Dessa forma percebemos que a filosofia epicurista eacute elaborada tendo em vista encetar
na alma do saacutebio uma convicccedilatildeo firme (piacutestin beacutebaion) a respeito da natureza como modelo e
espaccedilo para a felicidade do homem E essa convicccedilatildeo estaacute ligada a uma exigecircncia
instrumental pois ldquoaplicando atentamente esta doutrina determinaremos corretamente as
origens da perturbaccedilatildeo e do temor e nos livraremos delesrdquo (DL X 82)81 Eacute preciso aplicar
fazer uso do saber tornaacute-lo praticaacutevel Eacute nesse sentido que a pragmateiacutea pode ser
compreendida como a praacutetica de um saber que orienta a vida em torno de uma eacutetica
fundamentada na physiologiacutea Estamos falando de uma maneira de conduzir o saacutebio a
experimentar no seu vir a ser o sentido daquilo que ele inteligiu ao perquirir a phyacutesis
Investigar meditar e se ocupar por meio de uma praacutexis em estabelecer a partir desse saber
79 ὁ βίος αὐτοῦ πᾶς διrsquo ἀπιστίαν συγχυθήσεται καὶ ἀνακεχαιτισμένος ἔσται 80 () ἵνα παρrsquo ἑκάστους τῶν καιρῶν ἐν τοῖς κυριωτάτοις βοηθεῖν αὑτοῖς δύνωνται 81 ἂν γὰρ τούτοις προσέχωμεν τὸ ὅθεν ὁ τάραχος καὶ ὁ φόβος ἐγίνετο ἐξαιτιολογήσομεν ὀρθῶς καὶ ἀπολύσομεν
147 um modo de ser fundamentado na compreensatildeo de um estado de equiliacutebrio e liberdade
presentes na natureza satildeo atividades que ao mesmo tempo permitem compreender esse
aspecto pragmaacutetico da filosofia e tambeacutem remetem para um conhecimento elaborado tendo
em vista se estender agrave accedilatildeo do saacutebio sobre o mundo e em prol da proacutepria realizaccedilatildeo
Isso nos leva a entender que a pragmateiacutea conduz o sophoacutes a estabelecer com a
natureza e com o saber fundamentado nela uma relaccedilatildeo especiacutefica e fundamental para a
compreensatildeo da filosofia epicurista Ele acredita que a felicidade eacute possiacutevel que ele tem papel
na construccedilatildeo dessa felicidade porque no exerciacutecio de investigar a phyacutesis de orientar seu
modo de viver para uma forma mais natural ele experimenta no dia a dia o equiliacutebrio o
prazer e a liberdade que advecircm de se viver dentro dos limites depreendidos dessa
compreensatildeo da natureza A convicccedilatildeo dele eacute construiacuteda ao exercitar esse conhecimento e
com isso vai percebendo a realizaccedilatildeo de uma vida agradaacutevel na medida em que haacute o
espelhamento desse saber em seu eacutethos E aiacute se verifica o estabelecimento de uma relaccedilatildeo que
natildeo eacute de feacute eacute de confianccedila natildeo eacute adesatildeo a uma concepccedilatildeo fundada nos mitos eacute assimilaccedilatildeo
de um loacutegos fundamentado no imanente Quanto mais ele vive em funccedilatildeo de uma
compreensatildeo ancorada no sensiacutevel mais confia na possibilidade de sua realizaccedilatildeo A
confianccedila ou convicccedilatildeo nesse sentido estaacute ligada agrave percepccedilatildeo de que a vida tem sua
finalidade nela mesma na imanecircncia dos fenocircmenos que a compotildeem e que definem um
sentido para ela e tambeacutem estaacute relacionada agrave compreensatildeo de que a makariacuteos zecircn decorre de
uma postura ativa e protagonista do homem que deve fazer da sua existecircncia um exerciacutecio de
cuidado consigo mesmo
A pragmateiacutea exercitada como teacutechnen tinaacute periacute ton biacuteon enceta a asphaacuteleia que
produz na alma essa disposiccedilatildeo para cada vez mais se distanciar dos mitos das opiniotildees e de
concepccedilotildees que colocam a existecircncia humana como submetida agrave providecircncia ou agrave necessidade
e distante de sua realizaccedilatildeo Se ldquotodo homem sai da vida como se tivesse acabado de nascerrdquo
(SV 60)82 essa brevidade da vida (zecircn) evocada por Epicuro coloca em relevo a premecircncia
de pensar na melhor forma de conduzir nossa realidade histoacuterica A Sentenccedila 7583 sugere que
o tempo pode ser desperdiccedilado e diante da proximidade da morte levar o homem a lamentar
ldquoos bens que passaramrdquo Isso acontece quando se deixa a vida (biacuteos)84 aos sabores da
irracionalidade da desmesura ou quando as vontades ligadas agraves necessidades naturais e
82 Πᾶς ὥσπερ ἄρτι γεγονὼς ἐκ τοῦ ζῆν ἀπέρχεται Preferimos por uma questatildeo de clareza a segunte traduccedilatildeo Tout homme sort de la vie comme srsquoil eacutetait juste neacute (BOLLACK 1975 p 525) 83 Εἰς τὰ παρῳχηκότα ἀγαθὰ ἀχάριστος φωνὴ ἡ λέγουσα τέλος ὅρα μακροῦ βίου Eacute ingrata a voz que diz para os bens que passaram olha o fim de uma vida longa 84 Sobre essa diferenccedila entre zecircn e biacuteos ver nota 150 do capiacutetulo I
148 necessaacuterias satildeo substituiacutedas por desejos artificialmente criados pela cultura da poacutelis Por isso
o saacutebio deve exercitar a confianccedila e a disposiccedilatildeo para transformar a proacutepria existecircncia e viver
segundo seu pensamento
Nessa perspectiva a pragmateiacutea direciona o saacutebio para que medite sobre a natureza
sobre os bens circunscritos aos limites dela e sobre os modos de obtecirc-los Isso implica em
uma praacutexis do pensamento que se estende ateacute o campo das accedilotildees das condutas que estabelece
no mundo e orientam suas relaccedilotildees sociais definindo modos de convivecircncia com os outros A
vida saacutebia eacute definida por esse trabalho essa atividade contiacutenua de procurar sempre
correlacionar os pensamentos e as accedilotildees com um modelo natural de existecircncia Eacute nessa
relaccedilatildeo de aproximaccedilatildeo entre o pensar e a maneira como se viver que a pragmateiacutea nos
aponta para a indissociaccedilatildeo entre o saber physioloacutegico e a eacutetica Ou em temos mais
epicuristas a finalidade da pragmateiacutea eacute fazer com que ldquoo pensamento tendo atingido um
entendimento racional da finalidade do corpo e seus limites e tendo dissipado os temores
relativos agrave eternidade proporcione a vida integralrdquo85 (DL X 145 XX)86
352 - Exerciacutecio eacutetico
No livro VI de Vida e Doutrinas dos Filoacutesofos Ilustres lemos a seguinte passagem
atribuiacuteda a Dioacutegenes de Sinope da escola ciacutenica
Com efeito nada na vida se pode obter sem exerciacutecio e este eacute capaz de sobrepor-se a tudo Eliminados entatildeo os esforccedilos inuacuteteis o homem que escolhe os esforccedilos requeridos pela natureza vive feliz A falta de discernimento para perceber os esforccedilos necessaacuterios eacute a causa da infelicidade humana (DL VI 71)
Essa citaccedilatildeo coloca em relevo uma relaccedilatildeo entre a praacutetica de exerciacutecios e a felicidade
ao mesmo passo em que aponta para a importacircncia da phroacutenesis e do logismoacutes instrumentos
de discernimentos da alma Tal perspectiva tambeacutem se verifica no epicurismo que busca por
meio de uma praacutetica sobre si mesmo o espelhamento na psycheacute de um loacutegos fundamentado na
natureza A aacuteskesis epicurista incide sobre a maneira de pensar e de agir de forma a fazer com
que o saacutebio possa cuidar do seu bem-estar e realizar uma vida bela (kalocircs zecircn) O exerciacutecio de
vida do sophoacutes consiste em uma therapeiacutea para afastar da alma as opiniotildees que adoecem e
85 Traduccedilatildeo de Maacuterio da Gama Kury do texto de Dioacutegenes Laeacutercio com reparos 86 ἡ δὲ διάνοια τοῦ τῆς σαρκὸς τέλους καὶ πέρατος λαβοῦσα τὸν ἐπιλογισμὸν καὶ τοὺς ὑπὲρ τοῦ αἰῶνος φόβους ἐκλύσασα τὸν παντελῆ βίον παρεσκεύασεmiddot
149 viver a partir de uma dieteacutetica orientada para a repleccedilatildeo do que se circunscreve aos desejos
naturais e necessaacuterios Esse cuidado tambeacutem pode ser compreendido pelo prisma de uma
esteacutetica existencial na medida em que um modelo inteligido a partir da natureza eacute adotado
como referecircncia para a definiccedilatildeo do modo de ser do saacutebio Quando ele busca fazer sua vida
corresponder agrave imagem de equiliacutebrio de autaacuterkeia de imperturbabilidade (ataraxiacutea) que
estatildeo presentes na definiccedilatildeo de phyacutesis compreendida em sua totalidade ele estaacute buscando
fazer de seu eacutethos um reflexo do proacuteprio koacutesmos
Daiacute a tendecircncia a se pensar a filosofia epicurista como uma arte (teacutechne) de viver E a
noccedilatildeo de aacuteskesis traduz justamente essa ideia de um trabalho de uma artesania desenvolvida
em torno de fazer da experiecircncia de existir algo que proporcione felicidade E isso eacute atividade
eacute praacutetica contiacutenua de ldquoexperimentar fazer do dia posterior melhor que o anterior ateacute que
estejamos a caminhordquo (SV 48)87 Nesse sentido o homem eacute pensado como o principal agente
de transformaccedilatildeo de sua realidade cabe a ele a responsabilidade dentro do que eacute possiacutevel
sobre o proacuteprio destino Eacute por meio de exerciacutecios sejam de meditaccedilatildeo ou de praacutexis que ele
trabalha na alma uma compreensatildeo de si mesmo e daquilo que ele pode realizar A arte
epicurista consiste em traduzir um conhecimento em um fazer que torne efetiva a experiecircncia
do contentamento do bem-estar da philiacutea da liberdade Por isso a filosofia eacute definida por
Epicuro conforme relato de Sexto Empiacuterico como ldquouma atividade que por meio de discurso
(loacutegois) e raciociacutenio (dialogismoiacutes) proporciona uma vida felizrdquo88 Nesses termos percebe-se
uma concepccedilatildeo de praacutetica filosoacutefica que age no interior da alma e se projeta na forma do saacutebio
compreender o mundo e de se relacionar nele Eacute uma teacutechne concebida para transformar a
maneira de pensar do homem e por extensatildeo transformar sua forma de viver
Trata-se de um trabalho que incide sobre o proacuteprio pensamento e por extensatildeo tem
reflexos na conduta no haacutebito e portanto requer esforccedilo e dedicaccedilatildeo Por isso Epicuro
entende que a sabedoria natildeo estaacute ao alcance de todos Assim como o cuidado com a sauacutede
implica em uma dieteacutetica em haacutebitos voltados para o equiliacutebrio a vida filosoacutefica tambeacutem
demanda atenccedilatildeo uma ocupaccedilatildeo para a qual nem todos se dispotildeem vide os muitos que
preferem viver sob os valores da poacutelis e que vecircem em Alexandre o Grande um modelo de vida
a ser seguido Um fragmento de Dioacutegenes de Œnoanda embora incompleto permite ver
sugerida essa ideia de que nem todo mundo pode vir a ser saacutebio ldquo[] posto que nem todos
tecircm o poder Mais se noacutes o supuseacutessemos possiacutevel entatildeo verdadeiramente a vida dos deuses
87 Πειρᾶσθαι τὴν ὑστέραν τῆς προτέρας κρείττω ποιεῖν ἕως ἂν ἐν ὁδῷ ὦμενmiddot 88 Us 219 Sexto Empiacuterico (Adv Math V 9) 169 φιλοσοφίαν ένέργειαν εΐναι λόγοις καΐ διᾰλογισμοΐς τον εύδαίμονα βίον περιποιοθσαν
150 passaria aos homensrdquo (Œno fr 56)89 A doxografia tambeacutem nos coloca diante de um
testemunho de Clemente de Alexandria segundo ele ldquoEpicuro supotildee que soacute os gregos satildeo
qualificados para praticar a filosofiardquo90 Dioacutegenes Laeacutercio ao falar da concepccedilatildeo epicurista de
sophoacutes relata que ldquonem toda constituiccedilatildeo fiacutesica nem toda nacionalidade permite a um
homem tornar-se saacutebiordquo (DL X 117)91 Por traacutes desses registros fica colocada a existecircncia de
questotildees que impedem o exerciacutecio da sabedoria estejam ligadas a contextos poliacuteticos e
culturais a limitaccedilotildees individuas ou agrave escolha de cada um
A aacuteskesis epicurista natildeo remete para nenhum aspecto ligado agrave revelaccedilatildeo ou despertar
que tomando conta da alma a coloca no caminho da sabedoria Essa atividade estaacute ligada a
um procedimento de transformaccedilatildeo na maneira de compreender a realidade e do papel do
homem diante dela E como vimos nos capiacutetulos anteriores a meditaccedilatildeo e a praacutexis tecircm papel
fundamental nesse processo Eacute por meio desses exerciacutecios que o homem se coloca
criticamente com relaccedilatildeo agraves opiniotildees que fundamentam um loacutegos afastado da natureza e busca
realizar um modo de vida de acordo com a compreensatildeo que desenvolve ao se dedicar a
observar e refletir sobre os modos de ser da natureza Considerando que o escopo da filosofia
epicurista eacute a realizaccedilatildeo de uma vida prazerosa a aacuteskesis se relaciona agrave necessidade de
submeter o pensamento e as accedilotildees agrave ldquofinalidade da naturezardquo (tograve teacutelos tecircs phyacuteseos)92 e com
isso poder estabelecer um eacutethos katagrave phyacutesin Sendo assim na medida em que desenvolvem a
capacidade para estabelecer uma compreensatildeo a respeito de como afastar-se dos valores
convencionados e realizar um modo de ser mais natural os exerciacutecios estimulam um sentido
de resistecircncia de natildeo-conformismo de destemor Quanto mais o homem exercita a sabedoria
mais ele amadurece a confianccedila e a disposiccedilatildeo para transformar a proacutepria existecircncia
A pragmateiacutea pensada como exerciacutecio de vida filosoacutefica estabelece uma relaccedilatildeo com a
eacutetica em torno do cuidado de si o que evoca a ideia de um modo de viver mais equilibrado Eacute
por meio de uma meditaccedilatildeo e de uma praacutexis voltada para o prazer e a serenidade que se busca
exercitar essa vida fazendo dela uma experiecircncia praacutetica A finalidade da pragmateiacutea natildeo eacute
ser uma teoria a qual se subordina uma praacutexis natildeo eacute formar o homem para que depois ele
possa viver melhor o objetivo eacute se constituir como uma praacutetica de pensar a proacutepria praacutetica e
desenvolvecirc-la em funccedilatildeo de fazer experimentar essa makariacuteos zecircn A perspectiva epicurista eacute
a de uma ldquoformaccedilatildeordquo que vem com a experiecircncia O que a ldquoteoriardquo faz eacute traduzir o sentido de
89 [] puisque tous nrsquoen ont pas le pouvoir Mais si nous le supposons possible alors veacuteritablement la vie des dieux passera aux hommes 90 Us 226 Clemente de Alexandria Miscelacircnea I15 91 πάθεσι μᾶλλον συσχεθήσεσθαι οὐκ ἂν ἐμποδίσαι πρὸς τὴν σοφίαν 92 Maacutexima 25 τὸ τέλος τῆς φύσεως
151 uma praacutetica de vida saacutebia ou de acordo com a natureza Assim physiologiacutea vida e eacutetica satildeo
aspectos inseparaacuteveis na aacuteskesis epicurista Dai Epicuro afirmar que ldquovenerar o saacutebio eacute um
grande bem para quem venerardquo (SV 32)93 A intenccedilatildeo eacute mostrar que no modo de viver do
sophoacutes se encontra uma referecircncia a como eacute possiacutevel se colocar no mundo a partir de uma
vivecircncia eacutetica do exerciacutecio cotidiano de realizaccedilatildeo de liberdade e de prazer
Na Carta a Meneceu se diz que para gozar de uma vida feliz eacute preciso colocar em accedilatildeo
(praacutette) o saber acerca da natureza (DL X 123)94 Com isso Epicuro estaacute postulando uma
concepccedilatildeo de filosofia que eacute ao mesmo tempo exerciacutecio de uma forma de pensar e modo
saacutebio de viver Na medida em que se assimila o saber physioloacutegico mais haacute uma aproximaccedilatildeo
com um modelo natural e com isso se experimenta a autaacuterkeia e o equiliacutebrio A pragmateiacutea eacute
conhecimento relacionado agrave accedilatildeo ou atividade (eneacutergeia) de viver em funccedilatildeo de experimentar
sensaccedilotildees agradaacuteveis de sentir tranquilidade de contentar-se com o necessaacuterio para uma vida
saudaacutevel de alegrar-se com a amizade Colocar em praacutetica esse saber consiste em procurar
viver a sabedoria no dia a dia Isso implica em um assenhoramento da proacutepria vontade
condiccedilatildeo necessaacuteria para poder agir como autaacuterkes e orientar as accedilotildees tendo em vista uma
medida-limite (peacuteras) fundamentada na natureza Nesse sentido a pragmateiacutea eacute exerciacutecio de
compreensatildeo da phyacutesis de seus modos de ser e seus limites e tambeacutem eacute o exerciacutecio de uma
medida para o agir fundamental para orientar a conduta do saacutebio
Lembremos de que no capiacutetulo II deste trabalho dedicado a buscar compreender como
a pragmateiacutea eacute exercitada pela alma dissemos que a filosofia epicurista eacute elaborada como
uma therapeiacutea e que como tal tinha como finalidade afastar da alma de inquietudes temores
e desequiliacutebrios E isso implicava em mitigar na psycheacute a forccedila de um loacutegos fundamentado em
opiniotildees vazias ou em crenccedilas que natildeo resistiam aos criteacuterios de verdade relacionados ao
sensiacutevel projetando para aleacutem da phyacutesis o sentido imanente da realizaccedilatildeo do homem
A meditaccedilatildeo nesse contexto eacute tratada como uma atividade que leva a psycheacute a
estabelecer por meio da phroacutenesis e do logismoacutes um distanciamento dessas opiniotildees ou
desse loacutegos que adoece e aprisiona a alma Para isso a vida feliz eacute identificada ao exerciacutecio
do prazer e esse eacute pensado como fonte de equiliacutebrio porque estaacute dentro dos limites de uma
medida natural Eacute sob essa perspectiva que se pensa em um loacutegos-terapecircutico pois ldquoa
filosofia trabalha a alma humana mediante um loacutegos depurador esclarecedor acerca dos
limites e medidas proacuteprias agrave sua natureza O loacutegos enquanto um phaacutermakon visa sobretudo
93 Ὁ τοῦ σοφοῦ σεβασμὸς ἀγαθὸν μέγα τῷ σεβομένῳ ἐστί 94 Cf nota 28 da introduccedilatildeo
152 esclarecer as noccedilotildees de natureza alma valor e finalidaderdquo (SILVA 2003 p 80) Assim o
exerciacutecio de compreensatildeo da phyacutesis remete para essa (re)construccedilatildeo do loacutegos voltado para
conduzir agrave ataraxiacutea
Compreender a natureza eacute inteligir dela limites para os desejos de maneira a se
contrapor agrave desmesura de quem deseja estimulado pelas kenaigrave doacutexai A alma liberta de um
loacutegos que a desequilibra que a oprime que remete para uma vontade artificial pode escolher
em funccedilatildeo de sua compreensatildeo da realidade e do papel que percebe poder desenvolver nela
E aiacute reside um aspecto importante para entender o significado epicurista da praacutetica de um
saber fundamentado na natureza na medida em que visa curar desvencilhar ou afastar a alma
dos valores que a impedem de realizar uma vontade livre tambeacutem se constitui como praacutetica
eacutetica Ou seja a pragmateiacutea quando pensada como uma atividade voltada para exercitar um
entendimento da phyacutesis visando a ataraxiacutea (ausecircncia de perturbaccedilatildeo na alma) e a autaacuterkeia
(ter o princiacutepio da accedilatildeo em si mesmo)95 pode ser entendida como um exerciacutecio eacutetico Nesse
contexto eacutetico diz respeito a um modo de ser de viver ligado agrave possibilidade de poder de
pensar a proacutepria existecircncia sem a imposiccedilatildeo de convenccedilotildees de regras de normas Eacute viver
conforme um entendimento da natureza eacute trazer o sentido de uma filosofia que postula a
liberdade e o equiliacutebrio para a praacutetica de uma vida saacutebia Isso acontece quando se exercita
essa compreensatildeo da phyacutesis que ao levar agrave rejeiccedilatildeo de todo entendimento da realidade
fundamentada em mitos crenccedilas opiniotildees vazias exercita a liberdade da alma
Tambeacutem cabe destacar que nessa pesquisa tratamos de como a pragmateiacutea se
relaciona com a accedilatildeo saacutebia Tentamos evidenciar a concepccedilatildeo de sabedoria como exerciacutecio de
uma medida para o agir buscada na investigaccedilatildeo da natureza e que isso definiria o sentido da
praacutexis epicurista Eacute nesse contexto que a conduta do saacutebio eacute pensada como estando ligada agrave
realizaccedilatildeo de um teacutelos katagrave phyacutesin o que remete ao espelhamento de uma modelo natural de
vida equilibrada e livre no campo do agir social Cabe ao homem considerando as limitaccedilotildees
inerentes agrave possibilidade do conhecer e o discernimento que lhe permite a phroacutenesis e o
logismoacutes com relaccedilatildeo ao que estaacute ao seu alcance traduzir essa medida em escolhas e recusas
que possam trazer mais contentamento agrave sua maneira de existir e de se relacionar no mundo
Ao fazer isso a experiecircncia da liberdade (eleutheriacutea) eacute sentida enquanto atividade de
construccedilatildeo pelo proacuteprio homem de sua histoacuteria Para tanto o saacutebio define suas atitudes sem as
constriccedilotildees das convenccedilotildees das leis ele encontra na investigaccedilatildeo da phyacutesis os limites aos
quais subordinar a vontade O exerciacutecio da liberdade vai par e passo ao de circunscrever os
95 Ver nota 172 do capiacutetulo I
153 desejos ao acircmbito do natural e necessaacuterio Exercitar a sabedoria eacute viver segundo uma medida
que o saacutebio identifica na natureza e natildeo na cultura na religiatildeo na poliacutetica Os limites que vatildeo
definir o sentido de uma accedilatildeo saacutebia satildeo inteligidos a partir da physiologiacutea Assim no
epicurismo a vida deve ser medida a partir de um modelo universal e que remeta para o gozo
de uma vida serena e alegre
O agir do sophoacutes tem portanto uma motivaccedilatildeo eacutetica a accedilatildeo eacute livre e esclarecida natildeo
havendo imposiccedilatildeo da ordem do noacutemos Na origem desse comportamento vemos o
entendimento de que a realizaccedilatildeo do homem implica em uma conduta de vida que busque
trazer para sua realidade histoacuterica o sentido de autaacuterkeia e de liberdade que caracteriza uma
eacutetica katagrave phyacutesin Eacute em funccedilatildeo disso que se busca estabelecer um eacutethos que lhe propicie
realizar-se de forma mais autecircntica estabelecendo relaccedilotildees pautadas pela philiacutea pelo
equiliacutebrio pelo bem-estar (eustatheiacutea) Assim quando orienta sua conduta pelo saber acerca
da natureza o saacutebio exercita a liberdade para escolher e recusar em funccedilatildeo uma vida
equilibrada justa e agradaacutevel para estabelecer relaccedilotildees a partir de afinidades e da
conveniecircncia muacutetua (opheacuteleia) para governar a si mesmo sem delegar esse poder outrem Daiacute
podermos pensar que a pragmateiacutea epicurista compreendida como praacutetica de um modo de
viver ou de se conduzir no mundo tendo a phyacutesis como modelo a partir do qual satildeo definidas
as finalidades para agir tambeacutem nos remete para a noccedilatildeo de exerciacutecio eacutetico
Diante dessas reflexotildees percebemos ser possiacutevel nos remeter por meio da expressatildeo
exerciacutecios eacuteticos agrave pragmateiacutea e com isso traduzir um sentido de vivecircncia de um saber
fundamentado na natureza como uma praacutetica cotidiana de pensamento e de accedilatildeo que tem na
phyacutesis um princiacutepio de fundamentaccedilatildeo A meditaccedilatildeo e a praacutexis satildeo maneiras de realizaccedilatildeo
dessa aacuteskesis tendo em vista conduzir o homem do conhecimento acerca da realidade para o
estabelecimento de um modo de vida katagrave phyacutesin Dito de outra forma satildeo atividades que
permitem inter-relacionar na praacutetica a physiologiacutea e a eacutetica E esse aspecto eacute fundamental para
desenvolver uma convicccedilatildeo firme com relaccedilatildeo agrave possibilidade de tendo como referecircncia a
natureza experimentar uma vida feliz ao fazer da proacutepria existecircncia um exerciacutecio eacutetico
353 - A praacutetica da makariacuteos zecircn
A pragmateiacutea eacute a filosofia pensada e praticada tendo em vista a vida feliz (makariacuteos
zecircn) A sabedoria consiste em a partir da physiologiacutea estabelecer um modo de viver
equilibrado e prazeroso Nesse sentido ser saacutebio natildeo eacute uma conquista que apoacutes ser alcanccedilada
154 determina o fim da busca eacute atraveacutes de uma praacutetica contiacutenua que a sabedoria se realiza Assim
podemos dizer que a pragmateiacutea eacute o exerciacutecio de realizaccedilatildeo daquilo a que o sophoacutes aspira Na
aacuteskesis epicurista o teacutelos natildeo eacute projetado para depois ele estaacute no proacuteprio exerciacutecio ldquoO
mesmo tempo eacute tanto o do nascimento do maior bem quanto o da dissoluccedilatildeordquo (SV 42)96 Ou
seja quando nos livramos do que causa dor o prazer que eacute identificado ao maior dos bens se
apresenta
Daiacute percebemos que no epicurismo natildeo se professa uma ideia de teleologia colocando
o sentido da accedilatildeo para depois dela O exerciacutecio natildeo eacute expediente para se chegar agrave sabedoria
ele jaacute eacute a consecuccedilatildeo dela Eacute nessa perspectiva que a aacuteskesis natildeo eacute pensada como meio para
desenvolver as virtudes mas como forma de experimentar os prazeres ldquoNatildeo eacute para ter uma
dessas coisas mencionadas97 que noacutes empreendemos essa praacutetica ltda filosofiagt mas para ser
feliz tendo alcanccedilado a finalidade de acordo com a naturezardquo (Œno Fr 28)98 O exerciacutecio eacute
realizado porque ele traz consigo a experiecircncia do prazer ldquoPorque noacutes natildeo comemos o patildeo
para ter a satisfaccedilatildeo depois nem bebemos o vinho para sentir o deleite apoacutes nem ejaculamos
o esperma para gozar posteriormente mas a accedilatildeo provoca esses prazeres em noacutes
imediatamente sem esperar pelo futurordquo (Œno Fr 33 VII)99 Quer dizer os exerciacutecios
realizam aquilo que eles tecircm em mira Assim natildeo cabe por exemplo pensar a liberdade
praticaacute-la para depois ser livre Tanto a meditaccedilatildeo quanto a praacutexis em torno da liberdade jaacute
trazem consigo a experiecircncia da eleutheriacutea dessa libertaccedilatildeo de (capiacutetulo II) e da liberdade
para (capiacutetulo III)
Pode-se dizer que o que fundamenta a accedilatildeo do saacutebio epicuacutereo eacute a realizaccedilatildeo do prazer mediante a liberdade de escolha Aos olhos de Epicuro o que produz a liberdade eacute uma dyacutenamis isto eacute o poder de ter o princiacutepio da accedilatildeo em si mesmo que eacute precisamente neste contexto a definiccedilatildeo do termo autaacuterkeia (SILVA 2005 p 47)
Essa liberdade estaacute relacionada agrave busca de realizar uma forma autecircntica de viver a natildeo
perseguir os bens que as convenccedilotildees e as opiniotildees colocam como fundamentais agrave felicidade o
que conduz a uma forma inautecircntica de viver O sophoacutes vive a partir do que ele pensa estar
adequado com a realizaccedilatildeo de uma vida feliz ldquoO saacutebio conhece os valores autecircnticos da vida
frente agraves falsificaccedilotildees e enganos da sociedade captou o sabor do verdadeiro e de acordo com 96 Ὁ αὐτὸς χρόνος καὶ γενέσεως τοῦ μεγίστου ἀγαθοῦ καὶ ἀπολύσεως ltτοῦ κακοῦgt 97 Riquezas honrarias poder poliacutetico 98 Ce nrsquoest pas afin drsquoavoir une des choses susmentionneacutees que nous avons entrepris cette pratique ltde la philosophiegt mas pour ecirctre heureux ayant acquis la fin rechercheacutee par la nature 99 Car nou ne mangeons pas le pain pour prendre plaisir par la suiacutete ni ne buvons le vin pour y prendre plaisir apregraves ni nrsquoejectons le sperme pour en jouir par la suiacutete mais lrsquoaction atteint ces plaisir em nous immeacutediatement sans attendre lrsquoavenir
155 os bens conforme a natureza (tagrave katagrave physin) sabe dirigir seu comportamento sereno e livre
ateacute a felicidaderdquo (GUAL 1985 p 219) E isso remete para a praacutetica de se colocar distante do
asseacutedio dos desejos das opiniotildees vazias ou de outras formas de assenhoramento e de buscar
uma aproximaccedilatildeo com os bens inteligidos a partir da investigaccedilatildeo da natureza como a
liberdade o prazer a amizade a frugalidade a autaacuterkeia o equiliacutebrio Para Epicuro esse eacute o
motivo para buscar se afastar do burburinho da poacutelis e procurar o recolhimento ldquoNatildeo eacute sem
razatildeo que seu aluno Lucreacutecio viu e retratou com um olhar mais luacutecido e mais atento do que
qualquer outro poeta romano a vida no campo e a caracterizou como uma escola de sabedoria
e calma cujas vozes concordam com aqueles da doutrina do mestre (BIGNONE 1973 p
231) Essa busca por referecircncia na natureza aponta para essa necessidade permanente de
exercitar uma vida tranquila de fazer a alma experimentar a ataraxiacutea
A ataraxiacutea resulta da autaacuterkeia Quem age a partir de si mesmo pode escolher e
recusar tendo em vista afastar a alma de fontes de perturbaccedilatildeo Isso nos remete para pensar a
makariacuteos zecircn a partir de libertaccedilatildeo da alma de falsas concepccedilotildees A psycheacute livre de temores
experimenta a imperturbabilidade que Epicuro relaciona agrave vida feliz Nesse sentido a
ataraxiacutea e a autaacuterkeia estatildeo relacionadas agrave possibilidade de poder reorientar o pensamento
para buscar se referenciar na phyacutesis e natildeo nos mitos e nas crenccedilas Eacute a partir dessa inter-
relaccedilatildeo entre a physiologiacutea e o modo de viver que ela engendra que o saacutebio exercita a
liberdade eacutetica (eleutheriacutea) que lhe permite realizar a vida em funccedilatildeo de sua compreensatildeo da
realidadenatureza Viver conforme se pensa eacute o exerciacutecio que realiza a makariacuteos zecircn A vida
feliz eacute um exerciacutecio de liberdade eacute um exerciacutecio eacutetico sentido e finalidade da pragmateiacutea
epicurista
156
CONCLUSAtildeO
Epicuro foi sensiacutevel agrave condiccedilatildeo dos homens de seu tempo oprimidos politicamente e
presos agrave busca desenfreada pela satisfaccedilatildeo de desejos fora dos limites do natural Ele
acreditou que para assegurar uma vida feliz (makariacuteos zecircn) era preciso trabalhar na alma
(psycheacute) do homem um loacutegos acerca da realidade que pudesse levar a discernir a calcular e a
escolher entre os valores as ideias os bens as finalidades aqueles que estatildeo ligados ao bem-
estar ao equiliacutebrio agrave tranquilidade Eacute nesse sentido que a phyacutesis foi pensada como referecircncia
para um modo de viver A partir dela foram inteligidos os limites e as finalidades para um agir
sabiamente Dessa forma a sabedoria foi concebida como um exerciacutecio de aproximaccedilatildeo com
a natureza pois Epicuro via na vida katagrave phyacutesin a possibilidade de espelhar na alma o mesmo
sentido de harmonia que percebia na phyacutesis
A filosofia assim foi direcionada para a realizaccedilatildeo de um projeto de sabedoria
identificado com a construccedilatildeo da proacutepria felicidade Para tanto a sophiacutea foi pensada como
atividades (eneacutergeias) que tornam possiacutevel experienciar um eacutethos fundamentado na
physiologiacutea Eacute nesse contexto que Epicuro confere agrave praacutetica filosoacutefica o sentido de
pragmateiacutea ou seja ela eacute um saber em torno da vida (teacutechnen tinaacute periacute ton biacuteon) que se
efetiva como um exerciacutecio permanente de compreensatildeo da natureza e de vida a partir dessa
compreensatildeo
A philosophiacutea epicurista foi elaborada como uma pragmateiacutea que enquanto saber
remete para uma compreensatildeo physioloacutegica imanente da realidadenatureza como aacuteskesis
permite fazer da makariacuteos zecircn uma experiecircncia sentida no dia a dia Para realizar essa
pragmateiacutea Epicuro mandou meditar e praticar seus ensinamentos via nessas atividades a
possibilidade de o homem trazer para sua vida o sentido de liberdade necessaacuterio para poder
fruir de uma existecircncia autecircntica e equilibrada Eacute por meio dos exerciacutecios de meditaccedilatildeo
(meleacutetema) e de praacutexis (praacutexis) que o saacutebio vem a ser em torno da cura de si mesmo e do
prazer (hedoneacute) conforme a natureza (tagrave katagrave phyacutesin)
Viver filosoficamente ensina-nos Epicuro implica em meditar (exerciacutecio praacutetico que
liberta a alma das opiniotildees e crenccedilas e com isso restitui ao homem a autaacuterkeia o poder de
agir a partir de si mesmo das proacuteprias convicccedilotildees) e em tornar efetiva a praacutexis (atividade que
traz a autaacuterkeia para a maneira de conduzir no mundo na forma de se relacionar em
157 sociedade e com ela eacute o exerciacutecio da liberdade para estabelecer relaccedilotildees mais equilibradas e
realizar um modo e vida mais natural) Eacute dessa maneira que o saacutebio exerce uma disposiccedilatildeo
para viver autenticamente a partir de uma vontade esclarecida e livre para agir sem
admoestaccedilotildees A sabedoria vai assim sendo construiacuteda como um exerciacutecio eacutetico seja porque
realiza um modo de vida autaacuterkes e equilibrado ou porque exercita a liberdade para escolher e
evitar em funccedilatildeo do bem estar da alegria do prazer Esse eacute o princiacutepio e a finalidade da
pragmateiacutea epicurista e eacute em torno dessa maneira de conceber e praticar a filosofia que se
percebe o sentido de coerecircncia unidade e sustentaccedilatildeo presente no pensamento epicurista
Epicuro procurou mostrar ser possiacutevel fazer da filosofia algo uacutetil um saber orientado
para instrumentalizar o homem para viver agradavelmente Ao conduzir a escolhas e accedilotildees
voltadas para a realizaccedilatildeo de uma vida tranquila livre e frugal ele se contrapocircs a Paideacuteia
(cultura) cujos valores estimulavam a procura pela riqueza gloacuteria e pelo poder Essa cultura
seguida pela maioria traduzia as aspiraccedilotildees de uma poacutelis que cristalizava e transmitia valores
e saberes que alheavam o homem de si e do sentido de sua proacutepria realizaccedilatildeo Essa educaccedilatildeo
natildeo lhe dava autonomia nem lhe permitia compreender realmente o mundo como espaccedilo de
realizaccedilatildeo de si mesmo A sociedade agrave eacutepoca de Epicuro natildeo espelhava o ideal de uma vida
feliz mas de uma cidade assentada na busca do poder desmesurado e voltado para as batalhas
as conquistas e para o assenhoramento de outros povos e territoacuterios A cultura naqueles
tempos tinha em vista a realizaccedilatildeo do homem no contexto e na dependecircncia da poacutelis por isso
a Paideacuteia era para Epicuro vazia pois impedia a construccedilatildeo e uma existecircncia em torno da
autorrealizaccedilatildeo Daiacute ele procurar seguir por outro caminho inserindo a felicidade como um
valor cultural e finalidade maior Nesse sentido a filosofia do Jardim foi concebida para
mudar a concepccedilatildeo quantos aos valores fundamentais para uma vida feliz
O epicurismo natildeo teve como escopo a obtenccedilatildeo do poder poliacutetico nem econocircmico
nem assenhorar a vontade de outrem Ele buscou conduzir o homem a ter o domiacutenio sobre si
proacuteprio a exercitar a liberdade a compreender suas vontades e relacionaacute-las a uma forma
mais natural de compreensatildeo do mundo Para tanto foi preciso aproximaacute-lo do sentido de sua
natureza A realizaccedilatildeo dele precisou ser pensada a partir de valores inteligidas a partir do
estudo da phyacutesis Dessa forma seria possiacutevel a cada um viver de acordo com sua naturalidade
e realizar uma existecircncia pautada pelo prazer Tal perspectiva repercutiu sobre o eacutethos do
saacutebio pois o modo de vida dele precisou permitir expressar esse sentido Tratou-se de trazer
para o campo praacutetico da vida um saber que permitisse identificar a natureza dos desejos e
saber quais deviam ser realizados Em outros termos a questatildeo natildeo era mais pensar a
158 realizaccedilatildeo de si mesmo a partir dos valores e da cultura da poacutelis mas a partir de um
referencial natural Por isso o saacutebio se afastou da cidade e se voltou para a interioridade
Distanciando-se do burburinho das opiniotildees dos muitos e investigando a phyacutesis o homem
buscou esclarecer a proacutepria vontade e estabelecer uma praacutexis a partir de um pensamento
autecircntico
A relevacircncia que Epicuro deu agrave investigaccedilatildeo da natureza como fundamento para
estabelecer um saber para a vida (teacutechnen tinaacute periacute ton biacuteon) remete para uma ligaccedilatildeo estreita
com o que eacute empiacuterico O loacutegos epicurista natildeo foi desenvolvido para ser a verdade sobre as
coisas mas de se constituir como um discurso sapiencial que tem nos sentidos um criteacuterio de
verdade e eacute orientado para o exerciacutecio praacutetico de viver Dessa forma Epicuro distanciou sua
filosofia do ceticismo e da retoacuterica e fundamentou a pragmateiacutea sobre um conhecimento
empiacuterico-imanente O loacutegos foi elaborado a partir do campo das experiecircncias sensiacuteveis e as
questotildees filosoacuteficas buscaram ser resolvidas no campo da vida experimentada Dessa maneira
se buscou ensinar ao homem que a realidade natildeo eacute necessariamente aquilo que estabelece a
doacutexa ou a cultura Assim ele pocircde se perceber como um ser capaz de pensar as finalidades
que deviam ser buscadas e aquelas que deviam ser descartadas e com isso se autodeterminar
em direccedilatildeo a uma concepccedilatildeo de ser no mundo ligada ao bem viver
O epicurismo foi orientado para a gestatildeo da vida para as accedilotildees para saber que
escolhas e recusas fazer Com esse direcionamento a filosofia do Jardim buscou dar conta do
empiacuterico das necessidades do homem no mundo Ela natildeo foi pensada para ser apenas um
discurso um uso da razatildeo que resultasse em retoacuterica O objetivo foi dar um sentido agrave
realidade agrave sociedade ao homem colocando o prazer (hedoneacute) como finalidades (teacutelos) A
vida do saacutebio foi direcionada para a consecuccedilatildeo da felicidade que por sua vez foi identificada
ao prazer Ou seja a palavra e a vida do sophoacutes foram orientadas para a realizaccedilatildeo de um
modo feliz de vida Natildeo foi uma filosofia que se limitou ao loacutegos ela procurou se realizar no
exerciacutecio de um modo saacutebio de viver O escopo natildeo foi projetar um homem ideal em uma
cidade ideal mas pensar em como esse homem concreto poderia viver bem em harmonia
com a natureza e com seus semelhantes Nesse sentido podemos ver um aspecto
antropoloacutegico perpassando o pensamento epicurista O homem pensado foi aquele que trazia
consigo os seus desejos sua imaginaccedilatildeo sua capacidade de se autodirecionar Ele eacute ser da
phyacutesis e na phyacutesis e em torno dessa constataccedilatildeo se definem o fundamento do conhecimento e
os limites do conhecer para entatildeo poder estabelecer as finalidades de uma vida bem realizada
A physiologiacutea epicurista ensinou que a necessidade eacute derrogada pelo acaso Anaacutenke e
159 tycheacute existem por necessidade Da mesma forma que se pode pensar na phyacutesis a derrogaccedilatildeo
de um determinismo absoluto por analogiacutea podemos tambeacutem pensar no campo eacutetico a
possibilidade de o homem se desviar de concepccedilotildees fatalistas e traacutegicas e realizar uma vida
livre A pragmateiacutea se volta para desenvolver um esclarecimento a respeito da possibilidade
de autotransformaccedilatildeo autossuperaccedilatildeo na medida em que se realiza como uma praacutetica de
libertaccedilatildeo de amarras culturais morais e religiosas levando o homem a limitar a dependecircncia
das opiniotildees vazias e de libertaccedilatildeo para poder governar a si mesmo e agir a partir do que
conhece acerca da natureza Nisso reside a concepccedilatildeo de que ele natildeo eacute um ser irretocaacutevel
cujo destino fora previamente definido como obra acabada dos deuses ou trageacutedia histoacuterico-
cultural O homem ao qual remete a filosofia epicurista eacute ser em construccedilatildeo que pode
determinar a si mesmo e exercer uma artesania sobre o proacuteprio modo de pensar e de agir
Longe de aceitar os fatalismos da vida ele pode superar aquilo que faz mal desequilibra
adoece a alma e o corpo e dessa forma tambeacutem pode realizar o desejo de ter em seu proacuteprio
domiacutenio o sentido de sua realizaccedilatildeo no mundo A philosophiacutea nesse sentido se opotildee aos
condicionamentos histoacuterico-culturais aos valores cristalizados e difundidos na poacutelis por meio
da educaccedilatildeo da moral da religiatildeo dos mitos da Paideacuteia
A filosofia epicurista se realiza como exerciacutecio empiacuterico-reflexivo Satildeo as atividades
de meditaccedilatildeo (meleacutetema) e de praacutexis (praacutexis) que vatildeo constituiacute-la como uma pragmateiacutea O
sentido eacute o de espelhar um saber acerca da phyacutesis na alma do homem de tal modo que ele
possa estabelecer um modo de viver de acordo com a natureza (katagrave phyacutesin) ou seja
autaacuterquica em relaccedilatildeo agraves opiniotildees vazias (kenaigrave doacutexai) equilibrada e direcionada para os
prazeres naturais e necessaacuterios Trata-se de um exerciacutecio de amadurecimento que se daacute na
medida em que o homem busca fazer de sua existecircncia a praacutetica de uma vida filosoacutefica Eacute
dessa forma que ele trilha um caminho que vai da physiologiacutea ao eacutethos para poder trazer para
sua vida um sentido de liberdade autorrealizaccedilatildeo e felicidade
Cabe ressaltar que a pragmateiacutea epicurista natildeo busca num sentido religioso a
conversatildeo do homem a um conjunto de crenccedilas ou a adotar um modelo de viver
fundamentado em um sentimento de feacute A meditaccedilatildeo e a praacutexis buscam desenvolver uma
confianccedila (piacutestis) em se ter o conhecimento sobre a natureza como guia para estabelecer um
modelo de vida autecircntica e bem realizada Eacute o exerciacutecio de viver de acordo com o que se
pensa e de pensar de acordo com a natureza que faz o saacutebio acreditar no saber filosoacutefico como
um caminho para a felicidade Quanto mais ele se dedica a investigar e a aprender sobre a
phyacutesis mais ele desenvolve a confianccedila na possibilidade de experimentar uma vida agradaacutevel
160 E aiacute reside um traccedilo fundamental do epicurismo ele natildeo remete para um sentimento religioso
nem miacutestico nem se fundamenta em feacute eacute exerciacutecio de confianccedila no raciociacutenio empiacuterico
(epilogismos) sobre a natureza
Embora falar em meditaccedilatildeo hoje possa evocar a noccedilatildeo de um misticismo de
religiosidade meditar deve ser entendido no contexto do epicurismo como uma atividade
aproximaccedilatildeo da alma consigo mesmo e com a natureza Eacute um exerciacutecio que natildeo tem
fundamento nem finalidade religiosa Ela parte de uma reflexatildeo sobre a realidade empiacuterica
para estabelecer um saber direcionado para a praacutetica da sabedoria Dito de outra forma eacute
meditando que o saacutebio pensa a proacutepria existecircncia como um espelhamento da natureza e
procura viver de acordo com esse pensamento Essa natildeo separaccedilatildeo entre o pensar e o praticar
se expressa na forma de um saber para vida ou de uma pragmateiacutea
Haacute uma dificuldade em conceber nos dias atuais a meditaccedilatildeo como um exerciacutecio
praacutetico A tendecircncia eacute vecirc-la apenas como ato reflexivo Mas para Epicuro ela eacute um fazer da
psycheacute que se volta para compreender a realidade e para procurar a melhor maneira de agir
diante dela tendo em vista a realizaccedilatildeo de uma vida feliz Nesse sentido a meditaccedilatildeo se
relaciona com a aacuteskesis no sentido de exerciacutecio e natildeo de contemplaccedilatildeo Na pragmateiacutea
epicurista a meditaccedilatildeo eacute um atividade praacutetica porque natildeo basta meditar sobre o prazer por
exemplo eacute preciso que essa meditaccedilatildeo traga consigo a sensaccedilatildeo do prazer como aquele que
vem na forma de um estado de imperturbabilidade da alma (ataraxiacutea) Meditaccedilatildeo e praacutexis
constituem em conjunto um exerciacutecio de compreensatildeo da vida buscando uma aproximaccedilatildeo
com a natureza Assim a pragmateiacutea tem como sentido um agir eacutetico uma accedilatildeo no mundo
voltada para experimentar a liberdade para ser o que se eacute para pensar e escolher o proacuteprio
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161
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HESIacuteODO Teogonia a origem dos deuses Estudo e traduccedilatildeo Jaa Torrano 5 ed Satildeo Paulo Iluminuras 2003
KENNY Anthony Uma Nova Histoacuteria da Filosofia Ocidental 2 ed Satildeo Paulo Loyola 2011 (Vol I)
MAYOR Carmelo Blanco El Inicio de la Filosofia em Grecia Platon Aristoteles Epicuro Ensayos Revista de la Facultad de Educacioacuten de Albacete Nordm 1 paacutegs 71-92 Ano 1987 ISSN 0214-4824
NIETZSCHE Frierich Preleccedilotildees sobre a Histoacuteria da Filosofia In Os Preacute-Socraacuteticos Satildeo Paulo Nova Cultural (Os Pensadores) P 346-353
PAULA Marcos Ferreira de Sobre a Felicidade Belo Horizonte Autecircntica Editora 2014
PARMEcircNIDES Da Natureza Satildeo Paulo Loyola 2013
PLATAtildeO Protaacutegoras Traduccedilatildeo Ana Piedade Elias Pinheiro Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua Editores1999
________ Protaacutegoras In Diaacutelogos Traduccedilatildeo Carlos Alberto Nunes Beleacutem EdUFPA 1980
________ Timeu Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes Beleacutem EdUFPA 1973
________ Goacutergias Portugual Ediccedilotildees 70 1992
________ Caacutermides In Diaacutelogos de Platatildeo Carmides ndash Liacutesis Traduccedilatildeo Carlos Alberto Nunes Beleacutem EdUFPA 2014
________ Diaacutelogos Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes Beleacutem EdUFPA 1980
________ Oeuvres Complegravetes Paris Belles Lettres 1948
________ A Repuacuteblica Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes 3ed Beleacutem EdUFPA 2000
________ A Repuacuteblica Enrico Corvisieri Satildeo Paulo Nova Cultural 1997
________ Leis Traduccedilatildeo Edson Bini Satildeo Paulo Edipro 1999
VEGETTI Mario A Eacutetica dos Antigos Satildeo Paulo 2014 (Coleccedilatildeo Caacutetedra)
VERNANT Jean-Pierre Mito e Religiatildeo na Greacutecia Antiga Satildeo Paulo Martins Fontes 2009
WOLF Francis A Invenccedilatildeo Materialista da Liberdade In NOVAES Adauto (org) O Avesso da Liberdade Satildeo Paulo Companhia das Letras 2002
DICIONAacuteRIOS
ALEXANDRE Charles Dictionnaire Francais-Grec Paris Hachette 1861
BAILLY A Grand Bailly Dictionnaire Grec-Franccedilais Paris Hachette 1935
167 CHANTRAINE Pierre Dictionaire Eacutetymologique de la Langue Grecque ndash Histoire des mots Paris Klincksieck 1968
CHASSANG Alexis Dictionnaire Grec-Franccedilais Paris Garnier Fregraveres 1865
LIDDELL Henry George A Greek-English Lexicon New York Harper amp Brothers 1883
PABOacuteN Joseacute M Diccionario Manual Griego Claacutesico-Espantildeol Madrid Vox 1967
TALBOT E Dictionnaire Franccedilais-Grec Paris Delalain Fregraveres 1894
VIAL Claude Lexique de la Gregravece Ancienne Paris Armand Colin 1972
LIDDELL H G SCOTT Jones The Online Liddell-Scott-Jones Greek-English Lexicon (httpstephanustlguciedulsjeid=1) acessado em 13 de fevereiro 2019
Nome Marcone de Oliveira Maffezzolli Tiacutetulo O sentido da pragmateiacutea epicurista
Tese apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia da UFRN como requisito parcial para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutor em Filosofia Aprovada em de de 2020
Banca Examinadora
Prof Dr Markus Figueira da Silva (OrientadorPresidente ndash UFRN)
Prof Dr Edrisi de Arauacutejo Fernandes (Examinador Interno ndash UFRN)
Prof Dr Antocircnio Juacutelio Garcia Freire (Examinador Externo ndash UERN)
Prof Dr Marcus Reis Pinheiro (Examinador Externo ndash UFF)
Prof Dr Celso Martins Azar Filho (Examinador Externo ndash UFF)
4
Agrave minha matildee
que me ensinou sobre a importacircncia da educaccedilatildeo
para a realizaccedilatildeo de uma vida melhor
5 AGRADECIMENTOS
Agrave Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Ao Departamento de Filosofia da UFRN atraveacutes do qual estendo meus
agradecimentos a todos os professores que contribuiacuteram com minha formaccedilatildeo iniciada em
2004 (especializaccedilatildeo em Eacutetica)
Ao professor e amigo Markus Figueira que acompanhou minha trajetoacuteria no campo da
Filosofia Antiga com sua orientaccedilatildeo precisa e segura e sobretudo sendo um exemplo de
quem exercita a philiacutea e procura viver epicuristicamente
Aos professores Edrisi de Arauacutejo Fernandes Antocircnio Juacutelio Garcia Freire Marcus Reis
Pinheiro e Celso Martins Azar Filho pelas criacuteticas orientaccedilotildees e sugestotildees
A todos os amigos e familiares que souberam entender minha ausecircncia durante o
periacuteodo de realizaccedilatildeo desta pesquisa
6 EPIacuteGRAFE
Eu que dedico incessantemente minhas energias agrave investigaccedilatildeo da natureza e desse modo de viver tiro principalmente a minha calma
(Epicuro Carta a Heroacutedoto)
Traduzir-se uma par te na outra parte - que eacute uma questatildeo de vida ou morte ndash
seraacute ar te (Ferreira Gullar Traduzir-se 1980)
Nenhum jovem deve demorar a filosofar e nenhum velho deve parar de filosofar pois nunca eacute cedo demais nem tarde demais para a sauacutede da alma
(Epicuro Carta a Meneceu)
() quanto a noacutes eacute preciso vir a ser em torno da cura de noacutes mesmos (Epicuro Sentenccedilas Vaticanas 64)
7 RESUMO
Este trabalho postula que por meio de uma pragmateiacutea (πραγματεία) Epicuro busca espelhar um conhecimento acerca da natureza (physiologiacutea) num eacutethos equivalente revalidando a concepccedilatildeo epicurista de filosofia como um saber para a vida (teacutechnen tinaacute periacute ton biacuteon) e de sabedoria como atividade constante de reflexatildeo sobre a natureza (phyacutesis) e de realizaccedilatildeo de um modo de ser de acordo com ela (katagrave phyacutesin) Eacute em tal panorama onde o homem busca uma aproximaccedilatildeo com a natureza para reproduzir em sua alma um estado de imperturbabilidade (ataraxiacutea) que se delineia a possibilidade de autorrealizaccedilatildeo ou do exerciacutecio de uma vida saacutebia Nesse sentido a pragmateiacutea epicurista remete para uma praacutetica filosoacutefica desenvolvida na consecuccedilatildeo de um conjunto de atividades (eneacutergeias) que traduzem em atitudes condutas escolhas accedilotildees e pensamentos um eacutethos filosoacutefico voltado para a busca do equiliacutebrio Se nos textos de Epicuro satildeo limitadas as ocorrecircncias do termo pragmateiacutea por outro lado ao exortar a praacutetica filosoacutefica por meio de exerciacutecios de meditaccedilatildeo (meleacutetema) e de praacutexis (praacutexis) ele nos permite a partir do uso dessas noccedilotildees e de outras a essas vinculadas evidenciar um sentido para a pragmateiacutea o que permite compreender como a physiologiacutea resulta em um modo de vida saacutebio Nessa perspectiva visamos demonstrar que a pragmateiacutea epicurista estabelece seu sentido mais proacuteprio quando compreendida como exerciacutecio eacutetico Isso porque eacute como trabalho permanente e inter-relacionado de meditaccedilatildeo e praacutexis que ela conduz o pensamento e a accedilatildeo para restabelecer no homem o sentido de autarquia (autaacuterkeia) condiccedilatildeo necessaacuteria para encetar-lhe a disposiccedilatildeo para definir um eacutethos a partir do entendimento que tem da natureza e com isso poder fruir de uma vida livre autecircntica equilibrada e feliz Palavras-chave pragmateiacutea meditaccedilatildeo praacutexis physiologiacutea exerciacutecio teacutecnica eacutetica
8
REacuteSUMEacuteE
Ce travail postule que agrave travers drsquoune pragmateiacutea (πραγματεία) Epicure cherche agrave refleacuteter une connaissance de la nature (physiologiacutea) dans un eacutethos eacutequivalent revalidant la conception eacutepicurienne de la philosophie comme savoir pour la vie (teacutechnen tinaacute periacute ton biacuteon) et de la sagesse comme activiteacute constante de reacuteflexion sur la nature (phyacutesis) et de reacutealisation dune maniegravere decirctre selon elle (katagrave phyacutesin) Cest dans un tel panorama ougrave lhomme cherche une approximation avec la nature pour reproduire dans son acircme un eacutetat dimperturbabiliteacute (ataraxiacutea) que se dessine la possibiliteacute de reacutealisation de soi ou lexercice dune vie sage En ce sens la pragmateiacutea eacutepicurienne fait reacutefeacuterence agrave une pratique philosophique deacuteveloppeacutee dans la reacutealisation dun ensemble dactiviteacutes (eneacutergeias) qui se traduisent par des attitudes des conduites des choix des actions et des penseacutees un eacutethos philosophique visant la recherche de leacutequilibre Si dans les textes dEacutepicure les occurrences du terme pragmateiacutea sont limiteacutees en revanche en exhortant la pratique philosophique agrave travers des exercices de meacuteditation (meleacutetema) et praxis (praacutexis) cela nous permet de montrer agrave partir de lutilisation de ces notions et dautres lieacutes agrave eux un sens agrave la pragmateiacutea ce qui nous permet de comprendre comment la physiologiacutea se traduit par un mode de vie sage Dans cette perspective nous visons agrave deacutemontrer que la pragmateiacutea eacutepicurienne eacutetablit sa signification la plus approprieacutee lorsquil est compris comme un exercice eacutethique En effet cest en tant que travail permanent et interdeacutependant de meacuteditation et de praxis quelle conduit la penseacutee et laction agrave reacutetablir chez lhomme le sens de lautarcie (autaacuterkeia) condition neacutecessaire pour le entamer la disposeacute agrave deacutefinir un eacutethos baseacutee sur la compreacutehension de la nature et avec cela de pouvoir jouir dune vie libre authentique eacutequilibreacutee et heureuse Mots-cleacutes pragmateiacutea meacuteditation praxis physiologiacutea exercice technique eacutethique
9
SUMAacuteRIO
INTRODUCcedilAtildeO 12
CAPITULO 01
Da physiologiacutea ao eacutethos - os fundamentos da pragmateiacutea epicurista
11 A physiologiacutea
111 A phyacutesis
112 Necessidade e acaso
113 A anthropophyacutesis (acerca da natureza humana)
12 A vida katagrave phyacutesin
121 Nos limites da phyacutesis
122 A repleccedilatildeo dos desejos
123 Tograve teacutelos tecircs phyacuteseos
13 A finalidade do saber
131 O conhecimento (gnoacutesis)
132 Criteacuterios de verdade
133 Saber teacutechne e aacuteskesis
23
23
26
32
37
43
45
52
58
63
66
69
71
CAPIacuteTULO 02
Da Meditaccedilatildeo ou do modo como a pragmateiacutea eacute exercitada pela alma
21 Exerciacutecio dialoacutegico e dialeacutetico
22 Meleacutetema e mneacuteme
23 A meditaccedilatildeo como exerciacutecio de libertaccedilatildeo
24 Meditar
241 Sobre os deuses
242 Sobre a morte
243 Sobre a felicidade
244 Sobre a dor
81
82
88
96
99
103
105
106
109
10 CAPIacuteTULO 03
A praacutexis como a pragmateiacutea no modo de agir
31 A praacutexis do saacutebio escolher e recusar
32 A accedilatildeo modulada pelo logismoacutes e pela phroacutenesis
33 Praacutexis e exerciacutecio de liberdade (eleutheriacutea)
34 Da poacutelis ao Kecircpos
341 Laacutethe biocircsas
342 Koinoniacutea
343 A philiacutea
35 Pragmateiacutea e sabedoria praacutetica
351 Saber para a vida
352 Exerciacutecio eacutetico
353 A praacutetica da makariacuteos zecircn
113
116
121
124
130
132
134
136
139
143
148
153
CONCLUSAtildeO
156
BIBLIOGRAFIA
161
11 PRINCIPAIS ABREVIACcedilOtildeES
Tst = Epicuro Testamento
Hdt = Epicuro Carta a Heroacutedoto
Pit = Epicuro Carta a Pitocleacutes
Men = Epicuro Carta a Meneceu
MC = Epicuro Maacuteximas Capitais
SV = Epicuro Sentenccedilas Vaticanas
Us = H Usener Epicurea Stuttgart 1887
DL = Dioacutegenes Laeacutercio Vida e Doutrinas dos Filoacutesofos Ilustres Brasiacutelia UnB 2008
Lucr = Lucreacutecio Da Natureza Satildeo Paulo 1985 (Os Pensadores)
Œno = Dioacutegenes de Œnoanda Fragmentos Fribourg Editions Universitaires 1996
PH = Papiros Herculanenses
Obs As citaccedilotildees das cartas maacuteximas e do Testamento de Epicuro reproduzem a
traduccedilatildeo de Maacuterio da Gama Kury do texto de Dioacutegenes Laeacutercio Jaacute as referecircncias agraves
Sentenccedilas Vaticanas acompanham a traduccedilatildeo de Markus Figueira da Silva e Henrique G
Murachco ineacuteditas As possiacuteveis divergecircncias de traduccedilotildees que possam comprometer o
entendimento do pensamento epicurista satildeo indicadas e abordadas em notas explicativas
Quando expomos a citaccedilatildeo do texto em grego salvo indicaccedilatildeo contraacuteria ela foi colhida da
biblioteca digital Thesaurus Linguae Graecae (httpstephanustlgucieduindexphp)
12
INTRODUCcedilAtildeO
aacute uma tradiccedilatildeo que postula uma compreensatildeo das ldquoescolas1rdquo filosoacuteficas heleniacutesticas2 a
partir de uma sistematizaccedilatildeo apoiada em trecircs pilares a Canocircnica a Fiacutesica e a Eacutetica
Essa tendecircncia eacute vista retratada nas exposiccedilotildees que Dioacutegenes Laeacutercio faz em Vida e
Doutrinas dos Filoacutesofos Ilustres datada iniacutecio do seacuteculo trecircs dC Nessa obra ao falar dos
estoicos ele afirma que essa divisatildeo3 estaria postulada nos livros de Zenatildeo Criacutesipo
Apolodoro Silo Eudromo e Poseidocircnio Com isso ficava sugerida uma diferenciaccedilatildeo
presente no estoicismo entre o discurso filosoacutefico e a filosofia enquanto praacutetica No mesmo
sentido ao tratar a questatildeo no acircmbito do pensamento dos ciacutenicos essa fragmentaccedilatildeo eacute
retomada embora apenas balizada por um relatado desprezo deles pela Loacutegica e pela Fiacutesica e
por uma dedicaccedilatildeo agrave Eacutetica4 A tendecircncia eacute estendida e tambeacutem aplicada em relaccedilatildeo a Epicuro5
(plusmn342-271 aC6) para quem tal segmentaccedilatildeo seria a base de uma divisatildeo da filosofia7 que
teria na Canocircnica uma introduccedilatildeo ao pensamento epicurista a Fiacutesica cuidaria da natureza e a
Eacutetica versaria sobre o que escolher e o que rejeitar
Tal concepccedilatildeo tripartite parece jaacute encetar uma compreensatildeo da filosofia como
exposiccedilatildeo de um ldquosistema conceitualrdquo construiacutedo a partir da articulaccedilatildeo de disciplinas
constituiacutedas como campo de teorizaccedilatildeo e demonstraccedilatildeo sobre aquilo de que se pretende algum
desvelamento Dessa forma cada uma delas a Fiacutesica a Canocircnica e a Eacutetica se estabeleceria
como espaccedilo teoreacutetico ou doutrinaacuterio sobre aspectos distintos do discurso filosoacutefico Assim
cada uma das partes poderia ser tomada autonomamente como uma teoria sobre a Canocircnica
sobre a Fiacutesica e outra sobre a Eacutetica e a partir daiacute depois de reconsideradas em conjunto eacute que
1 Haacute uma classificaccedilatildeo aludida por Dioacutegenes Laeacutercio que alguns autores usam para ldquoenquadrarrdquo certas filosofias como escolas e outras como modo de vida Para Dioacutegenes o cinismo por exemplo se constituiu como escola filosoacutefica autecircntica (DLVI 103) 2 Considera-se o Periacuteodo Heleniacutestico como aquele compreendido entre a morte de Alexandre Grande em 323 aC e a batalha de Actium em 31 aC Nesse periacuteodo o estoicismo ceticismo epicurismo e cinismo eclodiram exercendo grande influecircncia no modo de pensar e de viver do povo grego 3 DL VII 39 4 DL VI 103 5 Epicuro teria nascido em Samos Aos 18 anos vai a Atenas para o serviccedilo militar Segundo a tradiccedilatildeo teria tido liccedilotildees com o peripateacutetico Praxiacutefanes em Rodes Tambeacutem teria estudado com Nausiacutefanes disciacutepulo de Demoacutecrito de Abdera Aventa-se ainda a possibilidade de ter sido aluno de Pirro de Eacutelis precursor do ceticismo no seacuteculo IV aC Em Mitilene na ilha de Lesbos Epicuro comeccedila a ensinar sua filosofia em 311 aC Posteriormente muda para Lacircmpsaco onde fica ateacute 306 aC quando com 35 anos volta para Atenas e cria o Keacutepos o Jardim Apoacutes a sua morte em 271 aC quatorze escolarcas mantiveram as atividades no jardim ateacute 44 aC 6 DL X 1 7 DL X 29
H
13 se teria a dimensatildeo total da filosofia desta ou daquela escola a partir da leitura desses
ldquosistemas teoacutericosrdquo
Essa tendecircncia a compartimentalizar a filosofia parece ter se disseminado e conduzido
a uma uniformizaccedilatildeo na compreensatildeo de movimentos do pensamento que - ao eclodirem na
Heacutelade a partir do fim do seacuteculo IV aC - mostraram convergecircncias mas sobretudo
diferenccedilas em seus modos de concepccedilatildeo e de realizaccedilatildeo Isso porque tal separaccedilatildeo induz
estudiosos munidos dessas ldquopartesrdquo do discurso filosoacutefico a postular e sublinhar uma primazia
da Eacutetica em contraste com o decliacutenio da poacutelis que deixa de ser espaccedilo puacuteblico e poliacutetico onde
se costumava pensar e exprimir os ideais de virtudes que deveriam nortear a vida do homem
grego Afinal apoacutes a dominaccedilatildeo macedocircnica e consequentes mudanccedilas poliacuteticas sociais e
culturais a tendecircncia eacute natildeo mais pensar na realizaccedilatildeo do homem como politikograven zocircon (animal
ciacutevico8) posto que estaacute submetido a um governo tiracircnico mas na possibilidade que ele pode
ter de realizar a proacutepria felicidade9 ou cultivar sua cidadela interior
Essa conjectura ganha relevo ao lembrarmos que apoacutes dizer da triparticcedilatildeo da filosofia
em Epicuro Dioacutegenes remarca que os epicuristas ndash todavia ndash costumam reunir agrupar a
Canocircnica e a Fiacutesica10 Desse modo se induz a possibilidade de poder considerar a Eacutetica
apartada desse conjunto Assim de um lado ficaria delimitado o espaccedilo para uma ldquoteoriardquo
sobre a phyacutesis e o conhecimento e do outro a aacuterea para tratar sobre os modos de viver ou do
fim supremo Ou seja teriacuteamos algo como um campo onde se desenvolveria o pensamento
especulativo sobre a natureza e outro dedicado a lidar com os modos de agir do homem com
os problemas praacuteticos da vida Essa ldquoorganizaccedilatildeordquo da filosofia supostamente legitimada pelos
proacuteprios epicuristas ao mesmo passo em que possibilitaria conceber uma Eacutetica elaborada a
partir de certo niacutevel de independecircncia em relaccedilatildeo agrave Canocircnica e agrave Fiacutesica permitiria - tambeacutem
no epicurismo - fazer alusotildees a dimensotildees antiteacuteticas como teoriapraacutetica pensarfazer
discursoaccedilatildeo Mas seraacute que esse tipo de enquadramento daacute conta do real sentido do que foi a
philosophiacutea no periacuteodo heleniacutestico E mais especificamente pensar a atividade filosoacutefica do
Jardim11 a partir da separaccedilatildeo entre Canocircnica Fiacutesica e Eacutetica conduz a uma reta compreensatildeo
do que foi postulado por Epicuro
8 Como prefere traduzir Joseacute Ameacuterico Motta Pessanha na tese Empeacutedocles e a Democracia RJ 1965 (Kleacuteos n 78 97-182 20034) 9 Salvo indicaccedilatildeo contraacuteria usamos o termo felicidade natildeo no sentido de eudaimoniacutea mas para nos referirmos ao gozo de uma vida feliz Uma distinccedilatildeo mais clara sobre isso consta no capiacutetulo I item 122 10 DL X 30 11 O Jardim ou Keacutepos foi a escola que Epicuro fundou em Atenas quando tinha por volta de 35 anos Trata-se de uma propriedade localizada a noroeste de Atenas onde Epicuro vivia frugalmente e estabelecia uma convivecircncia com seus disciacutepulosamigos Eacute considerado o berccedilo do epicurismo
14 Ao nos debruccedilarmos sobre estudos mais recentes observamos ser em torno da ideia de
exerciacutecio visando agrave transformaccedilatildeo de si e do modo de viver que Pierre Hadot se contrapotildee a
essa leitura da filosofia antiga como sendo um sistema ou conjunto teoacuterico e disciplinar cuja
tendecircncia identificamos nos relatos de Dioacutegenes Laeacutercio Para tanto Hadot interpreta a
philosophiacutea no mundo antigo a partir da noccedilatildeo de exerciacutecios espirituais12 Atraveacutes desse
tratamento ele afianccedila que a atividade filosoacutefica na antiguidade natildeo visa agrave exposiccedilatildeo de um
sistema de ideias A finalidade natildeo eacute de informar sobre uma teoria mas de produzir no
homem um ldquoefeito formativordquo (HADOT 2014 p 8) Para ele
Os exerciacutecios espirituais satildeo precisamente destinados a essa formaccedilatildeo de si a essa paideacuteia que nos ensinaraacute a viver natildeo em conformidade com os preconceitos humanos e com as convenccedilotildees sociais (pois a vida social eacute ela proacutepria um produto das paixotildees) mas em conformidade com a natureza do homem que natildeo eacute outra senatildeo a razatildeo (HADOT 2014 p 56)
Em torno dessa concepccedilatildeo Hadot postula que ldquoesses exerciacutecios pretendem realizar
uma transformaccedilatildeo da visatildeo de mundo e uma metamorfose do serrdquo (HADOT 2014 p 68)
Nesse sentido ele defende que para aleacutem de um valor ldquomoralrdquo a filosofia antiga se reveste de
um valor ldquoexistencialrdquo Por isso os exerciacutecios espirituais deveriam ser compreendidos a partir
de sua finalidade que eacute ensinar ldquoum meacutetodo de orientaccedilatildeo tanto no pensamento quanto na
vidardquo (HADOT 2016 p 118) Assim ao definir a filosofia como um ato e esse como uma
orientaccedilatildeo da atenccedilatildeo ele postula que a finalidade dos exerciacutecios eacute obtida quando se orienta
essa atenccedilatildeo para o prazer
No estoicismo como no epicurismo filosofar eacute um ato contiacutenuo um ato permanente que se identifica com a vida um ato que eacute preciso renovar a cada instante Nos dois casos pode-se definir esse ato como uma orientaccedilatildeo da atenccedilatildeo () No epicurismo a atenccedilatildeo estaacute orientada para o prazer que eacute em uacuteltima instacircncia o prazer de ser (HADOT 2014 p 266)
Percebemos com isso que na interpretaccedilatildeo de Hadot a finalidade dos exerciacutecios
espirituais eacute projetada para depois para aleacutem do que eles satildeo ou constituem Eles satildeo um
meio para alcanccedilar a sabedoria o prazer a liberdade mas natildeo satildeo eles mesmos a atividade
que traz consigo a experiecircncia de viver a sabedoria o prazer ou a liberdade Sendo voltado
para orientaccedilatildeo para formaccedilatildeo ensinam ou conduzem para a consecuccedilatildeo de algo mas natildeo
satildeo pensados como sendo eles mesmos a realizaccedilatildeo do que se deseja alcanccedilar Daiacute ele afirmar
que ldquograccedilas a esses exerciacutecios dever-se-ia chegar agrave sabedoria isto eacute a um estado de liberaccedilatildeo
total das paixotildees de lucidez perfeita de conhecimento de si e do mundo (HADOT 2014 p
12 HADOT Pierre Exerciacutecios Espirituais e Filosofia Antiga Satildeo Paulo Eacute Editora 2014
15 57) Mas natildeo se chega a esse estado pois na visatildeo hadotiana a sabedoria eacute algo irrealizaacutevel13 e
ldquoum ideal ao qual se tende sem esperar chegar a elerdquo poreacutem cabe destacar ldquosalvo talvez no
epicurismordquo (HADOT 2014 p 57-58) Desse modo pensar a filosofia antiga como
exerciacutecios espirituais embora permita escapar ao enquadramento facetaacuterio encontrado em
Dioacutegenes Laeacutercio parece levar a outro problema a homogeneizaccedilatildeo de aspectos distintos e
fundamentais para caracterizar a originalidade de escolas filosoacuteficas sobretudo aquelas que
eclodiram agrave eacutepoca do helenismo No tocante ao epicurismo isso implica em embaccedilar a
compreensatildeo da filosofia como uma praacutetica em que o viver o pensar e o agir convergem para
a experiecircncia do prazer e da autarquia Curiosamente essa problemaacutetica natildeo eacute clarificada por
Hadot
Talvez esse lapso sentido nos textos de Pierre Hadot se decirc porque a relaccedilatildeo entre
exerciacutecios e sabedoria eacute pensada de maneira diferente no epicurismo e natildeo se possa falar de
separaccedilatildeo ou distanciamento entre eles A praacutetica filosoacutefica epicurista visa fazer experimentar
aquilo que se almeja no momento mesmo em que ela se realiza A ldquoformaccedilatildeordquo vem junto com
a vivecircncia a finalidade do exerciacutecio estaacute dentro dele mesmo Natildeo se exercita para ser saacutebio
eacute-se saacutebio no exerciacutecio Claro que haacute diferentes graus de sabedoria mas podemos dizer que
no epicurismo os exerciacutecios jaacute satildeo a consecuccedilatildeo de uma experiecircncia de vida filosoacutefica
Dessa forma o saacutebio eacute concebido como aquele que se realiza como tal ao exercitar a
sabedoria e essa eacute entendida como a atividade de viver de acordo com a phyacutesis (katagrave phyacutesin)
o que aponta para uma vida ldquohedonistardquo e autaacuterquica Com isso nos remetemos para a
inexistecircncia de uma teleologia na aacuteskesis14 epicurista Em outras palavras a finalidade dos
exerciacutecios natildeo estaacute deslocada para fora deles ou para depois A accedilatildeo do sophoacutes eacute a expressatildeo
da sua sabedoria tanto quanto essa implica em uma accedilatildeo que o caracteriza no mundo
Nas outras ocupaccedilotildees com dificuldade o fruto chega ao amadurecimento e na filosofia o agradaacutevel vem junto com o conhecimento pois o gozo natildeo vem depois do aprendizado ao contraacuterio aprendizado e gozo vecircm juntos (SV 27)15
Podemos assinalar que a accedilatildeo ou a praacutetica filosoacutefica traz consigo o proacuteprio sentido de
realizaccedilatildeo do sophoacutes na medida em que espelha no campo das suas escolhas e atitudes a
compreensatildeo que ele desenvolve a respeito da realidade Por isso eacute forccediloso destacar que a
13 ldquoO uacutenico estado normalmente acessiacutevel ao homem eacute a filo-sofia isto eacute o amor pela sabedoria o progresso em direccedilatildeo agrave sabedoriardquo (HADOT 2014 p 58) 14 Exerciacutecio praacutetica 15 Οὐ Ἐπὶ μὲν τῶν ἄλλων ἐπιτηδευμάτων μόλις τελειωθεῖσιν ὁ καρπὸς ἔρχεται ἐπὶ δὲ φιλοσοφίας συντρέχει τῇ γνώσει τὸ τερπνόνmiddot οὐ γὰρ μετὰ μάθησιν ἀπόλαυσις ἀλλὰ ἅμα μάθησις καὶ ἀπόλαυσις
16 aacuteskesis epicurista eacute ao mesmo tempo principio e finalidade do modo de ser do saacutebio Ao
dizer que ldquoaprendizado e gozo vecircm juntosrdquo Epicuro evoca a partir do termo gozo (apoacutelaysis)
a noccedilatildeo de utilidade proveito benefiacutecio conquista de algo que adveacutem com a praacutetica
filosoacutefica E qual proveito maior pode advir para o saacutebio epicurista
Eacute conhecida a afirmaccedilatildeo de Epicuro que diz ldquoa pobreza medida pelo limite da
natureza eacute uma riqueza grande e riqueza natildeo delimitada eacute uma grande pobrezardquo (SV 25)16
Para viver dentro desse limite eacute necessaacuterio investigar a natureza compreender seus modos de
realizaccedilatildeo Isso permite agir liberto das opiniotildees vazias (kenaigrave doacutexai) a partir da capacidade
que a alma (psycheacute) tem de pensar calcular17 avaliar - a fim de definir o que se circunscreve
aos limites da phyacutesis ndash e junto agrave faculdade que ela tem de deliberar de escolher tendo em
vista o que eacute natural e necessaacuterio em detrimento do que nem eacute natural e nem necessaacuterio18
Com isso o saacutebio pode estabelecer para si um criteacuterio a partir da compreensatildeo que adveio ao
investigar a phyacutesis para buscar refletir tanto na alma quanto em seu eacutethos um modo natural
de ser Tal medida eacute que vai lhe permitir gozar uma vida equilibrada ou saudaacutevel fazecirc-lo
experimentar nas relaccedilotildees que estabelece no mundo o sentido de realizaccedilatildeo de um modo de
viver kagraveta phyacutesin19
Daiacute a intriacutenseca relaccedilatildeo da aacuteskesis epicurista com a eacutetica e com a physiologiacutea O eacutethos
do saacutebio resulta de um constante trabalho para restabelecer o domiacutenio sobre si sobre a proacutepria
vontade para agir a partir do entendimento a respeito da phyacutesis fazendo frente agraves opiniotildees
aos valores e aos costumes que tendem para aleacutem do que eacute natural e necessaacuterio Saacutebio eacute pois
quem estabelece uma disposiccedilatildeo permanente para viver a autenticidade da proacutepria existecircncia
que soacute a liberdade de um ser esclarecido quanto agrave natureza permite realizar Eis porque
Agraves vezes consideramos a autossuficiecircncia (autaacuterkeia) um grande bem natildeo porque em todos os casos devemos contentar-nos com pouco mas para que se natildeo tivermos o muito nos contentemos com o pouco sinceramente persuadidos de que quanto maior a moderaccedilatildeo com que se goza a abundacircncia tanto menor a necessidade dela e de que todo desejo conforme a natureza pode ser facilmente satisfeito ao passo que todo desejo vatildeo eacute difiacutecil de satisfazer (DL X 130)20
16 Ἡ πενία μετρουμένη τῷ τῆς φύσεως τέλει μέγας ἐστὶ πλοῦτοςmiddot πλοῦτος δὲ μὴ ὁριζόμενος μεγάλη ἐστὶ πενία 17 Para se referir a essa atividade da alma Epicuro emprega o termo λογισμὸς (logismoacutes) vide DL X 39 75 117 132 144 145 18 Estamos falando da φρόνησις (phroacutenesis) vide DL X 132 19 Kagraveta phyacutesin eacute uma expressatildeo que significa viver de acordo com a natureza No capiacutetulo I item 12 trataremos dessa questatildeo 20 Καὶ τὴν αὐτάρκειαν δὲ ἀγαθὸν μέγα νομίζομεν οὐχ ἵνα πάντως τοῖς ὀλίγοις χρώμεθα ἀλλrsquo ὅπως ἐὰν μὴ ἔχωμεν τὰ πολλά τοῖς ὀλίγοις ἀρκώμεθα πεπεισμένοι γνησίως ὅτι ἥδιστα πολυτελείας ἀπολαύουσιν οἱ ἥκιστα ταύτης δεόμενοι καὶ ὅτι τὸ μὲν φυσικὸν πᾶν εὐπόριστόν ἐστι τὸ δὲ κενὸν δυσπόριστον
17 Dessa forma ao colocar por si mesmo os limites que conduzem agrave proacutepria realizaccedilatildeo
tendo exclusivamente a natureza como medida do que pode o homem Epicuro relaciona a
physiologiacutea eacutetica e o exerciacutecio de viver com o movimento ou a atitude de desvios das
opiniotildees ou de outras formas de assenhoramentos que possam tolher o homem de vivenciar a
experiecircncia de ser a partir daquilo que descobriu no exerciacutecio de pensar a phyacutesis Com isso o
que vai caracterizar o exerciacutecio da sabedoria eacute a accedilatildeo fundamentada na physiologiacutea
Para Epicuro exercitar a sabedoria faz sobrevir a ataraxiacutea21 para a alma e a aponiacutea22
para o corpo-carne23 ao mesmo passo em que realiza a experiecircncia da liberdade (eleutheriacutea)
no campo eacutetico E isso estaacute relacionado com a proposta filosoacutefica epicurista que eacute por um
lado assegurar que o homem natildeo dependa nem das circunstacircncias24 nem dos deuses25 para ser
feliz e por outro proporcionar o conhecimento necessaacuterio para que ele natildeo guie sua vida por
valores que possam ir contra a sua realizaccedilatildeo Entatildeo pensar a filosofia postulada por Epicuro
sob o prisma de exerciacutecios espirituais como propocircs Hadot parece minorar o sentido
fundamental de uma accedilatildeo filosoacutefica ancorada na compreensatildeo de que a sabedoria se realiza
enquanto praacutetica permanente de construccedilatildeo de um eacutethos a partir de uma physiologiacutea que
aponta para a autaacuterkeia e equiliacutebrio e que concomitante a essa praacutetica a experiecircncia de uma
vida feliz (makariacuteos zecircn) eacute realizada pelo proacuteprio saacutebio ateacute onde depende dele e na medida
em que ele se ocupe da filosofia exercitando a sabedoria Mas como isso se daacute
Se retomarmos o paralelo entre a medicina e a filosofia - no qual se inspira Epicuro
para evidenciar o valor praacutetico de filosofar - tanto a arte meacutedica (teacutechne heacute ietrike) quanto a
arte de viver (teacutechnen tinaacute periacute ton biacuteon) vatildeo remeter para uma atividade contiacutenua voltada
para o cuidado consigo mesmo visando favorecer o modo natural de realizaccedilatildeo do homem
Para isso ambas vatildeo propor alteraccedilotildees no estilo de vida prescrevendo dieteacuteticas ou faacutermacos
voltados para restituir um equiliacutebrio vital Nesse sentido ocupar-se da filosofia diz respeito agrave
praacutetica de atividades que gravem na alma um loacutegos terapecircutico (expurgando do pensamento
as concepccedilotildees da realidade que distanciam o homem da phyacutesis e apontando os limites que
conduzem ao gozo de uma vida satilde) e constituam um eacutethos voltado para dar naturalidade agrave
21 Imperturbabilidade da alma 22 Ausecircncia de dor 23 Como veremos no capiacutetulo I o homem tem uma natureza corpoacuterea A psycheacute (alma) eacute formada por aacutetomos mais sutis e velozes dispersos pelo sarkoacutes (carne) Trata-se de um corpo-alma e de um corpo-carne que mantecircm uma inter-relaccedilatildeo fundamental para pensarmos as interaccedilotildees que o homem estabelece com o mundo-realidade Isso porque eacute por meio do corpo-carne que a alma sente as afecccedilotildees (paacutethe) que geram as sensaccedilotildees (aiacutestheseos) que podem ser agradaacuteveis ou desagradaacuteveis 24 SV 9 ldquoCoisa maacute eacute a necessidade mas natildeo haacute necessidade nenhuma de viver com necessidaderdquo 25 SV 65 ldquoEacute vatildeo exigir dos deuses aquilo que algueacutem pode provir por si proacutepriordquo
18 vida para estabelecer relaccedilotildees sociais livre de dominaccedilotildees e convenccedilotildees para buscar as
experiecircncias que confiram o prazer que equilibra para ser a expressatildeo de uma vida livre e
autecircntica
Para Epicuro a filosofia natildeo eacute um conhecimento apartado da experiecircncia praacutetica de
existir e por isso natildeo pode ser pensada a partir de saberes descolados uns dos outros Uma reta
compreensatildeo da philosophiacutea postulada por Epicuro precisa evidenciar o sentido de unidade
que perpassa seus ensinamentos e a confluecircncia deles para uma filosofia que se realiza como
sabedoria praacutetica Contudo isso natildeo implica em interpretaacute-la como um exerciacutecio que conduz agrave
sabedoria mas como a praacutetica mesma de uma sabedoria ancorada no entendimento
physioloacutegico da natureza Eacute a partir desse aspecto que nos referimos a uma pragmateiacutea
epicurista ou seja a atividade que orientada para espelhar a physiologiacutea em um eacutethos saacutebio
exercita a autaacuterkeia e o equiliacutebrio Em torno desse entendimento podemos pensar como no
epicurismo um saber acerca da natureza engendra uma disposiccedilatildeo (diaacutethesis)26 para viver a
partir de um conhecimento filosoacutefico
Essa relaccedilatildeo entre o que se sabe e como se vive percebemo-la mesmo em textos que
aparentemente poderiam estar desprovidos de algum tipo de ensinamento filosoacutefico Mas em
sendo o pensamento epicurista indissociado da vida praacutetica ateacute em seu Testamento Epicuro nos
remete para a realizaccedilatildeo de um modo saacutebio de viver Em certo trecho ele diz que apoacutes sua morte o
Jardim deveria ficar agrave disposiccedilatildeo de Hermarco e de seus companheiros em filosofia e
daqueles que o sucederiam ocupando-se com ela (endiatriacutebein katagrave philosophiacutean) 27 Dessa
forma para aleacutem de reconhecer e agraciar aqueles que fazem da filosofia um modo de viver
Epicuro alccedila sua conduta generosa com relaccedilatildeo a Hermarco e seus amigos agrave condiccedilatildeo de
exemplo de como exercitar a sabedoria a justiccedila e o equiliacutebrio ao lidar com as coisas praacuteticas
do dia a dia
Essa ocupaccedilatildeo permanente com a filosofia que caracterizou a vida de Epicuro
tambeacutem vem expressa em duas diretrizes apresentadas no passo 123 da Carta a Meneceu
Nela ele diz ao seu disciacutepulo da necessidade de pocircr em accedilatildeo os preceitos ensinados e meditar
sobre eles e que nisso residem as condiccedilotildees de felicidade ou de sauacutede da alma Os termos
principais dessa assertiva satildeo apresentados de forma imperativa ldquoPotildee em accedilatildeo (praacutette) os
preceitos que te comuniquei ininterruptamente e medita (kaiacute meleacuteta) com a niacutetida consciecircncia
26 DL X 117 Us 222a 27 DL X 17 ἐνδιατρίβειν κατὰ φιλοσοφίαν
19 de que eles satildeo os elementos fundamentais de uma vida belardquo28
Esses dois conceitos que traduzimos29 por meditaccedilatildeo (tograve meleacutetema) e praacutexis (heacute
praacutexis) vatildeo ser evocados quando Epicuro exorta essa necessidade de se dedicar agrave filosofia de
se ocupar com ela (endiatriacutebo) Se o sophoacutes eacute o modelo de homem que se ocupa com a
realizaccedilatildeo de um modo de viver kagraveta phyacutesin traduzindo o conhecimento que tem a respeito da
natureza em um eacutethos equivalente eacute por meio da meditaccedilatildeo e da praacutexis que essa ocupaccedilatildeo
define o sentido da pragmateiacutea epicurista
Eacute nessa perspectiva que a meditaccedilatildeo vai ser entendida como a atividade de reflexatildeo da
alma que partindo do referencial sensiacutevel para pensar a natureza estabelece um saber que vai
servir para guiar o sophoacutes para fazer as escolhas e as recusas que conduzem ao bem-viver
Ela natildeo visa ser um exerciacutecio especulativo do pensamento sobre a natureza nem produzir
sobre ela uma epistemologia ou sistema teoacuterico A meditaccedilatildeo vai ser a atividade que resulta
em um saber que se faz em torno dos desafios das necessidades das possibilidades que se
apresentam ao homem no decurso praacutetico de sua vida Meditar eacute antes de tudo uma reflexatildeo
em torno do cuidado que se deve ter com a proacutepria maneira de viver de como se livrar da
ignoracircncia e das crenccedilas que alheiam o homem de se aperceber do domiacutenio que pode ter sobre
as proacuteprias vontades sobre as accedilotildees sobre seu destino E isso tem uma relaccedilatildeo essencial com
a eacutetica uma vez que com essa reflexatildeo se pretende desenvolver na psycheacute um loacutegos curativo
ou libertador que a desembarace ou a purgue de opiniotildees que possam fazer adoecer
desequilibrar aprisionar
E quando Epicuro diz da necessidade de pocircr em accedilatildeo (praacutette) ou seja estabelecer uma
praacutexis orientada para a vida feliz ele tem como perspectiva que a filosofia se realiza enquanto
atividade de construccedilatildeo continuada de um modo de pensar e de agir A praacutexis eacute o que vai
caracterizar a conduta do saacutebio ao fazer um uso praacutetico da filosofia Nesse sentido trata-se de
postular que a sabedoria eacute realizaacutevel e a praacutetica de vida eacute saacutebia Assim para livrar o sophoacutes do
que causa dor e perturbaccedilatildeo as accedilotildees dele precisam estar de acordo com a natureza ser um
reflexo de um pensamento fundamentado naquilo que ele conhece sobre a phyacutesis A praacutexis
nos reporta para uma correlaccedilatildeo entre o modo de compreender a natureza e a consequente
28 Ἃ δέ σοι συνεχῶς παρήγγελλον ταῦτα καὶ πρᾶττε καὶ μελέτα στοιχεῖα τοῦ καλῶς ζῆν ταῦτrsquo εἶναι διαλαμβάνων 29 A meditaccedilatildeo (tograve meleacutetema) eacute o substantivo relacionado agrave forma verbal imperativa em meletaacute (medita) cuja origem vem de meletaacuteo (μελετάω) Como verbo traz o sentido de se ocupar exercer praticar Como nome traduz a ideia de estudo exerciacutecio praacutetico A praacutexis (praacutexis) eacute o substantivo ligado ao verbo pratte ambos originados da raiz praacutesso (πράσσω) Embora praacutexis e praacutetica tenham origem na mesma raiz etimoloacutegica optamos por empregar o termo praacutexis para nos referir agrave conduta ou agraves accedilotildees ligadas agrave compreensatildeo physioloacutegica da realidade enquanto faremos uso da palavra praacutetica em sentido mais geral (BAILLY Anatole Grand Bailly Dictionnaire Grec-Franccedilais Paris Hachette 1935)
20 praacutetica de vida que decorre dessa compreensatildeo Tambeacutem remete agrave necessidade de aplicar a
doutrina de maneira que a conduta do saacutebio se decirc meio a um distanciamento das opiniotildees
vazias da ignoracircncia e de tudo o que obscurece a compreensatildeo da imanecircncia da vida Dessa
forma a partir da investigaccedilatildeo physioloacutegica e de uma reflexatildeo sobre como esse entendimento
pode levar agrave boa realizaccedilatildeo da vida vai ser possiacutevel agir de maneira que toda escolha e toda
recusa conduzam para uma aproximaccedilatildeo entre o modo de viver do saacutebio e um paradigma
natural pensado a partir do que se conhece da phyacutesis
Ao pensar a meditaccedilatildeo como uma ocupaccedilatildeo da psycheacute voltada para compreender a
realidade e como se conduzir diante dela de maneira a que o modo de ser produza um estado
de imperturbabilidade e ao conceber a praacutexis como as accedilotildees as escolhas e recusas que o
saacutebio faz a partir do conhecimento que tem sobre a natureza e tendo em vista realizar uma
vida equilibrada e frugal - o que nos remete para um exerciacutecio continuo de espelhamento em
seu modo de viver da compreensatildeo que tem sobre o modo proacuteprio que a natureza tem de se
realizar - Epicuro nos remete para o que podemos pensar como exerciacutecios eacuteticos e eacute como tal
que a pragmateiacutea epicurista se efetiva
Embora o uso desse substantivo na Carta a Heroacutedoto seja comumente interpretado
como uma referecircncia a um sistema ou doutrina30 sem que se relacione isso com uma
dinacircmica que inter-relaciona physiologiacutea eacutetica e aacuteskesis ao modo de ser do saacutebio ou ao
exerciacutecio da sabedoria eacute preciso lembrar que o sentido do termo pragmateiacutea31 tambeacutem diz
respeito agrave maneira de tratar de algo ao cuidado que dedicamos ao fazer alguma coisa32 o que
implica em buscar um objetivo em se ocupar em se aplicar em procurar alcanccedilar uma
finalidade e tambeacutem pode fazer referecircncia a afazeres33 atividades praacuteticas
Nesse sentido e considerando o disposto ateacute aqui aventamos que para escapar agrave
tendecircncia para se pensar a filosofia de Epicuro a partir de recortes ou descolamentos de
ldquocampos de saberrdquo o que embota o sentido orgacircnico que caracteriza a tradiccedilatildeo do Jardim e
para natildeo conceber a aacuteskesis epicurista como um exerciacutecio-meio posto que a vida feliz se faz
enquanto exerciacutecio de uma vida saacutebia cabe interpretar o epicurismo como uma pragmateiacutea
como uma atividade permanente de realizaccedilatildeo de um modo de viver em consonacircncia com a
compreensatildeo que se tem da phyacutesis A pragmateiacutea epicurista remete para como o saacutebio pensa a
30 Gama Cury traduz como sistema sistema doutrinaacuterio em Vida e Doutrinas dos Filoacutesofos Ilustres Brasiacutelia UnB 2008 Marcel Conche traduz como sistema em Epicure lettres et maximesVillers-Sur-Mer Mecare 1977 31 DL X 35 77 83 Πραγματεία 32 BAILLY Anatole Grand Bailly Dictionnaire Grec-Franccedilais Paris Hachette 1935 33 The Online Liddell-Scott-Jones Greek-English Lexicon (httpstephanustlguciedulsjeid=1 acessado em 13 de fevereiro 2019)
21 realidade e a partir disso atua sobre si mesmo e nas relaccedilotildees que estabelece no mundo
tencionando realizar o sentido natural de sua existecircncia Isso se efetiva por meio de meditaccedilatildeo
e de praacutexis praacuteticas que restabelecem a autarquia e o equiliacutebrio na medida em que buscam um
espelhamento da physiologiacutea no eacutethos do saacutebio
Eacute a partir dessa hipoacutetese que estabelecemos uma interpretaccedilatildeo do pensamento
epicurista a partir da explicitaccedilatildeo do sentido de sua pragmateiacutea como um exerciacutecio eacutetico que
articula a physiologiacutea a um modo de vida autaacuterquico e equilibrado A tal desafio dedicamos
este trabalho de arqueologia do pensamento epicurista a partir da anaacutelise e interpretaccedilatildeo do
limitado acervo de textos de Epicuro34 que a tradiccedilatildeo conservou Trata-se de uma produccedilatildeo
que ainda requer mais atenccedilatildeo dado o valor das discussotildees que envolvem entre tantos temas
a relaccedilatildeo entre filosofia e sabedoria homem e natureza liberdade e necessidade eacutetica e modo
de viver Ainda que a influecircncia do epicurismo tenha se estendido ateacute o mundo greco-romano
por cerca de sete seacuteculos apoacutes a morte de Epicuro a quase totalidade da obra dele se perdeu
(tenha sido por accedilatildeo deliberada daqueles que combatiam sua forma de pensar avessa agrave
poliacutetica agrave religiatildeo aos mitos tenha sido por desastre como a erupccedilatildeo do Monte Vesuacutevio que
em 79 dC calcinou e soterrou a cidade de Herculano e com ela toda uma biblioteca
epicurista ou pelos mais de 23 seacuteculos que nos separam da philosophiacutea de Epicuro) o que
implica muitas vezes em leituras enviesadas lacunares ou sem o devido rigor acadecircmico
Dadas essas razotildees destacamos que recorremos a publicaccedilotildees claacutessicas e recentes para
recompor o legado do pensamento epicurista como o trabalho de Arrighetti Bollack Conche
Festugiegravere Gual Joyau Lledoacute Salem Solovine e Silva entre outros Tomamos por base o
conteuacutedo expresso em trecircs cartas35 e 40 Maacuteximas Capitais conservadas por Dioacutegenes Laeacutercio
no livro X de Vidas e Doutrinas de Filoacutesofos Ilustres Tambeacutem nos detemos sobre as 81
sentenccedilas que foram descobertas em um manuscrito da Biblioteca Vaticana e publicadas em
1888 por Karl Wotke como Sentenccedilas Vaticanas36 Analisamos ainda a doxografia
preservada e reunida por Hermann Usener em Epicurea Ademais nos debruccedilamos sobre o
conteuacutedo de alguns fragmentos dos Papiros Herculanenses37 (estima-se que eles pertenciam agrave
biblioteca do epicurista romano Filodemo) e dos fragmentos descobertos no siacutetio arqueoloacutegico
34 Teria escrito mais de 300 volumes Ainda que se trate de um pensador com vasta produccedilatildeo como relatou Dioacutegenes Laeacutercio pouco desse material foi conservado 35 Carta a Meneceu Carta a Piacutetocles e Carta a Heroacutedoto 36 Embora estudos digam que nem todas satildeo de Epicuro podendo algumas serem atribuiacutedas aos disciacutepulos Metrodoro e Hermarco 37 Fragmentos de papiros recuperados da Biblioteca de Herculano Localizada ao sul da Itaacutelia a cidade de Herculano foi soterrada no ano de 79 pela erupccedilatildeo do Monte Vesuacutevio Os restos da biblioteca foram descobertos em 1750 quando mais de 1500 rolos de papiros foram achados parcialmente carbonizados
22 de Œnoanda (na Turquia) Satildeo inscriccedilotildees que o epicurista Dioacutegenes de Œnoanda mandou
esculpir por volta do seacuteculo II dC em um muro para que os viajantes que passassem por ali
tivessem contato com a filosofia epicurista E consideramos como uma referecircncia importante
para a compreensatildeo do epicurismo o poema em seis livros Da Natureza do poeta romano
Lucreacutecio
Dividimos o trabalho em trecircs capiacutetulos
O primeiro apresenta os fundamentos da pragmateiacutea epicurista ou de como a
physiologiacutea o conhecimento (gnoacutesis) e a teacutecnica (teacutechne) satildeo pensados por Epicuro O
objetivo eacute mostrar que a filosofia visa colocar diante do homem um saber que possa ser uacutetil agrave
sua realizaccedilatildeo Para isso destacaremos como a alma (psycheacute) opera para a partir do que a
sensibilidade lhe apresenta como dados da realidade imanente pensar sobre sua finalidade e
sobre um modo de viver que possa realizaacute-la
O segundo capiacutetulo discorre sobre a meditaccedilatildeo ou como a pragmateiacutea eacute exercitada
pela alma Tem-se por escopo explicar como agrave luz da physiologiacutea a reflexatildeo sobre temas
como a morte os deuses a felicidade e a dor por exemplo vai constituir um loacutegos
terapecircutico fundamental para estabelecer um distanciamento das opiniotildees vazias e incitar uma
disposiccedilatildeo para efetivar um eacutethos voltado para alegria e a tranquilidade
E o terceiro capiacutetulo vai discorrer sobre a praacutexis Trata-se de expor como a pragmateiacutea
se delineia na conduta do saacutebio a partir do saber physioloacutegico Para isso vatildeo ser enfocadas as
praacuteticas de relacionamento social A vida discreta (relacionada ao laacutethe biocircsas) a amizade
(philiacutea) a vida em comunidade (koinoniacutea) satildeo aspectos do eacutethos do saacutebio que permitem
pensar sua accedilatildeo a partir de uma busca por conviacutevios assentados em sentimentos de afinidade e
de homologiacutea (igualdadeequiliacutebrio) levando agrave liberdade para realizar a autenticidade de cada
um Tambeacutem destacamos nesse capiacutetulo como a pragmateiacutea se constitui como um exerciacutecio
da sabedoria voltada para a realizaccedilatildeo de uma vida autecircntica frugal livre e feliz Para tanto
vamos discutir como a eacuteticaphysiologiacutea epicuacuterea eacute realizada enquanto praacutetica libertadora e
terapecircutica
23
CAPIacuteTULO 01
DA PHYSIOLOGIacuteA AO EacuteTHOS ndash
OS FUNDAMENTOS DA PRAGMATEIacuteA EPICURISTA
No pensamento epicurista eacute estabelecida uma relaccedilatildeo entre a compreensatildeo que se tem
da realidade (phyacutesis) e o modo de viver Considera-se que a partir da investigaccedilatildeo acerca da
natureza (physiologiacutea) eacute possiacutevel orientar o eacutethos do homem para realizaccedilatildeo de uma vida feliz
(makariacuteos zecircn)1 Essa perspectiva estaacute presente na definiccedilatildeo que Sexto Empiacuterico2 apresenta da
filosofia do Jardim quando diz que os epicuristas buscavam apresentar uma ldquoarte de vidardquo
sentido advindo da expressatildeo teacutechnen tinaacute periacute ton biacuteon3 Em seguida diz-se que por essa
razatildeo Epicuro afirmava ser a filosofia uma arte que por discurso e razatildeo busca uma vida
feliz4 A mesma ideia consta nos fragmentos Us 227 e 227b onde eacute dito que Epicuro definiu
tal arte como um procedimento que busca ser uacutetil a vida5 Eacute nesse enquadramento e com essa
finalidade que a physiologiacutea eacute desenvolvida por Epicuro e sobre isso falamos a seguir
11 ndash A physiologiacutea
A physiologiacutea em sentido geral diz respeito agrave investigaccedilatildeo ou exposiccedilatildeo sobre a
natureza (phyacutesis) No livro primeiro da Metafiacutesica Aristoacuteteles usa esse termo para se referir
ao modelo de filosofia praticado pelos primeiros pensadores que chamava de physiologoacutes6 Eacute
neles em especial nos da Jocircnia7 que Epicuro se inspira para pensar a natureza como fonte de
um conhecimento que possa servir para encetar um modelo de realizaccedilatildeo para o homem Em
busca de dar uma fundamentaccedilatildeo ontoloacutegica e um vieacutes praacutetico para a eacutetica Epicuro tambeacutem
1 A vida feliz (μακαρίως ζην) eacute a expressatildeo de um sentido de equiliacutebrio (aqui expresso em uma noccedilatildeo geral) mas que eacute trabalhada por Epicuro em termos de ἀταραξία (ausecircncia de perturbaccedilatildeo na alma) ἀπονία (ausecircncia de dores do corpo) ευσταθέια (boa disposiccedilatildeo) Essas definiccedilotildees encontram-se desenvolvidas por Markus Silva Epicuro Sabedoria e Jardim Rio de Janeiro Relume-Dumaraacute 2003 2 Us 219 Sexto Empiacuterico (Adv Math V 9) 169 επαγγέλλονται γαρ τέχνην τινά περί τον βίον παραδώσειν καΐ δια τούτο Έπίκούρος μεν έλεγε την φιλοσοφίαν ένέργειαν εΐναι λόγοις καΐ διᾰλογισμοΐς τον εύδαίμονα βίον περιποιοθσαν 3 τέχνην τινά περί τον βίον 4 τον εύδαίμονα βίον περιποιοσαν 5 τέχνη εστί μέθοδος ενεργούσα τω βίψ το συμφέρον 6 Aristoacuteteles Metafiacutesica Α5 986b10 7 Anaximandro Anaxaacutegoras Heraacuteclito
24 vai recorrer ao legado de Demoacutecrito Leucipo e Empeacutedocles entre outros preacute-socraacuteticos Isso
porque ele pretende retomando o pensamento que o antecedeu fundamentar na natureza um
modo de viver Seu projeto eacute elaborar uma filosofia que possa conduzir ao esclarecimento
com relaccedilatildeo aos modos de ser da phyacutesis a como ela opera e ateacute que ponto ela determina as
condiccedilotildees de realizaccedilatildeo do homem Eacute preciso haver essa compreensatildeo para se estabelecer um
discernimento a respeito dos propoacutesitos que estatildeo de acordo com a natureza e devem ser
perseguidos e aqueles que resultam das opiniotildees vazias (kenaigrave doacutexai) e devem ser rejeitados
Esse esclarecimento vai ser fundamental para fazer uma correspondecircncia entre o discurso
filosoacutefico e a maneira como se vive
Pensar e viver de acordo com o que se pensa foi um ideal de algumas escolas
filosoacuteficas helenistas8 e Epicuro conservando essa premissa vai elaborar uma compreensatildeo
da phyacutesis cujas repercussotildees vatildeo estar diretamente ligadas agrave necessidade de transformar o
eacutethos do homem grego Eacute a partir de uma redefiniccedilatildeo da forma de perceber a realidade e o
papel de si mesmo no mundo que se pretende redirecionar o estilo de vida Trata-se de
postular um exerciacutecio de investigaccedilatildeo e de entendimento sobre a natureza que jaacute se constitui
como expressatildeo de uma alteraccedilatildeo no modo de existir Eacute nesses termos que a physiologiacutea eacute
apresentada na Carta a Heroacutedoto
Portanto sendo tal caminho uacutetil a todos que se familiarizaram com a investigaccedilatildeo da natureza eu que dedico incessantemente minhas energias agrave investigaccedilatildeo da natureza e desse modo de viver tiro principalmente a minha calma preparei para teu uso uma espeacutecie de epiacutetome e um sumaacuterio dos elementos fundamentais de minha doutrina em sua totalidade (DL X 37) 9
Dessa citaccedilatildeo podemos destacar alguns aspectos O primeiro diz respeito ao caraacuteter
uacutetil do estudo da natureza Ela natildeo eacute apresentada como uma disciplina ou um sistema teoacuterico
sobre a phyacutesis mas relacionada - pelo uso do termo eneacutergema10- a uma ocupaccedilatildeo accedilatildeo ou
atividade cotidiana visando o bem-estar Dessa forma a physiologiacutea para aleacutem de uma visatildeo
acerca da realidade estaacute atrelada a um modo especiacutefico de viver o saacutebio (sophoacutes) ao
perquirir a phyacutesis exercita a proacutepria imperturbabilidade (ataraxiacutea) Isso porque para Epicuro
eacute dessa permanente atividade de buscar compreender a phyacutesis que o saacutebio por si mesmo
estabelece um eacutethos fundamentado na natureza a despeito do que eacute convencionado exoacutegeno
artificial Eacute ancorada nessa perspectiva que a physiologiacutea vai ser delineada como um saber
8 Cinismo estoicismo 9 ὅθεν δὴ πᾶσι χρησίμης οὔσης τοῖς ᾠκειωμένοις φυσιολογίᾳ τῆς τοιαύτης ὁδοῦ παρεγγυῶν τὸ συνεχὲς ἐνέργημα ἐν φυσιολογίᾳ καὶ τοιούτῳ μάλιστα ἐγγαληνίζων τῷ βίῳ ἐποίησά σοι καὶ τοιαύτην τινὰ ἐπιτομὴν καὶ στοιχείωσιν τῶν ὅλων δοξῶν 10 ἐνέργημα pode ser traduzida por ato operaccedilatildeo (no sentido de atividade) Cf Anatole Bailly Op Cit
25 para ser uacutetil no projeto de construccedilatildeo de um modo de viver com base no que eacute inteligido ao se
estudar a phyacutesis Eis o porquecirc de Epicuro afirmar
() a funccedilatildeo da ciecircncia da natureza (physiologiacutea) eacute a determinaccedilatildeo precisa da causa dos elementos principais e nesse conhecimento consiste a felicidade e tambeacutem no conhecimento da natureza real dos corpos que vemos no ceacuteu e na aquisiccedilatildeo de conhecimentos afins que contribuem para o conhecimento completo a esse respeito indispensaacutevel tambeacutem agrave felicidade (DL X 78)11
Quanto mais o homem se exercita na physiologiacutea buscando compreender as forccedilas
que operam no movimento de realizaccedilatildeo da phyacutesis e como se daacute essa dinacircmica mais ele pode
pensar sobre seu sentido de ser no mundo e com isso definir a melhor maneira de viver para
a finalidade que intelige a partir dessa investigaccedilatildeo Assim a physiologiacutea eacute elaborada tendo
em vista e se constituindo como um exerciacutecio de viver a partir do que se pode saber sobre a
natureza Se como afirma SILVA (2003 p 23) ldquoEpicuro define a physiologiacutea como um
exerciacutecio (aacuteskesis) constante de compreensatildeo dessa realidade que eacute para ele a phyacutesisrdquo esse
entendimento remete para uma praacutetica de vida dado que o saacutebio vai colocar para si como
finalidade a tranquilidade - que remete para a percepccedilatildeo de equiliacutebrio que se tem ao observar
a natureza Em outros termos se o eacutethos do saacutebio implica em uma investigaccedilatildeo da phyacutesis eacute
no exerciacutecio de pensar a phyacutesis que ele intelige dela o conhecimento necessaacuterio para orientaacute-
lo na consecuccedilatildeo desse eacutethos Porquanto o saacutebio contempla a natureza calma e estabelece uma
analogia entre como ela se realiza externamente e como ela pode ser realizar internamente
nele mesmo ele vai estabelecer um modo de viver que o faccedila ter essa experiecircncia de
harmonia dentro de si
Daiacute podemos evidenciar outro aspecto da filosofia epicurista a indissociabilidade
entre a physiologiacutea e a eacutetica A investigaccedilatildeo da natureza permite conceber a phyacutesis como um
paradigma de realizaccedilatildeo a partir do qual o saacutebio pensa os limites e os propoacutesitos de sua
existecircncia e busca viver conforme esse entendimento Eacute nesse sentido que vai a advertecircncia de
Epicuro
Se em cada ocasiatildeo em vez de submeter tuas accedilotildees ao objetivo da natureza preferires voltar-te para qualquer outro padratildeo de referecircncia mais proacuteximo quando estiveres fazendo uma escolha ou rejeiccedilatildeo tuas accedilotildees natildeo se coadunaratildeo com teus princiacutepios (DL X 14812)
11 Καὶ μὴν καὶ τὴν ὑπὲρ τῶν κυριωτάτων αἰτίαν ἐξακριβῶσαι φυσιολογίας ἔργον εἶναι δεῖ νομίζειν καὶ τὸ μακάριον ἐν τῇ περὶ μετεώρων γνώσει ἐνταῦθα πεπτωκέναι καὶ ἐν τῷ τίνες φύσεις αἱ θεωρούμεναι κατὰ τὰ μετέωρα ταυτί καὶ ὅσα συγγενῆ πρὸς τὴν εἰς τοῦτο ἀκρίβειανmiddot 12 Εἰ μὴ παρὰ πάντα καιρὸν ἐπανοίσεις ἕκαστον τῶν πραττομένων ἐπὶ τὸ τέλος τῆς φύσεως ἀλλὰ προκαταστρέψεις
26 Ao alicerccedilar sua filosofia no estudo da natureza Epicuro estaacute buscando transformar a
compreensatildeo que o homem tem sobre a phyacutesis e fazecirc-lo relacionar isso com o seu proacuteprio
modo de agir Se sua conduta era pensada no contexto da poacutelis13 visando o exerciacutecio da
cidadania e da poliacutetica trata-se de entatildeo apresentar uma alternativa ao modo de entender o
mundo e nele o papel que o homem pode pensar para si mesmo Natildeo mais a poacutelis mas a
phyacutesis natildeo mais o homem ciacutevico mas o homem para si para experimentar uma vida feliz
(makariacuteos zecircn) Isso porque como esclarece SILVA (2003 p 23) ldquopara Epicuro a natureza
eacute a fonte ou o princiacutepio da vida fiacutesica psiacutequica e eacuteticardquo
Vemos com isso uma mudanccedila na maneira de enxergar o homem A perspectiva eacute
pensar o sentido da existecircncia dele como ser da natureza Dessa maneira a physiologiacutea vai
delinear um movimento de (re)aproximaccedilatildeo entre ele e uma phyacutesis que lhe serve como
espelho para sua realizaccedilatildeo Daiacute que eacute a partir de um desvelamento da phyacutesis ateacute onde eacute
possiacutevel que satildeo pensados o sentido da vida e as accedilotildees do saacutebio - que levam a realizaccedilatildeo
desse sentido Eacute nesses termos que a physiologiacutea vai fundamentar a eacutetica epicurista tanto
quanto remete para a necessidade de uma aproximaccedilatildeo homemnatureza
Eacute no contexto dessa sinergia que posicionamos o postulado segundo o qual uma vida
saacutebia eacute aquela que se realiza como um exerciacutecio de viver de acordo com a natureza (katagrave
phyacutesin) Mas o que significa uma vida katagrave phyacutesin e como ela se relaciona com o estudo da
phyacutesis Antes de entrarmos nessa questatildeo cabe contudo apresentar aqui mesmo que de
modo sumaacuterio a compreensatildeo que Epicuro tem acerca da phyacutesis
111 A phyacutesis
Eacute do entendimento de como a natureza se realiza que vai ser possiacutevel estabelecer uma
relaccedilatildeo com um modo saacutebio de viver Daiacute porque compreender o sentido atribuiacutedo ao uso do
termo phyacutesis vai ser fundamental para destacar o percurso e o projeto filosoacutefico epicurista E eacute
em torno disso que vatildeo orbitar questotildees de natureza gnosioloacutegica e eacutetica como veremos
A histoacuteria natildeo nos possibilitou o acesso aos trinta e sete volumes14 que Epicuro
dedicou ao estudo da phyacutesis restando-nos sobre esse tema apenas as proposiccedilotildees
εἴτε φυγὴν εἴτε δίωξιν ποιούμενος εἰς ἄλλο τι οὐκ ἔσονταί σοι τοῖς λόγοις αἱ πράξεις ἀκόλουθοι 13 O que se postula eacute uma vida de acordo com a natureza (katagrave phyacutesin) portanto mais proacutexima do Jardim e mais afastada da poacutelis da Aacutegora como veremos no item 12 Para os epicuristas uma vida katagrave phyacutesin passa por natildeo ser influenciado nem pela poliacutetica nem pela religiatildeo nem pela cultura nem pelas opiniotildees vazias (kenaigrave doacutexai) 14 Em DL X 27 Dioacutegenes Laeacutercio nos fala da existecircncia da obra Da Natureza em 37 livros dedicados a examinar a phyacutesis
27 fundamentais que constam na Carta a Heroacutedoto que se constitui como um resumo dessa obra
maior (Perigrave Physeos) Entatildeo eacute a partir desse escasso material que precisamos evidenciar o
entendimento de Epicuro com relaccedilatildeo agrave phyacutesis e de que forma o saber que se pode ter sobre
ela pode definir a conduta do saacutebio
Em sentido geral tem sido corrente traduzir o termo phyacutesis por meio de conceitos
como natureza universo ou mesmo realidade Mas conveacutem fazer algumas observaccedilotildees quanto
ao uso que dele faz Epicuro Etimologicamente15 phyacutesis (φύσις -εως) traz a ideia de gerar
fazer crescer engendrar E eacute nessa acepccedilatildeo que Epicuro usa o termo quando trata da geraccedilatildeo
dos corpos compostos e dos mundos (koacutesmoi) Para usarmos as palavras de A Bailly16 ele faz
referecircncia agrave phyacutesis no sentido de ldquoaccedilatildeo de fazer nascer formaccedilatildeo produccedilatildeordquo Verificamos
isso no passo 45 da Carta a Heroacutedoto onde se fala do movimento dos aacutetomos que se
chocando contra outros tanto pode gerar novos compostos quanto pode levar agrave desagregaccedilatildeo
de agrupamentos que jaacute existem Processo que se repete desde sempre e para sempre Assim
ldquoessa repeticcedilatildeo se tivermos em mente todos os pontos mencionados proporciona um esboccedilo
suficiente para o entendimento da natureza (phyacuteseos) das coisas fundamentaisrdquo (DL X 45)17
Mas o termo tambeacutem eacute empregado quando se trata daquilo que eacute origem princiacutepio
(archeacute) de algo Isso diz respeito aos compostos e ao vazio (soacutemata kai kenoacuten) como se
mostra respectivamente nestas passagens ldquoDisso resulta necessariamente que esses
elementos que se agrupam de vaacuterias maneiras satildeo indestrutiacuteveis e natildeo tem a natureza (phyacutesin)
do mutaacutevel ()rdquo (DL X 54)18 ldquoSe aquilo que chamamos vazio ou espaccedilo ou aquilo que por
natureza (phyacutesin) eacute intangiacutevel ()rdquo (DL X 40)19
Epicuro tambeacutem usa phyacutesis quando quer aludir ao todo ou ao que eacute tomado em sua
totalidade ou em sua constituiccedilatildeo Tal eacute o caso verificado no passo 35 tambeacutem da Carta a
Heroacutedoto Nele se diz ldquopara os incapazes de estudar acuradamente cada um de meus escritos
sobre a natureza (Perigrave Physeos) ()rdquo (DL X 35) Note-se que ao dizer ldquosobre a naturezardquo
Epicuro se refere agrave ldquonatureza ou maneira de serrdquo20 tanto daquilo que compotildee o microcosmo
quanto do que eacute percebido pelos sentidos Nesse caso a phyacutesis eacute considerada como
ldquodisposiccedilatildeo naturalrdquo21 para ser o que se eacute ou em outros termos em seus modos de realizaccedilatildeo
15 CHASSANG A Dictionnaire Grec-Franccedilais Paris Garnier Fregraveres 1865 16 Anatole Bailly Op Cit 17 Ἡ τοσαύτη δὴ φωνὴ τούτων πάντων μνημονευομένων τὸν ἱκανὸν τύπον ὑποβάλλει ltταῖς περὶgt τῆς τῶν ὄντων φύσεως ἐπινοίαις 18 ὅθεν ἀναγκαῖον τὰ [μὴ] μετατιθέμενα ἄφθαρτα εἶναι καὶ τὴν τοῦ μεταβάλλοντος φύσιν οὐκ ἔχοντα 19 εἰ ltδὲgt μὴ ἦν ὃ κενὸν καὶ χώραν καὶ ἀναφῆ φύσιν ὀνομάζομεν 20 Anatole Bailly OpCit 21 Anatole Bailly Idem
28 Considerando essas nuances podemos falar da compreensatildeo que a physiologiacutea tem a
respeito de como se realiza a phyacutesis22 Para Epicuro ela se apresenta segundo quatro
maneiras
O todo (tograve pacircn) eacute a realizaccedilatildeo da phyacutesis tomada em seu niacutevel macrofiacutesico Diz respeito
agrave totalidade de tudo o que haacute se estendendo indefinidamente no tempo e espaccedilo pois ldquoo todo
eacute infinitordquo (DL X 41)23 Enquanto totalidade a phyacutesis eacute imutaacutevel ldquoporque aleacutem do todo
nada haacute que possa penetrar nele e provocar transformaccedilatildeordquo (DL X 39)24 e porque as
mudanccedilas que acontecem com os corpos mundos e microcosmos natildeo alteram sua constituiccedilatildeo
geral ldquoo todo sempre foi exatamente como eacute agora e sempre seraacute assimrdquo (idem)25 As
alteraccedilotildees apenas se datildeo no niacutevel dos compostos que o constituem Dessa forma o todo pode
ser compreendido como uno na sua integralidade e muacuteltiplo naquilo que o compotildee corpos
(ser) e vazio (natildeo ser)26
Sendo o todo constituiacutedo de corpos e vazios entatildeo outra forma de realizaccedilatildeo da
phyacutesis apontada por Epicuro se verifica na dimensatildeo microcoacutesmica dela Aiacute encontramos o
que tambeacutem natildeo se modifica se caracterizando como fundamento de toda a realidade Esse
entendimento estabelecido a respeito desse outro modo de realizaccedilatildeo da phyacutesis tem suas bases
no pensamento preacute-socraacutetico sob a forma do atomismo de Leucipo e Demoacutecrito27 ldquoos
primeiros princiacutepios do universo satildeo os aacutetomos e o vaziordquo Lucreacutecio diraacute a esse respeito ldquotoda
a natureza enquanto existe por si mesma eacute formada de duas coisas existem com efeito os
corpos e o vazio no qual estes se encontram e onde se movimentam nas vaacuterias direccedilotildeesrdquo
(Lucr I 419-421)28 Eacute a partir dessa concepccedilatildeo atomiacutestica preacute-socraacutetica que Epicuro vai tentar
explicar a pluralidade daquilo que existe
O conceito de aacutetomo29 (aacutetomos) remete ao que eacute pequeno impenetraacutevel maciccedilo
22 Uma discussatildeo mais detalhada sobre os modos de realizaccedilatildeo da phyacutesis pode ser encontrada no capiacutetulo 01 de Sabedoria e Jardim de Markus Figueira da Silva Op Cit 23 τὸ πᾶν ἄπειρόν ἐστι 24 παρὰ γὰρ τὸ πᾶν οὐθέν ἐστιν ὃ ἂν εἰσελθὸν εἰς αὐτὸ τὴν μεταβολὴν ποιήσαιτο 25 Καὶ μὴν καὶ τὸ πᾶν ἀεὶ τοιοῦτον ἦν οἷον νῦν ἐστι καὶ ἀεὶ τοιοῦτον ἔσται 26 Temos aqui uma ontologia que admite o natildeo-ser como ser O vazio tem existecircncia eacute o natildeo-ser com propriedade de ser Vale lembrar que desde Demoacutecrito o vazio eacute dotado de existecircncia uma vez que eacute preciso admitir isso para que haja movimento 27 Conforme DL IX 44 Em Leucipo e Demoacutecrito de Abdera (460-360 aC) Epicuro encontra as bases de uma concepccedilatildeo atomista que vai lhe servir para a elaboraccedilatildeo de sua physiologiacutea 28 Omnis ut est igitur per se natura duabus constitit in rebus nam corpora sunt et inane haec in quo sita sunt et qua diversa moventur LUCREacuteCIO De Rerum Natura Joatildeo Pessoa Ideia 2016 Traduccedilatildeo introduccedilatildeo e notas de Juvino Alves Maia Junior Hermes Oriacutegenes Duarte Vieira e Felipe dos Santos Almeida 29 Aacutetomos (singular) aacutetomoi (plural) DL X 41 42 43 44 45 48 50 54 55 56 59 61 62 65 66 86 99 102 110 115
29 indivisiacutevel imutaacutevel uno Epicuro fala dos aacutetomos (aacutetomoi) como ldquoessecircncias inteirasrdquo30
reverberando a concepccedilatildeo atomista a respeito da menor partiacutecula corpoacuterea constitutiva da
phyacutesis Assim natildeo estaacute sujeito a sofrer modificaccedilatildeo em sua constituiccedilatildeo e nenhuma alteraccedilatildeo
qualitativa Ele natildeo vem a ser e natildeo deixa de ser Natildeo estando sujeito a mudanccedilas o aacutetomo eacute
pensado como um princiacutepio corpoacutereo de permanecircncia da phyacutesis o que nos remete assim como
o todo (tograve pan) para uma realidade ontologicamente definida como sendo sempre a mesma
Esses elementos satildeo os aacutetomos indivisiacuteveis e imutaacuteveis se eacute verdade que nem todas as coisas poderatildeo parecer e resolver-se no natildeo-ser Com efeito os aacutetomos satildeo dotados da forccedila necessaacuteria para permanecerem intactos e para resistirem enquanto os compostos se dissolvem pois satildeo impenetraacuteveis por sua proacutepria natureza e natildeo estatildeo sujeitos a uma eventual dissoluccedilatildeo Consequentemente os princiacutepios das coisas satildeo indivisiacuteveis e de natureza corpoacuterea (DL X 41)31
Como propriedades os aacutetomoi possuem forma (schematoacutes) tamanho (megeacutethous) e
peso (baacuterous) Eles satildeo inteligiacuteveis agrave psycheacute por meio de analogias a partir do que eacute percebido
pelos sentidos Eacute por meio dessa operaccedilatildeo que eacute possiacutevel estabelecer uma compreensatildeo a
respeito de suas caracteriacutesticas Sobre elas se diz que quanto agrave forma haacute aacutetomos diferentes
entre si o que permite a agregaccedilatildeo mais facilmente com uns e a incompatibilidade com
outros Mas essa variaccedilatildeo natildeo eacute infinita apenas incalculaacutevel Seu tamanho varia mas natildeo
infinitamente dado que nenhum pode ser percebido pelos sentidos Quanto ao peso eacute a causa
do movimento dos aacutetomos no vazio
O aacutetomos como explica Epicuro existe em quantidade infinita porque o todo eacute
infinito Ao se agregar a outros aacutetomos gera os corpos compostos Mas para que haja a
formaccedilatildeo desses outros corpos eacute preciso admitir que ldquoos aacutetomos estatildeo em movimento
contiacutenuo por toda a eternidaderdquo (DL X 43)32 e isso pressupotildee a existecircncia do vazio Afinal
eacute nele que os aacutetomos se movimentam E quando colidem uns com outros datildeo origem a novos
aglomerados ou desfazem desagregam devido a esses choques aqueles que foram formados
anteriormente
Mas esse vazio natildeo eacute o a causa do movimento atocircmico Para explicaacute-lo se faz
referecircncia a trecircs fatores o peso os choques e a declinaccedilatildeo Eacute o peso33 que faz com que os
30 Em grego ὅλας φύσεις Marcel Conche Op Cit traduz por naturezas completas 31 Ταῦτα δέ ἐστιν ἄτομα καὶ ἀμετάβλητα εἴπερ μὴ μέλλει πάντα εἰς τὸ μὴ ὂν φθαρήσεσθαι ἀλλrsquo ἰσχύοντα ὑπομενεῖν ἐν ταῖς διαλύσεσι τῶν συγκρίσεων πλήρη τὴν φύσιν ὄντα καὶ οὐκ ἔχοντα ὅπῃ ἢ ὅπως διαλυθήσεται ὥστε τὰς ἀρχὰς ἀτόμους ἀναγκαῖον εἶναι σωμάτων φύσεις 32 Κινοῦνταί τε συνεχῶς αἱ ἄτομοι τὸν αἰῶνα 33 J A M Pessanha em um estudo introdutoacuterio agrave traduccedilatildeo em portuguecircs da tese de doutoramento de Karl Marx destaca que o movimento atocircmico seguindo em linha reta como decorrecircncia de uma concepccedilatildeo de peso do aacutetomo
30 aacutetomos caiam retiliacuteneos vertical e paralelamente em velocidade constante no vazio infinito
Jaacute pelo choque algum aacutetomo em movimento colide com outro podendo redefinir sua
trajetoacuteria e produzir ou desfazer agregados atocircmicos Mas para haver esses choques entre
aacutetomos que caem paralelamente no vazio eacute preciso considerar a possibilidade de que eles
escapem a sua trajetoacuteria e assim colidam com outros A esse desvio se chama declinaccedilatildeo
(pareacutenklisis) o que seraacute traduzido por Lucreacutecio por clinamen34
Aqui precisamos tecer algumas consideraccedilotildees sobre o parecircnklisis dada a importacircncia
desse conceito para a fundamentaccedilatildeo da eacutetica epicurista Esses desvios que os aacutetomoi
descrevem em sua trajetoacuteria original satildeo no plano fiacutesico necessaacuterios para que haja as colisotildees
que levam agrave formaccedilatildeo de corpos compostos e dos mundos Trata-se de postular mais uma
causa para um movimento sutil do aacutetomos que se daacute sem fator externo a ele Tal declinaccedilatildeo
resulta de um princiacutepio intriacutenseco do aacutetomo da mesma forma que o peso E isso seria
suficiente para poder justificar um niacutevel de indeterminismo ou acaso operando junto agrave
causalidade mecacircnica da natureza
Eacute a partir desse fenocircmeno que vai ser possiacutevel a Epicuro defender a liberdade35
(eleutheriacutea) no campo eacutetico Para evitar o riacutegido determinismo engendrado ao se admitir
causas puramente mecacircnicas no movimento do aacutetomo a adoccedilatildeo uma casualidade permite
fundamentar ontologicamente o que - no plano eacutetico - diz respeito agrave liberdade humana
Mas a tese do parecircnklisis natildeo consta nos escritos que a tradiccedilatildeo nos legou de Epicuro
Neles observamos que tal desvio estaacute impliacutecito mas apenas na doxografia posterior eacute exposto
claramente Daiacute porque se abrem em torno dessa questatildeo vaacuterias discussotildees natildeo conclusivas A
principal delas levantada por Hermann Usener eacute que haveria uma lacuna textual no passo 43
da Carta a Heroacutedoto E ali poderia estar localizada a menccedilatildeo ao parecircnklisis Essa hipoacutetese eacute
acompanhada por Maurice Solovine (1965) e Jean Salem (1993)
Jean Pierre Faye em introduccedilatildeo ao texto de Maurice Solovine (1965) destaca o
trabalho de Aeacutecio Lucreacutecio Ciacutecero e Dioacutegenes de Œnoanda para tentar legitimar o
parecircnklisis como uma elaboraccedilatildeo de Epicuro para pensar no campo da phyacutesis um
existiria apenas em Epicuro MARX Karl Diferenccedila entre as Filosofias da Natureza em Demoacutecrito e Epicuro Satildeo Paulo Global Edtora sd 34 No canto II do poema Da Natureza onde Lucreacutecio versa sobre os fundamentos da eacutetica e sobre a filosofia como terapecircutica eacute explicitada a questatildeo do clinamen termo que aparece apenas uma vez no verso 292 Para se remeter ao desvio do aacutetomo ele tambeacutem usa palavras como depellere declinare inclinare (Lucr 219 221 243 250 253 259) ldquoClinamen parece ter sido criado por Lucreacutecio para evitar clinatio que natildeo podia entrar em seus versos hexacircmetrosrdquo (SALEM 1997 p 67) apud SILVA 2018 p 53 35 ldquoSe em bom materialismo filosoacutefico nada nasce do nada a liberdade que noacutes experimentamos agrave maneira de tudo que eacute vivo deve certamente traduzir em nossa escala uma propriedade presente no aacutetomo a declinaccedilatildeo seria precisamente essa propriedaderdquo (SALEM 1993 p 38)
31 fundamento para a liberdade humana Mas trata-se de uma incorreccedilatildeo pois natildeo haacute nos textos
atribuiacutedos a Epicuro o uso desse termo Ocorre que como explica Solovine teria havido a
inserccedilatildeo de um conceito pensado por epicuristas tardios mas seria errado afirmar estar
expressa nos escritos de Epicuro essa definiccedilatildeo ldquoE Solovine pensa mesmo em poder localizar
a zona de erro36 sem duacutevida com Zenatildeo de Sidon ou com Feacutedro o epicuristardquo (p 10) De
acordo com Faye eles eacute que teriam apresentado a noccedilatildeo de parecircnklisis Mas ldquoa uacutenica coisa
certa ateacute o presente eacute que nenhum texto antigo colocou em questatildeo a atribuiccedilatildeo da declinaccedilatildeo
ao pai dos epicuristasrdquo (p 12)37
Para suprir essa lacuna o poema de Lucreacutecio Da Natureza38 nos versos 216 a 293 do
canto II ao argumentar sobre o parecircnklisis diz que sem ele natildeo haveria o encontro dos
aacutetomos o que eacute fundamental para a criaccedilatildeo e para a diversidade daquilo que existe No verso
244 ele explica que esse movimento eacute um desvio nec plus quam minimum (natildeo mais que
miacutenimo) o que poderiacuteamos pensar como algo iacutenfimo e natildeo percebido pelos sentidos E nos
fragmentos de Dioacutegenes de Œnoanda podemos ler ldquonatildeo sabes tu quem quer sejas que haacute um
tipo de movimento livre nos aacutetomos que Demoacutecrito natildeo descobriu mas que Epicuro tornou
conhecido sendo uma declinaccedilatildeo como ele mostra a partir dos fenocircmenosrdquo (Œno fr 54
II)39 Ao dizer que Epicuro ldquomostra a partir dos fenocircmenosrdquo Dioacutegenes estaacute se referindo a um
recurso do pensamento que por meio de analogiacuteas com realidade sensiacutevel possibilita falar
daquilo que natildeo pode ser percebido pelos sentidos como os aacutetomos
Agora retomando o que diziacuteamos sobre os modos de ser da natureza quando Epicuro
se refere a corpos ele usa o termo socircma40 (σῶμα ατος) Mas cabe notar que haacute tanto os corpos
simples (o aacutetomo tomado individualmente) quanto os corpos compostos - formados por
agrupamento de aacutetomos e vazio a que ele tambeacutem se refere como de synkriacuteseis41 Eacute ao se
referir a esses compostos que Epicuro faz alusatildeo a mais uma maneira de realizaccedilatildeo da phyacutesis
Isso considera que as coisas vecircm a ser pela agregaccedilatildeo de aacutetomos e deixam de ser pela
desagregaccedilatildeo deles A synkriacuteseis diferentemente dos aacutetomos estaacute sujeita ao movimento de
geraccedilatildeo e corrupccedilatildeo E para isso como vimos tem um papel fundamental o movimento e o
36 Ou seja a partir dessa inserccedilatildeo conceitual feita por Zenatildeo e Feacutedro teria sido estabelecida a crenccedila de que a noccedilatildeo de parecircnklisis proveacutem dos textos de Epicuro 37 Essas possibilidades constam em MAFFEZZOLLI Marcone Eleutheriacutea a noccedilatildeo de liberdade na eacutetica de Epicuro Dissertaccedilatildeo de Mestrado UFRN 2010 38 LUCREacuteCIO Da Natureza Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 (Os Pensadores) 39 Ne sais-tu donc pas qui que tu puisses ecirctre qursquoil y a une sorte de mouvement libre dans les atomes que Deacutemocrite nrsquoa pas deacutecouvert mais qursquoEpicure fit connaicirctre eacutetant une deacuteclinaison comme il le montre agrave partir des pheacutenomenegraves 40 DL X 39 40 41 42 47 48 55 56 63 66 67 68 69 70 71 86 94 41 DL X 40 41 42 54 55 62 66 73 110
32 desvio de trajetoacuteria dos aacutetomoi permitindo que eles se agreguem a outros ou que seja a causa
da desagregaccedilatildeo dos conjuntos atocircmicos jaacute existentes Eacute esse movimento que explica que tais
corpos alterem sua forma aumentem ou diminuam de tamanho e de peso Estatildeo assim
sujeitos agraves mudanccedilas em suas caracteriacutesticas qualitativas na medida em que o ordenamento e a
quantidade de aacutetomos tambeacutem satildeo alterados Se a forma tamanho e peso inclinam certos
aacutetomos a se agregarem com outros em funccedilatildeo de similaridades quanto a essas caracteriacutesticas
do mesmo modo a incompatibilidade ou desacordo dessas caracteriacutesticas podem impedir ou
dificultar a formaccedilatildeo de outros arranjos corpoacutereos Em todo caso os aacutetomos que lhes formam
natildeo sofrem alteraccedilatildeo mas ldquoformam os compostos e nos aacutetomos os compostos se dissolvemrdquo
(DL X 42)42
Por fim quando Epicuro se refere aos mundos e para isso usa o termo koacutesmoi
tambeacutem estaacute se remetendo a mais uma forma de realizaccedilatildeo da phyacutesis
O mundo eacute uma porccedilatildeo circunscrita do universo compreendendo astros e terra e todas as coisas visiacuteveis destacado do infinito tem um periacutemetro redondo ou triangular ou de qualquer outra forma e termina num limite poroso ou denso em rotaccedilatildeo ou imoacutevel cuja dissoluccedilatildeo levaraacute agrave ruiacutena tudo que estaacute nele (DL X 88)43
O mundo eacute um ldquomegacorpordquo44 disperso pelo universo infinito meio a um nuacutemero
infinito de outros mundos Sendo constituiacutedo por outros corpos compostos mundos e por
aacutetomos e vazio estaacute sujeito a tanto ganhar elementos quanto perder Assim pode surgir
devido agrave agregaccedilatildeo de aacutetomos e corpos compostos e pode deixar de ser por desagregaccedilatildeo Em
suma eacute no mundo onde as coisas estatildeo
112 Necessidade e acaso
Ao falarmos de como Epicuro pensa os modos de realizaccedilatildeo da phyacutesis (tograve pan soacutemata
kaigrave kenoacuten synkriacuteseis e koacutesmos) procuramos destacar como o movimento dos aacutetomos
determinado pelo peso (baacuterous) e pela declinaccedilatildeo (parecircnklisis)45 eacute indispensaacutevel para
conceber os processos de geraccedilatildeo e corrupccedilatildeo dos corpos compostos e dos mundos
42 τὰ ἄτομα τῶν σωμάτων καὶ μεστά ἐξ ὧν καὶ αἱ συγκρίσεις γίνονται καὶ εἰς ἃ διαλύονται 43 Κόσμος ἐστὶ περιοχή τις οὐρανοῦ ἄστρα τε καὶ γῆν καὶ πάντα τὰ φαινόμενα περιέχουσα ἀποτομὴν ἔχουσα ἀπὸ τοῦ ἀπείρου καὶ [κατα]λήγουσα ἐν πέρατι ἢ ἀραιῷ ἢ πυκνῷ καὶ οὗ λυομένου πάντα τὰ ἐν αὐτῷ σύγχυσιν λήψεται [καὶ λήγουσαν] ἢ ἐν περιαγομένῳ ἢ ἐν στάσιν ἔχοντι καὶ στρογγύλην ἢ τρίγωνον ἢ οἵαν δήποτε περιγραφήνmiddot πανταχῶς γὰρ ἐνδέχεταιmiddot 44 SILVA Markus Termos Filosoacuteficos de Epicuro Coimbra Coimbra University Press 2018 p 48 45 Vale lembrar que o parecircnklisis natildeo eacute um termo encontrado nos textos que a tradiccedilatildeo nos legou de Epicuro mas a doxografia nos permite ver nessa definiccedilatildeo uma tese epicurista
33 Sublinhamos contudo que eacute a partir da noccedilatildeo de clinamen46 que o epicurismo explica como
os aacutetomoi desviam de sua trajetoacuteria e se chocam com outros dando origem no plano fiacutesico a
agregados tanto quanto podem desfazer os jaacute existentes E isso se daacute por meio de choques ou
encontros47 (apaacutentesis) em uma dinacircmica onde natildeo operam outras causas aleacutem das fiacutesicas
Esse desvio de rumo que se daacute ao acaso devido a um princiacutepio inerente ao proacuteprio aacutetomo vai
permitir compreender os fenocircmenos da natureza natildeo somente a partir de causas mecacircnicas
das quais natildeo se pode escapar Resulta daiacute a possibilidade de conceber os modos de realizaccedilatildeo
da phyacutesis a partir de uma relaccedilatildeo entre o que eacute inexoraacutevel e o que eacute contingente
Essa discussatildeo traz consigo duas noccedilotildees que vatildeo ser evocadas ao se pensar a
construccedilatildeo da conduta do saacutebio a necessidade (anaacutenke) e o acaso (tycheacute) Eacute considerando
uma reflexatildeo sobre esses aspectos que vai se buscar uma clareza quanto ao que concerne ao
homem mudar transformar quanto ao que ele pode evitar e o que ele deve buscar - e Epicuro
se refere a isso como o que ldquodepende de noacutesrdquo48 (parrsquohemacircs)49 Tambeacutem o sophoacutes deve ter o
discernimento para perceber aquilo que natildeo estaacute sob o seu alcance mudar o que ele natildeo pode
evitar circunstacircncias sobre as quais ele natildeo consegue intervir Assim tendo clara a percepccedilatildeo
sobre como opera a realidade eacute possiacutevel pensar a proacutepria realizaccedilatildeo meio ao que eacute inevitaacutevel
e ao que pode se fazer de outra maneira Afinal se ldquoalgumas coisas acontecem
necessariamente outras por acaso e outras dependem de noacutesrdquo (DL X 133)50 eacute preciso
entender a relaccedilatildeo entre a necessidade (anaacutenke) e o acaso (tycheacute) operando na natureza e
definindo os modos de realizaccedilatildeo da phyacutesis para poder postular a liberdade possiacutevel e
necessaacuteria para definir e praticar um modo de vida voltado para a realizaccedilatildeo de um modo
autecircntico de existir
A noccedilatildeo de anaacutenke no atomismo estaacute relacionada com a ldquonecessidade mecacircnica das
causas puramente fiacutesicas que operam sem finalidade (teacutelos)rdquo (SILVA 2003 p 36) Nos textos
de Epicuro anaacutenke se remete para a ldquonecessidade de realizaccedilatildeo de uma natureza particular
(corpo ou mundo) segundo seu modo proacuteprio de ser isto eacute ser por natureza eacute ser por
46 Essa referecircncia ao parecircnklisis eacute apresentada por Lucreacutecio no poema Da Natureza Ver nota 34 deste capiacutetulo Vale destacar que o clinamen eacute uma indeterminaccedilatildeo Na cineacutetica epicurista se trata de uma propriedade incerta indeterminada que poderia estar relacionada a uma propriedade determinada como o movimento baacutesico dos aacutetomos 47 Idem 48 DL X 133 49 A noccedilatildeo de parrsquohemacircs pode ser pensada como fazendo referecircncia ao que estaacute ao ldquonosso poderrdquo cf BARBOSA Renato dos Santos A Noccedilatildeo de Parrsquohemacircs na Filosofia de Epicuro o que pode o homem Tese apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia UFRN 2019 Ainda natildeo publicada 50 γίνεσθαι ἃ μὲν κατrsquo ἀνάγκην ἃ δὲ ἀπὸ τύχης ἃ δὲ παρrsquo ἡμᾶς διὰ τὸ τὴν μὲν ἀνάγκην ἀνυπεύθυνον εἶναι τὴν δὲ τύχην ἄστατον ὁρᾶν τὸ δὲ παρrsquo ἡμᾶς ἀδέσποτον
34 necessidaderdquo (Idem) Em Epicuro isso diz respeito a como as coisas tem naturalmente que ser
e acontecer Dessa forma natildeo haacute uma compreensatildeo de anaacutenke como algo relativo ao que eacute
fatalista determinista ou que remete para alguma divindade capaz de definir destinos a seu
gosto
Contudo verificamos que essa tem sido uma interpretaccedilatildeo corrente Nesse vieacutes
postula-se a anaacutenke como riacutegido determinismo natural que se estenderia ateacute o campo da
decisatildeo e da atuaccedilatildeo humana Observamos essa tendecircncia por exemplo na tese de Karl Marx
onde ele discute as Diferenccedilas entre as Filosofias da Natureza em Demoacutecrito e Epicuro51
Nela Epicuro e Demoacutecrito satildeo contrastados e as diferenccedilas de suas proposiccedilotildees filosoacuteficas
acerca da phyacutesis satildeo ldquoexageradamenterdquo acentuadas enfatizando no campo eacutetico um
distanciamento entre eles em prol da filosofia epicurista
Demoacutecrito na visatildeo de Marx eacute reduzido a um ceacutetico e empiacuterico que considera a
natureza tatildeo somente do ponto de vista da necessidade Jaacute Epicuro eacute apresentado como um
filoacutesofo dogmaacutetico que centra sua visatildeo de mundo a partir da noccedilatildeo de um acaso libertador
Mas ldquoessas contradiccedilotildees parecem encerrar um absurdo Eacute difiacutecil pensar que esses dois
homens que se opotildee em tudo defendam a mesma doutrina E todavia aparentemente
acham-se relacionados entre sirdquo avalia Pessanha52 Assim se a natureza eacute regida pela anaacutenke
que estabelece um riacutegido mecanismo e um determinismo extensivo tanto agrave phyacutesis e quanto agrave
anthropophyacutesis como pensar valores e modelos de conduta para o homem Como diante
daquilo que parece derrogar a possibilidade de liberdade ele pode julgar e escolher o que lhe
cabe Admitir apenas um princiacutepio gerador do movimento dos aacutetomos pensando-os com
regidos apenas por leis mecacircnicas implica em enredar o homem em um encadeamento de
eventos do qual ele natildeo poderia se desviar
Mas para aleacutem desse enquadramento o que Epicuro postula eacute que a anaacutenke deve ser
entendida com relaccedilatildeo ao modo de ser dos corpos e dos mundos que satildeo o que satildeo por
natureza ou seja por necessidade Mas essa necessidade natildeo se estende ao campo eacutetico daiacute
ele dizer que ldquocoisa maacute eacute a necessidaderdquo quando projetada ao campo do agir humano ldquomas
natildeo haacute necessidade nenhuma de viver com necessidaderdquo (SV 9)53 porque a anankeacute natildeo se
contrapotildee agrave liberdade que caracteriza o eacutethos do homem O sophoacutes sabe que algumas coisas
acontecem por necessidade outras por acaso mas tambeacutem haacute o que lhe compete54
51 Karl Marx Op Cit 52 Joseacute Ameacuterico Motta Pessanha em texto introdutoacuterio agrave tese de Marx (Op Cit) p 7 53 Κακὸν ἀνάγκη ἀλλrsquo οὐδεμία ἀνάγκη ζῆν μετὰ ἀνάγκης 54 DL X 133
35 Outra noccedilatildeo importante para pensar a conduta do saacutebio eacute estabelecida em torno do
termo tyacuteche Segundo definiccedilatildeo de Bailly55 o vocaacutebulo τύχη se refere ldquoao que o homem
espera por decisatildeo dos deusesrdquo Isso implica em colocaacute-lo na condiccedilatildeo de quem vecirc a proacutepria
realizaccedilatildeo como decorrente da sorte ou do acaso Uma vez que depende da deusa Tyacuteche
definir a fortuna ou os infortuacutenios que cabe a cada um isso lhe tira a possibilidade de ser o
protagonista de sua existecircncia
Aleacutem disso admitir esse tipo de forccedila divina agindo na natureza deixa margem para a
apreensatildeo e o medo quanto ao que haacute de acontecer Como nada poderia ser previsto o homem
viveria na anguacutestia de poder a qualquer momento se deparar com desventuras Ora ldquopor
causa da incerteza sua vida inteira seraacute levada agrave confusatildeo e jogada por terrardquo (SV 57)56 e isso
vai contra agrave necessidade de viver tranquilamente postulada por Epicuro
Mas na filosofia epicurista natildeo estaacute em questatildeo a accedilatildeo dos deuses mas das forccedilas que
naturalmente operam na phyacutesis E nesse sentido tyacuteche vai ser entendida como o acaso o
fortuito o que escapa agrave necessidade E isso estaacute relacionado agrave ldquonegaccedilatildeo de toda finalidade que
poderia existir no movimento necessaacuterio de constituiccedilatildeo e desconstituiccedilatildeo dos corpos e
mundosrdquo (SILVA 1993 p 36) Assim a ocorrecircncia do acaso nos fenocircmenos da natureza
restringe limita a anaacutenke permitindo conceber a phyacutesis desprovida de uma orientaccedilatildeo
teleoloacutegica e o homem sem a imposiccedilatildeo do destino O acaso existe como fenocircmeno fiacutesico
tanto quando a necessidade natildeo havendo nenhum aspecto miacutetico ou religioso determinando
os modos deles atuarem na natureza Eles se relacionam aos mecanismos de produccedilatildeo das
coisas agrave pluralidade dos mundos e agrave variedade dos corpos ou seja integram e permitem
compreender fenomenicamente os modos de realizaccedilatildeo da phyacutesis
Nesse sentido quando projetamos as noccedilotildees de anaacutenke e tyacuteche para o acircmbito da eacutetica
epicurista podemos preconizar que Epicuro quer ao defender a possibilidade de acaso na
phyacutesis aleacutem de circunscrever as causa do movimento no campo do imanente advogar um
niacutevel de liberdade para a deliberaccedilatildeo humana na anthropophyacutesis Afinal se a necessidade ao
evocar o sentido de destino ou divindade que define a trajetoacuteria de vida do homem prevalece
na natureza entatildeo ele estaria preso a uma teia de acontecimentos inexoraacuteveis diante dos quais
ele natildeo conseguiria exercitar sua vontade Nesse sentido natildeo caberia imputar a ele a
responsabilidade por suas accedilotildees uma vez que o homem natildeo poderia por si mesmo definir
sua maneira de viver Do mesmo modo se o acaso somente ele operasse na natureza o medo
55 Anatole Bailly Op Cit 56 εἰ γὰρ προήσεται τὸν φίλον ὁ βίος αὐτοῦ πᾶς διrsquo ἀπιστίαν συγχυθήσεται καὶ ἀνακεχαιτισμένος ἔσται
36 e a incerteza do que estaria por vir mitigaria a possibilidade de pensar uma vida tranquila
Assim ldquoeacute evidente que a necessidade gera a irresponsabilidade e que o acaso eacute inconstanterdquo
(DL X 133)57
De sorte que para Epicuro a natureza eacute regida a partir de uma relaccedilatildeo anaacutenketychegrave
onde o que acontece mesmo o acaso acontece por necessidade e portanto sem uma
finalidade (teacutelos) Ou seja os corpos satildeo gerados se desenvolvem e se desagregam por
necessidade Mas por necessidade o acaso tambeacutem interfere nessa natureza trazendo o
fortuito o contingencial para a realidade e permitindo explicar a pluralidade dos
acontecimentos E assim como a phyacutesis natildeo eacute acontecimento tatildeo somente da necessidade o
homem natildeo estaacute sempre enredado em uma teia fatalista da qual ele natildeo possa escapar No
campo eacutetico o acaso vai remeter agrave possibilidade de autodeterminaccedilatildeo do sophoacutes que pode
por si mesmo por analogia ao aacutetomo desviar sua trajetoacuteria definir seu modo de viver e
assumir as responsabilidades por suas escolhas Afinal
Se em bom materialismo filosoacutefico nada nasce do nada a liberdade que noacutes experimentamos como todos os seres vivos deve certamente traduzir em nossa escala uma propriedade realmente presente nos aacutetomos a declinaccedilatildeo seria precisamente essa propriedade (SALEM 1993 p 38)
E com base nessa relaccedilatildeo anaacutenketychegrave que se estabelece uma inter-relaccedilatildeo
fundamental entre a physiologiacutea e o eacutethos na medida em que permite pensar um
espelhamento no modo de viver do saacutebio daquilo que se estaacute inteligindo a partir de uma
reflexatildeo sobre as forccedilas que operam na natureza Note-se que eacute em torno da noccedilatildeo de acaso
que Karl Marx58 vai tematizar a liberdade humana Para ele da mesma forma que a phyacutesis natildeo
estaacute sujeita somente agrave necessidade a natureza humana tambeacutem natildeo E isso se estende para o
campo social onde haacute portanto a possibilidade do homem escapar a qualquer determinismo
pois ldquoas coisas que dependem de noacutes satildeo livremente escolhidas e satildeo naturalmente
acompanhadas de censura e louvorrdquo (DL X 133)59
Como resultado o saacutebio precisa meditar sobre toda essa relaccedilatildeo entre acaso e
necessidade e sobre os modos de ser da phyacutesis uma vez que isso diz respeito agrave sua proacutepria
realizaccedilatildeo Ao tentar explicar como a natureza se realiza e que forccedilas operam nesse processo
Epicuro o faz dentro dos limites de uma compreensatildeo sensiacutevel da realidade ldquoNa criaccedilatildeo dos
compostos atocircmicos na formaccedilatildeo de mundos complexos natildeo haacute intervenccedilatildeo nem da
57 διὰ τὸ τὴν μὲν ἀνάγκην ἀνυπεύθυνον εἶναι τὴν δὲ τύχην ἄστατον ὁρᾶν 58 Op Cit 59 τὸ δὲ παρrsquo ἡμᾶς ἀδέσποτον ᾧ καὶ τὸ μεμπτὸν καὶ τὸ ἐναντίον παρακολουθεῖν πέφυκεν
37 Divindade na forma de Providecircncia nem tampouco a Necessidade Natildeo haacute teleologia
coacutesmica neste sistema atocircmicordquo (GUAL 1985 p 113)
113 A Anthropophyacutesis (acerca da natureza humana)
O conhecimento acerca da phyacutesis e seus modos de ser vai ser fundamental para o
homem pensar as relaccedilotildees que ele estabelece no mundo e com a natureza Se Epicuro natildeo
recorre ao divino para pensar a phyacutesis tambeacutem natildeo o faz com relaccedilatildeo agrave anthropophyacutesis Esta
eacute concebida a partir do mesmo modelo explicativo que tem o aacutetomo (aacutetomos) como princiacutepio
(archeacute) de toda realidade e como elemento corpoacutereo (stoicheiacuteon) (portanto dotado de
qualidades como forma e peso) que vai constituir - devido aos movimentos aos choques agraves
agregaccedilotildees que resultam em corpos mundos - a realidade fenomecircnica Por este prisma o
homem eacute pensado como tendo uma natureza corpoacuterea como tudo mais que faz parte da
phyacutesis Ele eacute ser da natureza um corpo composto ou melhor um organismo (athroiacutesma) que
como outros tambeacutem tem seu modo de realizaccedilatildeo
Pelas definiccedilotildees que jaacute apresentamos podemos retomar uma que tambeacutem nos permite
falar do homem corpo (socircma) Esse termo tanto se refere a um corpo isolado (aacutetomos) quanto
a um agregado de aacutetomos e vazio Nessa acepccedilatildeo nos remetemos para o que vem a ser pela
agregaccedilatildeo e deixa de ser pela desagregaccedilatildeo de suas partes constitutivas Com isso o homem
enquanto - corpo-mateacuteria - estaacute sujeito agraves mudanccedilas advindas pelo tempo pelo movimento
pela relaccedilatildeo anaacutenketychegrave
Em outro sentido enquanto organismo vivo ele eacute pensado por Epicuro por meio do
termo sarkoacutes que etimologicamente como esclarece Bailly60 se refere agrave carne humana e dos
animais Assim o corpo-mateacuteria eacute concebido como corpo-carne quando pensamos nas
interaccedilotildees que o homem estabelece com o mundo Eacute esse sentido que Epicuro o usa para falar
da capacidade de sentir as coisas Eacute pelo sarkoacutes que as sensaccedilotildees da realidade fenomecircnica satildeo
percebidas Na Sentenccedila Vaticana 4 percebemos a indicaccedilatildeo desse papel do corpo-carne para
sentir as impressotildees que o meio coloca diante dele Ao falar da dor que pode incidir sobre o
homem e lhe causar sofrimento diz que ldquoaquela que perdura na carne (sarkiacute) tem um
dolorimento brandordquo61 Eacute o corpo quem recebe as impressotildees sensiacuteveis do mundo que vatildeo
servir ao pensamento para estabelecer um conhecimento (gnoacutesis) para fundamentar o modo de
60 Anatole Bailly Op Cit 61 αἱ δὲ πολυχρόνιοι τῶν ἀρρωστιῶν πλεονάζον ἔχουσι τὸ ἡδόμενον ἐν τῇ σαρκὶ ἤπερ τὸ ἀλγοῦν
38 viver do saacutebio Eacute a partir dessa compreensatildeo que vai se constituir uma relaccedilatildeo entre o corpo e
a sabedoria posto ser por meio dele que um saber eacute pensado e direcionado para estabelecer
um eacutethos de acordo com a natureza voltado para a autonomia e o equiliacutebrio como veremos
no item 13 deste capiacutetulo
Haacute tambeacutem a possibilidade de se referir ao homem como um athroiacutesma que eacute nas
palavras de Bailly62 um agregado uma coesatildeo Embora o termo possa ser usado para se
remeter a qualquer conjunto atocircmico existente na natureza o uso que Epicuro faz dessa
palavra evoca o sentido de organismo O homem seria entatildeo um corpo-organismo cujas
funccedilotildees vitais se voltam para o equiliacutebrio para o bem-estar para a sauacutede O corpo
desequilibrado tende a enfraquecer adoecer e morrer (se desagregar) Eacute a esse corpo-
organismo que Epicuro se refere quando afirma que ldquoa voz da carne eacute natildeo ter fome natildeo ter
sede e natildeo ter friordquo (SV 33)63 uma vez que ele busca satisfazer suas necessidades
fundamentais
Mas compreender o corop como athroiacutesma Epicuro tambeacutem estaacute falando de um
corpo-organismo que reuacutene duas propriedades distintas mas complementares Uma diz
respeito a essa capacidade de sentir o mundo de perceber pela via da sensibilidade a
realidade que o rodeia como falamos anteriormente Mas paralelamente a essa capacidade de
perceber os fenocircmenos da phyacutesis haacute outra que tambeacutem faz parte desse organismo a de
imaginar de pensar de estabelecer - a partir dessas impressotildees sensiacuteveis - um conhecimento
acerca do mundo em que se vive A essa capacidade Epicuro relaciona a alma que ele define
nos seguintes termos no passo 63 da Carta a Heroacutedoto
() a alma eacute corpoacuterea e constituiacuteda de partiacuteculas sutis dispersas por todo o organismo extremamente parecida com um sopro consistente numa mistura de calor semelhante em muitos aspectos ao sopro e em outros ao calor Haacute ainda uma terceira parte que pela sutileza de suas partiacuteculas difere consideravelmente das outras duas e por isso estaacute em contato mais iacutentimo com o resto do organismo (DL X 63)64
A partir dessa passagem evidenciamos que a corporeidade da alma eacute a afirmaccedilatildeo de
sua existecircncia (heacute psychegrave socircmaacute esti) pois se ela natildeo fosse corpoacuterea65 ldquoela natildeo existiria porque
incorpoacutereo soacute o vaziordquo (SILVA 2003 p 39) Disso resulta que mesmo sendo composta por
62 Anatole Bailly Op Cit 63 Σαρκὸς φωνὴ τὸ μὴ πεινῆν τὸ μὴ διψῆν τὸ μὴ ῥιγοῦνmiddot 64 ἡ ψυχὴ σῶμά ἐστι λεπτομερὲς παρrsquo ὅλον τὸ ἄθροισμα παρεσπαρμένον προσεμφερέστατον δὲ πνεύματι θερμοῦ τινα κρᾶσιν ἔχοντι καὶ πῇ μὲν τούτῳ προσεμφερές πῇ δὲ τούτῳmiddot ἔστι δέ τι μέρος πολλὴν παραλλαγὴν εἰληφὸς τῇ λεπτομερείᾳ καὶ αὐτῶν τούτων συμπαθὲς δὲ τούτῳ μᾶλλον καὶ τῷ λοιπῷ ἀθροίσματιmiddot 65 Embora o vazio natildeo seja corpoacutereo ele tem existecircncia ontoloacutegica Eacute preciso admitir que ele existe para poder postular o movimento dos aacutetomos
39 aacutetomos mais sutis (leptomeregraves) eacute phyacutesis eacute corpo dentro de outro corpo e ambos vecircm a ser e
deixam de ser pois estatildeo sujeitos aos fatores que tanto levam agrave geraccedilatildeo quanto agrave
decomposiccedilatildeo ou melhor agrave desagregaccedilatildeo Se essas partiacuteculas satildeo mais sutis mais tecircnues
mais velozes do que aquelas formadoras do corpo-carne isso permite que elas estejam
espalhadas e em movimento por todo o organismo permitindo captar as sensaccedilotildees que
chegam ateacute o athroiacutesma Pois ldquonatildeo podemos pensar na alma como senciente a natildeo ser que ela
esteja nesse todo composto e se mova com esses movimentosrdquo (DL X 66)66 Portanto nem a
alma sente sem estar contida no corpo-carne nem este sem ela Eacute o organismo ou seja essa
inter-relaccedilatildeo que permite agrave alma ter a causa da sensaccedilatildeo e agrave carne participar dessa faculdade
de sentir
Contudo dizer que a alma eacute formada por aacutetomos eacute insuficiente para explicar o que ela
eacute em um sentido mais especiacutefico Novamente precisamos aqui enfatizar as lacunas sobre esse
tema nos poucos textos remanescentes de Epicuro Assim temos que extrair das analogias
apresentadas no passo 63 mais informaccedilotildees Nela a alma eacute comparada a ldquoum sopro
consistente numa mistura de calorrdquo Temos aiacute dois termos que nos ajudam nessa
compreensatildeo pois tanto o sopro (tograve pneucircma) quanto o calor (tograve thermoacuten) nos remetem para
elementos ou forccedilas que existem na natureza enfatizando ainda mais a compreensatildeo da
fisicalidade da alma Nesse sentido o sopro (sugerindo um princiacutepio de movimento) e o calor
(nos remetendo para um princiacutepio de vitalidade) nos indicam que a alma tem sua archeacute e seu
modo de ser inscritos na proacutepria phyacutesis
Essa comparaccedilatildeo a elementos que se dispersam se dissipam permite entender
tambeacutem porque Epicuro afirma que a alma tem uma parte espalhada por todo o corpo como o
calor estaacute disseminado da cabeccedila aos peacutes Seria essa a parte irracional (agravelogon) da psycheacute que
recebe as sensaccedilotildees que chegam pelo sarkoacutes E aleacutem dessa haveria outra localizada no peito
(thoacuterax) e que seria responsaacutevel pela parte racional (logikoacuten) como testemunha a seguinte
passagem
A alma eacute composta de aacutetomos extremamente lisos e arredondados muito diferentes dos aacutetomos do fogo que a parte esparsa por todo o resto do corpo eacute irracional enquanto a parte racional reside no peito como podemos perceber claramente em nossos temores e em nossa alegria (DL X 66)67
Aleacutem desses dois aspectos da alma outro eacute apresentado para completar a definiccedilatildeo
66 οὐ γὰρ οἷόν τε νοεῖν αὐτὸ αἰσθανόμενον μὴ ἐν τούτῳ τῷ συστήματι καὶ ταῖς κινήσεσι ταύταις χρώμενον 67 ἐξ ἀτόμων αὐτὴν συγκεῖσθαι λειοτάτων καὶ στρογγυλωτάτων πολλῷ τινι διαφερουσῶν τῶν τοῦ πυρόςmiddot καὶ τὸ μέν τι ἄλογον αὐτῆς ὃ τῷ λοιπῷ παρεσπάρθαι σώματιmiddot τὸ δὲ λογικὸν ἐν τῷ θώρακι ὡς δῆλον ἔκ τε τῶν φόβων καὶ τῆς χαρᾶς
40 Mas natildeo se encontra na natureza nenhuma comparaccedilatildeo que permita nomeaacute-lo Daiacute porque o
terceiro constituinte Epicuro chama de sem-nome (akatonocircmastom) Trata-se da parte que
ldquogoverna particularmente as operaccedilotildees intelectuais da almardquo (SALEM 1993 15) partindo
das impressotildees sensiacuteveis (proacutelepseis) para estabelecer as projeccedilotildees (phantastikai epibolai tecircs
dianoiacuteas) que permitem pensar e expor um conhecimento acerca da realidade Daiacute se dizer
que no epicurismo o corpo (sarkoacutes mais psycheacute) eacute fundamental para conhecer ou desvelar a
phyacutesis Aleacutem disso esse aspecto permite localizar na alma o iniacutecio da accedilatildeo da decisatildeo da
deliberaccedilatildeo para o agir Eacute em suma o que Lucreacutecio definiu como ldquoa proacutepria alma de toda
almardquo (Lucr III 274)68
Diante disso eacute possiacutevel falar tambeacutem da necessidade de estabelecer um cuidado com o
athroiacutesma dada a interaccedilatildeo orgacircnica e constante entre corpo-alma e corpo-carne Pois se
verifica que por um lado a psycheacute age sobre o sarkoacutes ldquoquando a vemos impelir os membros
arrebatar o corpo ao sono demudar o rosto reger e dirigir todo o corpordquo (Lucr III 162-4)69
percebe-se por outro que o saacuterkos sente as afecccedilotildees (paacutethos) que acometem a psycheacute que
ldquosofre com o corpo e com o corpo sente em noacutesrdquo (Lucr III 168-9)70 Dessa forma o que
desequilibra um adoece o outro E isso vai ser pensado ao se estabelecer uma filosofia voltada
para conduzir o homem a uma vida feliz afinal natildeo se pode gozar de ataraxiacutea (ausecircncia de
perturbaccedilatildeo) e de aponiacutea (ausecircncia de dor) se
Quando o espiacuterito eacute abalado por um medo violento vemos que toda a alma sente o mesmo pelos membros e que por todo o corpo aparecem suores e palidez a liacutengua se entaramela a voz se prende os olhos se obscurecem os ouvidos ressoam os membros desfalecem finalmente vemos que muitas vezes caem os homens pelo terror do espiacuterito (Lucr III 150-8)71
Pois bem Antes de fazer esse panorama a respeito do que Epicuro havia postulado a
respeito de uma anthropophyacutesis haviacuteamos questionado se o modelo explicativo que ele
aplicou para estabelecer um entendimento a respeito da phyacutesis seria suficiente para falar do
homem e do seu sentido de realizaccedilatildeo Ora a partir do que foi exposto destacamos que todo o
trabalho de compreensatildeo da anthropophyacutesis feito por Epicuro e apresentado na Carta a
Heroacutedoto se daacute por meio de relaccedilotildees explicaccedilotildees analogias que tecircm a realidade fenomecircnica
por referecircncia e fonte de conhecimento Assim a physiologiacutea nos remete para um exerciacutecio
filosoacutefico que visa fazer o homem se identificar com a phyacutesis Isso significa que eacute nela que ele
68 LUCREacuteCIO Da Natureza Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 (Os Pensadores) 69 Idem 70 Ibidem 71 Ibidem
41 deve buscar as respostas necessaacuterias para compreender o sentido de sua realizaccedilatildeo e poder
definir um modo de viver que o leve a alcanccedilar essa finalidade
Natildeo por acaso Epicuro faz um retorno agrave filosofia preacute-socraacutetica retomando o
pensamento atomista de Demoacutecrito e Leucipo para estabelecer uma compreensatildeo de mundo
fundamentada na imanecircncia um entendimento da vida a partir das experiecircncias que ela traz
consigo Trata-se de definir um conhecimento possiacutevel e que possa guiar o homem para que
ele nem seja conduzido pelas opiniotildees vazias (kenaigrave doacutexai) nem pelos mitos (myacutethoi) nem
pelas concepccedilotildees que extrapolam o campo do sensiacutevel projetando finalidades para aleacutem do
que estaacute na natureza
Mas essa relaccedilatildeo ou melhor essa extensatildeo estabelecida no epicurismo entre
anthropophyacutesis e phyacutesis natildeo significa que o devir do homem eacute definido unicamente em
termos de fisicalidade o aacutenthropos natildeo eacute pensado como meramente assujeitado pelas malhas
do acaso e da necessidade Ao considerarmos os modos de ser da phyacutesis verificamos que
devido agrave anaacutenke as coisas acontecem como naturalmente devem ser e a tyacuteche inscreve na
natureza o fortuito podendo alterar o quando e a forma das coisas acontecerem Mas no
campo da anthropophyacutesis eacute preciso considerar que meio a essa dinacircmica haacute ainda aquilo que
pode o homem aquilo que ele pode fazer por si mesmo Porque ldquoeacute vatildeo exigir dos deuses
aquilo que algueacutem pode provir por si proacutepriordquo72 pois
O homem [dotado de razatildeo e da faculdade de prever] o que haacute de vir [capaz de viver] feliz agrave condiccedilatildeo que ele se ligue agrave [virtude por] ela mesma e tenha boas [disposiccedilotildees] (Œno Fr 21 IV)73
Se como foi dito a alma tem uma parte que pensa conhece e delibera entatildeo a
phroacutenesis (prudecircncia vontade esclarecida)74 e o logismoacutes (caacutelculo racional)75 satildeo os
instrumentos que ela tem de esclarecimento Isso permite que orientada por essa capacidade
de pensar ela possa definir um modo de viver e desenvolver a disposiccedilatildeo para praticar as
virtudes que a levem a experimentar sua realizaccedilatildeo
Verificamos que essa aproximaccedilatildeo homemnatureza estabelecida a partir da leitura
physioloacutegica da realidade ao mesmo tempo em que caracteriza a anthropophyacutesis tambeacutem
72 Μάταιόν ἐστι παρὰ θεῶν αἰτεῖσθαι ἅ τις ἑαυτῷ χορηγῆσαι ἱκανός ἐστι 73 Traduccedilatildeo a partir do francecircs La Philosophie Epicurienne sur Pierre Op Cit p 36 74 As expressotildees ldquovontade refletidardquo (volonteacute reacutefleacutechie) p 224 246 ldquovontade livrerdquo (volonteacute libre) p 239 e ldquovontade esclarecidardquo (volonteacute eacuteclaireacutee) p 248 satildeo empregadas por Eacutemile Breacutehier para se referir agrave vontade submetida agrave razatildeo BREacuteHIER Eacutemile Histoire de la Philosophie V I Paris Librairie Feacutelix Alcan 1928 Ediccedilatildeo eletrocircnica disponiacutevel em httpclassiquesuqaccaclassiquesbrehier_emileHistoire_de_philo_t1brephi_1pdf Acesso em 15 de outubro de 2019 75 Idem
42 remete para uma contiguidade entre a physiologiacutea e a eacutetica Isso porque a compreensatildeo da
natureza possibilita fundamentar uma perspectiva libertadora para o homem na medida em
que permite estabelecer um modo de pensar e de viver distanciado das opiniotildees infundadas
das concepccedilotildees apartadas do referencial sensiacutevel E isso pode levar a fantasiar a respeito do
porvir a temer aquilo que eacute natural a desejar para aleacutem do necessaacuterio para uma vida feliz
(makariacuteos zecircn) Em outros termos a ignoracircncia sobre a phyacutesis conduz ao engano (hamarthiacutea)
e agrave desmesura (hyacutebris) Eacute preciso investigar a natureza e com isso estabelecer os limites para
os desejos e exercitar a liberdade necessaacuteria para fazer as escolhas e recusas necessaacuterias agrave
proacutepria realizaccedilatildeo Por meio da physiologiacutea o saacutebio se daacute conta de que ldquoa tranquilidade
perfeita da alma consiste em estar livre de todos esses terrores e temores e em relembrar tenaz
e constantemente a doutrina em suas linhas gerais e fundamentaisrdquo (DL X 82)76
Ao olhar para si mesmo como um aspecto da realizaccedilatildeo da phyacutesis despindo-se de
qualquer concepccedilatildeo demiuacutergica eacute possiacutevel pensar a liberdade como disposiccedilatildeo para por si
mesmo construir o proacuteprio destino Talvez aiacute esteja um aspecto antropoloacutegico importante no
pensamento epicurista Pois o homem natildeo sendo gerado por deuses nem mero produto do
acaso nem da necessidade eacute ser da natureza que como resultado daquilo que pode o ser eacute
capaz de pensar e deliberar a partir de si mesmo e do conhecimento que tem para estabelecer
um modo de ser e de agir no mundo visando a autorrealizaccedilatildeo Dito de outra forma ele eacute
pensado como ser inacabado de possibilidades que pode exercitar uma artesania sobre si
mesmo para desenhar-se conforme o sentido de realizaccedilatildeo que consegue inteligir a partir da
investigaccedilatildeo da natureza Por isso Epicuro busca destituir o homem da ideia de providecircncia e
lhe instila a compreensatildeo de que cabe a ele a possibilidade de escolher os rumos para
conquistar sua felicidade Para tanto eacute preciso desatar-se das crenccedilas que levam ao medo e ao
assenhoramento da vontade O entendimento acerca da phyacutesis pretende tanto lhe permitir isso
quanto fazecirc-lo vislumbrar que eacute possiacutevel realizar uma vida autecircntica Saacutebio eacute pois quem se
vale desse saber acerca da natureza e por si mesmo pensa a proacutepria existecircncia como deve
viver Eacute na phyacutesis que ele vecirc um paradigma que o guia no sentido de conferir mais liberdade e
naturalidade ao seu modo de viver Afinal como afirma Epicuro na Carta a Piacutetocles a ldquovida
natildeo precisa de irracionalidade nem de opiniotildees vatildes precisa eacute que vivamos sem perturbaccedilatildeordquo
(DL X 87)77
76 ἡ δὲ ἀταραξία τῷ τούτων πάντων ἀπολελύσθαι καὶ συνεχῆ μνήμην ἔχειν τῶν ὅλων καὶ κυριωτάτων 77 οὐ γὰρ ἰδιολογίας καὶ κενῆς δόξης ὁ βίος ἡμῶν ἔχει χρείαν ἀλλὰ τοῦ ἀθορύβως ἡμᾶς ζῆν
43 12 A vida katagrave phyacutesin
A transiccedilatildeo do seacuteculo IVndashIII aC foi marcada por uma problemaacutetica que mobilizou a
atenccedilatildeo de ciacutenicos estoicos cirenaicos e epicuristas Uma discussatildeo que se ampliou a partir
do seacuteculo V aC quando os sofistas repercutiam um debate em torno da diferenccedila e oposiccedilatildeo
entre natureza (phyacutesis) e convenccedilatildeo (noacutemos) Eacute preciso lembrar contudo que Demoacutecrito jaacute
teria em seu tempo questionado se as sensaccedilotildees existem por natureza ou por convenccedilatildeo
ldquoPor convenccedilatildeo (noacutemoi) existe o frio por convenccedilatildeo existe o calor mas em verdade existem
apenas os aacutetomos e o vaziordquo (DL IX 72)
Um aspecto desse questionamento se daacute relacionando a noccedilatildeo de noacutemos com o que eacute
percebido pelos sentidos E aiacute se tem um problema pois o que adveacutem da percepccedilatildeo natildeo eacute
fiaacutevel afinal os sentidos podem conduzir ao engano E diante da dinacircmica da natureza onde
as coisas estatildeo em constante movimento o conhecimento apenas poderia ser ancorado em
algo imutaacutevel perene e isso diz respeito aos aacutetomos e vazio Contrariamente a essa maneira
de pensar Epicuro vai colocar as sensaccedilotildees como fundamentais para o desvelamento da
natureza e portanto indispensaacuteveis para o processo de conhecer algo Disso trataremos no
item 13 desse capiacutetulo
Mas natildeo foi a partir dessa perspectiva que a oposiccedilatildeo noacutemosphyacutesis reapareceu nas
discussotildees filosoacuteficas do helenismo A questatildeo que perpassa essa relaccedilatildeo antiteacutetica se
configurou quando noacutemos passou a se referir ao que eacute convencionado pelo homem em
oposiccedilatildeo ao que eacute natural (phyacutesis) Encontramos reflexos dessa polecircmica no Craacutetilo de
Platatildeo onde essas duas noccedilotildees satildeo excludentes entre si O que existiria por noacutemos natildeo
existiria por natureza e vice-versa
Sumariamente lembramos que noacutemos se refere agravequilo que eacute estabelecido pelo loacutegos
(pensamento) e de acordo com Bailly78 se refere agrave opiniatildeo geral aos costumes ao habitual
Essas acepccedilotildees nos remetem para regras normas leis enfim ao que estaacute convencionado para
o exerciacutecio da vida social Em sendo assim natildeo satildeo definitivas permanentes nem
universalizaacuteveis posto natildeo se fundamentarem na natureza Tratar-se-ia de um ldquoacordordquo
estabelecido para que os homens pudessem viver em sociedade
Por outro lado phyacutesis eacute entendida como anterior a qualquer convenccedilatildeo ou definiccedilatildeo
que a ela eacute atribuiacuteda eacute o que se daacute por natureza Trata-se de pensaacute-la como referecircncia para
estabelecer um eacutethos uma justiccedila uma educaccedilatildeo uma linguagem ou seja o que eacute necessaacuterio
78 Anatole Bailly Op Cit
44 para tornar efetivas e harmoniosas as agregaccedilotildees entre os homens
Decorre disso que as escolas filosoacuteficas do helenismo passaram a participar desse
debate em torno da relaccedilatildeo noacutemosphyacutesis Isso porque cada uma por meio de suas
especificidades estava tentando definir de que maneira se realiza a sabedoria e por isso era
preciso dizer se o modo de vida do saacutebio (sophoacutes) devia ser de acordo com o noacutemos ou com a
phyacutesis Assim a discussatildeo era tratada em torno do conflito expresso entre o que resulta de se
viver de acordo com o convencionado socialmente e o que sucede de uma vida fundamentada
na phyacutesis Diante desse questionamento os ciacutenicos entendem que os seres da natureza natildeo
tecircm noacutemos eles satildeo em funccedilatildeo da naturalidade do seu ser79 Ao postular essa perspectiva eles
defendem que o homem tambeacutem possa agir conforme sua natureza proacutepria Viver em funccedilatildeo
do noacutemos seria esconder ou sufocar sua naturalidade com regras ou convenccedilotildees Eis porque
viver de acordo com a natureza (katagrave phyacutesin) eacute o modo de o homem poder realizar o sentido
de sua existecircncia Dessa forma defende-se que - pelo noacutemos pelas regras e valores
estabelecidos sem ancoragem na phyacutesis - ele se afasta dessa realizaccedilatildeo Com isso vive-se uma
artificialidade que o impede de experimentar a autenticidade de sua proacutepria existecircncia
criando para si mesmo o sofrimento e o alheamento da proacutepria vontade Essa premissa vai ser
defendida e praticada aleacutem dos ciacutenicos por estoicos ceacuteticos cirenaicos e epicuristas mas
cada um modulando esse entendimento em funccedilatildeo de suas finalidades filosoacuteficas o que vai
resultar em eacuteticas diferentes80
Um aspecto em comum entre essas escolas eacute que esse retorno agrave phyacutesis ou esse
movimento para conferir mais naturalidade ao modo de viver exige um esforccedilo pessoal um
trabalho sobre si mesmo que tem como ponto de partida uma indagaccedilatildeo como viver segundo
a natureza No pensamento epicuacutereo a resposta a esse questionamento nos remete para dois
aspectos principais os limites e a repleccedilatildeo
79 Desdobramentos dessa perspectiva podem ser verificados modernamente no Marquecircs de Sade Em Os 120 Dias de Sodoma (Coleccedilatildeo Peacuterolas Furiosas editora Iluminuras formato Kindle) por exemplo se lecirc ldquoRecebi essas inclinaccedilotildees na natureza e irritaacute-la-ia se a elas resistisserdquo (posiccedilatildeo 233) E tambeacutem ldquo() plenamente convencida de que todos os bens devem ser iguais na terra e que apenas a forccedila e a violecircncia se opotildeem a essa igualdade primeira lei da natureza ()rdquo (posiccedilatildeo 2935) 80 Destacamos que os ciacutenicos pensam que a vida kagraveta phyacutesin remete a uma volta agrave natureza em seu aspecto animal Vale lembrar que o termo ciacutenico vem de kynikoacutes se referindo ao catildeo ou a ele relativo Por sua vez os estoicos entendem que suportando as vicissitudes da vida se fortalece a naturalidade do proacuteprio ser
45 121 Nos limites da phyacutesis
Uma perspectiva importante para a compreensatildeo do que significa katagrave phyacutesin81 no
contexto do epicurismo diz respeito agrave necessidade de o saacutebio se ocupar em viver dentro dos
limites da natureza Mas que limites satildeo esses e como circunscrever nossa experiecircncia de
existir a eles Para entendermos esse ponto eacute preciso evocar uma assertiva de Epicuro Ele
afirma no passo 39 da Carta a Heroacutedoto que ldquoo todo sempre foi exatamente como eacute agora e
sempre seraacute assim Entatildeo nada existe em que ele poderia transformar-se porque aleacutem do
todo nada haacute que possa penetrar nele e provocar transformaccedilatildeordquo (DL X 39)82 Com isso ele
quer dizer que a natureza - tomada em sua totalidade ndash eacute imutaacutevel Ela natildeo seraacute nem mais nem
menos do que sempre foi E uma vez que nada se transforma em nada e nem nada se cria a
partir do nada o que existe e o que deixa de existir eacute o resultado do movimento de agregaccedilatildeo
e desagregaccedilatildeo dos corpos (ou geraccedilatildeo e corrupccedilatildeo) que constituem a natureza Eacute nesse
enquadramento que vai ser postulado que as coisas da existecircncia pertencem ao campo do que
eacute constituiacutedo por aacutetomos se movendo no vazio ou dos agrupamentos deles que formam
corpos e mundos Assim ele tambeacutem estaacute dizendo que a natureza nos remete exclusivamente
ao campo do sensiacutevel uma vez que os elementos constituintes da phyacutesis estatildeo ao alcance da
apreensatildeo de nossos sentidos ou - diante daquilo que escapa a percepccedilatildeo da nossa
sensibilidade - satildeo por meio de analogias entendidos dessa forma como eacute o caso da
compreensatildeo que se estabelece acerca do aacutetomo
Consequentemente Epicuro postula que a realidade eacute imanente e por isso o
pensamento deve se fundamentar no campo das experiecircncias sensiacuteveis para tentar falar das
coisas da vida Ter em conta esse aspecto ligado agrave noccedilatildeo de limite da natureza leva o
physiologoacutes (aquele que se dedica agrave investigaccedilatildeo da phyacutesis) a considerar que ldquoeacute verdadeiro
apenas aquilo que se percebe por meio dos sentidos ou se apreende por meio da menterdquo (DL
X 62)83 quando opera a partir de analogias fundadas na memoacuteria das impressotildees sensiacuteveis
Com isso ele estabelece um criteacuterio para o pensamento natildeo projetar nenhuma finalidade para
o homem que esteja aleacutem do que ele possa experimentar em sua vida E aqui se identifica
81 As expressotildees katagrave phyacutesin katagrave to teacutes phyacuteseos e hoacute teacutes phyacuteseos remetem para um mesmo sentido viver de acordo com a natureza Esse foi um lema de vaacuterias escolas filosoacuteficas do helenismo O estoico Zenatildeo teria sido o primeiro a fazer uso dessa expressatildeo para ldquodefinir o bem supremo como viver de acordo com a naturezardquo (DLVII 87) 82 Καὶ μὴν καὶ τὸ πᾶν ἀεὶ τοιοῦτον ἦν οἷον νῦν ἐστι καὶ ἀεὶ τοιοῦτον ἔσται οὐθὲν γάρ ἐστιν εἰς ὃ μεταβαλεῖ παρὰ γὰρ τὸ πᾶν οὐθέν ἐστιν ὃ ἂν εἰσελθὸν εἰς αὐτὸ τὴν μεταβολὴν ποιήσαιτο 83 ἐπεὶ τό γε θεωρούμενον πᾶν ἢ κατrsquo ἐπιβολὴν λαμβανόμενον τῇ διανοίᾳ ἀληθές ἐστι
46 uma relaccedilatildeo entre a compreensatildeo desse limite e o modo de viver do saacutebio pois ele vai
procurar deixar de se fiar em explicaccedilotildees que evocam a crenccedila na possibilidade de felicidade
humana - se projetando em mitos - para pensar o exerciacutecio de uma vida feliz (makariacuteos zecircn)
fundamentado na physiologiacutea O saacutebio compreende que estendendo para aleacutem da natureza as
explicaccedilotildees para os fenocircmenos inerentes agrave phyacutesis o homem se distancia da possibilidade de
experimentar o equiliacutebrio a alegria e o prazer Eacute consoante a esse prisma que o principal
responsaacutevel pela divulgaccedilatildeo do pensamento epicurista para a cultura romana o poeta e
filoacutesofo Tito Lucreacutecio vai nos falar
Ora eacute preciso que afugentem esse temor e estas trevas do espiacuterito natildeo os raios do Sol nem os dardos luacutecidos do dia mas o espetaacuteculo da natureza e as suas leis E para iniacutecio tomaremos como base que natildeo haacute coisa alguma que tenha jamais surgido do nada por qualquer accedilatildeo divina De fato o terror oprime todos os mortais apenas porque vecircem operar-se no ceacuteu e na terra muitas coisas de que natildeo podem de nenhum modo perceber as causas e cuja origem atribuem a um poder dos deuses (Lucr I 146-158)84
Perceba-se que por um lado Lucreacutecio estaacute se fererindo a um aspecto da natureza
relacionado agrave regularidade dos fenocircmenos por outro estaacute ecoando o sentido da filosofia de
Epicuro relaciona nesse trecho a necessidade de livrar o homem de perturbaccedilotildees atraveacutes do
conhecimento ldquoda natureza e as suas leisrdquo E isso decorre do entendimento de que para
Epicuro o estudo acerca da phyacutesis visa conduzir a uma maneira de ler a realidade que afaste
toda forma de obscurantismo que resulta de se tentar projetar o teacutelos da vida para fora dela
As causas para os fenocircmenos e as finalidades que satildeo inteligidas a partir da
investigaccedilatildeo dos modos de ser da natureza vatildeo ser observadas e postuladas dentro do campo
de realizaccedilatildeo da proacutepria phyacutesis esse eacute o limite que deve balizar o pensamento em seu
movimento de tentar fazer o desvelamento do mundo-realidade
Se considerarmos a exposiccedilatildeo de Jean Salem85 nos damos conta de que Epicuro ao
falar de limites emprega dois temos indistintamente peacuteras e hoacuteros Esse uso estaacute associado
agraves discussotildees sobre os prazeres e desejos e ldquoparticularmente quando a reflexatildeo orbita em
torno de questotildees de ordem eacuteticardquo (SALEM 1994 p 83) Mas tanto na Carta a Meneceu
84 Hunc igitur terrorem animi tenebrasque necessest non radii solis neque lucida tela diei discutiant sed naturae species ratioque Principium cuius hinc nobis exordia sumet nullam rem e nihilo gigni divinitus umquam Quippe ita formido mortalis continet omnis quod multa in terris fieri caeloque tuentur quorum operum causas nulla ratione videre possunt ac fieri divino numine rentur Quas ob res ubi viderimus nil posse creari de nihilo tum quod sequimur iam rectius inde perspiciemus et unde queat res quaeque creari et quo quaeque modo fiant opera sine divom 85 SALEM Jean Tel un Dieu parmi les Hommes Paris Vrin 1994
47 passo 13386 quanto na Maacutexima Capital 2587 se estabelece uma relaccedilatildeo entre peacuteras e teacutelos E
isso se daacute associando o que se apresenta como finalidade da natureza (teacutelos tecircs phyacuteseos) com
os limites dos desejos (tograve peacuteras tocircn epithymiocircn) Isso se explica porque somente
circunscrevendo os proacuteprios desejos aos limites ou finalidade da natureza eacute que o saacutebio realiza
seu modo de ser Mas Salem vai aleacutem nessa anaacutelise da noccedilatildeo de limite na filosofia epicurista e
apresenta cinco acepccedilotildees para esse termo O de limite como 1) demarcaccedilatildeo de um conjunto
finito (as formas atocircmicas) 2) teacutermino de um campo de variaccedilatildeo (se referindo agraves
caracteriacutesticas especiacuteficas de um ser natural) 3) medida do maacuteximo (tendo por exemplo o
limite de intensidade da dor) 4) medida do miacutenimo (como as medidas do miacutenimo percebido
pelo pensamento tal qual o aacutetomo) Contudo parece-nos importante acrescentar outra
acepccedilatildeo a esse rol aquela de limite como criteacuterio para pensar a phyacutesis no contexto de sua
imanecircncia como mostramos aqui E isso estaacute ligado agrave necessidade de suprimir a ignoracircncia
por meio da physiologiacutea impedindo de aceitar crenccedilas que levam agrave alma as perturbaccedilotildees e
desviam o modo de viver do homem da finalidade de uma vida saacutebia
A principal perturbaccedilatildeo das almas humanas tem sua origem na crenccedila de que esses corpos celestes satildeo bem-aventurados e indestrutiacuteveis e que ao mesmo tempo tecircm vontades e praticam accedilotildees () na expectativa e na apreensatildeo constante de algum castigo eterno sob a influecircncia dos mitos () essas pessoas sofrem perturbaccedilatildeo igual ou ainda mais intensa que a daquelas que nesses assuntos seguem opiniotildees vatildes (DL X 81)88
Nesses termos Epicuro nos remete ao direcionamento da physiologiacutea para trazer agrave
alma a calma na medida em que serve para purgaacute-la dos medos insurgidos de uma
compreensatildeo a respeito da phyacutesis que projeta para fora dela as explicaccedilotildees para fenocircmenos
que satildeo da ordem do natural Quando o homem passa a compreender o que eacute acontecimento
da natureza e a se reconhecer como tal portanto dentro desses limites ele tambeacutem pensa sua
realizaccedilatildeo tendo em vista a possibilidade de evitar a dor o medo e consequentemente
alcanccedilar a imperturbabilidade da alma (ataraxiacutea)
Por isso iniciamos esse trabalho traccedilando uma panoracircmica a respeito da concepccedilatildeo
epicurista sobre a natureza e seus modos de realizaccedilatildeo destacando aquilo que compotildee tanto a
86 τὸ τῆς φύσεως ἐπιλελογισμένου τέλος καὶ τὸ μὲν τῶν ἀγαθῶν πέρας ὡς ἔστιν εὐσυμπλήρωτόν τε καὶ εὐπόριστον διαλαμβάνοντος () 87 Εἰ μὴ παρὰ πάντα καιρὸν ἐπανοίσεις ἕκαστον τῶν πραττομένων ἐπὶ τὸ τέλος τῆς φύσεως ἀλλὰ προκαταστρέψεις εἴτε φυγὴν εἴτε δίωξιν ποιούμενος εἰς ἄλλο τι οὐκ ἔσονταί σοι τοῖςe () 88 ὅτι τάραχος ὁ κυριώτατος ταῖς ἀνθρωπίναις ψυχαῖς γίνεται ἐν τῷ ταὐτὰ μακάριά τε δοξάζειν ltεἶναιgt καὶ ἄφθαρτα καὶ ὑπεναντίας ἔχειν τούτοις ἅμα βουλήσεις καὶ πράξεις καὶ αἰτίας καὶ ἐν τῷ αἰώνιόν τι δεινὸν ἢ προσδοκᾶν ἢ ὑποπτεύειν κατὰ τοὺς μύθους εἴτε καὶ αὐτὴν τὴν ἀναισθησίαν τὴν ἐν τῷ τεθνάναι φοβουμένους ὥσπερ οὖσαν κατrsquo αὐτούς καὶ ἐν τῷ μὴ δόξαις ταῦτα πάσχειν ἀλλrsquo ἀλόγῳ γέ τινι παραστάσει ὅθεν μὴ ὁρίζοντας τὸ δεινὸν τὴν ἴσην ἢ καὶ ἐπιτεταμένην ταραχὴν λαμβάνειν τῷ εἰ καὶ ἐδόξαζον ταῦταmiddot
48 totalidade do universo quanto as menores partiacuteculas que o constituem e remetendo para uma
contiguidade entre phyacutesis e anthropophyacutesis Eacute a partir desse escopo que se busca compreender
o homem como ser da natureza mas que - por sua capacidade para pensar deliberar e agir
como consequecircncia do que cabe ao homem - pode viver de acordo com o que pensa E o
fizemos para ressaltar que a physiologiacutea eacute fundamental para (re)direcionar a opiniatildeo a partir
de um entendimento da phyacutesis que se daacute dentro dela mesma O mundo em que se vive no
qual estabelecemos as mais diversas relaccedilotildees e do qual recebemos as impressotildees que seratildeo a
fonte para todo o conhecimento pode ser explicado a partir do que ele mostra aos nossos
sentidos
Resulta disso que toda crenccedila estabelecida para aleacutem desses limites do sensiacutevel acaba
por distanciar o homem da natureza na medida em que projeta o sentido de sua realizaccedilatildeo
para um aleacutem-mundo para um aleacutem-vida Nessa perspectiva delineia-se um terreno propiacutecio
para postular a existecircncia de uma vontade maior definindo uma finalidade (teacutelos) para a
natureza e seus constituintes Como consequecircncia temos o homem enredado em uma teia de
acontecimentos onde o espaccedilo para definir sua conduta no mundo lhe eacute alheado Eacute a partir
desse ponto de vista que a physiologiacutea vai ser pensada como a ldquocondiccedilatildeo das condiccedilotildeesrdquo
(CONCHE 1997 p 40) para uma vida feliz Isso porque sem ela para estabelecer os limites
para o homem pensar sua condiccedilatildeo no mundo e como se conduzir na vida ele vecirc adiada ldquoa
alegria e a vida se consome pela demora e cada um de noacutes morre sem ter descansordquo (SV
14)89 Natildeo eacute concebiacutevel para Epicuro entatildeo que se fique agrave mercecirc de que um dia a felicidade
lhe chegue quando eacute possiacutevel por meio de uma atividade de investigar a realidade pensar
sobre ldquoa via seguida e a seguirrdquo (CONCHE idem) e transformar o agora
Eacute em funccedilatildeo desse limite para o pensar que se estabelece um conflito entre a proposta
epicurista fundamentada na physiologiacutea e a religiatildeo Isso porque o estudo da natureza na
medida em que exclui das explicaccedilotildees sobre as coisas do mundo qualquer intervenccedilatildeo divina
busca desconstruir a crenccedila segundo a qual os deuses intervecircm nas questotildees humanas Desse
modo o medo de que eles possam interferir no destino do homem reservando-lhe seja o
infortuacutenio seja o paraiacuteso passa a natildeo ter mais sentido
Mas isso natildeo significa que Epicuro tenha negado a existecircncia dos deuses como os
detratores de sua filosofia quiseram fazer crer Natildeo Tanto que ele afirma na Carta a
Meneceu ldquoos deuses realmente existem e o conhecimento de sua existecircncia eacute manifestordquo
89 σὺ () ἀναβάλλῃ τὸ χαῖρονmiddot ὁ δὲ βίος μελλησμῷ παραπόλλυται καὶ εἷς ἕκαστος ἡμῶν ἀσχολούμενος ἀποθνῄσκει
49 (DL X 123)90 O que ele combate eacute a representaccedilatildeo dos deuses apresentada pela doacutexa As
divindades eram retratadas como tomadas pelos desejos pelas emoccedilotildees pela coacutelera pela
inveja pelo orgulho pela vaidade etc A crenccedila geral era a de seres prestes a irradiar toda sua
fuacuteria ou toda sua benevolecircncia dependendo do quatildeo capazes os homens fossem de agradaacute-los
com oferendas com sacrifiacutecios com oraccedilotildees
E eacute isso que Epicuro nega essa noccedilatildeo de divindade que por um lado gera temor e
por outro coloca o homem numa posiccedilatildeo de assenhoramento de minimizaccedilatildeo de seu poder
de deliberaccedilatildeo Como ldquoas afirmaccedilotildees da maioria sobre os deuses natildeo satildeo preacute-concepccedilotildees
verdadeiras e sim suposiccedilotildees falsas Por causa de tais suposiccedilotildees falsas imagina-se que
derivam dos deuses os maiores males e bensrdquo (DL X 124)91 E a filosofia epicurista vem em
oposiccedilatildeo a isso
Para ele os deuses gozam de imortalidade92 nos intermundos (metakoacutesmion =
intervalo entre os mundos) onde vivem autaacuterquica e serenamente Ora ldquoum ser bem-
aventurado e eterno natildeo tem perturbaccedilotildees nem perturba outro serrdquo (MC 1)93 Os deuses natildeo
satildeo afetados por nada daiacute seu estado de eterno equiliacutebrio e tranquilidade Tambeacutem natildeo
seguem a nenhum desiacutegnio a natildeo ser aquele que vem de si proacuteprio e isso vai caracterizar sua
autossuficiecircncia Por isso Epicuro orienta ldquoconsidera a divindade um ser vivo e feliz de
acordo com a noccedilatildeo da divindade impressa em noacutes pela natureza e natildeo lhe atribuas coisa
alguma estranha agrave imortalidade ou incompatiacutevel com a felicidaderdquo (DL X 123)94 Daiacute ele
considerar que a imperturbabilidade (ataraxiacutea) e a autarquia (autaacuterkeia)95 que caracterizam a
existecircncia dos deuses satildeo bens imortais e devem ser buscados pelo saacutebio E eacute tendo por base
esses bens que Epicuro vai postular a sabedoria como a arte de viver ldquocomo um deus entre os
homensrdquo (DL X 135)96
90 θεοὶ μὲν γὰρ εἰσίνmiddot ἐναργὴς γὰρ αὐτῶν ἐστιν ἡ γνῶσιςmiddot 91 οὐ γὰρ προλήψεις εἰσὶν ἀλλrsquo ὑπολήψεις ψευδεῖς αἱ τῶν πολλῶν ὑπὲρ θεῶν ἀποφάσεις ἔνθεν αἱ μέγισται βλάβαι αἴτιαι τοῖς κακοῖς ἐκ θεῶν ἐπάγονται καὶ ὠφέλειαι 92 Embora de natureza corpoacuterea natildeo estatildeo sujeitos agrave corrupccedilatildeo ou morte E isso pode ser explicado pois sua imagem (eiacutedolon) emite contiacutenuamente aacutetomos que satildeo substituiacutedos por outros eternamente 93 Τὸ μακάριον καὶ ἄφθαρτον οὔτε αὐτὸ πράγματα ἔχει οὔτε ἄλλῳ παρέχειmiddot 94 Πρῶτον μὲν τὸν θεὸν ζῷον ἄφθαρτον καὶ μακάριον νομίζων ὡς ἡ κοινὴ τοῦ θεοῦ νόησις ὑπεγράφη 95 Cabe natildeo confundir os substantivos αὐτάρκης formado a partir da raiz verbal ἀρκέω que evoca a ideia de ser suficiente com αὐταρxῆς derivado da raiz ἀρxεύω que diz respeito a comandar reinar governar Αὐτάρκης pode ser traduzido como bastar a si mesmo ser auto-suficiente enquanto αὐταρκῆς remete para aquele que governa a si mesmo Temos aiacute portanto sentidos diferentes O problema se daacute quando ao tentar se referir em portuguecircs para a condiccedilatildeo daquele que tem o principio da accedilatildeo em si mesmo (αὐτάρκης) recorremos agrave palavra autarquia que tambeacutem pode trazer conotaccedilotildees ligadas a αὐταρxῆς como ao se referir a instituiccedilotildees de poder autocircnomo Embora pudeacutessemos usar o vocaacutebulo autarcia para demarcar a opccedilatildeo pelo sentido advindo de αὐτάρκης preferimos manter autarquia mas sublinhado que neste trabalho ele remete para um sentido de autossuficiencia 96 ζήσῃ δὲ ὡς θεὸς ἐν ἀνθρώποις
50 Mas perceba-se ao admitir a existecircncia dos deuses Epicuro natildeo os imagina como
seres de outra realidade de natureza distinta dessa constituiacuteda por aacutetomos e vazio Nem como
entidades que inspiram temores e apreensotildees Eles satildeo pensados dentro dos limites da phyacutesis e
como um modelo de realizaccedilatildeo de um modo de existir bem-aventurado Para ele acreditar
naquilo que escapa aos limites da natureza significa postular a existecircncias de duas realidades
uma natural e outra sobrenatural Com isso acentua-se a tendecircncia para separar o homem e a
phyacutesis concebendo-o como criaccedilatildeo divina e natildeo como fenocircmeno da natureza Resulta dessa
clivagem alhear o homem da compreensatildeo da possibilidade de realizaccedilatildeo de uma vida
autaacuterquica (em que ele define por si mesmo - a partir do que conhece sobre a natureza - como
ser e agir no mundo) e projetar o sentido de sua existecircncia para aleacutem da realidade que ele
experimenta
Outra batalha travada eacute com relaccedilatildeo agrave cultura ou seja agrave Paideacuteia tomada em seu
sentido mais geral Se os limites colocados para se pensar a realidade levam a um conflito
com a compreensatildeo que o senso geral tem a respeito dos deuses tambeacutem acabam por se
chocar com o panorama cultural da eacutepoca E isso estaacute ligado agrave finalidade do saber Para o
epicurismo essa finalidade eacute conduzir a uma vida feliz e autaacuterquica E isso estaacute afinado com
os limites que a phyacutesis coloca diante do homem Diferentemente dos deuses somos mortais e
sob essa condiccedilatildeo precisamos pensar a vida e estabelecer um saber para realizaacute-la da melhor
forma possiacutevel Trata-se de considerar a existecircncia em sua imanecircncia e na sua urgecircncia posto
que ldquoa morte natildeo significa outra vida mas uma eternidade de natildeo-vidardquo (CONCHE 1997 p
41)97 Nesse sentido o saber que cabe cultivar eacute aquele que serve para ajudar a viver nossa
mortalidade ldquoNoacutes podemos morrer antes mesmo de saber a estereometria Daiacute a hostilidade
de Epicuro agrave Paideacuteiardquo (CONCHE idem)
Ressalte-se que o termo Paideacuteia deve ser entendido no sentido especiacutefico de
conhecimento relativo agrave cultura liberal como aqueles que os sofistas evidenciaram como
importantes para a educaccedilatildeo do homem (filologia astronomia retoacuterica muacutesica geometria
aritmeacutetica) Esses saberes para Epicuro natildeo satildeo fundamentais pois ldquoa cultura liberal natildeo
pode ser de nenhuma utilidade dado que se trata de acumular conhecimentos particulares e
natildeo de se apoiar sobre os saberes particulares para se elevar mais alto () de fundar sua vida
sobre o pensamento uacutenico e necessaacuteriordquo (CONCHE idem) Nessa perspectiva entendemos a
ponderaccedilatildeo epicurista
97 CONCHE Marcel Eacutepicure Lettres et Maximes Paris Eacuteditions de Meacutegare 1977
51 O estudo da natureza (physiologiacutea) prepara natildeo os jactanciosos nem os fazedores de expressotildees nem os exibidores de educaccedilatildeo muito valorizada junto agrave maioria mas os aacutegeis e autaacuterquicos e que pensam grande sobre os seus proacuteprios bens e natildeo sobre os bens das coisas (SV 45) 98
Esses bens o saacutebio deve buscar pois estatildeo relacionados agrave sauacutede ao bem-estar agrave
liberdade agrave imperturbabilidade agrave alegria Satildeo eles que conduzem a uma vida realizada Daiacute a
importacircncia de uma educaccedilatildeo que faccedila conhecer ao homem esses limites sob os quais ele
deve pensar sua existecircncia A gloacuteria a riqueza o poder a erudiccedilatildeo nada isso contribui para
deixar a alma em equiliacutebrio Ao contraacuterio adoecem-na e com ela todo o athroiacutesma Se para a
maioria a vida cheia de luxos remete para um ideal a ser buscado para Epicuro isso eacute
justamente o que se deve evitar pois escapa aos limites da phyacutesis Isso fica evidenciado
quando ele afirma que ldquoa riqueza proveniente da natureza eacute limitada e viaacutevel e das opiniotildees
vazias cai no inabordaacutevelrdquo (SV 8 ndash MC 15)99 Assim ldquoo sophoacutes conhece os valores autecircnticos
da vida diante das falsificaccedilotildees e enganos da sociedade captou o sabor do verdadeiro e de
acordo com os bens conforme a natureza (tagrave katagrave phyacutesin) sabe dirigir seu comportamento
sereno e livre ateacute a felicidaderdquo (GUAL 1985 p 218)
A oposiccedilatildeo agrave Paideacuteia se daacute portanto porque se vecirc nela um repertoacuterio de
conhecimentos que satildeo inuacuteteis para a felicidade do homem Ao contraacuterio o enreda em uma
teia de valores que o distancia de uma vida feliz Daiacute porque Epicuro apenas admite a cultura
sob a perspectiva de resultado de um ldquoprogresso material e como uma conquista civilizadorardquo
(GUAL 1985 p 60) Satildeo saberes culturais mas natildeo satildeo de uso praacutetico e imediato para a
consecuccedilatildeo de uma vida saacutebia Tanto que Epicuro aconselha a Piacutetocles ldquoalccedila tua vela amigo
e foge de toda cultura (paideiacutean) seja ela qual forrdquo (DL X 6 e Us fr 163)100 Se o faz eacute
porque percebe que na poacutelis a poliacutetica a religiatildeo e a cultura espelham um entendimento
acerca da realidade da finalidade da existecircncia humana que eacute incompatiacutevel com o projeto de
uma vontade esclarecida e de um pensamento que busca inteligir da natureza os limites
necessaacuterios para pensar um paradigma para a realizaccedilatildeo do homem Por isso
Francamente eu por minha parte gostaria muito mais servindo-me de um physiologoacutes profetizar as coisas que trazem proveito a todos os homens
98 Οὐ κομποὺς οὐδὲ φωνῆς ἐργαστικοὺς οὐδὲ τὴν περιμάχητον παρὰ τοῖς πολλοῖς παιδείαν ἐνδει-κνυμένους φυσιολογία παρασκευάζει ἀλλὰ σοβαροὺς καὶ αὐτάρκεις καὶ ἐπὶ τοῖς ἰδίοις ἀγαθοῖς οὐκ ἐπὶ τοῖς τῶν πραγμάτων μέγα φρονοῦντες 99 Ὁ τῆς φύσεως πλοῦτος καὶ ὥρισται καὶ εὐπόριστός ἐστιν ὁ δὲ τῶν κενῶν δοξῶν εἰς ἄπειρον ἐκπίπτει 100 Παιδείαν δὲ πᾶσαν μακάριε φεῦγε τἀκάτιον ἀράμενος
52 mesmo que ningueacutem vaacute me compreender do que me colocando de acordo com as opiniotildees desfrutar do elogio rude que proveacutem da maioria (SV 29)101
Distanciar-se da Paideacuteia desses saberes valorizados pela maioria deve ser entendido
como um movimento de negaccedilatildeo dos valores cristalizados e convencionados pela cultura que
falseiam os limites a partir dos quais se devem pensar o campo da realizaccedilatildeo humana Jaacute a
perspectiva epicurista eacute de elaborar uma filosofia como um saber para a vida (teacutechnen tinaacute
periacute ton biacuteon) cuja finalidade eacute ldquoassegurar a paz de espiacuterito e a convicccedilatildeo firmerdquo (DL X
85)102 ensejando ldquoa conquista de uma vida felizrdquo (DL X 84)103 Daiacute porque a compreensatildeo a
respeito dos limites da phyacutesis tem sua importacircncia na medida em que permite ao saacutebio
identificar e se desviar das opiniotildees ou concepccedilotildees que remetem para uma imposiccedilatildeo de
valores e de um modo de vida apartados de uma medida natural Considerar esses limites eacute
fundamental para que o homem pense e estabeleccedila a partir da phyacutesis um modo saacutebio de agir
122 A repleccedilatildeo dos desejos
O projeto eacutetico de Epicuro se fundamenta em um modo de vida orientado para a
satisfaccedilatildeo dos prazeres104 mas para isso eacute preciso que o homem goze da liberdade necessaacuteria
para fazer as escolhas e as recusas essenciais para direcionar sua vida para essa finalidade Por
isso o percurso traccedilado ateacute aqui tem buscado mostrar a physiologiacutea como um exerciacutecio de
investigaccedilatildeo da natureza que ao tentar explicar os modos de ser da natureza e as forccedilas que
nela operam pretende esclarecer a respeito dos limites e das possibilidades do agir humano
Isso diz respeito a por um lado fazer entender a diferenccedila entre o que acontece por
necessidade (anaacutenke) e o que depende de cada um (paacuterrsquohemaacutes) e por outro estabelecer uma
compreensatildeo da phyacutesis como limite onde deve se circunscrever toda possibilidade de
entendimento da realidade Nesse sentido se estabelece um trabalho de afastamento de
crenccedilas que destituem o homem do papel de protagonista de seu proacuteprio destino seja porque
o pensam submisso a um fatalismo natural ou aos caprichos de divindades Aleacutem disso outras
formas impositivas de vontades se datildeo pela religiatildeo pela cultura e pela doacutexa Todas podendo
exogenamente definir um modo de viver em funccedilatildeo das finalidades pretendidas
101 Παρρησίᾳ γὰρ ἔγωγε χρώμενος φυσιολογῶν χρησμῳδεῖν τὰ συμφέροντα πᾶσιν ἀνθρώποις μᾶλλον ἂν βουλοίμην κἂν μηδεὶς μέλλῃ συνήσειν ἢ συγκατατιθέμενος ταῖς δόξαις καρποῦσθαι τὸν πυκνὸν παραπίπτοντα παρὰ τῶν πολλῶν ἔπαινον 102 ἀταραξίαν καὶ πίστιν βέβαιον 103 μακάριον βίον συντεινόντων 104 No item 123 deste capiacutetulo nos deteremos nesse aspecto
53 Eacute diante desse quadro que Epicuro vai dar um tratamento especiacutefico agrave questatildeo dos
desejos (epithymiacuteai) Pois por meio deles tambeacutem pode ocorrer uma tirania sobre o homem
E isso impede qualquer projeto de realizaccedilatildeo de vida saacutebia afinal um dos pressupostos para
isso eacute ser capaz de definir por si mesmo sua conduta seu modo de agir Quem natildeo tem o
domiacutenio sobre si proacuteprio sobre as proacuteprias vontades sucumbe agrave desmedida adoece o corpo e
desequilibra a alma
Sobre isso Platatildeo jaacute dizia que a alma do homem eacute tiranizada pelo desejo105 de coisas
pensadas como importantes mas que efetivamente natildeo satildeo necessaacuterias Na poacutelis isso remete
agrave gloacuteria agrave fama agrave ambiccedilatildeo de ser grande tal qual Alexandre Como decorrecircncia tem-se um
apetite sem limites capaz de cativar o homem fazendo-o escravo de seu querer sendo
governado pelo asseacutedio das proacuteprias vontades A mercecirc de inclinaccedilotildees desmesuradas perde-
se a medida para o agir Assim Soacutecrates se refere a esse tipo
() o homem que governa mal seu iacutentimo aquele que agora mesmo julgaste ser o mais desgraccedilado o homem tiracircnico quando natildeo vive como um particular mas eacute forccedilado por qualquer acaso a ser tirano e sendo incapaz de se dominar a si mesmo tenta mandar nos outros como se uma pessoa doente e deacutebil em vez de estar em casa fosse forccedilada a passar a vida a competir em forccedila fiacutesica (Platatildeo A Repuacuteblica IX 579c -579d)106
O conflito se daacute na proacutepria alma quando a parte desiderativa e irasciacutevel se sobrepotildee agrave
racional Daiacute a necessidade de estabelecer uma medida um limite para se opor a esse estado
de desequiliacutebrio que encontra nas opiniotildees vazias (kenaigrave doacutexai) um estiacutemulo para pensar a
liberdade como condiccedilatildeo para poder tudo Mas para fazer frente a isso eacute preciso se opor aos
valores da doacutexa Portanto o conhecimento acerca da natureza vai ser fundamental pois
permite pensar limites para os desejos Esse saber vai instrumentalizar o saacutebio para que ele
possa se contrapor a toda opiniatildeo que projeta a proacutepria realizaccedilatildeo naquilo que eacute inalcanccedilaacutevel
ou traz perturbaccedilotildees e dor Assim os desejos devem considerar a finalidade da phyacutesis e visar
o que conduz agrave ataraxiacutea Em decorrecircncia o eacutethos vai ser concebido tendo em vista um
referencial ao qual o homem recorra para saber que prazer escolher e qual recusar E isso vai
resultar em um estilo de vida frugal dado que o modo proacuteprio de ser da natureza natildeo se daacute em
um regime de desmesura Afinal ldquouma dieta simples proporciona um prazer anaacutelogo ao de
105 ldquo() o homem se torna rigorosamente um tirano quando por natureza ou por haacutebito ou pelos dois motivos se torna eacutebrio apaixonado e louco () Depois disso haveraacute festas orgias festins concubinas e todos os gozos dessa espeacutecie naqueles em cujo peito o tirano Eros habita governando toda sua almardquo (PLATAtildeO A Repuacuteblica 573 c d) Ediccedilatildeo referida na nota 106 106 PLATAtildeO A Repuacuteblica Lisboa Fundaccedilatildeo Caloustre Gulbenkian 1993 Traduccedilatildeo Maria Helena da Rocha Pereira
54 uma mesa suntuosa desde que se elimine a dor causada pela vontaderdquo (DL X 130)107
Eacute sob a perspectiva de frugalidade de simplicidade que a sabedoria vai ser delineada
O prazer buscado eacute aquele mais uacutetil para uma vida feliz e isso estaacute relacionado com os limites
estabelecidos a partir da proacutepria phyacutesis Uma vida katagrave phyacutesin implica na premecircncia de limitar
os desejos aos que natildeo desequilibram nem a alma nem o corpo Ao pensar suas necessidades
tendo em vista satisfazer apenas os desejos que concorrem para o seu bem-estar o saacutebio passa
a ouvir mais o corpo e menos as opiniotildees vazias Afinal ldquoinsaciaacutevel natildeo eacute o estocircmago como
a maior parte das pessoas dizem mas a opiniatildeo falsa sobre o ilimitado enchimento do
estocircmagordquo (SV 59)108 Portanto o saacutebio sabe desejar em funccedilatildeo do que aprendeu sobre a
natureza e natildeo considerando o que os muitos professam E isso o leva a fazer um exerciacutecio de
distinccedilatildeo e separaccedilatildeo (diaiacuteresis) para rejeitar os desejos que adoecem e desequilibram em
prol dos que estatildeo de acordo com a natureza
Daiacute Epicuro ter diferenciado os desejos entre aqueles que satildeo naturais e necessaacuterios
os naturais e desnecessaacuterios e os nem naturais e nem necessaacuterios Dos naturais ldquoalguns satildeo
necessaacuterios agrave felicidade outros agrave tranquilidade sem perturbaccedilatildeo do corpo e outros agrave proacutepria
vidardquo (DL X 127)109
Os desejos naturais e necessaacuterios (physikaiacute anankaiai) satildeo aqueles que afastam o
sofrimento cessam a dor ldquocomo beber quando temos sederdquo (DL X 29) Eles estatildeo
relacionados agrave manutenccedilatildeo da vida ao equiliacutebrio orgacircnico agrave proteccedilatildeo e ao bem-estar do
corpo Sem satisfazecirc-los sucede-se um estado de dor de desarmonia que pode ocasionar
adoecimento e morte A Sentenccedila Vaticana 33 reforccedila esse sentido ao explicar que ldquoa voz da
carne eacute natildeo ter fome natildeo ter sede e natildeo ter frio pois quem tem essas coisas e espera haver de
tecirc-las lutaria pela felicidade ateacute com Zeusrdquo110
Desejos naturais e necessaacuterios podem ser compreendidos como referecircncia a uma vida
simples e frugal E isso estaacute relacionado a um modo autaacuterkes e sereno de viver Eacute nessa
perspectiva que entendemos o comentaacuterio de Porfiacuterio ldquomelhor vale para ti estar sem
perturbaccedilatildeo dormindo sobre um pallet do que estar agitado dispondo de uma cama de ouro e
de uma mesa suntuosardquo111 Contudo Epicuro natildeo estaacute postulando uma vida de privaccedilotildees nem
107 ὅτι τε λιτοὶ χυλοὶ ἴσην πολυτελεῖ διαίτῃ τὴν ἡδονὴν ἐπιφέ ρουσιν ὅταν ἅπαν τὸ ἀλγοῦν κατrsquo ἔνδειαν ἐξαιρεθῇ 108 Ἄπληστον οὐ γαστήρ ὥσπερ οἱ πολλοί φασιν ἀλλrsquo ἡ δόξα ψευδὴς ὑπὲρ τοῦ ltτῆςgt γαστρὸς ἀορίστου πληρώματος 109 αἱ μὲν πρὸς εὐδαιμονίαν εἰσὶν ἀναγκαῖαι αἱ δὲ πρὸς τὴν τοῦ σώματος ἀοχλησίαν αἱ δὲ πρὸς αὐτὸ τὸ ζῆν 110 Σαρκὸς φωνὴ τὸ μὴ πεινῆν τὸ μὴ διψῆν τὸ μὴ ῥιγοῦνmiddot ταῦτα γὰρ ἔχων τις καὶ ἐλπίζων ἕξειν κἂν ltΔιὶgt ὑπὲρ εὐδαιμονίας μαχέσαιτο 111 PORPHYRE Lettre agrave Marcella 29 Apud SOLOVINE Maurice Eacutepicure Doutrines et Maximes Paris Hermann 1965 p 152
55 um regresso a formas primitivas de viver nem exorta a pobreza Sua mensagem eacute para viver
feliz natildeo precisamos de muito pois ldquonada eacute suficiente para quem o suficiente eacute poucordquo (SV
68)112 Daiacute ele se referir ao saacutebio dizendo ldquoseraacute previdente quanto ao seu patrimocircnio e ao
futurordquo (DL X 120) Ou seja eacute preciso dispor do que permita viver com tranquilidade
podendo gozar de uma condiccedilatildeo de bem-estar
Essa compreensatildeo permite estabelecer uma relaccedilatildeo entre physikaiacute anankaiai e
autaacuterkeia O saacutebio ao compreender o que de fato se constitui como necessidade - e para isso
basta ouvir a proacutepria natureza - e ao perceber os desejos estimulados pela doacutexa que relaciona
a obtenccedilatildeo de bens agrave felicidade exercita o discernimento para se orientar em direccedilatildeo ao que
vai realizar o sentido de sua existecircncia Quanto menos necessidade se tem mais se estabelece
um modo de viver autaacuterkes (e vice-versa) posto natildeo se depender da obtenccedilatildeo de bens vatildeos
para realizar uma vida feliz Entatildeo ldquoo saacutebio depois de julgar as coisas em funccedilatildeo da
necessidade sabe mais dar em partilha do que tomar em partilha Tatildeo grande tesouro da
autarquia ele encontrourdquo (SV 44)113
Os desejos naturais e natildeo necessaacuterios satildeo compreendidos como aqueles que se natildeo
satisfeitos natildeo causam dor ou outra forma de sofrimento natildeo afetam o equiliacutebrio vital do
organismo Como afirma a Maacutexima Capital 26 ldquodos desejos todos os que natildeo levam a uma
sensaccedilatildeo de sofrimento se natildeo satildeo satisfeitos natildeo satildeo necessaacuterios mas envolvem um anseio
facilmente dissipaacutevel quando o objeto eacute difiacutecil de obter ou se tendem a prejudicarrdquo (DL X
148)114 Nesse conjunto podemos por exemplo pensar os apetites sexuais ou por pratos
elaborados ou os desejos luacutedicos
Basta lembrar que para Epicuro patildeo e aacutegua jaacute eram suficientes para ele natildeo se
lamentar da vida mas - sempre que podia - um pedaccedilo de queijo servia-lhe como banquete115
Da mesma forma divertir-se com os amigos e dar vazatildeo agrave lubricidade do corpo tambeacutem satildeo
concebidos como naturais pois estatildeo em acordo com a natureza - visto que conduzem ao
equiliacutebrio agrave harmonia ao prazer Contudo a pergunta que conveacutem fazer eacute esses desejos que
satildeo naturais mas natildeo satildeo necessaacuterios (pois se satisfeitos apenas adicionam mais prazer agrave
vida sem que sua subtraccedilatildeo possa gerar dor) devem ser realizados Para pensar sobre isso
112 Οὐδὲν ἱκανὸν ᾧ ὀλίγον τὸ ἱκανόν 113 Ὁ σοφὸς εἰς τὰ ἀναγκαῖα συγκριθεὶς μᾶλλον ἐπίσταται μεταδιδόναι ἢ μεταλαμβάνεινmiddot τηλικοῦτον αὐταρκείας εὗρε θησαυρόν 114 Τῶν ἐπιθυμιῶν ὅσαι μὴ ἐπrsquo ἀλγοῦν ἐπανάγουσιν ἐὰν μὴ συμπληρωθῶσιν οὐκ εἰσὶν ἀναγκαῖαι ἀλλrsquo εὐδιάχυτον τὴν ὄρεξιν ἔχουσιν ὅταν δυσπορίστων ἢ βλάβης ἀπεργαστικαὶ δόξωσιν εἶναι 115 DL X 11 ldquoO proacuteprio Epicuro diz em suas cartas que se contentava apenas com aacutegua e um simples patildeo E diz lsquomanda-me um pequeno pote de queijo para que eu possa banquetear-me quanto tiver vontadersquo rdquo
56 vamos considerar que
O haacutebito de alimentar-se com simplicidade e natildeo suntuosamente natildeo soacute garante a boa sauacutede e faz com que o homem enfrente sem hesitaccedilatildeo as inevitaacuteveis necessidades da vida mais ainda o predispotildee melhor a apreciar as mesas suntuosas que se lhe oferecem agraves vezes e o torna destemeroso diante da sorte (DL X 131)116
Como vemos Epicuro deixa claro que para suprir as nossas necessidades precisamos
de pouco e eacute a isso que o saacutebio deve se ater primordialmente A sorte (tyacuteche) que tanto pode
por exemplo trazer a chuva que vai multiplicar o plantio ou impor a estiagem que miacutengua o
campo natildeo lhe traraacute perturbaccedilatildeo pois ldquoser ou natildeo ser rico lhe eacute indiferenterdquo (DL X 120)
Entatildeo o que eacute natural e necessaacuterio basta ao saacutebio para viver satisfeito Ele natildeo precisa
procurar acrescentar mais prazer agrave vida Mas se quiser dar vazatildeo aos desejos que satildeo naturais
mas natildeo satildeo necessaacuterios deve considerar o ensinamento da Maacutexima Capital 8 onde ele
afirma ldquonenhum prazer eacute um mal por si mesmo poreacutem aquilo que produz alguns prazeres
traz perturbaccedilotildees muitas vezes maiores que os proacuteprios prazeresrdquo (DL X 141)117 Isso nos
remete para a necessidade de uma ponderaccedilatildeo de fazer um caacutelculo O saacutebio deve se perguntar
o que adveacutem com a realizaccedilatildeo de tal desejo Se a resposta contrastar com o sentido de
harmonia de equiliacutebrio e de serenidade inteligido por meio do estudo da natureza entatildeo isso
deve ser evitado Em fazendo isso o sophoacutes estaacute se guiando pela phroacutenesis que nesse sentido
pode ser compreendida como o exerciacutecio praacutetico da sabedoria ou uma capacidade de
discernimento E eacute essa atividade permanente de refletir a respeito dos proacuteprios desejos de
ponderar sobre o que adveacutem com a satisfaccedilatildeo deles e relacionar isso com o estabelecimento
de um modo de viver de acordo com a natureza que vai caracterizar o modo de viver do saacutebio
e nos permitir entender como se efetiva a pragmateiacutea epicurista por meio da meditaccedilatildeo e da
praacutexis como veremos nos capiacutetulos II e III
Agora com relaccedilatildeo aos desejos que natildeo satildeo nem naturais e nem necessaacuterios podemos
tambeacutem nos referir a eles como desejos vatildeos Isso porque se fundamentam naquilo que as
opiniotildees vazias (kenaigrave doacutexai) pensam a respeito do que pode proporcionar felicidade e em que
medida isso se daacute Daiacute se tem um problema pois sem a natureza como medida incorre-se no
erro de buscar o inalcanccedilaacutevel Tal aspecto fica melhor explicitado na Maacutexima Capital 15
onde se diz ldquoa riqueza conforme a natureza eacute limitada e faacutecil de obter a requerida pelas
116 τὸ συνεθίζειν οὖν ἐν ταῖς ἁπλαῖς καὶ οὐ πολυτελέσι διαίταις καὶ ὑγιείας ἐστὶ συμπληρωτικὸν καὶ πρὸς τὰς ἀναγκαίας τοῦ βίου χρήσεις ἄοκνον ποιεῖ τὸν ἄνθρωπον καὶ τοῖς πολυτελέσιν ἐκ διαλειμμάτων προσερχομένοις κρεῖττον ἡμᾶς διατίθησι καὶ πρὸς τὴν τύχην ἀφόβους παρασκευάζει 117 Οὐδεμία ἡδονὴ καθrsquo ἑαυτὴν κακόνmiddot ἀλλὰ τὰ τινῶν ἡδονῶν ποιητικὰ πολλαπλασίους ἐπιφέρει τὰς ὀχλήσεις τῶν ἡδονῶν
57 opiniotildees vatildes estende-se ao infinitordquo (DL X 144)118 Assim se o tamanho do estocircmago pode
ser pensado como um limite natural para o quanto se pode comer indicando um niacutevel de
saciedade qual a medida para a riqueza a gloacuteria as honrarias a imortalidade e outros tantos
desejos consagrados pela opiniatildeo dos muitos da poacutelis Dessa forma um modo saacutebio de viver
soacute pode ser estabelecido tendo a natureza como referecircncia E isso se opotildee ao estilo de vida
postulado pelas kenaigrave doacutexai para quem o ter fundamenta uma falsa ideia sobre o que
proporciona a felicidade
Vemos que o aspecto distintivo estaacute (novamente) na questatildeo do limite Se podemos
desejar tanto o bem conforme a natureza quanto aquele conforme a opiniatildeo o primeiro eacute
alcanccedilaacutevel pois ldquoo bem da natureza eacute limitado porque ele existe O outro escapardquo
(BOLLACK 1975 p 293) O problema estaacute em desejar bens que se estendem ao infinito ndash
caracteriacutestica do que eacute natildeo-natural resultando numa busca sem fim e portanto em adotar
para a vida uma finalidade irrealizaacutevel ldquoOs desejos vazios natildeo satildeo vazios nem de objeto nem
de prazer eles satildeo vazios da felicidade que se pensa erradamente usufruirrdquo (HELMER
2013 p 19) Eis porque o saacutebio orienta-se para observar e suprir os desejos dentro dos limites
das necessidades de seu bem-estar
Viver de acordo com a natureza que vai ser condiccedilatildeo para realizaccedilatildeo de uma vida
feliz pressupotildee a observacircncia aos limites da phyacutesis em seus dois aspectos O primeiro tratado
no item 111 diz respeito aos seus contornos imanentes Isso implica em natildeo pensar para
aleacutem do mundo sensiacutevel o campo da realizaccedilatildeo humana As coisas acontecem ou por
necessidade ou por acaso ou dependem de noacutes O saacutebio se percebe como ser da natureza e
como tal define dentro do que pode o homem um modo autaacuterkes de viver Essa
compreensatildeo permite fundamentar uma relaccedilatildeo de confianccedila (piacutestis) com a natureza O
sophoacutes quanto mais aprende sobre a phyacutesis mais confia na possibilidade de realizaccedilatildeo de
uma vida feliz
O segundo aspecto diz respeito agrave necessidade de regulaccedilatildeo dos desejos o que tambeacutem
remete para um uso praacutetico da filosofia por meio de um exerciacutecio de examinar as proacuteprias
vontades Isso tem em vista a necessidade de os desejos espelharem no modo de viver um
estado equilibrado correspondente agravequele que verificamos na natureza e tomado como um
modelo de realizaccedilatildeo Daiacute porque ldquopara todos os desejos eacute preciso colocar esta questatildeo o que
me adviraacute se realizar o que estaacute sendo buscado segundo o meu desejo e o que se natildeo se
118 Ὁ τῆς φύσεως πλοῦτος καὶ ὥρισται καὶ εὐπόριστός ἐστιν ὁ δὲ τῶν κενῶν δοξῶν εἰς ἄπειρον ἐκπίπτει
58 realizarrdquo (SV 71)119 Ou seja a sabedoria vai ser relacionada a uma atividade de caacutelculo e
moderaccedilatildeo E aiacute fica evidenciado o papel da phroacutenesis que orientada pelo conhecimento da
phyacutesis e pela experiecircncia conduz toda escolha e toda rejeiccedilatildeo em funccedilatildeo de fazer o saacutebio
experimentar em sua vida a ausecircncia de dor e a autaacuterkeia
123 Tograve teacutelos tecircs phyacuteseos
Na Carta a Meneceu eacute dito ldquo() e chamamos o prazer de princiacutepio e fim da vida
felizrdquo (DL X 128)120 Ao relacionar o prazer (hedoneacute) com archeacute e teacutelos Epicuro postula se
tratar do nosso bem maior assim sendo eacute em funccedilatildeo de experimentaacute-lo que o saacutebio vai
definir seu modo de viver de acordo com a natureza Eacute princiacutepio porque estaacute na origem de
nossos instintos eacute finalidade porque eacute para onde se inclina nossa natureza
Epicuro ldquoaduz o fato de os seres vivos imediatamente apoacutes o nascimento estarem
contentes com o prazer (hedoneacute) enquanto rebelam-se contra a dor por disposiccedilatildeo natural
sem a intervenccedilatildeo da razatildeordquo (DL X 137)121 O prazer eacute o que realiza o homem ser da
natureza e diz respeito a uma condiccedilatildeo de equiliacutebrio vital de sauacutede Hedoneacute vai ser um
indicativo de boa realizaccedilatildeo se a dor ou o desequiliacutebrio remetem para um modo de viver
afastado da natureza o prazer indica um eacutethos katagrave phyacutesin
Ao tratar dos prazeres Epicuro faz uma distinccedilatildeo entre os cineacuteticos (hedonegrave kinetikeacute)
e os catastemaacuteticos (hedonegrave katastematikeacute) Os primeiros remetem a uma condiccedilatildeo de
movimento para atividades que visam a repleccedilatildeo do que eacute necessaacuterio agrave harmonia e bem-estar
Assim o prazer de beber e de se alimentar vai ser tatildeo fundamental quanto aquele que proveacutem
da amizade Eacute compreendido como um prazer positivo pois evoca consigo uma accedilatildeo que
resulta em hedoneacute
Catastemaacuteticos se referem aos prazeres em repouso Implicam na definiccedilatildeo de hedoneacute
como ausecircncia de dor e de perturbaccedilatildeo Dizem respeito ao ldquoestado de equiliacutebrio do organismo
em todas as suas partesrdquo (CONCHE 1977 p 71) Eacute o que no corpo se percebe como aponiacutea e
na alma como ataraxiacutea Alguns inteacuterpretes122 da doutrina epicurista pensam isso como um
119 Πρὸς πάσας τὰς ἐπιθυμίας προσακτέον τὸ ἐπερώτημα τοῦτοmiddot τί μοι γενήσεται ἂν τελεσθῇ τὸ κατὰ ἐπιθυμίαν ἐπιζητούμενον καὶ τί ἐὰν μὴ τελεσθῇ 120 Καὶ διὰ τοῦτο τὴν ἡδονὴν ἀρχὴν καὶ τέλος λέγομεν εἶναι τοῦ μακαρίως ζῆν 121 ἀποδείξει δὲ χρῆται τοῦ τέλος εἶναι τὴν ἡδονὴν τῶι τὰ ζῶια ἅμα τῶι γεννηθῆναι τῆι μὲν εὐαρεστεῖσθαι τῶι δὲ πόνωι προσκρούειν φυσικῶς καὶ χωρὶς λόγου Temos aiacute uma convergecircncia com a visatildeo cirenaica para quem ldquotodos os seres animados aspiram ao prazer e repelem a dorrdquo (DL II 87) 122 Markus Silva Acerca de uma Eacutetica do Agradaacutevel Natal EDUFRN 2005 Esse artigo cita a tendecircncia de alguns estudiosos para pensar o prazer catastemaacutetico sob a oacuteptica de um ldquocaraacuteter negativo do prazerrdquo
59 ldquoprazer negativordquo pois natildeo resulta de uma accedilatildeo mas reflete um estado em que as
perturbaccedilotildees natildeo afetam o corpo
Assim podemos entrever como infundadas as acusaccedilotildees de que o epicurismo pensa o
prazer nos mesmos termos dos dissolutos como seus detratores quiseram fazer crer Epiteto
se refere a Epicuro como ldquopregador de obscenidadesrdquo (DL X 6) Timon fala dele como ldquoo
mais porco e mais catildeordquo (DL X 3) Provavelmente ao se relacionar por desconhecimento ou
para denegrir a concepccedilatildeo de prazer epicurista com a busca desbragada para realizar o prazer
tout court colocando o homem no mesmo patamar dos animais a filosofia do Jardim foi vista
como uma doutrina escandalosa Mas na Carta a Meneceu Epicuro explica
Quando dizemos que o prazer eacute a realizaccedilatildeo suprema da felicidade natildeo pretendemos relacionaacute-lo com a voluptuosidade dos dissolutos e com gozos sensuais como querem algumas pessoas por ignoracircncia preconceito ou maacute compreensatildeo por prazer entendemos a ausecircncia de sofrimento no corpo e a ausecircncia de perturbaccedilatildeo na alma (DL X 131)123
Desse modo a concepccedilatildeo de hedoneacute para os epicuristas implica em caracteriacutesticas que
a diferencia daquelas de outras escolas como a dos cirenaicos Dioacutegenes Laeacutercio124 fornece os
elementos para estabelecer uma comparaccedilatildeo entre o que foi pensado por Epicuro (livro X) e o
que foi defendido por Aristipo de Cirene (livro II) Em siacutentese essa discordacircncia compreende
dois pontos baacutesicos
Jaacute falamos que Epicuro concebe um prazer em movimento e outro em repouso Para
ele ldquoa tranquilidade perfeita e a ausecircncia completa de sofrimento satildeo prazeres estaacuteticos a
alegria e o deleite satildeo prazeres em movimento enquanto vistos em sua atividaderdquo (DL X
136) Em contrapartida os cirenaicos defendem apenas a existecircncia dos prazeres cineacuteticos
(DL II 89) Eles entendem que tanto a dor quanto o prazer satildeo movimentos sendo esse
suave e aquele brusco (DL II 86) Mas Aristipo natildeo concebe que a ausecircncia de dor possa
ser pensada como um estado de prazer (DL II 89) A aponiacutea e a ataraxiacutea natildeo se
constituiriam como estados prazerosos pois natildeo implicam em movimento mas em um estado
neutro Aleacutem disso o prazer eacute o fiacutesico que eacute o fim supremo (DL II 87) Para a escola de
Cirene ldquosoacute no corpo haacute o prazer e eacute a uacutenica finalidaderdquo (BOLLACK 1975 p 150) Poreacutem
para Epicuro tanto o sarkoacutes quanto a psycheacute satildeo afetados pelo prazer O gozo do corpo eacute
sentido pela alma tanto quanto a imperturbabilidade da alma tem seu reflexo no organismo
123 Ὅταν οὖν λέγωμεν ἡδονὴν τέλος ὑπάρχειν οὐ τὰς τῶν ἀσώτων ἡδονὰς καὶ τὰς ἐν ἀπολαύσει κειμένας λέγομεν ὥς τινες ἀγνοοῦντες καὶ οὐχ ὁμολογοῦντες ἢ κακῶς ἐκδεχόμενοι νομίζουσιν ἀλλὰ τὸ μήτε ἀλγεῖν κατὰ σῶμα μήτε ταράττεσθαι κατὰ ψυχήνmiddot 124 Vidas e Doutrinas dos Filoacutesofos Ilustres Op Cit
60 (athroiacutesma)
Outro aspecto de divergecircncia entre essas duas escolas estaacute ligado ao peso que cada
prazer tem na construccedilatildeo de uma vida feliz Em Aristipo os prazeres satildeo todos iguais (DL II
87) todos devem ser buscados e nisto consiste a virtude Do mesmo modo de toda dor se
deve fugir Mas para Epicuro nem todo prazer deve ser desejado assim como nem toda dor
deve ser evitada Tal seria o caso por exemplo de atividades fiacutesicas que no momento de sua
execuccedilatildeo podem trazer desconfortos mas que vatildeo servir para a manutenccedilatildeo da sauacutede e bem-
estar do corpo Tambeacutem podemos considerar que seja por desconhecimento a respeito das
coisas da natureza ou por engano (hamathiacutea) a busca por certos prazeres pode levar a
experimentar o indesejado Afinal ldquonenhum prazer eacute um mal por si mesmo poreacutem aquilo que
produz alguns prazeres traz perturbaccedilotildees muitas vezes maiores que os proacuteprios prazeresrdquo (MC
8)125 Isso ocorre quando o homem se deixa guiar pela opiniatildeo vazia pelos valores
convencionados que se projetam em ambiccedilotildees e desejos desmedidos Nesse caminho ele se
distancia do gozo da tranquilidade Isso porque o prazer pensado sem criteacuterios e distanciado
de sua finalidade - que eacute a de proporcionar uma vida feliz - submete o homem a uma tirania
dos desejos Para esse homem natildeo basta se saciar com o essencial para um estado de
harmonia eacute preciso ter mais e de acordo com a opiniatildeo dos muitos Como resultado tem-se
um modo de vida atribulado e infeliz E isso vai de encontro agrave noccedilatildeo de hedoneacute postulada por
Epicuro
Desse modo o prazer natildeo eacute desejaacutevel por si mesmo como defendem os cirenaicos
(DL II 90) mas na medida em que ele proporciona o equiliacutebrio para o corpo e para a alma
Da mesma forma agrave dor cabe uma reflexatildeo quanto agrave possibilidade de ela trazer algum
beneficio para a sauacutede do homem Afinal a filosofia epicurista se apresenta como uma
therapeiacutea entatildeo eacute preciso direcionar toda escolha (aiacuterisis) e toda recusa (phygeacute) para esse
estado saudaacutevel E eacute aiacute que se percebe o papel da phroacutenesis e do logismoacutes na regulaccedilatildeo dos
desejos e na escolha dos prazeres a serem buscados Eacute por meio desses mecanismos operados
pela psycheacute que o saacutebio vai poder escolher em funccedilatildeo do seu proacuteprio bem-estar
No que diz respeito agrave finalidade uma diferenciaccedilatildeo eacute necessaacuteria de ser destacada
Quando Epicuro postula que o bem a ser alcanccedilado eacute o prazer ele o faz se contrapondo agrave ideia
de que eacute na busca da felicidade (eudaimoniacutea) que encontramos o sentido de nossa existecircncia
Se ldquoa eudaimoniacutea supotildee uma soma de prazeres (prazeres presentes passados e a esperanccedila de
125 Οὐκ ἐπαύξεται ἐν τῆι σαρκὶ ἡ ἡδονὴ ἐπειδὰν ἅπαξ τὸ κατ ἔνδειαν ἀλγοῦν ἐξαιρεθῆι ἀλλὰ μόνον ποικίλλεται τῆς δὲ διανοίας τὸ πέρας τὸ κατὰ τὴν ἡδονὴν ἀπεγέννησεν ἥ τε τούτων αὐτῶν ἐκλόγισις καὶ τῶν ὁμογενῶν τούτοις ὅσα τοὺς μεγίστους φόβους παρεσκεύαζε τῆι διανοίαι
61 realizaacute-los no futuro)rdquo (SILVA 2017 97)126 a noccedilatildeo de hedoneacute por outro lado implica em
uma atividade que traz consigo o seu fim O prazer de beber aacutegua quando se estaacute com sede
vem junto com o ato de beber aacutegua Nesse sentido o que se tem na vida eacute um descontiacutenuo
onde aos momentos de prazer podem se suceder momentos de dor Mas conveacutem notar que
quando Epicuro se refere ao prazer natildeo estaacute limitando o significado desse termo ao gozo
sexual prazeroso eacute tudo o que se relaciona com nosso equiliacutebrio vital expresso na ausecircncia
de dores fiacutesicas (aponiacutea) e de atribulaccedilotildees da psycheacute
O escopo da filosofia epicurista como se pode ver eacute a realizaccedilatildeo do prazer Hedoneacute eacute
o bem buscado o teacutelos ou a finalidade natural para a qual converge a pragmateiacutea do saacutebio
Por isso ele deve submeter suas accedilotildees ao ldquoobjetivo da naturezardquo (tograve teacutelos tecircs phyacuteseos)127 Daiacute
a necessidade de refletir intensamente sobre ldquoa finalidade da naturezardquo (tograve tecircs phyacuteseos
epilelogismeacutenou teacutelos)128 para poder estabelecer um modo de viver de acordo com o
conhecimento que se pode ter sobre a phyacutesis
Ocorre que pensar a finalidade da natureza dotando essa expressatildeo de um valor
teleoloacutegico e dentro do contexto de uma filosofia que procura derrogar qualquer sentido
providencial sugere uma contradiccedilatildeo que precisa ser explicada A physiologiacutea ao tratar dos
modos de ser da natureza e das forccedilas que operam para a realizaccedilatildeo desses modos natildeo alude a
nenhum desiacutegnio ou preacute-disposiccedilatildeo anterior ou fora da phyacutesis atuando no vir-a-ser e no
deixar-de-ser daquilo que compotildee a realidade ldquoA natureza seja a natureza considerada como
um todo ou a natureza proacutepria a cada coisa particular eacute fundamentalmente sem finalidade
porque ela natildeo eacute orientada em seu desenvolvimento por nenhum programa preexistente agrave sua
existecircnciardquo (MOREL 2009 p 168) Entatildeo como entender o sentido emergido da articulaccedilatildeo
das noccedilotildees de teacutelos e phyacutesis sem pensar em ldquoorientaccedilatildeo lsquoteleoloacutegicarsquo (idem p 169)
Epicuro se refere a um bem segundo a natureza (tograve tecircs phyacuteseos agathoacuten)129 agrave riqueza
segundo a natureza (ho tecircs phyacuteseos ploucirctos)130agrave justiccedila segundo a natureza (tograve tecircs phyacuteseos
dikaioacuten)131 Todas essas formas podem sugerir haver no epicurismo uma menccedilatildeo a uma
prescriccedilatildeo da natureza para o homem como condiccedilatildeo para realizaccedilatildeo dele E isso pode induzir
a se tentar ver na phyacutesis uma intenccedilatildeo nos seus modos de ser
Para tentar esclarecer esse aspecto evocamos a tese segundo a qual Epicuro quando 126 SILVA Markus O Hedonismo na Obra Vidas e Doutrinas dos Filoacutesofos Ilustres de Dioacutegenes Laeacutercio Os Cirenaicos e Epicuro Rio de Janeiro Phoicircnix 2017 127 Maacutexima Capital 25 τὸ τέλος τῆς φύσεως 128 DL X 133 τὸ τῆς φύσεως ἐπιλελογισμένου τέλος 129 Maacutexima Capital 7 τὸ τῆς φύσεως ἀγαθόν 130 Maacutexima Capital 15 Ὁ τῆς φύσεως πλοῦτος 131 Maacutexima Capital 31 Τὸ τῆς φύσεως δίκαιόν
62 faz referecircncia ao termo teacutelos o faz tendo em vista uma acepccedilatildeo mais restrita de seu
significado Ao se referir agrave finalidade da natureza ele estaacute se remetendo ao ldquolimite fixado pela
natureza fiacutesica em noacutes como fora de noacutesrdquo (MOREL 2009 p 171) Isso estaacute relacionado com
a possibilidade que temos para perceber esses limites por meio das sensaccedilotildees de prazer e dor
Assim pensar a vida de acordo com a natureza ou considerar o fim da natureza diz respeito a
conhecer os limites naturais e estabelecer um modo de viver de acordo com eles A vida katagrave
phyacutesin natildeo eacute uma ordenaccedilatildeo da natureza Natildeo haacute uma ldquoorientaccedilatildeordquo natural nesse sentido No
epicurismo a physiologiacutea permite inteligir da natureza um saber que a coloca como modelo e
medida para a realizaccedilatildeo do homem Mas cabe a ele estabelecer um eacutethos dentro dessa
medida Nesse sentido viver de acordo com a natureza consiste em estabelecer um
espelhamento desse modelo trazendo esses limites para guiar a maneira de viver
Encontramos essa perspectiva expressa em duas metaacuteforas poeacuteticas Uma delas eacute
apresentada no poema de Lucreacutecio no livro II de Da Natureza
Eacute bom quando os ventos revolvem a superfiacutecie do grande mar ver da terra os rudes trabalhos por que estatildeo passando os outros natildeo porque haja qualquer prazer na desgraccedila de algueacutem mas porque eacute bom presenciar os males que natildeo se sofrem () Mas nada haacute de mais agradaacutevel do que ocupar os altos e serenos lugares fortificados pelas doutrinas dos saacutebios donde se podem ver os mais errar por um lado e procurar ao acaso o caminho da vida () (Lucr II)132
Da terra firme o poeta olha para o mar furioso e sente a calma por estar ali ao abrigo
dos ventos e das ondas Eacute essa tranquilidade que eacute identificada agrave finalidade da natureza E a
filosofia ao conduzir o pensamento para inteligir da phyacutesis os bens que devem ser buscados e
a medida para a realizaccedilatildeo de cada coisa mostra sua utilidade para a consecuccedilatildeo de uma vida
feliz (makariacuteos zecircn) Eacute nessa mesma palheta que outra analogia eacute desenhada por Epicuro
quando usa o termo galenismoacutes133 para se referir agrave serenidade que a alma do sophoacutes deve
experimentar A palavra evoca a imagem de um mar que de tatildeo calmo quase natildeo tem
ondulaccedilotildees Eacute essa serenidade que traduz o que busca o saacutebio ao viver de acordo com ou
conforme as finalidades da natureza Nesse sentido os limites vatildeo ser colocados como uma
defesa contra armadilhas da imaginaccedilatildeo e a repleccedilatildeo vai ser o limite contra a paixatildeo
desmedida
132 LUCREacuteCIO Da Natureza Satildeo Paulo Abril Cultural 1985 (Os Pensadores) Traduccedilatildeo de Agostinho da Silva p 110 133 DL X 83 πρὸς γαληνισμὸν ποιοῦνται
63 13 A finalidade do saber
Um olhar histoacuterico sobre a produccedilatildeo do pensamento filosoacutefico nos mostra diferentes
modos de tentar compreender a origem das coisas e de si mesmo Nos poemas de Homero134 e
de Hesiacuteodo135 percebemos a tendecircncia a se valer do miacutetico do maacutegico-religioso para pensar o
homem o cosmos e as forccedilas que nele operam ldquoEacute pela voz dos poetas que o mundo dos
deuses em sua distacircncia e sua estranheza eacute apresentado aos humanos em narrativas que
potildeem em cena as potecircncias do aleacutem revestindo-as de uma forma familiar acessiacutevel agrave
inteligecircnciardquo (VERNANT 2009 p 15)136 Mas por volta do seacuteculo VI aC Tales de
Mileto137 iniciou outra tradiccedilatildeo no jeito de explicar a realidade Deixando de lado o divino-
fantaacutestico a alusatildeo ao miacutetico ele postulou que o princiacutepio de tudo era a aacutegua num sinal de
que as explicaccedilotildees para os fenocircmenos da natureza podiam ser buscadas nela mesma
Os epicuristas satildeo tributaacuterios dessa tradiccedilatildeo iniciada por Tales e continuada por outros
filoacutesofos naturalistas138 No Jardim busca-se compreender a phyacutesis pelo que ela mostra de si
proacutepria sem necessidade de recorrer a nenhuma natureza exterior a ela mesma de evocar
mitos nem valer-se da crenccedila no sobrenatural Para tanto a multiplicidade das coisas e dos
fenocircmenos eacute explicada a partir de princiacutepios inteligiacuteveis existentes ontologicamente e
inscritos na phyacutesis aacutetomo e vazio Dessa forma a natureza eacute pensada tendo como referecircncia o
sensiacutevel o imanente e portanto pertence ao campo do que eacute conheciacutevel (gnostoacutes)139 Cabe ao
homem a partir das impressotildees que a realidade-phyacutesis lhe coloca diante dos sentidos fazer o
desvelamento dela ateacute onde ele eacute capaz
Estabelecer um saber acerca da natureza fundamentado no que ela apresenta aos
nossos sentidos eacute uma perspectiva que evoca opiniotildees divergentes Diante do questionamento
a respeito de ateacute que ponto eacute possiacutevel estabelecer uma verdade ancorada na natureza sensiacutevel
encontramos respostas que vatildeo de encontro a esse entendimento Tal eacute o caso de Xenoacutefanes
que afirmava ldquohomem nenhum conhece a certeza e homem nenhum jamais a conheceraacuterdquo
(DL IX 72) Demoacutecrito dizia ldquode fato nada sabemos pois a verdade estaacute num abismordquo (DL
134 A tradiccedilatildeo atribui a Homero (teria vivido por volta do seacuteculo VIII aC) a autoria de Iliacuteada e Odisseia Esses poemas satildeo considerados como determinantes para a formaccedilatildeo do homem grego Nessas obras os mitos eram utilizados para explicar e justificar as coisas do homem do mundo e dos deuses 135 Hesiacuteodo (poeta grego do fim do seacuteculo VIII - iniacutecio seacutec VII ac) na Teogonia faz uma genealogia dos deuses e procura explicar o ordenamento do mundo a partir de um estado inicial de caos Em certo sentido ele anuncia um trabalho de reflexatildeo sobre o cosmos que seraacute desenvolvido por outros preacute-Socraacuteticos 136 VERNANT Jean-Pierre Mito e Religiatildeo na Greacutecia Antiga Satildeo Paulo Martins Fontes 2009 137 Tales de Mileto (fim do seacutec VII ndash primeira metade do seacutec VI aC) 138 Nessa linha temos Anaximandro Anaxiacutemenes Heraacuteclito Leucipo Demoacutecrito 139 DL X 68 Γνωστός
64 IX 72) E Empeacutedocles explicava que ldquoos homens natildeo sabem perceber essas coisas nem com
os olhos nem com os ouvidos e nem com a menterdquo (DL IX 73)
Por traacutes dessas afirmaccedilotildees podemos entrever seja uma postura ceacutetica quanto agrave
possibilidade de obter um conhecimento verdadeiro seja a descrenccedila no testemunho dos
sentidos E isso remete para uma discussatildeo parmeniacutedica em que se faz uma contraposiccedilatildeo
entre a verdade (aleacutetheia) e a opiniatildeo (doacutexa) A questatildeo eacute de saber se o que se percebe pela
via dos sentidos pode ser pensado como um conhecimento verdadeiro ou trata-se tatildeo somente
de opiniatildeo Ou como podemos alcanccedilar a verdade sobre a natureza
Ora o conhecimento definido como a possibilidade de se estabelecer ldquoa verdaderdquo
acerca da realidade natildeo eacute o que postula Epicuro ldquoEle procura natildeo a explicaccedilatildeo mas uma
explicaccedilatildeo dos diversos fenocircmenos naturaisrdquo (SALEM 1982 p 18) Trata-se de constituir
um saber que sirva para fundamentar um modo saacutebio de viver Em vista disso o escopo da
physiologiacutea eacute ldquoo entendimento da natureza das coisas fundamentaisrdquo (DL X 45)140 e isso
implica em explicar a phyacutesis dentro de sua imanecircncia Nesse sentido ldquoo mito deve ser
excluiacutedo e seraacute excluiacutedo se nos apegarmos corretamente aos fenocircmenos e a partir destes
procedermos por induccedilatildeo agrave interpretaccedilatildeo das coisas que natildeo caem no acircmbito dos sentidosrdquo
(DL X 104)141 Com isso postula-se que a investigaccedilatildeo da phyacutesis estaacute ligada agrave necessidade
do saacutebio estabelecer um loacutegos sobre a natureza sem ter que recorrer a explicaccedilotildees que
transcendam os limites dela E isso segue no sentido de uma tendecircncia de laicizaccedilatildeo142 do
conhecimento que vai caracterizar a passagem do seacuteculo V para o seacuteculo IV aC Se no
poema de Parmecircnides143 o poeta eacute levado num carro pelas ldquofilhas do Solrdquo ateacute o encontro da
deusa144 que vai lhe revelar a verdade acerca do ser em Epicuro busca-se aprender por meio
de um exerciacutecio de investigaccedilatildeo da natureza o que pode conduzir a um estado de destemor
com relaccedilatildeo ao desconhecido Daiacute a necessidade do loacutegos se distanciar do myacutethos e se
fundamentar na sensibilidade (aiacutesthesis)
Vale destacar que no movimento do pensamento buscar um saber sobre a realidade o
saacutebio caminha pela via do loacutegos mas ele se daacute conta de que nem tudo se revela totalmente ao
140 ὑποβάλλει ltταῖς περὶgt τῆς τῶν ὄντων φύσεως ἐπινοίαις 141 μόνον ὁ μῦθος ἀπέστωmiddot ἀπέσται δέ ἐάν τις καλῶς τοῖς φαινομένοις ἀκολουθῶν περὶ τῶν ἀφανῶν σημειῶται 142 Sobre essa transformaccedilatildeo Marcel Detienne trata por meio da relaccedilatildeo antiteacutetica entre a ldquopalavra maacutegico-religiosardquo e a ldquopalavra-diaacutelogordquo em especial no capiacutetulo V onde discute ldquoO processo de Laicizaccedilatildeordquo DETIENNE Marcel Os Mestres da Verdade na Greacutecia Arcaica Rio de Janeiro Zahar 2003 143 Parmecircnides de Eleia (cerca de 515 - 460 aC) Seu poema Sobre a natureza foi conservado pela tradiccedilatildeo por meio de fragmentos 144 ldquoPercebemos agora que o jovem eacute o lsquohomem sabedorrsquo e que a intenccedilatildeo de sua demanda eacute buscar o saber que soacute os deuses podem proporcionar aos mortaisrdquo destaca Joseacute Trindade Santos em seus comentaacuterios a PARMEcircNIDES Da Natureza Satildeo Paulo Loyola 2013 p 54
65 pensamento racional Eacute preciso ldquoter em vista quais as coisas que o homem pode discernir e
quais as que natildeo poderdquo (DL X 94)145 Isso considera tanto as limitaccedilotildees do entendimento
quanto as da comunicaccedilatildeo Afinal nem tudo que incita a intuiccedilatildeo eacute possiacutevel colocar em
termos de uma linguagem clara objetiva Esse niacutevel da phyacutesis - fugidio agraves palavras - Epicuro
busca traduzir no num loacutegos fundamentado no sensiacutevel Ao considerar que o inteligiacutevel eacute da
ordem do imanente pode-se tratar dele por meio de comparaccedilotildees metaacuteforas analogias
similitude com o aquilo que compotildee nosso campo de experiecircncias
Assim embora os sentidos natildeo alcancem o inteligiacutevel eacute possiacutevel estabelecer um loacutegos
a respeito dele Quando se pensa na poeira refletida contra a luz pode-se falar por
semelhanccedila a essa imagem dos aacutetomos e de como eles podem se comportar no interior dos
corpos O saber edificado a partir da sensibilidade eacute dessa forma ponto de partida para toda
analogia feita em direccedilatildeo ao microcosmo ou ao macrocosmo Nosso modo de conceber o
mundo se daacute portanto a partir de uma relaccedilatildeo sensiacutevel com ele Para Epicuro esse eacute o uacutenico
recurso que o homem tem para pensar a natureza imperceptiacutevel (aacutedelos)
Nesse sentido natildeo haacute a finalidade de dogmatizar a compreensatildeo da natureza no
epicurismo mas de fazer entender a possibilidade de pensar o mundo a partir de sua
naturalidade sem necessidade de recorrer ao mito Afinal ldquoem nenhum caso deve adotar-se
para uma explicaccedilatildeo desse gecircnero a natureza divina ao contraacuterio cumpre-nos conservaacute-la
livre de qualquer tarefa e em perfeita bem-aventuranccedilardquo (DL X 97)146 A finalidade do saber
que decorre da physiologiacutea estaacute ligada agrave necessidade de afastar a crenccedila em causas
sobrenaturais intervindo na natureza E para isso Epicuro estabelece um meacutetodo de
investigaccedilatildeo que tanto pode estabelecer explicaccedilotildees para problemas fiacutesicos por meio da
admissatildeo de causa uacutenica (a natureza da alma eacute corpoacuterea por exemplo) como pode tratar dos
fenocircmenos celestes por meio de causas muacuteltiplas (o surgir e o pocircr-do-sol se devem ao
ldquoacendimento e apagamentordquo mas tambeacutem podem ocorrer ldquopor apariccedilatildeo sobre a terra e
novamente por ocultaccedilatildeordquo147) Em qualquer caso as explicaccedilotildees devem remeter aos
fenocircmenos sensiacuteveis
Disso eacute preciso reter que natildeo havendo condiccedilotildees de esclarecer todos os fenocircmenos
que acontecem na natureza procede-se com esse meacutetodo com aqueles que podem ser
explicados enquanto aguarda-se a possibilidade de elucidar o modo de ser dos outros Isso
145 τεθεωρηκὼς τί δυνατὸν ἀνθρώπῳ θεωρῆσαι καὶ τί ἀδύνατον καὶ διὰ τοῦτο ἀδύνατα θεωρεῖν ἐπιθυμῶν 146 ἔνια καὶ παρrsquo ἡμῖν τῶν τυχόντων γίνεται λαμβανέσθωmiddot καὶ ἡ θεία φύσις πρὸς ταῦτα μηδαμῇ προσαγέσθω ἀλλrsquo ἀλειτούργητος διατηρείσθω καὶ ἐν τῇ πάσῃ μακαριότητι 147 DL X 92 γίνεσθαι δυνατὸν καὶ κατὰ σβέσιν ou por ἐκφάνειάν τε ὑπὲρ γῆς καὶ πάλιν ἐπιπρόσθησιν
66 porque ldquoa razatildeo desenvolve escrupulosamente o que recebe da natureza e faz descobertas em
alguns campos mais velozmente e em outros mais lentamente e em algumas ocasiotildees e
eacutepocas faz progressos maiores e em outras faz progressos menoresrdquo (DL X 75)148 Ou seja
mesmo que em dado momento natildeo seja possiacutevel elucidar certo aspecto ou acontecimento da
natureza isso natildeo significa dizer que natildeo haja uma explicaccedilatildeo para tal O saber eacute um processo
de construccedilatildeo de elaboraccedilatildeo de um loacutegos que pode ainda natildeo estar suficientemente
desenvolvido para definir uma seacuterie de coisas que jaacute inquietam a alma do sophoacutes mas que
ainda natildeo ganharam forma explicativa Ademais Epicuro tambeacutem natildeo estaacute tentando explicar
tudo mas apontando para a possibilidade de entender a natureza sem recorrer aos deuses E
isso estaacute de acordo com o aspecto utilitaacuterio de sua filosofia que consiste em livrar o homem
de irracionalidades e de opiniotildees vazias (DL X 87) condiccedilatildeo para ele viver sem
perturbaccedilotildees Eacute em torno dessa finalidade que Epicuro vai dar agrave questatildeo do conhecimento
uma dimensatildeo praacutetica como veremos a seguir
131 O conhecimento (gnoacutesis)
A noccedilatildeo de conhecimento no epicurismo estaacute ligada agrave necessidade de apresentar uma
orientaccedilatildeo para levar o saacutebio a vivenciar a autaacuterkeia e experimentar uma vida feliz (makariacuteos
zecircn) Em delineando o saacutebio como aquele que estabelece um eacutethos de acordo com a
compreensatildeo que tem da natureza Epicuro vai pensar a physiologiacutea como uma investigaccedilatildeo
que direciona o sentido do conhecer a natureza para estabelecer o modo de viver do saacutebio
Essa perspectiva contrasta com aquela percebida no Mito da Caverna descrito por
Platatildeo149 Aliacute um dos homens que vivia aprisionado consegue sair e descobrir o que lhe
parece ser o mundo real Ele volta para compartilhar sua descoberta com aqueles que ficaram
na caverna Mas o conhecimento trazido por ele causa estranheza e desconfianccedila aos outros Eacute
como se eles vissem uma distacircncia entre o que aquele homem apresentava como verdade e as
necessidades que eles percebiam em suas vidas
Jaacute no epicurismo o conhecimento estaacute diretamente vinculado agrave utilidade que ele tem
para a vida (biacuteos)150 ou seja para auxiliar o homem em seu exerciacutecio cotidiano de existir O
148
τὸν δὲ λογισμὸν τὰ ὑπὸ ταύτης παρεγγυηθέντα ὕστερον ἐπακριβοῦν καὶ προσεξευρίσκειν ἐν μέν τισι θᾶττον ἐν δέ τισι βραδύτερον καὶ ἐν μέν τισι περιόδοις καὶ χρόνοις [ἀπὸ τῶν ἀπὸ τοῦ ἀπείρου] ltκατὰ μείζους ἐπιδόσειςgt ἐν δέ τισι κατrsquo ἐλάττους 149 PLATAtildeO A Repuacuteblica 514a-517c 150 Para se referir agrave vida Epicuro usa dois termos ζην e βίος Considerando os estudos filoloacutegicos de Bollack ζην se reporta ao ldquoprocesso de existecircncia bioloacutegicardquo enquanto βίος exprime a noccedilatildeo de uma realizaccedilatildeo humana
67 saber que resulta da physiologiacutea deve servir para que na impossibilidade de se alcanccedilar a
verdade se possa ter uma opiniatildeo verdadeira (doacutexa aletheacutes) a respeito da phyacutesis e com isso
poder agir conforme a finalidade da natureza (teacutelos tecircs phyacuteseos)
Entretanto esse aspecto da filosofia epicurista tem sido mal compreendido por aqueles
que a analisam buscando nela uma ciecircncia um sistema teoacuterico uma verdade comprovaacutevel E
isso eacute desconsiderar que a physiologiacutea tem como escopo permitir a construccedilatildeo de um
entendimento sobre a phyacutesis relacionado com o proceder do homem no dia a dia eacute a partir do
saber que ela engendra que o saacutebio vai exercitar sua pragmateiacutea (como trataremos nos
capiacutetulos II III e IV) Ela natildeo pretende apresentar provas fazer demonstraccedilatildeo (apoacutedeixis)151
constituir-se como uma epistemologia mas expor mostrar (epiacutedeixis)152 a possibilidade de
pensar a natureza a partir do que ela revela aos nossos sentidos sem recorrer ao teoloacutegico
nem se tutelar por opiniotildees vazias (kenaigrave doacutexai)
O conhecimento dos fenocircmenos do ceacuteu natildeo tem outro fim que a ataraxiacutea Ora para alcanccedilar a ataraxiacutea natildeo eacute necessaacuterio saber positivamente de que maneira esses fenocircmenos se produzem basta saber negativamente de que maneira eles natildeo se produzem (pela intervenccedilatildeo dos deuses) (CONCHE 1977 p 38)
Nesse sentido cabe mais falar de conhecimento como gnose (gnoacutesis) e eacute esse o termo
que Epicuro usa na Carta a Heroacutedoto153 na Carta a Meneceu154 e na sentenccedila vaticana 27
Trata-se de um saber decorrente de um exerciacutecio de pensar a proacutepria vida e a natureza na qual
aquela se situa tendo como referecircncia aquilo que eacute fenomecircnico fiacutesico Em outros termos a
gnoacutesis epicurista tem como princiacutepio e fim a experiecircncia de viver Ela eacute elaborada a partir das
impressotildees que adquirimos da realidade sensiacutevel e ldquonatildeo tem outra finalidade aleacutem de
assegurar a paz de espiacuterito e a convicccedilatildeo firmerdquo (DL X 85)155
A necessidade de ancorar esse discurso (loacutegos) de verdade em evidencias
cosmoloacutegicas fisioloacutegicas e antropoloacutegicas eacute o que vai auferir agrave gnose uma condiccedilatildeo
diferente daqueles mitos e das opiniotildees vazias Por essa razatildeo a lsquomostraccedilatildeorsquo (epiacutedeixis) estaacute
sempre atrelada ao mundo sensiacutevel Eacute visando esse mostrar que o pensamento vai operar por
que se estabelece ao se considerar o devir do tempo Para que a vida seja feliz (μακαρίως ζῆν) e isso seja sentido organicamente eacute preciso que a vida (βίος) seja organizada direcionada para estar de acordo com a natureza (κατὰ φύσιν) (BOLLACK 1975 p 521) 151 Para expor o sentido de ἀπόδειξις Anatole Bailly Op Cit fala de accedilatildeo de fazer ver expor demonstrar apresentar prova 152 Anatole Bailly Op Cit trata o termo ἐπίδειξις no sentido de exibiccedilatildeo de tornar notoacuterio de declamaccedilatildeo de ldquomostraccedilatildeordquo 153 DL X 78 79 85 154 DL X 123 124 155 οὖν μὴ ἄλλο τι τέλος () νομίζειν ltδεῖgt εἶναι ἤπερ ἀταραξίαν καὶ πίστιν βέβαιον
68 meio de analogias (analogiacuteai) para estabelecer uma reflexatildeo a respeito daquilo a que natildeo se
tem acesso direto pelos sentidos Isso acontece quando se estabelece uma comparaccedilatildeo entre
aquilo que compotildee nossas impressotildees sensiacuteveis (proleacutepseis) e o que escapa aos nossos
sentidos mas eacute phyacutesis Dessa forma eacute possiacutevel estabelecer um loacutegos acerca do que se
inscreve no niacutevel macrocoacutesmico ou microcoacutesmico da realidade Ao tratar disso Epicuro
tambeacutem se refere agraves projeccedilotildees imaginaacuterias do pensamento (phantastikegraves epiboleacutes tecircs
dianoiacuteas)156 como uma maneira de falar do que eacute inteligiacutevel recorrendo a uma imagem
explicativa originada da natureza sensiacutevel Em outras palavras parte-se do acervo das
proacutelepseis para projetar um loacutegos acerca do que natildeo eacute percebido pelos sentidos Eacute o que se daacute
quando se busca ter uma ldquovisatildeo de conjuntordquo (athroacuteas epiboleacutes)157 da natureza Se natildeo posso
alcanccedilar a totalidade do que existe posso contudo projetar o pensamento de maneira a
permitir metafisicamente um conceito de totalidade e pensar a realidade como todo
ilimitado Desse modo o pensamento daacute um lsquosaltorsquo para falar do que eacute desconhecido (aacutedelos)
Tudo isso estaacute relacionado ao logismoacutes que pode ser definido158 como uma
capacidade da psycheacute para calcular raciocinar para fazer uma operaccedilatildeo racional Eacute por meio
dessa atividade (que permite fazer analogias e projeccedilotildees) que mesmo sem poder ver o
universo infinito nem sentir o aacutetomo em sua minuacutescula existecircncia o homem pode tentar
entender essas dimensotildees da realidade Dessa forma busca-se estabelecer uma reflexatildeo
metafiacutesica mas fundamentada na imanecircncia uma vez que eacute a partir do referencial sensiacutevel
constitutivo do acervo de memoacuteria do homem que o pensamento vai poder se projetar tanto
para o macrocosmos quanto para o niacutevel micro da realidade Assim o loacutegos resulta dessa
possibilidade do pensamento racional e imaginativo Embora ele natildeo seja capaz de estabelecer
a verdade (aleacutetheia) ele pode por meio das proleacutepseis interpretar a realidade constituindo
uma orthegrave doacutexa
Estamos com isso dizendo que o conhecimento origina-se na realidade sensiacutevel
conforme Epicuro trata na Carta a Heroacutedoto O entendimento desse processo gnoseoloacutegico
passa pela compreensatildeo de que o iniacutecio do conhecer estaacute no corpo que eacute quem percebe o
mundo Isso se daacute quando nossas vias de percepccedilatildeo (tato visatildeo audiccedilatildeo olfato paladar)
recebem ou captam do objeto da realidade suas imagens (eiacutedola)159 Eacute desse encontro que se
gera uma afecccedilatildeo (paacutethos) que pode ser entendida como um contato estabelecido entre o
156 DL X 147 φανταστικὴν ἐπιβολὴν τῆς διανοίας 157 DL X 35 ἀθρόας ἐπιβολῆς 158 Markus Silva Termos Filosoacuteficos de Epicuro Op Cit 159 Satildeo emanaccedilotildees que chegam aos nossos oacutergatildeos sensoriais sob variadas formas emanaccedilotildees imageacuteticas olfativas sonoras
69 corpo senciente e o corpo sensiacutevel seja diretamente ou por meio de suas eiacutedola ldquoEacute pela
penetraccedilatildeo em noacutes de qualquer coisa vinda de fora que vemos as figuras das coisas e fazemos
delas objeto de nosso pensamentordquo (DL X 49) Em outros termos tudo que se conhece pelos
oacutergatildeos sensiacuteveis se daacute por afecccedilatildeo Noacutes somos tocados pelo cheiro pela imagem pelo som
satildeo aacutetomos que chegam ateacute noacutes Essa afecccedilatildeo gera no homem a sensaccedilatildeo (aiacutesthesis) que eacute
para Epicuro a base de todo conhecimento Satildeo as sensaccedilotildees que seratildeo gravadas em nossa
memoacuteria (mneacuteme) e vatildeo constituir na psycheacute uma imagerie do mundo o repertoacuterio de
impressotildees sensiacuteveis ou preacute-noccedilotildees (proleacutepseis) de nossa alma Eacute a partir dessas impressotildees
que o pensamento faz as projeccedilotildees imaginaacuterias do pensamento (phantastikegraves epibolegraves tecircs
dianoiacuteas) e pode estabelecer um loacutegos a respeito tanto do niacutevel macro quanto do microfiacutesico
132 Criteacuterios de verdade
Uma vez que ldquoa representaccedilatildeo que recebemos com a impressatildeo direta da mente ou nos
oacutergatildeos sensoriais seja da forma seja das outras propriedades eacute a mesma forma do corpo
soacutelido tal qual resulta da coesatildeo iacutentima da imagem ou de seus vestiacutegios restantesrdquo (DL X
50)160 o erro natildeo estaacute na sensaccedilatildeo mas pode decorrer das afirmaccedilotildees estabelecidas sobre ela
Em outros termos a realidade sensiacutevel natildeo eacute subjetividade eacute fenocircmeno real e como tal eacute
percebida pelo homem Eacute por haver essa relaccedilatildeo direta objetiva entre a imagem (eiacutedola)
percebida e o objeto do qual ela emana que Epicuro reconhece a autenticidade desse saber
Desse modo eacute a opiniatildeo que deve ser considerada como uma suposiccedilatildeo que pode ou natildeo ter
valor de verdade Daiacute ser necessaacuterio considerar a veracidade ou a falsidade dessas afirmaccedilotildees
e para isso
() devemos compatibilizar todas as nossas investigaccedilotildees com nossas sensaccedilotildees e particularmente com as apreensotildees imediatas sejam elas da mente ou de qualquer outro instrumento de juiacutezo e compatibilizaacute-las igualmente com os sentimentos existentes em noacutes para podermos ter indicaccedilotildees que nos permitam julgar o problema da percepccedilatildeo por via dos sentidos e do que eacute imperceptiacutevel aos sentidos (DL X 38)161
Essa passagem nos remete para pensar que se a sensaccedilatildeo eacute verdade mas o que se diz
sobre ela pode natildeo ser entatildeo eacute preciso estabelecer um criteacuterio de distinccedilatildeo entre opiniatildeo
160 καὶ ἣν ἂν λάβωμεν φαντασίαν ἐπιβλητικῶς τῇ διανοίᾳ ἢ τοῖς αἰσθητηρίοις εἴτε μορφῆς εἴτε συμβεβηκότων μορφή ἐστιν αὕτη τοῦ στερεμνίου γινομένη κατὰ τὸ ἑξῆς πύκνωμα ἢ ἐγκατάλειμμα τοῦ εἰδώλουmiddot 161 ἔτι τε καὶ τὰς αἰσθήσεις δεῖ πάντως τηρεῖν καὶ ἁπλῶς τὰς παρούσας ἐπιβολὰς εἴτε διανοίας εἴθrsquo ὅτου δήποτε τῶν κριτηρίων ὁμοίως δὲ καὶ τὰ ὑπάρχοντα πάθη ὅπως ἂν καὶ τὸ προσμένον καὶ τὸ ἄδηλον ἔχωμεν οἷς σημειωσόμεθα
70 verdadeira e falsa Na Carta a Heroacutedoto se explica ldquoa opiniatildeo eacute verdadeira se a evidecircncia dos
sentidos a confirma ou natildeo a contradiz eacute falsa se a evidecircncia dos sentidos natildeo a confirma ou a
contradizrdquo (DL X 34) Assim essa diferenciaccedilatildeo eacute estabelecida por Epicuro a partir de
ldquocriteacuterios da verdaderdquo (DL X 31) Tais criteacuterios se datildeo em observacircncia agraves sensaccedilotildees
(aiacutestheseos) agraves antecipaccedilotildees (proleacutepseis) e agraves projeccedilotildees imaginaacuterias do pensamento
Como apontado acima as sensaccedilotildees (aiacutestheseos) se constituem como uma via para o
conhecimento Delas se tem a evidecircncia fundamental da realidade do que experimentamos
Uma vez que os objetos da phyacutesis produzem imagens ou simulacros formados por
corpuacutesculos partiacuteculas que se desprendem dos corpos e atingem nossa percepccedilatildeo a afecccedilatildeo
sentida nos faz entender que esses objetos existem Trata-se de um indicativo de que o corpo
sente (diretamente ou por meio da captaccedilatildeo de suas eiacutedola) o outro corpo Assim ldquoa
existecircncia de corpos eacute atestada em toda parte pelos proacuteprios sentidosrdquo (DL X 39)162
As antecipaccedilotildees ou preacute-noccedilotildees quando remetem para imagens plenamente fundadas
sobre o testemunho das sensaccedilotildees podem ser entendidas como um criteacuterio de verdade Isso
pois satildeo representaccedilotildees formadas a partir da repeticcedilatildeo de sensaccedilotildees anaacutelogas entre si Ao ver
vaacuterias vezes a imagem de um navio grava-se na alma uma noccedilatildeo diretamente relacionada a
esse tipo de embarcaccedilatildeo Portanto essas imagens ao se relacionarem com objetos da
experiecircncia evidenciam a existecircncia deles
As phantastikai epibolai tecircs dianoiacuteas permitem projetar o pensamento de maneira a
poder tratar sobre que natildeo se abarca por nossos oacutergatildeos sencientes E isso poderia ser
considerado um prolongamento dos sentidos para alcanccedilar niacuteveis que eles natildeo o atingem As
reflexotildees sobre o aacutetomo e o todo (tograve pacircn) resultam dessa possibilidade Mas esse movimento
da inteligecircncia deve sempre remeter agrave memoacuteria das sensaccedilotildees Eacute nesse acervo que o
pensamento (diaacutenoia) vai buscar essas imagens para projetar e construir analogias
Com relaccedilatildeo agraves afecccedilotildees (paacutethes) elas podem ser compreendidas como indicativos de
uma conformidade ou inadequaccedilatildeo aos limites da natureza A veracidade do que eacute bom ou
mal eacute estabelecida na medida em que elas nos trazem a sensaccedilatildeo de prazer ou dor Eacute nessa
evidecircncia do sentir que as afecccedilotildees ldquonos fornecem o criteacuterio da verdade eacuteticardquo (CONCHE
1977 25) Tal aspecto vai ser fundamental para guiar o saacutebio em sua pragmateiacutea lhe
indicando o que escolher e o que evitar para alcanccedilar uma vida feliz (makariacuteos zecircn) e
autaacuterquica
Dessa forma para um loacutegos ter valor de verdade eacute preciso que ele esteja ancorado na
162 σώματα μὲν γὰρ ὡς ἔστιν αὐτὴ ἡ αἴσθησις ἐπὶ πάντων μαρτυρεῖ
71 realidade-phyacutesis ldquoEacute verdadeiro apenas aquilo que se percebe por meio dos sentidos ou se
apreende por meio da menterdquo (DL X 62)163 Ressalte-se contudo que essa apreensatildeo mental
tambeacutem deve estar coerente com a percepccedilatildeo que temos do mundo fiacutesico Epicuro com isso
visa trabalhar um discurso de verdade que se apresenta como opiniatildeo verdadeira (doacutexa
alethegraves) que difere das opiniotildees falsas (doacutexa pseudegraves) por atender a criteacuterios ancorados na
realidade imanente Natildeo se trata de um loacutegos estabelecido em cima de um pensamento
categorial mas do que poderiacuteamos entender como um pensamento fiacutesico E isso se relaciona
com a noccedilatildeo de que a verdade estaacute relacionada ao existir das coisas Como testemunha Sexto
Empiacuterico ldquoele natildeo fazia diferenccedila entre dizer que alguma coisa eacute lsquoverdadersquo (aletheacutes) e dizer
existente (hypaacuterchon)rdquo164
133 Saber teacutechne e aacuteskesis
Quando recorremos ao testemunho de Sexto Empiacuterico lemos que os epicuristas
buscavam apresentar em sua filosofia uma arte (teacutechne)165 de viver que por discurso (loacutegois)
e pensamento (dialogismoiacutes) se direciona para a felicidade da vida (ton eudaiacutemona biacuteon)
Essa perspectiva eacute sintetizada na definiccedilatildeo que Empiacuterico atribui a Epicuro para quem a
filosofia seria uma teacutechnen tinaacute periacute ton biacuteon166 ou em outros termos um saber em torno da
vida167 A mesma ideia consta nos fragmentos Us 227 e 227b168 onde eacute dito que Epicuro
definiu tal arte ou teacutecnica como um procedimento (meacutethodos) que busca ser uacutetil agrave vida
Graziano Arrighetti169 vecirc o termo teacutechne como arte perspectiva que eacute seguida por
muitos entre eles John Sellars170 que traduz a expressatildeo como ldquothe art concerned with onersquos
way of life the art of livingrdquo Outra modulaccedilatildeo de entendimento da teacutechnen tinaacute periacute ton biacuteon
poderia ser a de um saber para a vida ou em torno dela171 Em todo caso uma ideia
permanece a de uma arte ndash epicurista - de viver que aponta para a articulaccedilatildeo entre as
necessidades do homem e o direcionamento da atividade filosoacutefica
163 ἐπεὶ τό γε θεωρούμενον πᾶν ἢ κατrsquo ἐπιβολὴν λαμβανόμενον τῇ διανοίᾳ ἀληθές ἐστι 164 Sexto Empiacuterico (Adv Math VIII 9) apud CONCHE 1977 p 29 165 O termo teacutechne pode ser entendido como teacutecnica arte ou saber 166 Ver nota 02 deste capiacutetulo 167 Conforme traduz Markus Figueira Silva em Epicuro Sabedoria e Jardim Op Cit 168 Us 227b Scholiasta Dionysii Thracis BAG p 649 26 οι μεν Επικούρειοι ούτως ορίζονται την τέχνην middot τέχνη εστί μέθοδος ενεργούσα τω βίω το συμφέρον ενεργούσα δε οίον εργαζομένη 169 ARRIGHETTI Graziano Epicuro - Opere Torino Giulio Einaudi 1962 170 SELLARS John The Art of Living The Stoics on the Nature and Function of Philosophy London Bloomsbury 2009 171 Markus Silva Epicuro Sabedoria e Jardim Op Cit
72 A partir dessas referecircncias pode-se entrever que a felicidade o modo de viver e o
saber filosoacutefico satildeo temas interligados e prementes no pensamento epicurista E isso diz
respeito agrave maneira de compreender a realidade de pensar valores de fazer escolhas de
estabelecer relacionamentos de problematizar o proacuteprio sentido de existir e demais questotildees
que envolvam a realizaccedilatildeo de uma vida feliz (makariacuteos zecircn) Por meio de um saber em torno
do viver Epicuro visa inscrever no campo das discussotildees filosoacuteficas a necessidade de
apresentar um meio de conduzir o homem a experimentar a felicidade no seu dia a dia Com
isso ele se opotildee agraves concepccedilotildees que orientam a filosofia para as questotildees retoacutericas para a
erudiccedilatildeo ou para a investigaccedilatildeo do que ultrapassa o niacutevel da experiecircncia humana Em linhas
gerais podemos dizer que essa arte teacutecnica ou saber vai remeter para o desenvolvimento de
uma filosofia que considerando o campo das experiecircncias fornecidas pela vida ao homem e
os limites de sua capacidade de conhecer a natureza desenvolva nele uma sabedoria para
ajudaacute-lo - de maneira praacutetica - a se conduzir no mundo
Eacute por meio de uma relaccedilatildeo estabelecida entre a vida feliz e a teacutechne filosoacutefica que
Epicuro concebe a figura do saacutebio (sophoacutes) como sendo aquele que busca estabelecer uma
maneira de viver a partir de uma compreensatildeo da natureza (phyacutesis) procurando conferir mais
naturalidade ao seu modo de ser Afinal o sentido de equiliacutebrio e de autaacuterkeia (ter o princiacutepio
da accedilatildeo em si mesmo172) percebidos na phyacutesis eacute relacionado a um estado de bem estar de
tranquilidade de liberdade e de realizaccedilatildeo que o saacutebio busca trazer para sua proacutepria
existecircncia E isso implica em exercitar uma teacutecnica ou arte tendo em vista espelhar em sua
alma e em seu modo de viver esse estado equilibrado e autaacuterquico de ser Dessa forma o
exerciacutecio da sabedoria eacute orientado para que o entendimento sobre a natureza e sobre si proacuteprio
resulte em um modo saacutebio de agir pois quanto maior o esclarecimento sobre esses aspectos
maior a compreensatildeo daquilo que determina seus desejos e as possibilidades e limites de
realizaacute-los
A ideia daiacute decorrente eacute a de que quando o saacutebio busca exercitar o sentido de sua
realizaccedilatildeo a partir da compreensatildeo que estabelece sobre a natureza ele vai se apercebendo de
que sua vontade tanto pode ser definida a partir desse saber quanto pode ser determinada por
desejos que o levam a um estado desequilibrado e subjugado de ser natildeo sendo a expressatildeo de
uma necessidade vital ou de uma vida conforme a natureza (katagrave phyacutesin) mas de um
equivoco da opiniatildeo quanto ao sentido de existir do homem e quanto aos modos de ser da
172 Essa concepccedilatildeotraduccedilatildeo eacute defendida por Markus Figueira Silva em Epicuro Sabedoria e Jardim Op Cit Para ele o saacutebio tem em si mesmo (tograves autograves) o princiacutepio (archeacute) que determina sua accedilatildeo
73 natureza Por isso ele efetiva essa arte de viver na medida em que procura estabelecer e
vivenciar uma identificaccedilatildeo desse exerciacutecio constante de investigaccedilatildeo da phyacutesis (physiologiacutea)
com a praacutetica de um modo de vida voltado para a proacutepria felicidade Eacute dessa associaccedilatildeo que
Epicuro nos fala nesta seccedilatildeo da Carta a Heroacutedoto
() sendo tal caminho uacutetil a todos que se familiarizaram com a investigaccedilatildeo da natureza (physiologiacutea) eu que dedico incessantemente minhas energias agrave investigaccedilatildeo da natureza e desse modo de viver tiro principalmente a minha calma preparei para teu uso uma espeacutecie de epiacutetome e um sumaacuterio dos elementos fundamentais de minha doutrina em sua totalidade (DL X 37) 173
Desta citaccedilatildeo fica destacado que viver e filosofar satildeo atividades inseparaacuteveis (e a
pragmateiacutea epicurista remete justamente para essa indissociaccedilatildeo) na medida em que se
constituem como uma ocupaccedilatildeo ou disposiccedilatildeo (diaacutethesis) permanente do sophoacutes-physiologoacutes
para tentar estabelecer um eacutethos fundamentado na natureza Em outros termos eacute na
indissociabilidade com o modo de viver visado pelo saacutebio que o exerciacutecio de compreensatildeo da
phyacutesis se caracteriza como esse saber que permite pensar os limites as possibilidades ou em
que medida se daacute a realizaccedilatildeo do homem E isso estaacute relacionado agrave compreensatildeo de como eacute e
como opera a realidade circunscrevendo o pensamento os desejos e as accedilotildees agraves fronteiras do
natural a partir do que eacute percebido pela sensibilidade e estaacute contido no campo das
experiecircncias de vida do homem como destacamos anteriormente
Para melhor compreender essa concepccedilatildeo de saber como teacutechne ou conhecimento
aplicado ao modo de viver podemos fazer uso de uma imagem comum na antiguidade Eacute
aquela que relaciona a vida (βίος) essa existecircncia histoacuterica agrave imagem do mar sobre o qual
navega o homem Sem o domiacutenio de uma teacutecnica de navegaccedilatildeo ele se perde na imensidatildeo dos
oceanos mas ao conhececirc-la e aplicaacute-la ele pode se guiar pelas estrelas pelos ventos pelo vocirco
dos paacutessaros e assim chegar tranquilo ao cais Eacute essa pragmateiacutea colocada em exerciacutecio pelo
navegador ao se valer das teacutecnicas de navegaccedilatildeo que conhece fundamental para sua
seguranccedila Disso vem uma tranquilidade anaacuteloga agrave do homem que da terra firme observa -
sereno - o mar furioso fazer seus naufraacutegios como expressou o poeta e filoacutesofo epicurista
Lucreacutecio174 revalidando a compreensatildeo de que a teacutecnica instrumentaliza o homem para
vencer os desafios colocados pela natureza e tambeacutem para tornar a existecircncia mais agradaacutevel
Eacute por meio da teacutechne que ele constroi o barco forja a acircncora ergue o cais tece a rede de
173 ὅθεν δὴ πᾶσι χρησίμης οὔσης τοῖς ᾠκειωμένοις φυσιολογίᾳ τῆς τοιαύτης ὁδοῦ παρεγγυῶν τὸ συνεχὲς ἐνέργημα ἐν φυσιολογίᾳ καὶ τοιούτῳ μάλιστα ἐγγαληνίζων τῷ βίῳ ἐποίησά σοι καὶ τοιαύτην τινὰ ἐπιτομὴν καὶ στοιχείωσιν τῶν ὅλων δοξῶν 174 Essa analogia feita por Lucreacutecio em Da Natureza consta no canto II 1 e segs)
74 pesca e produz o vinho que na refeiccedilatildeo vai bem com o peixe e o patildeo tornando mais alegre o
viver
Essa relaccedilatildeo que se estabelece entre o ser humano e a natureza por meio da teacutecnica
pode ser lembrada atraveacutes do mito de Prometeu175 o titatilde que fez o homem conhecer o fogo
Ao dominar esse elemento natural ele se distancia do modo de viver dos animais e
incrementa os meios para sua sobrevivecircncia O fogo nessa narrativa pode ser pensado como
siacutembolo das artes e das teacutecnicas para as quais o homem era ignorante Lucreacutecio poeticamente
traceja esse caminho sem recorrer aos mitos mas destacando a natureza e a necessidade como
condiccedilotildees que levam o homem ao desenvolvimento da teacutechne
Depois o Sol os ensinou a cozer o alimento a amolececirc-lo com a evaporaccedilatildeo da chama porque viam muita coisa tornar-se branda com o golpe de seus raios e ser atraveacutes dos campos vencida pelo seu calor De dia para dia modificavam mais a sua alimentaccedilatildeo e a sua vida em virtude de novas descobertas e do fogo graccedilas agraves demonstraccedilotildees dos que estavam mais agrave frente pela inteligecircncia e pela forccedila da alma (Lucr IV)176
Historicamente podemos dizer que ateacute por volta do seacuteculo V aC a marca do domiacutenio
humano sobre a natureza se faz no campo das habilidades teacutecnicas ou de um tipo de sabedoria
(entendida em uma acepccedilatildeo geral do termo) caracteriacutestica do trabalho dos artesatildeos e
especialistas de ofiacutecios (JAEGER 1995 p 265ss) Dessa forma se por um lado ldquoHomero
chama sophoacutes ao carpinteirordquo nos lembra que a arte da poesia tambeacutem era designada por
Piacutendaro por sophiacutea Isso nos leva a pensar na existecircncia de diferenccedilas na natureza do saber e
por conseguinte nas possibilidades e limitaccedilotildees de sua transmissatildeo A sabedoria reivindicada
pelo poeta era algo inato estava ligada agrave proacutepria inteligecircncia de quem a fazia evocava a ideia
de uma inseparaacutevel relaccedilatildeo entre forma e pensamento Por isso explica W Jaeger177 a
teacutecnica poeacutetica natildeo poderia ser ensinada como o oficio do sapateiro do tecelatildeo do pescador
Na mesma perspectiva que procura refinar a caracterizaccedilatildeo dos saberes Platatildeo nos
apresenta no Protaacutegoras178 a concepccedilatildeo sofiacutestica de uma arte poliacutetica compreendida como
uma teacutecnica distinta daquela do artesatildeo - uma vez que natildeo se presta a fazer da natureza
instrumento de melhoria de vida mas atuar nas relaccedilotildees entre os homens em sociedade
Contudo tambeacutem difere da poesia uma vez que se trata de saber teacutecnico passiacutevel de ser
175 Segundo a narrativa miacutetica Prometeu um titatilde enganou Zeus roubando-lhe o fogo para entregaacute-lo aos homens Por isso foi castigado pelos deuses sendo acorrentado no Caacuteucaso onde uma aacuteguia ia diariamente devorar-lhe o fiacutegado 176 LUCREacuteCIO Da Natureza Satildeo Paulo Abril Cultural 1985 (Os Pensadores) Traduccedilatildeo de Agostinho da Silva p 236 177 Werner Jaeger Paideacuteia A Formaccedilatildeo do Homem Grego Satildeo Paulo Martins Fontes 1995 178 PLATAtildeO Protaacutegoras In Diaacutelogos Beleacutem UFPA 1980
75 transmitido a outrem
Essas reivindicaccedilotildees quanto agrave especificidade de algumas teacutecnicas vatildeo estimular no
decorrer do tempo um debate sobre a educaccedilatildeo no que diz respeito agrave definiccedilatildeo do que eacute
teacutechne em oposiccedilatildeo ao que eacute sophiacutea E o tom dessas discussotildees comumente se manteacutem
voltado para saber o que poderia ser ensinado e o que seria uma ldquoarterdquo natural Tal como
aparece no Protaacutegoras onde se destaca a ideia de que o trabalho dos sofistas que era ensinar
constituiacutea-se como uma teacutechne e natildeo como sophiacutea Trata-se de uma teacutecnica que transmite
outras teacutecnicas Dessa forma a retoacuterica era ensinada para instrumentalizar o homem para o
domiacutenio da teacutechne poliacutetica tida pelos sofistas como a mais importante entre as artes
O que se pode observar eacute a insurgecircncia de uma necessidade de diferenciar as teacutecnicas
ligadas aos saberes profissionais daquelas ditas mais elevadas em funccedilatildeo de ldquoum sentido de
totalidade e de universalidaderdquo (JAEGER 1995 p 350) Daiacute a tendecircncia inicial a se colocar
em lados separados ciecircncia e teacutecnica teoria e praacutetica sophiacutea e phroacutenesis
Ocorre contudo que tal necessidade de separaccedilatildeo entre esses saberes encontra uma
especificidade da liacutengua grega que tanto W Jaeger quanto M Silva179 destacam τέχνη em
grego antigo exprime um sentido geral de saber adquirido pela accedilatildeo uma maneira de lidar
com a natureza no campo praacutetico ao mesmo passo em que tambeacutem traduz um conjunto de
saberes especiacutefico envolvidos nessas teacutecnicas Ou seja embora tragam vieses praacuteticos
metodoloacutegicos e saberes de uma ldquonaturezardquo diferente o meacutedico o poeta o poliacutetico o sofista e
outros tantos personagens que faziam o desenvolvimento econocircmico cultural e poliacutetico da
Greacutecia antiga tinham suas atividades circunscritas a um mesmo termo-definiccedilatildeo embora
buscassem afirmar as especificidades e necessidade de saber especializado de cada aacuterea E
isso eacute compreensiacutevel ao considerarmos a tiacutetulo de ilustraccedilatildeo que tanto o ofiacutecio meacutedico da
eacutepoca quanto a culinaacuteria tecircm como manifestaccedilatildeo praacutetica de sua atuaccedilatildeo a alimentaccedilatildeo mas
somente o meacutedico tem o saber sobre qual dieteacutetica prescrever para o doente
A conversatildeo da educaccedilatildeo numa teacutecnica eacute um caso particular da tendecircncia geral do tempo a dividir a vida inteira numa seacuterie de compartimentos separados concebidos com vistas a uma finalidade e teoricamente fundamentados num saber adequado e transmissiacutevel Eacute sobretudo em matemaacutetica medicina ginaacutestica teoria musical arte dramaacutetica etc que noacutes encontramos especialistas e obras especializadas Ateacute os escultores como Policleto escrevem a teoria da sua arte (JAEGER 1995 p 349)
Nesse contexto Platatildeo no Goacutergias180 pensa a medicina (teacutechne he ietrikeacute)181 como
179 Markus Silva Sabedoria e Jardim Op Cit p55 180 464a ndash 469d PLATAtildeO Goacutergias Lisboa Ediccedilotildees 70 1992
76 uma teacutechne por excelecircncia Eacute do entendimento que Platatildeo tem da medicina que se define ao
mesmo tempo um conceito para a teacutecnica e um paralelo entre a atividade do meacutedico e a do
filoacutesofo dado que tal qual o meacutedico se vale do que sabe sobre a natureza do homem para
diagnosticar doenccedilas e lhe restituir a sauacutede do corpo a filosofia faz o mesmo em prol da
sauacutede da alma Essa perspectiva enceta no campo do saber filosoacutefico um sentido de
therapeiacutea182 que visa curar a psycheacute do homem Vale destacar que essa relaccedilatildeo que Platatildeo
estabelece entre a medicina e a filosofia aponta para o fato de ambas constituiacuterem seu saber a
partir do conhecimento sobre a phyacutesis para poderem a seu tempo pensar a natureza do corpo
e a da alma Eacute a partir desse afunilamento que meacutedico e filoacutesofo vatildeo poder prescrever um
receituaacuterio ou condutas para manter ou restabelecer o equiliacutebriosauacutede do homem
Outro aspecto que verificamos ao acompanharmos a evoluccedilatildeo de sentido da teacutechne ao
longo do tempo eacute a ampliaccedilatildeo do seu campo de atuaccedilatildeo Antes ela incidia sobre a natureza
(phyacutesis) e o uso utilitaacuterio que dela poderia ser feito visava a conservaccedilatildeo e a melhoria da vida
Depois passou a se projetar tambeacutem de maneira mais especifica sobre o homem tentando
direcionar sua accedilatildeo social como atraveacutes da teacutecnica poliacutetica ou buscando favorecer seu bem-
estar e equiliacutebrio orgacircnico como atraveacutes da medicina (teacutechne he ietrikeacute) Nesse caso o saber
meacutedico vai partir do conceito estabelecido de natureza do universo183 (phyacutesis tou pantoacutes) -
desenvolvido pelos filoacutesofos naturalistas jocircnicos - para pensar as naturezas dos homens (taacutes
phyacuteseis totilden anthroacutepon)184 e sobre ela estabelecer e projetar sua teacutecnica Com a teacutechne he
ietrikeacute o fim praacutetico visado eacute o estado de sauacutede do corpo e a arte meacutedica vai buscar validar
um receituaacuterio de vida voltado para o equiliacutebrio e harmonia dos constituintes orgacircnicos do
homem (estados semelhantes aos postulados pela filosofia para alma)
Esse paralelo que se estabelece e se intensifica entre a medicina e a filosofia marca o
ideaacuterio grego da antiguidade Nele se estabelece uma relaccedilatildeo entre a ignoracircncia com a doenccedila
e a sabedoria com a sauacutede E da mesma forma que a medicina tem por funccedilatildeo curar o corpo
do homem das enfermidades de maneira semelhante a filosofia deve afastar a psycheacute da
ignoracircncia Esse prisma jaacute se encontra colocado desde Demoacutecrito para quem ldquoa medicina cura
as enfermidades do corpo mas a sabedoria liberta a alma do sofrimento185rdquo Consoante essa
181 Expressatildeo ligada agrave medicina antiga 182 VOELKE A J La Philosophie Comme Theacuterapie de lrsquoAcircme Paris Cerf 1993 183 ldquoA conexatildeo entre o pensamento meacutedico das obras de Hipoacutecrates e o estudo do conjunto da natureza tem jaacute uma expressatildeo grandiosa na introduccedilatildeo ao escrito Dos Ventos Aacuteguas e Regiotildeesrdquo (JAEGER 1995 p 1006) 184 Embora a traduccedilatildeo de Gama Cury se refira agrave ldquonatureza dos homensrdquo o texto grego coloca os termos no plural τὰς φύσεις τῶν ἀνθρώπων (DL X 75) 185 O fragmento foi transmitido por Clemente e consta em Diels (H) e Kranz (W) II B 31 Nossa traduccedilatildeo baseou-se naquela encontrada em Alberto Bernabeacute Fragmentos Presocraacuteticos de Tales a Demoacutecrit Madrid
77 tradiccedilatildeo Epicuro tambeacutem vai trabalhar em seus escritos a noccedilatildeo de uma medicina para a
alma Tanto que na Carta a Meneceu logo em suas primeiras linhas ele faz um convite aos
seus contemporacircneos para que vejam na filosofia um caminho para a cura dos seus males
ldquoNenhum jovem deve demorar a filosofar e nenhum velho deve parar de filosofar pois nunca
eacute cedo demais nem tarde demais para a sauacutede da almardquo (DL X 122)186 Nesse sentido
reproduz-se no epicurismo a imagem da filosofia como uma medicina para a alma um saber
que se coloca a serviccedilo da realizaccedilatildeo de um estado de bem-estar (eustatheiacutea) aspecto
consoante a ausecircncia de distuacuterbio no corpo (aponiacutea) e de perturbaccedilatildeo na alma (ataraxiacutea)
Com isso Epicuro traccedila um paralelo entre sabedoria e a sauacutede da psycheacute ressaltando uma
relaccedilatildeo entre a teacutechne filosoacutefica e a teacutechne meacutedica Ao conceber a filosofia em torno do
preceito de que ldquoeacute preciso vir a ser em torno da cura de noacutes mesmosrdquo (SV 64)187 ele nos
remete tanto para uma indissociabilidade entre sauacutede da alma e vida feliz (makariacuteos zecircn)
quanto para a ligaccedilatildeo entre a physiologiacutea e a conduta do saacutebio Isso porque conhecimento
(gnocircsis) phyacutesis e o modo de viver (eacutethos) compotildeem no epicurismo um todo uma unidade
na medida em que constituem e se constituem como uma praacutetica filosoacutefica contiacutenua voltada
para fazer o homem conquistar um estado de equiliacutebrio a partir da adoccedilatildeo de um modo natural
de viver
Ora assim como na arte meacutedica (teacutechne he ietrikeacute) a filosofia epicurista parte de um
saber acerca da phyacutesis a physiologiacutea para pensar o modo de ser e de agir do homem visando
igualmente um estado de equiliacutebrio do corpo e da alma Nisso ele ecoa a concepccedilatildeo de
meacutedico-filoacutesofo ao mesmo passo em que reflete a tendecircncia que se verificava jaacute no seacuteculo V
aC segundo a qual as relaccedilotildees estabelecidas entre a physiologiacutea e a teacutechne he ietrikeacute se datildeo a
partir do uso de conceitos comuns Isso se explica porque o saber ligado ao desenvolvimento
da atividade meacutedica vai estimular e contribuir para a reflexatildeo filosoacutefica que busca se
distanciar das opiniotildees convencionais e explicaccedilotildees miacuteticas
Um desses conceitos partilhados diz respeito agrave sauacutede (hyguiacuteeia) que tanto na medicina
quanto na filosofia remete para um estado de equiliacutebrio de bem-estar Quando Epicuro se
refere agrave sauacutede da alma (psychegraven hyguiaiacutenon) o faz a partir de uma relaccedilatildeo desse cuidado com
a realizaccedilatildeo de uma vida feliz (makariacuteos zecircn) Assim cada um meacutedico e filoacutesofo vai propor
o phaacutermakon adequado para estabelecer ou restabelecer esse estado No Epicurismo isso se
Alianza Editorial 2008 p 288 fragmento 31 186 Μήτε νέος τις ὢν μελλέτω φιλοσοφεῖν μήτε γέρων ὑπάρχων κοπιάτω φιλοσοφῶν οὔτε γὰρ ἄωρος οὐδείς ἐστιν οὔτε πάρωρος πρὸς τὸ κατὰ ψυχὴν ὑγιαῖνον 187 () ἡμᾶς δὲ γενέσθαι περὶ τὴν ἡμῶν ἰατρείαν
78 daacute por meio de um loacutegos-terapecircutico elaborado para combater os males do corpo e as
perturbaccedilotildees da psycheacute188 Esse receituaacuterio eacute encontrado na Carta a Meneceu onde se
apresenta um tetraphaacutermakon189 voltado para a cura de quaisquer afliccedilotildees do pensamento e
consequentemente com benefiacutecios para um corpo composto (athroiacutesma) Um unguento para
a alma que se faz a partir de quatro postulados 1) Natildeo haacute o que temer quanto aos deuses 2)
Natildeo haacute nada a temer quanto agrave morte 3) Pode-se alcanccedilar a felicidade 4) Pode-se suportar a dor
Na base dessa formulaccedilatildeo190 circunscreve-se o entendimento epicurista de que o
adoecimento ou estado de desarmonia tanto da psycheacute quanto do athroiacutesma daacute-se devido agraves
opiniotildees vazias (kenaigrave doacutexai) que o homem alimenta sobre si mesmo e sobre a natureza
Fundadas no engano nos mitos nas religiotildees institucionalizadas elas vatildeo resultar em temores
que afligem e desequilibram Como o medo dos deuses (temperamentais regentes dos
destinos) como o medo da morte (que arrebata e conduz para um mundo de agonias eternas)
como o medo da dor (intensa e constante como a sentida por Prometeu em seu fiacutegado) Daiacute a
necessidade de um loacutegos capaz de neutralizar outro loacutegos como um antiacutedoto o faz em relaccedilatildeo
agrave substacircncia que envenena o organismo Para Epicuro eacute desfazendo-se desses tipos de
crenccedilas substituindo-as por um conhecimento fundamentado sobre a phyacutesis por uma opiniatildeo
verdadeira (doacutexa alethegraves) que se consegue um estado de cura que vai se manifestar na forma
de aponiacutea e de ataraxiacutea
Para fazer esse loacutegos terapecircutico fundamentado na physiologiacutea resultar em um modo
de vida orientado para o ldquovir a ser em torno da cura de noacutes mesmosrdquo (SV 64)191 Epicuro
concebe a filosofia como uma teacutechne um saber que instrumentaliza o homem para estabelecer
um cuidado sobre o proacuteprio pensar e o agir - uma artesania sobre si mesmo - em funccedilatildeo dessa
necessidade de viver em um estado de equiliacutebrio A teacutechne ao voltar-se para o autocuidado ou
para uma therapeiacutea da psycheacute tem como escopo partindo de uma physiologiacutea estabelecer
um eacutethos que permita ao homem viver um estado de imperturbabilidade de harmonia de
autossuficiecircncia podendo com isso rivalizar com a divindade vivendo ldquocomo um deus entre
188 Em Tel un Dieu Parmi les Hommes (op Cit) Jean Salem faz uma abordagem luacutecida sobre essa relaccedilatildeo contextualizando a questatildeo no mundo antigo Epicuro eacute alccedilado agrave condiccedilatildeo de meacutedico cujo desejo eacute curar a humanidade das dores do corpo e da alma 189 Esse termo eacute tomado emprestado da farmacopeia que definia um unguento agrave base de cera sebo pez e resina No contexto epicurista remete para quatro ingredientes de um discurso terapecircutico O epicurista Dioacutegenes de Œnoanda mandou gravar no seacuteculo II dC a siacutentese desse phaacutermakom em um poacutertico para que os viajantes que passassem por ali pudessem ler As palavras levariam socorro aos doentes da alma contrapondo-se agraves falsas ideias a respeito do mundo 190 Essa formulaccedilatildeo do teacutetrapharmakos epicurista eacute atribuiacuteda a Filodemo (Pap Herc 1005 col IV 9-14) 191 ἡμᾶς δὲ γενέσθαι περὶ τὴν ἡμῶν ἰατρείαν
79 os homensrdquo (DL X 135)192
A teacutechne no entendimento epicuacutereo eacute ao mesmo tempo um exerciacutecio de compreensatildeo
da realidade e uma maneira de conduzir a vida em funccedilatildeo dessa compreensatildeo Seu aspecto
teacutecnico decorre do fato de que eacute a partir de um saber physioloacutegico que se estabelece um
procedimento uma metodologia para a vida feliz o que nos remete para a praacutetica de
exerciacutecios para guiar o pensamento e a accedilatildeo em vista de realizar um eacutethos de acordo com a
phyacutesis A filosofia pensada nesses termos vai se constituir como um saber teacutecnico que natildeo tem
um fim em si mesmo natildeo delineia uma finalidade teoreacutetica mas ganha sentido na medida em
que ldquoagerdquo no homem guiando-o para o bem viver ldquoA teacutechne consiste em conhecer a natureza
do objeto destinado a servir ao Homem e portanto soacute na sua aplicaccedilatildeo praacutetica se realiza
como tal saberrdquo (JAEGER 1995 p 1028)
Mas quando falamos em exerciacutecios em praacuteticas o vocabulaacuterio grego nos legou o
termo aacuteskesis Relacionam-se a ele em nosso leacutexico tanto a palavra ascese quanto o vocaacutebulo
exerciacutecio Embora o significado original de aacuteskesis nos remeta para a ideia de treinamento de
preparaccedilatildeo dos atletas para os trabalhos destinados ao desenvolvimento e aprimoramento das
suas competecircncias fiacutesicas seus derivados ao serem transportados para o campo das praacuteticas
filosoacuteficas passam a apontar ao longo do tempo para atividades distintas entre si no que diz
respeito agrave forma e agrave finalidade
De um lado a ascese passa a se remeter agraves praacuteticas de privaccedilatildeo e fustigaccedilatildeo voltadas
para fazer o aniacutemico ascender sobre o corpoacutereo e com isso conduzir o pensamento (diaacutenoia) agrave
sabedoria Trata-se de infligir uma austera disciplina agrave carne refreando-lhe suas formas de
desejos condiccedilatildeo necessaacuteria agrave libertaccedilatildeo da psycheacute para ascender a um saber que vai guiar o
asceta (aacutesketes) em sua existecircncia Eacute fundamentado nessa acepccedilatildeo que vai ser estabelecido
para nos referirmos ao cristianismo medieval um conjunto de exerciacutecios de conotaccedilatildeo
religiosa voltados para levar agrave sauacutede da alma
Do outro lado a aacuteskesis pensada como exerciacutecio - e no contexto do pensamento
epicurista - remete para atividades que englobam tanto o trabalho de tentar fazer um
descortinamento da phyacutesis quanto o de procurar a partir disso estabelecer um eacutethos que
confira ao corpo-alma um estado de equiliacutebrio Com isso a perspectiva eacute a de desenvolver no
homem uma disposiccedilatildeo (diaacutethesis)193 para procurar realizar o sentido natural de sua
existecircncia Portanto natildeo se trata da negaccedilatildeo ou do afastamento daquilo que proporciona
192 ζήσῃ δὲ ὡς θεὸς ἐν ἀνθρώποις 193 Œno fr 112 DL X 117 Us 222a (διάθεσις)
80 prazer tampouco isso se relaciona com procedimentos que tragam dor ou desconforto o
horizonte eacute o da praacutetica de uma sabedoria marcada pela frugalidade e moderaccedilatildeo Ademais eacute
preciso entender que o exerciacutecio que leva o saacutebio a realizar-se enquanto tal natildeo se daacute tendo o
corpo e o sensiacutevel como entraves agrave sabedoria Para Epicuro o corpo natildeo eacute obstaacuteculo agrave
obtenccedilatildeo do conhecimento nem elemento inepto nesse processo Pelo contraacuterio ele sente
pensa e age Eacute por meio dele que a phyacutesis eacute investigada desvelada (ateacute onde o entendimento
alcanccedila) e pode ser tomada como modelo de realizaccedilatildeo
Assim os exerciacutecios constituintes da filosofia epicurista devem ser compreendidos
como um movimento uma accedilatildeo ou uma atividade (eneacutergeia) que leva o sophoacutes a procurar
viver conforme um saber fundado a partir de um referencial sensiacutevel do qual se pode inteligir
os limites necessaacuterios para estabelecer um eacutethos do bem viver Assim feitas essa
consideraccedilotildees cabe tratar de como essa technē tis peri tograven biacuteon eacute exercitada por meio da
meditaccedilatildeo (meleacutetema) e da praacutexis (praacutexis) realizando um modo saacutebio de viver e por
extensatildeo definindo o sentido da pragmateiacutea epicurista
81
CAPIacuteTULO 02
DA MEDITACcedilAtildeO
OU DO MODO COMO A PRAGMATEIacuteA Eacute EXERCITADA PELA ALMA
A temaacutetica relativa agrave meditaccedilatildeo (tograve meleacutetema)1 vai estar presente em vaacuterias escolas
filosoacuteficas e religiosas desde a antiguidade ateacute hoje Cada uma com suas especificidades
teoacutericas praacuteticas e suas finalidades No epicurismo a meditaccedilatildeo eacute um aspecto fundamental
para compreender o sentido da pragmateiacutea que caracteriza a filosofia do Jardim na medida
em que permite pensar uma relaccedilatildeo entre um conhecimento acerca da realidade e um modo de
viver relacionado a ele Contudo natildeo haacute nos poucos textos preservados de Epicuro uma
definiccedilatildeo explicita do que seja meleacutetema Por isso precisamos percorrer seu pensamento para
tentar expor aqui uma noccedilatildeo que nos permita compreender o sentido dessa atividade e como
ela se constitui como um exerciacutecio que visa levar o saacutebio a experimentar a autarquia e o
equiliacutebrio em sua vida
Na Carta a Meneceu Epicuro faz quatro referecircncias diretas2 agrave meditaccedilatildeo Ο termo
tambeacutem consta em um fragmento repertoriado por G Arighetti3 Em todas essas apariccedilotildees
meditar se relaciona a uma atividade orientada agrave praacutetica da sabedoria ao exerciacutecio (aacuteskesis)
de investigaccedilatildeo da phyacutesis tendo em vista estabelecer um modo de vida de acordo com a
natureza (katagrave phyacutesin) Isso no leva a evocar o Testamento de Epicuro (DL 17-21) Laacute ele diz
da necessidade de se ocupar (endiatriacutebo) permanentemente da filosofia e para isso ele coloca
ldquoo Jardim e todas as suas dependecircncias agrave disposiccedilatildeo de Hecircrmaco filho de Agecircmorto
Mitilecircnio e de seus companheiros em filosofiardquo para laacute poderem se dedicar a essa atividade
(endiatriacutebein kataacute philosophiacutean)4
Esse sentido de ocupaccedilatildeo ou dedicaccedilatildeo a algo tambeacutem estaacute inscrito no significado da 1 Diante da ambiguumlidade que o termo meleacutetema evoca haacute um receio em traduzi-lo como meditaccedilatildeo no contexto da filosofia antiga Se pode ser compreendido como sinocircnimo de exerciacutecio como muitos preferem adotando uma visatildeo mais conservadora tambeacutem pode ser pensado como ldquoum esforccedilo para assimilar para tornar vivas na alma uma ideia uma noccedilatildeo um princiacutepiordquo (HADOT 2014 p 27) Adotamos a mesma perspectiva de Pierre Hadot por compreender que no contexto do epicurismo meleacutetema remete para atividades da alma ligadas agrave necessidade de memorizar assimilar relembrar ponderar e outras que entendemos estarem circunscritas ao termo meditaccedilatildeo 2 DL X 122 123 126 e 135 3 () ἅ τις ἂμ πρὸς ἡμᾶς ἐ[κεῖθ]εν ἀπο[διδ]ώιη ὁ ἐκ τῶν [λέ]ξεων συνορῶ[ν ὡ]ς ταὐτὸ σ[υ]νέβαινε μελε[τᾶν] ἐπὶ τῆς γραφῆς () (ARRIGHETTI 1960 p 304) Deperditorum librorum reliquiae [2914] 24 4 Ver nota 27 da introduccedilatildeo
82 forma verbal imperativa meletaacute (medita) cuja origem vem de meletaacuteo (μελετάω) e nos remete
para a accedilatildeo de se ocupar exercer praticar Dentro da mesma etimologia temos a forma
substantiva tograve meleacutetema (τὸ μελέτημα) nos remetendo para a ideia de estudo de exerciacutecio
praacutetico5 Mas para aleacutem do que nos diz a etimologia como podemos caracterizar a meleacutetema
no contexto da filosofia epicurista
21 Exerciacutecio dialoacutegico e dialeacutetico
O epicurista Dioacutegenes de Œnoanda por volta do seacuteculo II dC mandou gravar nos
muros da cidade onde viveu uma siacutentese do pensamento do mestre do Jardim Em um dos
fragmentos preservados eacute possiacutevel ler
Por que entatildeo ele sofre por Atena E certamente eacute [proacuteprio] ao homem virtuoso conversar consigo mesmo e de se dizer isso ldquoEu sou um ser humano e posso ser afetado pois fazem parte da carne isso aquilo e muitas outras coisas entre as quais nenhuma pode natildeo vir a ser (Œno fr 74)6
A partir dessa passagem podemos delinear uma concepccedilatildeo de meleacutetema como diaacutelogo
(dialoacutegos) interior uma conversa que se daacute com a proacutepria psycheacute Vale ressaltar natildeo se tratar
de uma praacutetica solitaacuteria e solipsista Se em um primeiro momento eu penso comigo mesmo
me indago sobre as coisas que podem proporcionar felicidade ouccedilo o que minha alma diz a
respeito posteriormente essa reflexatildeo eacute estendida compartilhada e pensada com os
ldquocompanheiros em filosofiardquo (DL X 17) Daiacute podermos no epicurismo observar uma
associaccedilatildeo entre a accedilatildeo de meditar e a amizade (philiacutea) A felicidade do saacutebio natildeo eacute
construiacuteda na solidatildeo nem para a solidatildeo mas para a alegria e para o encontro Ao meditar em
conjunto o saacutebio edifica laccedilos que constituem fonte de bem-estar ao mesmo tempo em que
reconhece no outro uma afinidade de pensamento quanto agrave finalidade da vida e ao modo como
realizaacute-la O escopo da filosofia epicurista natildeo eacute livrar o homem de perturbaccedilotildees afastando-o
do mundo isolando-o do conviacutevio social mas orientaacute-lo para que ele saiba se desviar das
relaccedilotildees que adoecem e se aproximar daquelas que lhe permitem exercitar a liberdade e o
prazer Em uma de suas sentenccedilas Epicuro diz ldquodentre as coisas que a sabedoria se
proporciona para a felicidade da vida inteira a amizade eacute em muito a maior delasrdquo (SV 13
5 Anatole Bailly Op Cit 6 Pourquoi donc souffre-t-il par Atheacutena Et certainement il est [propre] agrave lrsquohomme vertueux de converser avec soi-mecircme et de se dire ceci ldquoje suis un ecirctre humain et peux ecirctre affecteacute car font parties de la chair ceci et ceci et cela et quantiteacutes drsquoautres choses parmi lesquelles aucune ne peut pas ne pas devenirrdquo
83 DL X 148)7 Nessa afirmaccedilatildeo podemos ver a relaccedilatildeo estabelecida entre o exerciacutecio de uma
vida feliz a praacutetica da sabedoria e a afetividade A partir da articulaccedilatildeo dos termos sophiacutea e
philiacutea Epicuro pensa a possibilidade de estabelecer relaccedilotildees equilibradas onde cada um age
livremente sem a admoestaccedilatildeo das convenccedilotildees nem do desejo de assenhoramento sobre o
outro mas por um movimento de aproximaccedilatildeo com aqueles com quem se estabelece
afinidades
Por isso entendemos que meditar eacute uma atividade que se daacute tanto na psycheacute como um
exerciacutecio individual quanto entre amigos inscrevendo o outro em sua dinacircmica As cartas
maacuteximas ou outras formas que Epicuro encontrou de encapsular e transmitir8 sua filosofia satildeo
a construccedilatildeo de um pensamento que toma seus disciacutepulos e amigos (phiacuteloi) como partiacutecipes9
desse ato de meditaccedilatildeo seja porque a reflexatildeo foi feita em conjunto na coletividade que
permitia o Jardim seja porque o destinataacuterio daquela ponderaccedilatildeo estava presente na alma nas
lembranccedilas de quem a produzia
Perceba-se portanto que se por um lado a meditaccedilatildeo eacute realizada enquanto diaacutelogo
consigo mesmo isso nos sugere um aspecto individualizado do exerciacutecio filosoacutefico por outro
lado as cartas as maacuteximas e as sentenccedilas que nos chegaram de Epicuro bem como as
inscriccedilotildees nos muros de Œnoanda nos indicam a necessidade da inclusatildeo do outro nessa
praacutetica Isso porque seja em sua dimensatildeo individual ou conjunta a meleacutetema assenta-se em
um modelo dialoacutegico Queremos dizer com isso que a elaboraccedilatildeo e expressatildeo do loacutegos
filosoacutefico epicurista se estabelecem a partir da necessidade de perguntar e responder a si e
aos companheiros de filosofia num exerciacutecio comunicativo e participativo de construccedilatildeo de
um saber ancorado na physiologiacutea Eacute possiacutevel entretanto colocar a seguinte questatildeo se a
epistola nos remete para um gecircnero de comunicaccedilatildeo escrita que ldquonatildeo eacute diaacutelogo (no sentido
dos diaacutelogos de Platatildeo)rdquo (SILVA 2015 p 252) como podemos pensar que as cartas e outros
escritos de Epicuro nos remetam para essa relaccedilatildeo dialoacutegica com seus amigosdisciacutepulos
Ora por dialoacutegico estamos entendendo aqui aquilo que se refere ao debate ao diaacutelogo a uma
dinacircmica de questionamento e resposta que vai guiar o trabalho de investigar a phyacutesis e pensar
7 Ὧν ἡ σοφία παρασκευάζεται εἰς τὴν τοῦ ὅλου βίου μακαριότητα πολὺ μέγιστόν ἐστιν ἡ τῆς φιλίας κτῆσις 8 As Cartas Maacuteximas e Sentenccedilas podem ser entendidas como exemplos de exerciacutecio de meditaccedilatildeo Ao mesmo tempo em que medita o autor convida o leitor a tomar parte nessa atividade instigando-o a pensar sobre a natureza e sobre o modo como se vive Nesse sentido podemos entender as inscriccedilotildees de Œnoanda e o proacuteprio poema Da Natureza de Lucreacutecio no contexto de praacuteticas meditativas 9 Para aleacutem de comunicar uma filosofia e servir como um guia para meditaccedilatildeo as Sentenccedilas Vaticanas as Maacuteximas Capitais e as Cartas exercitam a philiacutea na medida em que visam dividir um saber que pode conduzir agrave vida feliz aqueles que compartilham do mesmo sentimento de afetividade Trata-se de uma atitude que traz consigo as marcas de uma simpatia (sympaacutetheia) de uma correspondecircncia com o outro no que diz respeito agrave maneira pensar e de viver
84 um modo de viver de acordo com a natureza E embora o interlocutor natildeo tenha sua voz
registrada de forma direta nos escritos de Epicuro sua demanda estaacute Veja-se por exemplo a
Carta a Piacutetocles que eacute uma resposta a outra que Epicuro recebera antes ldquoClecircon trouxe-me a
tua carta na qual continuas a mostrar-me teus sentimentos amistosos contrapartida de minha
devoccedilatildeo para contigo e natildeo sem sucesso procuras recordar os raciociacutenios capazes de ensejar a
conquista de uma vida felizrdquo (DL X 84)10 Vecirc-se aiacute um diaacutelogo que tem sido realizado por
meio de cartas As demandas por explicaccedilotildees a exposiccedilatildeo de opiniotildees advindas da
investigaccedilatildeo sobre a natureza jaacute chegaram ou satildeo conhecidas e servem como motivo para
meditar Nessa sucessatildeo de mensagens a meditaccedilatildeo sobre temas voltados para a realizaccedilatildeo de
um modo feliz de viver tambeacutem alimenta a amizade Se o outro natildeo estaacute presente fisicamente
naquele momento diante de quem escreve estaacute na alma de quem estaacute meditando sobre aqueles
assuntos na memoacuteria (mneacuteme) dos bons sentimentos Em outros termos estatildeo pressupostos
nesses escritos aleacutem de uma relaccedilatildeo de amizade um ato responsivo explicando orientando
compartilhando
() aos seus amigos um quadro sinoacuteptico um agregado de explicaccedilotildees seja sobre a phyacutesis seja sobre o modo de vida que sirva de guia para aqueles jaacute familiarizados com o seu pensamento ao mesmo tempo em que possa ser usado para iniciar os neoacutefitos (SILVA 2015 255)
Nesse processo dialogal cada carta eacute um momento mais longo num diaacutelogo onde ao
mesmo tempo se exprime um pensamento e se exercita a meditaccedilatildeo sobre a realidade a vida
a natureza sobre si mesmo sobre os proacuteprios sentimentos
Mas retomando o que diziacuteamos a meleacutetema eacute concebida como um diaacutelogo como
aponta o fragmento de Œnoanda nos daacute a indicaccedilatildeo de que natildeo se trata de uma praacutetica
voltada para guiar ou predispor a alma para uma espeacutecie de transe contemplativo ou para a
espera de alguma revelaccedilatildeo divina ou ainda para alcanccedilar uma experiecircncia miacutestico-
transcendente que vai resultar em um estado de imperturbabilidade A verdade natildeo vem de
fora verdadeiro eacute o pensamento construiacutedo a partir do exame da realidade percebida pelos
sentidos Tal perspectiva estaacute de acordo com a definiccedilatildeo de filosofia como uma teacutecnica que se
efetiva por meio de discurso (loacutegois) e pensamento (dialogismoiacutes)11 em busca de uma vida
feliz (makariacuteos zecircn) A meleacutetema pensada no contexto de uma teacutechne vai se constituir como
uma atividade que valendo-se da capacidade da alma para sentir memorizar assimilar
10 Ἤνεγκέ μοι Κλέων ἐπιστολὴν παρὰ σοῦ ἐν ᾗ φιλοφρονούμενός τε περὶ ἡμᾶς διετέλεις ἀξίως τῆς ἡμετέρας περὶ σεαυτὸν σπουδῆς καὶ οὐκ ἀπιθάνως ἐπειρῶ μνημονεύειν τῶν εἰς μακάριον βίον συντεινόντων διαλογισμῶν 11 Loacutegois tambeacutem pode ser traduzido por argumento e dialogismoiacutes pode ser compreendido por raciociacutenio conforme Markus Silva Sabedoria e Jardim Op Cit
85 estabelecer analogias calcular permite inscrever na psycheacute um loacutegos para guiar sua accedilatildeo
(praacutexis) no mundo tendo em vista o ldquovir a ser em torno da cura de noacutes mesmosrdquo (SV 64)12
Meditar vai ser assim um exerciacutecio de elaboraccedilatildeo de construccedilatildeo de um loacutegos uma
atividade que busca espelhar na psycheacute uma compreensatildeo de mundo estabelecida a partir de
uma investigaccedilatildeo da natureza tendo em vista um modo de viver de acordo com a phyacutesis Se a
vida saacutebia consiste em exercitar o que se pensa meditar vai ser o exerciacutecio de elaboraccedilatildeo de
um pensamento que considera a possibilidade da realizaccedilatildeo de um viver mais agradaacutevel a
despeito do que a cultura a religiatildeo e as convenccedilotildees impotildeem para o homem da Heacutelade como
um modelo de vida a ser seguido
Daiacute porque Dioacutegenes fala de conversa consigo mesmo Ele estaacute destacando que a
construccedilatildeo desse loacutegos acontece na psycheacute por meio de um exerciacutecio que pode se dar
individualmente ou em conjunto E esse sentido manteacutem coerecircncia com as palavras que
Epicuro dirige a Meneceu
Medita portanto sobre essas coisas e outras afins dia e noite por ti mesmo e com companheiros semelhantes a ti e nunca seraacutes perturbado desperto ou adormecido mas viveraacutes como um deus entre os homens pois em nada se assemelha a uma criatura mortal o homem que vive entre bens imortais (DL X 135)13
Outro aspecto que podemos destacar a partir dessa passagem estaacute ligado agrave finalidade
da filosofia Ao se voltar para livrar o homem de perturbaccedilotildees ela coloca em relevo seu
aspecto praacutetico sua inclinaccedilatildeo para se constituir como uma arte de vida ou teacutecnica em torno
do viver E a meditaccedilatildeo eacute um exerciacutecio que visa dar ao conhecimento advindo por meio da
physiologiacutea um sentido de pragmateiacutea ou seja orientaacute-lo para um fazer ou agir eacutetico para a
realizaccedilatildeo de um eacutethos livre e ldquohedonistardquo Por isso meditar visa levar a psycheacute a assimilar
esse saber physioloacutegico e fundamentar a convicccedilatildeo (piacutestis) necessaacuteria para conferir ao sophoacutes
uma disposiccedilatildeo (diaacutethesis) para a realizaccedilatildeo de uma vida feliz
Assim para retomarmos o testemunho de Œnoanda quando o homem se pensa como
um ser constituiacutedo de variados elementos corpoacutereos que ldquofazem parte da carnerdquo e -
dialogando consigo mesmo - busca relacionar isso agrave sua condiccedilatildeo mortal sujeito ao vir a ser e
ao deixar de ser das coisas ele estaacute edificando um loacutegos a partir de princiacutepios physioloacutegicos
Ao fazer isso ele contrapotildee agrave ideia de uma natureza onde somente operam forccedilas inexoraacuteveis
12 ἡμᾶς δὲ γενέσθαι περὶ τὴν ἡμῶν ἰατρείαν 13 Ταῦτα οὖν καὶ τὰ τούτοις συγγενῆ μελέτα πρὸς σεαυτὸν ἡμέρας καὶ νυκτὸς πρός ltτεgt τὸν ὅμοιον σεαυτῷ καὶ οὐδέποτε οὔθrsquo ὕπαρ οὔτrsquo ὄναρ διαταραχθήσῃ ζήσῃ δὲ ὡς θεὸς ἐν ἀνθρώποις οὐθὲν γὰρ ἔοικε θνητῷ ζῴῳ ζῶν ἄνθρωπος ἐν ἀθανάτοις ἀγαθοῖς
86 ou sobrenaturais uma concepccedilatildeo de phyacutesis que em seu modo proacuteprio de realizaccedilatildeo permite a
possibilidade de pensar a condiccedilatildeo mortal a partir da noccedilatildeo de prazer e de liberdade A vida
para o saacutebio dessa forma deixa de ser penosa fatiacutedica para se apresentar como espaccedilo para
seu protagonismo Meditando o homem busca se compreender como ser da natureza e
portanto tambeacutem natildeo estaria submetido a nenhuma intervenccedilatildeo demiuacutergica nem sujeito aos
desiacutegnios de nenhum deus nem aguardariam por ele no Hades os maiores tormentos
Dessa forma a meditaccedilatildeo ao exercitar o pensamento para procurar entender como
natural o que parece divino para se desvencilhar de concepccedilotildees que projetem para fora das
experiecircncias humanas o sentido da existecircncia o que castra desequilibra adoece e direciona o
pensar e a agir do homem para longe de sua realizaccedilatildeo configura-se tambeacutem como uma
atividade libertadora como discutiremos no proacuteximo item
Antes disso eacute preciso ainda destacar o aspecto dialeacutetico que perpassa os exerciacutecios de
meditaccedilatildeo Embora consideremos as vaacuterias acepccedilotildees que podem ser evocadas pelo termo e
natildeo eacute objeto desse trabalho discuti-las vemos no epicurismo um aspecto dialeacutetico que pode
ser pensado a partir da perspectiva geral do confronto de dois loacutegoi um ligado agrave poacutelis agraves
convenccedilotildees aos mitos e outro que nos remete ao Jardim ao fundamentado na natureza ao
corpoacutereo Esse panorama se delineia ao longo de toda a filosofia epicurista onde uma
ldquodialeacutetica estreitardquo (HOUDENOT 2018)14 se estabelece em torno de noccedilotildees que nos remetem
para a existecircncia de seu contraacuterio como por exemplo limiteilimitado justoinjusto
riquezapobreza Nesse sentido tomemos as seguintes passagens
A riqueza proveniente da natureza eacute limitada e viaacutevel e das opiniotildees vazias cai no inabordaacutevel (SV 8 DL X 144)15
A pobreza medida pelo limite da natureza eacute uma riqueza grande a riqueza natildeo delimitada eacute uma grande pobreza (SV 25)16
Da maioria das coisas dos homens o que estaacute em repouso entorpece o que estaacute em movimento enraivece (SV 11)17
O justo eacute o mais imperturbaacutevel o injusto eacute pleno de maacutexima perturbaccedilatildeo (SV 12 DL X 144)18
14 HOUDENOT Julie La poeacutetisation de la limite Camenulae 20 Revista da Faculdade de Letras da Universidade de Sorbone Mai 2018 ISSN 2494-212 X Esse artigo condensa a pesquisa de doutorado cujo tiacutetulo eacute La poeacutetisation de la limite chez Lucregravece Virgile et Horace defendida em 2017 na universidade Paris Sorbonne Nessa siacutentese a autora parte do conceito de limite elaborado por Epicuro para tratar de aspectos esteacuteticos adicionados por Lucreacutecio em seu poema Da Natureza 15 Ὁ τῆς φύσεως πλοῦτος καὶ ὥρισται καὶ εὐπoριστός ἐστιν ὁ δὲ τῶν κενῶν δοξῶν εἰς ἄπειρον ἐκπίπτει 16 Ἡ πενία μετρουμένη τῷ τῆς φύσεως τέλει μέγας ἐστὶ πλοῦτοςmiddot πλοῦτος δὲ μὴ ριζόμενος μεγάλη ἐστὶ πενία 17 Τῶν πλείστων ἀνθρώπων τὸ μὲν ἡσυχάζον ναρκᾷ τὸ δὲ κινούμενον λυττᾷ 18 Ὁ δίκαιος ἀταρακτότατος ὁ δrsquo ἄδικος πλείστης ταραχῆς γέμων
87 A magnitude do prazer atinge seu limite na remoccedilatildeo de todo sofrimento Quando o prazer estaacute presente durante todo o tempo em que ele permanece natildeo haacute dor no corpo nem na alma nem nos dois (DL 139 III)19
Podemos verificar na construccedilatildeo dessas sentenccedilas o uso de termos que no contexto da
physiologiacutea evocam entre si uma relaccedilatildeo dialeacutetica fundamental para a compreensatildeo dos
modos de ser da phyacutesis Satildeo conceitos cujo sentido estaacute relacionado agrave existecircncia de seu
oposto Assim repouso e movimento satildeo definiccedilotildees empregadas para pensar o aacutetomo os
corpos compostos os mundos Paralelamente satildeo empregados termos que tanto nos remetem
agrave investigaccedilatildeo da phyacutesis quanto podem ajudar as finalidades ligadas ao exerciacutecio de uma vida
conduzida com sabedoria Tal eacute o caso de inabordaacutevel (apeiacuteron) que tanto pode servir para
pensar o que natildeo tem limite na phyacutesis quanto agrave impossibilidade de alcanccedilar as riquezas
professadas pelas opiniotildees vazias Epicuro tambeacutem trabalha nesses enunciados palavras que
remetem diretamente agrave dimensatildeo do agir humano Ao articular nessas sentenccedilas pobreza e
riqueza torpor e raiva justo e injusto a mesma perspectiva de oposiccedilatildeo que se verifica no
campo da physiologiacutea eacute percebida com relaccedilatildeo ao modo de viver Do mesmo jeito essa
perspectiva de contraste se apresenta ao pensarmos naquele que vive em perturbaccedilatildeo em
sofrimento por oposiccedilatildeo agravequele que experimenta o prazer a ataraxiacutea
Ora esse tratamento discursivo aponta no sentido de indicar a possibilidade de
estender essa compreensatildeo dialeacutetica que permite descrever e refletir a realidade
physiologicamente para pensar as accedilotildees as escolhas e o modo de viver do sophoacutes Com isso
Epicuro visa evidenciar um conflito fundamental para entender a condiccedilatildeo do homem grego
de seu tempo que distanciado da participaccedilatildeo poliacutetica e sem o gozo de uma vida em
democracia volta-se para o cuidado consigo mesmo Ele precisa portanto definir qual a
melhor forma de viver para se sentir realizado e essa indagaccedilatildeo remete para uma dialeacutetica
que tem de um lado a natureza (phyacutesis) e do outro as opiniotildees vazias (kenaigrave doacutexai) E isso
implica em um conflito entre os loacutegoi que fazem referecircncia a essas duas possibilidades
Quanto mais se medita mais esse conflito se evidencia mais essa dialeacutetica se acentua pois o
pensamento fundamentado na physiologiacutea e assim tendo o prazer e a liberdade por
finalidades inclina-se para a vida katagrave phyacutesin em detrimento das opiniotildees contraacuterias
A meditaccedilatildeo portanto eacute exercitada tanto quanto se acentua esse ldquoprocesso dialeacuteticordquo
que se ldquoresolverdquo na medida em que o raciociacutenio (dialogismoiacutes) e o discurso (loacutegos) vatildeo
construindo na psycheacute uma vinculaccedilatildeo entre a physiologiacutea e o eacutethos Disso resulta uma
19 Ὅρος τοῦ μεγέθους τῶν ἡδονῶν ἡ παντὸς τοῦ ἀλγοῦντος ὑπεξαίρεσις ὅπου δrsquo ἂν τὸ ἡ δόμενον ἐνῇ καθrsquo ὃν ἂν χρόνον ᾖ οὐκ ἔστι τὸ ἀλγοῦν ἢ λυπούμενον ἢ τὸ συναμφότερον
88 seleccedilatildeo de um loacutegos e o ldquoexpurgordquo do outro como um antiacutedoto que anula ou minimiza a accedilatildeo
do veneno para retomarmos a metaacutefora de filosofia como medicina da alma Se ldquoningueacutem
olhando a coisa maacute a escolherdquo (SV 16)20 esse conflito entre loacutegoi permite colocar em questatildeo
os valores as finalidades e os modos de viver tendo em vista a busca de realizar uma vida
saacutebia Disso decorre uma inevitaacutevel problematizaccedilatildeo da religiatildeo da poliacutetica da Paideacuteia das
relaccedilotildees sociais da vida na poacutelis Assim a meleacutetema em sua feiccedilatildeo dialeacutetica acaba por
produzir um pensamento criacutetico (balizado na investigaccedilatildeo da natureza) que se opotildee aos
determinismos e convenccedilotildees cristalizados por uma cultura fundamentada em kenaigrave doacutexai Eacute a
partir dessa perspectiva dialeacutetica e dialoacutegica (como destacamos anteriormente) caracteriacutestica
da atividade meditativa que se estabelece uma compreensatildeo mais luacutecida do tempo e do
espaccedilo em que se vive e da possibilidade de conceber a vida como um exerciacutecio de
emancipaccedilatildeo e de realizaccedilatildeo de si mesmo
22 - Meleacutetema e mneacuteme
A meditaccedilatildeo eacute um exerciacutecio que visa desenvolver na alma uma inclinaccedilatildeo para buscar
viver de acordo com a phyacutesis Em torno dessa finalidade eacute preciso mobilizar a faculdade para
calcular raciocinar avaliar fazer analogias diferenciar e a capacidade para tomar decisotildees e
para fazer escolhas sensata e prudentemente A partir desses recursos a psycheacute vai procurar
estabelecer um loacutegos em consonacircncia com o saber oriundo da physiologiacutea para se contrapor
ao loacutegos relacionado agraves kenaigrave doacutexai Com isso objetiva-se exercitar uma disposiccedilatildeo para que
a phroacutenesis e o logismoacutes - que datildeo a medida do agir humano ndash conduzam a um modo de vida
em conformidade com um saber katagrave phyacutesin
Mas para que isso ocorra outra competecircncia da alma tambeacutem eacute mobilizada Trata-se
de sua capacidade para reter conhecimento e imagens e para relembrar sensaccedilotildees
experimentadas Estamos nos referindo agravequilo que na filosofia epicurista eacute designado por
memoacuteria (mneacuteme)21 Mas antes de recorremos as palavras de Epicuro vamos retomar o
fragmento 74 de Dioacutegenes de Œnoanda para a partir dele tentar estabelecer relaccedilotildees que
entre a meleacutetema e a mneacuteme nesse processo de conduccedilatildeo da psycheacute em direccedilatildeo a um modo
saacutebio de viver
20 Οὐδεὶς βλέπων τὸ κακὸν αἱρεῖται αὐτό 21 DL X 31 35 36 82 83 85 95
89 Assim em toda ocasiatildeo ele eacute capaz de lembrar dos elementos naturais das afecccedilotildees e que eles satildeo faacuteceis de circunscrever delimitados como que por um compasso [] (Œno fr 74)22
Evocamos esse fragmento porque ele daacute seguimento agravequele do iniacutecio do toacutepico 21
deste capiacutetulo (onde se diz que ao meditar o homem conversa consigo mesmo) e nos permite
tecer alguns comentaacuterios a respeito do papel da mneacuteme no processo de elaboraccedilatildeo de um
loacutegos para se opor as opiniotildees vazias bem como da sua importacircncia no desenvolvimento de
uma disposiccedilatildeo (diaacutethesis) da alma para buscar viver de acordo com o que depreendeu ao
investigar a phyacutesis
Essa conversa que acontece dentro de si mesmo eacute referenciada na natureza No
epicurismo esse diaacutelogo interior ou com os amigos (phiacuteloi) natildeo prescinde da recordaccedilatildeo dos
princiacutepios evidenciados a partir da investigaccedilatildeo da phyacutesis e nem da lembranccedila de momentos
que trouxeram consigo boas sensaccedilotildees Isso nos sugere de iniacutecio alguns aspectos que podem
ser relacionados agrave memoacuteria a mneacuteme como repertoacuterio dos princiacutepios de uma investigaccedilatildeo
physioloacutegica como conjunto das experiecircncias sensiacuteveis e como recordaccedilatildeo de afecccedilotildees
(paacutethes) e as sensaccedilotildees (aiacutestheseos) delas resultantes
O primeiro aspecto encontra testemunho na seguinte passagem da Carta a Heroacutedoto
Para os incapazes de estudar acuradamente cada um de meus escritos sobre a natureza Heroacutedoto ou de percorrer detidamente os tratados mais longos preparei uma epiacutetome de todo o meu sistema a fim de que possam conservar bem gravado na memoacuteria o essencial dos princiacutepios mais importantes e estejam em condiccedilotildees de sustentaacute-los em quaisquer circunstacircncias desde que se dediquem ao estudo da natureza Aqueles que progrediram suficientemente na contemplaccedilatildeo do universo devem ter na memoacuteria os elementos fundamentais de todo o sistema doutrinaacuterio pois necessitamos frequentemente de uma visatildeo de conjunto embora natildeo aconteccedila o mesmo com os detalhes (DL X 35)23
Perceba-se nessa passagem que Epicuro caracteriza o proacuteprio texto (a carta) como
um resumo de uma obra mais vasta sobre a natureza E isso estaacute ligado agrave necessidade de
tornar mais faacutecil e raacutepido o acesso a esse saber Tal preocupaccedilatildeo tem razatildeo pois
diuturnamente o homem estaacute submetido agrave influecircncia das opiniotildees vazias que sob a forma de
22 Ainsi en toute occasion il est capable de se rappeler les eacuteleacutements naturels des affections et qursquoils sont faciles agrave circonscrire delimiteacutes comme par un compas [] 23 Τοῖς μὴ δυναμένοις ὦ Ἡρόδοτε ἕκαστα τῶν περὶ φύσεως ἀναγεγραμμένων ἡμῖν ἐξακριβοῦν μηδὲ τὰς μείζους τῶν συντεταγμένων βίβλους διαθρεῖν ἐπιτομὴν τῆς ὅλης πραγματείας εἰς τὸ κατασχεῖν τῶν ὁλοσχερωτάτων δοξῶν τὴν μνήμην ἱκανῶς αὐτοῖς παρεσκεύασα ἵνα παρrsquo ἑκάστους τῶν καιρῶν ἐν τοῖς κυριωτάτοις βοηθεῖν αὑτοῖς δύνωνται καθrsquo ὅσον ἂνἐφάπτωνται τῆς περὶ φύσεως θεωρίας καὶ τοὺς προβεβηκότας δὲ ἱκανῶς ἐν τῇ τῶν ὅλων ἐπιβλέψει τὸν τύπον τῆς ὅλης πραγματείας τὸν κατεστοιχειωμένον δεῖ μνημονεύεινmiddot τῆς γὰρ ἀθρόας ἐπιβολῆς πυκνὸν δεόμεθα τῆς δὲ κατὰ μέρος οὐχ ὁμοίως
90 asseacutedio e ou de opressatildeo buscam instilar na alma desejos que nem satildeo naturais nem
necessaacuterios Assim seja para se opor agravequeles que querem impor uma concepccedilatildeo de vida
alheada da natureza seja para participar das discussotildees que acontecem no Jardim ou ainda
para fundamentar essa conversa consigo mesmo eacute preciso poder referenciar na physiologiacutea o
loacutegos acerca da realidade Essa eacute uma necessidade de todos aqueles que buscam trilhar o
caminho da sabedoria mas Epicuro faz uma ressalva considerando os diferentes graus de
aproximaccedilatildeo com a doutrina Para os iniciantes deve-se memorizar o essencial dos princiacutepios
que norteiam uma compreensatildeo physioloacutegica da realidade Jaacute os mais experientes devem
gravar na memoacuteria os elementos fundamentais de toda a physiologiacutea
Ora se retomarmos o testemunho de Epicuro citado anteriormente leremos que
estando na memoacuteria esses elementos fundamentais da doutrina vatildeo servir para serem usados
quando a necessidade se apresentar sendo preciso estar ldquoem condiccedilotildees de sustentaacute-los em
quaisquer circunstacircnciasrdquo Essa ideia eacute retomada no passo seguinte nestes termos
Com efeito tambeacutem para quem tiver chegado a uma perfeita maturidade o requisito baacutesico para todo conhecimento exato eacute a faculdade de adotar com presteza as concepccedilotildees principais porquanto cada particularidade se reduz a elementos simples e a termos igualmente simples (DL X 36)
Aqui eacute inserida mais uma ideia a de que a capacidade para prontamente fazer uso
desse saber memorizado estaacute relacionada ao grau de experiecircncia que se tem dentro da
doutrina como jaacute mencionamos Assim quanto mais experimentado na filosofia do Jardim
mais se faz uso dos princiacutepios que remetem ao saber physioloacutegico Eacute essa habilidade ou
teacutecnica para usar esse conhecimento acerca da phyacutesis nas situaccedilotildees concretas da vida que a
meditaccedilatildeo visa desenvolver Mas isso natildeo quer dizer que o neoacutefito natildeo possa se beneficiar
dessas siacutenteses que tratam dos fundamentos da physiologiacutea Para Epicuro ter na memoacuteria os
apontamentos de uma filosofia que se volta para afastar os temores fundados em opiniotildees
fantasiosas traz seus benefiacutecios Seja porque isso funciona como um convite para que o
iniciante possa por si mesmo pensar o modo como percebe a realidade e se questionar sobre a
forma de viver professada pelas kenaigrave doacutexai seja porque remete agrave possibilidade de realizar a
makariacuteos zecircn Eacute a essa perspectiva se remetem as seguintes palavras
Eis entatildeo Heroacutetodo os elementos fundamentais da doutrina sobre a natureza do universo em forma resumida Assim se esta exposiccedilatildeo for memorizada cuidadosamente e produzir efeito creio que qualquer pessoa seja ela quem for embora natildeo penetre em todos os detalhes miacutenimos conquistaraacute uma seguranccedila incomparavelmente forte em comparaccedilatildeo com o resto da humanidade Com efeito por si mesma ela esclareceraacute muitos pontos particulares por mim tratados exaustivamente no sistema completo de
91 minha doutrina e esses mesmos elementos uma vez fixados na memoacuteria jamais cessaratildeo de ajudaacute-la (DL X 82-83)24
Dessa forma a necessidade de tendo em vista a primordialidade de fazer uso praacutetico
desse saber colocar agrave disposiccedilatildeo da alma um conhecimento para balizar o pensamento e a
conduta eacute compatibilizada com o niacutevel de vivecircncia e de compreensatildeo filosoacutefica de cada um
Nada mais natural quando se entende que a pragmateiacutea epicurista se desenvolve como um
exerciacutecio e portanto a evoluccedilatildeo de cada seguidor se daacute de forma gradativa E quanto mais se
medita e se busca estabelecer uma praacutetica de vida em torno da natureza mais esse
conhecimento physioloacutegico eacute assimilado pela alma Com isso a ignoracircncia sobre a phyacutesis - o
que conduz ao erro (hamartiacutea) e agrave desmesura (hyacutebris) e consequentemente agrave perturbaccedilatildeo ao
sofrimento e agrave limitaccedilatildeo do sentido de liberdade do homem - eacute afastada
A mneacuteme conserva na psycheacute essas formas resumidas ou mais estendidas de um saber
sobre a natureza que vai despertar e fundamentar uma visatildeo criacutetica e distanciada com relaccedilatildeo
agraves crenccedilas aos valores e agraves normas relacionadas agrave finalidade do agir do homem Ao meditar
sobre o que resulta quando se vive a partir de um modelo natural e o que adveacutem quando
orientamos nosso pensamento e nossa conduta por convenccedilotildees alheadas da natureza a alma
se daacute conta de poder definir um melhor modo de vida se suas accedilotildees forem estabelecidas a
partir de um ldquocaacutelculo soacutebrio que investigue as causas de toda a escolha e de toda a rejeiccedilatildeo e
elimine as opiniotildees vatildes por obra das quais um imenso tumulto se apossa das almasrdquo (DL X
132)25
Daiacute podermos estabelecer uma relaccedilatildeo entre a memoacuteria o pensamento a sabedoria e a
meditaccedilatildeo A partir da mneacuteme os fundamentos da physiologiacutea satildeo resgatados e servem ao
logismoacutes e agrave phroacutenesis para a elaboraccedilatildeo de um raciociacutenio (dialogismoiacutes) voltado para fazer
convergir o modo de pensar e de agir para a consecuccedilatildeo de uma vida agradaacutevel equilibrada
frugal liberta Assim quando Epicuro afirma que eacute preciso ldquomeditar sobre tudo que possa
proporcionar a felicidaderdquo (DL X 122)26 ele estaacute nos falando de um exerciacutecio contiacutenuo e
integrado caracteriacutestico da atividade do saacutebio Isso porque a perspectiva eacute a de que quanto
mais ele investiga a phyacutesis mais ele se interroga a partir dela sobre seu modo de viver e
24 Ταῦτά σοι ὦ Ἡρόδοτε ἔστι κεφαλαιωδέστατα ὑπὲρ τῆς τῶν ὅλων φύσεως ἐπιτετμημέναmiddot ὥστrsquo ἐὰν γένηται οὗτος ὁ λόγος δυνατὸς κατασχεθεὶς μετrsquo ἀκριβείας οἶμαι ἐὰν μὴ καὶ πρὸς ἅπαντα βαδίσῃ τις τῶν κατὰ μέρος ἀκριβωμάτων ἀσύμβλητον αὐτὸν πρὸς τοὺς λοιποὺς ἀνθρώπους ἁδρότητα λήψεσθαι καὶ γὰρ καὶ καθαρὰ ἀφrsquo ἑαυτοῦ ποιήσει πολλὰ τῶν κατὰ μέρος ἐξακριβουμένων κατὰ τὴν ὅλην πραγματείαν ἡμῖν καὶ αὐτὰ ταῦτα ἐν μνήμῃ τιθέμενα συνεχῶς βοηθήσει 25 νήφων λογισμὸς καὶ τὰς αἰτίας ἐξερευνῶν πάσης αἱρέσεως καὶ φυγῆς καὶ τὰς δόξας ἐξελαύνων ἐξ ὧν πλεῖστος τὰς ψυχὰς καταλαμβάνει θόρυβος 26 μελετᾶν οὖν χρὴ τὰ ποιοῦντα τὴν εὐδαιμονίαν
92 quanto mais ele pensa sobre o teacutelos de suas accedilotildees mais ele recorre agrave physiologiacutea seja por
meio dos resumos ou de obras mais detalhadas para poder nela encontrar um paradigma para
seu eacutethos
Nesse contexto entendemos o destaque dado por Epicuro ao resumo agrave condensaccedilatildeo agrave
siacutentese das linhas gerais de sua filosofia As questotildees colocadas pela vida diante do saacutebio
precisam ser respondidas em um tempo pertinente (kairoacutes) quer dizer diante da necessidade
de fazer escolhas e recusas de se contrapor agraves kenaigrave doacutexai de se negar a seguir as
convenccedilotildees os mecanismos do pensamento devem estar em condiccedilatildeo guarnecer
(paraskeuaacutedzo) a alma de recurso de ajuda (boeacutetheia) em favor da afirmaccedilatildeo do loacutegos
physioloacutegico (DL X 35)27
Acredito que esta tenha sido tambeacutem a razatildeo pela qual [aleacutem das epiacutetomes] escreveu aforismos agrupados num conjunto de maacuteximas e sentenccedilas curtas de faacutecil memorizaccedilatildeo que pudessem ser retidas e citadas sempre que a ocasiatildeo demandasse o uso dessas expressotildees (SILVA 2015 p 247)
Eacute a partir desses formatos sinteacuteticos de expressatildeo do pensamento guardados na
memoacuteria que se medita e nesse exerciacutecio vai sendo elaborado um loacutegos criacutetico e alternativo
ao convencionado pela kenoacuten doacutexa Isso estaacute alinhado ao relato de Dioacutegenes Laeacutercio
informando que Epicuro exortava seus disciacutepulos a decorarem seus tratados (DL X 12)
afinal ldquoa tranquilidade perfeita da alma consiste em estar livre de todos esses terrores e
temores28 e em relembrar tenaz e constantemente a doutrina em suas linhas gerais e
fundamentaisrdquo (DL X 82)29 Seria entatildeo o caso de pensar esse conteuacutedo resumido como
caacutepsulas filosoacuteficas para retomarmos a metaacutefora de filosofia como medicina da alma Eacute por
meio desse medicamento potencializado pelo exerciacutecio de meditaccedilatildeo que a alma desenvolve
as defesas necessaacuterias para combater o que a adoece e com isso poder restabelecer sua sauacutede
Colocando em termos mais proacuteximos aos apresentados por Epicuro eacute a meditaccedilatildeo
permanente em torno da physiologiacutea que desenvolve na alma a convicccedilatildeo firme (piacutestin
beacutebaion) (DL X 85) necessaacuteria para se opor ao pensamento fantasioso (DL X 81) e agraves
opiniotildees equivocadas a respeito da natureza Meditando sobre o conhecimento physioloacutegico o
27 Ver nota 23 deste capiacutetulo 28 Haacute uma relaccedilatildeo entre livrar a psycheacute desses terrores e temores e a necessidade de ter na memoacuteria (mneacuteme) os princiacutepios elementares da physiologiacutea A libertaccedilatildeo das opiniotildees que desequilibram e perturbam a alma (tema que trataremos no item 23 deste capiacutetulo) soacute eacute possiacutevel a partir de uma compreensatildeo physioloacutegica da realidade Esses princiacutepios estando sempre acessiacuteveis na memoacuteria vatildeo servir ao pensamento para estabelecer um loacutegos que vai orientar o modo de viver do saacutebio para a imperturbabilidade ldquoa ataraxiacutea soacute eacute possiacutevel se nos afastamos de todas essas crenccedilas [opiniotildees vazias] e se guardamos lsquona memoacuteria os princiacutepios gerais do conjunto das coisasrsquordquo (SALEM 1993 p 18) 29 ἡ δὲ ἀταραξία τῷ τούτων πάντων ἀπολελύσθαι καὶ συνεχῆ μνήμην ἔχειν τῶν ὅλων καὶ υριωτάτων
93 sophoacutes ao mesmo tempo em que espelha na alma um saber que vai ser uacutetil para o domiacutenio de
uma arte de viver (teacutechnen tinaacute periacute ton biacuteon) o que lhe confere esse sentimento de confianccedila
(piacutestis) o coloca vigilante e avesso aos pensamentos que natildeo estatildeo de acordo com esse saber
Agora podemos colocar em pauta o segundo aspecto indispensaacutevel para compreender
no contexto da filosofia epicurista o sentido da mneacuteme e como ela se relaciona com a
atividade de meditaccedilatildeo Trata-se de pensar a memoacuteria tambeacutem como repositoacuterio das
impressotildees sensiacuteveis onde estatildeo reunidas as imagens que nos datildeo testemunho das coisas do
mundo e que nos chegam atraveacutes nossos sentidos Por meio dessa imagerie a psycheacute pode
estabelecer uma leitura da realidade fenomecircnica fazer analogias e imaginar projetando o
pensamento para aleacutem dos limites da nossa sensibilidade permitindo construir um loacutegos a
respeito do mundo que experimentamos mas tambeacutem se expandir para o micro e o para
macrocosmos
Ora vimos no capiacutetulo I que a experiecircncia sensiacutevel serve de fundamento para toda a
investigaccedilatildeo sobre a natureza e que as sensaccedilotildees (aiacutestheseos) decorrentes dessa experiecircncia
satildeo tomadas como criteacuterio de verdade para se pensar os modos de ser da phyacutesis Eacute balizado
por essa perspectiva que o pensamento busca se circunscrever ao imanente e natildeo recorrer aos
mitos nem ao misteacuterio para buscar compreender os fenocircmenos da realidade Dessa forma esse
conjunto de imagens ligadas agraves aiacutestheseos e acumuladas na mneacuteme vai orientar todo o
exerciacutecio de meditaccedilatildeo para fazer a phycheacute se ater agrave imanecircncia afinal eacute nesse campo que a
possibilidade de uma vida tranquila eacute projetada
Eacute nessa dimensatildeo imanente que eacute construiacuteda a relaccedilatildeo que no epicurismo se
estabelece entre a realidade sensiacutevel o pensamento e o modo de agir Ao pensar a partir de
uma memoacuteria que fornece um conjunto de referecircncias relacionadas agrave fisicalidade ou agrave
corporeidade e tomar as sensaccedilotildees como criteacuterio para afastar as imagens fantasiosas ou
miacuteticas o saacutebio projeta a finalidade de suas accedilotildees nos limites da phyacutesis no espaccedilo e no tempo
de sua existecircncia Eacute essa ancoragem no imanente que a meditaccedilatildeo exercita quando evoca essa
memoacuteria do sensiacutevel para se contrapor agraves concepccedilotildees que projetam o sentido de realizaccedilatildeo
das accedilotildees humanas para aleacutem de sua experiecircncia
Dizendo de outra maneira quando da memoacuteria se buscam as imagens do patildeo e da
aacutegua30 (elementos da realidade experimentada) para subsidiar a meditaccedilatildeo no exerciacutecio de
estabelecer um loacutegos em torno do teacutelos da conduta do homem eacute porque na alma esses
30 DL X 131 O patildeo e aacutegua proporcionam o prazer supremo quando levados a uma boca faminta Em grego καὶ μᾶζα καὶ ὕδωρ τὴν ἀκροτάτην ἀποδίδωσιν ἡδονήν ἐπειδὰν ἐνδέων τις αὐτὰ προσενέγκηται
94 elementos estatildeo relacionados ao sentimento de prazer que o saacutebio compreendeu por meio da
physiologiacutea serem naturais e necessaacuterios Assim partindo dessas imagens eacute possiacutevel meditar
sobre como o pensamento e a eacutethos devem ser orientados para a consecuccedilatildeo de um modo de
vida equilibrado e frugal e portanto exequiacutevel na temporalidade e na natureza em que se vive
Cabe salientar ao nos referirmos ao sentimento de prazer evocado pela alma e
podendo ser relacionado a uma imagem ou a uma experiecircncia estamos nos remetendo a mais
um aspecto para compreender a mneacuteme em sua relaccedilatildeo com a praacutetica da meditaccedilatildeo Trata-se
de pensaacute-la como um repertoacuterio de sentimentos acumulados ao longo do tempo e a partir da
diversidade de experiecircncias resultantes da interaccedilatildeo do homem com o mundo Vale lembrar
que os sentimentos satildeo impressotildees sensiacuteveis (proleacutepseis) gravadas na mneacuteme Eles estatildeo
ligados agraves sensaccedilotildees de prazer ou de dor que advecircm de quando entramos em contato com um
objeto externo Dessa experiecircncia daacute-se uma afecccedilatildeo (paacutethos) que gera em noacutes uma sensaccedilatildeo
(aiacutesthesis) prazerosa ou dolorosa Tais sensaccedilotildees satildeo guardadas na alma transformadas em
sentimentos Nesse processo a memoacuteria vai ser fundamental para trazer para a praacutetica da
meditaccedilatildeo as sensaccedilotildees agradaacuteveis que vatildeo servir para se opor agravequelas que infligem
sofrimento Sobre esse aspecto satildeo vaacuterias as referecircncias encontradas nos textos de Epicuro
Uma delas estaacute na carta que escreve pouco antes de morrer a Idomeneu Esse testemunho eacute
resgatado por Dioacutegenes Laeacutercio da seguinte forma
Neste dia feliz que tambeacutem eacute o uacuteltimo de minha vida escrevo-te esta carta As dores contiacutenuas resultantes da estranguacuteria e da disenteria satildeo tatildeo fortes que nada pode aumentaacute-las Minha alma entretanto resiste a todos esses males alegre ao relembrar os nossos coloacutequios passados (DL X 22)31
Esse relato chama a atenccedilatildeo primeiramente pelo contraste entre o sentimento de
felicidade que experimenta Epicuro e sua condiccedilatildeo fiacutesica marcada pelo sofrimento devido agrave
degeneraccedilatildeo de sua sauacutede Meio agraves dores extremas impostas ao corpo-carne a psycheacute resiste e
proporciona o gozo da alegria para quem jaacute espera a proacutepria morte Isso nos leva a fazer duas
indagaccedilotildees A primeira estaacute relacionada a esse resistir da alma A segunda diz respeito agrave
possibilidade de fazer cessar a dor sentida no presente ou minimizar sua forccedila por meio da
lembranccedila de experiecircncias prazerosas vividas no passado
Para tratarmos dessa questatildeo vamos considerar que a felicidade com a qual a filosofia
estaacute envolvida tem um soacute tempo o presente (BOLLACK 1975 p 88) Com isso natildeo se estaacute
31 Τὴν μακαρίαν ἄγοντες καὶ ἅμα τελευταίαν ἡμέραν τοῦ βίου ἐγράφομεν ὑμῖν ταυτί στραγγουρικά τε παρηκολούθει καὶ δυσεντερικὰ πάθη ὑπερβολὴν οὐκ ἀπολείποντα τοῦ ἐν ἑαυτοῖς μεγέθους ἀντιπαρετάττετο δὲ πᾶσι τούτοις τὸ κατὰ ψυχὴν χαῖρον ἐπὶ τῆι τῶν γεγονότων ἡμῖν διαλογισμῶν μνήμηι
95 apregoando a ldquonegaccedilatildeo do passadordquo nem que se ignore o futuro Estaacute sendo postulada a
atitude do saacutebio de exercitar a felicidade no momento em que vive Essa perspectiva nos
permite tentar entender quando Epicuro diz que a alma resiste a todos os males porque se
trata de um exerciacutecio de trazer para aquele instante o que pode se contrapor agrave dor que o estaacute
afetando Dessa forma o trabalho da alma em resistir consiste em tentar suplantar a dor
trazendo o prazer para si E isso implica em uma meditaccedilatildeo direcionada para trazer da mneacuteme
as lembranccedilas prazerosas para que a psycheacute tenha novamente as sensaccedilotildees de prazer que elas
provocam Quando relembradas as boas experiecircncias os bons conviacutevios as situaccedilotildees de
felicidade proporcionam um bem-estar (eustaacutetheia)32 que se estende para o corpo e para a
alma Trata-se de tentar opor um prazer sereno (hedonegrave katastematikeacute) a uma dor Diante
disso mais que lembrar a meditaccedilatildeo trabalha no sentido de estabelecer na alma a confianccedila
(piacutestis) em um princiacutepio que adveacutem da investigaccedilatildeo da natureza segundo o qual a dor e o
prazer natildeo estatildeo presentes ao mesmo tempo Assim verificamos que Epicuro ldquoparte do
princiacutepio segundo o qual prazer e dor se excluem e mais que isso natildeo haacute estado
intermediaacuterio entre eles ou estado neutro no qual natildeo se sente prazer nem dorrdquo (SILVA
2018 p 134)
Esse trabalho de resistir remete portanto agrave confianccedila que o saacutebio tem a respeito da
natureza poder ser tomada como um paradigma para a maneira de viver Por isso a
meditaccedilatildeo ao relembrar dos princiacutepios da physiologiacutea os relaciona a uma conduta de acordo
com a natureza e projeta isso no sentido de vida feliz que o saacutebio almeja Dessa forma
recuperar da memoacuteria a recordaccedilatildeo do que foi vivido e com isso fazer a alma experimentar o
sentimento de prazer associado a essa lembranccedila se constitui como um exerciacutecio de meditaccedilatildeo
que fazendo uso praacutetico de um saber physioloacutegico desvia a atenccedilatildeo do que causa dor para o
que proporciona alegria Eacute preciso assinalar que essa praacutetica se daacute na alma mas tem reflexos
no bem-estar do corpo como podemos evidenciar a partir de um exemplo oposto quando ao
lembrar de experiecircncias desagradaacuteveis faz-se o corpo sentir o mesmo mal relacionado agravequele
momento Sendo assim as relaccedilotildees de amizade satildeo tatildeo importantes no epicurismo Elas satildeo
fontes de alegria que guardadas na alma subsistem ao tempo e constituem um acervo
lembranccedilas que trazem consigo boas sensaccedilotildees que alimentam a felicidade Por isso se dizer
ldquodentre as coisas que a sabedoria se proporciona para a felicidade da vida inteira a amizade eacute
em muito a maior delasrdquo (SV 13)
32 Us 68
96 23 - A meditaccedilatildeo como exerciacutecio de libertaccedilatildeo
No epicurismo a filosofia eacute pensada como uma therapeiacutea e por conseguinte a
makariacuteos zecircn implica em afastar aquilo que adoece a alma trazendo perturbaccedilatildeo e
desarmonia Vimos que a principal causa de sofrimento para o homem estaacute em orientar sua
vida a partir do que professam as falsas opiniotildees a respeito dos bens necessaacuterios agrave realizaccedilatildeo
humana Fora dos limites da natureza a makariacuteos zecircn eacute inexequiacutevel33 Ou seja a sauacutede o
bem-estar o equiliacutebrio satildeo condiccedilotildees que tecircm uma relaccedilatildeo direta com a possibilidade de a
psycheacute se distanciar dessas opiniotildees e estabelecer um eacutethos de acordo com a natureza
Procuramos demonstrar no item 21 deste capiacutetulo que a meditaccedilatildeo (meleacutetema) pode
ser entendida como uma atividade visando reelaborar ou substituir um loacutegos assentado em
crenccedilas infundadas por outro ancorado em uma compreensatildeo physioloacutegica da natureza e em
criteacuterios de verdade relacionados ao sensiacutevel afinal ldquose lutares contra todas as sensaccedilotildees natildeo
teraacutes um criteacuterio de referecircncia e assim natildeo poderaacutes julgar sequer aqueles juiacutezos que qualificas
de falsosrdquo (DL X 146)34 Dito de outra forma trata-se de submeter o produto de nosso
raciociacutenio e de nossa imaginaccedilatildeo ao conhecimento que temos a respeito da phyacutesis A partir daiacute
seria possiacutevel fazer a uma separaccedilatildeo (diaiacuteresis) afastando o pensamento que natildeo estaacute
conforme a natureza e que poderia causar perturbaccedilotildees para a alma ou dor para o corpo
Eacute em torno dessa necessidade de orientar o pensamento para uma praacutetica
fundamentada na natureza que a meditaccedilatildeo vai favorecer uma libertaccedilatildeo da psycheacute das kenaigrave
doacutexai Isso seria necessaacuterio porque Epicuro atribui a essas opiniotildees dois
problemasconsequecircncias O primeiro pode ser entendido por meio de um aspecto opressor
Quando as opiniotildees professam a possibilidade de pensar o gozo de uma liberdade sem limite
ela conduz ao despotismo agrave anulaccedilatildeo da vontade de outrem Jaacute o segundo problema eacute
percebido quando essas doxaigrave visam legitimar a fama a gloacuteria a riqueza o poder e o prazer
sem criteacuterio como valores hegemocircnicos na poacutelis e portanto devendo ser buscados Com isso
o homem eacute enredado em uma procura sem fim e sem sossego Em qualquer caso o que se tem
eacute a mitigaccedilatildeo do sentido da liberdade fundamental para o exerciacutecio de um modo saacutebio de
viver seja porque ela foi tiranizada por quem impotildee sua vontade aos outros ou porque a alma
se tornou cativa de desejos que natildeo realizam sua natureza livre e feliz Eacute nesse sentido que
contextualizamos a seguinte sentenccedila
33 DL X 144 XV SV 8 11 25 45 59 34 Οὐθὲν ὄφελος ἦν τὴν κατὰ ἀνθρώπους ἀσφάλειαν παρασκευάζεσθαι τῶν ἄνωθεν πόπτων καθεστώτων καὶ τῶν ὑπὸ γῆς καὶ ἁπλῶς τῶν ἐν τῷ ἀπείρῳ
97 Uma vida livre natildeo pode adquirir bens numerosos pelo fato da coisa natildeo ser faacutecil fora da sujeiccedilatildeo agraves multidotildees e aos poderosos mas ela adquire tudo por uma abundacircncia contiacutenua Se por acaso em algum lugar ela encontra muitos bens tambeacutem essas coisas satildeo faacuteceis de distribuir em favor da boa disposiccedilatildeo do proacuteximo (SV 76)35
Essa passagem nos permite evidenciar a relaccedilatildeo que eacute estabelecida entre liberdade e
frugalidade uma perspectiva antiteacutetica agravequela revalidada pelas kenaigrave doacutexai A vida livre eacute
realizaacutevel na medida em que as necessidades satildeo reduzidas ao miacutenimo necessaacuterio Contudo
para os muitos prevalece a concepccedilatildeo de que a felicidade eacute adquirida por meio da abundacircncia
de bens ldquoA raiz do mal se encontra no descontrole doentio de nossos desejos que sobre o
efeito de falsas representaccedilotildees do prazer e da felicidade nos impelem a desejar possuir sem
limiterdquo (HELMER 2013 p 11) Eacute essa compreensatildeo vazia (descolada da natureza) que natildeo
considera a finalidade das accedilotildees do homem a partir de um modelo natural a partir do qual se
pensa o prazer (hedoneacute) como caminho para o equiliacutebrio e o exerciacutecio da autaacuterkeia como
possibilidade de experimentar uma vontade livre Por isso para se poder estabelecer um modo
autecircntico de viver eacute preciso meditar a respeito dos bens relacionados a essa finalidade Os
demais ligados agraves opiniotildees vazias engendram adoecimento desequiliacutebrio assenhoramento da
vontade e portanto devem ser recusados
Eacute nesse mesmo diapasatildeo que o epicurista Dioacutegenes de Œnoanda adverte ldquoa maior
parte dos homens estaacute doente por falsas opiniotildees sobre as coisas e natildeo escuta o corpordquo (Œno
fr 2)36 Ou seja ao natildeo se ouvir o que a natureza diz a respeito do que eacute importante para
experimentar bem-estar e ao se deixar guiar pelas concepccedilotildees que alheiam a psycheacute de si
mesma a liberdade eacute mitigada Nesse caso a meditaccedilatildeo atua no sentido de corrigir essa visatildeo
enviesada a respeito do que eacute imprescindiacutevel agrave vida agradaacutevel Ao evocar na alma a
concepccedilatildeo physioloacutegica de que podemos nos ater somente aos desejos que satildeo naturais e
necessaacuterios como vimos no item 122 do capiacutetulo I as necessidades ficam reduzidas ao
miacutenimo o que leva o homem a poder experimentar um sentimento de autossuficiecircncia e
emancipaccedilatildeo vis-agrave-vis demandas que natildeo satildeo suas A ideia eacute quanto menos necessidades
mais se vecirc abundar o que eacute fundamental e querer partilhar o excedente E isso caminha no
sentido contraacuterio daqueles que vivem de acordo com as opiniotildees vazias submetidos aos
desejos que a multidatildeo louva (aqueles que nem satildeo naturais nem necessaacuterios e portanto satildeo
vazios) e buscando acumular os bens para exercer suas desmesuras abdicam de viver serena e 35 Ἐλεύθερος βίος οὐ δύναται κτήσασθαι χρήματα πολλὰ διὰ τὸ τὸ πρᾶγμα ltμὴgt ῥᾴδιον εἶναι χωρὶς θητείας ὄχλων ἢ δυναστῶν ἀλλὰ συνεχεῖ δαψιλείᾳ πάντα κέκτηταιmiddot ἂν δέ που καὶ τύχη χρημάτων πολλῶν καὶ ταῦτα ῥᾳδίως ἂν εἰς τὴν τοῦ πλησίον εὔνοιαν διαμετρήσαι 36 [la plupart des hommes sont malades de fausses opinions sur les choses et nrsquoeacutecoutent pas le corps]
98 livremente Nesse contexto a meditaccedilatildeo adquire um papel importante para a compreensatildeo dos
proacuteprios desejos bem como para o domiacutenio e a limitaccedilatildeo que devem se impostos a eles E
isso se daacute agrave luz de um trabalho de investigaccedilatildeo da natureza e de procurar espelhar seus
paradigmas na proacutepria psycheacute por meio de um loacutegos katagrave phyacutesin
Ora se Epicuro vecirc nas opiniotildees vazias um mal na medida em que podem engendrar
sofrimento entatildeo fica clara a necessidade de um afastamento da poacutelis enquanto ambiente
onde as kenaigrave doacutexai predominam e compotildeem o loacutegos que adoece e assenhora a vontade do
homem Na visatildeo epicurista a poacutelis enferma impotildee uma tirania das vontades a partir da noccedilatildeo
de que eacute sempre preciso mais para ser feliz Felipe da Macedocircnia seguido por seu filho
Alexandre e apoacutes a morte dele o despotismo dos seus generais satildeo um reflexo dessa
imposiccedilatildeo colocada para o homem grego que vecirc na busca de poder riquezas e fama um
modelo de realizaccedilatildeo Mas para Epicuro natildeo eacute preciso muito para se sentir feliz o que eacute
preciso eacute ldquovir a ser em torno da cura de noacutes mesmosrdquo (SV 64)37 Por isso o caminho para o
gozo de uma vida saacutebia estaria em orientar a psycheacute para buscar na phyacutesis uma referecircncia para
o desejar tendo em vista um estado de equiliacutebrio Eacute em torno desse teacutelos que o saacutebio medita e
orienta a alma para uma liberaccedilatildeo um desvencilhamento dos valores convencionados a partir
das kenaigrave doacutexai
Podemos a partir daiacute relacionar a dimensatildeo terapecircutica da meditaccedilatildeo com a praacutetica de
uma libertaccedilatildeo pois quando distanciado do loacutegos que desequilibra adoece e aprisiona o
homem pode experimentar a ataraxiacutea (ausecircncia de perturbaccedilatildeo na alma) e a aponiacutea (ausecircncia
de dores no corpo) necessaacuterios ao seu bem-estar Quando a psycheacute submete o pensamento agrave
physiologiacutea a perspectiva eacute a de uma sensibilizaccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave ideia de que natildeo eacute
necessaacuterio viver com necessidades que extrapolem os limites do natural nem buscar um
modo de viver que natildeo seja katagrave phyacutesin E mudar o pensamento leva agrave mudanccedila no
comportamento no eacutethos Dessa forma a therapeiacutea da alma nos indica um sentido de
libertaccedilatildeo afinal ldquoliberdade quer dizer desvencilhar-se de todos aqueles noacutes ideoloacutegicos
mitos ritos religiosos prejuiacutezos culturais interpretaccedilotildees tradicionais apresentadas sem criacutetica
na linguagem e transmitidas inicialmente pela Paideiacutea e pelos usos sociaisrdquo (LLEDOacute 2003
p 20)
Assim o vir a ser do sophoacutes em torno da cura de si mesmo ou a compreensatildeo da
filosofia epicurista como uma therapeiacutea acabam por nos remeter a uma praacutetica de meditaccedilatildeo
que visa permitir a partir do que se conhece da phyacutesis pensar e agir a partir de si mesmo
37 Ver nota 187 do capiacutetulo I
99 (liberto das opiniotildees e convenccedilotildees) para fazer as escolhas e recusas necessaacuterias para
estabelecer um cuidado consigo mesmo Ao desenvolver na psycheacute a percepccedilatildeo a respeito da
necessidade de estabelecer as proacuteprias opiniotildees de refutar aquelas que anulam sua vontade e
distanciam o homem de uma finalidade natural a meditaccedilatildeo projeta no eacutethos uma
compreensatildeo da natureza que remete para a liberdade e o prazer Dessa forma meditar vai se
constituir como um exerciacutecio voltado para reaproximar o homem da natureza seja porque lhe
sensibiliza a psycheacute para ouvir as queixas e os clamores do corpo seja porque direciona o
pensamento para buscar fundamentar no saber elaborado a partir da physiologiacutea as accedilotildees e
escolhas que vatildeo delinear seu modo de viver Em suma meleacutetema nos remete ao que pode ser
referido como sendo um exerciacutecio eacutetico posto que traz consigo a experiecircncia de uma
liberdade ligada agrave possibilidade de poder de pensar a proacutepria existecircncia sem a imposiccedilatildeo de
convenccedilotildees de regras de normas
24 - Meditar
ldquoAdeus e lembrai-vos de minha doutrinardquo Estas foram as uacuteltimas palavras de Epicuro moribundo aos amigos entrando entatildeo na tina de aacutegua quente bebeu um gole de vinho puro e no mesmo gole o frio do Hades (DL X 16)38
Essa epigrama de autoria de Dioacutegenes Laeacutercio que teve por base o testemunho de
Hecircrmacos nos ajuda a examinar uma vida orientada para a busca do prazer ligado ao
equiliacutebrio Poderiacuteamos pensar que essas palavras foram proferidas por uma voz debilitada
mas mesmo assim procurando transmitir aos amigos a mesma serenidade com a qual
caminhou ateacute uma tina de bronze e deixou o corpo lentamente submergir em aacutegua quente e
repousante Isso porque apoacutes 14 dias sentindo as dores intensas provocadas por caacutelculos
renais e a fragilizaccedilatildeo da sauacutede aquele banho morno a companhia dos amigos e a recordaccedilatildeo
das alegrias passadas pareciam bastar para lhe trazer um lenitivo que se completava com
aquele pouco de vinho Isso evidencia um contraste o homem enfermo sofrendo os rigores
de uma crise renal antevendo o momento de sua morte parece - mesmo assim - experimentar
um estado de imperturbabilidade (ataraxiacutea) suportando serenamente as dores sem temor do
que estaacute por vir e se regozijando com prazeres triviais
38 χαίρετε καὶ μέμνησθε τὰ δόγματα τοῦτ Ἐπίκουρος ὕστατον εἶπε φίλοις τοὔπος ἀποφθίμενος θερμὴν δὲ πύελον γὰρ ἐληλύθεεν καὶ ἄκρατον ἔσπασεν εἶτ Ἀΐδην ψυχρὸν ἐπεσπάσατο
100 Isso nos chama a atenccedilatildeo porque o comum eacute observar nesses momentos in extremis o
homem se deixar levar pela fantasia abater-se pelo medo de um aleacutem-vida projetar no tempo
eterno a dor que sente o corpo Pois ao reverberar o que postulam as opiniotildees vazias sobre a
morte e o sofrimento quem desconhece a natureza veste o haacutebito escuro da desventura e da
resignaccedilatildeo e se entrega ao canto compadecido daqueles que testemunham seus uacuteltimos
momentos Mas a despeito de qualquer coisa Epicuro continuava manifestando em seu modo
de ser o que procurou ensinar durante toda a vida que a felicidade resulta de um exerciacutecio
permanente de se colocar no mundo em correspondecircncia ao saber assimilado a partir da
investigaccedilatildeo da phyacutesis ldquoFoi esta a vida desse homem e este foi seu fimrdquo (DL X 16)39
Considerando ainda o testemunho de Hecircrmacos poderiacuteamos imaginar que malgrado o
desfecho esperado por todos tudo ocorria de modo tranquilo no Jardim onde a amizade o
sentido de comunidade as discussotildees sobre as coisas da vida se projetavam do raiar ao pocircr
do sol Essa perspectiva pode ser legitimada a partir do relato de Dioacutegenes Laeacutercio (DL X
22) jaacute registrado anteriormente onde se diz que apesar de todo sofrimento imposto ao corpo
Epicuro resistia e se mantinha feliz ao relembrar de conversas com os amigos E isso natildeo eacute
difiacutecil de conceber pois para o saacutebio a iminecircncia da morte natildeo causa medo nem tristeza e a
dor pode ser suplantada pela lembranccedila de momentos prazerosos Quem exercita a alma a
meditar tendo por base os fundamentos da physiologiacutea experimenta a seguranccedila a confianccedila
(piacutestis) necessaacuteria para natildeo sofrer diante do natural e do que pode ser escolhido ou evitado E
isso se reflete em uma postura serena diante de eventos que para aqueles guiados pelas kenaigrave
doacutexai seriam motivos de inquietude
Essa postura imperturbaacutevel ou de ataraxiacutea tambeacutem eacute verificada quando Epicuro
aconselha ldquocompadeccedilamos com os amigos natildeo chorando mas pensandordquo (SV 66)40 E isso
tem uma razatildeo de ser devido agrave ignoracircncia a respeito das coisas da natureza o homem se torna
refeacutem das opiniotildees vazias e com isso projeta a existecircncia de sofrimento mesmo onde natildeo haacute
motivos para tal Por isso eacute preciso constantemente observar a phyacutesis investigar seus modos
de ser refletir sobre esse conhecimento e procurar traduzi-lo em um eacutethos voltado para o
agradaacutevel O saacutebio se exercita justamente nisso pensar a realidade busca compreender sua
constituiccedilatildeo e funcionamento perceber os limites da natureza e pensar a partir disso as
finalidades de suas accedilotildees Trata-se de buscar na phyacutesis um paradigma que sirva para conferir
mais naturalidade ao seu estilo de vida
39 οὗτος μὲν ὁ βίος τἀνδρός ἥδε δὲ ἡ τελευτή 40 Συμπαθῶμεν τοῖς φίλοις οὐ θρηνοῦντες ἀλλὰ φροντίζοντες
101 Na sentenccedila vaticana 66 o termo que Epicuro usa para se remeter a essa complexa
atividade que ocorre na psycheacute do sophoacutes eacute phrontiacutedzontes cujo infinitivo eacute phrontiacutedzo41 que
pode se traduzido como pensar mas tambeacutem traz o sentido de meditar Cremos ser essa uma
traduccedilatildeo mais adequada afinal a meditaccedilatildeo se configura como um exerciacutecio da alma que
envolve sua capacidade para calcular deliberar com prudecircncia resgatar na memoacuteria imagens
sentimentos e princiacutepios fundamentais da physiologiacutea necessaacuterios para estabelecer uma
compreensatildeo da realidade orientada para a autarquia e o prazer Assim natildeo eacute lamentando que
se demonstra cuidado e afeto mas meditando e ao fazecirc-lo libertando-se de concepccedilotildees
vazias e se alegrando com os bons sentimentos partilhados com os amigos no presente e pelas
boas lembranccedilas do que foi vivido no passado
Para isso ser possiacutevel natildeo basta decorar os fundamentos da physiologiacutea e remiti-los
como demonstraccedilatildeo de erudiccedilatildeo como condena Epicuro (SV 76) Eacute preciso assimilar esse
saber ou seja fazecirc-lo paradigma para o pensamento e para a conduta Disso resulta uma
convicccedilatildeo (piacutestis) com relaccedilatildeo agrave possibilidade de a partir de uma investigaccedilatildeo da natureza
dissipar da psycheacute as kenaigrave doacutexai e com isso afastar os medos que impedem o homem de
experimentar a ataraxiacutea e a autaacuterkeia A meditaccedilatildeo exercitando a alma para por meio do
logismoacutes do dialogismoiacutes e da phroacutenesis se valer desse saber para estabelecer um modo de
viver atua no sentido dessa assimilaccedilatildeo e no desenvolvimento de uma convicccedilatildeo firme (piacutestin
beacutebaion) a respeito da utilidade da physiologiacutea para o exerciacutecio de uma vida saacutebia A
serenidade que Epicuro demonstrou ateacute seu derradeiro momento essa imperturbabilidade nos
remete justamente para esse sentimento de confianccedila (piacutestis) com relaccedilatildeo ao uso desse
conhecimento physioloacutegico para nortear uma compreensatildeo da vida e definir uma conduta
saacutebia Ao meditar se desenvolve a convicccedilatildeo de que pensar o eacutethos a partir do que se conhece
sobre a phyacutesis resulta em uma perspectiva de vida mais feliz como sugere a seguinte
passagem
A mesma convicccedilatildeo que nos inspirou a confianccedila de que nada existe de terriacutevel que dure para sempre ou mesmo por muito tempo tambeacutem nos habilita a ver que nos limites mesmos da vida nada aumenta tanto a nossa seguranccedila como a amizade (DL X 148)42
Ou seja a mesma confianccedila que meditar sobre os modos de ser e sobre a constituiccedilatildeo
da natureza estimula tambeacutem desenvolve uma disposiccedilatildeo (diaacutethesis) para orientar a conduta
41 Cf Anatole Bailly Op Cit 42 Ἡ αὐτὴ γνώμη θαρρεῖν τε ἐποίησεν ὑπὲρ τοῦ μηθὲν αἰώνιον εἶναι δεινὸν μηδὲ ολυχρόνιον καὶ τὴν ἐν αὐτοῖς τοῖς ὡρισμένοις ἀσφάλειαν φιλίας μάλιστα κατεῖδε συντελουμένην
102 para a realizaccedilatildeo de um paradigma mais natural de vida Veja-se que Epicuro usa o termo
gnoacuteme (de gnoacutesis) para se referir a esse conhecimento e estabelece uma relaccedilatildeo com o termo
tharreiacuten (de tharreacuteo) que diz respeito a ter confianccedila Assim quanto mais se conhece a
natureza e se medita sobre ela mais se desenvolve a piacutestis que vai resultar em uma disposiccedilatildeo
para estabelecer um modo de viver a partir da physiologiacutea
Eacute essa disposiccedilatildeo da alma que leva o saacutebio a transformar seu eacutethos a querer
permanentemente fazer de sua vida um exerciacutecio de autenticidade liberdade e equiliacutebrio
perspectiva possiacutevel a partir da assimilaccedilatildeo de um conhecimento que instrumentalize a psycheacute
para o domiacutenio dos proacuteprios pensamentos e desejos permitindo escolher e recusar a partir de
uma vontade esclarecida (phroacutenesis) A diaacutethesis eacute o querer constantemente se ocupar com a
sauacutede da alma com o bem-estar em estar vigilante com relaccedilatildeo ao que pode comprometer seu
equiliacutebrio trazer perturbaccedilotildees impedi-lo de agir a partir do proacuteprio pensamento
Provavelmente por essas razotildees Dioacutegenes de Œnoanda mandou esculpir nos muros de sua
cidade para os habitantes e para os viajantes ao passassem por ali saberem a seguinte
inscriccedilatildeo ldquoo mais importante para a felicidade eacute a disposiccedilatildeo da qual nos somos mestresrdquo
(Œno fr 112)43 E para ter a maicirctrise sobre essa diaacutethesis a meditaccedilatildeo fundamentada na
physiologiacutea procura levar o homem a ter confianccedila de que natildeo haacute o que temer quanto aos
deuses natildeo haacute nada a temer quanto agrave morte pode-se alcanccedilar a felicidade e pode-se suportar a
dor Dessa forma delineia-se uma therapeiacutea que poderia suprimir os medos e as perturbaccedilotildees
que nascem das falsas ideias sobre a natureza Eacute no sentido de mostrar esse aspecto praacutetico
ou uacutetil da meditaccedilatildeo ndash ligado agrave disposiccedilatildeo do sophoacutes para contrapor agraves opiniotildees vazias um
saber delineado em torno da natureza e com isso fundamentar um modo saacutebio de compreender
a phyacutesis e viver dentro dos limites dela - que vamos tecer alguns comentaacuterios sobre esse
quaacutedruplo44 remeacutedio
43 Le plus important pour le bonheur crsquoest la disposition dont nous somes maicirctres 44 Eacute em torno dessas quatro assertivas que se formula o tetraphaacutermakon epicurista como foi expresso por Filodemo (Pap Herc 1005 col IV 9-14) Trata-se de um faacutermaco ou uma indicaccedilatildeo terapecircutica para livrar a alma do sofrimento originado nas opiniotildees vazias Essa therapeiacutea havia sido apresentada de maneira mais detalhada na Carta a Meneceu e retomada sinteticamente nas Maacuteximas Capitais (I-IV) Dioacutegenes de Œnoanda tambeacutem reproduziu esse tetraphaacutermakon nos muros de sua cidade para trazer aliacutevio inspiraccedilatildeo e servir como indicativo de meditaccedilatildeo para os que por ali passassem
103 241 - Sobre os deuses
Algumas estaacutetuas dos deuses lanccedilam flechas e satildeo esculpidas com um arco [] outras satildeo escoltadas por feras selvagens e outras se enfurecem contra as pessoas [] Mas eacute preciso fazer as estaacutetuas dos deuses alegres e sorridentes para que noacutes possamos retribuir o sorriso em vez de temecirc-los (Œno fr 19 I-II)45
Esse relato que Dioacutegenes de Œnoanda tambeacutem deixou registrado nos muros de sua
cidade nos mostra por um lado como alguns deuses (theoigrave) eram caracterizados na
antiguidade e por outro indica a concepccedilatildeo que os epicuristas faziam deles Isso nos revela
um contraste entre a representaccedilatildeo das divindades feita pela opiniatildeo geral e aquela adotada
pelo saacutebio No iniacutecio da Carta a Meneceu Epicuro nos daacute elementos para pensar essas
diferenccedilas quando firma a existecircncia dos deuses mas natildeo como retratada pelos muitos (DL
X 123) Para ele ldquoas afirmaccedilotildees da maioria sobre os deuses natildeo satildeo preacute-concepccedilotildees
verdadeiras e sim suposiccedilotildees falsas Por causa de tais suposiccedilotildees falsas imagina-se que
derivam dos deuses os maiores males e bensrdquo (DL X 124)46 Quando diz isso Epicuro nos
remete para uma distinccedilatildeo entre suposiccedilotildees falsas (hypoacutelepseis pseudeicircs) sobre as quais se
fundamentam as crenccedilas da maioria e aquilo que eacute impresso na alma pela natureza o que vai
remeter a impressotildees (proleacutepseis) As opiniotildees vazias se baseiam nessas suposiccedilotildees sem
relaccedilatildeo com a realidade physioloacutegica e alimentam o temor com relaccedilatildeo aos deuses o medo de
que eles possam infligir ao homem castigos impedir sua felicidade Para as kenaigrave doacutexai os
theoigrave seriam seres cujo poder e a vontade sem limites se estendem para aleacutem da phyacutesis
podendo criar ou destruir em funccedilatildeo de suas inclinaccedilotildees Como maneira de lidar com isso
caberia ao homem uma atitude submissa e temerosa
Por outro lado a representaccedilatildeo que o saacutebio estabelece a respeito dos deuses os coloca
como referecircncia de realizaccedilatildeo de um modelo natural de existecircncia Ao representaacute-los natildeo se
faz em um primeiro momento uso direto das proleacutepseis porque ldquoa visatildeo dos deuses se torna
possiacutevel pelos simulacros que chegam agrave alma (e natildeo aos sentidos em razatildeo de seus aacutetomos
tecircnues) (ETIENNE amp OrsquoMEARA 1996 p 86) ldquonesse caso satildeo percepccedilotildees mentaisrdquo
45 Com supressotildees na nossa na traduccedilatildeo O texto de referecircncia eacute [ Certaines statues des dieux] lancent [des flegraveches et sont eculpteacutees tenant] un arc [faites] comme Heacuteraclegraves chez Homeacutere drsquoautres sont escorteacutees par des becirctes sauvages et drsquoautres encore srsquoirritent contre les gens prosperes comme apparaicirct agrave la plupart Neacutemeacutesis Mais il faut faire les statues des dieux joyeuses et souriantes pour que nous leur sourrions en retour plutocirct que nous ne les craignions 46 οὐ γὰρ προλήψεις εἰσὶν ἀλλrsquo ὑπολήψεις ψευδεῖς αἱ τῶν πολλῶν ὑπὲρ θεῶν ἀποφάσεις ἔνθεν αἱ μέγισται βλάβαι αἴτιαι τοῖς κακοῖς ἐκ θεῶν ἐπάγονται καὶ ὠφέλειαι
104 (BOLLACK 1975 p 92) O uso das impressotildees sensiacuteveis se daacute como uma maneira do saacutebio
expressar essa percepccedilatildeo por meio de analogias com elementos mais comuns da realidade
experimentada pelo homem dentro de uma representaccedilatildeo ldquoconforme a noccedilatildeo comum de eus
traccedilada em noacutesrdquo (DL X 123)47 Eacute nesse sentido que ele vai buscar recorrer agraves proleacutepseis
buscando na memoacuteria as imagens que possam representar os deuses como seres vivos
autossuficientes e felizes ou seja dentro de uma naturalidade que o saacutebio procura reproduzir
por meio do exerciacutecio de uma vida katagrave physin
Eacute como contraponto a esse quadro pintado pela maioria cujas cores remetem mais agrave
imaginaccedilatildeo e agrave fantasia que Epicuro afirma ldquoos deuses realmente existem e o conhecimento
de sua existecircncia eacute manifestordquo (DL X 123)48 mas natildeo como a maioria acredita Para os
epicuristas a natureza dos deuses pode ser pensada como corpoacuterea e por isso estaacute circunscrita
agrave phyacutesis Satildeo imortais assim como eacute a proacutepria phyacutesis tomada em sua totalidade (a
imortalidade eacute a existecircncia num tempo que vai desde sempre e para sempre) e vivem no
intervalo entre os mundos (metacoacutesmion) (DL X 89) Ou seja os theoigrave epicuristas pertencem
agrave imanecircncia
Na concepccedilatildeo do saacutebio soacute eacute possiacutevel atribuir aos deuses aquilo que se coaduna com
sua natureza de bem-aventuranccedila de serenidade de imperturbabilidade Por natildeo terem
preocupaccedilotildees natildeo se ocupam com os afazeres dos homens Entatildeo natildeo se deve esperar nada
deles nem temecirc-los O mal natildeo adveacutem de intervenccedilotildees divinas mas do sofrimento que o
saacutebio procura evitar por meio de um caacutelculo soacutebrio (nephroacuten logismoacutes) (DL X 132) voltado
para orientar suas escolhas e eliminar da alma as opiniotildees vazias Por isso a afirmaccedilatildeo de que
natildeo haacute nada a temer quanto aos deuses eacute colocada como um dos quatro componentes do
tetraphaacutermakon natildeo satildeo eles os responsaacuteveis nem pelos infortuacutenios nem pelas alegrias da
vida humana Isso cabe a cada um ateacute onde se estende o poder de suas escolhas
Ora a negaccedilatildeo dessa concepccedilatildeo geral a respeito dos deuses para postular a existecircncia
deles como pertencente agrave mesma natureza do homem e que tem como principais
caracteriacutesticas a vida sem perturbaccedilotildees e autaacuterquica remete para um modo de viver a ser
buscado pelo saacutebio E essa busca implica em um trabalho um esforccedilo feito pelo proacuteprio
homem para fazer de sua vida um exerciacutecio de ataraxiacutea e de autaacuterkeia Trata-se natildeo de
esperar pelo poder divino mas de compreender que as condiccedilotildees para a makariacuteos zecircn
dependem dele e devem ser construiacutedas por ele mesmo E isso requer uma atividade de
47 ὡς ἡ κοινὴ τοῦ θεοῦ νόησις ὑπεγράφη Optamos aqui por uma questatildeo de dar mais clareza ao texto grego por registrar a traduccedilatildeo de Marcel Conche (Eacutepicure Lettres et Maximes 1977) 48 θεοὶ μὲν γὰρ εἰσίνmiddot
105 observaccedilatildeo e meditaccedilatildeo sobre a natureza tendo em vista afastar as opiniotildees vazias e
procurando estabelecer um modo de vida dentro dos limites e possibilidades da phyacutesis
Portanto natildeo se deve temer os deuses mas meditando sobre sua natureza imanente tomaacute-la
como um paradigma natural para estabelecer um modo de viver
242 - Sobre a morte
Epicuro ao tentar traduzir o sentimento geral de seu tempo com relaccedilatildeo agrave morte
(thaacutenatos) diz ser ela ldquoo mais pavoroso dos malesrdquo (DL X 125)49 A perspectiva da morte faz
sofrer aflige o homem lhe impede de experimentar a ataraxiacutea A crenccedila na imortalidade
(athanasiacutea) da alma o faz temer o Hades com sua possibilidade de castigos eternos e a
interrupccedilatildeo da vida contraria o desejo de poder eternamente gozar os prazeres sensiacuteveis Se ldquoa
maioria ora foge da morte como o maior dos malesrdquo (DL X 125)50 o mesmo natildeo acontece
com o saacutebio Isso porque ele aprendeu a orientar seus pensamentos a partir da investigaccedilatildeo
sobre a natureza e por isso compreende a morte sob um aspecto fenomecircnico
Por meio da physiologiacutea o sophoacutes aprendeu que a natureza da alma eacute corpoacuterea Ela
natildeo tem existecircncia anterior nem posterior ao corpo-carne a qual estaacute ligada (DL X 64-66)
Assim sendo ela natildeo sofre apoacutes a morte Se de acordo com a concepccedilatildeo epicurista o
sofrimento e o prazer estatildeo nas sensaccedilotildees a morte - ao privar a alma e o corpo de sentir -
coloca fim a toda possibilidade de prazer ou dor Daiacute Epicuro afirmar que a morte nada eacute para
noacutes (DL X 124 139) Essa assertiva pode conduzir a pensar que a ldquoa morte eacute um temor sem
objetordquo (SALEM 1994 p 204) Isso se explica porque ldquoenquanto existimos a morte natildeo estaacute
presente e quando a morte estaacute presente jaacute natildeo existimosrdquo (DL X 125)51 Ou seja quando
tememos eacute porque a morte natildeo chegou nesse caso o sofrimento eacute vatildeo E quando a morte
privou o homem dos sentidos ele jaacute natildeo pode temecirc-la e aiacute o sofrimento eacute impossiacutevel
Essa reflexatildeo estaacute assentada na compreensatildeo de que viver e morrer satildeo fenocircmenos da
natureza Do ponto de vista physioloacutegico a morte natildeo eacute mais que a corrupccedilatildeo de um corpo a
desagregaccedilatildeo a separaccedilatildeo dos aacutetomos que lhe constituiacutea Assim a morte estaacute dentro do
campo de accedilatildeo da natureza sem nenhuma intervenccedilatildeo divina antes nem durante nem depois
e por isso natildeo deveria trazer afliccedilatildeo Portanto natildeo haacute nada a temer quanto agrave morte como
tambeacutem orienta Filodemo em sua formulaccedilatildeo do tetraphaacutermakon O mundo eacute um continuo
49 τὸ φρικωδέστατον οὖν τῶν κακῶν ὁ θάνατος οὐθὲν πρὸς ἡμᾶς 50 Ἀλλrsquo οἱ πολλοὶ τὸν θάνατον ὁτὲ μὲν ὡς μέγιστον τῶν κακῶν φεύγουσιν 51 ἐπειδήπερ ὅταν μὲν ἡμεῖς ὦμεν ὁ θάνατος οὐ πάρεστιν ὅταν δὲ ὁ θάνατος παρῇ τόθrsquo ἡμεῖς οὐκ ἐσμέν
106 fazer-se e desfazer-se e o homem ser da natureza sujeita-se fisicamente aos mesmos
fenocircmenos Com isso deixa-se perturbar pelo medo de que a morte se aproxima eacute desperdiccedilar
a vida com temores infundados ldquoe tu natildeo sendo senhor do dia do amanhatilde tu estaacutes adiando a
alegria e a vida se consome pela demora e cada um de noacutes morre sem ter descansordquo (SV
14)52
Essa advertecircncia pode ser relacionada a uma orientaccedilatildeo encontrada na Carta a
Meneceu Laacute se diz ldquoa meditaccedilatildeo sobre uma vida bela coincide com a meditaccedilatildeo sobre uma
morte belardquo (DL X 126)53 Em questatildeo estaacute a necessidade de o saacutebio salvaguardar sua
serenidade com relaccedilatildeo agrave morte enquanto exercita sua disposiccedilatildeo para aproveitar a vida A
imortalidade eacute um desejo vazio tanto quanto vazio eacute o temor da morte O saacutebio orienta sua
vida para fazer do tempo presente o mais agradaacutevel possiacutevel ateacute onde depende dele O que ele
busca eacute viver equilibradamente orientado pelo saber depreendido ao investigar a phyacutesis e
isso natildeo estaacute relacionado com viver longamente Em razatildeo disso eacute importante meditar para
que a ideia da morte natildeo traga afliccedilatildeo e pelo contrario para que o saacutebio compreendendo a
morte em sua imanecircncia decirc-se conta da mesma dimensatildeo na qual se circunscreve a
felicidade por isso realizaacutevel enquanto se vive Tanto o sophoacutes quanto quem se deixa guiar
pelas opiniotildees vazias vatildeo morrer mas o primeiro natildeo eacute afligido pela ideia da morte Ao
contraacuterio experimenta a ataraxiacutea e ao fazecirc-lo jaacute estaacute construindo o sentido de uma vida
feliz A meditaccedilatildeo sobre a morte tendo por base a physiologiacutea exercita a compreensatildeo de que
a mortalidade deve ser vivida em sua imanecircncia isto eacute orientada para a liberdade e o prazer
243 - Sobre a felicidade
A realizaccedilatildeo da felicidade (eudaimoniacutea) eacute o problema filosoacutefico que vai caracterizar
todo o pensamento epicurista Em funccedilatildeo de procurar realizar o sentido de felicidade na vida
do homem vai ser pensado um eacutethos orientado para o equiliacutebrio e a liberdade Decorre dessa
necessidade o trabalho de investigaccedilatildeo da phyacutesis para poder conhecer os limites nos quais a
eudaimoniacutea pode ser circunscrita e realizada Por isso a eacutetica epicurista natildeo pode ser
entendida em sua totalidade apartada da physiologiacutea e vice-versa Se na Carta a Meneceu
encontramos meacutetodo para a felicidade (CONCHE 1977 p 40) eacute na Carta a Piacutetocles e na
Carta a Heroacutedoto que encontramos os fundamentos physioloacutegicos que permitem justificar ou
52 Τῆς ἀσφαλείας τῆς ἐξ ἀνθρώπων γενομένης μέχρι τινὸς δυνάμει τε ἐξερειστικῇ καὶ εὐπορίᾳ εἰλικρινεστάτη γίνεται ἡ ἐκ τῆς ἡσυχίας καὶ ἐκχωρήσεως τῶν πολλῶν ἀσφάλεια 53 ἀλλὰ καὶ διὰ τὸ τὴν αὐτὴν εἶναι μελέτην τοῦ καλῶς ζῆν καὶ τοῦ καλῶς ἀποθνῄσκειν
107 entender a maneira de viver postulada para o sophoacutes
Como se conduzir no mundo de maneira a ser feliz eacute uma indagaccedilatildeo que evoca
variados entendimentos e respostas Uma dessas maneiras de entender a felicidade tem
relaccedilatildeo com os mitos A eudaimoniacutea dependeria dos deuses que convencidos das accedilotildees
virtuosas do homem com relaccedilatildeo aos demais e devotas com relaccedilatildeo a eles o fariam apoacutes a
morte conhecer no Reino de Hades as tranquilas paisagens dos Campos Eliacutesios Dessa forma
ser feliz eacute uma conquista projetada no aleacutem-vida e dependente do julgamento divino Essa
seria uma opiniatildeo vigente na poacutelis entre os muitos E a isso a filosofia epicurista se contrapotildee
Na Carta a Meneceu Epicuro fala da possibilidade de viver ldquocomo um deus entre os
homens pois em nada se assemelha a uma criatura mortal o homem que vive entre bens
imortaisrdquo (DL X 135)54 Veja-se que ele projeta a felicidade dos deuses como uma
possibilidade de realizaccedilatildeo humana desde que o homem cultive os bens relacionados a essa
felicidade Se eacute assim entatildeo esse sentido pleno de realizaccedilatildeo eacute experimentado enquanto se
vive na convivecircncia com os outros na relaccedilatildeo estabelecida com os proacuteprios desejos Ser feliz
eacute uma questatildeo relacionada agrave ordem terrena ao campo do imanente ao momento em que se
vive Assim a eudaimoniacutea eacute identificada ao exerciacutecio de uma vida feliz o que remete para o
cultivo de bens como a philiacutea a autaacuterkeia a ataraxiacutea55 que resultam em bem-estar
(eustaacutetheia) alegria liberdade A remissatildeo aos deuses vai figurar aiacute como um modelo de
serenidade equiliacutebrio e autossuficiecircncia ldquoOs deuses de Epicuro satildeo a realizaccedilatildeo ideal de sua
concepccedilatildeo de eudaimoniacutea que domina toda sua filosofia Vivem sempre uma permanente
felicidade natildeo tem nenhuma preocupaccedilatildeo nem as causam aos outrosrdquo (GUAL 1985 p 170)
Sendo da ordem do humano a felicidade natildeo eacute daacutediva eacute resultado de um exerciacutecio
que tem como finalidade a realizaccedilatildeo desse ideal de vida evocado pela imagem dos theoigrave
Esse modelo quando projetado no homem por meio de um modo de viver de acordo com a
phyacutesis eacute o que vai remeter para a imagem do saacutebio Eacute procurando orientar sua accedilatildeo a partir de
um paradigma natural que ele busca experimentar esse sentido de felicidade relacionado a
essa concepccedilatildeo epicurista de deus Em outros termos a eudaimoniacutea ldquosuprema proacutepria da
divindade que natildeo pode ser mais intensardquo (DL X 121)56 serve como concepccedilatildeo para se
pensar a eudaimoniacutea que pode ser realizada pelo sophoacutes Essa diz respeito agrave felicidade
ldquosusceptiacutevel de adiccedilatildeo e subtraccedilatildeo de prazeresrdquo (idem) e portanto que estaacute ao alcance do
54 ζήσῃ δὲ ὡς θεὸς ἐν ἀνθρώποις οὐθὲν γὰρ ἔοικε θνητῷ ζῴῳ ζῶν ἄνθρωπος ἐν ἀθανάτοις ἀγαθοῖς 55 Por oposiccedilatildeo agrave gloacuteria agrave riqueza ao poder bens que trazem consigo o oacutedio a inveja o desprezo O que eacute incompatiacutevel com a condiccedilatildeo de divindade postulada por Epicuro 56 Τὴν εὐδαιμονίαν διχῆ νοεῖσθαι τήν τε ἀκροτάτην οἵα ἐστὶ περὶ τὸν θεόν ἐπίτασιν οὐκ ἔχουσαν καὶ τὴν ltκατὰ τὴνgt προσθήκην καὶ ἀφαίρεσιν ἡδονῶν
108 saacutebio Por isso Filodemo ao apresentar sua formulaccedilatildeo do tetraphaacutermakon afirma pode-se
alcanccedilar a felicidade Porque ao relacionaacute-la ao exerciacutecio de uma vida orientada de acordo
com a phyacutesis o que define o eacutethos do saacutebio a felicidade passa a depender de cada um das
escolhas e das recusas necessaacuterias para conduzir as accedilotildees em direccedilatildeo aos ldquobens imortaisrdquo
Para ser feliz o saacutebio precisa aprender a desejar e a escolher conforme a natureza
Eacute propagado pelas opiniotildees vazias que a felicidade estaacute relacionada agrave obtenccedilatildeo de
riquezas de poder de gloacuteria A proacutepria figura de Alexandre o Grande simboliza esse ideal ao
nos remeter a uma vida dedicada a ultrapassar limites a saciar os desejos de conquistas que
um a um eram substituiacutedos por outros ainda maiores Mas ldquoir sempre adiante eacute jamais
satisfazer o esforccedilordquo e as conquistas de Alexandre nesse sentido satildeo a ldquoanti-sabedoriardquo pois
nos remetem para pensar que a ldquoinsatisfaccedilatildeo resulta da natildeo-limitaccedilatildeo do desejordquo (SALEM
1994 p 67-68) Para Epicuro esse modelo de vida estaacute assentado em valores artificialmente
criados e que natildeo conduzem agrave serenidade e agrave autarquia que a representaccedilatildeo epicurista dos
deuses sugere Pelo contraacuterio essa maneira de se conduzir no mundo traz consigo o oacutedio a
inveja e o desprezo57 o que leva agrave infelicidade Essa busca por bens valorizados pelas kenaigrave
doacutexai gira em torno de necessidades que nem satildeo naturais nem necessaacuterias para a felicidade
Ao contraacuterio submete o homem a uma tirania das vontades e o impede de pensar e agir a
partir de si mesmo caracteriacutestica do ser autaacuterkes Por causa disso eacute recorrente nos textos
epicuristas a concepccedilatildeo segundo a qual uma vida feliz natildeo eacute determinada pela posse de bens
numerosos pela detenccedilatildeo de riquezas Um exemplo disso encontramos nesta sentenccedila
Nem a maior riqueza subsistente nem a estima e a admiraccedilatildeo junto agrave multidatildeo (maioria) nem algo outro das coisas paralelas a causas indefinidas engendram uma alegria digna de viver nem tampouco dissolvem a perturbaccedilatildeo da alma (SV 81)58
No epicurismo a realizaccedilatildeo da felicidade estaacute ligada fundamentalmente agrave
possibilidade de experimentar a ataraxiacutea finalidade maior das accedilotildees do saacutebio Por isso ele
precisa compreender a natureza e em funccedilatildeo dessa compreensatildeo meditar sobre as proacuteprias
vontades e administraacute-las de modo a circunscrevecirc-las aos limites da phyacutesis e natildeo ser
atormentado pela ambiccedilatildeo Decorre dessa meditaccedilatildeo o entendimento de que os bens
57 Epicuro relaciona o oacutedio a inveja e o desprezo com a infelicidade do homem (DL X 117) Esses sentimentos satildeo combatidos pelas virtudes que o saacutebio busca desenvolver sabedoria moderaccedilatildeo justiccedila (DL X 132 SV 5) Mas essas virtudes natildeo devem ser buscadas por si mesmas Elas satildeo um meio Devem ser praticadas tendo em vista o fim que miram a felicidade (o que estaacute relacionado agrave questatildeo da realizaccedilatildeo dos prazeres dentro dos limites da phyacutesis) 58 Οὐ λύει τὴν τῆς ψυχῆς ταραχὴν οὐδὲ τὴν ἀξιόλογον ἀπογεννᾷ χαρὰν οὔτε πλοῦτος ὑπάρχων ὁ μέγιστος οὔθrsquo ἡ παρὰ τοῖς πολλοῖς τιμὴ καὶ περίβλεψις οὔτrsquo ἄλλο τι τῶν παρὰ τὰς ἀδιορίστους αἰτίας
109 necessaacuterios agrave consecuccedilatildeo da felicidade satildeo faacuteceis de obter em contraste agravequeles propagados
pela multidatildeo e resultam de um exerciacutecio de dar mais naturalidade agrave vida Nesse sentido a
ataraxiacutea e a autaacuterkeia - que se quer projetar no modo de viver do saacutebio como equivalentes agrave
bem-aventuranccedila agrave eterna serenidade e agrave autossuficiecircncia (pensadas como atributo da vida
dos deuses) - remetem para um trabalho de limitaccedilatildeo dos desejos ao que eacute natural e
necessaacuterio Isso leva o saacutebio a se desvencilhar das opiniotildees vazias a respeito da felicidade e a
ver na amizade na vida frugal no equiliacutebrio a possibilidade de realizar a eudaimoniacutea
Eacute sob essa perspectiva que Epicuro apresenta sua filosofia como um meacutetodo para a
felicidade uma atividade identificada com o vir a ser do saacutebio Daiacute ele dizer na Carta a
Meneceu (DL X 122) que o tempo dedicado agrave filosofia eacute comparado agravequele dedicado agrave
felicidade Afinal o exerciacutecio filosoacutefico eacute o mesmo que liberta e cura a alma das opiniotildees que
resultam em perturbaccedilotildees e dor Logo a meditaccedilatildeo como uma dimensatildeo praacutetica desse
filosofar constitui-se como uma pragmateiacutea uma compreensatildeo da natureza voltada para
guiar as accedilotildees do saacutebio para a realizaccedilatildeo da felicidade
244 - Sobre a dor
Nos muros de Œnoanda Dioacutegenes mandou gravar as seguintes palavras ldquoquando um
homem eacute acometido por dores corporais ele diz que elas satildeo mais intensas que as da alma e
quando ele sente as afliccedilotildees da alma ele diz que essas satildeo as mais intensasrdquo (Œno fr 44 II ndash
III)59 Para aleacutem da discussatildeo a respeito de saber qual eacute o maior sofrimento nos importa eacute
perceber que a dor (poacutenos) eacute por muitos percebida como um mal do qual sempre se deve
fugir
Por traacutes dessa ideia estaacute o medo de que a dor dure indefinidamente ou ultrapasse os
niacuteveis do suportar Pode-se perceber nesses temores o reflexo das opiniotildees vazias seja
porque ignoram os limites da natureza ou por se permitirem guiar pelos mitos e pensamentos
fantasiosos Eacute nesse contexto que se concebe o sofrimento como resultado do castigo dos
deuses como aquele infligido a Prometeu acorrentado e punido por Zeus apoacutes ter roubado o
fogo e dado este ao homem Tambeacutem haacute quem pense na dor como fim inevitaacutevel e eterno para
aqueles apoacutes a morte conduzidos ao Hades e depois ao Taacutertaro60 Daiacute por um lado alimenta-
se a crenccedila sobre a necessidade de honrar os deuses para escapar agraves suas puniccedilotildees por outro
59 Mais quand um homme est affligeacute de douleurs corporelles il dit qursquoelles sont plus grandes que celles de lrsquoacircme et quand [il fait lrsquoexpeacuterience de celles de lrsquoacircme il dit que crsquoest celles-ci qui sont plus grandes] 60 Uma das partes do Hades (terra dos mortos) para onde satildeo enviados aqueles que devem ser castigados
110 difunde-se a noccedilatildeo de que eacute preciso buscar o prazer sempre e a qualquer custo para escapar do
sofrimento da afliccedilatildeo da dor Inebriados por essas opiniotildees estabelecem um modo de viver
dissoluto creacutedulo distanciado da sabedoria
Mas para aqueles que se exercitam na filosofia do Jardim a aponiacutea sendo fenocircmeno
fiacutesico requer que se compreenda physiologicamente suas causas ou seja dentro de uma
compreensatildeo ligada aos limites da natureza Eacute a partir dessa perspectiva que se busca um
modo de administrar essa afecccedilatildeo em vez de negaacute-la ou de procurar sempre fugir dela
Afinal eacute da relaccedilatildeo que o corpo tem com o mundo-realidade que resultam afecccedilotildees de dor (ou
prazer) que ficam guardadas na alma como imagem sensiacutevel (proleacutepseis) Por isso elas satildeo
importantes para pensar a natureza e o modo de viver do saacutebio - porque elas permitem ouvir o
corpo e refletir a respeito dos seus limites naturais
Claro que Epicuro afirma ldquoa finalidade de todas as nossas accedilotildees eacute nos livrarmos do
sofrimento e do temorrdquo (DL X 128)61 Mas com isso a ecircnfase recai sobre as opiniotildees que
trazem perturbaccedilatildeo ou desequiliacutebrio agrave alma E isso tem uma relaccedilatildeo direta com as kenaigrave doacutexai
Ou seja o sofrimento que resulta de concepccedilotildees falsas a respeito da natureza deve ser evitado
E isso se faz como procuramos mostrar por meio de uma meditaccedilatildeo orientada para por meio
da physiologiacutea levar a alma agrave ataraxiacutea privando-a dessas opiniotildees Para tanto eacute necessaacuteria a
elaboraccedilatildeo de um loacutegos que instile na psycheacute a confianccedila de que ao estabelecer um modo de
viver de acordo com a natureza eacute possiacutevel a makariacuteos zecircn
Por outro lado Epicuro esclarece ldquotoda dor eacute um mal mas nem por isso devemos
fugir de toda dor por sua proacutepria naturezardquo (DL X 129)62 Nesses termos ele estaacute postulando
uma compreensatildeo da dor como fenocircmeno da phyacutesis Assim ela natildeo seria um mal em si mas
poderia indicar a ultrapassagem de um limite orgacircnico ou a submissatildeo do corpo a algum fator
de desequiliacutebrio E isso pode ser relacionado ao exerciacutecio mesmo da sabedoria que consiste
em saber quando conveacutem sentir dor como no caso do atleta ao alongar os muacutesculos para um
melhor funcionamento do corpo ou no caso do agricultor submetido aos rigores impostos
pelo peso do arado e pela extensatildeo do campo em funccedilatildeo de obter uma boa colheita Assim
quando convier o saacutebio natildeo evitaraacute a dor Da mesma forma que se pode dizer da
conveniecircncia em se abster de alguns prazeres que resultam em sofrimento (DL X 129)
Portanto o sophoacutes precisa meditar sobre a vida katagrave phyacutesin e como nela estatildeo relacionados os
61 τούτου γὰρ χάριν πάντα πράττομεν ὅπως μήτε ἀλγῶμεν μήτε ταρβῶμεν 62 οὐ πᾶσα μέντοι αἱρετήmiddot καθάπερ καὶ ἀλγηδὼν πᾶσα κακόν οὐ πᾶσα δὲ ἀεὶ φευκτὴ πεφυκυῖα
111 limites da natureza e a repleccedilatildeo dos desejos para saber o que escolher e o que evitar63 Afinal
ldquoconveacutem entatildeo discriminar todas essas coisas com o caacutelculo daquilo que eacute uacutetil e a ponderaccedilatildeo
daquilo que eacute prejudicial porque em certas circunstacircncias o bem eacute um mal para noacutes e o mal eacute
um bem para noacutesrdquo (DL X 130)64
As dores pensadas enquanto fenocircmeno fazem parte da condiccedilatildeo da vida sujeita agraves
desarmonias aos desequiliacutebrios Por isso satildeo inevitaacuteveis ldquoElas estatildeo presentes mas eacute
possiacutevel para o saacutebio epicurista diminuir fortemente sua intensidade por meio de uma opiniatildeo
verdadeirardquo (ETIENNE amp OrsquoMEARA 1996 p 79) Mas a essa inevitabilidade corresponde
tambeacutem uma descontinuidade como testemunham estas sentenccedilas
O que doacutei natildeo dura continuamente na carne mas o que doi intensamente estaacute presente o tempo miacutenimo e o que sobrepassa o prazeroso segundo a carne acontece natildeo por muitos dias e nas doenccedilas de longa duraccedilatildeo eacute mais pleno o que causa prazer do que o que causa dor (SV 3 DL X 140)
Toda dor pode ser facilmente desprezada aquela que produz um sofrimento tem curta duraccedilatildeo aquela que perdura na carne tem um sofrimento brando (SV 4)
A partir desses passos podemos dizer que na concepccedilatildeo epicurista assim como o
prazer natildeo dura para sempre o mesmo se daacute com relaccedilatildeo agrave dor Quando ela eacute intensa dura
pouco (seja porque leva agrave morte ou deixa de ser intensa) quando ela eacute branda pode ser
suplantada pelo prazer Cabe ao saacutebio desenvolver uma percepccedilatildeo quanto a isso para poder
administrar o sofrimento Assim diante das dores intensas a alma pode experimentar algum
aliacutevio ao saber de sua brevidade e diante daquelas mais moderadas pode-se suplantaacute-las por
meio de uma meditaccedilatildeo voltada para trazer agrave psycheacute as memoacuterias que proporcionam um
prazer capaz de se sobrepor a esse sofrimento como procuramos mostrar no item 22 deste
capiacutetulo
Nesse sentido a meditaccedilatildeo vai se constituir ao mesmo tempo como um exerciacutecio de
compreensatildeo da dor (de saber se ela traz algum benefiacutecio) e como um modo de cuidar
terapeuticamente dela Essa possibilidade de therapeiacutea face ao sofrimento eacute afirmada como
um dos ingredientes do tetraphaacutermakon que Filodemo resumiu assim ldquopode-se suportar a
dorrdquo65 Esse princiacutepio servindo de tema para uma meditaccedilatildeo permite balizado pela
investigaccedilatildeo da natureza entender a naturalidade da dor e que ela pode ser vivida com
63 Vide capiacutetulo I toacutepico 12 deste trabalho 64 τῇ μέντοι συμμετρήσει καὶ συμφερόντων καὶ ἀσυμφόρων βλέψει ταῦτα πάντα κρίνειν καθήκει χρώμεθα γὰρ τῷ μὲν ἀγαθῷ κατά τινας χρόνους ὡς κακῷ τῷ δὲ κακῷ τοὔμπαλιν ὡς ἀγαθῷ 65 Pap Herc 1005 col IV 9-14
112 sabedoria Isso pode permitir ao sophoacutes orientar melhor suas accedilotildees de modo a realizar uma
vida agradaacutevel mesmo em situaccedilotildees de sofrimento
113
CAPIacuteTULO 03
A PRAacuteXIS COMO A PRAGMATEIacuteA NO MODO DE AGIR
No capiacutetulo anterior procuramos caracterizar a meditaccedilatildeo (tograve meleacutetema) como um
exerciacutecio que busca espelhar na alma um saber acerca da phyacutesis Trata-se de uma ocupaccedilatildeo
permanente e voltada para buscar compreender a proacutepria existecircncia e procurar viver conforme
esse entendimento em oposiccedilatildeo agraves kenaigrave doacutexai Eacute por meio de uma praacutetica orientada para
edificar um pensamento de acordo com a natureza que o saacutebio exercita a liberdade ante as
opiniotildees vazias e ao mesmo tempo administra uma therapeiacutea agrave psycheacute que liberta de
perturbaccedilotildees e temores infundados pode se voltar para a realizaccedilatildeo dos prazeres
fundamentais agrave makariacuteos zecircn Nesse entendimento a meditaccedilatildeo se constitui como um
exerciacutecio eacutetico ela desenvolve uma disposiccedilatildeo (diaacutethesis) para pensar e agir livre das
convenccedilotildees que natildeo tecircm na natureza um paradigma de realizaccedilatildeo e portanto natildeo resultaria
em um modo autecircntico de viver
Tambeacutem tentamos mostrar a meditaccedilatildeo como atividade relacionada agrave necessidade de
amadurecer no saacutebio a seguranccedila a confianccedila (piacutestis) com relaccedilatildeo agrave possibilidade de
realizaccedilatildeo de uma vida feliz quando o saber a respeito da phyacutesis eacute projetado em um eacutethos
conforme a natureza Para isso meditar engaja inclina a alma a querer por ela mesma buscar
as condiccedilotildees para sua felicidade a estabelecer uma praacutetica em torno de realizaacute-la Em tal
horizonte compreendemos a afirmaccedilatildeo de Epicuro segundo a qual ldquodevemos entatildeo meditar
sobre tudo o que possa proporcionar a felicidade para que se a temos tenhamos tudo e se
natildeo a temos faccedilamos tudo para tecirc-lardquo (DL X 122)1
Nesse mesmo sentido diz-se na Carta a Meneceu que para gozar de uma vida feliz eacute
necessaacuterio colocar em accedilatildeo (praacutette) o saber acerca da natureza (DL X 123)2 Tal afirmaccedilatildeo
delineia o sentido da pragmateiacutea epicurista tanto quanto remete para uma mudanccedila na
compreensatildeo sobre o que deve orientar a conduta humana Como discutimos em paacuteginas
anteriores a perspectiva epicurista eacute a de instrumentalizar a alma atraveacutes de exerciacutecios de
meditaccedilatildeo para afastaacute-la da influecircncia das opiniotildees vazias e a considerar um paracircmetro mais
1 μελετᾶν οὖν χρὴ τὰ ποιοῦντα τὴν εὐδαιμονίαν εἴπερ παρούσης μὲν αὐτῆς πάντα ἔχομεν ἀπούσης δὲ πάντα πράττομεν εἰς τὸ ταύτην ἔχειν 2 Cf nota 28 da introduccedilatildeo
114 natural a partir do qual se possa pensar a finalidade das accedilotildees A ideia eacute por meio de uma
investigaccedilatildeo da natureza chegar agrave definiccedilatildeo de um paradigma para o agir diferente daquele
que os muitos buscam nos deuses - sujeitos agrave desmesura (hyacutebris) encetada pelos desejos pela
coacutelera pela cupidez Se eacute preciso um modelo divino para inspirar o homem que seja
fundamentado na physiologiacutea e por isso expresse as noccedilotildees de equiliacutebrio e de autarquia
conforme defende Epicuro (DL X 123) Eacute nesse contexto que a praacutexis epicurista pode ser
concebida como sendo toda atividade do homem orientada por um saber que visa restituir a
mesma naturalidade divina ao exerciacutecio da vida humana
Isso nos remete para imaginar que ao delinear os caminhos para se alcanccedilar a
sabedoria Epicuro natildeo trabalha a partir de categorias de pensamento para depois aplicaacute-las ao
entendimento da realidade em especial da conduta humana O caminho eacute outro parte-se da
phyacutesis para compreender e postular o agir e o teacutelos das accedilotildees O sophoacutes eacute venerado porque ele
remete para uma forma de se conduzir orientada por necessidades naturais e para finalidades
pensadas dentro dos limites da natureza Daiacute Epicuro dizer que o exerciacutecio da sabedoria vai
consistir em pocircr em accedilatildeo os preceitos comunicados (pela physiologiacutea) com a confianccedila ou
bem persuadidos (pepeismeacutenoi gnesiacuteos)3 da possibilidade de ser feliz Eacute a compreensatildeo sobre
como a natureza pode servir de modelo para a makariacuteos zecircn que vai orientar o fazer do saacutebio
no mundo a partir de seu poder de escolher e rejeitar sem a sujeiccedilatildeo aos valores
convencionados artificialmente
Aqui vale ressaltar partindo do referenciado por Bailly4 e por Silva5 a forma
imperativa prᾶtte6 e a forma substantiva praacutexis7 tecircm origem no termo praacutesso8 que remete
para a noccedilatildeo de ato execuccedilatildeo tarefa A praacutexis (praacutexis) epicurista eacute accedilatildeo conduta praacutetica de
uma liberdade de escolha orientada para a definiccedilatildeo de um modo mais natural de ser Ao
refletir sobre a phyacutesis busca-se a partir dela uma fundamentaccedilatildeo para conduzir a uma accedilatildeo
saacutebia seja nas relaccedilotildees estabelecidas em sociedade seja na maneira de lidar com a proacutepria
natureza Sendo assim a praacutexis ao buscar realizar um modo saacutebio de se colocar no mundo a
partir de um saber sobre a natureza nos remete para uma indissociaccedilatildeo entre a eacutetica e a
physiologiacutea
Ora pensar a vida pelo prisma da physiologiacutea e procurar viver a partir desse
3 πεπεισμένοι γνησίως (DL X 130) Gama Cury traduz como ldquosinceramente persuadidordquo 4 Anatole Bailly Op Cit 5 Markus Silva Termos Filosoacuteficos de Epicuro Op Cit 6 DL X 123 7 DL X 81 135 148 185 8 Πράσσω
115 conhecimento ao mesmo tempo em que define o sentido da praacutexis epicurista tambeacutem nos
remete a uma concepccedilatildeo de filosofia elaborada como um saber em torno da vida ou uma arte
de viver No contexto desta inter-relaccedilatildeo entre uma compreensatildeo physioloacutegica do mundo e o
modo como se vive visando realizar uma vida feliz eacute possiacutevel sublinhar o papel praacutetico da
filosofia do Jardim projetado na figura do sophoacutes Nesse ideal a vida pretendida a vida
filosoacutefica consiste na aplicaccedilatildeo constante desse saber ao exerciacutecio de viver Nesses termos a
praacutexis eacute conhecimento aplicado ao dia a dia na construccedilatildeo cotidiana de atitudes voltadas para
a liberdade e o prazer E na medida em que a sabedoria remete para uma ocupaccedilatildeo com a
consecuccedilatildeo de um eacutethos katagrave phyacutesin ela estaacute realizando a pragmateiacutea epicurista Daiacute
podermos dizer que a pragmateiacutea se efetiva como modo de viver por meio do saacutebio de sua
praacutexis
Partindo da ideia segundo a qual o sentido da praacutexis estaacute em estabelecer uma maneira
de se conduzir na vida guiada pela physiologiacutea e tendo em vista a makariacuteos zecircn seria o caso
de tambeacutem compreender essa praacutexis como toda conduta orientada por um pensamento
esclarecido com relaccedilatildeo aos limites em que se circunscreve a felicidade e a possibilidade
praacutetica de experimentaacute-la Isso nos remete para pensar as accedilotildees do sophoacutes como o exerciacutecio
de uma disposiccedilatildeo (diaacutethesis) para natildeo soacute se desvencilhar dos valores e desejos que projetam
a felicidade para aleacutem da phyacutesis mas principalmente para encetar um agir autaacuterquico
condiccedilatildeo fundamental para edificar um modo de viver mais autecircntico mais natural Afinal ao
entender - dentro dos limites da phyacutesis - o que pode o homem o saacutebio direciona suas accedilotildees
essencialmente para o necessaacuterio agrave sua realizaccedilatildeo Isso permite identificar na praacutexis epicurista
uma ligaccedilatildeo entre a praacutetica da sabedoria a investigaccedilatildeo da natureza e o exerciacutecio da
liberdade Eacute como sophoacutes-physiologoacutes-autaacuterkes que se definem e realizam as condutas
transformadoras da experiecircncia de existir E isso se daacute meio agrave necessidade de estabelecer um
eacutethos espelhado em um paradigma natural Para tanto eacute preciso viver exercitando esse saber
sobre a natureza (DL X 123) e natildeo legitimando e reproduzindo o colocado socialmente como
norma convenccedilatildeo haacutebito
Postulamos no capitulo anterior que a meditaccedilatildeo liberta a alma das opiniotildees vazias e
isso permite ao saacutebio agir a partir de si mesmo Agora podemos dizer que aleacutem de agir a partir
de si mesmo ele age para si mesmo E natildeo cabe aqui nenhuma interpretaccedilatildeo dessa afirmaccedilatildeo
no sentido de uma atitude egoiacutesta do sophoacutes O direcionamento eacute outro o agir para si estaacute
relacionado agrave possibilidade de escolher uma maneira de viver afirmativa da proacutepria liberdade
com mais equiliacutebrio e mais prazer E isso como vimos remete para bem-estar (eustatheiacutea)
116 para a ausecircncia de distuacuterbio no corpo (aponiacutea) e de perturbaccedilatildeo na alma (ataraxiacutea) Se em
outros momentos da histoacuteria a filosofia pensava o homem virtuoso como aquele que
edificava os valores ligados agrave poacutelis agrave democracia agrave poliacutetica agora o direcionamento eacute para os
valores que remetem para uma vida tranquila livre autecircntica e feliz Essa perspectiva norteia
nossas reflexotildees a respeito da praacutexis epicurista de como ela define a imagem do saacutebio como
aquele que vive como um deus entre os homens e da filosofia como o exerciacutecio da sabedoria
31 ndash A praacutexis do saacutebio escolher e recusar
Epicuro acredita na possibilidade de viver ldquocomo um deus entre os homensrdquo (DL X
135)9 e em torno dessa projeccedilatildeo constroacutei o que jaacute foi referido como uma ldquoutopia epicuristardquo
(ETIENNE amp OrsquoMEARA 1996 p 101)10 Natildeo cremos ser o termo utoacutepico o mais adequado
para se referir a esse ideal afinal a experiecircncia vivida no Jardim por Epicuro e seus
disciacutepulos aponta no sentido contraacuterio de algo realizaacutevel factiacutevel como estamos tentando
mostrar aqui ao caracterizar a filosofia epicurista como uma pragmateiacutea que se realiza como
exerciacutecios eacuteticos E um testemunho de Dioacutegenes de Œnoanda usado para delinear o horizonte
dessa evocada ldquoutopiardquo nos serve justamente para evidenciar essa dimensatildeo do que eacute possiacutevel
ao homem quando orienta suas accedilotildees pelo saber inteligido ao investigar a phyacutesis Vejamos
[] uma vez que nem todos tecircm o poder Mas se noacutes o supomos possiacutevel entatildeo verdadeiramente a vida dos deuses passaraacute aos homens Porque todas as coisas seratildeo plenas de justiccedila e de amor muacutetuo e natildeo haveraacute necessidade de fortificaccedilotildees ou de leis e de todas essas coisas que noacutes criamos por causa dos outros (Œno fr 56 II)11
Embora o fragmento esteja incompleto podemos aventar a possibilidade em
consonacircncia ao conjunto da filosofia epicurista que esse poder do qual fala Dioacutegenes pode ser
o de escolher Como vimos no segundo capiacutetulo deste trabalho somente quem liberta a alma
das concepccedilotildees vazias das convenccedilotildees colocadas pela cultura religiatildeo pelas kenaigrave doacutexai
pode agir por si mesmo e direcionar suas escolhas para satisfazer os desejos ligados ao
exerciacutecio de uma vida autaacuterquica e feliz Saacutebio eacute quem pensa suas necessidades pelo prisma
do natural e do necessaacuterio pois isso lhe permite experimentar o mesmo sentido de autaacuterkeia
que Epicuro usa para caracterizar o permanente estado de liberdade e imperturbabilidade dos
9 ζήσῃ δὲ ὡς θεὸς ἐν ἀνθρώποις 10 La philosophie Eacutepicurienne sur Pierre op cit 11 [] puisque tous nrsquoen ont pas le pouvoir Mais si nous le supposons possible alors veacuteritablement la vie des dieux passera aux hommes Car toutes choses seront pleines de justice et drsquoamour mutuel e il nrsquoy aura pas besoin de fortifications ou de lois et de toutes ces choses que nous fabriquons agrave cause des autres
117 deuses Dessa forma eacute possiacutevel confiar que a vida deles pode ser experienciada pelos
homens mas natildeo por todos porque nem todos exercitam a alma para escolher livremente e
nem escolhem em funccedilatildeo do prazer E como para Epicuro ldquoo fruto maior do bastar-se a si
mesmo eacute a liberdaderdquo quem natildeo busca a autarquia distancia-se desse ideal
Entatildeo se Epicuro venera os theoigrave como modelo de serenidade de autarquia eacute para
projetar na figura do sophoacutes essa aspiraccedilatildeo de vida Ele o saacutebio eacute quem pode realizar essa
ldquoutopiardquo que consiste em viver ldquocomo um deus entre os homensrdquo (DL X 135)12 ou seja sem
preocupaccedilotildees sem medos sem ser assujeitado por desejos sem causar males aos outros nem
os sofrer Dioacutegenes fiel agrave filosofia epicurista tenta desenhar em seu testemunho um lugar
onde prevalece o justo (diacutekaios) e o amor muacutetuo Ora a justiccedila (dikaiosyacutene) para Epicuro
consiste em um ldquopacto no sentido de natildeo prejudicar nem ser prejudicadordquo (DL X 33)13 eacute
portanto algo construiacutedo entre os proacuteprios homens E o amor correspondido remete para a
noccedilatildeo de amizade (philiacutea) Esse termo se refere a relaccedilotildees estabelecidas livremente entre
pessoas em funccedilatildeo de afinidades do contentamento proporcionado Portanto tambeacutem remete
ao poder de escolher Considerando que onde o justo prevalece natildeo haacute desequiliacutebrio e onde a
amizade estaacute presente tambeacutem haacute seguranccedila tranquilidade e satisfaccedilatildeo entatildeo esse ideal de
vida divina eacute possiacutevel a depender da maneira de se portar no mundo e dos valores que guiam
o agir dos homens E isso estaacute relacionado a um modo especiacutefico de compreender a realidade
e de escolher em funccedilatildeo dessa compreensatildeo E o saacutebio traduz esse sentido ao orientar sua
praacutexis de modo a colocar-se na vida como justo e amigo
Para realizar esse modo de existir dos deuses - livre e feliz - eacute preciso conferir agrave vida
mais naturalidade E isso depende do homem fazer com que suas accedilotildees correspondam com o
modo proacuteprio de ser da natureza Vale lembrar que a physiologiacutea aponta para uma
compreensatildeo da phyacutesis a qual natildeo tem sua dyacutenamis determinada ou perturbada por nada
exterior a ela No mesmo paralelo um eacutethos liberto e tranquilo pode ser realizado mediante
escolhas e recusas voltadas para espelhar esse modo natural de ser Assim a liberdade como a
possibilidade de agir por si mesmo e a felicidade como um estado equilibrado dizem respeito
a um exerciacutecio a uma construccedilatildeo a uma praacutexis katagrave phyacutesin
Eacute nesse sentido que objetivo das accedilotildees do saacutebio vai ser orientado para a realizaccedilatildeo da
proacutepria felicidade e todas as escolhas e recusas vatildeo ter em mira esse teacutelos Em cima desse
direcionamento o homem procura exercitar a sabedoria no agir definindo uma praacutexis
12 ζήσῃ δὲ ὡς θεὸς ἐν ἀνθρώποις 13 συνθήκη τις ὑπὲρ τοῦ μὴ βλάπτειν ἢ βλάπτεσθαι
118 fundamentada no seu poder discernir o fundamental para uma vida feliz Dioacutegenes de
Œnoanda faz um comentaacuterio nesse sentido opondo o que se deve evitar ao que se deve
escolher e definindo a filosofia como uma praacutetica relacionada agrave escolha daquilo do que
proporciona felicidade
[ muitos] procuram filosofar a fim de obter para si coisas de indiviacuteduos ou de reis para quem a filosofia eacute tida como um bem precioso Natildeo eacute contudo para ter uma dessas coisas mencionadas que noacutes empreendemos essa praacutetica ltda filosofiagt mas para ser feliz tendo conquistado a finalidade da natureza (Œno fr 29 I e II)14
Essa relaccedilatildeo pretendida entre a realizaccedilatildeo de uma maneira saacutebia de viver e a filosofia
tem em conta que a makariacuteos zecircn buscada pelo saacutebio soacute eacute possiacutevel se ele escolher o prazer e
sobre essa finalidade estabelecer seu modo de viver E isso volta a nos remeter para a
importacircncia de ter a natureza como paradigma e natildeo as convenccedilotildees fundadas em opiniotildees
vazias Assim o teacutelos das accedilotildees do sophoacutes natildeo estaacute projetado no que os muitos professam
(riqueza gloacuteria poder) mas em estabelecer um eacutethos dentro dos limites da natureza A vida
saacutebia eacute tranquila frugal alegre e autaacuterquica e a praacutexis epicurista visa justamente isso Vale
lembrar quando tratamos da vida katagrave phyacutesin no capiacutetulo I destacamos que o saacutebio escolhe
em funccedilatildeo da necessidade e isso estaacute relacionado a buscar satisfazer os desejos naturais e
necessaacuterios e afastar-se daqueles que nem satildeo naturais e nem necessaacuterios Ao circunscrever
suas vontades aos limites da phyacutesis o saacutebio exercita o domiacutenio sobre si mesmo e experimenta
uma independecircncia para fazer escolhas e recusas objetivando edificar a proacutepria felicidade
Escolher e recusar com sabedoria depende nesse caso da possibilidade de se distanciar das
opiniotildees vazias Aiacute se mostra a importacircncia da physiologiacutea para a praacutexis epicurista O saacutebio
age a partir de criteacuterios e raciociacutenios que desconstruindo essas opiniotildees e edificando um
loacutegos de acordo com a phyacutesis conduzem a escolher em funccedilatildeo de ser feliz
Mas essas escolhas e recusas tambeacutem incidem sobre sentimentos pois haacute aqueles
relacionados agrave construccedilatildeo de uma vida feliz e aqueles que afastam o homem desse objetivo
Diante disso o saacutebio procura compreendecirc-los e administraacute-los uma vez que eles podem
direcionar a accedilatildeo tanto para o bem quanto para o mal Sobre esse aspecto Epicuro afirma ldquoas
causas dos males praticados pelos homens satildeo o oacutedio a inveja e o desprezordquo (DL X 75)
Ora o mal aqui eacute entendido como o sofrimento e natildeo eacute possiacutevel ser feliz se as accedilotildees satildeo
14 [beaucoup] cherchent agrave philosopher afin de se procurer ces choses aupregraves des particuliers ou des roacuteis chez qui la philosophie est tecircnue pour une grande et preacutecieuse possession Ce nrsquoest donc pas afin drsquoavoir une des choses susmentionneacutees que nous avons entrepris cete pratique ltde la philosophiegt mas pour ecirctre heureux ayant acquis la fin rechercheacutee par la nature
119 orientadas para essa finalidade assim como natildeo eacute possiacutevel pensar a ataraxiacutea e o equiliacutebrio por
meio de uma praacutexis motivada pela tristeza pelo rancor pelos desafetos
Em face desse problema a filosofia epicurista postula que ldquoas lsquoafecccedilotildeesrsquo15 natildeo satildeo
incompatiacuteveis com a busca da sabedoria Ainda que o epicurismo recuse a apaacutetheia a perfeita
insensibilidade do saacutebio estoico o saacutebio natildeo estaacute contudo assujeitado agraves paixotildees
propriamente ditasrdquo (RODIS-LEWIS 1975 p 204) Assim natildeo eacute o caso de negar a existecircncia
desses sentimentos nem de ficar agrave mercecirc deles nem de ficar indiferente a eles Ao contraacuterio
eacute em torno deles que o saacutebio coloca em exerciacutecio a pragmateiacutea fazendo convergir uma
compreensatildeo sobre a natureza para a praacutetica da autaacuterkeia o que resulta na possibilidade de
um autodomiacutenio pois incompatiacutevel agrave sabedoria eacute natildeo ter o domiacutenio sobre a vontade e isso
revela uma alma adoecida pelas paixotildees e enfraquecida em sua capacidade de determinaccedilatildeo
Nesse sentido o oacutedio a inveja o desprezo satildeo sentimentos relacionados aos deuses
dos muitos mas natildeo agrave concepccedilatildeo de divindade postulada pelo epicurismo e tomada como
modelo para a praacutexis humana Se os theoigrave epicuristas natildeo tecircm coacutelera nem desejam aleacutem de sua
autossuficiecircncia eacute porque esse eacute seu modo natural de existir e o saacutebio toma isso como
referecircncia para orientar suas escolhas e recusas Dessa forma o sentimento de inveja que o
sophoacutes poderia sentir ao perceber a riqueza dos outros eacute anulado pela compreensatildeo de que o
necessaacuterio basta e faz feliz enquanto o excessivo remete para uma busca sem fim e sem
sossego A esse sentimento ele contrapotildee a alegria de quem ri e governa sua vida orientado
pela reta filosofia (SV 41) Pois foi investigando a natureza e meditando sobre ela que ele
compreendeu que ldquonatildeo se deve ter inveja de ningueacutem os bons natildeo satildeo dignos de inveja e os
maus quanto mais afortunados tanto mais eles se prejudicam a si mesmosrdquo (SV 53)16 Do
mesmo modo a raiva o oacutedio o rancor e outros sentimentos da mesma espeacutecie tambeacutem
podem ser submetidos a uma ponderaccedilatildeo quanto agraves suas causas e consequecircncias Esta
sentenccedila de Epicuro pode ajudar na compreensatildeo desse aspecto
Com efeito as coacuteleras acontecem aos que geraram contra os que nasceram segundo o que eacute preciso eacute vatildeo por isso mesmo colocar-se em posiccedilatildeo
15 Nos textos de Epicuro o termo paacutethos diz respeito agraves afecccedilotildees que sentimos mediante o contato entre nossos sentidos e o mundo fenomecircnico Mas tambeacutem pode se referir em sentido menos teacutecnico aos sofrimentos da alma causados pelo desequiliacutebrio do corpo-carne No que diz respeito ao emprego desse vocaacutebulo para se referir agraves paixotildees encontramos apenas uma referecircncia nas Sentenccedilas Vaticanas onde se diz rdquosuprimindo o olho no olho (o olhar direcionado) as relaccedilotildees muacutetuas e a convivecircncia o sentimento amoroso se dissiparsquo Em grego Ἀφαιρουμένης προσόψεως καὶ ὁμιλίας καὶ συναναστροφῆς ἐκλύεται τὸ ἐρωτικὸν πάθος (SV 18) E aqui estamos tratando justamente desse tipo de sentimento dessas paixotildees que podem exercer um domiacutenio sobre o homem e condicionar suas accedilotildees 16 Οὐδενὶ φθονητέονmiddot ἀγαθοὶ γὰρ οὐκ ἄξιοι φθόνου πονηροὶ δὲ ὅσῳ ἂν μᾶλλον εὐτυχῶσι τοσούτῳ μᾶλλον αὑτοῖς λυμαίνονται
120 contraacuteria e natildeo ir em busca de encontrar compreensatildeo e se eacute segundo o que natildeo eacute preciso mas sem muita razatildeo eacute ridiacuteculo aquele que estaacute possuiacutedo pela emoccedilatildeo aticcedilar mais ainda a falta de razatildeo e natildeo procurar mudar segundo outros modos benevolentes (mais suaves) (SV 62) 17
Evidentemente temos aiacute como enquadramento a relaccedilatildeo entre pais (que geraram) e
filhos (que nasceram) Mas o entendimento pode ser aplicado a outras circunstacircncias da vida
onde haja uma disposiccedilatildeo para reagir movido por sentimentos de agressividade de irritaccedilatildeo
A ideia colocada eacute a da irracionalidade em alimentar esse paacutethos com relaccedilatildeo a quem frustra
com razatildeo os desejos de outrem tambeacutem de ser inuacutetil adotar accedilotildees movidas pela raiva contra
aquele que mesmo sem fundamento castra vontades ou tolhe opiniotildees No primeiro caso
porque eacute injusto no segundo porque incita ainda mais o confronto Com isso coloca-se a
necessidade de dominar essas inclinaccedilotildees por meio do logismoacutes e da phroacutenesis para rejeitar
todo comportamento reativo gerador para si e para os outros de perturbaccedilatildeo e desequiliacutebrio
A eacutetica epicurista estaacute centrada no poder de escolher e recusar do homem Mas eacute
preciso considerar que haacute coisas sobre as quais ele tem domiacutenio e outras natildeo A filosofia
entatildeo vai ter sua importacircncia ao desenvolver nele um discernimento para saber esses limites e
definir dentro deles uma praacutexis direcionada para o prazer a alegria a tranquilidade Dessa
forma para o saacutebio sentimentos como rancor inveja despeito estatildeo intimamente ligados a
uma compreensatildeo enviesada a respeito da phyacutesis e quanto aos valores fundamentais para a
realizaccedilatildeo da felicidade e por isso contaminam os relacionamentos e adoecem a alma Eles
remetem para a artificializaccedilatildeo da vida das relaccedilotildees e se opotildeem agrave noccedilatildeo de uma natureza
equilibrada
Por isso ao contraacuterio da poacutelis no Jardim se ensina que natildeo haacute necessidade de
estimular a ambiccedilatildeo a disputa de querer sempre mais do que o outro pode ter Ao contraacuterio
postula-se o bem-estar promovido por uma vida frugal Ao pensar um modo de vida onde a
inveja a competiccedilatildeo a disputa a exploraccedilatildeo natildeo prevalecem diante do sentimento de
comunidade de amizade esses sentimentos que causam inquietude inseguranccedila medo
perdem o sentido E isso estaacute ligado a escolher entre ter o necessaacuterio agrave felicidade ou querer
ter sempre mais O saacutebio escolhe guiado pelo saber a respeito da phyacutesis tendo em mira a
felicidade e os limites aos quais ela se circunscreve E isso lhe permite ter a compreensatildeo que
natildeo eacute da natureza do homem sentir oacutedio inveja desprezo e a escolher se afastar de relaccedilotildees
estimuladoras desses sentimentos
17 Εἰ γὰρ κατὰ τὸ δέον ὀργαὶ γίνονται τοῖς γεννήσασι πρὸς τὰ ἔκγονα μάταιον δήπουθέν ἐστι τὸ ντιτείνειν καὶ μὴ παραιτεῖσθαι συγγνώμης τυχεῖν εἰ δὲ μὴ κατὰ τὸ δέον ἀλλὰ ἀλογώτερον γελοῖον πᾶν τὸ πρὸς ἔκκλησιν ltἐκκαλεῖνgt τὴν ἀλογίαν θυμῷ κατέχοντα καὶ μὴ ζητεῖν μεταθεῖναι κατrsquo ἄλλους τρόπους εὐγνωμονοῦντα
121 32 ndash A accedilatildeo modulada pelo logismoacutes e pela phroacutenesis
Dissemos anteriormente que para Epicuro o mal deriva do oacutedio da inveja e do
desprezo E tambeacutem que esses natildeo satildeo sentimentos naturais mas reflexos de uma forma de
viver fundamentada em concepccedilotildees vazias Resultaria disso uma desmesura (hyacutebris) e
portanto um desequiliacutebrio que natildeo se repercute na alma do saacutebio nem nas accedilotildees dele Isso
porque ele guia suas conduta pelo logismoacutes e pela phroacutenesis ancorados na physiologiacutea Para
explicar esse raciociacutenio vamos considerar o seguinte testemunho da Carta a Meneceu
Natildeo eacute uma sucessatildeo ininterrupta de banquetes e festas nem o prazer sexual com meninos e mulheres nem a degustaccedilatildeo de peixes e outras iguarias oferecidas por uma mesa suntuosa que proporciona a vida agradaacutevel e sim um caacutelculo soacutebrio (logismograves) que investigue as causas de toda escolha e de toda rejeiccedilatildeo e elimine as opiniotildees vatildes por obra das quais um intenso tumulto de apossa das almas (DL X 132)18
A praacutexis epicurista edifica o modo de viver do saacutebio a partir de uma compreensatildeo da
phyacutesis e natildeo de acordo com os valores predominantes na poacutelis Por meio da physiologiacutea satildeo
pensados os limites naturais para o agir e as finalidades das accedilotildees Se o objetivo maior disso eacute
dar um direcionamento para tornar possiacutevel fazer da vida um exerciacutecio de liberdade
serenidade e equiliacutebrio entatildeo o foco recai em poder estabelecer uma medida que impeccedila o
saacutebio de agir contra a natureza Isso implica na necessidade de pensar a partir do saber
physioloacutegico para poder deliberar de forma a escolher e rejeitar visando realizar um modo
saacutebio de viver
O termo empregado por Epicuro para definir essa capacidade da psycheacute para calcular
avaliar e com isso poder fazer escolhas eacute logismoacutes19 Por meio dessa faculdade a alma pode
pensar uma conduta dentro dos limites do natural e necessaacuterio e evitar que a vontade se
projete em desmesuras e desequiliacutebrios O logismoacutes ldquotem a finalidade de na medida do
possiacutevel livraacute-la do erro e do engano nos julgamentos e opiniotildees que venha a manifestarrdquo
(SILVA 2003 73) Isso nos remete para uma ideia de intencionalidade que vai gerir toda a
conduta do saacutebio Sua praacutexis tem no logismoacutes a possibilidade de uma reflexatildeo voltada para
avaliar selecionar e escolher em funccedilatildeo da sua compreensatildeo da natureza e de realizar um
modo de vida identificado com ela Daiacute porque ldquoraramente a sorte prejudica um homem saacutebio
pois as coisas principais e fundamentais sempre foram governadas pela razatildeo (logismoacutes) e 18 οὐ γὰρ πότοι καὶ κῶμοι συνείροντες οὐδrsquo ἀπολαύσεις παίδων καὶ γυναικῶν οὐδrsquo ἰχθύων καὶ τῶν ἄλλων ὅσα φέρει πολυτελὴς τράπεζα τὸν ἡδὺν γεννᾷ βίον ἀλλὰ νήφων λογισμὸς καὶ τὰς αἰτίας ἐξερευνῶν πάσης αἱρέσεως καὶ φυγῆς καὶ τὰς δόξας ἐξελαύνων ἐξ ὧν πλεῖστος τὰς ψυχὰς αταλαμβάνει θόρυβος 19 DL X 32 39 75 76 117 132 144 145
122 por todo o curso da vida a razatildeo as governa e governaraacuterdquo (DL X 144)20 Por isso Epicuro
coloca o logismoacutes como essa faculdade da alma que proporciona uma vida agradaacutevel pois
sem ela os desejos se desgovernam e se projetam sem limites desequilibrando o homem e o
colocando agrave mercecirc de necessidades nem naturais e nem necessaacuterias
A accedilatildeo saacutebia eacute consequecircncia da deliberaccedilatildeo e esta eacute orientada por esse caacutelculo
racional Mas eacute preciso uma disposiccedilatildeo para agir segundo o logismoacutes Estamos aiacute no acircmbito
da phroacutenesis Esse vocaacutebulo eacute traduzido por sensatez prudecircncia ldquovontade esclarecidardquo e
sabedoria21 Mas para aleacutem de uma traduccedilatildeo eacute preciso entender o valor circunscrito por essa
palavra ldquoEpicuro utiliza o termo phroacutenesis num sentido muito similar agravequele desenvolvido
por Aristoacuteteles ou seja como lsquosabedoria praacuteticarsquordquo (SILVA 2003 p 74) Assim poderiacuteamos
pensar sob a perspectiva de uma sabedoria no agir A phroacutenesis em Epicuro diz respeito ao
aspecto praacutetico da sua filosofia a uma disposiccedilatildeo para se conduzir orientado por um saber
physioloacutegico tendo em vista realizar uma vida feliz
Isso nos permite estabelecer uma relaccedilatildeo entre phroacutenesis e praacutexis em torno da
realizaccedilatildeo de um eacutethos fundamentado na natureza Se a filosofia epicurista visa apontar um
caminho para viver naturalmente sem se assujeitar a convenccedilotildees vazias a phroacutenesis eacute a
virtude que conduz o exerciacutecio desse modo natural de vida Isso porque pela compreensatildeo
epicurista a makariacuteos zecircn consiste em agir orientado pela physiologiacutea e a phroacutenesis daacute a
medida desse agir Ela modula os desejos iacutempetos sentimentos e permite governar as accedilotildees
de modo a poder escolher e recusar em funccedilatildeo de um teacutelos katagrave phyacutesin Nesse sentido haacute uma
extensatildeo entre a filosofia e phroacutenesis onde esta remete para a praacutexis filosoacutefica atraveacutes da qual
a pragmateiacutea passa a ser espelhada no modo de viver do saacutebio
Nos textos de Epicuro tanto a noccedilatildeo de phroacutenesis quanto a de filosofia se referem a
um exerciacutecio que prepara os ldquoaacutegeis e autaacuterquicosrdquo22 termos que remetem para uma atividade
para uma disposiccedilatildeo mas tambeacutem para um aspecto de liberdade que caracteriza as accedilotildees do
saacutebio Sua conduta eacute determinada a partir de sua faculdade de pensar e escolher por si mesmo
Isso faz pensar o phroneacuteo como quem intelige do estudo da natureza a orientaccedilatildeo para seus
modos e projeta a finalidade das suas accedilotildees em conformidade com o sentido de uma vida katagrave
phyacutesin Em vista disso a praacutexis do sophoacutes vai se desenvolver orientada para a autaacuterkeia e
para o prazer
20 Βραχέα σοφῷ τύχη παρεμπίπτει τὰ δὲ μέγιστα καὶ κυριώτατα ὁ λογισμὸς διῴκηκε καὶ κατὰ τὸν συνεχῆ χρόνον τοῦ βίου διοικεῖ καὶ διοικήσει 21 Ver tambeacutem nota 74 do capitulo I 22 Cf nota 98 do capiacutetulo I
123 Podemos perceber diante do exposto que a phroacutenesis pensada como sabedoria praacutetica
natildeo se opotildee agrave investigaccedilatildeo da natureza nem estaacute distanciada dela A sabedoria epicurista
implica um saber sobre a phyacutesis a partir do qual satildeo definidas as accedilotildees para conduzir a uma
vida feliz A phroacutenesis ldquotraduzrdquo esse saber em uma disposiccedilatildeo para exercitar uma maneira de
ser fundamentada pela physiologiacutea Natildeo havendo esse conflito
a questatildeo passa a ser para Epicuro como tornar possiacutevel filosofar tanto no sentido praacutetico quanto no teoreacutetico portanto eacute forccediloso admitir que eacute a phroacutenesis que conduz este processo porque ela daacute ao homem o poder de refletir acerca do que eacute natural e necessaacuterio saber tanto do ponto de vista praacutetico quanto teoacuterico (SILVA 2003 p 74)
Dada essa importacircncia da phroacutenesis no contexto da filosofia epicurista precisamos
expor aqui uma discussatildeo com relaccedilatildeo agrave compreensatildeo do seguinte passo da Carta a Meneceu
O principio de tudo isso e o maior bem eacute a sabedoria (phroacutenesis) consequentemente a possessatildeo mais preciosa da proacutepria filosofia eacute a sabedoria origem natural de todas as outras formas de excelecircncias restantes com efeito ela nos ensina que natildeo se pode levar uma vida agradaacutevel se natildeo se vive com sabedoria moderaccedilatildeo e justiccedila nem se pode levar uma vida saacutebia moderada e justa se natildeo se vive agradavelmente As formas de excelecircncia satildeo concomitantes com a vida agradaacutevel e a vida agradaacutevel eacute inseparaacutevel delas (DL X 132)23
Essa traduccedilatildeo de Maacuterio da Gama Kury leva a entender a phroacutenesis como algo de que a
filosofia dispotildee Esse raciociacutenio comeccedila algumas linhas antes24 quando Epicuro fala ser
necessaacuterio investigar as causas de toda escolha e de toda rejeiccedilatildeo e eliminar as opiniotildees
vazias motivo de perturbaccedilatildeo da alma Essa atividade de investigaccedilatildeo e depuraccedilatildeo requer o
exerciacutecio da phroacutenesis no sentido de desenvolver uma vontade esclarecida e uma accedilatildeo
correspondente Mas esse esclarecimento eacute buscado na physiologiacutea Assim tanto a phroacutenesis
quanto a physiologiacutea satildeo pensadas como meio dos quais a filosofia epicurista faz uso para se
realizar enquanto saber para vida Nesse sentido fica difiacutecil postular que a physiologiacutea e
mesmo a phroacutenesis tenham importacircncia superior agrave proacutepria filosofia como postula M Conche
ao propor outra traduccedilatildeo para a frase em questatildeo ldquoe por isso mais preciosa mesmo que a
filosofia eacute a prudecircncia (phroacutenesis)25 da qual provecircm todas as outras virtudes ()rdquo (CONCHE
23 Τούτων δὲ πάντων ἀρχὴ καὶ τὸ μέγιστον ἀγαθὸν φρόνησις διὸ καὶ φιλοσοφίας τιμιώτερον ὑπάρχει φρόνησις ἐξ ἧς αἱ λοιπαὶ πᾶσαι πεφύκασιν ἀρεταί διδάσκουσα ὡς οὐκ ἔστιν ἡδέως ζῆν ἄνευ τοῦ φρονίμως καὶ καλῶς καὶ δικαίως ltοὐδὲ φρονίμως καὶ καλῶς καὶ δικαίωςgt ἄνευ τοῦ ἡδέως συμπεφύκασι γὰρ αἱ ἀρεταὶ τῷ ζῆν ἡδέως καὶ τὸ ζῆν ἡδέως τούτων ἐστὶν ἀχώριστον 24 Cf nota 18 deste capiacutetulo 25 O termo phroacutenesis eacute traduzido como sabedoria prudecircncia e tambeacutem como vontade esclarecida conforme sublinhamos na nota 74 do capiacutetulo I
124 1977 p 225)26
Podemos tambeacutem opor a esse entendimento de M Conche tambeacutem reproduzido por
G Rodis-Lewis27 a anaacutelise sintaacutetica segundo a qual a ldquoφιλοσοφία no nominativo eacute o sujeito
de uma proposiccedilatildeo da qual φρόνησις eacute o atributo e o comparativo neutro com valor
adverbial refere-se a ὑπάρχειrdquo (BOLLACK 1975 p 130) Por isso eacute o caso de pensar que a
filosofia conteacutem a phroacutenesis e natildeo o contraacuterio Eacute no sentido dessa anaacutelise sintaacutetica que
estudiosos como G Arrighetti J Bollack e M Silva compartilham da ideia de natildeo haver uma
primazia dessa virtude com relaccedilatildeo agrave filosofia Haacute de se considerar as virtudes como um
meio28 para alcanccedilar a felicidade enquanto a filosofia tomada como exerciacutecio seja sob a
forma de meditaccedilatildeo ou de praacutexis traz consigo no momento mesmo em que se exercita aquilo
que tem como finalidade a liberdade e o prazer Por esses motivos seguimos o entendimento
desses estudiosos assinalando que a phroacutenesis eacute um instrumento de discernimento da alma
(assim como o logismoacutes eacute uma faculdade que a psycheacute tem para avaliar calcular projetar
fazer analogias) com seu devido valor na construccedilatildeo no exerciacutecio filosoacutefico sem ela a
physiologiacutea se reduz a uma teoria e a ideia de postular uma filosofia como pragmateiacutea natildeo se
efetiva
33 ndash Praacutexis e exerciacutecio de liberdade (eleutheriacutea)
Ao investigar a phyacutesis Epicuro pocircde pensar a liberdade (eleutheriacutea) como uma
possibilidade do acaso Eacute o desvio do aacutetomo de sua trajetoacuteria explicitada na teoria do
pareacutenklisis29 que vai permitir conceber no campo metafiacutesico a derrogaccedilatildeo da necessidade
(anaacutenke) como um fatalismo natural E isso para alguns inteacuterpretes do epicurismo serve
como justificativa ontoloacutegica para a questatildeo da liberdade humana pois a alma tambeacutem eacute
composta por aacutetomos30 a eleutheriacutea seria assim algo que o homem traria consigo por
natureza Embora essa possa ser uma leitura possiacutevel como se daacute na tese de Karl Marx31
podemos aqui tratar da questatildeo da liberdade sob outros aspectos
26 Crsquoest pourquoi plus preacutecieuse mecircme que la philosophie est la prudence de laquelle proviennent toutes les autres vertus () 27 RODIS-LEWIS Geneviegraveve Eacutepicure et son Eacutecole Paris Gallimar 1975 28 ldquoA ideia de se ater agrave virtude por ela mesma defendida notadamente pelos estoicos eacute rejeitada pelos epicuristas Para eles as virtudes natildeo constituem um fim mais um meio em vista de um fimrdquo (ETIENNE amp OrsquoMEARA 1996 p 90) 29 Sobre isso ver capiacutetulo I item 111 30 Ver nota 35 do capiacutetulo I 31 MARX Karl Diferenccedila entre as Filosofias da Natureza em Demoacutecrito e Epicuro Satildeo Paulo Global Editora sd
125 Para Epicuro a eleutheriacutea natildeo eacute absoluta nem na phyacutesis nem com relaccedilatildeo agrave
anthropophyacutesis Se no campo atocircmico ela eacute percebida como um movimento que escapa agrave
anaacutenke eacute necessidade da natureza que isso ocorra Esse paralelo tambeacutem pode ser aplicado ao
homem para quem nem tudo estaacute ao seu domiacutenio mudar ou escolher mas que pode
desenvolver pensamentos e atitudes voltados para o estabelecimento de um modo proacuteprio de
viver mesmo sob a influecircncia das quais natildeo se possa escapar Afinal para Epicuro ldquocoisa maacute
eacute a necessidade mais natildeo haacute necessidade nenhuma de viver com necessidaderdquo (SV 9)32
Trata-se portanto de um esforccedilo um exerciacutecio que cada um precisa empreender
Quando fala da liberdade humana Epicuro a relaciona agrave noccedilatildeo de autaacuterkeia Para ele
ldquoo fruto maior do bastar-se a si mesmo eacute a liberdaderdquo (SV 77)33 Ser autaacuterkes eacute poder agir a
partir de si mesmo do saber depreendido ao investigar a natureza sem a imposiccedilatildeo de normas
ou convenccedilotildees fundadas em opiniotildees vazias Eacute nesse sentido que a physiologiacutea ganha
importacircncia pois permite compreender que na natureza operam apenas causas fiacutesicas sem
nenhuma finalidade (teacutelos) Isso aponta para um sentido inerente da proacutepria natureza cujos
modos de ser natildeo satildeo determinados por nada fora dela mesma ldquoporque aleacutem do todo nada haacute
que possa penetrar nele e provocar transformaccedilatildeordquo (DL X 39)34 Portanto o sentido para o
agir humano deve ser pensado tendo como referecircncia a proacutepria natureza cabendo a cada um
definir sua praacutexis em funccedilatildeo das finalidades que entende como fundamentais a sua realizaccedilatildeo
Contudo ao se viver sob um regime onde prevalecem opiniotildees crenccedilas e ateacute mesmo
uma educaccedilatildeo orientada no sentido de projetar falsas finalidades para o homem fora do que
lhe ensina a natureza a eleutheriacutea eacute mitigada devido ao asseacutedio de desejos Buscar conquistar
aleacutem do que basta a uma vida feliz assenhora a vontade fazendo a accedilatildeo ser comandada pelo
desejar sem limites Daiacute ser necessaacuterio ldquoextirpar as vaacuterias opiniotildees os desejos supeacuterfluos que
somente encobrem o quatildeo faacutecil eacute a felicidade terrestrerdquo (GUAL 1985 p 189)
Restabelecer o sentido de liberdade estaacute ligado assim a buscar ser autaacuterkes o que
resulta em uma praacutexis orientada pela natureza Nessa perspectiva quando a filosofia
epicurista postula a necessidade de exercitar a autaacuterkeia estaacute dizendo que o homem deve - ele
mesmo - guiar sua conduta de maneira a realizar o teacutelos katagrave phyacutesin Esse eacute o propoacutesito da
praacutexis do saacutebio Tal qual a phyacutesis que por si mesma realiza seu sentido proacuteprio de ser o
mesmo se daria com o homem cujo teacutelos vinculado aos prazeres conforme a natureza ele
deve procurar realizar Isso pode ocorrer pela praacutetica das virtudes (areteacutes) pois elas satildeo um
32 Κακὸν ἀνάγκη ἀλλrsquo οὐδεμία ἀνάγκη ζῆν μετὰ ἀνάγκης 33 Τῆς αὐταρκείας καρπὸς μέγιστος ἐλευθερία 34 Παρὰ γὰρ τὸ πᾶν οὐθέν ἐστιν ὃ ἂν εἰσελθὸν εἰς αὐτὸ τὴν μεταβολὴν ποιήσαιτο
126 meio para alcanccedilar o prazer ligado agrave vida autaacuterquica e ataraacutexica
A liberdade assim concebida remete para uma atividade uma construccedilatildeo a cargo do
proacuteprio homem naquilo que depende dele sobre o que ele tem domiacutenio Meio ao acaso e agrave
necessidade Epicuro entende haver o espaccedilo para a deliberaccedilatildeo humana Para ele quanto
mais algueacutem se exercita em investigar a natureza e a meditar sobre ela mais eacute possiacutevel
desenvolver o poder para conduzir a vida em direccedilatildeo agrave makariacuteos zecircn Conhecer a natureza e
os limites por ela colocados para a satisfaccedilatildeo dos prazeres permite uma liberdade ante os
desejos sem medidas Porque ldquoeacute duro lutar contra o desejo mas vencecirc-lo eacute proacuteprio do homem
de bom sensordquo (DK 68 B 236)35 Nesse sentido podemos perceber uma relaccedilatildeo entre a
eleutheriacutea e o desenvolvimento de uma praacutexis virtuosa Quanto mais o saacutebio age com
phroacutenesis bondade e justiccedila mais ele exercita a autaacuterkeia mais ele confere naturalidade agrave
sua existecircncia
Por isso a filosofia eacute fundamental para a liberdade na medida em que busca
desenvolver no homem aquilo que eacute proacuteprio de sua natureza Ao estimular uma compreensatildeo
criacutetica da realidade distanciando-se de vieses poliacuteticos religiosos e da ignoracircncia busca-se
estabelecer um agir definido pela eacutetica e natildeo pela moral pelas normas pelas convenccedilotildees
Cabe ao saacutebio a partir de si mesmo e de seu entendimento sobre a realidade e sobre o sentido
natural de sua existecircncia definir uma conduta virtuosa A pragmateiacutea vai permitir desenvolver
nele os instrumentos para a conquista de sua autonomia e para uma praacutexis orientada para a
realizaccedilatildeo de um modelo metafiacutesico de equiliacutebrio que o saacutebio encontra quando investiga a
phyacutesis e medita sobre os deuses vivendo felizes serenos sem causar perturbaccedilatildeo nem serem
perturbados E esse ideal eacute postulado como possiacutevel porque na concepccedilatildeo epicurista eacute pelo
desconhecimento sobre os bens que conduzem a uma vida feliz que os limites satildeo
transbordados e a liberdade se converte em crimes e a alma se perturba Afinal ldquonatildeo eacute a
necessidade natural que impulsiona o homem a cometer injusticcedila mas o desejo ligado agrave
opiniatildeo vaziardquo (ESTOBEU Florileacutegio XVII 35)36 Assim a liberdade pensada a partir de
uma vontade esclarecida da modulaccedilatildeo dos desejos e da emancipaccedilatildeo com relaccedilatildeo agraves
opiniotildees vazias implica em assimilar agrave praacutexis do saacutebio uma praacutetica das virtudes conforme a
natureza Isso pois
35 Esse fragmento eacute de Estobeu mas remete muito bem para a ideia da possibilidade que o saacutebio tem para governar os proacuteprios desejos A traduccedilatildeo eacute de Anna Lia Amaral Prado Extraiacutedo do vol I da coleccedilatildeo Os Pensadores Preacute-Socraacuteticos Satildeo Paulo Nova Cultural 1996 36 Apud RODIS-LEWIS Geneviegraveve Eacutepicure et son Eacutecole Paris Gallimar 1975 P 241
127 Natildeo se pode levar uma vida agradaacutevel se natildeo se vive com sabedoria moderaccedilatildeo e justiccedila nem se pode levar uma vida saacutebia moderada e justa se natildeo se vive agradavelmente As formas de excelecircncias satildeo concomitantes com a vida agradaacutevel e inseparaacutevel delas (DL X 132)37
A partir dessa passagem coloca-se claramente a correlaccedilatildeo entre as areteacutes e a
finalidade do modo de viver buscado pelo saacutebio a vida prazerosa (zecircn hedeacuteos) Eacute no contexto
desse viacutenculo que Epicuro pensa a liberdade natildeo enquanto questatildeo poliacutetica como construccedilatildeo
social na poacutelis o que remete para o circunstancial em funccedilatildeo do tempo e do lugar mas a
partir de uma ancoragem mais universal
Isso natildeo quer dizer que o saacutebio vai se insurgir contra toda forma de convenccedilatildeo
(noacutemos) e negar o valor da participaccedilatildeo poliacutetica nem que vaacute propor desobediecircncia agraves normas
Se o sophoacutes declina de participar da vida poliacutetica (DL X 119) salvo quando haacute motivo para
o contraacuterio eacute porque percebe nesse campo a impossibilidade de harmonizar o caraacuteter agonal
conflituoso caracteriacutestico da vida na poacutelis sem haver uma assujeiccedilatildeo agraves convenccedilotildees e agraves leis
E isso estaacute diretamente associado agrave limitaccedilatildeo do exerciacutecio da liberdade Aleacutem disso o saacutebio
tem sua conduta orientada por um sentido de justiccedila ligado ao seu proacuteprio estado de
equiliacutebrio Ele natildeo seraacute tirano (DL X 119) nem cometeraacute injusticcedila porque ldquoa vida do homem
justo eacute totalmente imune a perturbaccedilotildees interiores mas a do homem injusto eacute repleta de
inquietuderdquo (DL X 144)38 Em outros termos ele age a partir de uma motivaccedilatildeo eacutetica cujo
princiacutepio ele traz consigo e projeta em uma praacutexis que se realiza sem a necessidade de ser
orientada por formas impositivas
Ao buscar um fundamento mais universal para guiar as accedilotildees Epicuro trabalha a
noccedilatildeo de liberdade a partir de um movimento de aproximaccedilatildeo entre o homem e a phyacutesis
Quando se dedica agrave physiologiacutea Epicuro tem como foco perscrutar a natureza humana para
resolver os problemas ligados ao exerciacutecio de uma vida bem realizada A eleutheriacutea portanto
natildeo prescinde da physiologiacutea porque para compreender as naturezas dos homens (taacutes phyacuteseis
totilden anthroacutepon)39 eacute preciso vecirc-las tambeacutem como parte da natureza do todo de onde satildeo
inteligidas finalidades e modelos de conduta O todo (tograve pacircn) eacute phyacutesis e o aacutenthropos tambeacutem
eacute entatildeo quanto mais se investiga a natureza mais eacute possiacutevel pensar os limites e as
possibilidades de liberdade relacionadas ao agir do homem A physiologiacutea permite postular a
ideia de que a natureza eacute a mesma para todos e portanto o prazer compreendido como teacutelos
37 Οὐκ ἔστιν ἡδέως ζῆν ἄνευ τοῦ φρονίμως καὶ καλῶς καὶ δικαίως ltοὐδὲ φρονίμως καὶ καλῶς καὶ δικαίωςgt ἄνευ τοῦ ἡδέως συμπεφύκασι γὰρ αἱ ἀρεταὶ τῷ ζῆν ἡδέως καὶ τὸ ζῆν ἡδέως τούτων ἐστὶν ἀχώριστον 38 Ὁ δίκαιος ἀταρακτότατος ὁ δrsquo ἄδικος πλείστης ταραχῆς γέμων 39 τὰς φύσεις τῶν ἀνθρώπων (DL X 75)
128 natural diz respeito a todos os homens Decorre desse entendimento que a praacutexis estabelecida
pelo saacutebio tendo em vista realizar essa finalidade vai se dar como um permanente exerciacutecio
eacutetico de espelhamento da natureza Mas isso soacute eacute possiacutevel porque
() para Epicuro a natureza eacute a fonte ou o princiacutepio da vida fiacutesica psiacutequica e eacutetica Pois ela revela ao pensamento em si indiacutecios que tornam possiacutevel a medida de realizaccedilatildeo de cada coisa e dentre elas do proacuteprio homem que emerge em seu proacuteprio seio e tem a necessidade de viver de acordo com ela (katagrave phyacutesin) (SILVA 2003 p 23)
O homem como ser da natureza percebe dentro dele um sentido harmocircnico uma
disposiccedilatildeo para experimentar o prazer quando vive equilibradamente Eacute assim natildeo por obra de
alguma forccedila providencial mas como expressatildeo do modo natural que cada ser tem de se
realizar A funccedilatildeo da filosofia eacute fazer com que por meio de uma praacutetica de pensamento e de
comportamentos o homem se reencontre com esse sentido e procure estendecirc-lo para seu
modo de viver A praacutexis nesse contexto tem papel importante com exerciacutecio de
espelhamento dessa natureza no campo do agir social por isso ela nos remete para um modelo
de accedilatildeo voltado para a realizaccedilatildeo de uma vida equilibrada
A praacutexis epicurista projeta uma compreensatildeo da realidade physioloacutegica na realidade
histoacuterica sob a forma de um exerciacutecio contiacutenuo de liberdade O entendimento a respeito dos
limites verificados na natureza e a relaccedilatildeo deles com o modo como se vive satildeo fundamentais
para definir um eacutethos que leve o homem agrave sua realizaccedilatildeo mais autecircntica ou seja aquela
construiacuteda a partir de sua liberdade e conforme um delineamento natural Procurar viver a
eleutheriacutea dentro desses limites eacute o que direciona a praacutexis do saacutebio para a realizaccedilatildeo da zecircn
hedeacuteos Se por um lado a opiniatildeo eacute insaciaacutevel por outro a natureza eacute faacutecil de satisfazer
enquanto aquela aprisiona esta pode conduzir agrave libertaccedilatildeo
No capiacutetulo anterior falamos da autarquia sob a perspectiva de uma libertaccedilatildeo de O
asseacutedio dos desejos e a influecircncia das opiniotildees vazias e das proacuteprias paixotildees foram
interpretados como formas de mitigar o poder de agir a partir de si mesmo E a autaacuterkeia foi
compreendida sob a perspectiva de um exerciacutecio de vida fundamentado na capacidade de
deliberar a partir de uma vontade esclarecida e do conhecimento a respeito da natureza O
homem autaacuterkes age por si mesmo na medida em que consegue libertar a alma dos loacutegoi que
aprisionam Isso estaacute relacionado agrave retomada de um autodomiacutenio (enkraacuteteia) Mas essa
libertaccedilatildeo de opiniotildees opressivas vazias e apartadas na natureza embora seja aspecto
fundamental para o exerciacutecio da liberdade estaacute como estamos procurando mostrar neste
capiacutetulo intimamente ligada a outro tipo de libertaccedilatildeo exercitada pela praacutexis epicurista
129 Para deixar mais claro ocorre que quanto mais o homem eacute guiado pela phroacutenesis pelo
logismoacutes e pelo saber acerca da natureza mais ele passa a exercer um poder de governar a si
mesmo e experimentar uma liberdade para comandar a proacutepria vida A praacutexis remete
justamente para essa extensividade entre um homem autaacuterkes40 aquele que age a partir do
proacuteprio pensar e o homem autarcheacutes aquele que exprime por meio de sua praacutexis a liberdade
para conduzir sua maneira de viver Quem eacute autarcheacutes comanda dirige conduz reina e pode
ldquorir e em conjunto filosofar e governar sua casa e usar todas as outras coisas que nos satildeo
proacuteprias e de modo algum fazer cessar as vozes que vecircm da reta filosofia em se afastando
delasrdquo (SV 41)41 Com isso Epicuro estaacute querendo dizer que o exerciacutecio filosoacutefico vem
acompanhado de um sentimento agradaacutevel porque quando se ouve a natureza por meio da
investigaccedilatildeo physioloacutegica faz-se calar os loacutegoi vazios que impediam a felicidade e limitavam
o poder que o proacuteprio homem tem para construir sua realizaccedilatildeo O saacutebio dessa forma estaacute
experimentando um prazer ligado agrave liberdade de poder pensar e agir tendo em vista governar
sua alma e sua casa Assim ser feliz diz respeito a um exerciacutecio de libertaccedilatildeo dos noacutes
culturais e de liberdade para realizar uma vida prazerosa
Eacute importante destacar isso ao tratarmos da praacutexis epicurista pois haacute uma tendecircncia
acentuada para pensar a filosofia de Epicuro como centrada em uma liberdade interior
expressa a partir da noccedilatildeo de autaacuterkeia esquecendo-se de inter-relacionar isso com a conduta
do saacutebio enquanto ser social e histoacuterico o que destacaria o distanciamento do sophoacutes das
questotildees poliacuteticas de seu tempo Mas a accedilatildeo dele ocorre no mundo e sua praacutexis tem efeitos
exteriores Se o cultivo dessa liberdade interior aparece como uma reaccedilatildeo ante a
impossibilidade de liberdade poliacutetica caracteriacutestica da tirania de Alexandre eacute preciso
contudo sublinhar que ela natildeo estaacute desvinculada da liberdade para mesmo em tempo de
desmesuras estabelecer um modo de viver equilibrado Para aleacutem da alma a liberdade do
saacutebio se estende como praacutexis para o Jardim e outras formas de vida comunitaacuteria Afinal ele
escolhe em funccedilatildeo da proacutepria realizaccedilatildeo mas essas escolhas acontecem em meio ao conviacutevio
com outros nas relaccedilotildees entre afetos e desafetos
Eacute em torno da compreensatildeo de que a felicidade depende de um modo de viver do qual
ele eacute responsaacutevel que o homem deve procurar fazer de cada accedilatildeo um exerciacutecio de sabedoria E
isso se reflete em postular e estabelecer praacuteticas voltadas para uma vida mais natural mais
autecircntica A filosofia enquanto teacutechne implica em uma utilizaccedilatildeo desse saber para
40 Ver nota 95 do caacutepiacutetulo I 41 Γελᾶν ἅμα δεῖ καὶ φιλοσοφεῖν καὶ οἰκονομεῖν καὶ τοῖς λοιποῖς οἰκειώμασι χρῆσθαι καὶ μηδαμῇ λήγειν τὰς ἐκ τῆς ὀρθῆς φιλοσοφίας φωνὰς ἀφιέντας
130 experimentar bem-estar (eustaacutetheia) mesmo vivendo na poacutelis conturbada quando natildeo eacute
possiacutevel estar no Jardim O saacutebio age a partir de si mesmo e para si mesmo para realizar seu
equiliacutebrio Mas isso natildeo implica em accedilotildees egoiacutestas o que seria incompatiacutevel com a noccedilatildeo de
sabedoria e de philiacutea postuladas pelo epicurismo Afinal o sophoacutes procura fazer de sua praacutexis
um exemplo e por isso ldquovenerar o saacutebio eacute um grande bem para quem venerardquo (SV 32)42 A
accedilatildeo visando a si mesmo eacute aquela voltada para desenvolver a proacutepria harmonia Assim ao
observarmos a maneira como ele faz do seu eacutethos uma atividade (eneacutergema)43 orientada para
o equiliacutebrio percebemos essa aproximaccedilatildeo com um sentido mais natural de existir
Nesse panorama podemos entender que a filosofia de Epicuro natildeo eacute elaborada tendo
em vista querer transformar o mundo mas a maneira como o saacutebio se relaciona com ele A
praacutexis natildeo visa o cidadatildeodemocracia da poacutelis mas o homem realizando sua naturalidade
liberto de perturbaccedilotildees imposiccedilotildees repressotildees alheamentos Tanto quanto a meditaccedilatildeo
liberta das opiniotildees vazias a praacutexis exercita essa libertaccedilatildeo para vir a ser em torno da proacutepria
felicidade
Isso pode nos fazer pensar a filosofia epicurista sob um aspecto antropoloacutegico Ao
buscar colocar o homem em posse do poder de fazer de agir de transformar a forma de
compreender a realidade e a maneira de vivecirc-la ela permite uma concepccedilatildeo do homem sob
outro olhar onde o seu eacutethos se daacute em torno de si mesmo da proacutepria realizaccedilatildeo e natildeo mais
em torno da construccedilatildeo da poacutelis e dos valores que ela legitima Isso nos permite entender o
sentido dessa liberdade que o saacutebio constroacutei por meio de sua praacutexis A filosofia epicurista
projeta o sophoacutes como dono das proacuteprias vontades senhor das proacuteprias decisotildees e isso
remete agrave liberdade para poder se afastar da poacutelis para estabelecer amizades autecircnticas para
fazer da vida um exerciacutecio filosoacutefico para a convivecircncia no Jardim para estabelecer um
modo autentico de viver Satildeo esses aspectos que vamos destacar adiante
34 ndash Da poacutelis ao Kecircpos
A sociedade grega desenvolveu como forma de organizaccedilatildeo a sociedade-estado Nela
as aspiraccedilotildees os valores orbitam sobre temas como democracia coletividade poliacutetica Essas
preocupaccedilotildees movem a cidade e despertam a atenccedilatildeo e as investigaccedilotildees filosoacuteficas em torno
do ldquoanimal poliacuteticordquo O espaccedilo puacuteblico eacute privilegiado em relaccedilatildeo ao acircmbito do pessoal do
42 Ὁ τοῦ σοφοῦ σεβασμὸς ἀγαθὸν μέγα τῷ σεβομένῳ ἐστί 43 DL X 37
131 privado As questotildees ligadas ao homem buscam soluccedilatildeo no contexto das relaccedilotildees na poacutelis Na
democracia o interesse estaacute na consecuccedilatildeo do bem-estar coletivo e na realizaccedilatildeo das virtudes
que o homem precisa desenvolver para viver na cidade
Mas agrave eacutepoca de Epicuro o mundo grego vive um tempo de turbulecircncias e tirania44
Apoacutes a tomada do poder45 pelo rei Felipe da Macedocircnia a Greacutecia perde seu espaccedilo de
participaccedilatildeo democraacutetica Agrave nova configuraccedilatildeo poliacutetica marcada pelo autoritarismo e
centralizaccedilatildeo corresponde o esvaziamento da aacutegora a decadecircncia da poacutelis enquanto espaccedilo
de expressatildeo de autonomia liberdade e participaccedilatildeo poliacutetica Estamos diante do helenismo46
um periacuteodo marcado pela expansatildeo e imposiccedilatildeo da cultura grega agraves regiotildees conquistadas pelo
impeacuterio de Alexandre Magno
Esse contexto vai fazer emergir a demanda de um novo filosofar afinal ldquoeacute inegaacutevel
que as filosofias da eacutepoca heleniacutestica surgem de uma terriacutevel crise social histoacuterica mas a
filosofia eacute sempre produto de uma criserdquo (GUAL 1985 p 11) Se antes os pensadores se
voltavam para o problema da preparaccedilatildeo e participaccedilatildeo na vida poliacutetica tentando estabelecer
normas universais para a conduta humana uma vez que essa participaccedilatildeo fica esvaziada a
preocupaccedilatildeo filosoacutefica se altera Diante de uma Greacutecia politicamente degradada o desafio natildeo
eacute mais governar a poacutelis mas governar a si mesmo de forma que as accedilotildees conduzam agrave
realizaccedilatildeo da proacutepria felicidade O helenismo traz a necessidade de se questionar como diante
de uma realidade histoacuterica que afunda o homem em uma profunda crise existencial e lhe
transforma as necessidades eacute possiacutevel pensar uma eacutetica como caminho para a realizaccedilatildeo de
uma vida feliz (makariacuteos zecircn) e da liberdade (eleutheriacutea) Afinal ldquoo que interessaraacute aos
pensadores do periacuteodo seraacute antes de tudo a experiecircncia que algueacutem pode ter da liberdade ou
da felicidade e sobretudo de sua efetivaccedilatildeo praacuteticardquo (PAULA 2014 p 45) Somente com o
esgotamento desse ideal de sociedade que culmina com a dominaccedilatildeo macedocircnica eacute que a
eacutetica da virtude do bem comum da busca pela realizaccedilatildeo do homem ciacutevico e outras
aspiraccedilotildees vatildeo perdendo importacircncia para aquilo que eacute privado particular aquilo que eacute da
ordem da interioridade
Epicuro natildeo pocircde testemunhar essa experiecircncia de democracia grega que se tornou
referecircncia para o mundo ateacute hoje ressalvadas as particularidades de natildeo se tratar de uma
44 ldquoLa filosoffa de Epicuro es una filosofia de la crisis Nacida em tiempos de crisis y para hombres que viven su vida y la de los demaacutes en la crisisrdquo (MAYOR 1987 p 87) 45 Em 338 aC o rei Felipe da Macedocircnia daacute iniacutecio a uma campanha expansionista e uma a uma comeccedilando pelo Norte vai conquistando as cidades gregas 46 Essa terminologia foi estabelecida no trabalho do historiador alematildeo Droysen em 1833 no livro Histoire drsquoAlexandre Droysen se posicionava ldquosobretudo no ponto de vista poliacuteticordquo (FESTUGIEgraveRE 1985 p XXI)
132 democracia universalizada Mas pocircde sentir a tirania se acentuar principalmente apoacutes a morte
de Alexandre quando o impeacuterio conquistado foi disputado por seus generais Por tudo isso
para Epicuro natildeo haacute nem a possibilidade nem a necessidade de retomar os tempos antigos
para poder fundar seu projeto filosoacutefico Sua preocupaccedilatildeo eacute com o homem com a realizaccedilatildeo
dele independentemente de estar em tempos adversos Seu escopo eacute pensar como poder
estabelecer um modo agradaacutevel de viver Eacute diante desse quadro histoacuterico cultural e filosoacutefico
que se verifica no epicurismo uma oposiccedilatildeo ao desejo de universalizaccedilatildeo da poliacutetica para gerir
o conviacutevio social A perspectiva pretendida vai em sentido contraacuterio de pautar a vida a partir
de uma sociedade minuacutescula fora dos domiacutenios de Atenas Trata-se de um universo de
convivecircncia fundamentado na philiacutea na afetividade no acordo do modo de pensamento
341 ndash Laacutethe biocircsas
Na praacutexis epicurista a vida distanciada da poacutelis eacute exortada Quando escolheu fundar
seu Jardim fora dos muros da cidade foi para viver afastado da tirania das multidotildees do
barulho das opiniotildees vazias e de uma cultura ligada a valores artificiais como a riqueza o
poder a fama coisas incompatiacuteveis com seu projeto de uma existecircncia equilibrada e feliz
Para ele a vida na poacutelis eacute apartada de um sentido natural o que dificulta o homem de
experimentar a ataraxiacutea a autaacuterkeia de exercer a liberdade necessaacuteria para a realizaccedilatildeo de
uma existecircncia plena Daiacute Epicuro aconselhar a Piacutetocles ldquoalccedila tua vela amigo e foge de toda
cultura seja ela qual forrdquo (DL X 6)47 Veja com isso que Epicuro tambeacutem estaacute colocando a
necessidade de se afastar da vida puacuteblica de viver ignorado Pois a poliacutetica para ele eacute fonte de
perturbaccedilatildeo de embates ligados agrave construccedilatildeo da poacutelis e das relaccedilotildees nomoteacuteticas nela
estabelecidas
Ora o foco do epicurismo natildeo eacute a cidade eacute o saacutebio O interesse eacute pensar formas de
convivecircncia gerenciadas pela eacutetica e natildeo pela poliacutetica Daiacute ecoarem no epicurismo os lemas
ldquovive ignoradordquo (laacutethe biocircsas) ldquoo saacutebio natildeo participaraacute da vida poliacuteticardquo (DL X 119)48 ldquoeacute
preciso liberar-se a si mesmos dos afazeres rotineiros e puacuteblicos (SV 58)49 Por traacutes dessa
posiccedilatildeo estaacute a compreensatildeo de que a eacutetica pode se constituir como o princiacutepio norteador das
relaccedilotildees que vatildeo compor uma nova maneira de agregaccedilatildeo social Trata-se de um
posicionamento criacutetico ao modo como a poliacutetica se configura em seu tempo e natildeo uma
47 Παιδείαν δὲ πᾶσαν μακάριε φεῦγε τἀκάτιον ἀράμενος 48 Πολιτεύσεται ὡς ἐν τῆι πρώτηι Περὶ βίων 49 Ἐκλυτέον ἑαυτοὺς ἐκ τοῦ περὶ τὰ ἐγκύκλια καὶ πολιτικὰ δεσμωτηρίου
133 negaccedilatildeo a ela enquanto noccedilatildeo pensada pela filosofia A questatildeo eacute que a vida poliacutetica na
praacutetica configura-se como ldquouma perturbaccedilatildeo trazida agrave felicidaderdquo (SALEM 1994 p 142)
Contudo
A atividade poliacutetica natildeo eacute de forma alguma proibida ela eacute apenas fortemente desaconselhada ao saacutebio Como ele eacute sempre pragmaacutetico o epicurista natildeo exclui que em certas ocasiotildees haja mais perturbaccedilotildees em recusar que em aceitar provisoriamente alguma responsabilidade poliacutetica (SALEM 1994 p 145)
Epicuro natildeo participa da vida poliacutetica do seu tempo porque seu escopo eacute a realizaccedilatildeo
de um projeto de sophoacutes ligado agrave realizaccedilatildeo de uma vida katagrave phyacutesin Ocorre contudo que
ele natildeo acredita na possibilidade de edificaccedilatildeo de seu modelo de saacutebio nem em estabelecer um
tipo de vida ligada a essa construccedilatildeo dentro dos domiacutenios da cidade Para ele a poacutelis eacute o
ambiente onde tanto a poliacutetica quanto a religiatildeo a cultura e as opiniotildees vazias exercem forte
pressatildeo sobre o homem impondo-lhe uma compreensatildeo de mundo e valores direcionadores
da vontade para o que nem eacute natural nem necessaacuterio nem alcanccedilaacutevel Agindo a partir do que
lhe eacute colocado exogenamente como expectativa o homem abdica do exerciacutecio da proacutepria
liberdade e adia a possibilidade de realizar a si mesmo Nesse sentido a vida na poacutelis para
quem se exercita na sabedoria implica em estar sempre contestando as normas os costumes
as convenccedilotildees colocando em praacutetica a parresiacutea (liberdade de palavra) e anaiacutedeia (falta de
pudor) ou suportar os dissabores as infelicidades a agitaccedilatildeo o que levaria ao exerciacutecio da
apaacutetheia (indiferenccedila) estoica
Mas Epicuro quer exercitar eacute a ataraxiacutea a autaacuterkeia a eleutheriacutea Eacute em torno dessas
noccedilotildees que ele pensa o saacutebio e sua praacutexis E isso remete para um modo de vida simples
pacato sempre buscando minorar as dependecircncias que comprometam a tranquilidade Daiacute a
necessidade de afastamento da poacutelis de sua vida agitada e mediada pela poliacutetica e por valores
estabelecidos fora dos limites da natureza Esse distanciamento eacute a praacutetica de um exerciacutecio
eacutetico voltado para favorecer a vida katagrave phyacutesin Se na poacutelis natildeo eacute possiacutevel encontrar o
ambiente favoraacutevel para o sophoacutes desenvolver sua singularidade entatildeo ele vai escolher o
Jardim Por isso o saacutebio ldquofundaraacute uma escola filosoacutefica mas natildeo para reunir uma multidatildeo
em torno de sirdquo (DL X 120)50 Porque o objetivo natildeo eacute filosofar para os muitos mas atender
uma necessidade de aproximaccedilatildeo com a natureza por meio da realizaccedilatildeo de uma praacutexis cuja
fundamentaccedilatildeo natildeo eacute poliacutetica eacute eacutetica
50 Σχολὴν κατασκευάσειν ἀλλ οὐχ ὥστ ὀχλαγωγῆσαι
134 342 ndash A koinoniacutea
O movimento da filosofia epicurista de afastamento da poacutelis e de escolha pelo Kecircpos51
vai remeter para uma forma de organizaccedilatildeo referida como koinoniacutea52 O termo diz respeito a
uma maneira de associaccedilatildeo social reduzida a um grupo de pessoas que compartilham
afinidades no modo de viver e de pensar Em Epicuro koinoniacutea diz respeito a uma noccedilatildeo de
comunidade onde as relaccedilotildees sociais satildeo orientadas pela ideia de comunidade e de amizade
(philiacutea) Essa concepccedilatildeo de vida comunitaacuteria contrasta com a ideia de coletividade que pode
ser aplicada agrave poacutelis pois viver coletivamente natildeo implica em proximidade na forma do
pensamento nem de valores nem no estabelecimento de viacutenculos afetivos Na cidade as
diferenccedilas os conflitos os desafetos partilham os mesmos espaccedilos ordenados e apaziguados
pelas convenccedilotildees pelas normas Agravequele que natildeo se sente adequado ao pensamento dominante
resta o desconforto e a dificuldade de tentar estabelecer uma vida autecircntica Por isso a noccedilatildeo
de koinoniacutea vai se revelar fundamental para quem como o sophoacutes busca realizar uma praacutexis
voltada para um modo agradaacutevel de vida Essa foi a maneira que Epicuro encontrou de
escapar das constriccedilotildees dos espaccedilos puacuteblicos para pensar ambientes e grupos menores onde a
autaacuterkeia e a eleutheriacutea pudessem ser exercitadas aproximando o homem de seu sentido
natural de existir
Ao refletir sob a coexistecircncia em comunidades agremiaccedilotildees ou outras formas de
pequenas sociedades Epicuro considera que eacute a afinidade no modo de viver e de pensar que
permite realizar um modelo de convivecircncia mais confortaacutevel e natural E isso remete para
outro aspecto ldquoa comunidade (koinoniacutea) de amigos (phiacuteloi) epicuristas se tornou possiacutevel
graccedilas agrave Philiacutea entendida com o princiacutepio de movimento e de accedilatildeordquo (SILVA 2015 p 252)
Ou seja eacute em torno da amizade que Epicuro imagina ser possiacutevel a vida em comum e de
maneira a alcanccedilar um sentimento de acordo (homologiacutea) e equiliacutebrio Dioacutegenes de Œnoanda
nos fornece um testemunho que nos permite imaginar esse projeto epicurista de vida em
comunidade
() todas as coisas seratildeo plenas de justiccedila e de amor muacutetuo e natildeo haveraacute necessidade de fortificaccedilotildees ou de leis e de todas as coisas que noacutes criamos por causa dos outros E quanto ao necessaacuterio proveniente da agricultura como noacutes natildeo teremos escravos nesse tempo uma vez que [noacutes mesmos vamos arar] e cavar e manter os [ e] desviaremos os coacuterregos e assistiremos [] ndash e essas [atividades] seratildeo interrompidas de acordo com a
51 A escola ou o Jardim de Epicuro Ver nota 11 da introduccedilatildeo 52 MC 36 37 38
135 praacutetica contiacutenua e partilhada da filosofia pois os [trabalhos] agriacutecolas nos [forneceratildeo] as coisas das quais nossa natureza tem necessidade (Œno fr 56 I-II)53
Justiccedila e equiliacutebrio satildeo para Epicuro possiacuteveis apenas no contexto de agrupamentos
reduzidos de pessoas reunidas pelo acordo de pensamento No Jardim natildeo satildeo as leis nem o
noacutemos que regula as relaccedilotildees entre os homens Se na cidade isso estaacute ligado ao
estabelecimento de relaccedilotildees de forccedila e poder em koinoniacutea ldquoa justiccedila eacute a mesma para todos
pois representa uma espeacutecie de vantagem reciacuteproca nas relaccedilotildees dos homens uns com os
outrosrdquo (DL X 151)54 Daiacute Epicuro abdicar da convenccedilatildeo da poliacutetica pois postula que as
relaccedilotildees estabelecidas no interior do Jardim satildeo baseadas na conveniecircncia muacutetua (opheacuteleia)
A igualdade (isonomia) eacute regida pelo principio da philiacutea a partir do qual se estabelece um
acordo um pacto (syntheacuteke)55 permitindo uma coexistecircncia equilibrada justa e agradaacutevel
Reflexo disso eacute que Epicuro natildeo fazia distinccedilatildeo no Jardim entre homens livre e escravos e
tambeacutem permitia agraves mulheres participarem como membros da comunidade Esse equiliacutebrio eacute
buscado a partir de uma afinidade do pensar entre pessoas que se percebem e se compreendem
a partir dos mesmos valores Por isso se dizer ldquoum saacutebio soacute pode ser reconhecido por outro
saacutebiordquo56 e ldquonenhum saacutebio eacute mais saacutebio que outrordquo (DL X 119)57
No testemunho de Œnoanda nota-se a disposiccedilatildeo para fazer dessa comunidade de
amigos uma organizaccedilatildeo autossustentaacutevel por meio de um trabalho coletivo tornaacute-la dentro
do possiacutevel autossuficiente e liberta de dependecircncias externas E isso estaacute relacionado com o
exerciacutecio da liberdade Quanto mais exerce sua independecircncia mais livre o homem estaacute para
se organizar a partir de valores eacuteticos O limite do que deve ser produzido eacute dado pela proacutepria
necessidade natildeo sendo buscada a sobrepujanccedila A natureza daacute a medida para as accedilotildees e
define a praacutexis adequada agrave vida em koinoniacutea
Outro aspecto a se destacar eacute que certa vida social passa a ter relevo nesse tipo de
organizaccedilatildeo Perceba-se no relato o destaque dado agrave ldquopraacutetica contiacutenua e partilhada da
filosofiardquo Trata-se daqueles momentos em que os phiacuteloi investigam a phyacutesis para pensar as
53 () toutes choses seront pleines de justice et drsquoamour mutuel e il nrsquoy aura pas besoin de fortifications ou de lois et de toutes ces choses que nous fabriquons agrave cause des autres Et quant au neacutecessaire provenant de lrsquoagriculture comme nous nrsquoaurons pas drsquo[esclaves agrave ce moment] ndash car en effet [nous labourerons nous-mecircmes] et becirccherons et garderons les [et] deacutetournerons les cours drsquoeau et veillerons [] ndash et de telles [activiteacutes] interrompront selon le besoin la pratique continue et partageacutee de la philosophie car les [travaux] agricoles nous [fourniront] les choses dont notre nature a besoin 54 Τὸ δίκαιον τὸ αὐτόmiddot συμφέρον γάρ τι ἦν ἐν τῇ πρὸς ἀλλήλους κοινωνίᾳmiddot 55 MC XX XXIII 56 Us 226 57 Οὐκ εἶναί τε ἕτερον ἑτέρου σοφώτερον
136 questotildees da vida meditam em conjunto sobre a natureza e as finalidades que o homem a partir
dela acredita serem fundamentais para a realizaccedilatildeo da makariacuteos zecircn Nesse sentido no
Jardim o exerciacutecio da filosofia eacute identificado ao exerciacutecio da philiacutea Sendo composta por
pessoas que compartilham um modo de compreensatildeo da realidade e visam um fim de acordo
com a natureza a convivecircncia fortalece os viacutenculos e permite desfrutar do bem que eacute a
amizade e com ela a ataraxiacutea a seguranccedila o prazer a liberdade
343 ndash A philiacutea
O atomismo epicurista vecirc no desvio atocircmico a possibilidade de choques que tanto
podem afastar outros aacutetomos e levar ao desagrupamento de corpos quanto podem resultar na
uniatildeo por afinidade de tamanho e forma dando origem a novos corpos ou resultando em
aumento de aglomerados jaacute existentes Essa mesma analogiacutea tambeacutem norteia a concepccedilatildeo de
Epicuro com relaccedilatildeo agrave philiacutea Eacute em torno da afinidade do compartilhamento dos mesmos
interesses e opiniotildees que os homens se agrupam Isso nos remete para a adoccedilatildeo de um
referencial physioloacutegico para justificar as relaccedilotildees de amizade A philiacutea58 para Epicuro eacute um
fenocircmeno natural que se estabelece meio ao reconhecimento no outro de um acordo no pensar
com relaccedilatildeo agrave compreensatildeo da realidade ao entendimento quanto agrave finalidade da vida e ao
modo como realizaacute-la
Pela primeira vez o princiacutepio que reunia os membros dessa sociedade natildeo era nem religioso nem social nem mesmo poliacutetico Essa palavra [amizade] desde entatildeo designa outro conceito Isso eacute ela exprime uma relaccedilatildeo eacutetica e um comportamento livremente escolhido por homens que se reconhecem iguais e fundam essa igualdade tatildeo somente sobre o fundamento de seu ser individual e de sua comum condiccedilatildeo humana (DIANO 1976)59
Para Epicuro a philiacutea eacute manifestaccedilatildeo da natureza e nisso ele ecoa uma tradiccedilatildeo jaacute
verificada em Empeacutedocles de Agrigento60 Nos versos de sua filosofia traacutegica61 encontramos a
polifonia do pensamento de preacute-socraacuteticos que tentaram explicar a totalidade existente
58 42 48 56 68 76 245 (XL) 261 (XII) 59 DIANO C Eacutepicure la philosophie du plaisir et la socieacuteteacute des amis Conferecircncia reunida em Eacutetudes Philosophiques 1976 n 2 p 173-186 (apud FRAISSE J-Claude PHILIacuteA La notion drsquoamitieacute dans la philosophie antique Paris Vrin 1984 p 288) 60 Segundo doxografia colhida por Dioacutegenes Laeacutercio teria nascido em Agrigento (Aacutecragas) na Siciacutelia e vivido por volta de 484 ndash 424 aC Meacutedico e orador escreveu dois poemas em jocircnico Sobre a Natureza e Purificaccedilotildees Deles poucos fragmentos foram conservados ateacute nossos dias 61 Para Nietzsche uma marca da filosofia de Empeacutedocles eacute o ldquoextraordinaacuterio pessimismo mas um pessimismo ativo e natildeo quietistardquo NIETZSCHE Friedrich Preleccedilotildees sobre a Histoacuteria da Filosofia Os Preacute-Socraacuteticos Satildeo Paulo Nova Cultural Col Os Pensadores P 346-353
137 recorrendo agrave mesma perspectiva imanente que vai influenciar o pensamento epicurista No
poema Sobre a Natureza (perigrave physeos) o fogo de Heraacuteclito a aacutegua de Tales a terra de
Xenoacutefanes e ar de Anaxiacutemenes se encontram como ingredientes que vatildeo constituir a phyacutesis a
partir de um movimento provocado - natildeo por uma inteligecircncia ou por uma divindade62 - mas
por um suceder de forccedilas contraacuterias o Amor e o Oacutedio E isso vai de certa forma moldar
juntamente com a concepccedilatildeo atomiacutestica da realidade a compreensatildeo epicurista a respeito das
relaccedilotildees humanas
Em Empeacutedocles as referecircncias para pensar esse aspecto partem da mitologia que nos
conta que Filotes (Φιλότης) era um ser que personificava a amizade a afeiccedilatildeo a uniatildeo Seu
avesso era Neikoacutes (Νεικός) que experimentava sua existecircncia no sentido contraacuterio
provocando a intriga suscitando o oacutedio causando o afastamento Esses personagens trazem
ateacute noacutes o sentido daquilo que pode se ligar se agrupar ou por outro lado se desfazer se
separar Nesse caminho Filotes e Neikoacutes ou Amor e Oacutedio satildeo pensadas por Empeacutedocles
como forccedilas ou e energias de atraccedilatildeo e repulsatildeo responsaacuteveis pelo movimento dos elementos
constitutivos da realidade Em dado momento eles se agrupam convergem dando origem agrave
diversidade das coisas em outro satildeo apartados desfazendo os enlaces que davam formas aos
que se uniam por afinidade ldquoEstes quatro satildeo tudo o que haacute cada um se entranhando no outro
E ao misturar-se variedade ao mundo dandordquo (KRS 355)63 Essas mudanccedilas de estados se
produzem por alternacircncia dessas duas forccedilas num ciclo que se daacute desde sempre
acompanhando a eternidade desses elementos
Com isso Empeacutedocles postula uma phyacutesis onde natildeo haacute nascimento e morte para as
coisas mas processos de transformaccedilatildeo que geram a partir de unidades ou raiacutezes a
multiplicidade e dessa por separaccedilatildeo volta-se ao uno Dos quatros elementos fundamentais
(aacutegua fogo terra e ar) por combinaccedilatildeo e agrupamento engendrados como dito pela accedilatildeo do
Amor daacute-se a composiccedilatildeo da diversidade do que reside na realidade No sentido inverso pela
forccedila do Oacutedio os compostos se corrompem liberando seus constituintes baacutesicos e permitindo
que voltem a buscar harmonia na philiacutea com outros semelhantes Esse contraste dramaacutetico
embeleza a poesia empedocliana e remete para as questotildees de vivecircncias de amizades e
intrigas de uniotildees e afastamentos de equiliacutebrio e conflitos sobre as quais Epicuro tematiza
Se a philiacutea eacute compreendida como um movimento natural de aproximaccedilatildeo segundo a
afinidade entatildeo a amizade natildeo eacute definida pelas convenccedilotildees nem por modelos sociais
62 Platatildeo Leis X 889 b (DK 31 a 48) 63 KRS 355 (G S Kirk J E Raven M Schofield) Essa traduccedilatildeo consta em KENNY Anthony Uma Nova Histoacuteria da Filosofia Ocidental 2 ed Satildeo Paulo Loyola 2011 Vol I p46
138 organizados Ela pressupotildee liberdade para escolher em funccedilatildeo de uma finalidade que eacute a vida
prazerosa Eacute nas relaccedilotildees estabelecidas a partir de uma vontade livre e sem o interesse de
assenhorar a vontade do outro mas movida por um desejo natural de afinidade e prazer que o
sophoacutes experimenta uma fonte de satisfaccedilatildeo A importacircncia da amizade na filosofia epicurista
estaacute na sua relaccedilatildeo com a realizaccedilatildeo da felicidade do saacutebio Por meio da philiacutea ele edifica
laccedilos que constituem fonte de bem-estar Eis porque ldquodentre as coisas que a sabedoria
proporciona para a felicidade da vida inteira a amizade eacute em muito a maior delasrdquo (SV 13)64
Essa relaccedilatildeo entre amizade e natureza que pode ser verificada nesse estado de bem-
estar ou de equiliacutebrio implica em uma praacutexis orientada pela conveniecircncia muacutetua (opheacuteleia)
pois eacute nela que a amizade tem iniacutecio (SV 23) Esse aspecto quando interpretado a partir da
noccedilatildeo de um utilitarismo negativo aplicado agraves relaccedilotildees pode encetar a equivocada ideia de
um uso explorador do outro o que foge ao escopo eacutetico epicuacutereo marcado pela isonomia e
pela justiccedila Por isso cabe pensar essa conveniecircncia como um interesse autecircntico com relaccedilatildeo
ao amigo e no sentido de ambos obterem proveito reciacuteproco dessa amizade Nesse sentido a
opheacuteleia nos remete para uma concepccedilatildeo de solidariedade de correspondecircncia a partir de
interesses semelhantes e compartilhados Por isso
A philiacutea e a opheacuteleia satildeo fenocircmenos naturais circunscritos ao exerciacutecio da conduta humana poreacutem do ponto de vista epicuacutereo eles soacute se efetivam segundo condiccedilotildees especiacuteficas que natildeo encontramos em meio a qualquer agregado humano A sociabilidade humana enquanto fenocircmeno natural natildeo eacute suficiente para garantir o pleno exerciacutecio da philiacutea e da opheacuteleia (SILVA 2003 p 90)
Se o relacionamento com pessoas que nos levam a experimentar sentimentos de
equiliacutebrio e contentamento eacute uma necessidade natural do homem entatildeo somente vivendo e
filosofando entre amigos eacute possiacutevel realizar uma praacutexis que inscreve a felicidade no modo de
viver do sophoacutes Nesse sentido as escolhas feitas devem ter em mira essa perspectiva A
philiacutea deve ser buscada entre aqueles com quem haja acordo no pensar e possibilidade de
homologiacutea na relaccedilatildeo e afinidade de sentimentos Nesse contexto eacute possiacutevel desenvolver e
compartilhar um loacutegos relacionado a um modo de vida de acordo com a natureza
Meio a isso outro termo ganha importacircncia em todo esse processo asphaacuteleia65
Epicuro usa essa palavra no sentido de seguranccedila proteccedilatildeo confianccedila e se refere agrave
necessidade de ter preservada sua tranquilidade e seu bem-estar Ele lembra que ldquoalguns
homens procuram tornar-se famosos e ilustres pensando que desse modo garantiriam para si
64 Ὧν ἡ σοφία παρασκευάζεται εἰς τὴν τοῦ ὅλου βίου μακαριότητα πολὺ μέγιστόν ἐστιν ἡ τῆς φιλίας κτῆσις 65 MC 7 13 14 28
139 mesmos seguranccedila diante dos homens restantesrdquo (DL X 141 VII)66 E que ldquopara conseguir
seguranccedila em relaccedilatildeo a outros homens a instituiccedilatildeo do poder e da realeza deve ser incluiacuteda
entre os bens conforme a natureza sempre que por meio dessa instituiccedilatildeo os homens possam
obter aquela seguranccedilardquo (DL X 141 VI)67 Ou seja ele ateacute coloca esses modos de obtenccedilatildeo
de seguranccedila como vaacutelidos e necessaacuterios mas para quem vive na cidade meio aos valores e
opiniotildees da poacutelis Mas para quem vive em koinoniacutea no Jardim ou em outra forma de
comunidade fundada sobre o princiacutepio da philiacutea essa seguranccedila resulta de uma postura eacutetica
que perpassa todas essas relaccedilotildees Eacute a amizade que proporciona asphaacuteleia e com isso
tranquilidade e quietude diante do temor relativo a condutas agressivas e violentas Isso eacute
para Epicuro mais importante que outras formas de proteccedilatildeo buscadas pelos homens para
preservar sua paz porque estaacute ligado agrave conveniecircncia muacutetua ao agir guiado pela sabedoria e
dentro dos limites da phyacutesis
O que impede accedilotildees danosas ao outro natildeo eacute a norma mas a convicccedilatildeo de que aquilo
tambeacutem causa mal a quem fez Trata-se de um princiacutepio eacutetico realizado de dentro para fora
da alma para a accedilatildeo Desse modo a conduta do saacutebio eacute modulada e define uma praacutexis que
busca preserva e desenvolve a philiacutea e a vida em comunidade Afinal o exerciacutecio da amizade
estaacute relacionado ao da proacutepria felicidade ldquode todo os bens que a sabedoria proporciona para
produzir a felicidade por toda a vida o maior sem comparaccedilatildeo eacute a conquista da amizaderdquo
(DL X 148 XXVII)68
35 ndash Pragmateiacutea e sabedoria praacutetica
A noccedilatildeo de pragmateiacutea epicurista permite compreender a filosofia como exerciacutecio de
uma sabedoria fundamentada na phyacutesis Isso nos remete para pensar o uso praacutetico de um saber
tendo em vista a realizaccedilatildeo de uma vida feliz (makariacuteos zecircn) O desafio eacute colocar para o
homem um conhecimento que possa ser-lhe uacutetil para essa finalidade eacute apresentar uma
filosofia que aja no loacutegos e encete uma disposiccedilatildeo (diaacutethesis) para lidar com as situaccedilotildees
comuns a partir de um modelo de compreensatildeo da realidade que permita conferir mais
naturalidade ao modo de viver
66 Ἔνδοξοι καὶ περίβλεπτοί τινες ἐβουλήθησαν γενέσθαι τὴν ἐξ ἀνθρώπων ἀσφάλειαν οὕτω νομίζοντες περιποιήσεσθαι ὥστε 67 Ἕνεκα τοῦ θαρρεῖν ἐξ ἀνθρώπων ἦν κατὰ φύσιν ἀρχῆς καὶ βασιλείας ἀγαθόν ἐξ ὧν ἄν ποτε τοῦτο οἷός τrsquo ᾖ παρασκευάζεσθαι 68 Ὧν ἡ σοφία παρασκευάζεται εἰς τὴν τοῦ ὅλου βίου μακαριότητα πολὺ μέγιστόν ἐστιν ἡ τῆς φιλίας κτῆσις
140 Sob essa perspectiva Epicuro confere agrave vida cotidiana estatuto de tema filosoacutefico e
em torno de saber como realizaacute-la de maneira agradaacutevel pensa uma pragmateiacutea orientada
para fazer o homem experimentar um modo de ser voltado para a autaacuterkeia e para o
equiliacutebrio Um exemplo disso pode ser encontrado na proacutepria maneira de viver de Epicuro
Ela pelo que ficamos sabendo pelos testemunhos de Dioacutegenes Laeacutercio eacute a expressatildeo de um
modo de ser desenvolvido em torno da alegria da tranquilidade da simplicidade da amizade
aspectos que remetem para a busca da harmonia da alma e do corpo
() nosso filoacutesofo apresenta testemunhos suficientes de seus sentimentos insuperavelmente bons para com todos a paacutetria que o honrou com estaacutetuas de bronze os amigos cujo nuacutemero era tatildeo grande que natildeo podiam ser contados em cidades inteiras todos aqueles que conviviam intimamente com o filoacutesofo ligados a ele pelo viacutenculo do fasciacutenio de sua doutrina como se fosse uma sereia (DL X 9)69
A vida de Epicuro retratada como uma liccedilatildeo de realizaccedilatildeo de sua proacutepria doutrina daacute-
nos indicativos de que viver segundo um saber filosoacutefico eacute a atividade que caracteriza o modo
de ser do saacutebio E isso natildeo estaacute restrito ao mestre do Jardim amigos e disciacutepulos satildeo
lembrados pelo mesmo motivo Um deles eacute Metrodoro ldquoque foi excelente em tudordquo e ldquose
mostrou imperturbaacutevel ao enfrentar os tormentos e a morterdquo (DL X 23)70 A partir de
exemplos desse tipo pode-se notar a relaccedilatildeo entre a sabedoria e a imperturbabilidade
(ataraxiacutea) o que remete para a questatildeo dos prazeres ligados agrave vida agradaacutevel (zecircn hedeacuteos)
Como jaacute procuramos mostrar os prazeres satildeo fundamentais para a realizaccedilatildeo do homem
poreacutem a felicidade natildeo consiste na repleccedilatildeo de todos os desejos mas somente daqueles
ligados ao bem-estar e ao equiliacutebrio E isso implica na adoccedilatildeo de limites para o desejar pois
uma alma desregrada pelo asseacutedio das vontades natildeo se sossega Essa medida embora tambeacutem
preconizada por outras correntes filosoacuteficas tem em Epicuro particularidades que definem sua
pragmateiacutea
De modo geral haacute uma crenccedila em que a natureza natildeo coloca limitaccedilotildees aos prazeres
Competiria agraves convenccedilotildees dar o pudor e as constriccedilotildees aos impulsos dos homens Por traacutes
dessa perspectiva tem-se a ideia de que a forccedila eacute a lei natural e o mais forte pode dominar e
satisfazer suas vontades em detrimento do mais fraco Dessa maneira quando as normas natildeo
bastam a phyacutesis eacute apontada como justificativa mesma para o desregramento para a imposiccedilatildeo
da violecircncia para o gozo sem comedimento Assim caberia agrave educaccedilatildeo agrave cultura agrave religiatildeo
69 () τῶι γὰρ ἀνδρὶ μάρτυρες ἱκανοὶ τῆς ἀνυπερβλήτου πρὸς πάντας εὐγνωμοσύνης ἥ τε πατρὶς χαλκαῖς εἰκόσι τιμήσασα οἵ τε φίλοι τοσοῦτοι τὸ πλῆθος ὡς μηδ ἂν πόλεσιν ὅλαις μετρεῖσθαι δύνασθαι οἵ τε γνώριμοι πάντες ταῖς δογματικαῖς αὐτοῦ σειρῆσι προσκατασχεθέντες 70 Μαθητὰς δὲ ἔσχε πολλοὺς μέν () ἦν δὲ καὶ ἀκατάπληκτος πρός τε τὰς ὀχλήσεις καὶ τὸν θάνατον
141 agrave poliacutetica ao noacutemos o papel de limitar os impulsos naturais a partir de noccedilotildees de bem ou mal
certo ou errado usadas para legitimar ou proibir as accedilotildees
Mas para Epicuro haacute um equivoco nessa maneira de compreender a natureza A
phyacutesis natildeo eacute fonte de desregramento mas um modelo para pensar justamente as
possibilidades e as interdiccedilotildees para a conduta do homem A concepccedilatildeo ligada agrave necessidade
de satisfazer a todos os desejos e a qualquer custo se fundamenta em opiniatildeo a phyacutesis natildeo
determina nem viacutecios nem virtudes A disposiccedilatildeo para agir tanto para o bem quanto para o
mal decorre da compreensatildeo que temos da natureza e das finalidades inteligidas a partir da
sua investigaccedilatildeo e que relacionamos agrave realizaccedilatildeo do homem Em torno desse entendimento
pode-se estabelecer uma indissociaccedilatildeo entre a pragmateiacutea e a sabedoria elas visam direcionar
o agir para os limites do natural e natildeo do que eacute imposto pela opiniatildeo Assim o saacutebio orienta
sua praacutetica de vida por um saber ligado ao estudo da natureza tanto quanto faz dessa ocupaccedilatildeo
um modo de viver relacionado ao exerciacutecio da proacutepria ataraxiacutea71 Ou seja viver e filosofar
satildeo atividades inseparaacuteveis na pragmateiacutea do sophoacutes que estaacute permanentemente buscando
estabelecer um eacutethos circunscrito agraves finalidades pensadas a partir da sua compreensatildeo da
natureza
Nesse sentido ao contraacuterio do que acontece quando se toma como referecircncia as
opiniotildees natildeo haacute a necessidade de afastar o homem da natureza para ldquodomarrdquo ou calar seus
desejos ldquoNatildeo se deve violentar a natureza mas persuadi-la noacutes a persuadiremos satisfazendo
os desejos naturais e necessaacuterios caso natildeo causem danos mas os que causam danos
refutando-os arduamenterdquo (SV 21)72 Assim quanto mais o saacutebio se dedica agrave investigaccedilatildeo da
phyacutesis mais pode se dar conta de que a desmesura estaacute ligada agrave falsa ideia a respeito do que
proporciona felicidade e que a sabedoria consiste em compreender a natureza dos desejos e
vivecirc-los em funccedilatildeo do equiliacutebrio que podem proporcionar Desse modo o que precisa ser
calado satildeo os discursos (loacutegos) que pensam a realizaccedilatildeo da vida a partir de valores e fins
contraacuterios aos postulados pela physiologiacutea Ao pensar a pragmateiacutea como exerciacutecio de uma
sabedoria dirigida para dar mais naturalidade agrave existecircncia Epicuro projeta a realizaccedilatildeo do
homem em um modo de vida distanciado das opiniotildees que levam a ldquoviolentar a naturezardquo
O sentido praacutetico da filosofia epicurista tem como finalidades a experiecircncia da
autaacuterkeia do equiliacutebrio e do prazer Eacute em torno desse objetivo que a physiologiacutea ao conduzir
71 Em DL X 37 Epicuro relaciona a atividade de investigaccedilatildeo da natureza a um modo de vida calmo tranquilo Ver nota 9 do capiacutetulo I 72 Οὐ βιαστέον τὴν φύσιν ἀλλὰ πειστέονmiddot πείσομεν δὲ τὰς ἀναγ-καίας ἐπιθυμίας ἐκπληροῦντες τάς τε φυσικὰς ἂν μὴ βλάπτωσι τὰς δὲ βλαβερὰς πικρῶς ἐλέγχοντες
142 a uma compreensatildeo sobre os modos de ser da natureza permitindo inteligir a partir disso um
modelo de conduta para o homem vai ser o fundamento para a sabedoria Eacute da phyacutesis que
adveacutem um paradigma a partir do qual eacute possiacutevel pensar uma pragmateiacutea realizaacutevel como
praacutetica de vida condizente com o saber a respeito da natureza Nesse escopo o physiologoacutes
precisa ldquoler nas leis do universo as condiccedilotildees e os limites da felicidade humanardquo (FRAISSE
1984 p 316) e estabelecer um eacutethos conforme essa leitura Como ldquoa natureza eacute o princiacutepio de
nossa limitaccedilatildeo tanto quanto nossa felicidaderdquo (Idem p 319) eacute fundamental ancorar na
compreensatildeo physioloacutegica os valores que vatildeo guiar o modo de ser do saacutebio Isso remete para
a necessidade de uma atividade permanente de espelhamento de uma maneira de entender a
natureza e as finalidades da vida nas condutas do homem O caminho da sabedoria eacute o da
realizaccedilatildeo da pragmateiacutea um exerciacutecio desenvolvido ao longo de toda a vida e que se estende
do modo de pensar agrave maneira de viver Por isso Epicuro diz
Natildeo eacute o jovem que pode ser felicitado mas o anciatildeo que viveu belamente (bem) pois o jovem muacuteltiplo pela plenitude de sua idade comete erros e o anciatildeo como se fosse num porto estaacute ancorado pela velhice depois de ter trancado (fechado) com alegria serena (segura) aqueles dentre os bens antes vistos com desesperanccedila (SV 17)73
Essa vida bela que caracteriza o anciatildeo ou o saacutebio eacute reflexo da disposiccedilatildeo para buscar
os bens que conferem seguranccedila (asphaacuteleia) ao modo de viver A philiacutea a autaacuterkeia a
eleutheriacutea a sabedoria satildeo finalidades que tanto permitem pensar um sentido para a
pragmateiacutea epicurista quanto definem um direcionamento praacutetico para o saber physioloacutegico
Investigar a phyacutesis pensar a partir disso sobre a realidade histoacuterica (poliacutetica religiatildeo cultura
normas etc) que envolve a vida discernir nesse contexto o que pode conferir mais
naturalidade agrave existecircncia e estabelecer praacuteticas que aproximem o homem do seu sentido de
realizaccedilatildeo satildeo atividades que remetem para um meacutetodo de consecuccedilatildeo de sabedoria pensada
para ser possiacutevel exequiacutevel O saacutebio epicurista eacute aquele que valendo-se do que conhece sobre
a phyacutesis pratica uma artesania ou um cuidado sobre si mesmo a partir de exerciacutecios que visam
espelhar na alma essa leitura da natureza Eacute em torno da percepccedilatildeo de que a felicidade
depende de um trabalho sobre si mesmo por meio de meditaccedilatildeo e de praacutexis que Epicuro
concebe toda accedilatildeo dentro dos limites da natureza como um exerciacutecio de sabedoria e faz da
vida feliz a finalidade das accedilotildees do saacutebio Com isso busca-se projetar o paradigma da
natureza na alma e daiacute para o modo de viver
73 Οὐ νέος μακαριστὸς ἀλλὰ γέρων βεβιωκὼς καλῶςmiddot ὁ γὰρ νέος ἀκμῇ πολὺς ὑπὸ τῆς τύχης ἑτεροφρονῶν πλάζεταιmiddot ὁ δὲ γέρων καθάπερ ἐν λιμένι τῷ γήρᾳ καθώρμικεν τὰ πρότερον δυσελπιστούμενα τῶν ἀγαθῶν ἀσφαλεῖ κατακλείσας χάριτι
143 Vemos que a conduta do saacutebio eacute construiacuteda em torno de um pensamento eacutetico
fundamentado na natureza Isso ao mesmo tempo em que nos remete para pensar a felicidade
como uma finalidade inscrita no campo do imanente tambeacutem coloca diante do homem a
responsabilidade pela realizaccedilatildeo de uma vida coerente com esse teacutelos Se a physiologiacutea
permite uma leitura da natureza em que ele meio agrave necessidade e ao acaso pode compreender
o poder que tem para recusar o papel de conformado e temeroso e escolher o protagonismo de
sua proacutepria histoacuteria a pragmateiacutea vai colocar em exerciacutecio essa forma physioloacutegica
compreensatildeo da vida resultando em uma accedilatildeo livre e autecircntica E isso mesmo em um
contexto de tirania da impossibilidade de participar da vida poliacutetica ou outras formas de
interdiccedilotildees ou repressotildees que podem afetar a vida do homem Assim
() o saacutebio eacute aquele que age sempre a partir do seu poder de escolha e rejeiccedilatildeo e jamais de sujeiccedilatildeo Sua referecircncia uacutenica eacute a compreensatildeo dos limites e das possibilidades da natureza-realidade na qual vive e exercita-se na realizaccedilatildeo de uma vida apraziacutevel em cada ato ou deliberaccedilatildeo que dele dependa (SILVA 2003 p 87)
Para Epicuro a eacutetica eacute um principio que o saacutebio desenvolve dentro de si mesmo ela eacute
da ordem do indiviacuteduo e pode ser cultivada a despeito de modelos socialmente colocados para
todos Para ele o saacutebio deve buscar realizar uma existecircncia eacutetica e para isso toda conduta
precisa se configurar como accedilatildeo cujo princiacutepio estaacute em quem age eacute atitude gerada segundo a
autaacuterkeia guiada pela vontade esclarecida liberta coerente com a proacutepria compreensatildeo
acerca da realidade Trata-se de estabelecer um comportamento visando os fins de acordo com
a natureza e natildeo mais procurando ser a expressatildeo dos valores cristalizados pelas opiniotildees
vazias pela religiatildeo pelas convenccedilotildees da poacutelis Epicuro entende que a vida natildeo precisa mais
ser pensada como projeto ligado ao miacutetico-religioso ela eacute concebida como fenocircmeno da
phyacutesis A partir dessa compreensatildeo o saacutebio relaciona o que pode ser vivido agrave noccedilatildeo de
construccedilatildeo de criaccedilatildeo de elaboraccedilatildeo de um eacutethos definido por escolhas voltadas para o
agradaacutevel para a vida frugal e entre amigos
351 ndash Saber para a vida
Epicuro exorta agrave praacutetica filosoacutefica mas natildeo como manifestaccedilatildeo de erudiccedilatildeo nem nos
moldes de uma disciplina preocupada com a sophiacutea procurando a aleacutetheia ou conduzindo a
uma episteme No Jardim filosofar consiste em direcionar continuamente o pensamento para
o exame da vida que se coloca diante dos sentidos Busca-se ensinar uma maneira de pensar a
144 realidade sem ter de recorrer agraves crenccedilas aos mitos agraves opiniotildees vazias agraves explicaccedilotildees
concebidas fora do campo das experiecircncias humanas Afinal entende-se que a liberdade da
imaginaccedilatildeo aliada agrave retoacuterica e agrave insatisfaccedilatildeo quanto agraves respostas sobre o sentido da vida datildeo
asas para um loacutegos que se lanccedila em um vocirco para aleacutem dos limites da phyacutesis Nos mitos
projetam-se causas finalidades e uma realidade concebiacutevel mas inelutaacutevel para o homem
sujeito agraves normas aos modelos de virtudes e agraves expectativas de conduta que lhe privam de um
sentido autecircntico de realizaccedilatildeo Desse modo ele tem a alma adoecida pelo medo pelo
desequiliacutebrio pela imposiccedilatildeo da submissatildeo males que afastam a felicidade Se mesmo nos
momentos adversos Epicuro pratica a alegria ao relembrar momentos felizes eacute porque soube
contrapor a esse loacutegos que adoece aprisiona assenhora despotencializa outro que partindo
de uma investigaccedilatildeo da phyacutesis busca a realizaccedilatildeo humana dentro daquilo que a natureza
circunscreve Eacute esse sentido de buscar realizar uma vida saacutebia que vai definir os contornos da
pragmateiacutea epicurista
No passo 35 da Carta a Heroacutedoto o termo pragmateiacutea74 tem sido traduzido como
sistema (CURY 2008 CONCHE 1977)75 ou como o conjunto dos escritos de Epicuro
(SOLOVINE 1965 SALEM1982)76 Em ambos os casos faz-se referecircncia a uma doutrina a
um corpus de conhecimento ligado agrave compreensatildeo da natureza Mas essa perspectiva parece-
nos malgrado as limitaccedilotildees impostas agraves traduccedilotildees bem aqueacutem de expressar o conjunto de
inter-relaccedilotildees entre conhecimento (gnoacutesis) physiologiacutea eacutetica sabedoria e exerciacutecios (aacuteskesis)
estabelecidas na dinacircmica de realizaccedilatildeo de uma vida de acordo com a natureza como estamos
tentado mostrar nesse trabalho Por isso cabe pensar um sentido mais amplo e adequado para
o termo de maneira a poder traduzir o escopo da filosofia epicurista
Quando observamos a etimologia da palavra verificamos que o termo pragmateiacutea77
pode tambeacutem se referir agrave maneira como tratamos de algo ao cuidado que dedicamos ao fazer
alguma coisa Isso leva em conta a busca pela realizaccedilatildeo de um objetivo para o qual eacute preciso
se ocupar se aplicar Nesse sentido o termo remete para a procura por alcanccedilar uma
finalidade e tambeacutem pode fazer referecircncia a afazeres78 atividades praacuteticas Esse
enquadramento mais abrangente possibilita pensar a filosofia do Jardim sob uma perspectiva
74 DL X 35 77 83 Πραγματεία 75 Ver nota 30 da introduccedilatildeo 76 Maurice Solovine traduz como ldquotudo o que o que eu (Epicuro) escrevi sobre a naturezardquo em Eacutepicure doutrines et maximes Paris Hermann 1965 Jean Salem usa a expressatildeo ldquotoda a mateacuteria (assunto)rdquo em Epicure lettres Paris Nathan 1982 77 Anatole Bailly Op Cit 78 The Online Liddell-Scott-Jones Greek-English Lexicon (httpstephanustlguciedulsjeid=1 acessado em 13 de fevereiro 2019)
145 mais orgacircnica A relaccedilatildeo que se estabelece entre a vida feliz e o cuidado de si entre a
investigaccedilatildeo da natureza e o exerciacutecio da ataraxiacutea entre libertar a alma das opiniotildees vazias e
praticar a frugalidade entre os limites da phyacutesis e a repleccedilatildeo dos desejos naturais permite
inferir um saber que se efetiva justamente como aacuteskesis Eacute a isso que a pragmateiacutea se refere e
como tal procura ser realizada pelo saacutebio
O saber passiacutevel de ser colocado em praacutetica para fazer da vida um exerciacutecio de
contentamento vai ser o constituinte da pragmateiacutea Para o saacutebio poder agir de uma maneira
sensata a partir da phroacutenesis e do logismoacutes e fazer as escolhas e as recusas necessaacuterias para o
seu bem-estar eacute necessaacuterio um conhecimento (gnoacutesis) que lhe permita compreender as
finalidades e os bens relacionados ao gozo de uma existecircncia mais equilibrada
Evidentemente nem sempre eacute possiacutevel uma accedilatildeo racional diante de todas as situaccedilotildees mas o
agir consciente esclarecido vai caracterizar a conduta do saacutebio Por isso quanto mais ele
conhece os modos de ser da phyacutesis mais ele passa a compreender aquilo que estaacute relacionado
a um modo de vida natural e mais ele pode orientar sua conduta para esse teacutelos O
conhecimento sobre a natureza se traduz em um saber para a vida na medida em que eacute a partir
dessa investigaccedilatildeo que o saacutebio vai poder meditar e estabelecer uma praacutexis direcionada para
uma aproximaccedilatildeo com a natureza Assim a physiologiacutea se identifica com a pragmateiacutea na
medida em que busca apresentar um conhecimento que sirva para fazer da vida do homem um
exerciacutecio de autorrealizaccedilatildeo Nesses termos poder-se-ia falar de um discurso sapiencial onde
o conhecimento se converte em uma disposiccedilatildeo para a praacutetica de uma maneira saacutebia de viver
Nessa perspectiva podemos assinalar o papel da filosofia como sendo o de procurar
descortinar a phyacutesis ateacute onde o pensamento humano alcanccedila conduzindo a um saber que
permita ao homem a tranquilidade diante daquilo que eacute fenomecircnico e a confianccedila (piacutestis)
diante do que pode ser por ele realizado O saacutebio ao entender que a makariacuteos zecircn eacute construiacuteda
na imanecircncia por meio de exerciacutecios permanentes voltados para realizar uma vida katagrave
phyacutesin passa a confiar na possibilidade de ele mesmo ser responsaacutevel por estabelecer os
procedimentos que possam fazecirc-lo experimentar o sentido de uma existecircncia mais plena
Assim
() longe de se limitar a designar uma certeza epistecircmica no estudo dos fenocircmenos fiacutesicos essa piacutestis essa feacute exprime entre outras coisas a seguranccedila que confere ao saacutebio o alegre saber do qual ele goza no instante presente () A ldquofalta de certezardquo (apistiacutea) coloca ao contraacuterio os insensatos ldquona confusatildeo e na incapacidade de ir adianterdquo (SALEM 1994 p 60)
146 Essa atenccedilatildeo dada agrave compreensatildeo da phyacutesis como o ldquoterrenordquo onde a vida feliz pode
ser realizada estaacute ligada agrave necessidade de seguranccedila (asphaacuteleia) Uma referecircncia disso
encontramos na Sentenccedila Vaticana 57 onde se diz que ldquopor causa da incerteza sua vida
inteira seraacute levada agrave confusatildeo e jogada por terrardquo79 Se por um lado Epicuro ao dizer isso
parece estar se referindo a questotildees ligadas agrave amizade onde a apistiacutea pode ser remetida ldquoagrave
traiccedilatildeo agrave infidelidade do amigordquo e a piacutestis pode remeter ao caso em que o ldquoamigo ajudaraacute se a
necessidade vierrdquo (BOLLACK 1975 p 520) de qualquer forma ele estaacute relacionando a
confianccedila ao modo de vida do saacutebio pois natildeo haacute como pensar a tranquilidade o equiliacutebrio a
alegria se a alma estaacute tomada pela inseguranccedila pelo medo pela incerteza seja com relaccedilatildeo
aos outros homens agrave vida em sociedade ou com relaccedilatildeo agraves coisas do ceacuteu A morte os deuses
o aleacutem-vida assim como os acontecimentos que ora se datildeo por necessidade ora por acaso ou
pela accedilatildeo de outrem apontam para a dimensatildeo do desconhecido do imponderaacutevel que
permeia a vida e para o qual devemos estar em condiccedilatildeo de agir com sabedoria Isso implica
em poder recorrer aos ensinamentos physioloacutegicos e aplicaacute-los agraves mais distintas situaccedilotildees
Nesse sentido podemos entender a pragmateiacutea como esse saber que serve para que todos
ldquo() estejam em condiccedilotildees de sustentaacute-los em quaisquer circunstacircnciasrdquo (DL X 35)80 ou
seja que assiste quem precisa se colocar diante do que pode causar apreensatildeo duacutevida
incerteza Essa premecircncia tambeacutem eacute manifesta na Maacutexima 8 onde se fala que natildeo haveria
vantagem em proporcionar seguranccedila com relaccedilatildeo aos afazeres humanos se as coisas do alto
como os fenocircmenos celestes e toda sorte de possibilidade de interpretaccedilotildees que eles suscitam
permanecessem como causas de desassossego
Dessa forma percebemos que a filosofia epicurista eacute elaborada tendo em vista encetar
na alma do saacutebio uma convicccedilatildeo firme (piacutestin beacutebaion) a respeito da natureza como modelo e
espaccedilo para a felicidade do homem E essa convicccedilatildeo estaacute ligada a uma exigecircncia
instrumental pois ldquoaplicando atentamente esta doutrina determinaremos corretamente as
origens da perturbaccedilatildeo e do temor e nos livraremos delesrdquo (DL X 82)81 Eacute preciso aplicar
fazer uso do saber tornaacute-lo praticaacutevel Eacute nesse sentido que a pragmateiacutea pode ser
compreendida como a praacutetica de um saber que orienta a vida em torno de uma eacutetica
fundamentada na physiologiacutea Estamos falando de uma maneira de conduzir o saacutebio a
experimentar no seu vir a ser o sentido daquilo que ele inteligiu ao perquirir a phyacutesis
Investigar meditar e se ocupar por meio de uma praacutexis em estabelecer a partir desse saber
79 ὁ βίος αὐτοῦ πᾶς διrsquo ἀπιστίαν συγχυθήσεται καὶ ἀνακεχαιτισμένος ἔσται 80 () ἵνα παρrsquo ἑκάστους τῶν καιρῶν ἐν τοῖς κυριωτάτοις βοηθεῖν αὑτοῖς δύνωνται 81 ἂν γὰρ τούτοις προσέχωμεν τὸ ὅθεν ὁ τάραχος καὶ ὁ φόβος ἐγίνετο ἐξαιτιολογήσομεν ὀρθῶς καὶ ἀπολύσομεν
147 um modo de ser fundamentado na compreensatildeo de um estado de equiliacutebrio e liberdade
presentes na natureza satildeo atividades que ao mesmo tempo permitem compreender esse
aspecto pragmaacutetico da filosofia e tambeacutem remetem para um conhecimento elaborado tendo
em vista se estender agrave accedilatildeo do saacutebio sobre o mundo e em prol da proacutepria realizaccedilatildeo
Isso nos leva a entender que a pragmateiacutea conduz o sophoacutes a estabelecer com a
natureza e com o saber fundamentado nela uma relaccedilatildeo especiacutefica e fundamental para a
compreensatildeo da filosofia epicurista Ele acredita que a felicidade eacute possiacutevel que ele tem papel
na construccedilatildeo dessa felicidade porque no exerciacutecio de investigar a phyacutesis de orientar seu
modo de viver para uma forma mais natural ele experimenta no dia a dia o equiliacutebrio o
prazer e a liberdade que advecircm de se viver dentro dos limites depreendidos dessa
compreensatildeo da natureza A convicccedilatildeo dele eacute construiacuteda ao exercitar esse conhecimento e
com isso vai percebendo a realizaccedilatildeo de uma vida agradaacutevel na medida em que haacute o
espelhamento desse saber em seu eacutethos E aiacute se verifica o estabelecimento de uma relaccedilatildeo que
natildeo eacute de feacute eacute de confianccedila natildeo eacute adesatildeo a uma concepccedilatildeo fundada nos mitos eacute assimilaccedilatildeo
de um loacutegos fundamentado no imanente Quanto mais ele vive em funccedilatildeo de uma
compreensatildeo ancorada no sensiacutevel mais confia na possibilidade de sua realizaccedilatildeo A
confianccedila ou convicccedilatildeo nesse sentido estaacute ligada agrave percepccedilatildeo de que a vida tem sua
finalidade nela mesma na imanecircncia dos fenocircmenos que a compotildeem e que definem um
sentido para ela e tambeacutem estaacute relacionada agrave compreensatildeo de que a makariacuteos zecircn decorre de
uma postura ativa e protagonista do homem que deve fazer da sua existecircncia um exerciacutecio de
cuidado consigo mesmo
A pragmateiacutea exercitada como teacutechnen tinaacute periacute ton biacuteon enceta a asphaacuteleia que
produz na alma essa disposiccedilatildeo para cada vez mais se distanciar dos mitos das opiniotildees e de
concepccedilotildees que colocam a existecircncia humana como submetida agrave providecircncia ou agrave necessidade
e distante de sua realizaccedilatildeo Se ldquotodo homem sai da vida como se tivesse acabado de nascerrdquo
(SV 60)82 essa brevidade da vida (zecircn) evocada por Epicuro coloca em relevo a premecircncia
de pensar na melhor forma de conduzir nossa realidade histoacuterica A Sentenccedila 7583 sugere que
o tempo pode ser desperdiccedilado e diante da proximidade da morte levar o homem a lamentar
ldquoos bens que passaramrdquo Isso acontece quando se deixa a vida (biacuteos)84 aos sabores da
irracionalidade da desmesura ou quando as vontades ligadas agraves necessidades naturais e
82 Πᾶς ὥσπερ ἄρτι γεγονὼς ἐκ τοῦ ζῆν ἀπέρχεται Preferimos por uma questatildeo de clareza a segunte traduccedilatildeo Tout homme sort de la vie comme srsquoil eacutetait juste neacute (BOLLACK 1975 p 525) 83 Εἰς τὰ παρῳχηκότα ἀγαθὰ ἀχάριστος φωνὴ ἡ λέγουσα τέλος ὅρα μακροῦ βίου Eacute ingrata a voz que diz para os bens que passaram olha o fim de uma vida longa 84 Sobre essa diferenccedila entre zecircn e biacuteos ver nota 150 do capiacutetulo I
148 necessaacuterias satildeo substituiacutedas por desejos artificialmente criados pela cultura da poacutelis Por isso
o saacutebio deve exercitar a confianccedila e a disposiccedilatildeo para transformar a proacutepria existecircncia e viver
segundo seu pensamento
Nessa perspectiva a pragmateiacutea direciona o saacutebio para que medite sobre a natureza
sobre os bens circunscritos aos limites dela e sobre os modos de obtecirc-los Isso implica em
uma praacutexis do pensamento que se estende ateacute o campo das accedilotildees das condutas que estabelece
no mundo e orientam suas relaccedilotildees sociais definindo modos de convivecircncia com os outros A
vida saacutebia eacute definida por esse trabalho essa atividade contiacutenua de procurar sempre
correlacionar os pensamentos e as accedilotildees com um modelo natural de existecircncia Eacute nessa
relaccedilatildeo de aproximaccedilatildeo entre o pensar e a maneira como se viver que a pragmateiacutea nos
aponta para a indissociaccedilatildeo entre o saber physioloacutegico e a eacutetica Ou em temos mais
epicuristas a finalidade da pragmateiacutea eacute fazer com que ldquoo pensamento tendo atingido um
entendimento racional da finalidade do corpo e seus limites e tendo dissipado os temores
relativos agrave eternidade proporcione a vida integralrdquo85 (DL X 145 XX)86
352 - Exerciacutecio eacutetico
No livro VI de Vida e Doutrinas dos Filoacutesofos Ilustres lemos a seguinte passagem
atribuiacuteda a Dioacutegenes de Sinope da escola ciacutenica
Com efeito nada na vida se pode obter sem exerciacutecio e este eacute capaz de sobrepor-se a tudo Eliminados entatildeo os esforccedilos inuacuteteis o homem que escolhe os esforccedilos requeridos pela natureza vive feliz A falta de discernimento para perceber os esforccedilos necessaacuterios eacute a causa da infelicidade humana (DL VI 71)
Essa citaccedilatildeo coloca em relevo uma relaccedilatildeo entre a praacutetica de exerciacutecios e a felicidade
ao mesmo passo em que aponta para a importacircncia da phroacutenesis e do logismoacutes instrumentos
de discernimentos da alma Tal perspectiva tambeacutem se verifica no epicurismo que busca por
meio de uma praacutetica sobre si mesmo o espelhamento na psycheacute de um loacutegos fundamentado na
natureza A aacuteskesis epicurista incide sobre a maneira de pensar e de agir de forma a fazer com
que o saacutebio possa cuidar do seu bem-estar e realizar uma vida bela (kalocircs zecircn) O exerciacutecio de
vida do sophoacutes consiste em uma therapeiacutea para afastar da alma as opiniotildees que adoecem e
85 Traduccedilatildeo de Maacuterio da Gama Kury do texto de Dioacutegenes Laeacutercio com reparos 86 ἡ δὲ διάνοια τοῦ τῆς σαρκὸς τέλους καὶ πέρατος λαβοῦσα τὸν ἐπιλογισμὸν καὶ τοὺς ὑπὲρ τοῦ αἰῶνος φόβους ἐκλύσασα τὸν παντελῆ βίον παρεσκεύασεmiddot
149 viver a partir de uma dieteacutetica orientada para a repleccedilatildeo do que se circunscreve aos desejos
naturais e necessaacuterios Esse cuidado tambeacutem pode ser compreendido pelo prisma de uma
esteacutetica existencial na medida em que um modelo inteligido a partir da natureza eacute adotado
como referecircncia para a definiccedilatildeo do modo de ser do saacutebio Quando ele busca fazer sua vida
corresponder agrave imagem de equiliacutebrio de autaacuterkeia de imperturbabilidade (ataraxiacutea) que
estatildeo presentes na definiccedilatildeo de phyacutesis compreendida em sua totalidade ele estaacute buscando
fazer de seu eacutethos um reflexo do proacuteprio koacutesmos
Daiacute a tendecircncia a se pensar a filosofia epicurista como uma arte (teacutechne) de viver E a
noccedilatildeo de aacuteskesis traduz justamente essa ideia de um trabalho de uma artesania desenvolvida
em torno de fazer da experiecircncia de existir algo que proporcione felicidade E isso eacute atividade
eacute praacutetica contiacutenua de ldquoexperimentar fazer do dia posterior melhor que o anterior ateacute que
estejamos a caminhordquo (SV 48)87 Nesse sentido o homem eacute pensado como o principal agente
de transformaccedilatildeo de sua realidade cabe a ele a responsabilidade dentro do que eacute possiacutevel
sobre o proacuteprio destino Eacute por meio de exerciacutecios sejam de meditaccedilatildeo ou de praacutexis que ele
trabalha na alma uma compreensatildeo de si mesmo e daquilo que ele pode realizar A arte
epicurista consiste em traduzir um conhecimento em um fazer que torne efetiva a experiecircncia
do contentamento do bem-estar da philiacutea da liberdade Por isso a filosofia eacute definida por
Epicuro conforme relato de Sexto Empiacuterico como ldquouma atividade que por meio de discurso
(loacutegois) e raciociacutenio (dialogismoiacutes) proporciona uma vida felizrdquo88 Nesses termos percebe-se
uma concepccedilatildeo de praacutetica filosoacutefica que age no interior da alma e se projeta na forma do saacutebio
compreender o mundo e de se relacionar nele Eacute uma teacutechne concebida para transformar a
maneira de pensar do homem e por extensatildeo transformar sua forma de viver
Trata-se de um trabalho que incide sobre o proacuteprio pensamento e por extensatildeo tem
reflexos na conduta no haacutebito e portanto requer esforccedilo e dedicaccedilatildeo Por isso Epicuro
entende que a sabedoria natildeo estaacute ao alcance de todos Assim como o cuidado com a sauacutede
implica em uma dieteacutetica em haacutebitos voltados para o equiliacutebrio a vida filosoacutefica tambeacutem
demanda atenccedilatildeo uma ocupaccedilatildeo para a qual nem todos se dispotildeem vide os muitos que
preferem viver sob os valores da poacutelis e que vecircem em Alexandre o Grande um modelo de vida
a ser seguido Um fragmento de Dioacutegenes de Œnoanda embora incompleto permite ver
sugerida essa ideia de que nem todo mundo pode vir a ser saacutebio ldquo[] posto que nem todos
tecircm o poder Mais se noacutes o supuseacutessemos possiacutevel entatildeo verdadeiramente a vida dos deuses
87 Πειρᾶσθαι τὴν ὑστέραν τῆς προτέρας κρείττω ποιεῖν ἕως ἂν ἐν ὁδῷ ὦμενmiddot 88 Us 219 Sexto Empiacuterico (Adv Math V 9) 169 φιλοσοφίαν ένέργειαν εΐναι λόγοις καΐ διᾰλογισμοΐς τον εύδαίμονα βίον περιποιοθσαν
150 passaria aos homensrdquo (Œno fr 56)89 A doxografia tambeacutem nos coloca diante de um
testemunho de Clemente de Alexandria segundo ele ldquoEpicuro supotildee que soacute os gregos satildeo
qualificados para praticar a filosofiardquo90 Dioacutegenes Laeacutercio ao falar da concepccedilatildeo epicurista de
sophoacutes relata que ldquonem toda constituiccedilatildeo fiacutesica nem toda nacionalidade permite a um
homem tornar-se saacutebiordquo (DL X 117)91 Por traacutes desses registros fica colocada a existecircncia de
questotildees que impedem o exerciacutecio da sabedoria estejam ligadas a contextos poliacuteticos e
culturais a limitaccedilotildees individuas ou agrave escolha de cada um
A aacuteskesis epicurista natildeo remete para nenhum aspecto ligado agrave revelaccedilatildeo ou despertar
que tomando conta da alma a coloca no caminho da sabedoria Essa atividade estaacute ligada a
um procedimento de transformaccedilatildeo na maneira de compreender a realidade e do papel do
homem diante dela E como vimos nos capiacutetulos anteriores a meditaccedilatildeo e a praacutexis tecircm papel
fundamental nesse processo Eacute por meio desses exerciacutecios que o homem se coloca
criticamente com relaccedilatildeo agraves opiniotildees que fundamentam um loacutegos afastado da natureza e busca
realizar um modo de vida de acordo com a compreensatildeo que desenvolve ao se dedicar a
observar e refletir sobre os modos de ser da natureza Considerando que o escopo da filosofia
epicurista eacute a realizaccedilatildeo de uma vida prazerosa a aacuteskesis se relaciona agrave necessidade de
submeter o pensamento e as accedilotildees agrave ldquofinalidade da naturezardquo (tograve teacutelos tecircs phyacuteseos)92 e com
isso poder estabelecer um eacutethos katagrave phyacutesin Sendo assim na medida em que desenvolvem a
capacidade para estabelecer uma compreensatildeo a respeito de como afastar-se dos valores
convencionados e realizar um modo de ser mais natural os exerciacutecios estimulam um sentido
de resistecircncia de natildeo-conformismo de destemor Quanto mais o homem exercita a sabedoria
mais ele amadurece a confianccedila e a disposiccedilatildeo para transformar a proacutepria existecircncia
A pragmateiacutea pensada como exerciacutecio de vida filosoacutefica estabelece uma relaccedilatildeo com a
eacutetica em torno do cuidado de si o que evoca a ideia de um modo de viver mais equilibrado Eacute
por meio de uma meditaccedilatildeo e de uma praacutexis voltada para o prazer e a serenidade que se busca
exercitar essa vida fazendo dela uma experiecircncia praacutetica A finalidade da pragmateiacutea natildeo eacute
ser uma teoria a qual se subordina uma praacutexis natildeo eacute formar o homem para que depois ele
possa viver melhor o objetivo eacute se constituir como uma praacutetica de pensar a proacutepria praacutetica e
desenvolvecirc-la em funccedilatildeo de fazer experimentar essa makariacuteos zecircn A perspectiva epicurista eacute
a de uma ldquoformaccedilatildeordquo que vem com a experiecircncia O que a ldquoteoriardquo faz eacute traduzir o sentido de
89 [] puisque tous nrsquoen ont pas le pouvoir Mais si nous le supposons possible alors veacuteritablement la vie des dieux passera aux hommes 90 Us 226 Clemente de Alexandria Miscelacircnea I15 91 πάθεσι μᾶλλον συσχεθήσεσθαι οὐκ ἂν ἐμποδίσαι πρὸς τὴν σοφίαν 92 Maacutexima 25 τὸ τέλος τῆς φύσεως
151 uma praacutetica de vida saacutebia ou de acordo com a natureza Assim physiologiacutea vida e eacutetica satildeo
aspectos inseparaacuteveis na aacuteskesis epicurista Dai Epicuro afirmar que ldquovenerar o saacutebio eacute um
grande bem para quem venerardquo (SV 32)93 A intenccedilatildeo eacute mostrar que no modo de viver do
sophoacutes se encontra uma referecircncia a como eacute possiacutevel se colocar no mundo a partir de uma
vivecircncia eacutetica do exerciacutecio cotidiano de realizaccedilatildeo de liberdade e de prazer
Na Carta a Meneceu se diz que para gozar de uma vida feliz eacute preciso colocar em accedilatildeo
(praacutette) o saber acerca da natureza (DL X 123)94 Com isso Epicuro estaacute postulando uma
concepccedilatildeo de filosofia que eacute ao mesmo tempo exerciacutecio de uma forma de pensar e modo
saacutebio de viver Na medida em que se assimila o saber physioloacutegico mais haacute uma aproximaccedilatildeo
com um modelo natural e com isso se experimenta a autaacuterkeia e o equiliacutebrio A pragmateiacutea eacute
conhecimento relacionado agrave accedilatildeo ou atividade (eneacutergeia) de viver em funccedilatildeo de experimentar
sensaccedilotildees agradaacuteveis de sentir tranquilidade de contentar-se com o necessaacuterio para uma vida
saudaacutevel de alegrar-se com a amizade Colocar em praacutetica esse saber consiste em procurar
viver a sabedoria no dia a dia Isso implica em um assenhoramento da proacutepria vontade
condiccedilatildeo necessaacuteria para poder agir como autaacuterkes e orientar as accedilotildees tendo em vista uma
medida-limite (peacuteras) fundamentada na natureza Nesse sentido a pragmateiacutea eacute exerciacutecio de
compreensatildeo da phyacutesis de seus modos de ser e seus limites e tambeacutem eacute o exerciacutecio de uma
medida para o agir fundamental para orientar a conduta do saacutebio
Lembremos de que no capiacutetulo II deste trabalho dedicado a buscar compreender como
a pragmateiacutea eacute exercitada pela alma dissemos que a filosofia epicurista eacute elaborada como
uma therapeiacutea e que como tal tinha como finalidade afastar da alma de inquietudes temores
e desequiliacutebrios E isso implicava em mitigar na psycheacute a forccedila de um loacutegos fundamentado em
opiniotildees vazias ou em crenccedilas que natildeo resistiam aos criteacuterios de verdade relacionados ao
sensiacutevel projetando para aleacutem da phyacutesis o sentido imanente da realizaccedilatildeo do homem
A meditaccedilatildeo nesse contexto eacute tratada como uma atividade que leva a psycheacute a
estabelecer por meio da phroacutenesis e do logismoacutes um distanciamento dessas opiniotildees ou
desse loacutegos que adoece e aprisiona a alma Para isso a vida feliz eacute identificada ao exerciacutecio
do prazer e esse eacute pensado como fonte de equiliacutebrio porque estaacute dentro dos limites de uma
medida natural Eacute sob essa perspectiva que se pensa em um loacutegos-terapecircutico pois ldquoa
filosofia trabalha a alma humana mediante um loacutegos depurador esclarecedor acerca dos
limites e medidas proacuteprias agrave sua natureza O loacutegos enquanto um phaacutermakon visa sobretudo
93 Ὁ τοῦ σοφοῦ σεβασμὸς ἀγαθὸν μέγα τῷ σεβομένῳ ἐστί 94 Cf nota 28 da introduccedilatildeo
152 esclarecer as noccedilotildees de natureza alma valor e finalidaderdquo (SILVA 2003 p 80) Assim o
exerciacutecio de compreensatildeo da phyacutesis remete para essa (re)construccedilatildeo do loacutegos voltado para
conduzir agrave ataraxiacutea
Compreender a natureza eacute inteligir dela limites para os desejos de maneira a se
contrapor agrave desmesura de quem deseja estimulado pelas kenaigrave doacutexai A alma liberta de um
loacutegos que a desequilibra que a oprime que remete para uma vontade artificial pode escolher
em funccedilatildeo de sua compreensatildeo da realidade e do papel que percebe poder desenvolver nela
E aiacute reside um aspecto importante para entender o significado epicurista da praacutetica de um
saber fundamentado na natureza na medida em que visa curar desvencilhar ou afastar a alma
dos valores que a impedem de realizar uma vontade livre tambeacutem se constitui como praacutetica
eacutetica Ou seja a pragmateiacutea quando pensada como uma atividade voltada para exercitar um
entendimento da phyacutesis visando a ataraxiacutea (ausecircncia de perturbaccedilatildeo na alma) e a autaacuterkeia
(ter o princiacutepio da accedilatildeo em si mesmo)95 pode ser entendida como um exerciacutecio eacutetico Nesse
contexto eacutetico diz respeito a um modo de ser de viver ligado agrave possibilidade de poder de
pensar a proacutepria existecircncia sem a imposiccedilatildeo de convenccedilotildees de regras de normas Eacute viver
conforme um entendimento da natureza eacute trazer o sentido de uma filosofia que postula a
liberdade e o equiliacutebrio para a praacutetica de uma vida saacutebia Isso acontece quando se exercita
essa compreensatildeo da phyacutesis que ao levar agrave rejeiccedilatildeo de todo entendimento da realidade
fundamentada em mitos crenccedilas opiniotildees vazias exercita a liberdade da alma
Tambeacutem cabe destacar que nessa pesquisa tratamos de como a pragmateiacutea se
relaciona com a accedilatildeo saacutebia Tentamos evidenciar a concepccedilatildeo de sabedoria como exerciacutecio de
uma medida para o agir buscada na investigaccedilatildeo da natureza e que isso definiria o sentido da
praacutexis epicurista Eacute nesse contexto que a conduta do saacutebio eacute pensada como estando ligada agrave
realizaccedilatildeo de um teacutelos katagrave phyacutesin o que remete ao espelhamento de uma modelo natural de
vida equilibrada e livre no campo do agir social Cabe ao homem considerando as limitaccedilotildees
inerentes agrave possibilidade do conhecer e o discernimento que lhe permite a phroacutenesis e o
logismoacutes com relaccedilatildeo ao que estaacute ao seu alcance traduzir essa medida em escolhas e recusas
que possam trazer mais contentamento agrave sua maneira de existir e de se relacionar no mundo
Ao fazer isso a experiecircncia da liberdade (eleutheriacutea) eacute sentida enquanto atividade de
construccedilatildeo pelo proacuteprio homem de sua histoacuteria Para tanto o saacutebio define suas atitudes sem as
constriccedilotildees das convenccedilotildees das leis ele encontra na investigaccedilatildeo da phyacutesis os limites aos
quais subordinar a vontade O exerciacutecio da liberdade vai par e passo ao de circunscrever os
95 Ver nota 172 do capiacutetulo I
153 desejos ao acircmbito do natural e necessaacuterio Exercitar a sabedoria eacute viver segundo uma medida
que o saacutebio identifica na natureza e natildeo na cultura na religiatildeo na poliacutetica Os limites que vatildeo
definir o sentido de uma accedilatildeo saacutebia satildeo inteligidos a partir da physiologiacutea Assim no
epicurismo a vida deve ser medida a partir de um modelo universal e que remeta para o gozo
de uma vida serena e alegre
O agir do sophoacutes tem portanto uma motivaccedilatildeo eacutetica a accedilatildeo eacute livre e esclarecida natildeo
havendo imposiccedilatildeo da ordem do noacutemos Na origem desse comportamento vemos o
entendimento de que a realizaccedilatildeo do homem implica em uma conduta de vida que busque
trazer para sua realidade histoacuterica o sentido de autaacuterkeia e de liberdade que caracteriza uma
eacutetica katagrave phyacutesin Eacute em funccedilatildeo disso que se busca estabelecer um eacutethos que lhe propicie
realizar-se de forma mais autecircntica estabelecendo relaccedilotildees pautadas pela philiacutea pelo
equiliacutebrio pelo bem-estar (eustatheiacutea) Assim quando orienta sua conduta pelo saber acerca
da natureza o saacutebio exercita a liberdade para escolher e recusar em funccedilatildeo uma vida
equilibrada justa e agradaacutevel para estabelecer relaccedilotildees a partir de afinidades e da
conveniecircncia muacutetua (opheacuteleia) para governar a si mesmo sem delegar esse poder outrem Daiacute
podermos pensar que a pragmateiacutea epicurista compreendida como praacutetica de um modo de
viver ou de se conduzir no mundo tendo a phyacutesis como modelo a partir do qual satildeo definidas
as finalidades para agir tambeacutem nos remete para a noccedilatildeo de exerciacutecio eacutetico
Diante dessas reflexotildees percebemos ser possiacutevel nos remeter por meio da expressatildeo
exerciacutecios eacuteticos agrave pragmateiacutea e com isso traduzir um sentido de vivecircncia de um saber
fundamentado na natureza como uma praacutetica cotidiana de pensamento e de accedilatildeo que tem na
phyacutesis um princiacutepio de fundamentaccedilatildeo A meditaccedilatildeo e a praacutexis satildeo maneiras de realizaccedilatildeo
dessa aacuteskesis tendo em vista conduzir o homem do conhecimento acerca da realidade para o
estabelecimento de um modo de vida katagrave phyacutesin Dito de outra forma satildeo atividades que
permitem inter-relacionar na praacutetica a physiologiacutea e a eacutetica E esse aspecto eacute fundamental para
desenvolver uma convicccedilatildeo firme com relaccedilatildeo agrave possibilidade de tendo como referecircncia a
natureza experimentar uma vida feliz ao fazer da proacutepria existecircncia um exerciacutecio eacutetico
353 - A praacutetica da makariacuteos zecircn
A pragmateiacutea eacute a filosofia pensada e praticada tendo em vista a vida feliz (makariacuteos
zecircn) A sabedoria consiste em a partir da physiologiacutea estabelecer um modo de viver
equilibrado e prazeroso Nesse sentido ser saacutebio natildeo eacute uma conquista que apoacutes ser alcanccedilada
154 determina o fim da busca eacute atraveacutes de uma praacutetica contiacutenua que a sabedoria se realiza Assim
podemos dizer que a pragmateiacutea eacute o exerciacutecio de realizaccedilatildeo daquilo a que o sophoacutes aspira Na
aacuteskesis epicurista o teacutelos natildeo eacute projetado para depois ele estaacute no proacuteprio exerciacutecio ldquoO
mesmo tempo eacute tanto o do nascimento do maior bem quanto o da dissoluccedilatildeordquo (SV 42)96 Ou
seja quando nos livramos do que causa dor o prazer que eacute identificado ao maior dos bens se
apresenta
Daiacute percebemos que no epicurismo natildeo se professa uma ideia de teleologia colocando
o sentido da accedilatildeo para depois dela O exerciacutecio natildeo eacute expediente para se chegar agrave sabedoria
ele jaacute eacute a consecuccedilatildeo dela Eacute nessa perspectiva que a aacuteskesis natildeo eacute pensada como meio para
desenvolver as virtudes mas como forma de experimentar os prazeres ldquoNatildeo eacute para ter uma
dessas coisas mencionadas97 que noacutes empreendemos essa praacutetica ltda filosofiagt mas para ser
feliz tendo alcanccedilado a finalidade de acordo com a naturezardquo (Œno Fr 28)98 O exerciacutecio eacute
realizado porque ele traz consigo a experiecircncia do prazer ldquoPorque noacutes natildeo comemos o patildeo
para ter a satisfaccedilatildeo depois nem bebemos o vinho para sentir o deleite apoacutes nem ejaculamos
o esperma para gozar posteriormente mas a accedilatildeo provoca esses prazeres em noacutes
imediatamente sem esperar pelo futurordquo (Œno Fr 33 VII)99 Quer dizer os exerciacutecios
realizam aquilo que eles tecircm em mira Assim natildeo cabe por exemplo pensar a liberdade
praticaacute-la para depois ser livre Tanto a meditaccedilatildeo quanto a praacutexis em torno da liberdade jaacute
trazem consigo a experiecircncia da eleutheriacutea dessa libertaccedilatildeo de (capiacutetulo II) e da liberdade
para (capiacutetulo III)
Pode-se dizer que o que fundamenta a accedilatildeo do saacutebio epicuacutereo eacute a realizaccedilatildeo do prazer mediante a liberdade de escolha Aos olhos de Epicuro o que produz a liberdade eacute uma dyacutenamis isto eacute o poder de ter o princiacutepio da accedilatildeo em si mesmo que eacute precisamente neste contexto a definiccedilatildeo do termo autaacuterkeia (SILVA 2005 p 47)
Essa liberdade estaacute relacionada agrave busca de realizar uma forma autecircntica de viver a natildeo
perseguir os bens que as convenccedilotildees e as opiniotildees colocam como fundamentais agrave felicidade o
que conduz a uma forma inautecircntica de viver O sophoacutes vive a partir do que ele pensa estar
adequado com a realizaccedilatildeo de uma vida feliz ldquoO saacutebio conhece os valores autecircnticos da vida
frente agraves falsificaccedilotildees e enganos da sociedade captou o sabor do verdadeiro e de acordo com 96 Ὁ αὐτὸς χρόνος καὶ γενέσεως τοῦ μεγίστου ἀγαθοῦ καὶ ἀπολύσεως ltτοῦ κακοῦgt 97 Riquezas honrarias poder poliacutetico 98 Ce nrsquoest pas afin drsquoavoir une des choses susmentionneacutees que nous avons entrepris cette pratique ltde la philosophiegt mas pour ecirctre heureux ayant acquis la fin rechercheacutee par la nature 99 Car nou ne mangeons pas le pain pour prendre plaisir par la suiacutete ni ne buvons le vin pour y prendre plaisir apregraves ni nrsquoejectons le sperme pour en jouir par la suiacutete mais lrsquoaction atteint ces plaisir em nous immeacutediatement sans attendre lrsquoavenir
155 os bens conforme a natureza (tagrave katagrave physin) sabe dirigir seu comportamento sereno e livre
ateacute a felicidaderdquo (GUAL 1985 p 219) E isso remete para a praacutetica de se colocar distante do
asseacutedio dos desejos das opiniotildees vazias ou de outras formas de assenhoramento e de buscar
uma aproximaccedilatildeo com os bens inteligidos a partir da investigaccedilatildeo da natureza como a
liberdade o prazer a amizade a frugalidade a autaacuterkeia o equiliacutebrio Para Epicuro esse eacute o
motivo para buscar se afastar do burburinho da poacutelis e procurar o recolhimento ldquoNatildeo eacute sem
razatildeo que seu aluno Lucreacutecio viu e retratou com um olhar mais luacutecido e mais atento do que
qualquer outro poeta romano a vida no campo e a caracterizou como uma escola de sabedoria
e calma cujas vozes concordam com aqueles da doutrina do mestre (BIGNONE 1973 p
231) Essa busca por referecircncia na natureza aponta para essa necessidade permanente de
exercitar uma vida tranquila de fazer a alma experimentar a ataraxiacutea
A ataraxiacutea resulta da autaacuterkeia Quem age a partir de si mesmo pode escolher e
recusar tendo em vista afastar a alma de fontes de perturbaccedilatildeo Isso nos remete para pensar a
makariacuteos zecircn a partir de libertaccedilatildeo da alma de falsas concepccedilotildees A psycheacute livre de temores
experimenta a imperturbabilidade que Epicuro relaciona agrave vida feliz Nesse sentido a
ataraxiacutea e a autaacuterkeia estatildeo relacionadas agrave possibilidade de poder reorientar o pensamento
para buscar se referenciar na phyacutesis e natildeo nos mitos e nas crenccedilas Eacute a partir dessa inter-
relaccedilatildeo entre a physiologiacutea e o modo de viver que ela engendra que o saacutebio exercita a
liberdade eacutetica (eleutheriacutea) que lhe permite realizar a vida em funccedilatildeo de sua compreensatildeo da
realidadenatureza Viver conforme se pensa eacute o exerciacutecio que realiza a makariacuteos zecircn A vida
feliz eacute um exerciacutecio de liberdade eacute um exerciacutecio eacutetico sentido e finalidade da pragmateiacutea
epicurista
156
CONCLUSAtildeO
Epicuro foi sensiacutevel agrave condiccedilatildeo dos homens de seu tempo oprimidos politicamente e
presos agrave busca desenfreada pela satisfaccedilatildeo de desejos fora dos limites do natural Ele
acreditou que para assegurar uma vida feliz (makariacuteos zecircn) era preciso trabalhar na alma
(psycheacute) do homem um loacutegos acerca da realidade que pudesse levar a discernir a calcular e a
escolher entre os valores as ideias os bens as finalidades aqueles que estatildeo ligados ao bem-
estar ao equiliacutebrio agrave tranquilidade Eacute nesse sentido que a phyacutesis foi pensada como referecircncia
para um modo de viver A partir dela foram inteligidos os limites e as finalidades para um agir
sabiamente Dessa forma a sabedoria foi concebida como um exerciacutecio de aproximaccedilatildeo com
a natureza pois Epicuro via na vida katagrave phyacutesin a possibilidade de espelhar na alma o mesmo
sentido de harmonia que percebia na phyacutesis
A filosofia assim foi direcionada para a realizaccedilatildeo de um projeto de sabedoria
identificado com a construccedilatildeo da proacutepria felicidade Para tanto a sophiacutea foi pensada como
atividades (eneacutergeias) que tornam possiacutevel experienciar um eacutethos fundamentado na
physiologiacutea Eacute nesse contexto que Epicuro confere agrave praacutetica filosoacutefica o sentido de
pragmateiacutea ou seja ela eacute um saber em torno da vida (teacutechnen tinaacute periacute ton biacuteon) que se
efetiva como um exerciacutecio permanente de compreensatildeo da natureza e de vida a partir dessa
compreensatildeo
A philosophiacutea epicurista foi elaborada como uma pragmateiacutea que enquanto saber
remete para uma compreensatildeo physioloacutegica imanente da realidadenatureza como aacuteskesis
permite fazer da makariacuteos zecircn uma experiecircncia sentida no dia a dia Para realizar essa
pragmateiacutea Epicuro mandou meditar e praticar seus ensinamentos via nessas atividades a
possibilidade de o homem trazer para sua vida o sentido de liberdade necessaacuterio para poder
fruir de uma existecircncia autecircntica e equilibrada Eacute por meio dos exerciacutecios de meditaccedilatildeo
(meleacutetema) e de praacutexis (praacutexis) que o saacutebio vem a ser em torno da cura de si mesmo e do
prazer (hedoneacute) conforme a natureza (tagrave katagrave phyacutesin)
Viver filosoficamente ensina-nos Epicuro implica em meditar (exerciacutecio praacutetico que
liberta a alma das opiniotildees e crenccedilas e com isso restitui ao homem a autaacuterkeia o poder de
agir a partir de si mesmo das proacuteprias convicccedilotildees) e em tornar efetiva a praacutexis (atividade que
traz a autaacuterkeia para a maneira de conduzir no mundo na forma de se relacionar em
157 sociedade e com ela eacute o exerciacutecio da liberdade para estabelecer relaccedilotildees mais equilibradas e
realizar um modo e vida mais natural) Eacute dessa maneira que o saacutebio exerce uma disposiccedilatildeo
para viver autenticamente a partir de uma vontade esclarecida e livre para agir sem
admoestaccedilotildees A sabedoria vai assim sendo construiacuteda como um exerciacutecio eacutetico seja porque
realiza um modo de vida autaacuterkes e equilibrado ou porque exercita a liberdade para escolher e
evitar em funccedilatildeo do bem estar da alegria do prazer Esse eacute o princiacutepio e a finalidade da
pragmateiacutea epicurista e eacute em torno dessa maneira de conceber e praticar a filosofia que se
percebe o sentido de coerecircncia unidade e sustentaccedilatildeo presente no pensamento epicurista
Epicuro procurou mostrar ser possiacutevel fazer da filosofia algo uacutetil um saber orientado
para instrumentalizar o homem para viver agradavelmente Ao conduzir a escolhas e accedilotildees
voltadas para a realizaccedilatildeo de uma vida tranquila livre e frugal ele se contrapocircs a Paideacuteia
(cultura) cujos valores estimulavam a procura pela riqueza gloacuteria e pelo poder Essa cultura
seguida pela maioria traduzia as aspiraccedilotildees de uma poacutelis que cristalizava e transmitia valores
e saberes que alheavam o homem de si e do sentido de sua proacutepria realizaccedilatildeo Essa educaccedilatildeo
natildeo lhe dava autonomia nem lhe permitia compreender realmente o mundo como espaccedilo de
realizaccedilatildeo de si mesmo A sociedade agrave eacutepoca de Epicuro natildeo espelhava o ideal de uma vida
feliz mas de uma cidade assentada na busca do poder desmesurado e voltado para as batalhas
as conquistas e para o assenhoramento de outros povos e territoacuterios A cultura naqueles
tempos tinha em vista a realizaccedilatildeo do homem no contexto e na dependecircncia da poacutelis por isso
a Paideacuteia era para Epicuro vazia pois impedia a construccedilatildeo e uma existecircncia em torno da
autorrealizaccedilatildeo Daiacute ele procurar seguir por outro caminho inserindo a felicidade como um
valor cultural e finalidade maior Nesse sentido a filosofia do Jardim foi concebida para
mudar a concepccedilatildeo quantos aos valores fundamentais para uma vida feliz
O epicurismo natildeo teve como escopo a obtenccedilatildeo do poder poliacutetico nem econocircmico
nem assenhorar a vontade de outrem Ele buscou conduzir o homem a ter o domiacutenio sobre si
proacuteprio a exercitar a liberdade a compreender suas vontades e relacionaacute-las a uma forma
mais natural de compreensatildeo do mundo Para tanto foi preciso aproximaacute-lo do sentido de sua
natureza A realizaccedilatildeo dele precisou ser pensada a partir de valores inteligidas a partir do
estudo da phyacutesis Dessa forma seria possiacutevel a cada um viver de acordo com sua naturalidade
e realizar uma existecircncia pautada pelo prazer Tal perspectiva repercutiu sobre o eacutethos do
saacutebio pois o modo de vida dele precisou permitir expressar esse sentido Tratou-se de trazer
para o campo praacutetico da vida um saber que permitisse identificar a natureza dos desejos e
saber quais deviam ser realizados Em outros termos a questatildeo natildeo era mais pensar a
158 realizaccedilatildeo de si mesmo a partir dos valores e da cultura da poacutelis mas a partir de um
referencial natural Por isso o saacutebio se afastou da cidade e se voltou para a interioridade
Distanciando-se do burburinho das opiniotildees dos muitos e investigando a phyacutesis o homem
buscou esclarecer a proacutepria vontade e estabelecer uma praacutexis a partir de um pensamento
autecircntico
A relevacircncia que Epicuro deu agrave investigaccedilatildeo da natureza como fundamento para
estabelecer um saber para a vida (teacutechnen tinaacute periacute ton biacuteon) remete para uma ligaccedilatildeo estreita
com o que eacute empiacuterico O loacutegos epicurista natildeo foi desenvolvido para ser a verdade sobre as
coisas mas de se constituir como um discurso sapiencial que tem nos sentidos um criteacuterio de
verdade e eacute orientado para o exerciacutecio praacutetico de viver Dessa forma Epicuro distanciou sua
filosofia do ceticismo e da retoacuterica e fundamentou a pragmateiacutea sobre um conhecimento
empiacuterico-imanente O loacutegos foi elaborado a partir do campo das experiecircncias sensiacuteveis e as
questotildees filosoacuteficas buscaram ser resolvidas no campo da vida experimentada Dessa maneira
se buscou ensinar ao homem que a realidade natildeo eacute necessariamente aquilo que estabelece a
doacutexa ou a cultura Assim ele pocircde se perceber como um ser capaz de pensar as finalidades
que deviam ser buscadas e aquelas que deviam ser descartadas e com isso se autodeterminar
em direccedilatildeo a uma concepccedilatildeo de ser no mundo ligada ao bem viver
O epicurismo foi orientado para a gestatildeo da vida para as accedilotildees para saber que
escolhas e recusas fazer Com esse direcionamento a filosofia do Jardim buscou dar conta do
empiacuterico das necessidades do homem no mundo Ela natildeo foi pensada para ser apenas um
discurso um uso da razatildeo que resultasse em retoacuterica O objetivo foi dar um sentido agrave
realidade agrave sociedade ao homem colocando o prazer (hedoneacute) como finalidades (teacutelos) A
vida do saacutebio foi direcionada para a consecuccedilatildeo da felicidade que por sua vez foi identificada
ao prazer Ou seja a palavra e a vida do sophoacutes foram orientadas para a realizaccedilatildeo de um
modo feliz de vida Natildeo foi uma filosofia que se limitou ao loacutegos ela procurou se realizar no
exerciacutecio de um modo saacutebio de viver O escopo natildeo foi projetar um homem ideal em uma
cidade ideal mas pensar em como esse homem concreto poderia viver bem em harmonia
com a natureza e com seus semelhantes Nesse sentido podemos ver um aspecto
antropoloacutegico perpassando o pensamento epicurista O homem pensado foi aquele que trazia
consigo os seus desejos sua imaginaccedilatildeo sua capacidade de se autodirecionar Ele eacute ser da
phyacutesis e na phyacutesis e em torno dessa constataccedilatildeo se definem o fundamento do conhecimento e
os limites do conhecer para entatildeo poder estabelecer as finalidades de uma vida bem realizada
A physiologiacutea epicurista ensinou que a necessidade eacute derrogada pelo acaso Anaacutenke e
159 tycheacute existem por necessidade Da mesma forma que se pode pensar na phyacutesis a derrogaccedilatildeo
de um determinismo absoluto por analogiacutea podemos tambeacutem pensar no campo eacutetico a
possibilidade de o homem se desviar de concepccedilotildees fatalistas e traacutegicas e realizar uma vida
livre A pragmateiacutea se volta para desenvolver um esclarecimento a respeito da possibilidade
de autotransformaccedilatildeo autossuperaccedilatildeo na medida em que se realiza como uma praacutetica de
libertaccedilatildeo de amarras culturais morais e religiosas levando o homem a limitar a dependecircncia
das opiniotildees vazias e de libertaccedilatildeo para poder governar a si mesmo e agir a partir do que
conhece acerca da natureza Nisso reside a concepccedilatildeo de que ele natildeo eacute um ser irretocaacutevel
cujo destino fora previamente definido como obra acabada dos deuses ou trageacutedia histoacuterico-
cultural O homem ao qual remete a filosofia epicurista eacute ser em construccedilatildeo que pode
determinar a si mesmo e exercer uma artesania sobre o proacuteprio modo de pensar e de agir
Longe de aceitar os fatalismos da vida ele pode superar aquilo que faz mal desequilibra
adoece a alma e o corpo e dessa forma tambeacutem pode realizar o desejo de ter em seu proacuteprio
domiacutenio o sentido de sua realizaccedilatildeo no mundo A philosophiacutea nesse sentido se opotildee aos
condicionamentos histoacuterico-culturais aos valores cristalizados e difundidos na poacutelis por meio
da educaccedilatildeo da moral da religiatildeo dos mitos da Paideacuteia
A filosofia epicurista se realiza como exerciacutecio empiacuterico-reflexivo Satildeo as atividades
de meditaccedilatildeo (meleacutetema) e de praacutexis (praacutexis) que vatildeo constituiacute-la como uma pragmateiacutea O
sentido eacute o de espelhar um saber acerca da phyacutesis na alma do homem de tal modo que ele
possa estabelecer um modo de viver de acordo com a natureza (katagrave phyacutesin) ou seja
autaacuterquica em relaccedilatildeo agraves opiniotildees vazias (kenaigrave doacutexai) equilibrada e direcionada para os
prazeres naturais e necessaacuterios Trata-se de um exerciacutecio de amadurecimento que se daacute na
medida em que o homem busca fazer de sua existecircncia a praacutetica de uma vida filosoacutefica Eacute
dessa forma que ele trilha um caminho que vai da physiologiacutea ao eacutethos para poder trazer para
sua vida um sentido de liberdade autorrealizaccedilatildeo e felicidade
Cabe ressaltar que a pragmateiacutea epicurista natildeo busca num sentido religioso a
conversatildeo do homem a um conjunto de crenccedilas ou a adotar um modelo de viver
fundamentado em um sentimento de feacute A meditaccedilatildeo e a praacutexis buscam desenvolver uma
confianccedila (piacutestis) em se ter o conhecimento sobre a natureza como guia para estabelecer um
modelo de vida autecircntica e bem realizada Eacute o exerciacutecio de viver de acordo com o que se
pensa e de pensar de acordo com a natureza que faz o saacutebio acreditar no saber filosoacutefico como
um caminho para a felicidade Quanto mais ele se dedica a investigar e a aprender sobre a
phyacutesis mais ele desenvolve a confianccedila na possibilidade de experimentar uma vida agradaacutevel
160 E aiacute reside um traccedilo fundamental do epicurismo ele natildeo remete para um sentimento religioso
nem miacutestico nem se fundamenta em feacute eacute exerciacutecio de confianccedila no raciociacutenio empiacuterico
(epilogismos) sobre a natureza
Embora falar em meditaccedilatildeo hoje possa evocar a noccedilatildeo de um misticismo de
religiosidade meditar deve ser entendido no contexto do epicurismo como uma atividade
aproximaccedilatildeo da alma consigo mesmo e com a natureza Eacute um exerciacutecio que natildeo tem
fundamento nem finalidade religiosa Ela parte de uma reflexatildeo sobre a realidade empiacuterica
para estabelecer um saber direcionado para a praacutetica da sabedoria Dito de outra forma eacute
meditando que o saacutebio pensa a proacutepria existecircncia como um espelhamento da natureza e
procura viver de acordo com esse pensamento Essa natildeo separaccedilatildeo entre o pensar e o praticar
se expressa na forma de um saber para vida ou de uma pragmateiacutea
Haacute uma dificuldade em conceber nos dias atuais a meditaccedilatildeo como um exerciacutecio
praacutetico A tendecircncia eacute vecirc-la apenas como ato reflexivo Mas para Epicuro ela eacute um fazer da
psycheacute que se volta para compreender a realidade e para procurar a melhor maneira de agir
diante dela tendo em vista a realizaccedilatildeo de uma vida feliz Nesse sentido a meditaccedilatildeo se
relaciona com a aacuteskesis no sentido de exerciacutecio e natildeo de contemplaccedilatildeo Na pragmateiacutea
epicurista a meditaccedilatildeo eacute um atividade praacutetica porque natildeo basta meditar sobre o prazer por
exemplo eacute preciso que essa meditaccedilatildeo traga consigo a sensaccedilatildeo do prazer como aquele que
vem na forma de um estado de imperturbabilidade da alma (ataraxiacutea) Meditaccedilatildeo e praacutexis
constituem em conjunto um exerciacutecio de compreensatildeo da vida buscando uma aproximaccedilatildeo
com a natureza Assim a pragmateiacutea tem como sentido um agir eacutetico uma accedilatildeo no mundo
voltada para experimentar a liberdade para ser o que se eacute para pensar e escolher o proacuteprio
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161
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