Post on 10-Dec-2015
description
II. MANIA E MELANCOLIA
A noção de melancolia era considerada, no século XVI, entre uma certa definição pelos
sintomas e um princípio de explicação oculto no próprio termo que a designa. Do lado
dos sintomas, encontram-se todas as idéias delirantes que um indivíduo pode ter a
respeito de si mesmo:
Alguns deles acreditam ser animais, cuja voz e gestos imitam. Alguns pensam que são
vasilhas de vidro e, por isso, recuam diante dos outros, com medo de se quebrarem;
outros temem a morte, à qual no entanto acabam se entregando freqüentemente. Outros
imaginam que são culpados de algum crime, e tanto que tremem e têm medo quando
vêem alguém ir em sua direção, pensando que querem pôr-lhes as mãos em cima, para
levá-los prisioneiros e fazê-los morrer pela justiça22.
Temas delirantes que permanecem isolados e não comprometem o conjunto da razão.
Sydenham observará ainda que os melancólicos são
21 PINEL, Nosographie philosophique, ed. de 1818, III, p. 130. 22 J. WEYER, De
praestigiis daemonum, trad. francesa, p. 222.
290
pessoas que, fora disso, são muito comportadas e muito sensatas, e que têm uma argúcia e
uma sagacidade extraordinárias. Aristóteles também observou, com razão, que os
melancólicos têm mais espírito que os outros23
.
Ora, este conjunto sintomático tão claro, tão coerente, vê-se designado por uma palavra
que implica todo um sistema causal, o da melancolia:
Peço-lhes que observem mais de perto os pensamentos dos melancólicos, suas palavras,
suas visões e ações, e verão como todos os seus sentidos são depravados por um humor
melancólico espalhado pelos seus cérebros.24
Delírio parcial e ação da bílis negra se justapõem na noção de melancolia, sem outras
relações, no momento, além de um confronto sem unidade entre um conjunto de signos e
uma denominação significativa. Ora, no século XVIII a unidade será encontrada, ou
melhor, uma troca se realizará — com a qualidade desse humor frio e negro tornando-se a
coloração maior do delírio, seu valor próprio diante da mania, da demência e do frenesi, o
princípio essencial de sua coesão. E enquanto Boerhaave ainda define a melancolia
somente como "um delírio longo, obstinado e sem febre, durante o qual o doente está
sempre ocupado com um único .e mesmo pensamento"25
. Alguns anos mais tarde,
Dufour fez com que todo o peso de sua definição recaísse sobre "o temor e a tristeza",
doravante encarregados de explicar o caráter parcial do delírio:
Assim se explica o fato de os melancólicos gostarem da solidão e evitarem as
companhias; é isso que os torna mais apegados ao objeto de seu delírio ou a sua paixão
predominante, seja qual for, enquanto parecem indiferentes a todo o resto26.
A fixação do conceito não se caracteriza por um novo rigor na observação, nem por uma
descoberta no domínio das causas, mas por uma transmissão qualitativa que parte
de uma causa implícita na designação para uma percepção significativa nos efeitos.
Por muito tempo — até o começo do século XVII — o debate sobre a melancolia
permaneceu preso à tradição dos quatro humores
23 SYDENHAM, Dissertação sobre a afeçção histórica. In Médecine pratique. trad. Jault,
p. 399.
24 WEYER, loc. cit., ibid.25 BOERHAAVE, Aphorismes, 1089. 26 DUFOUR, loc. cit.
291
e suas qualidades essenciais: qualidades estáveis que de fato pertencem a uma substância,
que só pode ser considerada como causa. Para Fernel, o humor melancólico, aparentado à
Terra e ao Outono, é um suco "de consistência espessa, frio e seco de temperamento"27
.
Mas na primeira metade do século, organiza-se toda uma discussão a respeito da origem
da melancolia28
: é necessário ter um temperamento melancólico para se ver atacado pela
melancolia? O humor melancólico é sempre frio e seco, nunca acontecendo de ser quente
ou úmido? É de fato a substância que age, ou as qualidades que se comunicam? Pode-se
resumir do seguinte modo o que se conseguiu nesse longo debate:
1. A causalidade das substâncias é cada vez mais freqüentemente substituída por um
percurso das qualidades que, sem o auxílio de suporte algum, transmitem-se
imediatamente do corpo para a alma, do humor para as idéias, dos órgãos para o
comportamento. Assim, a melhor prova, para o Apologista de Duncan, de que o suco
melancólico provoca a melancolia, é que nele se encontram as próprias qualidades da
doença:
O suco melancólico está mais capacitado a ter as condições necessárias para a produção
da melancolia do que vossas cóleras queimadas, pois com sua frieza diminui a quantidade
dos espíritos, com sua secura torna-os capazes de conservar por bastante tempo a espécie
de uma imaginação forte e obstinada, e com seu negrume priva-os de sua claridade e
sutilidade naturais29.
2. Além dessa mecânica das qualidades, há uma dinâmica que analisa em cada uma delas
a força que .nela se encerra. É assim que o frio e a secura podem entrar em conflito com o
temperamento, e dessa oposição vão nascer signos de melancolia tanto mais violentos na
medida em que existe uma luta: a força que prevalece e que carrega consigo todas as que
lhe resistem. Assim é que as mulheres, as quais por sua natureza estão pouco inclinadas à
melancolia, quando a ela sucumbem o fazem com mais gravidade:
Elas são mais cruelmente tratadas por esse mal, e agitam-se de modo mais violento, pois,
sendo a melancolia mais oposta a seu temperamento, ela as afasta mais de sua
constituição natural30
.
27 FERNEL, Physiologia in Universa medica, 1607, p. 121.28 A razão desse debate foi o
problema de saber se se podia assimilar os
possuídos aos melancólicos. Seus protagonistas, na França, foram Duncan
e La Mesnardière.29 Apologia pour Monsieur Duncan, p. 63. 30 Ibidem, pp. 93-94.
292
3. Mas por vezes é no próprio interior de uma qualidade que surge o conflito. Uma
qualidade pode alterar-se por si mesma em seu desenvolvimento e tornar-se o contrário
do que era. Assim, quando "as entranhas se aquecem, quando tudo fica assando dentro do
corpo... quando todos os sucos se incendeiam", nesse momento todo esse abrasamento
pode transformar-se em fria melancolia — produzindo
quase a mesma coisa que representa a cera num archote caído... Esse resfriamento do
corpo é o efeito comum que se segue aos calores imoderados quando estes se desfizeram
e esgotaram seu vigor31.
Existe uma espécie de dialética da qualidade que, livre de toda coação substancial, de
toda destinação primitiva, caminha por entre inversões e contradições.
4. Finalmente, as qualidades podem ser modificadas pelos acidentes, pelas circunstâncias,
pelas condições da vida, de modo que um ser seco e frio pode tornar-se quente e úmido,
se sua maneira de viver a isso o inclina. É o que acontece às mulheres: elas
ficam na ociosidade, seus corpos transpiram menos (que os dos homens), o calor, os
espíritos e os humores permanecem dentro deles32.
Assim libertadas do suporte substancial onde tinham permanecido prisioneiras, as
qualidades vão representar um papel organizador e integrador na noção de melancolia.
Por um lado, elas vão desenhar, entre os sintomas e as manifestações, um certo perfil da
tristeza, do negrume, da lentidão, da imobilidade. Por outro lado, vão constituir um
suporte causal que não mais será a fisiologia de um humor, mas a patologia de uma idéia,
de um temor, de um erro. A unidade mórbida não é definida a partir dos signos
observados nem das causas supostas; mas, a meio caminho e acima de uns e outros, ela é
percebida como uma certa coerência qualitativa, que tem suas leis de transmissão,
desenvolvimento e transformação. É a lógica secreta dessa qualidade que ordena o devir
da noção de melancolia, e não a teoria médica. Isto é evidente a partir dos textos de
Willis.
A primeira vista, a coerência das análises está assegurada ao nível da reflexão
especulativa. A explicação, em Willis, é inteiramente tomada de empréstimo dos espíritos
animais e de suas propriedades
31 LA MESNARDIÉRE, Traiti de la mélancolie, 1635, p. 10. 32 Apologie pour
Monsieur Duncan, pp. 85-86.
293
mecânicas. A melancolia é uma "loucura sem febre nem furor, acompanhada pelo temor e
pela tristeza". Na medida em que é delírio — isto é, ruptura essencial com a verdade —,
sua origem reside num movimento desordenado dos espíritos e num estado defeituoso do
cérebro; mas esse temor e essa inquietação que tornam os melancólicos "tristes e
meticulosos" podem ser explicados apenas pelos movimentos? Pode existir uma
mecânica do temor e uma circulação dos espíritos que sejam próprias da tristeza? Isso é
uma evidência para Descartes, mas já não o é para Willis. A melancolia não pode ser
tratada como uma paralisia, uma apoplexia, uma vertigem ou uma convulsão. No fundo,
não é possível nem mesmo analisá-la como uma simples demência, embora o delírio
melancólico pressuponha uma mesma desordem no movimento dos espíritos; as
perturbações da mecânica explicam bem o delírio — este erro comum a toda loucura,
demência ou melancolia —, mas não a qualidade própria do delírio, a cor da tristeza e do
temor que lhe tornam singular a paisagem. É necessário penetrar no segredo das
diáteses33
. Enquanto isso, são essas qualidades essenciais, ocultas no próprio grão da
matéria sutil, que explicam os movimentos paradoxais dos espíritos.
32. 33.
Na melancolia, os espíritos são arrastados por uma agitação, porém uma agitação débil,
sem poderes nem violência: espécie de empurrão impotente que não segue os caminhos
traçados nem as vias abertas (aperta opercula) mas atravessa a matéria cerebral criando
poros novos, incessantemente; no entanto, os espíritos não se perdem muito nos caminhos
que traçam; sua agitação logo esmorece, sua força se esgota e o movimento se detém: non
longe perveniunt34
. Desse modo, uma perturbação semelhante, comum a todos os
delírios, não pode produzir na superfície do corpo nem esses movimentos violentos, nem
esses gritos observados na mania e no frenesi; a melancolia jamais chega ao furor;
loucura, nos limites de sua impotência. Esse paradoxo é resultado das alterações secretas
dos espíritos. Normalmente elas têm a rapidez quase imediata e a transparência absoluta
dos raios luminosos, mas na melancolia carregam-se de sombras; tornam-se "obscuros,
opacos, tenebrosos".
33 WILLIS, Opera, II, pp. 238-239. 34 Idem, ibid., II, p. 242.
294
E as imagens das coisas que levam para o cérebro e para o espírito estão veladas "por
sombras e trevas"35
. Ei-los pesados, e mais próximos de um obscuro vapor químico do
que da pura luz. Vapor químico que seria de natureza ácida, mais do que sulfuroso ou
alcoólico, pois nos vapores ácidos as partículas são móveis, e mesmo incapazes de
repouso, mas sua atividade é fraca, sem alcance; quando destiladas no alambique, resta
apenas um fleuma insípido. Não têm os valores ácidos as mesmas propriedades da
melancolia, enquanto os vapores alcoólicos, sempre prestes a se inflamar, fazem pensar
antes no frenesi, e os vapores sulfurosos na mania, já que são agitados por um movimento
violento e contínuo? Portanto, se se devia procurar "a razão formal e as causas" da
melancolia, dever-se- ia fazê-lo do lado dos vapores que sobem do sangue para o cérebro
e que teriam degenerado em vapor ácido e corrosivo36
. Aparentemente, é toda uma
melancolia dos espíritos, toda uma química dos humores que guia a análise de Willis.
Mas, de fato, o fio diretor é fornecido sobretudo pelas qualidades imediatas do mal
melancólico: uma desordem impotente e depois essa sombra sobre o espírito com essa
aspereza ácida que corrói o coração e o pensamento. A química dos ácidos não é a
explicação dos sintomas; é uma opção qualitativa: toda uma fenomenologia da
experiência melancólica.
Uns setenta anos mais tarde, os espíritos animais perderam seu prestígio científico. É aos
elementos líquidos e sólidos do corpo que se pede o segredo das doenças.
O Dictionnaire universel de médecine, publicado por James na Inglaterra, propõe, no
verbete "Mania", uma etiologia comparada entre essa doença e a melancolia:
É evidente que o cérebro é a sede de todas as doenças dessa espécie... É aí que o Criador
fixou, embora de maneira inconcebível, a morada da alma, o espírito, o gênio, a
imaginação, a memória e todas as sensações... Todas essas nobres funções serão
substituídas, depravadas, diminuídas e totalmente destruídas, se o sangue e os humores,
que pecarem em qualidade e em quantidade, não forem mais levados ao cérebro de
maneira uniforme e temperada, nele circulando com violência ou impetuosidade, ou
movendo-se lentamente. com dificuldades ou languidamente37.
É esse curso lânguido, esses vasos obstruídos, esse sangue
35 Idem, ibid., II, p. 242.36 Idem, ibid., p. 240.37 JAMES, Dictionnaire universel de
médecine, verbete «Mania», VI, p. 1125
295
pesado e carregado que o coração tem dificuldade em espalhar pelo organismo e que tem
dificuldade para penetrar nas artérias tão finas do cérebro, onde a circulação deve ser bem
rápida para permitir o movimento do pensamento; é toda essa situação deplorável que
explica a melancolia. Carga, peso, obstrução, tais são as qualidades primitivas que
orientam a análise. A explicação efetua-se como uma transferência para o organismo das
qualidades percebidas no aspecto, no comportamento e nos propósitos do doente. Passa-
se da apreensão qualitativa para a explicação suposta. Mas é esta apreensão que não deixa
de prevalecer, predominando sempre sobre a coerência teórica. Para Lorry, as duas
grandes formas de explicação médica pelos sólidos e pelos fluidos se justapõem e,
acabando por se identificar, permitem distinguir duas espécies de melancolia. A que tem
sua origem nos sólidos é a melancolia nervosa: uma sensação particularmente forte abala
as fibras que a recebem; em conseqüência, a tensão aumenta nas outras fibras, que se
tornam simultaneamente mais rígidas e mais suscetíveis de vibrar. Mas se a sensação
aumentar, a tensão torna-se tal nas outras fibras que elas se tornam incapazes de vibrar; o
estado de rigidez é tal, que o curso do sangue se detém e os espíritos animais se
imobilizam. A melancolia se instala. Na outra forma da doença, a "forma líquida", os
humores vêem-se impregnados de atrabílis, tornando-se mais espessos; carregado desses
humores, o sangue torna-se mais pesado, estagnando nas meninges a ponto de comprimir
os órgãos principais do sistema nervoso. Vê-se surgir de novo a rigidez da fibra, mas
neste caso ela é apenas uma conseqüência de um fenômeno dos humores. Lorry distingue
duas melancolias; na verdade é o mesmo conjunto de qualidades que asseguram à
melancolia sua unidade real que ele introduz sucessivamente nos dois sistemas
explicativos. A única coisa que se desdobra é o edifício teórico. A base qualitativa
experimental permanece a mesma.
Unidade simbólica formada pela languidez dos fluidos, pelo obnubilamento dos espíritos
animais e pela sombra crepuscular que eles espalham sobre as imagens das coisas, pela
viscosidade de um sangue que se arrasta com dificuldade pelos vasos, pela espessura dos
vapores que se tornaram escuros, deletérios e acres, pelas funções viscerais diminuídas e
como que coladas — esta unidade, mais sensível do que conceitual ou teórica, dá à
melancolia o caráter que lhe é próprio.
296
É este trabalho, bem mais que uma observação fiel, que reorganiza o conjunto dos signos
e o modo de surgimento da melancolia. O tema do delírio parcial desaparece cada vez
mais como sintoma maior dos melancólicos em proveito dos dados qualitativos, como a
tristeza, o amargor, o gosto pela solidão, a imobilidade. Ao final do século XVIII serão
classificadas como melancolia, sem maiores problemas, as loucuras sem delírio, porém
caracterizadas pela inércia, pelo desespero, por uma espécie de estupor morno38
. Já no
Dictionnaire de James fala-se numa melancolia apoplética, sem idéias delirantes, na qual
os doentes
não querem mais sair da cama; ... quando se levantam, só caminham quando coagidos por
seus amigos ou pelos que os servem; não evitam os homens, mas parecem não prestar
atenção alguma ao que lhes é dito; nada respondem39
.
Se, neste caso, a imobilidade e o silêncio prevalecem e determinam o diagnóstico da
melancolia, indivíduos há nos quais só se observam o amargor, a languidez e o gosto pelo
isolamento; mesmo sua agitação não deve iludir, nem autorizar um julgamento apressado
que conclua pela mania; o que se tem nesses doentes é a melancolia, pois
evitam companhia, gostam dos lugares isolados e erram sem saber para onde vão; a cor
da pele é amarelada, a língua é seca como a de alguém muito perturbado, os olhos são
secos, vazios, nunca umedecidos por lágrimas; o corpo todo é seco e áspero, e o rosto
sombrio e coberto pelo horror e pela tristeza40
.
As análises da mania e sua evolução no decorrer da era clássica obedecem a um mesmo
princípio de coerência.
Willis opõe a mania à melancolia, termo a termo. O espírito do melancólico é
inteiramente ocupado pela reflexão, de modo que a imaginação permanece em repouso e
em estado de lazer. No
38 Um soldado tornou-se melancólico em virtude da recusa manifestada pelos pais de
uma moça de quem gostava muito. Conduzia-se como um sonhador, queixaya-se de uma
forte dor de cabeça e de um peso contínuo nessa parte. Emagreceu a olhos vistos; seu
rosto empalideceu; estava tão fraco que soltava seus excrementos sem se aperceber... Não
delirava, embora o doente não desse respostas positivas e parecesse estar sempre absorto.
Nunca pedia para comer ou beber, (Observation de Musell. Gazette salutaire, 17 de
março de 1763).
39 JAMES, Dictionnaire universal, IV, verbete «Melancolia», p. 1215. 40 Idem, ibid., p.
1214.
297
maníaco, pelo contrário, fantasia e imaginação vêem-se ocupadas por um eterno fluxo de
pensamentos impetuosos. Enquanto o espírito do melancólico se fixa num único objeto,
impondo-lhe, apenas a ele, proporções irracionais, a mania deforma conceitos e noções;
ou então perdem sua congruência, os seus valores representativos são falseados; de todo
modo, o conjunto do pensamento é atingido em seu relacionamento essencial com a
verdade. Enfim, a melancolia sempre se faz acompanhar pela tristeza e pelo medo; no
maníaco, pelo contrário, pela audácia e pelo furor. Quer se trate de mania ou de
melancolia, a causa do mal está sempre no movimento dos espíritos animais. Mas esse
movimento é bastante particular na mania: é contínuo, violento, sempre capaz de abrir
novos poros na matéria cerebral, e constitui como que o suporte material dos
pensamentos incoerentes, dos gestos explosivos, das palavras ininterruptas que traem a
mania. Toda esta perniciosa mobilidade não é a mesma da água infernal, feita de líquido
sulfuroso, essas aquae stygiae, ex nitro, vitriolo, antimonio, arsenico et similibus
exstillatae: nela, as partículas têm um movimento eterno; são capazes de provocar em
toda matéria novos poros e novos canais; e têm força suficiente para ir longe, tal como os
espíritos maníacos, que são capazes de fazer entrar em agitação todas as partes do corpo.
A água infernal abriga no segredo de seus movimentos todas as imagens nas quais a
mania assume forma concreta. De uma maneira indissociável, ela constitui
simultaneamente o mito químico e a verdade dinâmica da mania.
No decorrer do século XVIII, a imagem, com todas suas implicações mecânicas e
metafísicas, de espíritos animais nos canais dos nervos é freqüentemente substituída pela
imagem, mais estritamente física porém de valor mais simbólico ainda, de uma tensão à
qual estariam submetidos os nervos, os vasos e todo o sistema das fibras orgânicas. A
mania é, então, uma tensão das fibras levada a seu paroxismo, e o maníaco uma espécie
de instrumento cujas cordas, através de uma tração exagerada, se poriam a vibrar à
excitação mais distante e mais débil. O delírio maníaco consiste numa vibração contínua
da sensibilidade. Através dessa imagem, as diferenças com a melancolia tornam-se mais
precisas e organizam-se numa antítese rigorosa: o melancólico não, é mais capaz de
entrar em ressonância com o mundo exterior, ou porque suas fibras estão distendidas, ou
porque foram imobilizadas
298
por uma tensão maior (vê-se como a mecânica das tensões explica tanto a imobilidade
melancólica quanto a agitação maníaca): apenas algumas fibras vibram no melancólico,
as que correspondem ao ponto preciso de seu delírio. Pelo contrário, o maníaco vibra a
qualquer solicitação, seu delírio é universal; as excitações não vêm perder-se na espessura
de sua imobilidade, como no melancólico; quando seu organismo as restitui, elas são
multiplicadas, como se os maníacos tivessem acumulado na tensão de suas fibras uma
energia suplementar. Aliás, é exatamente isso que por sua vez os torna insensíveis, não da
insensibilidade sonolenta dos melancólicos mas duma insensibilidade tensa de vibrações
interiores; sem dúvida é por isso
que eles não temem nem o frio, nem o calor, rasgam suas vestes, deitam- se nus na época
mais fria do inverno sem se resfriarem.
É também por isso que eles substituem o mundo real, que no entanto os solicita
incessantemente, pelo mundo irreal e quimérico de seus delírios:
Os sintomas essenciais da mania provêm do fato de esses objetos não se apresentarem aos
doentes tais como eles de fato são41.
O delírio dos maníacos não é determinado por um vício particular do juízo; constitui uma
falha na transmissão das impressões sensíveis ao cérebro, uma perturbação da
informação. Na psicologia da loucura, a velha idéia da verdade como "conformidade do
pensamento com as coisas" transpõe-se na metáfora de uma ressonância, de uma espécie
de fidelidade musical da fibra às sensações que a fazem vibrar.
Esse tema da tensão maníaca desenvolve-se, além de uma medicina dos sólidos, em
intuições mais qualitativas ainda. A rigidez das fibras no maníaco pertence sempre a uma
paisagem seca; a mania faz-se acompanhar regularmente por um esgotamento dos
humores e uma aridez geral em todo o organismo. A essência da mania é desértica,
arenosa. Bonet, em seu Sepulchretum, assegura que os cérebros dos maníacos, tal como
pôde observar, estavam sempre secos, duros e friáveis42
. Mais tarde, Albrecht von Haller
41 Encyclopédie, verbete «Mania». 42 BONET, Sepulchretum, p. 205.
299
também dirá que o cérebro do maníaco é duro, seco e quebradiço43
. Menuret lembra uma
observação de Forestier que mostra claramente que uma perda de humor demasiado
grande, secando com isso os vasos e as fibras, pode provocar um estado de mania;
tratava-se de um jovem que,
tendo-se casado no verão, tornou-se maníaco em virtude do comércio excessivo que
manteve com sua mulher.
O que outros imaginam ou supõem, o que vêem numa quase- percepção, Dufour
constatou, mediu, enumerou. No decorrer de uma autópsia, retirou uma parte da
substância medular do cérebro de um indivíduo morto em estado de mania; cortou nela
"um cubo de seis linhas em todos os sentidos", cujo peso era de 3 j.g. III, enquanto o
mesmo volume, observado num cérebro ordinário, era 3 j.g. V:
Esta desigualdade de peso, que inicialmente parece de pouca importância, não é tão
pequena assim se atentarmos para o fato de que a diferença específica entre a massa total
do cérebro de um louco e o de um homem que não o é, é de 7 gros a menos no adulto,
cuja massa inteira do cérebro pesa normalmente três libras44
.
O ressecamento e a leveza da mania manifestam-se até mesmo na balança.
Esta secura e este calor não são, aliás, comprovados pela facilidade com a qual os
maníacos suportam os maiores frios? Estabeleceu-se que é comum verem-se os maníacos
passeando nus na neve45
, que não é necessário aquecê-los quando são encerrados nos
asilos46
, que é mesmo possível curá-los pelo frio. A partir de Van Helmont, é muito
praticada a imersão dos maníacos em água gelada, e Menuret assegura ter conhecido uma
pessoa maníaca que, escapando da prisão em que estava,
percorreu várias léguas sob uma chuva violenta sem chapéu e quase sem roupas, tendo
com isso recobrado sua perfeita saúde47.
43 A. VON HALLER, Elemente Physiologiae, Lausanne, 1763, Livro XVII, ser. I, § 17,
t. V, pp. 571-574.
44 DUFOUR, loc. cit., p. 370-371.45 Encyclopédie, verbete «Mania».46 A mesma idéia
encontra-se ainda em DAQUIN (loc. cit., pp. 67-68) e em Pinel.
Ela fazia parte, igualmente, das práticas do internamento. Num registro de Saint-Lazare, a
respeito de Antoine de la Haye Monbault: «O frio, por mais rigoroso que seja, não tem
nenhum efeito sobre ele» (B.N., Clairambault, 98b, p 117;
47 Encyclopédie, verbete «Mania».
300
Montchau, que curou um maníaco fazendo com que lhe "jogassem em cima, do mais alto
possível, água gelada", não se surpreende com um resultado tão favorável assim; para
explicá-lo, coleta todos os temas de aquecimento orgânico que se sucederam e
entrecruzaram desde o século XVII:
Devemos-nos surpreender com o fato de a água e o gelo produzirem uma cura tão rápida
e tão perfeita num momento em que o sangue em ebulição, a bílis em furor e todos os
líquidos amotinados levavam a toda parte a perturbação e a irritação?
Com a sensação do frio
os vasos se contraíram com maior violência e se libertaram dos líquidos que os
obstruíam; a irritação das partes sólidas causada pelo calor extremo dos líquidos que
continha desapareceu, e com os nervos se distendendo, o curso dos espíritos que se
comportavam de modo irregular, de um lado e do outro, se restabeleceu em seu estado
natural48
.
O mundo da melancolia era úmido, pesado e frio; o da mania é seco, ardente, feito
simultaneamente de violência e fragilidade; mundo que um calor não-sensível, mas
sempre manifesto, torna árido, friável e sempre prestes a se abrandar sob o efeito de um
frescor úmido. No desenvolvimento de todas essas simplificações qualitativas, a mania
assume ao mesmo tempo sua amplitude e sua unidade. Sem dúvida ela continuou a ser o
que era no começo do século XVII, "furor sem febre"; mas além desses dois caracteres,
que ainda eram apenas sinaléticos, desenvolveu-se um tema perceptivo que foi o
organizador real do quadro clínico. Quando os mitos explicativos desaparecerem e
quando não mais tiverem curso as idéias de humores, espíritos, sólidos e fluidos, sobrará
apenas o esquema de coerência de qualidades que não serão sequer nomeadas; e aquilo
que essa dinâmica do calor e do movimento agrupou lentamente numa constelação
característica da mania será encarado agora como um complexo natural, como uma
verdade imediata da observação psicológica. O que tinha sido entendido como calor,
imaginado como agitação dos espíritos, sonhado como tensão da fibra, será doravante
reconhecido na transparência neutralizada das noções psicológicas: vivacidade exagerada
das impressões internas, rapidez na associação das idéias, desatenção com o mundo
exterior. A descrição de De La Rive já tem essa limpidez:
48 MONTCHAU. Observação enviada à Gazette salutaire, n. 5, 3/2/1763.
301
Os objetos exteriores não produzem sobre o espírito dos doentes a mesma impressão que
produzem num homem sadio; estas impressões são fracas e raramente ele presta atenção a
elas; seu espírito é quase totalmente absorvido pela vivacidade das idéias produzidas pelo
estado desorganizado de seu cérebro. Essas idéias têm um grau de vivacidade tal, que o
doente acredita que elas representam objetos reais, emitindo seus juízos em concordância
com essa opinião49.
Mas não se deve esquecer que essa estrutura psicológica da mania, tal como ela aflora ao
final do século XVIII para fixar-se de modo estável, é apenas o esboço superficial de toda
uma organização profunda que vai soçobrar
e que se havia desenvolvido segundo leis meio perceptivas e meio imaginárias de um
mundo qualitativo.
Sem dúvida, todo esse universo do calor e do frio, da umidade e da secura, lembra ao
pensamento médico, que está na véspera de sua ascensão ao positivismo, em que céu ele
nasceu. Mas essa carga de imagens não é apenas uma recordação; é, também, trabalho.
Para formar a experiência positiva da mania ou da melancolia, foi necessário, num
horizonte de imagens, essa gravitação das qualidades atraídas uma para as outras por todo
um sistema de pertinências sensíveis e afetivas. Se a mania e a melancolia assumem
doravante um rosto que nosso saber reconhece como sendo o delas, não é porque
aprendemos, com o correr dos séculos, a "abrir os olhos" para seus signos reais; não é por
termos purificado, até a transparência, nossa percepção; é que na experiência da loucura
esses conceitos foram integrados ao redor de certos temas qualitativos que lhes deram
uma unidade, uma coerência significativa, tornando-os enfim perceptíveis. Passou-se de
uma assinalação nocional simples (furor sem febre, idéia delirante e fixa) para um campo
qualitativo, aparentemente menos organizado, mais fácil, delimitado com menor precisão,
mas que foi o único a poder constituir unidades sensíveis, reconhecíveis, realmente
presentes na experiência global da loucura. O espaço de observação dessas doenças foi
retirado de paisagens que obscuramente lhe deram seu estilo e sua estrutura. De um lado,
um mundo molhado, quase diluviano, onde o homem é surdo, cego e está adormecido
para tudo que não constitui seu terror único; um mundo simplificado ao extremo e
desmedidamente grande num único de seus detalhes. Do
49 DE LA RIVE. Sobre um estabelecimento para a cura dos alienados. Bibliothèque
britannique, VIII, p. 304.
302
outro, um mundo ardente e desértico, um mundo-pânico onde tudo é fuga, desordem,
sulco instantâneo. E o rigor desses temas em sua forma cósmica — não as aproximações
de uma prudência observadora — que organizou a experiência (já quase nossa
experiência) da mania e da melancolia.
E a Willis, a seu espírito de observação, à pureza de sua percepção médica, que se atribui
a honra da "descoberta" do ciclo maníaco-depressivo; digamos melhor, da alternância
mania- melancolia. Com efeito, a démarche de Willis é do maior interesse. Inicialmente,
por esta razão: a passagem de uma afecção a outra não é percebida como um fato de
observação cuja explicação se teria de descobrir em seguida, mas sim a conseqüência de
uma afinidade profunda que é da ordem de sua natureza secreta. Willis não cita um único
caso de alternância que ele teve ocasião de observar; o que ele de início decifrou foi um
parentesco interior que acarreta estranhas metamorfoses:
Após a melancolia, é preciso tratar da mania, que tem com ela tantas afinidades, que
essas afecções freqüentemente se substituem uma à outra:
acontece mesmo à diátese melancólica, se ela se agrava, de tornar- se furor. O furor, pelo
contrário, quando decresce, quando perde força e entra em estado de repouso, transforma-
se em diátese atrabiliária50
. Para um empirista rigoroso, haveria aí duas doenças
conjuntas, ou ainda dois sintomas sucessivos de uma mesma e única doença. De fato,
Willis não coloca o problema nem em termos de sintomas, nem em termos de doença;
procura apenas a ligação desses dois estados na dinâmica dos espíritos animais. No
melancólico, como se recorda, os espíritos eram sombrios e obscuros; projetavam suas
trevas contra as imagens das coisas e constituíam, na luz da alma, como que a ascensão
de uma sombra; na mania, pelo contrário, os espíritos agitam-se numa crepitação eterna;
são arrastados por um movimento irregular, sempre recomeçado; um movimento que
corrói e consome, e mesmo sem febre irradia seu calor. Da mania à melancolia, é
evidente a afinidade: não é a afinidade de sintomas que se encadeiam na experiência: é a
50 WILLIS, Opera, II, p. 255.
303
afinidade, bem mais forte .e muito mais evidente nas paisagens da imaginação, que
enlaça, num mesmo fogo, a fumaça e a chama.
Se se pode dizer que na melancolia o cérebro e os espíritos animais são obscurecidos por
uma fumaça e algum vapor espesso, a mania parece dar início a um incêndio por elas
provocado51
.
A chama, com seu movimento vivo, dissipa a fumaça; mas esta, quando cai, abafa a
chama e apaga sua claridade. A unidade da mania e da melancolia não é, para Willis, uma
doença: é um fogo secreto no qual lutam chamas e fumaça, é o elemento portador dessa
luz e dessa sombra.
Nenhum dos médicos do século XVIII, ou quase nenhum, ignora a proximidade entre a
mania e a melancolia. No entanto, vários recusam-se a reconhecer numa e noutra duas
manifestações de uma única e mesma doença52
. Muitos constatam uma sucessão, sem
perceber uma unidade sintomática. Sydenham prefere dividir o domínio da mania: de um
-lado, a mania comum — devido a "um sangue demasiado exaltado e vivo"; do outro,
uma mania que, regra geral, "degenera em estupidez". Esta "provém da fraqueza do
sangue que uma fermentação demasiado longa privou de suas partes mais
espirituosas"53
. De modo ainda mais freqüente, admite-se que a sucessão entre mania e
melancolia é um .fenômeno ou de metamorfose ou de distante causalidade. Para
Lieutaud, uma melancolia que dura muito e se exaspera em seu delírio perde seus
sintomas tradicionais e assume uma estranha semelhança com a mania: "O último grau da
melancolia tem muitas afinidades com a mania"54
. Mas o estatuto dessa analogia não foi
elaborado. Para Dufour, a ligação é ainda mais frouxa: trata-se de um encadeamento
causal longínquo: a melancolia pode produzir a mania, pela mesma razão que "os vermes
nos senos frontais, ou os vasos dilatados ou varicosos"55
. Sem o suporte de uma imagem,
nenhuma observação consegue transformar a constatação de uma sucessão numa
estrutura sintomática simultaneamente precisa e essencial.
Sem dúvida, a imagem da chama e da fumaça desaparece nos sucessores de Willis, mas é
ainda no interior das imagens que o
51 Idem, ibid.52 Por exemplo, d'Aumont no verbete «Melancolia» da Encyclopédie. 53
SYDENHAM, Médecine pratique, trad. Jault, p. 629. 54.54 LIEUTAUD, Précis de
médecine pratique, p. 204.55 DUFOUR, Essai sur I'entendement, p. 369.
304
trabalho organizador é realizado — imagens cada vez mais funcionais, cada vez mais
inseridas nos grandes temas fisiológicos da circulação e do aquecimento, cada vez mais
afastadas das figuras cósmicas das quais Willis as tomava de empréstimo. Em Boerhaave
e seu comentador Van Swieten, a mania constitui, de modo natural, o grau superior da
melancolia — não apenas como conseqüência de uma freqüente metamorfose, mas como
efeito de um encadeamento dinâmico necessário: o líquido cerebral, estagnado no
atrabiliário, entra em agitação ao fim de um certo tempo, pois a bílis negra que atravanca
as vísceras torna-se, por sua própria imobilidade, "mais acre e mais maligna"; formam-se
nela elementos mais ácidos e mais finos que, transportados para o cérebro pelo sangue,
provocam a grande agitação dos maníacos. A mania, portanto, não se distingue da
melancolia a não ser por uma diferença de grau: é a seqüência natural desta, surge das
mesmas causas e normalmente é curada pelos mesmos remédios56
. Para Hoffmann, a
unidade entre a mania e a melancolia é um efeito natural das leis do movimento e do
choque; mas o que é mecânica pura ao nível dos princípios, torna-se dialética no
desenvolvimento da vida e da doença. A melancolia, com efeito, caracteriza-se pela
imobilidade, o que significa que o sangue grosso congestiona o cérebro onde se acumula;
lá por onde deveria circular, tende a deter-se, imobilizado em seu peso. Mas se o peso
diminui o movimento, ao mesmo tempo torna mais violento o choque, no momento em
que este se produz; o cérebro, os vasos pelos quais é atravessado, sua própria substância,
atingidos com mais força, tendem a resistir mais, portanto a endurecer, e com esse
endurecimento o sangue pesado é empurrado com mais força; seu movimento aumenta e
logo ele se vê prisioneiro dessa agitação que caracteriza a mania57
. Assim, passa-se
naturalmente da imagem de um congestionamento imóvel para as da seca, da dureza, do
movimento acentuado, e isto por um encadeamento no qual os princípios da mecânica
clássica são, a cada momento, dobrados, desviados, falseados pela fidelidade a temas
imaginários, que são os verdadeiros organizadores dessa unidade funcional.
A seguir, outras imagens virão acrescentar-se, porém não terão mais um papel
constituinte, funcionarão apenas como outras tantas
56 BOERHAAVE, Aphorismes, 1118 e 1119; VAN SWIETEN, Commentaria, III, p.
519-520.
57 HOFFMANN, Medicina rationalis systematica, IV, pp. 188 e seg.
305
variações interpretativas do tema de uma unidade doravante adquirida. Disso é
testemunho, por exemplo, a explicação que Spengler propõe para a alternância entre
mania e melancolia, cujo modelo ele retira da pilha elétrica. De início, haveria uma
concentração do poder nervoso e de seu fluido nesta ou naquela região do sistema; apenas
esse setor é excitado, permanecendo o resto em estado de dormência: é a fase
melancólica. Mas quando esta atinge um certo grau de intensidade, esta carga local se
espalha bruscamente por todo o sistema por ela violentamente agitado durante um certo
tempo, até que a descarga seja completada: é o episódio maníaco58
. Neste nível de
elaboração, a imagem é demasiado complexa e demasiado completa, é emprestada de um
modelo demasiado distante para servir como organizadora na percepção da unidade
patológica. Pelo contrário, ela é convocada pela percepção que repousa por sua vez em
imagens unificantes, porém bem mais elementares.
São elas que estão secretamente presentes no texto do Dictionnaire de James, um dos
primeiros autores nos quais o ciclo maníaco-depressivo é dado como verdade de
observação, como unidade facilmente legível para uma percepção liberada.
É absolutamente necessário reduzir a melancolia e a mania a uma única espécie de
doença e, conseqüentemente, examiná-las conjuntamente, pois verificamos em nossas
experiências e observações cotidianas que uma e outra têm a mesma origem e a mesma
causa... As observações mais exatas e a experiência de todos os dias confirmam a mesma
coisa, pois vemos que os melancólicos, sobretudo aqueles nos quais esta disposição é
inveterada, tornam-se facilmente maníacos, e quando a mania cessa, a melancolia
recomeça, de modo que há ida e volta de uma para a outra conforme certos períodos59
.
Portanto, aquilo que se constituiu, no século XVIII, sob o efeito do trabalho das imagens,
é uma estrutura perceptiva, e não um sistema conceitual ou mesmo um conjunto de
sintomas. Prova é que, tal como numa percepção, deslizamentos qualitativos poderão
ocorrer sem que se altere a figura de conjunto. Assim, Cullen descobrirá na mania, tal
como na melancolia, "um objeto principal do delírio"60
— e, inversamente, atribuirá a
melancolia "a um tecido mais seco e mais
58 SPENGLER, Briefe, welche einige Erfahrungen der elektrischen Wirkung in
Krankheiten enthalten, Copenhague, 1754.
59 CULLEN, Institutions de médecine pratique, II, p. 315. 60 Idem, ibid., p. 315.
306
firme da substância medular do cérebro"61
.
O essencial não é que o trabalho se realize da observação à construção de imagens
explicativas; pelo contrário, o essencial é que as imagens asseguraram o papel inicial de
síntese, que sua força de organização tenha tornado possível uma estrutura de percepção
onde, enfim, os sintomas poderão assumir seu valor significativo e organizar-se como
presença visível da verdade.