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Macaba: A Hora do Simulacro
Helano Jader Ribeiro*
Resumo: Este artigo intenta uma conversa com A hora da estrela de Clarice Lispector. O objetivo resgatar a singularidade da personagem Macaba, analis-la no somente como uma retirante nordestina no Rio de Janeiro,
seu resgate do simulacro como uma forma de mostrar a morte e vida das
Palavras-chave: Clarice Lispector;
Abstract The hour of the star by
turns out to be a star that stands out from its constellation. A critical
Keywords:
* Doutorando em Teoria da Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina UFSC.
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p.242). Desta forma caminha Michel Foucault para a problemtica
Lgica do sentido e Diferena e repetio.
fala Foucault em seu texto de 1970 Theatrum Philosophicum:
A tolice se contempla: nela mergulhamos o olhar, deixa-mo-nos fascinar, e ela nos transporta com doura, a imita-
sem forma; espreitamos o primeiro sobressalto da imper-
clamamos pela total imerso. (FOUCAULT, 2008, p.248).
Nesta perspectiva, analisar a personagem Macaba de A hora da estrela sob a tica de uma personagem plana parece-me reducionista
uma singularidade parece-me menos bvio e redutor. O narrador de A hora da estrela -
do pensamento atravs de caminhos sinuosos.
A esses caminhos sinuosos corresponde a lgica de sentido de-
o no-pensamento: Acho melhor no no original, I would prefer not to de Bartleby, o personagem de Herman Melville do conto Bartlebly, o escrivo, surge como exemplo do desarticular do outro
Crtica e clnica chama de frmula. O advogado do conto revela no encontrar
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nele nenhum trao humano, Bartleby no corresponde aos padres comuns j determinados, principalmente, graas ao seu discurso. Em Bartleby, ou a frmula,do personagem de Melville:
social pode ser atribuda. (DELEUZE, 1997, p.85).
E mesmo executando seu trabalho, Macaba copia, executa, to-
imitao do outro?
A in-diferena motor do acontecimento; a linguagem cria o -
O estrangeiro.
por trs de sua bobice, de modo a desarticular o discurso do outro:
de representante de roldanas avisou-lhe com brutalidade
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por respeito responder alguma coisa e falou cerimoniosa-mente a seu escondidamente amado chefe: Me desculpe o
altura j lhe havia virado as costas voltou-se um pouco
pouco. (CLARICE, 1998, p. 25).
Nessa lgica da tolice, podemos pensar tambm no livro O que ,
explanam sobre o personagem conceitual1
-guagem. Para os pensadores franceses, os personagens conceituais
de afectos e de perceptose do romance, mas tambm da pintura, da escultura e da msica, so produtores de afectosmais usuais, do mesmo modo os conceitos transbordam as opinies correntes.
Segundo Michel Foucault, em relao morte e ao acontecimento em seu Theatrum Philosophicum: O acontecimento no um estado
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um conceito a partir de si mesmo, ele deseja o absurdo. O idiota clssico deseja a
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pensar na morte como uma aliada do pensamento, do acontecimento,
pensar a morte da personagem Macaba como puro acontecimento,
o estigma fogem com horror. (LISPECTOR, 1998, p.18). Aconteci-mento e sofrimento, atravs das palavras do narrador, parecem o prenncio da hora da estrela Por isso no sei se minha histria vai
Ter acontecimentos? Ter. (LISPECTOR, 1998, p.22).
morte, pois, nesse momen-
A morte de Macaba um acontecimento, , pois, uma singu-Crtica e clnica
extrema e sem racionalidade. (DELEUZE, 1997, p. 95-96).
A respeito de Macaba, vemos sua singularidade apenas pelo
-ma de incio, apaga sua identidade para torn-la nula, ele a deprecia
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sei o nome da moa. (LISPECTOR, 1998, p.19). Alis, o narrador e
dialoga e se funde. Rodrigo S.M., no entanto, muda sua posio de
(CLARICE, 1998, p.27).
Podemos relacionar a singularidade morte como s ela sendo
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do semelhante, mas produo da singularidade e do diferente. A repetio o motor da diferena.
Macaba representa uma singularidade, apesar de sua condio
de Janeiro ou a So Paulo. A vaidade do narrador, Rodrigo S.M, no a capta como uma estrela, mas prefere inseri-la em uma constelao,
h milhares de moas espalhadas por cortios, vagas de cama num
1998, p.14).
Quero ainda pensar sobre as singularidades, o ser-com atravs de Jean-Luc Nancy ao acrescentar idia de singularidade em seu livro Ser singular plural:
Ser singular plural quiere decir: La esencia del ser es, y slo es, como co-esencia. Pero una co-esencia, o el ser-con el ser-con-varios apunta a su vez a la esencia del co-, o incluso, y ms bien, el co-(el cum) mismo en posicin o a la manera de esencia. Una co-esencialidad, en efecto, no puede consistir en un conjunto de
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esencias donde quedara por determinar la esencia del conjunto como tal: con relacin a ste, las esencias reunidas tendran que
-cial de la esencialidad, la participacin a la manera de conjunto, si se quiere. Lo que an podra decirse de este modo: si el ser es ser-con, en el ser-con es el con lo que da el ser, sin aadirse.
Macabas, revelando-se em um devir acontecimento, ser singular, -
(LISPECTOR, 1998, p.82).
representa o momento, esse Augenblick2, esse contemporneo difcil
-
Recorro ao pensamento de Didi-Huberman (2009) em seu livro Sobrevivncia dos vaga-lumes,
crtica da cultura. Didi-Huberman analisa a obra de Pasolini, em
2 Palavra em lngua alem para momento, composta das palavras Augen (olhos) e Blick mostra a fugacidade da palavra.
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Sal, ou os 120 dias de SodomaPasolini parece render-se a certo pessimismo existente na Itlia ps Segunda Guerra.
A sobrevivncia dos vaga-lumes mostra a fragilidade, mas tam-
vias de extino3: Assim, a vida dos vaga-lumes parecer estranha e -
-dor, Rodrigo S.M.
-
pouco conhecida at ento, ou numa generalidade, no-singularida-de. Penso no livro A escritura de Clarice Lispector, de Olga de S (1979, p. 210), obra consagrada dentro da fortuna crtica clariceana,
-dervel. Tem o herosmo dos seus irmos bblicos, os sete macabeus. [...] Maca nordestina, toda fome e deserto. [...] Personagem coletiva o nordestino essa raa an teimosa que um dia vai reivindicar o direito ao grito.
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dos vaga-lumes, comprovam o decrscimo do nmero de vaga-lumes.
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excluda do mundo letrado, assim como desprovida de
provoca uma anlise sobre a absoro desse povo no meio
era vivida no nordeste do pas nesse perodo. (FARAOM; SPEGGIORIN; LNGARO, 2010, p. 4).
introspectiva, ontolgica, seria, possivelmente, imprudente. A hora da estrela, seu ltimo romance, no aponta para o problema dos oprimi-dos, mas sim para a singularidade de cada ser humano. A obra clari-ceana tem sido tomada por muitos trabalhos crticos como expresso
A hora da estrelaClarice Lispector em 1977, e Um sopro de vida, concludo na mesma data, mas s postumamente publicado, permi-tem desvendar, por uma sorte de efeito retroativo, certas
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Perto do corao selvagem. (NUNES, 1973, p. 160).
Diferena e Re-petio -
de diferenas:
diante das repeties mais mecnicas, mais estereotipa-
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das, fora de ns e em ns, no cessamos de extrair delas -
a diferena. (DELEUZE, 2006, p.16).
Lgica do sentido:
Se a repetio existe, ela exprime, ao mesmo tempo, uma singularidade contra o geral, uma universalidade contra o particular, um notvel contra o ordinrio, uma instantanei-
-cia [...] a repetio a transgresso. (DELEZE, 2006, p.21).
A generalidade pressupe uma substituio de termos, ao con-
impossibilidade dessa troca de termos. Ela insubstituvel, assim
-
singularidade de Macaba, tentando, atravs desse gesto, anular a
nos menores detalhes essa nordestina. (CLARICE, 1998, p.21). A
as diferenas e repeties. Macaba morre e atravs de sua morte
retirante como muitas outras.
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A repetio aprisiona; mas, se morrermos uma dia por causa da repetio, ela tambm salva e cura, antes de tudo, da outra repetio. H, portanto, na repetio, ao mesmo tempo, todo o jogo mstico da perdio e da salvao, todo jogo teatral, todo o jogo teatral da morte e da vida, todo jogo positivo da doena e da sade. (DELEUZE, 2006, p.25).
Se a repetio transgresso o fantasma gira em torno da repe-tio, pois de acordo com Foucault: a metafsica do fantasma gira em torno do atesmo e da transgresso e acrescenta a respeito do
Lgica do sentido. pensar o acontecimento e o fantasma (FOUCAULT, 2008, p.234), ou seja, como pensar a singularidade, a diferena e a repetio, ou, simplesmente, como pensar.
Lgica do sentido. Sub-
modernidade, como por exemplo, a noo de simulacro, mesmo -
para podermos resgatar os simulacros malditos: Subverter, com
simulacro. E continua: Perverter Plato deslocar-se na direo da
2008, p.232-233).
resgat-lo. A simulao nada mais seno o prprio fantasma; o
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do funcionamento do simulacro. Nesse sentido, a reverso do plato-
cpias. Este , pois, nosso objetivo, resgatar a personagem Macaba de um mundo de outras Macabas, tornando-a singular, devolvendo--lhe sua condio humana, sensvel.
Macaba, ainda, nos possibilita uma leitura imanente do Dasein,
metafsicos e ontolgicos elaboradssimos, promove uma leitura de
ente -
Este ente o homem, ser-aser-no-mundo. E mesmo
no elaborando seus fantasmas profundamente, Macaba no dei-
desencadear no ser-a sobre sua prpria condio mortal: O pior
tem por completo? A morte pode ser sabida, mas no conhecida ou experimentada. Inclusive, Rodrigo S.M. deixa claro em sua narrao
-
estar to prximo.
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a se ocupar com este narrador solipsista e metafsico em detrimento da moa pobre do nordeste Para Benedito Nunes, a personalida-de de Macaba sempre atravessada pela autor-idade de Rodrigo. S.M.: O narrador da A Hora da Estrela Clarice Lispector, e Clarice Lispector Macaba. (NUNES, 1989, p.169). Se o ttulo do romance de Clarice A hora da estrelasempre ofuscou sua interpretao por parte da crtica, como o brilho
A prpria Clarice, em sua Dedicatria do autor, parece tam--
terstica comumente analisada em suas obras como no complexo A paixo segundo G.Hatravs de um momento epifnico, aps ter comido a barata. Todavia, em A hora da estrela
O pensamento funciona como um produtor de fantasmas
com o objetivo de alcanar seus fantasmas, depois da perda de seu objeto de desejo, Olmpico, busca neles a sada para novos desejos, novos sonhos. Vai madame Carlota com dinheiro emprestado por
vida miservel mudaria. No entanto, atropelada por um Mercedes.
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-tante de uma comunidade inoperante4
atravs da tolice.
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e, nesse sentido, o menos comum do mundo. Mesmo a comunidade inoperante, como chama Nancy a partir de seus estudos de Bataille, com sua recusa dos Estados-nao, partidos, assemblias, povos companhias ou fraternidades, deixava
da literatura como o protagonista de Camus, Meursault, em O estrangeiro, o Bartleby de Melville, dessa comunidade inoperante, em sua necessidade de ser-com, e, ao, mesmo
Giorgio Agamben em seu livro A comunidade que vem
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Referncias CAMUS, Albert. O estrangeiro. Traduo de Valerie Rumjanek. Rio de Janeiro: Re-cord,1999.
DELEUZE, Gilles. Diferena e RepetioRio de Janeiro: Graal, 1988.
Lgica do SentidoPerspectiva, 1998.
Crtica e clnica. Traduo de Peter Pl Pebart. So Paulo: Ed.34, 1997.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Flix. Trad. Bento Prado Jr e Alberto
DIDI-HUBERMAN. Sobrevivncia dos vaga-lumes. Traduo de Consuelo Salom.
FARAOM, Vanessa Micheli; SPEGGIORIN, Marcia Munhak; LNGARO, Cleiser
o olhar de clarice lispector. In: II Seminrio Nacional em Estudos da Linguagem: Diversidade, Ensino e Linguagem, Cascavel, v. 1, n. 1, p.1-11, 06 out. 2010. Anais...
-posios/simposio%2008/A%20HORA%20DA%20ESTRELA%20O%20SENTIMEN-TO%20DE%20PERDICAO%20DO%20RETIRANTE%20NORDESTINO%20SOB%20O%20OLHAR%20DE%20CLARICE%20LISPECTOR.pdf>. Acesso em: 23 fev. 2013.
FOUCAULT, Michel. Teatrum Philosophicum. In: Ditos e escritos vol. II. Traduo de Elisa Monteiro. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 2008.
LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
MELVILLE, Herman. Bartleby, o Escrivo Uma Histria de Wall Street. Trad. Irene Hirsh. So Paulo: Cosac Naify, 2007.
El sentido del mundo. Traduo para o castelhano de Jorge Manuel Casas. Buenos Aires: La Marca, 2003.
Ser singular plural. Traduo para o castelhano de Antonio Tudela Sancho. Madrid: Arena libros, 2006.
NUNES, Benedito. O drama da Linguagem; uma leitura de Clarice Lispector. So Paulo: Quron, 1989.
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