Post on 28-Oct-2020
Luto por um avião aparecidoDestroços captados por satélite indicam que o voo MH37O caiu no Índico. A esperança desaparece. A dor não
HUGO FRANCOe RICARDO MARQUES
expresso.impresa.pt
O avião apareceu, mas ainda nãose sabe onde está. A esperançadesapareceu, mas ainda há
quem se agarre a ela. Como nu-ma luta que se vai perdendo pou-co a pouco, destroço a destroço,imagem a imagem. Já é um dado
seguro, confirmado por cientis-tas ingleses e assumido por políti-cos malaios, que o voo MH37O,de Kuala Lumpur para Pequim,caiu no mar algures a oeste da
Austrália no dia 8 de março. Masessa é a única certeza, sobre aqual assenta uma torre de dúvi-
das, de dor e de luto por fazer. Ea melhor maneira de compreen-der o que sentem hoje os familia-res dos passageiros e tripulantesdo avião da Malásia, que sem ex-
plicação se despenhou há três se-
manas no sul do Índico, é pararpor momentos no Faial e ouviruma mulher chamada Teotóniarecordar um dia há 15 anos.
"Sinto aquilo que aquelas famí-lias estão a sofrer. São outras ra-
ças e outros países. Mas a dor é amesma." Teotónia Silva, 58anos, começou a senti-la na ma-nhã de 11 de dezembro de 1999.Estava a olhar para a televisão,lembra-se, para um mapa dos
Açores com cores garridas. "Pen-sei que fosse um vulcão em erup-ção. Depois ouvi o código do vooe como na altura era funcionáriada SATÃ percebi logo que era oavião que vinha para a Horta.Pensei logo o pior e pus as expec-tativas a zero." O voo 530 da SA-TÃ embateu contra uma monta-
nha em São Jorge. Morreram 35pessoas. O irmão e a cunhada,
pais das três meninas, duas delas
gémeas, que estavam ao seu ladoa olhar para as corres garridasna televisão, eram duas dessas
pessoas. "A sensação de perda é
inexplicável. Espero que nin-guém passe pelo mesmo."
Havia 239 pessoas a bordo do
Boeing 777 da Malaysia Airlines
que deixou Kuala Lumpur aos pri-meiros instantes de dia 8 de mar-ço, e que agora se sabe ter desapa-recido algures no sul do oceanoÍndico, num ponto diametralmen-te oposto ao do destino: Pequim.A localização, calculada atravésde sinais captados por satélite cru-zados com sinais de outras aero-naves e com cálculos sobre o com-bustível do avião, tem sido confir-
mada nos últimos dias com a des-
coberta, em fotografias de satéli-
te, de destroços que pertencerãoà aeronave: 122 na quarta-feira,300 na quinta. Mas, apesar de to-dos os meios navais e aéreos des-tacados na zona (uma área de
319-000 km 2, mais de três vezes
o território de Portugal, e sujeitaa violentas tempestades), nemum parafuso da aeronave foi ain-da recuperado.
Para os especialistas america-nos em acidentes aéreos ouvidos
pelo Expresso, até esse instante
chegar será apenas uma questãode tempo. "A validação do local
pela agência britânica de investi-
gação de acidentes aéreos, umadas mais respeitadas do mundo,foi decisiva para o anúncio ofi-
cial", explica John M. Cox, daconsultora Safety Operating Sys-tems. "Essa confirmação era o
passo lógico no processo. Apesarde difícil, permite que as famíliascomecem o seu processo de lu-
to", acrescenta o norte-america-
no, que investiga acidentes aé-reos desde 1980.
Corrida contra o tempo
Há duas linhas de tempo que cor-rem em paralelo e que ninguém
sabe quando vão terminar. Sen-do certo que uma, aquela onde es-
tão os familiares dos passageirose tripulantes e o seu luto, nuncaacabará antes de chegar ao fim aoutra: a da busca pelos destroços,pelo local da aeronave e, final-
mente, por uma explicação parao que sucedeu. "A não ser que se
encontrem os destroços e as cai-
xas negras, com informação útil,poderemos nunca saber o que su-cedeu ao avião", admite Scott Ha-milton, da consultora de seguran-ça aérea Leeham. "A investiga-ção em terra pode levar-nos acausas prováveis, mas só isso."
Scott Hamilton, John Cox e
também Richard Aboulafia (daconsultora Teal Group) reconhe-cem que existe o risco de se repe-tir o que sucedeu com o voo daAir France, que em 2009 se des-
penhou no Atlântico. "Se não
conseguirem localizar o trans-missor de localização de emer-gência dentro de 15 ou 20 dias,ele vai parar de transmitir. E abusca vai demorar muito mais
tempo", explica o analista Ri-chard Aboulafia. "Neste momen-
to, não sabemos porque caiu o
avião. Há pistas, mas há mais per-guntas do que respostas", resu-me John Cox.
Rodrigo Ventura, professor doInstituto Superior Técnico, con-corda. "No limite, podemos nun-ca vir a saber, mais do que aquiloque já se sabe, o que realmenteaconteceu." No entanto, garante,isso não significa que tudo fiquena mesma. "Grande parte da se-
gurança aeronáutica construiu--se sobre acidentes. E neste caso
posso especular duas possíveismedidas: a obrigatoriedade de re-portes de posição periódicos viasatélite; e a possibilidade de con-trolar remotamente a aeronavevia satélite, mesmo ao arrepio davontade dos pilotos", esclarece,reconhecendo que ambas encon-trarão resistência por parte das
companhias e dos pilotos.O presente, como o futuro, é in-
certo. E essa dúvida alimenta ador das famílias. Tanto como as
certezas. "O sofrimento agrava--se conforme o tempo passa, àmedida que os factos se vão im-pondo às emoções, desejos e hipó-teses. Nessa altura, inicia-se a re-cuperação, mas o processo de lu-to é lento", descreve José Luís Nu-nes Martins, especialista da Ab-
sant Consult em gestão de crise e
resposta humanitária. "A espe-
rança, no sentido de acreditar nahipótese de haver algo que tenharesultado de um equívoco, só co-
meça a ultrapassar-se depois deidentificado e entregue o corpo."
Teotónia Silva nunca viu os cor-
pos do irmão e da cunhada."Trouxe a urna dele para casaaos meus pés, num avião C-130
para as Flores. O ambiente na-quele voo foi pesadíssimo. Haviaum silêncio de morte", recorda aempresária, que criou as três so-brinhas órfãs. "Tenho pena denão ter podido reconhecer os
corpos. Teria sido uma despedi-da." E talvez uma forma de nãosentir o que ainda hoje sente: "li-ma esperança, mesmo ínfima,de que ele possa voltar." O mari-do usa até hoje o relógio que o
cunhado trazia.Em Estarreja, Cristina Soares
sentiu algo parecido. O pai, Antó-nio Soares, foi uma das 33 víti-mas do acidente com o voo da
LAM, que se despenhou no norteda Namíbia a 29 de novembro."Colocámos sempre a hipótesede o meu pai estar vivo. Nem se-
quer existia uma lista de embar-
que que provasse que realmentetivesse entrado naquele avião."As cinzas de António, que chega-ram ontem a Portugal, acabaram
por dissipar as dúvidas. Mas a fa-mília não esquece os quatro me-ses de angústia com a falta de res-
postas das autoridades sobre o pa-radeiro do corpo do empresário.
Teotónia criou as sobrinhas."Como se fossem minhas filhas."Uma é médica dentista, a outra é
enfermeira e a terceira é gesto-ra. Há 15 anos, num dia de de-
zembro, eram três miúdas de 12
e 13 anos à espera dos pais, senta-das num sofá, ao lado da tia, aolhar para a televisão e a ver queum avião tinha chocado comuma montanha chamada Picoda Esperança.
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Após três semanas,e com a confirmaçãode que o avião caiuno Indico, nenhumapeça foi recuperada
CAIXAS NEGRAS
30^dias em água do mar ou 24horas em mar profundo (a seis
quilómetros de profundidade)é o tempo imposto pelacertificação para a resistênciadas caixas negras dos aviões,
segundo Rodrigo Ventura,professor do Instituto SuperiorTécnico. "Passado o tempocertificado é incerto saber o
que se pode recuperar." Nocaso da Air France, "as caixas
negras aguentaram muito mais
tempo, tendo sido recuperadaspassados dois anos do
acidente", lembra.