Post on 07-Jun-2018
Lucio Lauro Barrozo Massafferri Salles
GRGIAS LEONTINO
DA PALAVRA COMO PHRMAKON
Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Filosofia, Instituto de Filosofia e Cincias Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessrios para a obteno do ttulo de Mestre em Filosofia.
Orientador: Prof. Doutor Henrique Cairus
Co-Orientador: Prof. Doutor Fernando Santoro
Rio de Janeiro Fevereiro, 2014
Grgias Leontino: Da palavra como phrmakon
Lucio Lauro Barrozo Massafferri Salles
Orientador: Professor Doutor Henrique Fortuna Cairus Co-orientador: Professor Doutor Fernando Jos de Santoro Moreira
Dissertao submetida ao corpo docente do Programa de Ps Graduao em Filosofia, sob a orientao do Prof. Doutor Henrique Cairus, como parte dos requisitos necessrios obteno do ttulo de Mestre.
Aprovada em 14 de Fevereiro de 2014, por: _________________________________________________ Professor Doutor Henrique Fortuna Cairus UFRJ - Orientador _________________________________________________ Professora Doutora Maria Ceclia de Miranda Nogueira Coelho - UFMG _________________________________________________ Professora Doutora Izabela Aquino Bocayuva - UERJ _________________________________________________ Professor Doutor Fernando Jos de Santoro Moreira, suplente - UFRJ Co- orientador _________________________________________________ Professor Doutor Marcos Reis Pinheiro, suplente - UFF
Rio de Janeiro
2014
Salles, Lucio Lauro Barrozo Massafferri.
Grgias Leontino: Da palavra como phrmakon/ Lucio Lauro Barrozo Massafferri Salles Rio de Janeiro: UFRJ/Instituto de Filosofia de Cincias Sociais, 2014.
119 f. Dissertao UFRJ/ Instituto de Filosofia e Cincias Sociais/Programa de Ps-Graduao em Filosofia. Referncias Bibliogrficas: f. 115. 1. Sofstica. 2. Linguagem. 3. Phrmakon. 4. Grgias Leontino. 5. Filosofia Antiga - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Cincias Sociais, Programa de Ps-Graduao em Filosofia. III. Ttulo.
Certas palavras delinqem como qualquer farmacutico. Manoel de Barros
Onde o homem moderno fareja a fraqueza da obra de arte, o heleno procura a fonte da sua fora mais elevada! Por exemplo, nos dilogos de Plato, aquilo que possui um destacado sentido artstico , na maior parte das vezes, o resultado de uma rivalidade com a arte dos oradores, dos sofistas, dos dramaturgos, de seu tempo, descoberta para que ele pudesse dizer por fim: Vejam, tambm posso fazer o que os meus maiores adversrios podem; sim, posso faz-lo melhor do que eles. Nenhum Protgoras criou mitos to belos quanto os meus, nenhum dramaturgo, um todo to rico e cativante quanto o Banquete, nenhum orador [como Grgias] comps discursos como aquele que eu apresento no Grgias e agora rejeito tudo isso junto, e condeno toda a arte imitativa! Apenas a disputa fez de mim um poeta, um sofista, um orador!
NIETZSCHE in O Agn de Homero.
AGRADECIMENTOS
Ao Henrique Cairus e ao Fernando Santoro, meus orientadores, pela confiana, pela generosidade e pela disposio com que acompanharam a minha imerso no pensamento de Grgias.
Dina e Snia pela diligncia e pelo carinho com relao ao suporte da minha pesquisa.
CAPES pela bolsa a mim concedida durante os dois anos de pesquisa e de redao.
Aos professores da ps-graduao em filosofia do PPGF da UFRJ pela slida formao propiciada.
Ao professor Javier Campos Daroca (Universidad de Almera), pelo incentivo e pela profcua interlocuo. Ao professor Guilherme Castelo Branco, pelo dilogo e pela acolhida. professora Susana de Castro, pelo dilogo e pela acolhida. E professora Tatiana Ribeiro (UFRJ), pelas valiosas e fundamentais lies de lngua grega.
Aos amigos da filosofia do dia a dia, Andrea, Carol, Catarina, Daniel, Diego, Eduardo, Eraci, Helena, Henrique, Ftima, Luiz, Priscilla, Ricardo Ramos, Valria, Lilian, Sergio e Ivone.
Aos meus pais, minha raiz, Lauro e Mariza.
Jeanne Darc, companheira, que a minha terna e eterna inspirao.
RESUMO
Salles, Lucio Lauro Barrozo Massafferri. Grgias Leontino. Da Palavra como Phrmakon. Rio de Janeiro, 2014. Dissertao de Mestrado em Filosofia Instituto de Filosofia e Cincias Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014.
Essa dissertao examina a analogia entre palavra e droga (lgos e phrmakon) conforme Grgias Leontino prope no texto Elogio de Helena. Parte-se de uma abordagem hermenutica das ocorrncias da palavra phrmakon e dos seus cognatos, na poesia e na medicina antiga, para proceder anlise do Tratado do no ser de Grgias assim como anlise do Elogio de Helena. Considera-se que Grgias retoma a terceira e conclusiva tese do seu Tratado do no ser, de que as palavras no dizem as essncias, para propor, no Elogio de Helena, que no mbito das relaes entres os seus pares que os homens experimentam a plena potncia da linguagem, compreendida como phrmakon para a alma. Para Grgias, as coisas externas ao homem produzem afeces na alma. E so estas afeces, marcadas na alma, que faro com que o homem enuncie as palavras. As palavras no dizem em absoluto o que so as coisas, mas com as palavras os homens interagem e se influenciam, constituindo memria coletiva e cultura. Grgias lana mo dos mitos, ao fazer dos personagens do ciclo pico de Homero, Helena e Palamedes, os representantes fictcios da sua sofstica.
Palavras-chave: Grgias Leontino; Sofstica; Filosofia; Phrmakon; Linguagem.
ABSTRACT
Salles, Lucio Lauro Barrozo Massafferri. Grgias Leontino. Da Palavra como Phrmakon. Rio de Janeiro, 2014. Dissertao de Mestrado em Filosofia Instituto de Filosofia e Cincias Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014.
This dissertation examines the analogy between speech and drug (lgos and phrmakon) as Gorgias Leontino proposes the text Encomium of Helen. Part of a hermeneutic approach of occurrences of the word phrmakon and its cognates, in poetry and in ancient medicine, for proceed to the analysis of the Treatise on not being of Grgias as well as the analysis of the Encomium of Helena. It is considered that Gorgias resumes the third and conclusive thesis of the Treatise on not being, where it states that the words don't tell the essences, to propose, in Encomium of Helena, that is in the context of relations between themselves that men experience the full power of the language, understood as phrmakon for the soul. To Gorgias, things external to man produce affections in the soul. And are these affections, marked in the soul, which will cause the man speaks the words. The words don't say at all what are things, but with the words the men interact and influence, constituting the collective memory and culture. Gorgias spear hand of myth, when the characters of the epic cycle Homer, Helena and Palamedes, fictitious representatives their sofstic.
Words-key: Grgias Leontino; Sofistic; Philosophy; Phrmakon; Language.
SUMRIO DA DISSERTAO
INTRODUO...........................................................................................9
CAPTULO I
1- Sobre o phrmakon nos textos da Antiguidade..............................16 1-1 Acerca das influncias da poesia na Antiga Grcia................16 1-2 As ocorrncias do phrmakon na Ilada.................................19 1-3 As ocorrncias do phrmakon na Odisseia.............................27 1-4 Sobre o phrmakon na poesia trgica......................................34
1.4.1 Prometeu e Dioniso.........................................................39
1-5 O phrmakon na Medicina Antiga..........................................43
CAPTULO II
2 Sobre uma introduo ao Tratado do no ser..................................51
3 Sobre o Tratado e a estrutura de recuo de Grgias.........................58
CAPTULO III
4 O Elogio de Helena de Grgias Leontino.......................................79
4-1 A Estratgia Discursiva de Grgias........................................79
4-2 Acerca das quatro causas que compem o Elogio.................84
CONCLUSO...........................................................................................110
BIBLIOGRAFIA.......................................................................................115
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INTRODUO
Dissertar sobre a analogia que Grgias Leontino prope existir entre o lgos e
o phrmakon consiste em seguir as pistas de um dizer que dialoga de um modo
diferente com a ontologia, pelo menos com a ontologia do modo como a conhecemos
tradicionalmente, atravs do antigo pensamento eletico. Prope Grgias no haver
simetria entre o ato de se conhecer uma coisa e o ato de conseguir diz-la e predic-la
para outra pessoa. Do mesmo modo percebeu-se que tal experincia no significa
afirmar que um dizer no possa predicar coisas e pessoas. Significa, talvez, aceitar a
hiptese de que a linguagem humana no capaz de comunicar plenamente o ser das
coisas, assim como est para alm do homem o poder de imobilizar o fluxo da phsis,
para observ-la com menos impreciso.
Grgias prope, primeiramente, que nada . Mas ele recua acerca desta
primeira idia, ao dizer, na segunda proposio do Tratado1, que possvel que as
coisas venham a ser e que possvel, portanto, que elas sejam. Porm, a interdio
deslocada, neste segundo momento, para o ato de conhecimento acerca destas coisas
que so. Num ltimo recuo, o siciliano conclui que possvel, sim, que haja ser e que
este ser possa ser conhecido, mas que os homens no podem comunic-lo ou transmiti-
lo, uns aos outros, atravs da linguagem. O que dito, segundo Grgias, so as palavras
e no as coisas em si mesmas.
Ao propor, em seu Elogio de Helena, que os discursos esto para o psiquismo,
para o esprito, como as drogas esto para o corpo, Grgias retoma a ltima das trs
1 Considera-se que o problema fundamental do Tratado do No Ser de Grgias, que diz respeito potncia da linguagem humana, retomado tanto no Elogio de Helena como na Apologia de Palamedes.
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teses de seu Tratado do no ser. Tal retomada possivelmente possui um duplo objetivo.
O primeiro, o de evidenciar a impotncia do lgos de dizer um ser imvel, um ser de
una identidade, apartada de tempo e espao. Pois a identidade de Helena pode ser
modificada, conforme ela fora registrada em memria pelas opinies e pela poesia. O
segundo objetivo seria o de afirmar a soberania e a potncia dos discursos entre os
homens. Discursos estes que atuam como phrmakon na alma, constituindo-se, enfim,
em uma psicagogia, em quaisquer locais de convivncia humana.
A presente dissertao se ocupar da analogia fabricada por Grgias, segundo a
qual as palavras so um phrmakon que age na alma humana de modo semelhante ao
modo como as drogas agem nos corpos humanos. O phrmakon, palavra ou discurso,
segundo Grgias, atuaria na memria e na alma, suscitando as emoes, comovendo e
persuadindo assim os ouvintes (GRGIAS. Elogio de Helena). Esta analogia de Grgias
se tornou uma espcie de emblema do seu estilo misto; estilo este situado em algum
lugar entre os discursos poticos e os discursos forenses. Para Grgias, a poesia
representada no teatro trgico era o prottipo do discurso potente, capaz de comover e
de suscitar as mais diversas emoes por intermdio da identificao com os corpos e os
discursos do outro. E no exerccio de seu ensino remunerado, questionado com humor
por Plato, o siciliano se propunha a formar discpulos na arte poltica, isto , na arte do
manejo da linguagem; uma excelncia, uma aret, deveras desejada e cobiada, para se
poder fazer representar na gora, em assemblias e Tribunais.
Talvez muito mais relevante do que as concluses possveis a partir dos seus
postulados, o fato de o pensamento de Grgias, indissocivel das preocupaes com a
linguagem, ter deixado, como herana possvel, instigantes questes sem respostas
definitivas. Se a linguagem impotente para se dizer cabalmente acerca do real,
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conforme a terceira e conclusiva tese do Tratado do no ser, como pode ela, linguagem,
ser reinante, soberana entre os homens, capaz, portanto, de fabricar e suscitar as
emoes que influenciam nos juzos? Se h apenas uma verdade sobre fatos e coisas,
como determinar esta verdade justamente em situaes de conflito, situaes prprias
aos negcios polticos que se resolvem nos tribunais, onde aqueles que julgam apenas
ouvem os contrrios; mas no vem o ocorrido? Ora, em suas dimenses trgicas,
encurralados pela impossibilidade de se poder ver, saber e dizer tudo, o que podem os
homens, contra as foras que lhe sobrevm, do destino, dos deuses, da seduo dos
discursos e da potncia do amor?
Este o desafio desta investigao acerca do pensamento de Grgias, sabendo
que o laborioso processo de sua excluso do rol dos antigos filsofos tambm o
fundamento da sua caracterizao como sofista. Para boa parte da tradio filosfica,
Grgias era um orador despreocupado com qualquer ensinamento que no fosse o de se
bem falar em pbico. Um perigoso condutor de almas, conforme a associao que
Plato faz entre a retrica, produtora de psicagogia, e Grgias, enquanto retrico. Para
outros pensadores, como o caso de Sexto Emprico, Grgias teria sido uma espcie de
precursor de uma teoria da linguagem, que caminharia lado a lado com a semente
germinativa da ameaadora filosofia ctica.
Assim, um dos maiores problemas enfrentados nessa investigao se referiu ao
fato de se ter considerado que as questes levantadas por Grgias em relao
linguagem humana, assim como as referncias ao seu ensino, ficariam por demais
deficitrias, no caso de se tentar isol-las de determinadas consideraes por parte de
Plato e de Aristteles, no que se refere a esta temtica da linguagem como phrmakon.
Afinal, a reputao do ensino sofista do qual Grgias foi representante, se constituiu
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negativamente muito em face do modo como foram recepcionadas certas divergncias
prticas e doutrinais destacadas por Plato; que alinha de um lado a filosofia preocupada
com a verdade e com o saber, e de outro lado a sofstica empenhada em treinar jovens
ricos, mediante pagamento, para exercer funes de liderana na plis. O ensino
sofstico do qual Grgias foi talvez o expoente pode ser caracterizado por um
laborioso processo de identificao e de estranhamento, para finalmente, por excluso,
ser posicionado frente filosofia e, assim, servir ao projeto platnico como antagonista
ideal. Barbara Cassin (1990: 8), a esse propsito, prope a questo: quem o co e
quem o lobo? O que se pode traduzir por: onde o filsofo (buscador da verdade) o
sofista no . E, ainda seguindo as caracterizaes de Plato, onde o sofista
(enganador, falso sbio, embusteiro, vido por poder e dinheiro) o filsofo, por sua vez,
no .
A presente dissertao considera que a prpria histria da filosofia antiga
tambm a histria da transmisso dos textos que a constituram como uma tradio de
pensamento e de formao sapiencial que foi gerada no seio de uma cultura formada na
e pela poesia. Das obras suprstites de Plato e de Aristteles pode-se depreender uma
acentuada preocupao com as questes concernentes poesia e retrica. E isso pode
ser atribudo em boa parte constatao de que, aplicado s imperfeitas instituies
polticas de Atenas (ARISTTELES. Retrica. 1403 b 35), o manejo dos discursos se
configurou como um potente instrumento agonstico; por serem esses discursos
utilizados no ensinamento e treinamento dos jovens, nas acusaes e nas defesas
forenses, nas deliberaes, ou simplesmente para se fazer prevalecer uma opinio em
pblico.
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Se por um lado Grgias pode ser hoje afortunadamente to estudado, pois teve
trs textos considerados integrais preservados, um fato incomum para um sofista; por
outro lado, tem-se tambm o poderoso acervo dos dilogos de Plato, que cuidou de
produzir a sua filosofia dramatizando as conversaes de Scrates, seu mestre, com
vrios poetas e vrios sofistas da poca. possvel supor o problema que pode ter
representado para Plato ter que lidar com a trgica condenao de Scrates cicuta,
dentro de um contexto que o identificava com a figura dos sofistas, j caricaturizado na
comdia de Aristfanes, As Nuvens. Diversos textos do corpus antigo destacam que a
excelncia no manuseio dos discursos tornara-se um instrumento de disputa, ascenso e
poder, na plis ateniense. Assim como tambm conhecido que, em sendo estrangeiros
que recebiam remunerao pra transmitir os seus saberes, sofistas como Grgias
geravam fascnio e desconfiana. Fascnio, por proporcionar a todos os que pudessem
pagar por suas lies aquilo que antes se restringia a poucos bem dotados ou iniciados,
isto , o conhecimento, que privilegiava o eficaz manejo dos discursos. E desconfiana,
por contrariar um determinado estilo de busca por saber, orientada no para liderana
poltica ou a chefia militar, mas para uma verdade em si mesma.
Segundo as distines feitas por Plato, o ensino ministrado por sofistas pode
ser considerado como um ensino relativamente amoral, se admitirmos, em acordo com o
que este filsofo ateniense descreve em seus dilogos, que os mestres sofistas
ensinavam os cidados a duelar com as palavras visando a sua ascenso social. Os
sofistas, de acordo com Plato, no se importavam em transmitir aos seus alunos nem a
idia de bem e nem a idia de justia em si mesma. O prprio Grgias, personagem de
Plato, refutaria este tipo de censura, afirmando que a retrica como as demais artes de
competio no deve ser empregada indiscriminadamente ou injustamente, mas, caso
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algum aluno a usasse mal, no se deveria perseguir seu mestre para expuls-lo da
cidade, pois o erro teria sido o de se perverter o ensinamento ministrado (Grgias. 475
d-c). Curiosamente Scrates, o personagem platnico, faz uma observao bastante
parecida com essa, quando fala de si diante do tribunal ateniense, acerca da
possibilidade de que os seus ouvintes viessem a se corromper moralmente:
Eu jamais fui mestre de algum...[...]...nem dialogo quando recebo dinheiro e nem deixo de dialogar se no o recebo; prefiro me oferecer a que me perguntem, tanto o rico como o pobre, e o mesmo se algum prefere responder e escutar minhas perguntas. Se algum destes ento um homem honrado, ou no o , no poderia eu, na justia, incorrer em culpa. A nenhum desses eu ofereci ensinamento algum e nem os instru.
(Apologia. 33b)
Deve-se ressaltar, entretanto, que na escrita de Plato, Scrates jamais se declara
mestre, muito embora tenha tido discpulos. E tal caracterstica pode estar associada
idia, bastante desenvolvida nos dilogos, de que o ensino de Scrates no se
identificava com o lugar daqueles que professam algum saber, mas sim, com o lugar
daqueles que questionam o saber.
O lgos sofstico tem por horizonte a eficcia que se realiza como ergn do
receptor. A potncia da linguagem, com o seu efeito na psiqu impulsionando a uma
ao ou a produo de um juzo, enfim, tornam-na facilmente associvel ao conceito de
phrmakon, e alguns outros dos quais esta Dissertao prope, para alm de uma
associao, uma verdadeira similitude, para no dizer sinonmia. Este o caso de
Grgias, sobre tudo no texto Elogio de Helena.
Assim a Dissertao se dividir em trs captulos. O primeiro deles se refere
aos corpora de textos antigos, onde so analisadas uma srie de ocorrncias da palavra
phrmakon, seus cognatos e seus equivalentes, nos textos de Homero, na poesia trgica
tica, e no Corpus Hippocraticum. Este primeiro captulo, portanto, expe uma proposta
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hermenutica das ocorrncias de phrmakon, seus equivalentes e cognatos nos saberes
presentes na obra de Grgias Leontino, a saber: a oratria, a poesia e a medicina.
O segundo captulo se refere a uma anlise do Tratado do no ser, onde dada
nfase terceira tese de Grgias, que onde ele prope uma especificidade e um
aparente limite para a linguagem humana.
E o terceiro captulo se refere a uma anlise do Elogio de Helena, que onde
se localiza a analogia de Grgias, do lgos com o phrmakon, texto no qual Grgias
aponta para a plenitude da potncia da linguagem.
Chama a ateno, sobretudo, o intrigante fato de que a filosofia sendo um
movimento de amor ao saber, tenha se preocupado mais em definir cabalmente o saber,
em sua forma de sophia, do que se aprofundar no conhecimento da complexa natureza
dos amantes (phloi). Talvez por isso seja recorrente, desde as censuras, um tanto
teatrais talvez, dirigidas por Plato aos poetas e sofistas, a exigncia profiltica de uma
separao radical entre Pthos e Lgos, talvez um remdio para o temor causado pelos
perigos que os afetos impem razo. A doena no deve se imiscuir com o remdio.
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CAPTULO I
1. Sobre o phrmakon nos textos da Antiguidade.
1.1 Acerca das influncias da poesia na Antiga Grcia.
A analogia gorgiana do lgos com o phrmakon se apoiou nos caracteres da
personagem homrica, Helena de Esparta. Grgias assim como faria depois Plato
lanou mo dos registros de uma memria cultural coletiva proporcionada pelas
narrativas mticas em proveito de seu prprio discurso. No incio do Elogio de Helena,
Grgias anunciou a inteno de reverter a m fama da rainha, utilizando-se de um lgos
bem constitudo. M fama esta que se tornara unssona e unnime quer pelo crdito
que lhe concedem os poetas que escutamos, quer pela fama de seu nome, que se
tornou memria de acontecimentos (2).
A escolha de Palamedes e Helena parece ser conveniente ao projeto sofstico,
de exerccio discursivo, na medida em que esses personagens so um radical desafio
prtica apologtica. No caso de Palamedes, porque sua desculpabilizao dependeria
necessariamente da responsabilizao de Odisseu, o que significaria, como percebe
Aristteles na Potica, uma dificuldade de se manter a unidade do mito na Odisseia,
que onde cantado no s o retorno para casa, como os sucessos louvveis do heri
Odisseu: Homero, ao compor a Odisseia, no incluiu tudo o que aconteceu com seu
heri, por exemplo ter sido ferido no Parnaso e ter fingido loucura quando se reunia ao
exrcito como o caso do episdio em que o rei de taca se finge de louco para no ir
guerra (Potica. 1451 a 16-22). Palamedes foi o nico a perceber a farsa,
desmascarando Odisseu e obrigando-o assim a lutar contra os troianos.
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No caso de Helena h convenincia porque, com toda a sua complexidade de
carter, trata-se de uma figura praticamente indefensvel, e sobre a qual, apesar disso,
no recai qualquer punio (conforme se nota no Canto IV da Telemaquia na Odissia).
A difcil desculpabilizao de Palamedes e de Helena, neste ltimo caso agravada pela
impunidade, tornam as suas defesas fictcias um complexo exerccio e uma perfeita
demonstrao da arte do lgos como phrmakon, cerne da prpria atividade sofstica. O
Palamedes gorgiano um modelo de discurso no qual o siciliano introduziu a regra de
no-contradio aplicada especificamente ao gnero judicirio de discursos2; uma regra
que foi consagrada posteriormente pela sistematizao de Aristteles na Metafsica,
como um princpio geral de regulao do dizer sobre o ser.
Mario Untersteiner (2012 [1996]: 253-254) prope que o pensamento de
Grgias no exatamente o pensamento de um ctico e muito menos o pensamento de
um relativista, mas, sim, o de um trgico. Para Untersteiner, Grgias nos faz sentir,
sobretudo, o drama do contnuo choque e contra-choque dos termos, nos quais se
dissolve toda a tentativa de fixar a mobilidade da phsis. Os homens tm escassas
condies de conseguir evitar as antteses que se apresentam em suas vidas, pois a
realidade exprime, e impe, aporias constantemente, a cada momento, a cada dia.
Palamedes pode ser pensado como um exemplo clssico de homem que se v preso e
imobilizado em insolveis aporias, que culminam numa morte injusta. Morte esta que
decorre, na verdade, do erro de ter descoberto, e exposto, o fingimento da loucura de
Odisseu.
2 Na Apologia de Palamedes (25) Grgias enuncia que na verdade, como se dever confiar num homem que, no mesmo discurso, ao falar aos mesmos homens sobre as mesmas coisas, diz coisas totalmente contrrias?. Na Metafsica (1006 a) Aristteles sugere ser impossvel que o mesmo, pertena e no pertena ao mesmo, ao mesmo tempo. Trata-se de regras similares, mas que no caso de Aristteles, servir para ser aplicada tambm Ontologia.
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Helena, por sua vez, tendo sido raptada, ou tendo partido por livre escolha, de
certa forma causa da morte de milhares, nos quase dez anos de batalhas as quais nos
reporta a narrativa da Ilada. Trata-se de uma nica ao, a de Helena, que desencadeia
terrveis efeitos sobre as vidas de milhares de outras pessoas3. Assim, percebe-se que
no teria sido tambm por mero acaso que o tragedigrafo Eurpides tenha composto
tragdias com o nome de ambos estes heris, Palamedes e Helena4.
Embora a ocorrncia mais antiga d termo phrmakon seja o hapax legmenon
micnico pa-ma-ko, a sentena que lhe nico contexto , como alega Chantraine em
seu dicionrio, insuficiente para assegurar o significado, que, no entanto, aceito como
phrmakon por todos os especialistas. Eis a frase: pa-ma-ko jo-ga wo-to-mo pe-re,
significando phrmakon que W. traz (tablete 1314 - Srie no categorizada de Pilos).
Considerando-se o valor referencial para toda a cultura grega da Ilada e da
Odisseia, comearemos por localizar ocorrncias do termo nestes textos, indicando os
contextos nos quais eles so utilizados. A palavra phrmakon se encontra em ambos os
poemas e com diferentes sentidos e a anlise destas ocorrncias ir destacar diferentes
significaes. Especialmente na Odisseia, observar-se- Helena envolvida em aes que
a caracterizam como personagem ideal para protagonizar a analogia construda por
Grgias, para quem o lgos significa linguagem ou discurso tal qual uma droga que atua
nos espritos. Helena faz parte de uma classe quase arquetpica de personagens mticas
femininas que dominavam tanto a arte do encantamento e da fabricao de poes com
3 A respeito da personagem de Helena, sobre os seus predicados e habilidades, ser apresentada, mais
adiante, uma anlise mais detalhada que permitir se observar no somente diferentes aspectos que compe a sua personalidade como a sua ntima relao com as drogas que atuam na alma e na memria.
4 Tambm squilo e Sfocles compuseram tragdias acerca de Palamedes, tragdias estas das quais, como no caso da que comps Eurpides, s nos restaram fragmentos.
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plantas e ervas que agiam nas emoes e na memria humana (Odisseia. IV v.v 219-34)
como tambm daquelas personagens que sabiam usar a prpria voz, com a finalidade da
seduo ou da induo a uma ao sobre os homens; refiro-me aqui ao emblemtico
episdio em que Menelau, na presena de Telmaco, recorda a cena, passada em Tria,
em que Helena teria circundado o gigantesco cavalo de pau, imitando as vozes das
esposas dos soldados gregos que estavam em seu interior, com o objetivo de fazer com
que estes sassem de dentro do cavalo (Odisseia. IV. 274-89). Nesta seqncia, Helena,
de maneira bastante similar Palamedes, tambm apresentada como uma das raras
personagens homricas que conseguiam perceber e descobrir os disfarces que ocultavam
a ardilosa face de Odisseu.
Passaremos agora ao exame das ocorrncias respeitando-se uma lgica
temporal das narrativas dos poemas, que descrevem primeiramente em Ilada episdios
da guerra de Tria, passando-se depois para os eventos de Odissia, cujas narrativas se
concentram nos caminhos e descaminhos de retorno para casa aps a guerra, ao modo
dos nstoi (retornos), que constituram, ao que parece, um subgnero pico.
1.2 As ocorrncias do phrmakon na Ilada
Boa parte das ocorrncias da palavra phrmakon na Ilada est relacionada
com a aplicao de medicamentos e de ungentos no corpo. Trata-se de aes que tem
como finalidade a cura ou o restabelecimento da sade fsica. Quando isso no ocorre
porque a droga homicida; mortfera.
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Na Ilada, o phrmakon, na sua verso positivada, aparece associado funo
das substncias aplicadas nos corpos dos homens que so feridos em combate. o caso,
por exemplo, dos versos em que o arqueiro Pndaro, aliado das foras de Pramo, alveja
Menelau com uma flecha, sem, no entanto, conseguir ferir-lhe com maior gravidade. A
flecha lanada por Pndaro atravessa parcialmente a malha de proteo do rei espartano.
Agamnom, vendo a cena, convoca Macon, um dos filhos de Asclpio, deus da
medicina, para curar seu irmo ferido:
Que venha um mdico, logo, explorar a ferida e cobri-la com salutferas drogas, que possam da dor libertar-te.
(Ilada. IV. 190-191) 5
Pndaro havia sido incitado pela deusa Atena a alvejar Menelau durante o
duelo entre o rei espartano e Pris6, um episdio que demandou uma efmera trgua na
guerra. Com o ferimento de Menelau, rompeu-se a trgua que havia sido estabelecida
para que pudesse ocorrer o enfrentamento entre o marido trado e o amante de Helena.
Na seqncia da narrativa Macon trata a ferida de Menelau, aplicando-lhe
drogas curativas; phrmaka. O centauro Quron, mestre em diversas artes7, quem teria
ensinado Asclpio, pai de Macon, a preparar uns phrmaka:
Pondo patente a ferida que o dardo amargoso fizera, chupa-lhe o sangue, cobrindo-a, depois, habilmente, com blsamo cujo segredo Quron, por afeto, a seu pai ensinara.
5 ' '
', . 6 Depois desse evento Pndaro morto por Diomedes em combate. A morte de Pndaro foi considerada
uma justa retribuio pelo ato perjuro de traio durante a trgua apalavrada para que Menelau e Pris acertassem suas diferenas. 7 (Apolodoro, Biblioteca. III, 13, 5-6). Quron foi quem nomeou e educou Aquiles. Jaso, Asclpio e o prprio Apolo foram discpulos de Quron. Entre as artes que este centauro dominava estavam a msica, as artes de guerra, a caa, a moral e a medicina.
21
(Ilada. IV. 217-219)8
Plato refere e mesmo cita esse episdio no Livro III de sua Repblica, para
acentuar o carter poltico de Asclpio, assim como para enfatizar a importncia da
diettica na vida dos homens. Nesta passagem Plato assinala que no foi necessrio a
Macon prescrever alimentos especficos a Menelau, aps lhe aplicar phrmaka no
ferimento, pelo fato de se tratar, no caso de Menelau, de um homem que possua uma
boa diettica, que se constitua por hbitos de vida moderados e saudveis9. Plato
distingue nessa passagem, portanto, de um lado o phrmakon, como uma substncia
potente para se reequilibrar a sade no caso de ferimentos causados por agentes
externos, e por outro lado a diettica, como uma constante, um modo saudvel de se
conduzir e harmonizar como um todo o corpo e a alma; a prpria vida.
Na ocorrncia seguinte, narrada uma cena que no ocorre nos campos de
batalha em Tria. Trata-se do episdio no qual Hades alvejado com uma lana por
Anfitrinio, dentro de seu prprio reino. Uma vez ferido por Anfitrinio, Hades
levado at o palcio de seu irmo, Zeus, no Olimpo, para ser medicado por Pone.
Pone uma divindade da medicina que costumava socorrer os deuses e os filhos dos
8 ' , ' ' ' , . 9 Cito a passagem: O asclpios de que falas era um poltico objetou ele. evidente confirmei eu E os filhos, porque ele era assim, no vs como em Tria se mostraram valentes no combate e praticavam a medicina como digo? Ou no te lembras do que eles fizeram a Menelau, quando do ferimento que Pndaro lhe fez ao atingi-lo (o sujeito da frase s Macon), chuparam o sangue passando por cima remdios calmantes e no lhe prescreveram o que haviam de comer ou de beber depois, como no o
haviam feito a Eurpilo, entendendo que os remdios ( ) eram suficientes para curar homens que, antes de serem feridos, eram saudveis e de regime () moderado, embora se desse o caso de naquele momento terem tomado a poo; ao passo que para os enfermios por natureza e libertinos, entediam que no lhes aproveitava viver, nem para eles nem para os outros, e que no valia a pena para eles existir a arte de curar, nem trat-los, ainda que fossem mais ricos do que Midas (Repblica 407 e 408 b).
22
deuses. E ao socorr-los, faz uso de phrmaka submetendo os prprios imortais a esse
tipo de tratamento:
Pone, logo, deitou eficaz lenitivo na chaga, que o fez sarar, pois, de fato, no era da estirpe terrena.
(Ilada. v. 401) 10
Na ocasio seguinte, Pone aplicar uns phrmaka em Ares, deus da guerra.
Trata-se de phrmaka que produzem efeitos singulares, pois o lenitivo utilizado por
Pone em Ares descrito como uma substncia produtora de coagulao. Na narrativa
feita a analogia da coagulao do sangue com o processo de se curar, ou de se fazer soro
em queijos. Trata-se de uma ocorrncia em que o mdico que aplica os phrmaka
comparado ao queijeiro, que sabe fazer com que o leite (lquido) se transforme em
queijo (slido). Nesse caso trata-se de uma metfora, de uma transposio de imagem
para o processo de cicatrizao; o processo da ao do phrmakon no sangue fluido, que
descrito da seguinte maneira:
Manda que Pone, ento, sem demora, ali mesmo, o curasse. Pone logo, deitou sobre a chaga eficaz lenitivo, que o fez sarar, pois, de fato, no era de estirpe terrena. Como o queijeiro, que o leite, antes lquido, faz que coagule em pouco tempo, agitando-o, depois de lanar nele o cogulo, Ares violento, desta arte, depressa curado encontrou-se.
(Ilada. V. 899-904) 11
10
' , ' . 11 , ' . ' ' ' . ' ' , ' , .
23
Nas ocorrncias seguintes o phrmakon relacionado ao saber especfico
daqueles que sabem manuse-lo e prepar-lo, isto , a uma arte, a um savoir-faire de
preparao do phrmakon. O contexto do primeiro episdio desta seqncia o
ferimento causado por Pris no mdico Macon. Nos versos adiante o aedo sugere que a
arte do mdico equivale arte de vrios guerreiros. A arte mdica ento equiparada
arte da guerra:
Mxima glria dos povos aquivos, Nestor de Gerena, toma o teu carro, depressa: ao teu lado coloca Macon e para as naves escuras dirige os velozes cavalos, pois sabido que um mdico vale por muitos guerreiros, que sabe dardos extrair e calmantes deitar nas feridas.
(Ilada. XI. 511-515) 12
Macon comandava juntamente como o seu irmo Podalrio um efetivo de
trinta naus, que desembarcariam em Tria com a misso de resgatar Helena. O nome de
Macon sugere que ele provavelmente possua as habilidades do cirurgio, alm da
necessria habilidade com os medicamentos que prpria a todo mdico. A palavra
significa um tipo especfico de faca e no Corpus hippocraticum ocorre
tambm que a palavra , aparece com o significado de pequena faca (Do
Mdico. 6).
No episdio seguinte h uma referncia s habilidades de Agamede filha de
Augia e esposa de Mlio. Agamede uma das personagens femininas de Homero que
12 , , ' ' ' .
24
so conhecedoras de propriedades farmacolgicas das plantas. Trata-se de uma aluso
ao conhecimento acerca da prpria phsis, o que se refere a este saber de Agamede:
Mlio, guerreiro famoso. Era genro de Augias, casado com sua filha mais velha, Agamede de louros cabelos, que conhecia a virtude de todas as plantas da terra.
(Ilada. XI. 739-741) 13
As mulheres que, na literatura grega, dominavam a arte dos phrmaka, quando
no so feiticeiras que usam muitas vezes o phrmakon encantatrio so parteiras, o
que remete idia de maiutica platnica, quando, Plato mesmo se refere ao uso dos
phrmaka por elas. No Teeteto (149 c-d), tm-se o testemunho de Plato, que se refere
s maai didosai pharmaka (as parteiras que do pharmaka, medicamentos):
Tambm so as parteiras que do medicamentos e podem usar encantamentos para provocar as dores do parto e, se quiserem, podem faz-las acalmar, levando a darem luz as que esto com dores de parto e ainda, se lhes parece que se deve abortar um nascituro, provocam os abortos.14
As duas ltimas ocorrncias do phrmakon que destacamos na Ilada, envolvem
Eurpilo e Ptroclo. No primeiro episdio (XI. 822-32) uma lana atinge e fere Eurpilo,
o que faz com que ele se afaste da batalha. Ao pedir ajuda a Ptroclo para retirar-lhe o
dardo da carne e aplicar-lhe phrmaka calmantes, Eurpilo faz meno a essa arte de
13 ' , ' , . Uma traduo mais literal, portanto, seria: que conhecia todos os que a vasta terra propicia. 14
- , -, ,
25
preparo dos medicamentos. Arte esta que Aquiles aprendeu de Quron e que teria, por
sua vez, transmitido Ptroclo:
Disse-lhe Eurpilo, ento, em resposta, ferido, o seguinte: Ptroclo, aluno de Zeus, j no h esperana: os Aquivos todos tero de morrer junto s naves de casco anegrado. Quantos, primeiro, na pugna, bravura e valor demonstravam, ora se encontram nas naves, feridos por lanas e setas dos inimigos. A fria dos Troianos vai sempre aumentando. Salva-me, entanto, conduz-me para o meu negro navio, tira-me a lana da coxa, absterge-me o sangue da chaga com gua tpida e ungentos calmantes no talho coloca, desses que Aquiles te fez sabedor, o que todos proclamam, cujo segredo aprendeu com Quron, o centauro mais justo.
(Ilada. XI. 822-32) 15
Nesse episdio em que Ptroclo medicou Eurpilo, os dois mdicos do exrcito
grego, Macon e Podalrio, encontravam-se impossibilitados de socorrer a quem quer
que fosse. Macon havia sido ferido. E Podalrio, naquele momento, lutava em campo
contra os Troianos. Assim, Ptroclo quem aplica a raiz amargosa, o phrmakon
calmante para as dores, na ferida de Eurpilo.
Na ocorrncia seguinte, ainda protagonizada por Ptroclo, este interrompe a
aplicao dos calmantes em Eurpilo, para poder ir at Aquiles tentar persuadi-lo a
retornar batalha, que naquele momento tendia para uma vitria de Tria. Ptroclo
utiliza os lgoi para distrair e agradar Eurpilo enquanto o medica com os phrmaka:
15 ' ' , ' . , , . ' , ' ' , ' ' ' , ' , , .
26
Ptroclo, enquanto os troianos e os Dnaos, colricos, lutavam em torno ao muro, distante das naves de casco anegrado, permanecia na tenda Eurpilo, heri prestantssimo, a distra-lo, em colquio amistoso, depondo na chaga um lenitivo apropriado a livr-lo das dores acerbas
(Ilada. XV. 390 94) 16
Na Odisseia, que examinaremos a seguir, o termo phrmakon adquirir
significaes sensivelmente distintas das que foram destacadas nas ocorrncias
encontradas na Ilada, mantendo, entretanto, a propriedade de atuao nos corpos;
propriedade caracterstica das substncias medicinais. Na Odisseia, as habilidades das
personagens, as poes, as folhas, as razes, pertencem aos universos de Mnemosne e
Hermes. Se na Ilada, sob certo aspecto, prevalecem os gritos de dor, causados por
talhos e cortes que provocam a melodia preferida por Ares, na narrativa do retorno de
Odisseu as propriedades do phrmakon iro se associar s emoes, ao encantamento,
cura das dores da alma e memria.
Afinal, a memria necessria para se fazer o percurso de retorno para casa
aps uma delongada campanha de guerra. E as experincias adquiridas em nove anos de
plemos precisam, para se fazer valer como conhecimento adquirido, estar alinhadas
com uma memria de identidade. Uma memria que permite no se esquecer do lugar
da prpria origem; do lugar de onde se vem.
A Odisseia canta a msica que fixa na memria dos ouvintes episdios que
mostram os perigos de se encontrar imerso em sono provocado artificialmente, tal,
16 ' , ' ' , ' ' ' .
27
como por exemplo, o seguinte evento no qual Odisseu resgata os homens que haviam
digerido as folhas narcticas dos :
Esse Lotfagos no empreenderam fazer nenhum dano aos nossos homens, mas logo fizeram que a loto comessem. Quem quer que viesse a provar uma vez desse fruto gostoso nunca a resposta haveria trazer, nem de novo empegar-se; desejaria, isso sim, morar sempre com os homens lotfagos, a comer loto somente, esquecido de vez, do retorno.17
(Odisseia. IX. 92-97)
1.3 As ocorrncias do phrmakon na Odisseia
A primeira das ocorrncias do phrmakon destacada na Odisseia se refere a um
dilogo entre a deusa Atena e o jovem Telmaco. Esse dilogo classifica o phrmakon
como um veneno homicida, um phrmakon androphnon, um frmaco matador de
homens que, segundo a deusa, Odisseu buscara em viagem feita a fire para poder
untar as suas flechas (Odisseia. I. 260-62). Trata-se da primeira referncia nesse poema
potncia da droga em seu sentido destrutivo da vida. tambm a uma thymophthra
phrmaka, drogas destruidoras de thyms, que os pretendentes de Penlope se
referem, ao sugerirem que Telmaco poderia buscar veneno na viagem de barco que
faria com a finalidade de encontrar seu pai desaparecido. Nestes versos os pretendentes
de Penlope debocham de Telmaco dizendo que ele tencionava colocar uns phrmaka
em nossas crateras que seria servido a eles em banquete (Odisseia. II. 325-29). 17
' ' ', . ' , ' , ' ' .
28
A terceira ocorrncia do phrmakon que destacamos envolve outra personagem
homrica, que assim como Agamede, tambm conhecedora das misteriosas plantas.
Helena de Esparta apresentada como uma hbil manipuladora de phrmaka. Uma
conhecedora das drogas que atuam no esprito, e que tem por finalidade alterar as
emoes e afastar as ms lembranas. Estas duas caractersticas, de suscitar emoes e
anular a rememorao, caracterizam esse phrmakon como remdio para a alma,
diferentemente da droga que atua especificamente no corpo; como o caso das curas
ocorridas em Menelau, Eurpilo, Hades e Ares, na Ilada. Essa cena se passa no salo do
palcio de Esparta, no qual Menelau e Helena recebem o jovem Telmaco, que partira
de barco em busca do seu pai Odisseu.
ordem de Menelau, Helena obedece, misturando um phrmakon ao vinho,
para que com essa mistura os convivas pudessem se livrar da clera e da dor, assim
como das lembranas ruins:
Outro feliz parecer teve Helena, de Zeus oriunda: deita uma droga no vaso do vinho de que se serviam, que tira a clera e a dor, assim como a lembrana dos males18
(Odisseia. IV. 219-21)
Mesmo se perdessem os pais, portanto, os filhos ou os irmos, assassinados
diante de si, aqueles que provassem deste vinho modificado nada sentiriam. Estariam
imunes, curados das dores da alma; pelo menos durante um dia. Helena recebera de
presente da egpcia Polidamna, quando de sua passagem pelo Egito no retorno de Tria,
o conhecimento sobre essas drogas, assim como sobre o seu preparo e seu manuseio.
18
' ' ' ' ' ' , , ' , .
29
Nos versos, o Egito indicado como um lugar possuidor de um solo propcio para a
gerao de diversas drogas; sejam estas drogas benficas ou letais. So versos nos quais
o Egito tambm indicado como uma terra na qual todos os homens so possuidores de
um saber sobre tais substncias; isto , todos os homens so mdicos:
To eficazes remdios a filha de Zeus possua, e salutares, presente da esposa de To, Polidamna, da terra egpcia, onde o solo frugfero gera abundantes drogas, algumas benficas, outras fatais nos efeitos. Todos os homens so mdicos l, distinguindo-se muito, pelo saber, dos demais, pois descendem da raa de Pone.19
(Odisseia. IV. 227-32)
Outra ocorrncia de um cognato da palavra phrmakon chama a ateno por
possuir diverso significado dos anteriores. Trata-se do particpio20 pharmsson, que
designa a ao de transformao provocada no ferro incandescente quando ele
temperado em gua fria, como o caso no processo de forja das lanas e de espadas,
fabricadas por antigos ferreiros. Mas a analogia com este tipo de procedimento, o
processo de forja dos instrumentos de guerra, deve ser contextualizada, para que o
sentido do phrmakon neste caso possa ser mostrado com maior plenitude polissmica.
19 , , , , , , , , .
20 preciso considerar, no entanto, que os estabelecedores atuais dos poemas homricos, como Victor Brard, consideram a passagem (Od.IX,391-4) uma interpolao, observando que, para alm dos indcios materiais, encontram-se ali: (1) o uso o plural , em detrimento de (); (2) a desconsiderao do F na eliso do em , e (3) o desconhecimento, por parte dos poemas picos coetneos, do procedimento teraputico do ferro mergulhado na gua. Porm, a interpolao no compromete o valor que o excerto tem para nossa anlise, porquanto possvel que poca de Grgias a passagem em questo j tivesse sido assimilada pela tradio ou, ao menos, que j circulasse em alguns meios.
30
Estamos diante do clebre episdio em que Odisseu ataca o Ciclope Polifemo,
o monstro cujo nico olho foi trespassado por uma lana em brasa (Odisseia. IX. 355-
94). O objeto usado por Odisseu para cegar o ciclope apresentava uma caracterstica
especfica. Tratava-se de um pedao de pau de madeira verde, com o qual Odisseu fez
uma lana, que ao ser introduzida no nico olho do Ciclope, produziu um chiado, um
som similar ao que produzido quando o ferro em brasa colocado na gua fria, um
processo com o qual os antigos ferreiros forjavam lminas, espadas e lanas:
Do mesmo modo que um grande machado, ou um machado pequeno, Em gua fria mergulha o bronzista, entre grandes chiados Esse o remdio com que se costuma dar tmpera ao ferro Dessa maneira rechia no pau de oliveira o olho grande. (Odisseia. IX. 391-394) 21
Examinaremos agora uma sequncia de narrativas que se concentram no Livro
X de Odisseia. Trata-se dos episdios dos lotfagos (Odisseia. IX), nos quais a
feiticeira Circe e o deus Hermes so associados produo e ao manuseio do
phrmakon.
Na primeira narrativa desta seo, Circe apresentada como uma feiticeira que
fabrica kak phrmaka, que significa drogas funestas capazes de acalmar lees, lobos,
e outros animais ferozes. Esses phrmaka fabricados por Circe alteram a natureza dos
homens, transformando-os em ces dceis (Odisseia. 212-215) 22. Circe apresentada
21
' ' ' 22 , , ' . ' ' ' , ' .
31
como uma polyphrmakos, isto , uma maga conhecedora de uma pluralidade de drogas
(Odisseia. X. 274- 76). Uma mulher que consegue seduzir os homens de Odisseu com o
seu canto ou seu encanto, com o seu corpo, induzindo-lhes a beber a droga que ir
retirar-lhes a memria, transformando-os em porcos assim como em outros animais. Os
phrmaka de Circe so drogas que agem no somente nos corpos, mas tambm nos
espritos, levando assim os homens ao esquecimento (lthe) de suas prprias
identidades. Esquecimento esse que impede que eles se recordem do caminho de volta
para casa. Trata-se de uma passagem em que o aedo sugere claramente a importncia de
se preservar a prpria memria.
Afinal, memria , tambm, saber de onde se vm, para onde se vai e para
onde se deve retornar, depois de uma jornada. O aedo canta o valor de se conseguir
mant-la intacta para que se possa no esquecer quem se ; para que no se perca a
prpria identidade. Afinal, aquele que perde o rumo, no difcil processo de retorno para
casa aps uma delongada guerra, torna-se ningum: sem memria e sem identidade.
Curiosamente fora esse, sob certo aspecto, o ardil de linguagem utilizado por
Odisseu para escapar de Polifemo. Odisseu sempre chega aos lugares como ningum,
inclusive na casa dele. Utilizando-se de um jogo de tropos e confundindo o Ciclope com
as palavras, Odisseu enuncia que: Otis emoi noma [Ningum o meu nome]
ocultando assim a sua identidade, ao mesmo tempo em que induz Polifemo a se passar
por um brio enlouquecido, incapaz de identificar e enunciar o nome de seu agressor
para os irmos dizendo que ningum havia lhe furado o olho. Com os nomes,
Polifemo se confunde. No sabe, em sendo um selvagem, a importncia dos nomes para
se identificar algo ou algum, uma vez que aquilo que no tem nome nada ; otis
significa literalmente no algum e odeis significa no um; ou ningum.
32
Na seqncia desse episdio de encantamento dos marinheiros de Odisseu ser
Hermes quem lhe fornecer uma droga denominada . Trata-se de uma raiz de cor
negra com uma flor branca (X. 302-06), que imunizar o heri dos efeitos do
esquecimento provocados pela bebida malfica preparada por Circe. A planta
uma espcie de antdoto; uma planta imunizadora, uma droga contra a lthe:
Toma esta droga de muita eficcia e no palcio de Circe entra, porque h de livrar-te a cabea do dia funesto. Vou revelar-te os ardis perniciosos usados por Circe: h de bebida oferecer-te e veneno de pr na comida. Mas impossvel ser-lhe- enfeitiar-te, que a droga excelente que ora te entrego desfaz esse influxo. Atende ao que segue:
(Odisseia. X. 287-92) 23
Para resgatar os marinheiros, Odisseu elaborou a estratgia de fingir que
ingeria todo o phrmakon oferecido por Circe (Odisseia. X. 316 18), que obviamente
no fez efeito devido imunidade proporcionada pelo fornecido por Hermes.
Percebendo que Odisseu preservara a memria e a lucidez, Circe, antes de ser obrigada
a dar um antdoto para os marinheiros (Odisseia. 388-396), perguntar a Odisseu: qual
o seu povo, qual o seu nome, qual nome dos seus pais, e qual o nome da
cidade em que voc mora (325) 24.
Deste modo, buscando identificar aquele que a ludibriara, Circe revela que
jamais algum havia resistido ao poder de seu phrmakon: 23
, , . . , ' ' ' , , . 24
33
Muito me admiras que tenhas bebido e do encanto escapado, pois, at hoje, ningum resistiu ao poder desta droga, inda que aos lbios, acaso, s tenha de leve chegado. Trazes no peito porm, corao resistente aos feitios.
(Odisseia. X. 326-29) 25
Na verdade essas mesmas perguntas, qual o seu nome, seu povo, nome de seus
pais, j haviam sido formuladas por Alcnoo, ao escutar as narrativas de Odisseu:
Dize teu nome, e de como o teu pai e tua me te nomeiam na tua ptria, assim como os vizinhos, que em volta demoram. No h ningum desprovido de nome na face da terra , Desde que nasce, quer seja de nobre prospia, ou do povo.
(Odisseia. VIII- 549-552) 26
Segundo o testemunho de Digenes Larcio, o filsofo Antstenes, discpulo de
Grgias Leontino e de Scrates, teria produzido, entre outros, um texto inteiramente
dedicado a feiticeira Circe e aos seus poderes; este texto denominava-se Per Krkes
(VI. 18. 2).
Tal como phrmakon a palavra kos significa droga, remdio e essa palavra
ocorre em textos do corpora antigo, em diversos contextos. Quase no final da Odisseia
(XXII: 481- 490) h uma ocorrncia de kos designando um tipo especfico de
remdio. Nela Odisseu, o polmetis (homem de muitos ardis) solicita sua sdita
Euriclia um defumador constitudo de um punhado de enxofre colocado na brasa. o
25 ' , ' . ' , .
26
' . ' ', , ' . ' ,
34
caso em que o incenso feito de enxofre um kakn kos; isto , um remdio para o mal.
Esse defumador de enxofre [theion] teria como finalidade a expurgao de todos os
males dos aposentos de Odisseu e de Penlope.
Antecipando as ocorrncias da prxima seo, na qual sero destacadas
ocorrncias do phrmakon nas tragdias, citamos o drama Ciclope (96-98) de Eurpides,
no qual h uma passagem em que o personagem de Odisseu pronuncia as palavras
dpses kos, remdio para a sede 27. Odisseu havia desembarcado numa praia da
ilha de Polifemo e pedido ento ao Sileno gua boa de beber; um bom remdio para se
poder curar a sede. E tambm nos fragmentos da pea Palamedes, de Sfocles,
encontra-se uma referncia a algumas das invenes deste heri do ciclo pico, entre
elas o gamo e o jogo de dados, que so descritos, nesses fragmentos, como invenes
de Palamedes, remdio (kos) para os momentos de cio dos homens, nos intervalos das
batalhas em Tria28.
A seguir, ainda no campo da poesia, ir se observar algumas ocorrncias do
phrmakon na antiga tragdia grega. Foram destacados, em especial, episdios que
possuem relaes com as aes narradas ou com personagens das epopias.
1.4 Sobre o phrmakon na poesia trgica
27
, ' ;
28
478.1. ' , 479.1. , , , 480.1.
35
Se um fato que os cultos orgisticos campestres, dedicados a Dioniso, os
inspiraram, tambm um fato que a maior parte dos personagens trgicos que nos
chegaram pode ser encontrada na poesia de Homero. Pode-se citar como exemplo disso
o caso de Agamnom, ou os de jax e de Helena, todos estes personagens picos que
deram nome e tema a peas teatrais.
Medeia tambm uma destas personagens trgicas cuja ascendncia remonta
pica29. Medeia sobrinha da feiticeira Circe e sem a sua ajuda a expedio dos
Argonautas teria sido um verdadeiro fracasso. Os ungentos e os encantamentos
pronunciados com mgicas palavras por Medeia constituram uma poderosa arma na
epopia empreendida por Jaso em busca do Velo de Ouro. Tambm na pea cmica As
Nuvens, de Aristfanes, h uma referncia a estas qualidades de Medeia, as virtudes da
feiticeira, pronunciadas no dilogo entre Estrepsades e Scrates. Medeia uma mulher
feiticeira30 e Aristfanes, na comdia Pluto (302- 309), faz novamente referncia sua
ascendncia31, destacando as misturas de frmaco que eram produzidas por sua tia
Circe.
Nos Argonautas, Medeia utilizou um blsamo para imunizar Jaso da ao e da
fria incendiria dos Touros de Hefesto. Com os seus sortilgios, Medeia tambm fez
dormir o drago que guardava a caverna na qual se encontrava o Velo de Ouro e foi
graas a este phrmakon que obteve a promessa de casamento por parte de Jaso. Aps
a captura do Velo de Ouro, Medeia foge com Jaso para Corinto, mas no sem antes
deixar o corpo de seu irmo Apsirto inteiramente despedaado pelo caminho. Esta ao
29
Neste caso especfico, de uma epopia reconstruda por Apolnio de Rodes.
30 Cf. Nuvens 749. ' .
31 Plato, em Grgias 513 a tambm faz meno s magas da Tesslia, que tm poder para atrair a lua.
36
homicida praticada por Medeia em Argonautas visava atrasar a perseguio de seu pai,
Eetes, que lanara uma expedio armada em seu encalo.
Na primeira ocorrncia destacada em Medeia de Eurpides, a feiticeira pedir
abrigo para Egeu de Atenas, devido a sua expulso de Corinto por Creonte.
Em troca do asilo, Medeia oferecer a Egeu, que ainda no tivera filhos, o
phrmakon da fertilidade:
Apieda-te, apieda-te desta desgraada E no me contemples erma a cair, Mas acolhe-me no pas de na lareira. Pelos Deuses, assim amor te seja portador De filhos e feliz tu possas morrer. No sabes que invento inventaste aqui: Cessarei o teu ser sem filho e te farei semear filhos, tais drogas conheo.
(Medeia. 711-718) 32
Nesta tragdia de Eurpides, o remdio oferecido por Medeia se confunde com
a fertilidade da mulher. O phrmakon a prpria capacidade da gerao, pois Medeia
acaba consumando a proposta feita a Egeu dando-lhe um filho que viria a ser chamar
Medo (epnimo dos Medos) 33.
O remdio para a infertilidade de Egeu a fertilidade da mulher, a potncia da
gerao em Medeia. Uma vez aceita a sua proposta, Medeia exigir que Egeu preste
32
. ' , . . ' ' ' ' ' .
33 Apolodoro. Biblioteca I. 9. 28. , - : o que se traduz por Medeia veio para Atenas e ali se casou com Egeu, gerando o seu filho, Medo (traduo de Henrique Fortuna Cairus).
37
juramento. E neste juramento pede garantias de que Egeu no ir expuls-la da cidade
posteriormente, como antes j o fizera Creonte. Egeu d a sua palavra sob juramento.
Esta cena trata de um plano homicida de Medeia. Plano este que se constitua no envio
de presentes em ouro para a filha de Creonte (Glaucia) que acabara de se casar com
Jaso. Preparando uns phrmaka, Medeia trama uma morte terrvel para Glaucia, filha
de Creonte. Logo que Glaucia vestir a tnica e colocar as jias em ouro, entregues pelos
filhos de Media, Glaucia morrer.
Medeia encharcara com veneno o vestido e os adornos, fazendo com que
esses cheguem s mos da sua infeliz rival por intermdios dos seus filhos:
Enviarei os filhos com ddivas nas mos noiva, para que os no exile desta terra, Vu sutil e coroa de ouro trabalhado. Se ela puder sobre a pele esse adorno, ter morte maligna e quem mais a tocar, com tais drogas untareis as ddivas.34
(Medeia. 784 89)
No momento seguinte Media tramar a ao infanticida; o assassinato de seus
filhos como uma vingana a Jaso. O mensageiro chega e avisa Medeia que Glaucia e
Creonte morreram, graas ao seu phrmakon:
Morreram h pouco a tirana moa E Creonte, seu pai, por tuas drogas.
(Medeia. 1125 26) 35
34 ' , [ , ,] , ' . 35
' .
38
O mensageiro descreve para a feiticeira como os dois morreram (1140). Se, nos
Argonautas, o phrmakon de Media havia imunizado Jaso do fogo mortfero lanado
pelos touros de Hefesto, na tragdia de Eurpides o remdio mortal fabricar o fogo
que age sobre os corpos de Glaucia e de Creonte, deixando ambos em chamas. O coro
canta que: em se tratando de disputas que envolvem o gnero feminino, h um saber
especfico, uma espcie de raciocnio sutil, acerca dos ardis a serem utilizados pelas
sedutoras mulheres (Medeia. 1082 89).
Nas Traqunias (680 -88) de Sfocles o phrmakon uma mistura do sangue
do centauro Nesso com o veneno da Hidra de Lerna. Dejanira, acreditando dar ao
marido Hracles uma droga do amor eterno, conforme disse Nesso, incendeia-o com
esse phrmakon.
No h como no observar tais situaes associadas s vinganas femininas,
sem associ-las figura da deusa ris. Uma deusa capaz de promover, com o seu
pomo da discrdia e orgulho ferido, uma competio entre deusas mulheres, sobre
qual delas seria a mais bela36. Competio esta que est nas bases do episdio que
levaria posteriormente milhares de homens morte. Como se sabe Helena de Esparta foi
o prmio dado Paris, juiz desta contenda. Um prmio que deu causa guerra entre
gregos e troianos. Na tragdia, uma vez realizadas as mortes de Glaucia e Creonte,
Medeia matar os prprios filhos no templo de Hera, voando depois para Atenas num
carro com cavalos alados; presente de seu av Hlio.
36
ris no fora convidada para o casamento dos pais de Aquiles e como vingana contra esta afronta, fabricou uma ma de ouro com a inscrio para a mais bela das mulheres, uma fruta que foi disputada por Atena, Hera e Afrodite. O jovem Pris de Tria foi escolhido como rbitro da disputa e designou Afrodite como a mais bela entre todas as deusas, recebendo de Afrodite, como prmio, o amor [e os posteriores infortnios] de Helena de Esparta.
39
1.4.1 Prometeu e Dioniso
No Prometeu Acorrentado, de squilo, destacam-se duas interessantes
ocorrncias que envolvem o phrmakon. A primeira delas quando Prometeu, j
acorrentado no cimo do Cucaso, afirma que impediu que os homens rolassem para o
Hades aos pedaos, e que por isso pesa sobre ele uma durssima pena, que agride os
olhos de quem v (235-38) 37.
Prometeu afirma ter impedido que os mortais previssem a prpria morte
(248)38. E pergunta feita pelo Coro, sobre qual droga teria ele, Prometeu, se utilizado
para curar esta molstia, Prometeu responde: cega esperana dei-lhes como dote
(249-250) 39. A esperana o primeiro remdio contra o desalento de quem sabe que ir
morrer, mas no sabe quando isso ocorrer. A esperana o remdio de Prometeu
contra a destinao trgica da vida humana.
Mais adiante o Coro cantar ser imerecido o sofrimento de Prometeu,
condenado a ter diariamente uma guia a devorar-lhe o fgado. Prometeu recorda que os
homens, so seres ingnuos, que ganharam lucidez e domaram as suas mentes
graas a ele e as suas criaes (442-44):
ocupavam o fundo das cavernas 454
37
' ' . , , '
38
' .
39 {.} .
{.} .
40
[....] Agiam sem pensar at eu lhes mostrar-lhes 457 o difcil subir, descer, dos astros. Inventei o prodgio das cincias o clculo e a combinao das letras, memria, artfice de tudo, Musa 461 [....] Se fui autor de engenhos desse gnero 469 para os mortais, careo da cincia que traga uma sada do mal presente.471
(447- 471) 40
Ora, ento, tal qual um kaks iatrs, um mdico mau, Prometeu no
conseguira fazer um phrmakon para si mesmo, o que lhe pergunta o Coro (472-75).
Prometeu finalmente responde, descrevendo toda a sorte de remdios que ele havia
fabricado para os homens:
Ouvindo as outras artes e os demais 476 Subterfgios teu pasmo aumentar. A principal: to logo algum caa enfraquecido, nada o protegia: ungento, dieta, nem sequer bebida. 480 A esse quadro fatal, eu combati com drogas bem dosadas, salutares, 482 que expulsam todas as molstias graves. Classifiquei diversas profecias; figuras da viglia destaquei dos sonhos, decifrei rumores rduos e os smbolos plantados nos caminhos. 487 Interpretei preciso o curso de aves de unhas recurvas, tudo o que anunciam; bons augrios, sinistros, quais seus hbitos
40
' ... , . , , , , , ' ... ' , ' .
41
de vida, a mtua ira, o mtuo amor 491 [....] Foi o que fiz. Algum obteve antes 500 de mim o bronze, o ferro, a prata, o ouro, preciosidades teis aos humanos, que at ento no solo se escondiam? 503 [....] por isso sintetizo e me resumo: o autor da arte humana Prometeu 506 (476-506)41
Prometeu, com as suas criaes, ento o prprio phrmakon para o desamparo
do homem diante do mundo. importante destacar que em duas passagens de Prometeu
Acorrentado, de squilo, o termo sophists (sbio) utilizado para designar Prometeu;
em (62)42 e em (944)43, pronunciado por Hermes.
41
, . , , ' , , , , , ' , . , , ' . ', , ' , ... ' 500 ' , , , , ...503 , 505 . 506
42
.
43 , .
42
As trs ltimas ocorrncias do phrmakon que destacamos nessa seo da
poesia trgica, esto relacionadas ao vinho e tambm a figura do deus Dioniso. Nas
Bacantes de Eurpides, os efeitos curativos do vinho so designados como phrmakon.
num dilogo travado entre Tirsias e Penteu que a bebida fabricada com uvas
descrita como uma grande criao: Foi Dioniso (277-83):
de quem provm o nutrimento seco; e seu mulo, o filho de Semele, que ao mundo trouxe o sumo invento: sumo da vinha, licor puro! O triste anima-se ao consumir a linfa da uva, frmaco inigualvel contra a dor, oblvio do dirio dissabor, o sono de Hipnos. 44
Causar lthe, esquecimento das dores e dissabores seria uma das propriedades
da criao dionisaca. Em Vidas e Doutrinas dos Filsofos Ilustres, Digenes Larcio,
ao comentar o princpio estico de que os sbios deveriam ser imunes soberba e
vaidade, vai fazer analogia da austeridade com um tipo de vinho seco, prprio para fins
medicinais, uma pharmakopoia45: O termo austero aplica-se, entretanto, a outras
pessoas, porm sua austeridade assemelha-se aspereza do vinho prprio para fins
medicinais, que no serve para ser bebido normalmente (VII. 117. 10-12). Ainda em
relao a esse tipo de analogia do phrmakon com o vinho, conforme ocorre nos versos
de As Bacantes, Plato, nas Leis, ir propor que o vinho pode ser um phrmakon para o
44
' ' ', ' , , , ' , ' ' .
45
, , , . Traduo de Mario da Gama Kury.
43
medo (phbos) e que esse phrmakon no pode ser engendrado pelas mos de nenhum
mago, mas somente pelo prprio deus Dioniso:
Que assim seja, legislador, que para combater o medo uma tal droga no tenha aparentemente sido concedida aos homens por um deus, nem ns mesmos a inventamos (pois no se encontram magos entre os nossos convivas): porm efetivamente existe uma poo para induzir ausncia do medo e a uma confiana excessiva e intempestiva ou o que diremos acerca disso?
(I. 649 a) 46
Um pouco adiante, ainda nas Leis, Plato inusitadamente propor que os
menores de dezoito anos sejam proibidos de usufruir desse phrmakon dionisaco (tn
onon phrmakon). Sendo recomendado somente a partir dos quarentas anos a fruio
do potente medicamento que afasta a rabugice da velhice; podendo-se a partir dessa
idade participar das festas orgisticas e das invocaes divinas (Leis. II. 666 b). Plato
se refere ao phrmakon em diversos de seus dilogos, com diferentes significaes,
sendo essas algumas delas. Adiante, sero examinadas algumas ocorrncias do
phrmakon nos textos hipocrticos, juntamente com algumas ocorrncias do termo em
Plato, ocorrncias essas referidas ao campo de saber mdico em sua possvel fronteira
com a filosofia.
1.5- O phrmakon na Medicina Antiga.
As seguintes passagens destacadas do Corpus Hipocrtico encerram o
mapeamento das ocorrncias do phrmakon, antes de se apresentar a anlise do Tratado
do no ser e do Elogio de Helena de Grgias. Nesta seo da dissertao poder ser
46
, , -- -- , , ;
44
observada certa proximidade entre os campos de saber mdico, sofstico e filosfico, j
na antiguidade. Trata-se de uma afinidade que indica uma possvel influncia recproca
entre a medicina e a filosofia antiga. Influncia esta que se percebe no s na escrita de
Grgias, como tambm na de Plato e de Aristteles.
Plato nos forneceu interessante testemunho desta influncia tambm quando
representou Scrates (Protgoras. 311 b-c) induzindo um jovem sugestivamente
chamado Hipcrates a responder, afinal, o que ele, Hipcrates, esperaria aprender do
mdico Hipcrates ao lhe pagar pelo ensino. O jovem Hipcrates responde a Scrates:
aprender medicina. O contexto deste dilogo trata da ida deste jovem at a presena
do sofista Protgoras de Abdera, a quem, segundo Plato, este desejava, mediante
remunerao, tomar como mestre. Como lembra Wilson Ribeiro, Hipcrates se
dispunha a aceitar discpulos em troca de pagamento, como os sofistas mais famosos
(In: CAIRUS. 2005.22).
Outro testemunho de Plato contempla a hiptese de que ele prprio possa de
fato ter travado conhecimento com um asclepade, um mdico, com o nome de
Hipcrates. Seja atravs de leituras feitas, pessoalmente, ou, quem sabe, por ter sido
Hipcrates um contemporneo de seu mestre Scrates. Trata-se da passagem do Timeu
(84 d-e) em que Plato se refere aos conhecimentos da antiga medicina hipocrtica. O
filsofo indica como provveis causas do grupo de doenas respiratrias o sopro
respiratrio, a fleuma e a blis 47, uma vez que o pulmo, sendo o controlador dos
sopros respiratrios do corpo, no consiga manter limpas as suas vias de sada que se
encontram bloqueadas por secreo. Tambm no Fedro (270 c-3), muito antes de
Descartes, Scrates cita o mtodo, inspirado na arte mdica, como um conjunto de
47
, , .
45
procedimentos utilizados teleologicamente para se conhecer com consistncia alguma
coisa: Se devemos acreditar em Hipcrates, que pertence aos Asclepades, nem mesmo
o corpo possvel tratar sem esse mtodo 48.
Adiante sero apresentadas algumas ocorrncias nos chamados Tratados
Deontolgicos Hipocrticos, textos nos quais se encontram no somente regras de
procedimento mdico, mas a prpria essncia do que se considerava desejvel nas aes
desta espcie de prtica; o seu thos, por assim dizer.
No Juramento hipocrtico (3) o phrmakon citado na parte das clusulas com
a significao especfica de veneno. Trata-se de uma restrio que aparece logo aps a
referncia s divindades associadas prtica mdica49. A restrio estabelece que o
mdico no dever fornecer drogas mortais para ningum que as pea (CAIRUS. 2005.
152-53)50. Plato nas Leis faz tambm referncia a restries desse gnero, isto , de um
envenenamento deliberado praticado intencionalmente, seja por mdicos ou por no
mdicos (Leis. XI. 932 e 933 e). E como sabemos, Scrates fora condenado por
motivao diversa a essa por um Tribunal a ingerir esta espcie de phrmakon.
Evocando o saber mdico tambm no Timeu (89 b-d) Plato faz referncia s
pharmakeutik ktharsis (purgaes por frmaco). O filsofo diz que no se deve
utilizar o phrmakon para produzir ktharsis em situaes nas quais o bom senso no
exija o procedimento purgatrio. Os remdios continua Plato ao invs de tratar o
mal podem desencadear outros males ainda maiores. Da a necessidade da educao dos
48 , . 49 Apolo, Asclpio, Hgia, Panacia e os demais deuses que so testemunhas do juramento. A quebra de um juramento implicava na transgresso da impiedade.
50 .
46
hbitos de vida (daita) evitando com isso que se provoque um mal colrico51 atravs de
uso indiscriminado de remdios.
A segunda ocorrncia escolhida no Tratado Hipocrtico Do Mdico apresenta a
droga em oposio ao exemplo das substncias letais. Trata-se de um texto pequeno e
heterogneo em que tanto a postura, fsica e espiritual, como tambm algumas
disposies relativas ao instrumental do mdico, so sugeridas (RIBEIRO in CAIRUS.
2005. 179). O phrmakon apresentado como remdio52, destacando-se a importncia
da limpeza e da guarda adequada deste tipo de instrumental.
Em Do Decoro, encontra-se uma passagem que aproxima literalmente a
medicina da filosofia. O texto sugere que a arte mdica deve ser ela prpria uma prtica
de amor a sabedoria. Essa passagem (Do Decoro 5.1 5.3) prope que o mdico deve
conduzir a sabedoria para a medicina, do mesmo modo como a medicina deve ser
conduzida para a sabedoria, pois um mdico, que amigo da sabedoria (philsophos)
igualado a um deus53:
Retomando, portanto, cada uma das coisas ditas anteriormente, preciso conduzir a sabedoria para a medicina e a medicina para a sabedoria, pois um mdico amigo da sabedoria igual a um deus. No h muitas diferenas entre as duas coisas, pois todas as coisas relacionadas com a sabedoria esto na medicina: desapego ao dinheiro, modstia, capacidade de ruborizar, circunspeco, reputao, deciso, tranqilidade, firmeza diante de oposio, pureza, linguagem sentenciosa, conhecimento das coisas teis e necessrias a vida, rejeio impureza, capacidade de retribuio, ausncia de superstio, superioridade divina.
51
.
52 3.1. ,
53 .
47
(Decoro, 5. Trad. Wilson Ribeiro Jr. in CAIRUS. 2005. 195) 54
Esta passagem possivelmente tem influncias da importncia que os filsofos
esticos davam a prtica mdica. Wilson Ribeiro Jr (in CAIRUS, 2005, p. 206), ao
comentar a interpretao que Lara Nava faz do captulo 5 do Tratado do Decoro,
lembra que os esticos afirmavam que somente os sbios eram capazes de exercer
apropriadamente uma atividade; do que deriva a relao entre sopha e medicina.
Ainda em Do Decoro (10.3) os termos pharmake e ktharsis aparecem
associados. A pharmaktis um Livro de Medicamentos que se perdeu e que possuiria
possivelmente um extenso catlogo de plantas e de ervas, assim como de outros
medicamentos manuseados pelos hipocrticos (Das Doenas 9, 15, 18, 23, 28, 40, in
CAIRUS. 2005. 209). A ktharsis, desde Empdocles at Aristteles teve diversos usos
no antigo pensamento grego. Entre esses usos, os mais frequentes como purgao e
purificao55. Trata-se do mesmo uso dessa palavra que a tradio atribuiu s
ocorrncias da ktharsis na Potica de Aristteles. Vrios textos hipocrticos tambm
abordam procedimentos catrticos que tm como finalidade a reabilitao e a
harmonizao do corpo e da alma. Os procedimentos catrticos, assim como todos os
procedimentos curativos, devem observar os momentos oportunos de ao especficos.
54
, . , , , , , , , , , -, , , , , .
55 Do Decoro. 10. ,
- . [ ], , - , , , .
48
Trata-se do reconhecimento do momento adequado e oportuno, uma qualidade que faz
parte do rol das prticas que os Asclepades deviam observar.
Interessa aqui examinar tambm a importncia hipocrtica do kairs, do
instante correto, da ocasio propcia, na qual alguma medida tomada, ou na qual
nada se deve fazer, aguardando-se assim o momento certo do reestabelecimento. A
julgar pela leitura do Tratado do Decoro o manuseio do phrmakon necessita de certo
saber acerca da sua composio, assim como tambm do seu raio de ao em relao ao
objeto na qual ele ser aplicado. Se relacionarmos estas recomendaes que se
encontram em Do Decoro (9 - 10), de que desejvel que se:
mantenha na memria as drogas (phrmaka) e suas propriedades, as simples e as que esto formuladas, desde que tambm estejam na mente o que diz respeito cura das doenas, seus comportamentos e, de todas as maneiras, o comportamento que elas tm em cada uma delas....[...]... Faa poes eficazes, preparadas de acordo com a frmula e conforme as espcies. Tenha pronta tambm, com antecedncia, as coisas para os remdios (phrmaka) necessrios s purgaes (ktharsis).
Wilson Ribeiro Jr, ao comentar essa passagem, explica:
H tempo quando existe momento oportuno e o momento oportuno existe quando no h muito tempo. H cura com o tempo e, s vezes, tambm quando h momento oportuno. preciso certamente ser um mdico atento e que saiba essas coisas no atravs de uma reflexo plausvel, mas atravs de uma longa experincia com a razo, pois a reflexo uma lembrana composta de coisas apreendidas com a percepo56.
(In: CAIRUS, 2005, p. 221)
Ser possvel se perceber o escopo da arte mdica como um tipo de tchne especfico,
um saber que necessita de conhecimento terico, contemplativo, mas que tambm
56 Preceitos. 1. , , . , . ' .
49
necessita da intuio decorrente de um longo tempo de observao, transmissvel, ou
seja, ensinvel.
possvel que uma lida to prxima com o enigma da morte, como o caso
desta arte, tenha fascinado os filsofos mais antigos. Afinal, a morte um fenmeno
sem respostas definitivas e que se encontra fora do alcance de um saber mais profundo.
Trata-se, pelo que se v, de um fenmeno que oculta e que desintegra aquilo que antes
aparecia como ser integral. Configura-se como uma espcie de enigma que provoca
grandes resistncias para se pensar acerca da totalidade de sua natureza (2002:140).
O saber mdico desde a antiguidade apontava para uma natureza humana,
buscando tanto a sua compreenso como tambm os caminhos possveis para a sua
harmonia, fosse essa harmonia obtida atravs das dietas de vida, que no se restringem
alimentao, ou mesmo por intermdio de oportunos procedimentos e aplicaes das
substncias farmacolgicas nos corpos. E Grgias Leontino serviu-se da terminologia
mdica para construir sua tese a respeito da potncia da palavra como um phrmakon
que atua nos espritos, e do carter afetivo dos discursos, da potncia do lgos dynstes
mgas estn (Elogio de Helena. 8), isto , do lgos como um grande soberano entre os
homens. Com os discursos os homens interagem, filosofam, deliberam, debatem e
decidem acerca dos seus acordos, das suas divergncias e das suas contendas; como no
caso das causas forenses. Como prope Grgias, se mediante os discursos fosse
possvel tornar pura e lmpida, aos olhos dos ouvintes, a verdade dos fatos, seria fcil
se proferir sentenas, logo aps o que foi dito (Apologia de Palamedes. 35). Grgias
parece ter percebido um hiato praticamente intransponvel entre as palavras, as coisas e
os eventos, que devido as suas distintas naturezas no poderiam ser comunicados em
totalidade da uma pessoa para outra. nesse sentido que o Tratado do no ser de
50
Grgias possa ir, talvez, mais alm do que uma desconstruo lgica, bem humorada,
do Poema de Parmnides, que tenha tido como objetivo um puro ceticismo
gnosiolgico. nesse sentido que Grgias pode ter se utilizado da poesia, no somente
para afirm-la enquanto um discurso potente e sob medida, um lgos com metro (lgos
khon mtron), mas para expor que, encurralados em suas dimenses trgicas, tais como
as dos personagens Palamedes e Helena, os homens servem-se de seu grande trunfo, que
a linguagem, para poder construir sua cultura e preservar sua memria; memria essa
que talvez o maior recurso com o qual se consegue suplantar parcialmente o silncio e
o desaparecimento imposto pela finitude; pela morte.
A m fama de Helena de Esparta, assim como a injusta condenao de
Palamedes, atestam o poder da palavra na fabricao da memria coletiva atravs da
poesia. As suas defesas demonstram o poder e o alcance dos discursos, da palavra.
Assim como posteriormente fez Plato, Grgias se utilizou do referencial potico,
serviu-se dos mitos para demonstrar a complexidade da natureza humana, no que se
refere prpria constituio dos homens como seres de linguagem e memria.
Linguagem, sem a qual jamais conseguiriam se organizar em grupos na plis.
Linguagem, sem a qual jamais conseguiriam constituir leis e normas de convivncia.
Linguagem, sem a qual jamais conseguiriam fabricar cultura; cultura essa erigida em
grande parte atravs da transmisso dos textos que perpassaram o tempo.
A seguir examinaremos O Tratado do no ser, de Grgias, observando em que
aspectos o siciliano prepara os alicerces da sua teoria de linguagem, que, acreditamos,
retomada com plena potncia, na analogia do lgos com o phrmakon, no Elogio de
Helena.
51
CAPTULO II
2-Sobre uma introduo ao Tratado do no ser
Grgias Leontino apresenta no Tratado do no ser57 uma tese fundamental
para que se possa compreender a sua atuao como sofista, isto , para que se percebam
os fundamentos da atividade pela qual ele foi caracterizado, a saber: como mestre na
arte dos discursos, ou de retrica, conforme uma definio de Plato58. Na concluso
desse texto, se encontra, talvez, um pensamento de Grgias que permite se observar em
quais aspectos o Elogio de Helena retoma o esboo de teoria da linguagem que est
contido na terceira e conclusiva tese do Tratado do no ser59. Grgias encerra o Tratado
sugerindo que as palavras, por si mesmas, no garantem uma plena transmisso, de uma
pessoa para outra pessoa, da essncia das coisas; conforme elas so percebidas pelos
sentidos. Nesse ponto, interessa que se tenha em mente a proposio fundamental do
Elogio de Helena, proposio essa que atribui linguagem humana um pouco mais
alm da potncia persuasiva a plena soberania no reino dos homens. Um reino, de
resto, constitudo inteiramente por linguagem que fabrica memria; cultura.
Mas afinal, por que um texto que comea com a proposio de que nada
existe, ou de que nada , como o caso do Tratado do no ser; por que esse texto
57 A presente dissertao ir se utilizar da traduo do Tratado do no ser, na verso preservada por Sexto Emprico, produzida por Manuel Barbosa e por Ins de Ornellas e Castro. Esta traduo ser cotejada com as tradues de Barbara Cassin, tanto na verso do Tratado preservada por Sexto Emprico como na do fragmento De M.X.G. Algumas pequenas modificaes, em relao a essas tradues, sero feitas.
58 Grgias. 449 a.
59 C.f. Barbara Cassin sustenta essa hiptese, ao sugerir que O Elogio de Helena retoma a dificuldade final do Tratado, isto , o hiato entre palavra e coisa, como se incarnada no interior do prprio lgos. Efeito Sofstico. 2005. Pag. 53
52
caracterizaria tambm a atividade sofstica de Grgias Leontino, ao invs de, por
exemplo, definir Grgias como uma espcie de niilista?
No Tratado, Grgias parece colocar em evidncia determinados recursos da
linguagem que j haviam sido parcialmente explorados no Poema de Parmnides (2005:
21-22), e em especial na proposio de que o ser e de que o no ser no ;
proposio essa que se faz acompanhar, no texto, da idia de que s possvel conhecer
aquilo que , sendo o que no algo da ordem do inefvel, do impensvel e
conseqentemente do indizvel. Para Barbara Cassin60, Grgias funda a sofstica com o
gesto de fabricao de uma contraverso do Poema, uma espcie de pardia, que leva s
ltimas conseqncias, tanto as proposies de que o ser e de que o no ser no ,
como tambm a identificao entre ser e pensar, isto , a proposta de que os
homens s podem pensar aquilo que . Seguindo Parmnides, Grgias parece
observar, e assim apontar, para os problemas que decorrem da flexo do verbo einai,
quando ele utilizado nas funes de predicado e de sujeito, de si mesmo. Tanto o ser
(ser), como tambm o no ser () no ser; o verbo , aqui, os identifica, e tal
identificao, Cassin cr-la ser mais ressaltada na verso do Tratado contida no De
Melisso, Xenfanes e Grgias.
E se por um lado ser e no ser so opostos, por outro lado eles no podem
ser ao mesmo tempo, sem que isso no implique em dizer que, ou bem nada (pois
tanto ser e no ser so) ou bem, inversamente, tudo (pois tanto ser e no ser
so). Na verso preservada por Sexto Emprico valorizado justamente essa espcie de
auto-contradio, que conduz a nada e que decorre de que no ser no pode servir
de sujeito para o verbo , devido ao fato de ser, simultaneamente, sujeito de e de
60 CASSIN. 2005. p 10.
53
no 61. Segundo o raciocnio de Grgias, esse impasse se apresenta porque, de
acordo com a observncia de uma regra de no contradio perfeitamente absurdo
que uma coisa seja e no seja ao mesmo tempo (Adv. Math. 67)62:
Cada uma das trs teses de Grgias se apresenta, por sua vez, como uma inverso irnica ou grosseira do Parmnides escolar que cada um de ns, de Plato aos nossos dias, teve que memorizar: inicialmente, que h o ser, pois o ser e o no ser no ; em seguida, que esse ser por essncia cognoscvel, j que ser e pensar so a mesma coisa; por meio disso a filosofia, e mais especificamente essa filosofia primeira que foi denominada de metafsica, pde se engajar muito naturalmente em seu caminho conhecer o ser enquanto ser e se cunhou em doutrinas, discpulos e