Post on 13-Jul-2015
Escola Secundária Marquês de Pombal 10.º PGEI
2011
Encontrei uma preta Encontrei uma preta
que estava a chorar, que estava a chorar,
pedipedi--lhe uma lágrima lhe uma lágrima
para a analisar. para a analisar.
Recolhi a lágrima Recolhi a lágrima
com todo o cuidado com todo o cuidado
num tubo de ensaio num tubo de ensaio
bem esterilizado. bem esterilizado.
OlheiOlhei--a de um lado, a de um lado,
do outro e de frente: do outro e de frente:
tinha um ar de gota tinha um ar de gota
muito transparente. muito transparente.
Mandei vir os ácidos,Mandei vir os ácidos, as bases e os sais, as bases e os sais,
as drogas usadas as drogas usadas
em casos que tais. em casos que tais.
Ensaiei a frio, Ensaiei a frio,
experimentei ao lume, experimentei ao lume,
de todas as vezes de todas as vezes
deudeu--me o que é costume: me o que é costume:
nem sinais de negro, nem sinais de negro,
nem vestígios de ódio. nem vestígios de ódio.
Água (quase tudo) Água (quase tudo)
e cloreto de sódio.e cloreto de sódio.
SELECÇÃO DE JANILSON
Lágrima de preta
Regresso
E contudo perdendo-te encontraste.
E nem deuses nem monstros nem tiranos
te puderam deter. A mim os oceanos.
E foste. E aproximaste.
Antes de ti o mar era mistério.
Tu mostraste que o mar era só mar.
Maior do que qualquer império
foi a aventura de partir e de chegar.
Mas já no mar quem fomos é estrangeiro
e já em Portugal estrangeiros somos.
Se em cada um de nós há ainda um marinheiro
vamos achar em Portugal quem nunca fomos.
De Calcute até Lisboa sobre o sal
e o Tempo. Porque é tempo de voltar
e de voltando achar em Portugal
esse país que se perdeu de mar em mar.
Letra para um Hino
É possível falar sem um nó na garganta
é possível amar sem que venham proibir
é possível correr sem que seja fugir.
Se tens vontade de cantar não tenhas medo: canta.
É possível andar sem olhar para o chão
é possível viver sem que seja de rastos.
Os teus olhos nasceram para olhar os astros
se te apetece dizer não grita comigo: não.
É possível viver de outro modo. É
possível transformares em arma a tua mão.
É possível o amor. É possível o pão.
É possível viver de pé.
Não te deixes murchar. Não deixes que te domem.
É possível viver sem fingir que se vive.
É possível ser homem.
É possível ser livre livre livre.
SELECÇÃO DE JOSEFT PRAZERES
Quando Eu For Pequeno
Quando eu for pequeno, mãe,
quero ouvir de novo a tua voz
na campânula de som dos meus dias
inquietos, apressados, fustigados pelo medo.
Subirás comigo as ruas íngremes
com a certeza dócil de que só o empedrado
e o cansaço da subida
me entregarão ao sossego do sono.
Quando eu for pequeno, mãe,
os teus olhos voltarão a ver
nem que seja o fio do destino
desenhado por uma estrela cadente
no cetim azul das tardes
sobre a baía dos veleiros imaginados.
Quando eu for pequeno, mãe,
nenhum de nós falará da morte,
a não ser para confirmarmos
que ela só vem quando a chamamos
e que os animais fazem um círculo
para sabermos de antemão que vai chegar.
Quando eu for pequeno, mãe,
trarei as papoilas e os búzios
para a tua mesa de tricotar encontros,
e então ficaremos debaixo de um alpendre
a ouvir uma banda a tocar
enquanto o pai ao longe nos acena,
lenço branco na mão com as iniciais bordadas,
anunciando que vai voltar porque eu sou pequeno
e a orfandade até nos olhos deixa marcas.
in O Livro Branco da Melancolia
SELECÇÃO DE IDALMIRA
Um Pouco Mais de Nós
Podes dar uma centelha de lua,
um colar de pétalas breves
ou um farrapo de nuvem;
podes dar mais uma asa
a quem tem sede de voar
ou apenas o tesouro sem preço
do teu tempo em qualquer lugar;
podes dar o que és e o que sentes
sem que te perguntem
nome, sexo ou endereço;
podes dar em suma, com emoção,
tudo aquilo que, em silêncio,
te segreda o coração;
podes dar a rima sem rima
de uma música só tua
a quem sofre a miséria dos dias
na noite sem tecto de uma rua;
podes juntar o diamante da dádiva
ao húmus de uma crença forte e antiga,
sob a forma de poema ou de cantiga;
podes ser o livro, o sonho, o ponteiro
do relógio da vida sem atraso,
e sendo tudo isso serás ainda mais,
anónimo, pleno e livre,
nau sempre aparelhada para deixar o cais,
porque o que conta, vendo bem,
é dar sempre um pouco mais,
sem factura, sem fama, sem horário,
que a máxima recompensa de quem dá
é o júbilo de um gesto voluntário.
E, afinal, tudo isso quanto vale ?
Vale o nada que é tudo
sempre que damos de nós
o que, sendo acto amor, ganha voz
e se torna eterno por ser único e total.
Porque os outros se mascaram mas tu não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão.
Porque os outros têm medo mas tu não.
Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.
Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.
Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não.
Poema
A minha vida é o mar o Abril a rua
O meu interior é uma atenção voltada para fora
O meu viver escuta
A frase que de coisa em coisa silabada
Grava no espaço e no tempo a sua escrita
Não trago Deus em mim mas no mundo o procuro
Sabendo que o real o mostrará
Não tenho explicações
Olho e confronto
E por método é nu meu pensamento
A terra o sol o vento o mar
São a minha biografia e são meu rosto
Por isso não me peçam cartão de identidade
Pois nenhum outro senão o mundo tenho
Não me peçam opiniões nem entrevistas
Não me perguntem datas nem moradas
De tudo quanto vejo me acrescento
E a hora da minha morte aflora lentamente
Cada dia preparada SELECÇÃO DE YURAN SEMEDO
SELECÇÃO DE RAMIRO CÁ
É urgente o amor
É urgente o amor.
É urgente um barco no mar.
É urgente destruir certas palavras,
ódio, solidão e crueldade,
alguns lamentos,
muitas espadas.
É urgente inventar alegria,
multiplicar os beijos, as searas,
é urgente descobrir rosas e rios
e manhãs claras.
Cai o silêncio nos ombros e a luz
impura, até doer.
É urgente o amor, é urgente
permanecer.
O sal da Língua
Escuta, escuta: tenho ainda
uma coisa a dizer.
Não é importante, eu sei, não vai
salvar o mundo, não mudará
a vida de ninguém - mas quem
é hoje capaz de salvar o mundo
ou apenas mudar o sentido
da vida de alguém?
Escuta-me, não te demoro.
É coisa pouca, como a chuvinha
que vem vindo devagar.
São três, quatro palavras, pouco
mais. Palavras que te quero confiar,
para que não se extinga o seu lume,
o seu lume breve.
Palavras que muito amei,
Amor que morre
O nosso amor morreu... Quem o diria! Quem o pensara mesmo ao ver-me tonta, Ceguinha de te ver, sem ver a conta Do tempo que passava, que fugia!
Bem estava a sentir que ele morria... E outro clarão, ao longe, já desponta! Um engano que morre... e logo aponta A luz doutra miragem fugidia...
Eu bem sei, meu Amor, que pra viver São precisos amores, pra morrer, E são precisos sonhos para partir.
E bem sei, meu Amor, que era preciso Fazer do amor que parte o claro riso De outro amor impossível que há-de vir!
Minha culpa Sei lá! Sei lá! Eu sei lá bem Quem sou? Um fogo-fátuo, uma miragem... Sou um reflexo... um canto de paisagem Ou apenas cenário! Um vaivém Como a sorte: hoje aqui, depois além! Sei lá quem sou? Sei lá! Sou a roupagem De um doido que partiu numa romagem E nunca mais voltou! Eu sei lá quem!... Sou um verme que um dia quis ser astro... Uma estátua truncada de alabastro… Uma chaga sangrenta do Senhor... Sei lá quem sou?! Sei lá! Cumprindo os fados, Num mundo de maldades e pecados, Sou mais um mau, sou mais um pecador...
SELECÇÃO DE EUNICE BARBOSA
A leoa convenceu o leão,
depois de uma grande discussão,
a passarem juntos o Verão.
Sei lá... talvez no Ceilão!
O leão, convencido,
com a leoa foi mesmo querido:
- Ouve lá o teu rico marido:
e se fôssemos para um sítio bem florido?
A leoa rosnou e ripostou:
- Sabes bem como é que eu sou.
Há climas com os quais eu não me dou.
Prefiro o fresco. Para o pólo eu vou.
E lá partiram, a rugir, para a zona polar.
Fartaram-se de pular, de rosnar e de andar.
Chegaram lá... o pólo estava a fechar:
Pedimos desculpa, mas estamos a gelar!
- O pólo está fechado?
- gritou a leoa. O leão, escaldado,
olhou de alto a baixo e depois de lado.
- Anda daí, vamos mas é comer um gelado! SELECÇÃO DE VICTA SOARES
Rio
As águas vêm de longe,
trazem o mundo,
os montes a terra as pedras
os bichos pólen
as folhas e a luz
a chuva o granizo
e a sede dos homens
o rumor das noites e dos dias.
Rio vivo, quase mudo,
cheio de água
cheio de terra
cheio de tudo.
SELECÇÃO DE ADILSON
O MAR
O mar,
o meu mar.
todo o mar
do mundo
ao meu encontro.
Mar meu,
centro.
Mergulho
no mar.
Entro?
Ou entra
em mim
o mar?
EU SOU PORTUGUÊS AQUI Eu sou português aqui em terra e fome talhado feito de barro e carvão rasgado pelo vento norte amante certo da morte no silêncio da agressão. Eu sou português aqui mas nascido deste lado do lado de cá da vida do lado do sofrimento da miséria repetida do pé descalço do vento Nasci deste lado da cidade nesta margem no meio da tempestade durante o reino do medo. Sempre a apostar na viagem quando os frutos amargavam e o luar sabia a azedo.
Eu sou português aqui no teatro mentiroso mas afinal verdadeiro na finta fácil no gozo no sorriso doloroso no gingar de um marinheiro. Nasci deste lado da ternura do coração esfarrapado eu sou filho da aventura da anedota do acaso campeão do improviso trago as mãos sujas do sangue que empapa a terra que piso. Eu sou português aqui na brilhantina em que embrulho no alto da minha esquina a conversa e a borrasca eu sou filho do sarilho no gesto desmesurado nos cordéis do desenrasca.
Nasci aqui no mês de Abril quando esqueci toda a saudade e comecei a inventar em cada gesto a liberdade.o Nasci aqui ao pé do mar de uma garganta magoada no cantar. Eu sou a festa inacabada quase ausente eu sou a briga a luta antiga renovada ainda urgente. Eu sou português aqui o português sem mestre mas com jeito. Eu sou português aqui e trago o mês de Abril a voar
SELECÇÃO DE ADMILSON
Tudo de pernas para o ar
Numa noite escura, escura,
o sol brilhava no céu.
Subi pela rua abaixo,
vestido de corpo ao léu.
Fui cair dentro de um poço
mais alto que a chaminé,
vi peixes a beber pão,
rãs a comerem café.
Construí a minha casa
com o telhado no chão
e a porta bem no cimo
para lá entrar de avião.
Na escola daquela terra
ensinavam trinta burros.
O professor aprendia
a dar coices e dar zurros. SELECÇÃO DE EDWIGES
Rei, Capitão, Soldado, Ladrão
Rei, capitão,
soldado, ladrão,
menina bonita
do meu coração.
Não quero ter coroa,
nem arma na mão,
nem fazer assaltos
com um facalhão.
Quero ser criança,
quero ser feliz,
não quero nas lutas
partir o nariz.
Quero ter amigos
jogar futebol,
descobrir o mundo
debaixo do sol.
Rei, capitão,
soldado, ladrão,
não.
Mas quero a menina
do meu coração.
Poemas perdidos.
Real, real porque me abandonaste?
E, no entanto, às vezes bem preciso
de entregar nas tuas mãos o meu espírito
e que, por um momento, baste
que seja feita a tua vontade
para tudo de novo ter sentido,
não digo a vida, mas ao menos o vivido,
nomes e coisas, livre arbítrio, causalidade.
Oh, juntar os pedaços de todos os livros
e desimaginar o mundo, descriá-lo,
amarrado ao mastro mais altivo
do passado! Mas onde encontrar um passado? SELECÇÃO DE CLAUDINA
Pretexto
Por que não cai a noite, de uma vez?
— Custa viver assim aos encontrões!
Já sei de cor os passos que me cercam,
o silêncio que pede pelas ruas,
e o desenho de todos os portões.
Por que não cai a noite, de uma vez?
— Irritam-me estas horas penduradas
como frutos maduros que não tombam.
(E dentro em mim, ninguém vem desfazer
o novelo das tardes enroladas.)
SELECÇÃO DE ALINE
Cântico de Barro
Inquieta chuva, inquieta me dispersa,
esquecida a tradição e o cansado som.
Dentro e fora de mim tudo é deserto
como se as ervas fossem arrancadas
ou se esgotasse a dor por que se chora.
Na grande solidão me basta, e a contemplo
para o sonho interior que me resolve!
Tão fácil é esperar, que já nem sinto
o que vem a dormir ou a morrer
na mesma angústia que o silêncio envolve.
Deixa contar...
Era uma vez
O senhor Mar
Com uma onda...
Com muita onda...
E depois?
E depois…
Ondinha vai...
Ondinha vem...
Ondinha vai...
Ondinha vem...
E depois...
A menina adormeceu
Nos braços da sua SELECÇÃO DE MARIA DE FÁTIMA
A girafa
deu
ao seu
marido
no dia
de Natal
um lenço
colorido
de seda natural.
Que alegria!
– disse o marido –
ponha a pata
nesta pata,
com um pescoço
tão comprido
você não podia
ter-me comprado
uma gravata.
Saudação à Primavera
Na hora certa
Disse que chegaria.
Declarou dia e hora.
Tão longe que ela mora
que diabo, até
se lhe perdoaria
que, perdendo a maré,
chegasse no outro dia.
De tudo se abrigou
na sorte ingrata
e à hora exacta
“aqui estou!”
disse da alta esfera.
Bem-vinda Primavera!
A erva secou no telhado.
Não dá pão.
As minhas costas estão em carne viva.
Encham agricultores
o celeiro!
Calquei as minhas culpas, meus pecados.
Fugi para o silêncio. E entretanto
de mim, calado, o pranto todo o dia
jorrava, e este corpo esmorecia
ossos roídos de suor e febre.
– Não sejas – me disseste –
como aqueles cavalos dominados
somente pelo freio e pela mordaça:
eles só se aproximam, se confiam.
Entendi. Este canto bem o mostra.
Prometo que só ficarei atento
os séculos que forem necessários.
Atento nas promessas
que fazem os amigos
atento na justiça
com a paz na pista dos seus passos.
Vejam só que de frutos se enche a Terra!
Porque és eterno é que criaste o dia.
Porque és eterno é que me criaste a mim. SELECÇÃO DE EMACULADA
SEIS DA MANHÃ Para começar bem o dia, antes que o dia me veja, ponho-te aqui de bandeja a meu lado, rosto de amor, extenuado. Hoje o teu corpo, onde quer que ele esteja, vai ter de se erguer sozinho, respirar sozinho, sair sozinho, e tudo lhe vai parecer estranho, estranha a luz, estranho o tamanho do caminho.
SELECÇÃO DE DULCELINA
AS CHÁVENAS
As chaveninhas da avó,
repartidas em partilhas
por netas, noras e filhas,
lembram-me as chávenas da feira
com tatuagem Lembrança
gravada a ouro na pança.
Todas elas são de saldo,
nunca a salvo, todas vêm do desterro
e trazem no aro fino
um óculo cego, um destino,
um erro.
Anjos de uma asa só,
leve penugem de pó.