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UNIVERSIDADE REGIONAL INTEGRADA DO ALTO URUGUAI E DAS MISSÕES
CÂMPUS DE FREDERICO WESTPHALEN
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
MESTRADO EM LETRAS
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO EM LITERATURA COMPARADA
LITERATURA, VIDA SOCIAL E MEMÓRIA EM CRÔNICAS DE CAIO
FERNANDO ABREU
Mestranda: Larissa Bortoluzzi Rigo
Orientadora: Profa. Dra. Luana Teixeira Porto
Frederico Westphalen, julho de 2013.
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Larissa Bortoluzzi Rigo
LITERATURA, VIDA SOCIAL E MEMÓRIA EM CRÔNICAS DE CAIO
FERNANDO ABREU
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa
de Pós-graduação em Letras – Mestrado em Letras,
área de concentração em Literatura Comparada,
sob a orientação da Profa. Dra. Luana Teixeira
Porto, como requisito parcial para a obtenção do
título de Mestre em Letras.
Frederico Westphalen, julho de 2013.
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UNIVERSIDADE REGIONAL INTEGRADA DO ALTO URUGUAI E DAS MISSÕES
CÂMPUS DE FREDERICO WESTPHALEN
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
MESTRADO EM LETRAS
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO EM LITERATURA COMPARADA
A Comissão Examinadora, abaixo assinada,
aprova a Dissertação de Mestrado
LITERATURA, VIDA SOCIAL E MEMÓRIA EM CRÔNICAS DE CAIO
FERNANDO ABREU
elaborada por
Larissa Bortoluzzi Rigo
como requisito parcial para a obtenção do grau de
Mestre em Letras
COMISSÃO EXAMINADORA
Profa. Dra. Luana Teixeira Porto
Orientadora/Presidente
Profa. Dra. Rosani Úrsula Ketzer Umbach
1ª arguidora
Profa. Dra. Ana Paula Teixeira Porto
2ª arguidora
Prof. Dr. Lizandro Carlos Calegari
Membro Suplente
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Dedico este trabalho ao meu esposo, William, aos
meus pais, Celso e Odite, e ao meu irmão João e à
cunhada Cristiane, por todo amor que tenho a eles e
pelos exemplos de honestidade, humildade e
dignidade. Espero que se orgulhem de mim...
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AGRADECIMENTOS
O processo que envolve a execução da pesquisa não é um trabalho que exige
apenas reflexão, comprometimento e muita dedicação. Pesquisar está em
consonância com o processo de humanização, e nesse sentido, muitas pessoas
estiveram ao meu lado, auxiliando-me para conseguir com esse ato, ser uma pessoa
melhor.
Estou profundamente agradecida a minha orientadora, Luana Teixeira Porto,
por ter me recebido com toda sua generosidade, educação e de forma tão
respeitosa. Agradeço ainda pela competência profissional e humana com que
conduziu a orientação desta pesquisa, por suas leituras sempre atentas e pelo
cuidado constante com minha formação. Reitero que foi sob seus ensinamentos que
a pesquisa contribuiu para meu crescimento.
Agradeço ainda a todos os professores do Programa desta Instituição pelo
estímulo, sugestões de leituras, pelas aulas “iluminadoras” que me possibilitaram
uma formação consistente para o desenvolvimento da pesquisa. Nesse sentido, um
agradecimento especial à professora Ana Paula Porto pelo estímulo ao estudo e
pelas aprendizagens construídas as quais contribuíram para entender a literatura e
outras artes.
Agradeço também aos colegas Jaci Seidel, Girvani Seitel, Denise Meneses e
em especial a Letícia Sangaletti e Larissa Paula Tirloni pela contribuição no
processo de formação.
Aos funcionários da Instituição que nos auxiliaram sempre que necessário.
Além dos colegas do meio acadêmico, é preciso ressaltar o apoio e ajuda
incondicional de meus familiares. Muito obrigada ao meu esposo William por toda
sua ajuda, estímulo, leituras críticas e atentas, por compreender meus momentos
ruins e bons e, acima de tudo, por me incentivar cotidianamente a seguir em busca
desse sonho. Esse percurso só foi possível graças a sua colaboração. Meus pais,
Celso e Odite e ao meu irmão João, por todo amor, apoio irrestrito e incondicional,
você são o meu porto-seguro e a melhor definição de família que possuo. Agradeço
ainda aos meus cunhados Cristiane, Alessandra e Musa, aos meus estimados
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sobrinhos Hamza e Ryad e ainda aos meus afilhados, pelas constantes palavras de
apoio e pelo amor.
Agradeço à minha sócia, Raquel, pela compreensão nos momentos de
ausência e pelo incentivo.
Ao grupo intitulado “Amigos de Fé” e “amigos”, meus agradecimentos e
reconhecimento por estarem ao meu lado nos momentos mais difíceis, muito
obrigada pelos conselhos e pela constante ressalva que conseguiria chegar ao meu
propósito final.
A todos esses e outros que de uma forma ou outra colaboraram, muito
obrigada.
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RESUMO
Este trabalho examina crônicas do escritor Caio Fernando Abreu, publicadas no
jornal Folha de São Paulo nas décadas de 1980 e 1990 e reunidas no livro A Vida
Gritando aos Cantos, de 2012. A proposta do estudo consiste em identificar os
elementos formais e temáticos recorrentes na sua narrativa para examiná-las,
relacionando-as aos diálogos que tecem com a sociedade e com o leitor e
procurando investigar em que medida as suas narrativas constroem uma memória
de seu tempo e em que medida as crônicas do autor dialogam com o contexto de
produção em que está inserido. A atividade de leitura e interpretação da crônica de
Caio neste trabalho recebe, como procedimento metodológico, a articulação da
forma e do conteúdo das narrativas na perspectiva crítica da sociologia da literatura.
No desenvolvimento desta investigação, o estudo considera, em um primeiro
momento as características da crônica, de acordo com o aparato metodológico de
autores que refletem o gênero enquanto sua conceituação e modo de concepção em
diferentes períodos históricos. No segundo, os traços singulares da narrativa de Caio
e aspectos evidentes em suas crônicas, tais como a linguagem coloquial, humor e
ironia, subjetividade e trabalho de citação e, por fim, a busca pelo diálogo pelo leitor
são ressaltados e evidenciados, mostrando que os textos de Caio não se
enquadram nos moldes propostos pela teoria da crônica. Na terceira parte, relações
entre literatura, sociedade e memória contemplam as reflexões propostas acerca
das crônicas do escritor, explanando a relação constante e pertinente do texto do
escritor com os aspectos sociológicos, o que sinaliza a presença das memórias
individual, social e cultural nessas narrativas do autor. Ao examinar crônicas de
Caio, observa-se que suas narrativas permitem questionar a teoria da crônica e que
seus textos apresentam diferentes recursos estéticos que põem em destaque a
busca por um diálogo com o leitor e também com o contexto histórico do qual faz
parte, construindo assim uma memória de seu tempo.
PALAVRAS-CHAVE: Literatura, crônica, Caio Fernando Abreu, sociedade, memória.
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ABSTRACT
This paper analyzes Caio Fernando Abreu’s chronicles, published in Folha de São
Paulo, in 1980’s and 1990’s and combined in the book Life Crying on Corners, from
2012. The suggestion of the study is to identify the formal and thematic elements
present in his narrative, in order to analyze them, connecting them to the dialogues
that they weave with the society and with the reader and investigating how his
narratives build a memory of his time and how the writer’s chronicles talk to the
production context in which he is inserted. The reading of Caio’s chronicle, in this
work, receive, as a methodological procedure, the articulation of form and content of
the narratives in the critical perspective of sociology of literature. In the development
of this investigation, the study considers, at a first moment, the characteristics of
chronicle, according to the methodological apparatus of authors who think about the
genre in relation to its concept and way of conception in different historical periods.
At the second moment, the singular traits about Caio’s narrative and evident aspects
in his chronicles, such as the colloquial language, humor and irony, subjectivity and
citation work, and, finally, the search for the dialogue with the reader, are discussed,
showing that Caio’s texts don’t fit as proposed by the theory of chronicle. In the third
part, relations among literature, society and memory contemplate the reflections
about the writer’s chronicles, explaining the constant and relevant relation of Caio’s
text with the sociological aspects, what identifies the presence of individual, social
and cultural memories in the author’s narratives. When we analyze Caio’s chronicles,
we observed that his narratives permit to question the theory of chronicle and his
texts show different aesthetic resources that valorize the search for a dialogue with
the reader and with the historical context, building a memory of his time.
Keywords: Literature, chronicle, Caio Fernando Abreu, society, memory.
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SUMÁRIO
DE UMA TRAJETÓRIA DE LEITURA A UMA TRAJETÓRIA DE PESQUISA 09
1. A CRÔNICA E SUA TRAJETÓRIA NO BRASIL 15
1.1. A origem da crônica: dos primeiros caminhos até a atualidade 15
1.2. O hibridismo do gênero crônica: entre literatura e jornalismo 23
1.3. A crônica e seus autores: um pequeno esboço da crônica brasileira 34
2. A NARRATIVA DE CAIO FERNANDO ABREU 47
2.1. A narrativa de Caio Fernando Abreu: do romance à crônica 47
2.2. A crônica de Caio Fernando Abreu 59
2.2.2 A linguagem coloquial de suas crônicas 69
2.2.3. O humor e a ironia nas crônicas de Caio 74
2.2.4. A subjetividade e o trabalho de citação nas crônicas 82
2.2.5. A busca pelo diálogo com leitor 91
3. LITERATURA, SOCIEDADE E MEMÓRIA EM CRÔNICA DE CAIO
FERNANDO ABREU
97
3.1. Diálogos entre literatura e sociedade 97
3.2. A representação da sociedade na crônica de Caio Fernando Abreu 104
3.3. Relações entre literatura e memória 113
3.4. A construção da memória na crônica de Caio Fernando Abreu 118
CRÔNICAS DE CAIO: RELATOS DE UM NARRADOR-REPÓRTER 127
REFERÊNCIAS 132
9
DE UMA TRAJETÓRIA DE LEITURA A UMA TRAJETÓRIA DE PESQUISA
Caio Fernando Abreu foi-me apresentado no curso de Mestrado em Letras.
Até então, desconhecia a existência e a literatura desse escritor. À primeira vista,
seus textos pareceram-me apenas mais uma literatura disponível para leitura. Mas
depois, quando contos do escritor passaram a ser objeto de reflexão em uma
disciplina que propunha uma leitura das vozes de minorias na literatura brasileira,
suas narrativas receberam outra conotação, e pude começar a construir uma nova
percepção e julgamento de valor sobre seus textos. Caio Fernando Abreu não era
mais um escritor mediano, como outros, que não despertavam tanto a minha
atenção. Passava a ser um autor que me possibilitava ver o quanto a literatura pode
nos humanizar. O susto e as náuseas iniciais de suas leituras cederam, então, lugar
a uma vontade cada vez maior de conhecer as narrativas desse escritor.
Logo, habituei-me a ler Caio Fernando Abreu, queria estar em contato com
seus textos, e os recursos estéticos utilizados pelo autor me inseriam em suas
narrativas, levando-me a ingressar no cenário de suas histórias. Além disso, queria
acompanhar as reflexões propostas por esse escritor, até então distante. Em tal
contexto, quanto mais lia, mais me aproximava de seu mundo, e, assim, Caio
Fernando Abreu passou a ser somente e simplesmente Caio. A conotação de seus
textos fez com que o escritor se tornasse para mim um “velho conhecido”, e suas
narrativas passaram a fazer mais sentido. Além disso, os contos e romances do
escritor despertaram em mim a percepção sobre o lado mais humano da literatura.
No entanto, foram as crônicas de Caio que escolhi para serem minhas
companheiras nesta jornada de pesquisa.
Percebi nas crônicas de Caio uma oportunidade para unir as minhas duas
paixões: o jornalismo e a literatura. Estudar a confluência desses dois campos em
um trabalho de mestrado tornou-se uma atividade prazerosa, pois o jornalismo,
como opção primeira de formação, e a literatura, como uma inserção ao mundo das
letras e também ao próprio contexto do jornalismo, puderam ser aproximados neste
estudo. A presença de Caio e da literatura tornou-se, então, constante em meu
cotidiano. Procuro me inspirar no escritor gaúcho quando este faz referências a
elementos culturais e a alusão a subsídios externos ao texto, que enriquecem o
aparato teórico dos leitores e denotam ainda mais confiabilidade à produção, a
busca constante por conferir ao texto um sentido de diálogo e, é claro, a reflexão.
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Além de todos esses elementos supracitados, a escolha pela crônica de Caio
incorreu pela maior aproximação com a realidade. Nos contos e romances,
identificava certo distanciamento, mesmo sabendo que as descrições das narrativas
estavam imbuídas de alusão a situações sociais, os personagens tinham nomes
fictícios, e por isso a realidade acabava, no meu ponto de vista, sendo alterada. Por
outro lado, os contos me auxiliaram para compreender a sociedade e aflorar ainda
mais o aspecto de jornalista no sentido de buscar compreender melhor a sociedade
e os fatos que tornam a vida social concreta.
Nesse processo de reflexão incitada pelas narrativas de Caio, poderia citar
muitos contos e frases que surtiram significações, questionamentos e perturbações
em minha experiência como jornalista e também estudiosa da literatura, mas dois
deles foram fundamentais: “Terça-Feira Gorda” ampliou as minhas reflexões quanto
à homossexualidade. Com esse texto, entendi como ocorre a relação entre dois
homens, que “por acaso” são do mesmo sexo. A expressão grifada “por acaso”
resume todo o texto, pois o narrador demonstra que o que é válido em uma relação
são os sentimentos de afeto entre dois companheiros, independentemente do sexo.
Sob essa ótica, o conto “Aqueles Dois” também exemplifica o entendimento acerca
das relações entre duas pessoas do mesmo sexo, sobretudo com a expressão
“encontro de almas”, o que denota a representação e a perspectiva crítico-social do
autor acerca do preconceito homossexual. Ao ter contato com esses dois textos,
ficava me perguntando sobre as práticas de preconceito e violência sexual, sobre
experiências de afeto e analisando a sociedade como um todo: o que há de mais
gratificante para o amor que um encontro de almas? Em tal perspectiva, procurava
disseminar esses textos para que outras pessoas pudessem ter contato com essa
literatura e modificar as suas realidades no sentido de melhorar as relações
interpessoais e de respeito ao ser humano.
Assim, observando as reflexões que as narrativas de Caio suscitam, percebo
que o que mais me aproximou desse escritor foi a sua contribuição social: o seu
legado foi humanizar os leitores, fazer com que, ao ler seu texto, as pessoas
pudessem se sentir mais vivas e com maior vontade de respeitar o próximo. E com
as crônicas, essa inserção do social com o literário só aumentou. Ao ter contato com
o livro A Vida Gritando nos Cantos, quando li a segunda crônica da coletânea,
observei que era exatamente o que queria, ou seja, com essas narrativas foi
possível reunir todos os elementos que tornam viável o cotejo do jornalismo com as
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letras: diálogo com leitor, alusão a elementos externos ao texto, contato com
subsídios culturais e tudo isso falando do cotidiano, tornando-se, desse modo, o
contexto perfeito a uma jornalista em formação1.
O entusiasmo pelo escritor só aumentou a minha paixão pela pesquisa. É
muito gratificante estar inserida em contextos acadêmicos que possibilitam refletir
acerca do meio em que vivemos, pois acredito que, através das reflexões e com
leituras como as de Caio, podemos nos tornar mais humanos e aptos para mudar a
realidade. Então, após esse relato pessoal de como o escritor chegou até mim,
passo a utilizar uma redação mais acadêmica e objetiva para que os meus
julgamentos pessoais não modifiquem o teor e a importância da pesquisa. Assim
como comecei construindo um histórico de como fui apresentada ao escritor, passo
a apresentá-lo.
Caio escreveu prosa e poesia e, nas narrativas, construiu textos ora com uma
linguagem simples, ora com linguagem mais complexa. Seus textos ainda são
marcados pela referência constante a elementos culturais, tais como os da cultura
de massa e os da cultura também mais erudita, o que demonstra sua inteligência e
sensibilidade frente ao contexto do qual fez parte, mostrando que Caio era um leitor
do mundo, um leitor da vida. Além disso, uma de suas principais peculiaridades é a
capacidade de reflexão sobre os mais variados temas, e suas crônicas, mesmo
sendo escritas na década de 1990, com temáticas específicas, parecem atemporais,
cujos significados se aplicam ao contexto atual.
Considerando isso, este trabalho aborda a crônica do escritor, procurando
identificar os elementos formais e temáticos recorrentes na sua narrativa para
examiná-las, relacionando-as aos diálogos que tecem com a sociedade e com o
leitor e procurando investigar em que medida as suas narrativas constroem uma
memória de seu tempo e em que medida as crônicas do autor dialogam com o
contexto de produção em que está inserido. Para abordar esse tema, o trabalho
examina crônicas de Caio publicadas no jornal Folha de São Paulo nas décadas de
1980 e 1990 e reunidas no livro A Vida Gritando nos Cantos, de 2012.
A escolha das crônicas como objeto central deste estudo justifica-se tanto por
ser um gênero que aborda aspectos da realidade, contribuindo assim para a
1 Jornalista em formação, pois essa a atuação como jornalista requer constante aperfeiçoamento e construção de saberes. Os fatos do dia a dia fazem com que somente a experiência traga a carga necessária para conduzir a mídia.
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compreensão da narrativa de Caio, quanto para relacionar em que medida as
narrativas do escritor dialogam com a cultura de massa estabelecida pela sociedade
e com o contexto jornalístico, já que a crônica é um gênero que se encontra no limiar
entre literatura e jornalismo.
De acordo com as considerações expostas, o estudo, nos moldes propostos,
deve considerar: a) as características da crônica como gênero literário; b) os traços
singulares da narrativa de Caio; c) as relações entre literatura e sociedade e sua
expressão na crônica do autor Caio; d) o diálogo com o leitor através da crônica do
autor e sua relação com o jornalismo literário; e) a construção de uma memória
coletiva do período dos anos 1980 a 1990 através da produção e publicação das
crônicas do escritor gaúcho. Para abordar esses tópicos, a análise das crônicas será
realizada com a observação de aspectos estético-formais, mas também de aspectos
contextuais da época em que o autor estava inserido, na medida em que estes
forem adequados à reflexão sobre as relações entre literatura e sociedade.
Este estudo busca pôr em diálogo literatura e sociedade e investigar de que
forma a crônica de Caio constrói uma memória coletiva de seu tempo. Assim,
podemos inferir que este trabalho está relacionado diretamente à linha de pesquisa
Ficção, História e Memória, tendo em vista que ela investiga as relações entre
literatura, história e memória, em suas interfaces com outras disciplinas. Além disso,
o discurso literário é visto, de acordo com essa linha de pesquisa, como construção
sociocultural que privilegia a mímese, isto é, a representação da sociedade, o que
inclui, ainda, as minorias sociais tanto no papel de personagens quanto de
produtores do discurso.
Por esse prisma é que a execução desta pesquisa justifica-se como uma
contribuição para estudos que visam à maior aproximação da literatura com a
sociedade. É possível ainda inferir que, apesar de os estudos que privilegiam
aspectos da literatura com a sociedade serem objetos de inúmeras reflexões, a
incidência de uma pesquisa voltada a um gênero como a crônica é ainda pouco
estudada, embora Caio tenha sido um cronista de sucesso. Especificamente sobre
Caio, há pouquíssimos estudos que se voltam para sua produção textual de
crônicas. O que é mais difundido no meio acadêmico são estudos sobre os contos
do escritor. Com base nisso, entende-se que o tema deste trabalho é pertinente para
contribuir com estudos que abrangem o gênero da crônica, de modo a destacar as
relações entre literatura, sociedade e memória na obra do escritor gaúcho.
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Nesse sentido, este trabalho está estruturado em três capítulos. Na busca de
uma compreensão mais aprofundada a respeito da crônica, o primeiro capítulo, “A
crônica e sua trajetória no Brasil”, apresenta o percurso do gênero até chegar ao
País. No primeiro subcapítulo, “A origem da crônica: dos primeiros caminhos até a
atualidade”, é feito um apanhado geral sobre a teoria que abrange a crônica, desde
a etimologia com que o gênero está permeado até a significação que é
compreendida atualmente acerca de sua conceituação. O segundo subcapítulo, “O
hibridismo do gênero da crônica: entre literatura e jornalismo”, aborda o trânsito
entre os campos da literatura e do jornalismo, que acabam por caracterizar as
crônicas, demonstrando, assim, a sua difícil conceituação. Nesta seção, aponta-se
ainda que a matéria da crônica pode variar de assuntos meramente cotidianos até
exposições da interioridade de seus autores. O terceiro subtítulo do capítulo, “A
crônica e seus autores: um pequeno esboço da crônica brasileira”, mostra que a
crônica figura como um registro de uma sociedade fragmentada, que é pautada mais
pelo caráter de urgência do que propriamente pelas lembranças que os indivíduos
podem resgatar. Por conseguinte, alguns autores contribuem para a fixação do
gênero na sociedade, cultivando, assim, o caráter de atemporalidade que caracteriza
grande parte dos textos. A partir dessa perspectiva, abordamos como as
particularidades da crônica estão cultuadas em distintos autores e quais são os
escritores que deixaram suas marcas para que este gênero fosse consolidado no
Brasil.
No segundo capítulo, “A Narrativa de Caio Fernando Abreu”, apresentamos a
obra do escritor. O primeiro subcapítulo, “A Narrativa de Caio Fernando Abreu: do
romance à crônica”, relaciona a trajetória percorrida pelo escritor gaúcho,
observando ainda os traços de suas narrativas, focalizando como o escritor
construiu seus textos, a forma com que apresenta suas obras tanto na prosa quanto
na novela, no romance e, por fim, na crônica. A seção cujo título é “A crônica de
Caio Fernando Abreu” demonstra a forma como as particularidades do gênero estão
inseridas nas narrativas do escritor, além de ressaltar o modo como está estruturado
e a relação de suas crônicas com os campos da literatura e do jornalismo e,
finalmente, da memória com a sociedade. Nas próximas subseções, “A linguagem
coloquial de suas crônicas”, “Humor e a ironia nas crônicas de Caio”, “A
subjetividade e o trabalho de citação nas crônicas” e a “A busca pelo diálogo com o
leitor”, ressaltamos as perspectivas mais recorrentes de suas crônicas, isto é, a
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linguagem coloquial, o humor e a ironia, a subjetividade e o trabalho de citação, e a
busca pelo diálogo com o leitor, sempre procurando demonstrar qual o efeito que
essas características possuem nas narrativas do escritor.
No terceiro capítulo, “Literatura, sociedade e memória na crônica de Caio
Fernando Abreu”, analisamos como esses aspectos estão inseridos na narrativa do
escritor gaúcho. No primeiro item do terceiro capítulo, “Diálogos entre literatura e
sociedade”, apresentamos a forma como ocorre o diálogo nas crônicas do escritor
pelo viés sociológico. O próximo subcapítulo, “A representação da sociedade na
crônica de Caio Fernando Abreu”, é constituído da análise de como a sociedade é
representada em distintas crônicas do autor. No terceiro subcapítulo, “Relações
entre literatura e sociedade”, ressaltamos a maneira como a crônica de Caio
Fernando Abreu dialoga com a sociedade, e, por fim, “A construção da memória na
crônica de Caio Fernando Abreu” trata da construção da memória nas crônicas do
autor e como a relação destes elementos transforma a narrativa do escritor.
Por último, apresentamos as considerações finais, para demonstrar o
resultado da pesquisa realizada em Literatura, Vida Social e Memória nas Crônicas
de Caio Fernando Abreu. Para tanto, retomamos alguns aspectos propostos na
reflexão, tais como o referencial teórico acerca das crônicas do primeiro capítulo, a
análise realizada sobre algumas particularidades da crônica de Caio ressaltadas no
segundo capítulo, até as relações propostas no terceiro capítulo entre literatura,
sociedade e memória.
15
1. A CRÔNICA E SUA TRAJETÓRIA NO BRASIL
1.1. A origem da crônica: dos primeiros caminhos até a atualidade
A etimologia do termo “crônica” é oriunda da Mitologia Clássica. Cronos2 é o
deus grego que simboliza o tempo. Sobre a relação entre o mito de Cronos, o tempo
e a crônica, Costa (2010) afirma: “Até o momento, essa relação continua válida,
porque a crônica, esteve e está efetivamente relacionada com uma perspectiva
temporal, seja de escolha do assunto, seja no tratamento formal desse mesmo
assunto.” (p. 187). A relação do gênero com a questão temporal na qual o mito está
associado é, portanto, recorrente em sua origem e significação. De acordo com o
estudioso Moisés (2004), o termo latino chronica significa o relato dos fatos; já em
grego, khronikós, de khrónos, está conexo também ao tempo. Nesse sentido, o
significado deste vocábulo foi sofrendo modificações ao longo dos anos, conforme
indica Moisés:
Empregado primeiramente no início da era cristã, designava uma lista ou
relações de acontecimentos, arrumados conforme a sequência linear do
tempo. Colocada assim, entre os simples anais e a História propriamente
dita, a crônica limitava-se a registrar os eventos, sem aprofundar-lhes as
causas ou dar-lhes qualquer interpretação. (MOISÉS, 2004, p. 110)
Essa acepção associa o termo crônica a um traço meramente informativo, e,
tendo atingido o seu ponto alto na Idade Média, no século XII, de acordo com
Moisés (2004), o gênero liga-se ao traço histórico, abandonando o aprofundamento
dos fatos que caracteriza a crônica no início de sua produção. Assim, as crônicas
começaram a se definir em alguns aspectos relacionados à quantidade de
informações registradas, havendo narrativas que tratavam de acontecimentos com
abundâncias de pormenores, situando-se numa perspectiva da história individual no
sentido de que cada cronista contava a história a partir de seu ponto de vista. Essas
2 De acordo com a mitologia grega, Deus Cronos, filho de Urano (Céu) e de Gaia (Terra), destronou o
pai e casou com a irmã, Reia. Urano e Gaia predisseram-lhe então, que ele também seria destronado por um de seus filhos. Para evitar que se cumprisse a profecia, Cronos devorou todos os filhos nascidos de sua união com Reia. Até que ela conseguiu enganar o marido, e deu-lhe uma pedra para comer, ao invés da criança. Dessa forma, a profecia se cumpriu, Zeus deu ao pai uma droga e o fez vomitar todos os filhos que havia devorado, liderando juntamente com seus irmãos, uma guerra contra o pai, que acabou sendo derrotado por todos. (OLIVEIRA, 2008)
16
eram as chamadas “crônicas”, que, para elucidá-las, Costa (2010) cita como
exemplo as obras do século XIV de Fernão Lopes3. Em sentido oposto, aquelas que
tratavam os acontecimentos com maior superficialidade, segundo Moisés (2004),
eram determinadas como “cronições”. Então, um mesmo vocábulo que, em seu
sentido primeiro, restringe-se a estar relacionado ao tempo começa a se delinear em
especificidades que lhe abrangem outras significações e contextos. Contudo, Costa
(2010) alerta para o fato de esta distinção atingir somente alguns países: “Tal
discriminação só foi possível em Português e Espanhol, não atingiu o Inglês, que
englobam os dois tipos sob um rótulo comum (chronique, chronicle).” (2010, p. 110).
Para os ingleses, a atribuição de dois vocábulos para um mesmo conceito não foi
bem aceita, ficando os ingleses com a significação primeira, ligada à perspectiva
histórica.
Ainda no que tange ao sentido histórico que o termo começa a carregar,
Roncari (2002) entende que o vocábulo “cronista”, no início de sua significação, está
relacionado a relatos dos escrivães que acabaram transformando esses escritos em
um gênero bastante lido e difundido na Europa: as narrativas das viagens marítimas
ou as literaturas de viagem. A associação entre cronista e relato de escrivães deve-
se ao fato de que, em 1500, os escrivães de que o autor chama atenção precisavam
descrever as novas terras para aqueles que estavam, por vezes, em outros
continentes. Ao fazer a descrição em pormenores de uma terra desconhecida, essa
narrativa transforma-se em um gênero já com as características mais opinativas,
uma vez que o cronista (neste caso o escritor) emitia o seu ponto de vista acerca do
lugar até então desconhecido.
Ao apresentar traços da crônica e seu surgimento, Roncari (2002) ressalta a
importância que os relatos que surgiram a partir das crônicas ofereceram para a
história da humanidade: “o início dessa prática acabou criando um conjunto
3 Gianez (2009) estuda as crônicas oficiais de Fernão Lopes, já que, através destes materiais, o estudioso constatou a gênese do discurso oficial em Portugal, e, de acordo com o autor, “as obras despontam num período de abalo e rearranjo decisivo do pensamento histórico e político no reino, os quais marcaram a ascensão da Dinastia de Avis.” (p. 05). As crônicas de Fernão Lopes relatavam os acontecimentos históricos que o país estava passando, relacionando-se, assim, à descrição dos fatos. Nesse âmbito Paraense (1998) corrobora com a afirmação de Gianez (2009) atribuindo a Fernão Lopes a aproximação do historiador. “Fernão Lopes também supera o ponto de vista do cronista e aproxima-se do historiador ao declarar-se consciente das limitações impostas à compreensão dos acontecimentos por fatores afetivos – especialmente o amor à terra dos ancestrais – e pela diversas opiniões existentes acerca dos fatos. Seu objetivo é narrar servindo-se de documentos fidedignos, especialmente documentos escritos e confrontados em suas versões distintas.” (p. 14)
17
riquíssimo tanto de documentos históricos quanto de textos também de valor
literário.” (RONCARI, 2002, p. 25). Esse sentido primeiro de registro e observação,
para posterior composição do que o escritor/cronista enxergava a sua volta,
assemelha-se a um traço da crônica atual, pois o cronista que está inserido na
atualidade pode observar a sua realidade e, a partir dela, optar em passar o seu
ponto de vista ao leitor e lhe escrever sobre determinado tema ou fato, que pode ser
cotidiano, ou pode optar por recontar um evento do passado. As vivências e pontos
de vista do escritor acerca de determinados fatos e temas eram registradas em
crônicas no século XV, e esse traço permanece nas crônicas do século XXI, uma
vez que o ponto de vista e as experiências dos autores são particulares e continuam
sendo repassadas ao leitor.
O que precisa ainda ser ressaltado com relação aos registros históricos das
crônicas de viagem4 é que elas estão diretamente ligadas ao contexto histórico da
época. As expedições marítimas portuguesas e espanholas abalaram a visão que os
europeus tinham de si e do mundo, pois até então eles acreditavam que estariam
ocupando o centro do mundo. Além disso, os europeus necessitavam das crônicas
para conhecer o “mundo novo”. Nessa perspectiva, “para se resituarem no mundo,
agora muito mais amplo, aberto, variado, composto de novas terras, novos homens,
costumes e civilizações, os europeus dependiam de informações, relatos e
narrativas.” (RONCARI, 2002, p. 27). É nesse sentido que o autor afirma que a Carta
de Caminha e outras com autoria de distintos escrivães e cronistas5 voltam-se para
suprir as novas necessidades europeias e se constituir como um marco para
história. Esse fato ocorre na medida em que as crônicas/relatos foram as
responsáveis por transmitir a notícia de que havia mais terras e mudar a visão de
finitude do planeta nas proximidades de Portugal, o que mudou a concepção até
então vigente da extensão territorial da Terra. A importância que as crônicas tiveram
para a história de Portugal6 também é evidenciada no contexto da Inglaterra no
4 Dentre as diferentes formas da crônica, está a de viagem. É chamada assim por ser uma espécie de diário dos escritores, que chegavam às terras até então desconhecidas e relatavam o que estavam observando daquela realidade. 5 O termo “cronistas”, nesse sentido, está sento utilizado com relação à conotação histórica que associada o cronista àquele responsável por relatar o que estava observando ao seu redor, constituindo uma espécie de diário das viagens. 6 Para registrar a história de seu povo, Costa (2010) ressalta que foi a mando de D. Duarte que
Fernão Lopes iniciou as Crônicas de D. Pedro I, D. Fernando e D. João I. Nesses escritos, a autora
cita Silveira (1992): “a matéria não ficcional transforma-se em ficção, se aceite o princípio de que a
18
século XII. De acordo com Costa (2010), a crônica nos anos 891 a 1154 era
denominada como Anglo-saxon chronicle. Era assim designada por ser uma obra
composta por um conjunto de nove manuscritos que tinha como intuito mostrar a
forma como o povo anglo-saxão se estabeleceu nas Ilhas Britânicas. No que tange a
Anglo-saxon chronicle, Paraense (1998) afirma que também pode ser chamada de
Old English chronicle, intitula como sendo esta a primeira história contínua da nação
ocidental em sua própria língua, além de ser o primeiro livro em prosa, com a
narrativa em inglês. (PARAENSE, 1998).
Quanto à origem da crônica, cabem algumas observações. Um primeiro ponto
diz respeito à interpretação, ao subjetivismo e à ideologia que estão incorporados ao
escritor. Este, inevitavelmente, passa por três processos em sua escrita: ver,
interpretar (nesse caso de acordo com o seu ponto vista, isto é, suas ideologias) e
transpor sua percepção sobre o mundo através da escrita para os seus leitores que
usufruirão através das ideologias e interpretações de cada cronista: o que acarreta o
subjetivismo. Nesse sentido, Schneider (2008) pondera que a crônica é vista como
“uma expressão de diferentes vozes, mesmo que contraditórias – de um
determinado tempo social.” (2008, p. 02) A ideia de a crônica estar ligada aos
processos ideológicos e inserida em um tempo social pode ser melhor
compreendida com Bosi (1994). Isso porque o autor defende que a história do
homem brasileiro está ligada a um determinado tempo social, isto é, aos viajantes
missionários europeus. Nas palavras do autor:
A pré-história das nossas letras interessam como reflexo da visão do mundo e da linguagem que nos legaram aos primeiros observadores do país. É graças a essas tomadas diretas da paisagem, do índio, dos grupos sociais nascentes, que captamos as condições primitivas de uma cultura que só mais tarde poderia contar com o fenômeno da palavra-arte. (BOSI, 1994, p. 13)
Cabe ainda ressaltar sobre esse contexto que, no tocante à história da
crônica no Brasil, o estudioso Jorge de Sá (1999) aponta que o surgimento da
literatura está ligado à crônica. O autor, assim como Bosi (1994), cita a carta de Pero
Vaz Caminha ao Rei Dom Manuel como a primeira experiência de uma crônica em
terras brasileiras, e Sá (1999) liga esse fato ao nascimento da literatura neste país:
História – pela interpretação, pelo subjetivismo, pela comunicação, pela ideologia – é também uma
ficcionalização do real.” (COSTA apud SILVEIRA, 2010, p. 27)
19
“a história de nossa Literatura se inicia, pois, com a circunstância de um
descobrimento: oficialmente, a Literatura Brasileira nasceu da crônica.” (SÁ, 1999, p.
07).
Caminha estabeleceu ainda outro traço da crônica ao instituir também o seu
princípio básico: registrar o circunstancial. O significado do gênero está ligado, neste
contexto, ao sentido histórico da palavra, e, sob essa ótica, Laurito (1993) sustenta:
“são textos que antecipam o advento e a existência de uma historiografia nacional, já
fruto de reflexão crítica e apoiada em instrumento adequado.” (p. 14). As crônicas
constituem-se, assim, de documentos históricos e de registros.
Para Laurito (1993), o marco histórico da crônica ocorre no século XV, e, de lá
para cá, o gênero vem se desenvolvendo e se transformando. O autor comenta
ainda que, além do registro circunstancial, o gênero possui significado em
consonância com a ideia de ser um resgate do tempo. Nas palavras do autor:
Tendo como marco histórico o ano de 1418, a palavra crônica, ainda que posteriormente, viesse abranger outros sentidos, permaneceu na língua portuguesa com o sentido antigo de narrativa vinculada ao registro de acontecimentos históricos.” (1993, p. 12)
O desenvolvimento da crônica continua nos séculos seguintes. Moisés (2004)
relata que, a partir do Renascimento (século XVI e XVII), o vocábulo passou a ser
substituído por “história”. Para Laurito (1993), as crônicas, no seu sentido histórico,
são textos que antecipam o advento e a existência de uma historiografia nacional. Já
o conceito que mais se assemelha ao atual sobre a crônica é datado de 1800
(século XIX). Nas palavras de Moisés (2004):
Com a significação moderna, o vocábulo entrou em uso no século XIX, para rubricar textos que só longinquamente se vinculam a primeira forma de crônica: ostentam, agora, estrita personalidade literária. Assim entendida, a crônica teria sido inaugurada pelo francês Julien-Louis Geoffroy, por volta de 1800, no Journal des Débats, onde periodicamente estavam feuilletons (MOISÉS, 2004, p. 110)
É importante ressaltar ainda que o conceito antigo de crônica – como registro
dos fatos históricos – continuou paralelamente à concepção moderna que se impôs
tanto a partir do século XIX quanto com o advento da literatura jornalística que está
ligada aos folhetins ou feuilletons. No que tange aos folhetins, Coutinho (2006)
20
assinala que eles tinham uma finalidade única: o entretenimento. Nas palavras do
autor: “Era um espaço onde se contavam piadas, falava-se de eventos do dia,
apresentavam-se charadas, ofereciam-se receitas de cozinha ou beleza, e
comentavam-se as últimas novidades: peças teatrais, livros, etc.” (COUTINHO,
2006, p. 46)
Quanto à procedência, Castello (2004) comenta que os folhetins foram
introduzidos no Brasil com o Romantismo ao serem importados da França. Eles
surgem nos jornais, tendo um espaço específico, que era localizado nos rodapés
(rez-de-chaussée7) da página de destaque dos periódicos. A sua divulgação envolvia
a produção literária da época, uma vez que as narrativas ficcionais eram colocadas
dia a dia nos folhetins. O autor ressalta a importância deste gênero para a época:
Recurso circunstancial de divulgação da narrativa ficcional, foi suficiente para marcar linguagem e construção, a partir do qual, muitas dessas narrativas passaram para a forma do livro, carregando consigo as particularidades indicadas. Foi comum desde suas origens entre nós até pelo restante do século XIX. Também, sem tais peculiaridades, muitas das principais criações ficcionais brasileiras do século XIX foram divulgadas naquele espaço jornalístico. (CASTELLO, 2004, p. 252)
Nesse sentido, as pessoas se reuniam para ler o que estava escrito nos
folhetins. O escritor, que pode ser confundido com o cronista em um primeiro
momento, trabalhava em seus textos a criação literária ligada à escrita jornalística.
Sob essa ótica, outro aspecto do folhetim envolve a criação literária atrelada à
atividade jornalística. Candido (1989) cita como exemplo a seção escrita por José de
Alencar – um dos primeiros e principais cultores deste gênero – “Ao correr da pena”,
que era publicada semanalmente para o Correio MercantiI (1854 a 1855). De acordo
com Castello (2004), Alencar traduziu os folhetins para os leitores: “o folhetinista
inventou ao invés de contar, o que, por conseguinte, excedeu os limites da crônica.”
(p. 253).
Dessa forma, como é possível observar, a crônica tem impulso a partir dos
folhetins no século XIX e aos poucos vai se redefinindo. As diferenças nos dois
gêneros consistem na forma com que são publicados: o folhetim desse século
ocupava quase meia página de um jornal, já a crônica moderna é mais curta e nela
7 Expressão utilizada por Coutinho (2006).
21
são comentados poucos assuntos, ao contrário do folhetim. Sobre o aspecto dos
assuntos, Laurito (1993) afirma:
Nos tempos atuais, dificilmente essa multiplicidade de assuntos estaria delimitada numa única seção do jornal. Isso porque, com a evolução da imprensa, o abrangente folhetim de variedades do século XIX foi desaparecendo, para dar lugar a seções especializadas de articulistas, comentaristas, analistas e críticos, ou seja, jornalistas também especializados em determinadas matérias. Entre eles, o que se chama hoje de cronista, o especializado em tudo ou nada. Melhor dizendo, aquele escritor-jornalista que, ao mesmo tempo, prende e solta a sua imaginação criadora num espaço específico e bem caracterizado da imprensa diária ou periódica. (p. 22)
O marco do nascimento da crônica, como dito, está ligado ao folhetim, e
sobre isso Laurito (1993) registra a ideia de que estudiosos da crônica brasileira
assinalam, como o seu nascimento, o marco em dois de dezembro de 1852: “data
em que Francisco Otaviano inaugura, no Jornal do Comércio, do Rio de Janeiro, a
seção ‘A Semana’, ou seja, os folhetins literários do Romantismo.” (1993, p. 29). A
partir desse período, a tradução de como é a crônica atualmente começa a se
formular. É justamente a partir desta data que Moisés (2004) alega o prestígio que
este gênero passa a receber: “a ponto de haver os que a identificam com a própria
Literatura Brasileira ou a consideram nossa exclusividade.” (p. 110)
No tocante às transformações do folhetim para crônica, Candido (1989)
pontua seu raciocínio acerca dessas modificações:
Aos poucos o “folhetim” foi encurtando e ganhando certa gratuidade, certo ar de quem está escrevendo à toa, sem dar muita importância. Depois, entrou francamente pelo tom ligeiro e encolheu de tamanho, até chegar ao que é hoje. Ao longo deste percurso, foi largando cada vez mais a intenção de informar e comentar (deixadas a outros tipos de jornalismo), para ficar sobretudo com a de divertir. A linguagem se tornou mais leve, mais descompromissada e (fato decisivo) se afastou da lógica argumentativa ou da crítica política, para penetrar poesia adentro. Creio que a fórmula moderna, na qual entra um fato miúdo e um toque humorístico, com o seu quantum satis de poesia, representa o amadurecimento e o encontro mais puro da crônica consigo mesma. (s/d)
Para melhor exemplificar como ocorreram as transformações que vão desde a
linguagem mais leve até o toque de humor, Candido (1989) cita os autores que
fizeram parte da evolução do gênero. No século XIX, José de Alencar novamente é
mencionado, juntamente com Francisco Otaviano e Machado de Assis, por ainda
possuírem em suas narrativas o que Candido (1989) chama de “o corte de artigo
22
leve.” Já em outro cronista, França Júnior, o que ocorre é uma redução na escala de
temas, ligada, ao que afirma o estudioso, no incremento de humor. Além desses,
Candido (1989) cita outros autores que se enquadram no rol de modificações da
crônica:
Olavo Bilac, mestre da crônica leve e aliviada de peso, guarda um pouco do comentário antigo, mas amplia a dose poética, enquanto João do Rio se inclina para o humor e o sarcasmo, que contrabalançam um pouco a tara de esnobismo. Eles e muitos outros, maiores e menores, de Carmen Dolores a João Luso até nossos dias, contribuíram para fazer do gênero este produto sui generis do jornalismo literário brasileiro que ele é hoje. (CANDIDO, 1989)
Outros nomes, como Humberto de Campos, Raquel de Queirós, Rubem
Braga, Paulo Mendes Campos, Carlos Drummond de Andrade, Fernando Sabino,
Henrique Pongetti podem ser citados como autores que cultivaram o gênero crônica.
Quanto ao formato do gênero atualmente, Moisés (2004) pontua sua explanação
para termos que se ligam à crônica moderna, atribuindo significado a vocábulos
ingleses, commentary, literary, column, para a crônica moderna - aquela publicada
tanto em jornais quanto em revistas. Desse modo, “comentário”, “literatura” e
“coluna” estão pautados às crônicas e se constituem a partir de um acontecimento
diário, que tenha chamado atenção de seu escritor; além disso, possuem a
particularidade de não apresentar caráter próprio ou até mesmo limites precisos.
Nessa esteira, sem as definições próprias, a crônica assemelha-se a uma
categorização híbrida ou múltipla, conforme explica o autor:
Pode assumir a forma de alegoria, necrológico, entrevista, invectiva, apelo, resenha, confissão, monólogo, diálogo, em torno de personagens reais e/ou imaginárias etc. A análise dessas várias facetas permite inferir que a crônica constitui o lugar geométrico entre a poesia (lírica) e o conto: implicando sempre a visão pessoal, subjetiva, ante um fato qualquer do cotidiano, a crônica estimula a veia poética do prosador; ou dá margem a que este revele dotes de contadores de histórias. No primeiro caso, resultado por ser um poema em prosa; no segundo, uma narrativa breve. (MOISÉS, 2004, p. 111)
No contexto brasileiro, nomes como Joaquim Manuel Macedo, Cecília
Meireles, Manuel Bandeira, Raul Pompeia e Manuel Antônio de Almeida são alguns
dos que foram se adequando à concepção gênero crônica ao longo dos anos. No
início, com esses autores, a compreensão do gênero era mais próxima à modalidade
histórica, ainda mesclada à ficção. Já a crônica, no sentido em que o termo é
23
comumente utilizado para designar um texto jornalístico, que aborda os mais
distintos assuntos, nasceu, de acordo com Laurito (1993), como um filão que
“começou no século XIX, na França, e que se transplantou com sucesso para o
Brasil.” (p. 15)
Com as diferentes concepções que permeiam o vocábulo, a evolução e a
difusão da crônica também estiveram em diferentes significações dentro da história
da literatura, e, sobre esse contexto, Costa (2010) afirma que:
Em 1971, Gerald Moser escrevia um estudo para uma publicação feita na Carolina do Sul, nos Estados Unidos intitulado: “The cronica: a new genre in Brazilian Literature?” (A crônica: um novo gênero na Literatura Brasileira?) Até hoje, os dicionários de termos literários em língua inglesa não incluem o verbete “crônica”, mas ao longo de todos esses anos cresceu uma vasta produção de crônicas e um grande número de estudos sobre essa forma literária. Arrigucci (1987, p. 53) também deu destaque ao desenvolvimento dessa forma de literatura no Brasil: “Teve aqui um reflorescimento de fato surpreendente como forma peculiar.” (COSTA, 2010, p. 188)
A partir das observações de Costa, é possível estabelecer, em linhas gerais,
que o século XIX estaria relacionado ao folhetim e ao século XX caberiam as
particularidades da crônica firmada como gênero específico e atrelada a jornais,
revistas e até mesmo livros que reúnem escritas nesse gênero. Além disso, ainda no
século XX, outra concepção do gênero é adotada, e o produtor da crônica é
considerado um escritor especializado em “tudo e em nada”, para usar a expressão
de Laurito (1993).
Quanto à crônica, fica evidente a sua aproximação com o jornalismo. Nas
palavras de Laurito: “Melhor dizendo aquele escritor-jornalista ou jornalista-escritor
que, ao mesmo tempo, prende e solta a sua imaginação criadora num espaço
específico bem caracterizado da imprensa diária ou periódica.” (p. 22). Com vistas à
mescla que a crônica possui entre o jornalismo e a literatura e sobre as
transformações que foram ocorrendo concomitantemente ao contexto histórico do
século XXI, a próxima seção aborda esses aspectos, em especial, o trânsito entre
literatura e jornalismo que caracteriza o gênero.
1.2. O hibridismo da crônica: entre literatura e jornalismo
Desde a origem, a crônica esteve ligada às mudanças históricas. Em um
primeiro momento, no contexto brasileiro, esteve presente e foi cultuada como a
24
representação do Brasil em 1500 por descrever o que os primeiros visitantes desta
terra viam no lugar novo. Após modificações, foi se delineando em um percurso
sempre em busca de significações para as leituras de mundo que seus escritores
registravam em seus textos.
No tocante às significações que permeiam as crônicas, o contexto sócio-
histórico pode ser ressaltado, uma vez que o gênero acompanha essas
transformações. Em tal perspectiva, a globalização empreendeu sentidos a crônica,
tais como: a mescla de diferentes campos, desde a história (em seu sentido
primeiro, que ainda não lhe abandona), a literatura e por fim o jornalismo. De forma
geral, a crônica passou por significativas mudanças ao longo dos séculos, iniciando
pelas crônicas de viagem (em que os escritores contavam o que viam nas novas
terras), o folhetim, até às crônicas modernas, cultuadas em jornais com a
abordagem do cotidiano. Nesse contexto, as transformações podem ser verificadas,
de acordo com Arnt (2002), na medida em que é a partir do século XIX que ocorre
um fato até então não observado: a presença de escritores na vida dos jornais.
Paraense (1998) acentua, nessa construção de raciocínio, que a atividade literária
nos jornais, torna-se, nesse período, um negócio:
O escritor profissionaliza-se uma vez que produz uma mercadoria altamente valorizada. Destinadas apenas aos assinantes, e cobrando uma taxa bastante elevada pela assinatura anual, as folhas passam a contratar escritores de renome. Estes atraem assinantes, e com eles, os anúncios. (PARAENSE, 1998, p. 22)
Por esse prisma, é possível inferir que, independentemente do cargo, os
escritores interferiam na maneira de se conceber um jornal. Nessa esteira, Arnt
(2002) advoga: “A influência dos escritores foi de tal ordem, que podemos qualificar
esse período da história da imprensa de jornalismo literário.” (ARNT, 2002, p. 07). O
autor entende jornalismo literário não como a imprensa especializada em literatura,
mas sim a identificação de escritores com esse tipo de mídia: “jornalismo literário é
um estilo que se desenvolveu no século XIX e se caracterizou pela militância de
escritores na imprensa e pela publicação de crônicas, contos e folhetins.” (ARNT,
2002, p. 08). Com essa relação de proximidade entre a literatura e o jornalismo
através dos gêneros textuais citados, o estudioso afirma que a presença dos
escritores favoreceu o aparecimento do jornalismo informativo e atraente. De
maneira análoga, a literatura também sofre influência do jornalismo através de uma
25
maior aproximação dos escritores com os fatos que se inserem no meio social. Sob
esse aspecto, Arnt (2002) propõe:
Ligado às exigências do meio – tudo num jornal informa -, o olhar dos escritores do século XIX volta-se para as questões sociais e as agruras da vida cotidiana. O extraordinário crescimento da imprensa europeia estava fundamentado em modificações profundas na estrutura social. Literatura e jornalismo tornam-se, portanto, indissociáveis. (p. 08)
A aproximação desses gêneros a que o autor se refere deve-se por alguns
aspectos, tais como: a) significativos escritores da literatura mundial estiveram
presentes na imprensa; b) a informação está hodierna tanto nos jornais, quanto na
ficção, e os dois gêneros possuem este objetivo final para com seus leitores; e c)
tanto a literatura quanto o jornalismo contribuem para a representação de aspectos
da vida cotidiana, encadeando-se tanto em personagens ficcionais quanto em
indivíduos que têm suas vidas relatadas nas folhas dos jornais, e tudo isso pode
resultar nas observações dos escritores registradas nas crônicas. Sobre a
representação do social nas obras literárias, Arnt (2002) enfatiza que: “os escritores
do século XIX estavam direta e indiretamente engajados num movimento de crítica e
denúncia das contradições sociais.” (ARNT, 2002, p. 09). Nesse sentido, Candido
(1989) ressalta a comunhão da crônica com o social, haja vista a sua pretensão de
humanizar. Nas palavras do autor:
Por meio dos assuntos, da composição solta, do ar de coisa sem necessidade que costuma assumir, ela se ajusta à sensibilidade de todo o dia. Principalmente porque elabora uma linguagem que fala de perto ao nosso modo de ser mais natural. Na sua despretensão, humaniza; e esta humanização lhe permite, como compensação sorrateira, recuperar com a outra mão certa profundidade de significado e certo acabamento de forma, que de repente podem fazer dela uma inesperada embora discreta candidata à perfeição. (CANDIDO, 1989, s. p.)
Nessa esteira, o engajamento com relação ao social, a representação e a
tentativa de melhor compreensão do mundo em que estavam inseridos levaram
escritores e jornalistas a se dedicarem em torno de um gênero específico: a crônica.
Acerca ainda da aproximação da crônica com o jornalismo, Costa (2010) afirma que
isso ocorreu a partir do século XI: “em um primeiro momento ela tomou assuntos
emprestados dos jornalistas e assim os cronistas se transformaram em
comentaristas responsáveis pela crônica policial, social, teatro, economia, dentre
26
outras.” (COSTA, 2010, p. 189) Entretanto, além desses aspectos que o autor cita, a
busca pela subjetividade e o uso de linguagem mais livre e descompromissada
teriam sido as peculiaridades que levaram à constatação de que a crônica, ao
mesmo tempo, possui um tom de jornalismo e literatura. A aproximação deste
gênero aos textos literários incorre devido às suas qualidades estéticas e à
literariedade8, que pode, muitas vezes, relacionar-se ainda ao gênero épico ou até
mesmo lírico, mas com histórias expressivas que se constituem no conjunto da
produção literária. No tocante à literariedade, Simon (2008) manifesta a ideia acerca
da polêmica que este termo vem sofrendo desde 1958, quando foi a primeira vez
que um crítico observou o caráter heterogêneo da produção dos cronistas:
Trata-se de um longo debate que teve uma de suas primeiras intervenções em texto de Eduardo Portella, em 1958, quando o crítico já reconhecia o caráter heterogêneo da produção dos cronistas, diferenciando-a de acordo com noções como transcendência e permanência. Nessa ocasião já era possível constatar diferenças estéticas nos múltiplos textos que recebiam o nome de crônica, fenômeno que continuou a ser examinado pelos críticos ao longo da segunda metade do século XX. (SIMON, 2008, p. 59)
Nesse contexto, a relação mútua e de total engajamento entre o jornalismo e
a literatura na produção da crônica foi se transformando e se alongando. No século
XX, outra concepção surgiu: o diálogo da crônica com outras manifestações escritas,
sejam elas literárias ou não, como o jornalismo. Mesmo contendo características que
estão ligadas aos períodos históricos, as crônicas continuam se relacionando à
literatura e ao jornalismo, justamente pela ligação que os dois últimos campos
possuem, ainda que com suas diferenças, na intenção de alguns discursos. Com
base no elo da crônica com a literatura e o jornalismo, ela acaba também por se
caracterizar por um hibridismo que não é comum em outros gêneros. Assim, pode-se
inferir que as crônicas encontram-se na natureza híbrida, como destaca a
pesquisadora Jovchelevich (2005): “pode ser, ao mesmo tempo, jornalismo e
literatura – uma vez que o seu meio de difusão é o jornal, e o seu tom é literário, seja
a sua abordagem ficção ou realidade.” (p. 16) Desse modo, a crônica transforma a
literatura em algo íntimo, pois se relaciona com a vida de cada leitor, ao mesmo
8 O conceito de literariedade está atrelado a um conjunto de características específicas (linguísticas, semióticas, sociológicas) que permitem considerar um texto como literário e foi criado pelos formalistas russos, autores de uma corrente teórica que observa a imanência do texto, desconsiderando aspectos extraliterários. .
27
tempo em que está voltada para as experiências de quem está escrevendo, isto é, a
relação com o meio social que é peculiar do jornalista. Além disso, há outras
particularidades que distinguem os dois gêneros, tal como a linguagem:
As reflexões de Roman Jakobson sobre as funções internas da linguagem nos permitem apreciar que, no caso do discurso jornalístico, deve ser dominante a função referencial, por ser a que articula sua funcionalidade informativa e sua vontade de construir discursos baseados em fatos reais, que correspondam a acontecimentos extradiscursivos. No caso dos discursos literários, esteja ou não presente a função referencial, deve dominar a função poética ou estética, que reclama atenção sobre o próprio texto e por isso tem, por um lado, maior liberdade referencial e, pelo outro, maiores restrições expressivas (já que o plano da expressão se articula fortemente com aquele do conteúdo). (JOVCHELEVICH apud ÁNGEL, MEDEL, 2002, p. 23-24)
As crônicas possuem as características que os autores chamam atenção:
estão construídas em discursos baseados em fatos reais, fazem parte do projeto
editorial do jornal, já que estão inseridas em um espaço geralmente delimitado em
um mesmo lugar para criar a identificação com os leitores. Além disso, os cronistas
escrevem de acordo com os acontecimentos que permeiam o mundo, contudo, ao
mesmo tempo, a sua linguagem não precisa estar restrita ao objetivismo que
repórteres e redatores utilizam nas matérias jornalísticas. Nesse sentido, Lage
(2005) define que a crônica, “em sua forma moderna, como se pratica no Brasil, é
literatura, que vai da emoção à ironia.” (p. 23) O cronista pode inovar, valer-se da
linguagem conotativa, como a ironia que o autor ressalta e, ainda, utilizar outros
elementos que a literatura propõe, tudo isso mesclando assuntos relacionados ao
cotidiano.
Tais aspectos ressaltados anteriormente acerca do gênero, em especial entre
a literatura e o jornalismo, podem ser exemplificados através da crônica “Contra a
Pirataria”, de Moacyr Scliar. O início da narrativa demonstra essa relação, ao passo
que descreve ao leitor a notícia do jornal Folha Online, na edição de 18 de outubro
de 2005. Após relatar que uma dupla assaltou uma joalheira e escolheu relógios
para levar, o narrador faz uma reflexão acerca da notícia. O que pode ainda ser
enfatizado sobre a crônica é a que a notícia de jornal que é exposta no início do
texto de Scliar é sucinta e objetiva: apenas relata o fato, respondendo as seis
perguntas essenciais que o lide (ou lead) jornalístico9 deve responder: quem? o
9 Costa (2002) ressalta que o Lead está relacionado ao jornalismo com a pirâmide invertida. Nas palavras do autor: “Ao contrário da narrativa denominada “nariz de cera”, que pressupõe a descrição
28
que? Como? Quando? Onde? e Por quê? Já no restante do texto, os aspectos
supracitados, tais como a linguagem não estar restrita ao objetivismo dos repórteres
e redatores, a linguagem conotativa e a riqueza dos detalhes são explorados pelo
narrador. Dessa forma, o autor conta ao leitor o que o repórter não poderia
expressar na notícia, pois estaria contrariando outro princípio básico do jornalismo
informativo, que é não dar a sua opinião. Isso porque, na linguagem jornalística, a
opinião do repórter não pode ficar evidente, é preciso que a imparcialidade
prevaleça.10
Com vistas à linguagem utilizada por cronistas, Candido (1989) distingue a
que é utilizada por cronistas e pela literatura:
O problema é que a magnitude do assunto e a pompa da linguagem podem atuar como disfarce da realidade e mesmo da verdade. A literatura corre com frequência este risco, cujo resultado é quebrar no leitor a possibilidade de ver as coisas com retidão e pensar em consequência disto. Ora, a crônica está sempre ajudando a estabelecer ou restabelecer a dimensão das coisas e das pessoas. Em lugar de oferecer um cenário excelso, numa revoada de adjetivos e períodos candentes, pega o miúdo e mostra nele uma grandeza, uma beleza ou uma singularidade insuspeitadas. Ela é amiga da verdade e da poesia nas suas formas mais diretas e também nas suas formas mais fantásticas, sobretudo porque quase sempre utiliza o humor.
A crônica está ligada às premissas mencionadas pelo estudioso justamente
por não ter pretensões de durar, ela é, como enfatiza Candido (1989), filha das
máquinas, onde tudo acaba depressa. Por abrigar as peculiaridades de um veículo
transitório e híbrido (entre o jornalismo e literatura), o autor a define como o intuito
não de escritores que pensam em “ficar”, mas sim em sua relação com a
simplicidade, ou nas palavras do autor: “a dos que escrevem do alto da montanha,
mas do simples rés-do-chão.” (CANDIDO, 1989)
Isso posto, é possível ressaltar que a transitoriedade da crônica entre os
campos da literatura e do jornalismo permite a esse gênero a construção de
peculiaridades singulares no que tange ao seu contexto de significações. Coutinho
do fato jornalístico seguindo a linearidade do tempo e das circunstâncias, a pirâmide invertida, uma apropriação do jornalismo americano, prescreve que, no primeiro parágrafo da notícia, chamado lead, deve ser concentrada toda informação que permita uma rápida compreensão do enunciado – quem, o que, como, quando, onde, por quê. Assim sendo, o lead racionaliza os procedimentos e permite maior rapidez na assimilação do conteúdo, inclusive facultando eventuais cortes da matéria caso haja restrição de espaço editorial, como por exemplo, a inclusão de inserção publicitária, supostamente sem prejuízos para a compreensão do fato noticioso.” (p. 137) 10 A imparcialidade é dos princípios básicos a que os jornalistas devem ser submetidos. Mesmo que os repórteres saibam que ela não existe, é preciso demonstrar esse aspecto ao leitor.
29
(2006) destaca que desse diálogo da crônica com o jornalismo, a crônica abarcou
alguns traços básicos, tais como:
A sua precariedade ou transitoriedade, o seu apego ao cotidiano, a sua aparência de simplicidade – o que não quer dizer, observe-se de passagem, um desconhecimento dos recursos artísticos –, a sua urgência, a sua concisão e caráter de síntese, o seu coloquialismo e uma sintaxe mais próxima da língua falada, da oralidade, o seu cunho de diálogo com o leitor e a sua variedade de assuntos. No entanto, enquanto o jornalismo tem no fato o seu objetivo, seja para informar divulgando-o, seja para comentá-lo dirigindo a opinião, para a crônica o fato vale, nas vezes em que ela o utiliza, como meio ou pretexto, do qual o cronista retira o máximo partido, com as virtuosidades de seu estilo, de seu espírito, de sua graça, de suas faculdades inventivas. (COUTINHO, 2006, p. 48)
Características como simplicidade, todavia, sem a perda da qualidade textual,
caráter urgente e sintético, coloquialismo elaborado podem estar relacionados aos
dois campos supracitados. Sobre a simplicidade, Costa (2010) argumenta que:
A simplicidade da crônica é exigida pela definição do seu destinatário – o leitor de jornal -, pelo ambiente da escrita em que se inseriu na origem (a imprensa periódica) e pela exiguidade de espaço para seu desenvolvimento (obrigando a síntese), mas não dispensa nem ignora os recursos de toda a linguagem literária: a escrita figurativa, o ritmo adequado e significativo das frases, a captação do instante e de sua densidade, a construção de personagens que, mesmo sem espaço de aprofundamento, são delineadas com exatidão para de imediato dizerem de sua natureza ao leitor. (COSTA, 2010, p. 189)
Já o caráter de urgência e síntese podem ser melhor compreendido através
de suas funções complementares. A urgência ocorre na medida em que um jornal,
por exemplo, possui uma suposta validade de 24 horas, já que, no dia seguinte,
outros meios impressos são substituídos pelos do dia anterior. Assim, os cronistas
precisam sintetizar e captar a intensidade de um assunto que possa ser esboçado
no espaço que é pré-destinado a ele; e qualquer imagem ou acontecimento pode
originar, nas mãos do escritor, uma elaborada reflexão acerca da condição humana.
A simplicidade, o caráter urgente e sintético, a qualidade textual e o
coloquialismo literário estão atrelados à linguagem. Esta também é fruto do contexto
que permeia o jornalismo. Nessa esteira, o cronista é premido pela correria e pelo
contexto de produção com que se faz um meio impresso. Fatores como a
abrangência a diferentes públicos-alvo, com distintos níveis sociais e de
escolaridade, influenciam na forma com que os cronistas utilizam a linguagem em
30
suas crônicas para fins jornalísticos. Para que todos possam captar as informações
que um jornal possui, é necessário que a linguagem também seja familiar ao público
receptor. Em tal perspectiva, a oralidade é presença constante nas páginas dos
jornais, e, consequentemente, nas crônicas. Sobre essa característica, Sá (1999)
pondera que:
Por isso sua sintaxe lembra alguma coisa desestruturada, solta, mais próxima da conversa entre dois amigos, do que propriamente do texto escrito. Dessa forma, há uma proximidade maior entre as normas da língua escrita e da oralidade, sem que o narrador caia no equívoco de compor frases frouxas, sem a magicidade da elaboração, pois ele não perde de vista o fato de que o real não é meramente copiado, mas recriado. O coloquialismo, portanto, deixa de ser a transcrição exata de uma frase ouvida na rua, para ser a elaboração de um diálogo entre o cronista e o leitor, a partir do qual a aparência simplória ganha sua dimensão exata. (p. 11)
O diálogo equilibra, desse modo, o coloquial e literário, permitindo que a
espontaneidade e o lado sensível permaneçam como elemento importante nas
crônicas, bem como acontece em conversas diárias entre dois interlocutores. Por
conseguinte, são essas as sutilezas que o cronista capta para transformar seus
textos, pois uma simples situação de diálogo informal ou até mesmo um tema
cotidiano sem importância aparentemente podem ser transformados pelos cronistas.
Sobre a informalidade, Laurito (1993) ressalta que esse elemento não se
transforma em um fator negativo para a crônica, fazendo com que o gênero perca a
sua essência, que é estar permeada com o comprometimento social. De acordo com
o estudioso, as crônicas só representam ser fáceis:
Gênero aparentemente – e só aparentemente – fácil, a crônica exige uma espécie de descompromisso do autor no tratamento do assunto, que deve ser abordado de forma ligeira e atraente para o público leitor; por outro lado, esse suposto descompromisso do cronista – sujeito comprometidíssimo com o seu ofício – não implica mediocrização do texto. É o talento do autor que vai dar estatura maior a um gênero comumente considerado um modo menor de ficção. (LAURITO, 1993, p. 27-28)
Apesar da construção de raciocínio acerca das principais características que
as crônicas possuem, a sua relação e a vulnerabilidade entre os campos do
jornalismo e literatura tornam a sua conceituação complexa. Laurito (1993) atribui
uma premissa a essa ótica:
E que, nesse primeiro esboço, o que se torna claro, a partir dos folhetinistas do século XIX é que uma das maiores dificuldades do gênero parece residir
31
no caráter dúplice de literatura e jornalismo, ou melhor, de literatura jornalística profissionalmente empenhada. (LAURITO, 1993, p. 21)
Já para Bender (1993), a difícil conceituação do gênero incorre da sua falta de
restrição quanto aos temas: “Não há restrição de assunto para a crônica, talvez para
compensar o pouco espaço. E essa total liberdade, também quanto à estrutura, faz
ser difícil a sua conceituação.” (p. 44). A ambiguidade é intensa nas crônicas, elas
podem ser ao mesmo tempo simples e paradoxalmente complexas. No tocante ao
problema em apreço, elas podem, ainda, ser vários gêneros textuais em uma só vez:
A estrutura da crônica é uma desestrutura; a ambiguidade é a sua lei. A crônica tanto pode ser um conto, como um poema em prosa, um pequeno ensaio, como as três coisas simultaneamente. O que interessa é que a crônica, acusada injustamente como um desdobramento marginal ou periférico do fazer literário, é o próprio fazer literário. E quando não o é, não é por causa dela, a crônica, mas por culpa dele, o cronista. Aquele que se apega à notícia, que não é capaz de construir uma existência além do cotidiano, este se perde no dia a dia e tem apenas a vida efêmera do jornal. Os outros transcendem e permanecem. (BENDER, 1993, p. 53)
A linha tênue que separa literatura e jornalismo na crônica também prenuncia
a fronteira entre as crônicas e o gênero conto. Nesse sentido, Sá (1999) ressalta que
a fronteira divisória apresenta algumas peculiaridades de cada um dos gêneros:
Enquanto o contista mergulha de ponta-cabeça na construção do personagem, do tempo, do espaço e da atmosfera que darão força ao fato “exemplar”, o cronista age de maneira mais solta, dando a impressão de que pretende apenas ficar na superfície de seus próprios comentários, sem ter sequer a preocupação de colocar-se na pele de um narrador, que é, principalmente, personagem ficcional (como acontece nos contos, novelas e romances). Assim, quem narra uma crônica é o seu autor mesmo, e tudo que ele diz parece ter acontecido de fato, como se nós, leitores, estivéssemos diante de uma reportagem. (SÁ, 1999, p. 09)
Mesmo que a crônica não possua a densidade dos contos, existe a liberdade
por parte dos cronistas, que podem transmitir a aparência da superficialidade para
desenvolver seu tema, a partir da simplicidade. Contudo, essa simplicidade – já que
a linguagem utilizada nos veículos de comunicação, por abranger muitos públicos,
tem como característica a presença de elementos mais informais – não significa,
“desconhecimento das artimanhas artísticas.” (SÁ, 1999, p. 10). Pelo contrário,
“nesse contexto, a crônica também assume essa transitoriedade, dirigindo-se
32
inicialmente a leitores apressados, que leem nos pequenos intervalos da luta diária.”
(SÁ, 1999, p. 10)
Além disso, os contos e as crônicas diferem-se, já que os primeiros, mesmo
com temáticas específicas da época em que são construídos, denotam um caráter
de atemporalidade, tornando-se, assim, como parte constitutiva para a memória do
período em que estão inseridas. De maneira análoga, Costa (2010) reforça a
diferença do gênero que se volta para a literatura – o conto para a crônica que está
no limiar entre o jornalismo e a literatura -, na medida em que a primeira possui
maior transitoriedade temporal do que o conto, justamente pelo cronista retirar seus
assuntos da vida cotidiana. Com vistas à melhor compreensão da crônica, Marques
(2009) auxilia na conceituação:
Gênero em prosa, próximo da elocução verbal que expressa a realidade da alma do artista; é breve, vem da experiência e nasce ante o impacto da realidade; é efêmero, usa fatos miúdos e sem importância como matéria prima e seu meio é o jornal. Contudo, somente permanecerá, a despeito da efemeridade de seu veículo, quando for dotada de qualidades literárias patentes. Além disso, usa da interlocução direta, sem artifícios narrativos para dialogar com o leitor. (p. 14)
É frequente o narrador da crônica dirigir-se diretamente para o leitor,
mantendo assim um diálogo aberto, como pode ser atestado através de uma crônica
que Caio publicou no dia seis de abril de mil novecentos e oitenta e seis, no Jornal O
Estado de São Paulo:
É que fatalmente eu/tu/ele/nós vamos lembrar. E não estou certo se essas lembranças serão boas. Ou seriam boas, lembradas hoje, você me entende? Porque o tempo passado, filtrado pela memória e refletido no tempo presente – agora –, parece sempre melhor. E teria mesmo sido? (ABREU, 2012, p. 17)
O assunto cotidiano e simples sobre o dia a dia faz com que o escritor
mantenha um diálogo em que pode não ser correspondido em seus
questionamentos. A década de 1990 no Brasil não possuía ainda as ferramentas
tecnológicas atuais, em que os escritores podem ver as respostas quase que
instantaneamente ao publicar seus textos. No entanto, mesmo sem obter respostas
deste que Caio chama de você, o que inclui a qualquer um que ler seus textos, o
autor mantém a linguagem dialógica com seus leitores.
33
O estudioso Coutinho (2006) destaca um dos aspectos que está presente de
forma constante nas crônicas de uma forma geral e nos textos de Caio: o
engajamento com temas que refletem a sociedade:
E não falta à crônica preocupação social, filtrada pelo viés poético de um observador e crítico atento, que busca, com humor mordaz, denunciar o contexto em que vive. Em sua aparente simplicidade e com a atenção voltada para o “miúdo” da vida, o cronista vai retratando o espírito de seu tempo, e oferece ao leitor fragmentos metonímicos de sua situação no mundo. Seu universo, composto de fragmentos, se estende do registro do voo de um pássaro ou do desabrochar de uma flor à mais densa reflexão sobre o estar no mundo, e com sua pena ele constrói, como um flâneur, a memória de seu tempo e lugar. Aliás, como este último, o cronista é, sobretudo, o observador da cidade, que ele capta em fragmentos no seu aqui e agora. (COUTINHO, 2006, p. 51)
Além da importância para o meio social como um gênero que se consolida na
medida em que se torna uma memória de suas classes e conversa com seus
leitores, outro aspecto, como já dito, pode ser levado em conta nas crônicas: a
linguagem. Por conter características, tais como a informalidade, diálogo aberto com
o leitor e a representação do dia a dia, acerca do que está ocorrendo na sociedade,
as crônicas formam uma espécie de memória sobre o período em que estão
inseridas. Nesse contexto, Caio, ao publicar seus textos nos jornais, aproximou-se
de seus leitores, dividiu com estes suas angústias, exprimiu seus pensamentos,
formando, assim, uma memória deste tempo que esteve ao lado daqueles que
estavam recebendo suas narrativas. Nesse sentido, Bender (1993) ressalta que a
memória é um dos espaços da crônica:
Na crônica, espaço e tempo se confundem muitas vezes, assim como em outros gêneros narrativos; são também inseparáveis da ação. É bom destacar que a crônica, pode ser mais reflexiva, humorística, ainda quando do tipo narrativo, não é muito propícia à ação de muito movimento. (p. 71)
Outra forma de ressaltar a presença da memória nas crônicas é transportá-las
para os livros, haja vista que assim o caráter rememorativo do gênero passa a se
consolidar. Sobre esse aspecto Sá (1999) afirma:
Na ultrapassagem do jornal para o livro, atenua-se o vínculo circunstancial e elimina-se a referência às demais matérias e à própria diagramação. Com isso, o texto adquire maior independência, e o leitor fica estimulado a buscar, no seu próprio imaginário, todas as associações possíveis. (p. 83)
34
Uma vez publicada em um livro a crônica minimiza a circunstancialidade e se
torna mais duradoura, já que aqueles textos que se relacionam ao circunstancial não
serão os escolhidos para se encaixar em uma coletânea. Sobre essa ótica, Sá
(1999) destaca: “No momento que a crônica passa do jornal para o livro, temos a
sensação de que ela superou a transitoriedade e se tornou eterna.” (p. 85) É de
grande valia a figura como a dos cronistas, não somente para assuntos que fazem
parte do rol de manchetes diárias, mas também para reconstruir a memória de uma
sociedade. São através das histórias recontadas pelos narradores-repórteres11 que o
caráter rememorativo não se perde.
Sobre a importância da figura como a dos cronistas, Bosi (2001) argumenta
com vistas a consolidar, através das crônicas, os pensamentos dos indivíduos que
cercam a sociedade, para que as lembranças não fiquem à mercê de uma pequena
elite: “destruindo os suportes materiais da memória, a sociedade capitalista
bloqueou os caminhos da lembrança, arrancou seus marcos e apagou seus rastros.”
(BOSI, 2001, p. 19) É imperioso considerar sobre a argumentação do estudioso que
a crônica figura como um registro em uma sociedade fragmentada que é pautada
mais pelo caráter de urgência do que propriamente pelas lembranças que os
indivíduos podem resgatar. Nesse sentido, alguns autores contribuem para a fixação
da crônica na sociedade, cultivando, assim, o caráter de atemporalidade que
caracteriza grande parte dos textos do gênero, tornando a memória como parte
constitutiva das crônicas. Na próxima seção, abordamos como as particularidades
do gênero estão cultuadas em distintos autores e quais são os escritores que
deixaram suas marcas para que este gênero estivesse consolidado no Brasil.
1.3. A crônica e seus autores: um pequeno esboço da crônica brasileira
O caráter híbrido da crônica resultante da mescla da literatura com o
jornalismo transforma-se em um gênero de difícil conceituação. Por outro lado,
algumas peculiaridades que são inerentes a elas facilitam a sua compreensão. O
caráter de atemporalidade que marca algumas crônicas torna a memória como parte
integrante das crônicas, a simplicidade, o caráter sintético e urgente, o coloquialismo
11 Termo utilizado por Sá (1999) para denominar os cronistas.
35
elaborado e a oralidade são apenas algumas particularidades deste gênero que se
tornou presente na vida de tantos escritores.
É oportuno observar ainda outra importante especialidade da crônica, que é a
habilidade peculiar que predispõe o cronista a captar com maior intensidade os
sinais da vida que nem sempre são apreendidos pelos leitores. Nas vias da
interpretação, o narrador-repórter repensa a situação da razão com a emoção, e
essa ação de repensar é intitulada por Sá (1999) como lirismo reflexivo. Esse traço,
segundo o autor, está presente nas crônicas do escritor Rubem Braga, como pode
ser observado em sua crônica “O pavão”:
Eu considerei a glória de um pavão ostentando o esplendor de suas cores; é um luxo imperial. Mas andei lendo livros, e descobri que aquelas cores todas não existem na pena do pavão. Não há pigmentos. O que há são minúsculas bolhas d'água em que a luz se fragmenta, como em um prisma. O pavão é um arco-íris de plumas. Eu considerei que este é o luxo do grande artista, atingir o máximo de matizes com o mínimo de elementos. De água e luz ele faz seu esplendor; seu grande mistério é a simplicidade. Considerei, por fim, que assim é o amor, oh! minha amada; de tudo que ele suscita e esplende e estremece e delira em mim existem apenas meus olhos recebendo a luz de teu olhar. Ele me cobre de glórias e me faz magnífico. (BRAGA, 1962, p. 149)12
O autor escreve sobre um pavão, e a simplicidade do tema é exaltada pelo
toque de lirismo reflexivo. Na medida em que Rubem Braga escolhe o pavão como
sua matéria-prima e vai dela às cores, ao grande artista e ao amor, ele está
perfazendo o caminho dos escritores nas redações dos jornais no século XIX:
transformando a simplicidade dos vocábulos para incitar os leitores a se portarem
como mais ativos e reflexivos acerca do que está sendo escrito. Autores como
Rubem Braga instigaram ainda mais a forma de fazer crônica justamente pela
literariedade de seus textos. Ademais, de maneira geral, podemos afirmar que as
características que auxiliam na conceituação das crônicas, tais como caráter urgente
e sintético, simplicidade, qualidade textual, coloquialismo elaborado e caráter de
atemporalidade, podem ser reconhecidas na crônica de Braga. O autor de “O Pavão”
sofreu influência de outros escritores, como Manuel Bandeira e João Rio, e,
conforme explica Sá (1999), esses são considerados como antecessores de todos
12 Texto extraído do livro Ai de ti, Copacabana, de Rubem Braga. p. 149.
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os cronistas brasileiros. Sobre Rubem Braga, Sá (1999) assegura que ele ocupa
lugar de destaque na literatura:
Sua opção é ainda mais corajosa porque, vivendo num país de frases bombásticas, ele cumpre a principal característica do escritor: o despojamento verbal, que implica uma construção ágil, direta, sem adjetivações. Novamente a pressa de viver confere ao narrador-repórter uma característica que se transfere para a narrativa curta por ele produzida, que é a simultaneidade do ato de escrever com o ato de eliminar os excessos. (SÁ, 1999, p. 13)
A liberdade de que goza o cronista acaba permitindo que, por vezes,
transcenda o meramente factual e faça um texto com alto teor literário, com a
qualidade que se espera de uma obra-prima (BENDER, 1993). Rubem Braga é
considerado por Bender (1993) como o cronista-mor da modernidade. A autora
pondera que “com ele o gênero alçou um voo constante e definitivo. Começou a ter
fama como correspondente de guerra na Itália e nem por isso perdeu as
peculiaridades de seu estilo brasileiro.” (p. 49). Braga representa, para a crônica, a
transposição do estilo jornalístico para o literário, aprimorando, assim, este gênero
que se consolidou no Brasil. Bender (1993) ressalta que Braga é considerado o
pioneiro da crônica contemporânea, “difícil um texto seu não ter se tornado
antológico e não pertencer a um livro didático.” (p. 49) .
Além de Rubem Braga, Sá (1999) cita outros nomes que merecem destaque
frente à sensibilidade com as crônicas. Fernando Sabino utiliza a metalinguagem
para demonstrar que a crônica exerce, sim, a inspiração, mas, acima de tudo,
seleciona e pesquisa seus conteúdos. Sá (1999) defende a ideia de que, “a crônica
deve escolher um fato capaz de reunir em si mesmo o disperso conteúdo humano,
pois só assim ela pode cumprir o antigo princípio da literatura: ensinar, comover e
deleitar.” (SÁ, 1999, p. 22) É partir do conteúdo que Sabino procura ensinar os
leitores, através da ação que as palavras possuem, que a vida tem mais sentido
quando compartilhada. Outra característica que Sabino emprega é o distanciamento
para manter um diálogo com os leitores de suas crônicas. Esse distanciamento é
uma estratégia utilizada para ficar mais à vontade e explorar o humor das situações.
Para exemplificar a forma com que Sabino se dirige para seus leitores e a essência
de seus textos, pode ser feita referência ao seu texto “A Última Crônica”. O autor
inicia contando sobre seu trajeto rotineiro:
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A caminho de casa, entro num botequim da Gávea para tomar um café junto ao balcão. Na realidade estou adiando o momento de escrever. A perspectiva me assusta. Gostaria de estar inspirado, de coroar com êxito mais um ano nesta busca do pitoresco ou do irrisório no cotidiano de cada um. Eu pretendia apenas recolher da vida diária algo de seu disperso conteúdo humano, fruto da convivência, que a faz mais digna de ser vivida. Visava ao circunstancial, ao episódico. Nesta perseguição do acidental, quer num flagrante de esquina, quer nas palavras de uma criança ou num acidente doméstico, torno-me simples espectador e perco a noção do essencial. Sem mais nada para contar, curvo a cabeça e tomo meu café, enquanto o verso do poeta se repete na lembrança: "assim eu quereria o meu último poema". Não sou poeta e estou sem assunto. Lanço então um último olhar fora de mim, onde vivem os assuntos que merecem uma crônica. (SABINO, 1965, p. 174)
Nesse momento, o narrador afirma que vê ao fundo do botequim um casal de
“pretos” que acaba de se sentar em uma das últimas mesas ao longo de uma parede
de espelhos. O escritor cria o ambiente para que o leitor possa se situar e continua
narrando sobre as características destas pessoas: “A compostura da humildade, na
contenção de gestos e palavras, deixa-se acrescentar pela presença de uma
negrinha de seus três anos, laço na cabeça, toda arrumadinha no vestido pobre.”
(SABINO, 1965, p. 174). A menina e seus pais compõem o cenário de observação
do narrador: “Vejo, porém, que se preparam para algo mais que matar a fome.
Passo a observá-los. O pai, depois de contar o dinheiro que discretamente retirou do
bolso, aborda o garçom, inclinando-se para trás na cadeira, e aponta no balcão um
pedaço de bolo sob a redoma.” (SABINO, 1965, p. 174) Então, o homem atrás do
balcão apanha uma porção de bolo, que é descrito pelo narrador em detalhes: é
amarelo-escuro em uma fatia triangular: “A negrinha, contida na sua expectativa,
olha a garrafa de Coca-Cola e o pratinho que o garçom deixou à sua frente. Por que
não começa a comer? Vejo que os três, pai, mãe e filha, obedecem em torno à mesa
um discreto ritual.” (SABINO, 1965, p. 174)
O narrador passa a observar cada movimento da família, e a narrativa passa
a girar em torno dos detalhes:
A mãe remexe na bolsa de plástico preto e brilhante, retira qualquer coisa. O pai se mune de uma caixa de fósforos, e espera. A filha aguarda também, atenta como um animalzinho. Ninguém mais os observa além de mim. São três velinhas brancas, minúsculas, que a mãe espeta caprichosamente na fatia do bolo. E enquanto ela serve a Coca-Cola, o pai risca o fósforo e acende as velas. Como a um gesto ensaiado, a menininha repousa o queixo no mármore e sopra com força, apagando as chamas. Imediatamente põe-se a bater palmas, muito compenetrada, cantando num balbucio, a que os
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pais se juntam, discretos: "parabéns pra você, parabéns pra você..." Depois a mãe recolhe as velas, torna a guardá-las na bolsa. A negrinha agarra finalmente o bolo com as duas mãos sôfregas e põe-se a comê-lo. A mulher está olhando para ela com ternura -- ajeita-lhe a fitinha no cabelo crespo, limpa o farelo de bolo que lhe cai ao colo. O pai corre os olhos pelo botequim, satisfeito, como a se convencer intimamente do sucesso da celebração. Dá comigo de súbito, a observá-lo, nossos olhos se encontram, ele se perturba, constrangido -- vacila, ameaça abaixar a cabeça, mas acaba sustentando o olhar e enfim se abre num sorriso. Assim eu quereria minha última crônica: que fosse pura como esse sorriso. (SABINO, 1965, p. 174)13
Em uma reflexão superficial sobre a crônica de Sabino, é possível perceber
que o narrador de seu texto confidenciou com seus leitores um problema que estava
lhe incomodando, a falta de inspiração para escrever. No mesmo passo, ele utiliza
um fato pessoal de seu cotidiano e transforma o seu olhar de escritor, as suas
reflexões, em cada palavra que é escolhida para elaborar o texto. O seu testemunho
é o que clarifica a simplicidade do relato dos fatos, que versam sobre o aniversário
de uma pessoa que até então era desconhecida. No entanto, quando ele resolve
contar a história dessa menina, ela passa a ser conhecida não só do escritor, mas
sim de todos aqueles que estão lendo sua crônica. Na narrativa, está ainda a
evidência da rotina a que Sabino é submetido, pois, mesmo sem estar inspirado
para escrever, ele precisa adaptar-se ao caráter urgente e sintético do gênero e
encontrar um tema que prenda a atenção de seu leitor.
Com relação ao contexto dos autores que, assim como Sabino, auxiliaram,
através de suas crônicas, na significação e em uma melhor conceituação do gênero,
Sá (1999) cita outro narrador-repórter: Sérgio Porto. O humor que apareceu nos
poemas satíricos de Gregório de Matos reaparece dessa vez nos escritos de Porto.
Ele é o criador de Stanislaw Ponte Preta, o seu pseudônimo nas crônicas
publicadas. Sá (1999) o descreve como:
Sérgio Porto traz a luz o Stanislaw Ponte Preta para retomar a linhagem dos cronistas mundanos que sabem registrar a vida cotidiana, e, acima de tudo, para criticar aquele tipo inculto que inventava “palavras e expressões como ‘piu-piu’, ‘champanhota’, ‘fúria louca’, ‘bola branca’, ‘flor azul’ e outras baboseiras.” Infelizmente Stanislaw não conseguiu eliminar esse tipo – ele ainda existe -, mas soube analisá-lo através do riso popular, caricaturando (se é possível fazer caricatura de uma caricatura) o mais conhecido cronista
13 Texto extraído do livro A Companheira de Viagem, de Fernando Sabino (1965). p. 174.
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mundano, verdadeiro símbolo do festival de besteira que ainda hoje esse país. (SÁ, 1999, p. 31)
Fazendo o leitor rir, Porto demonstra, através de seus escritos, que um
cronista com qualidades negativas contribui para o enfraquecimento da língua. Além
disso, outra carga que está presente na forma com que Porto escreve é demonstrar
que o jornalismo também é uma forma de literatura para registrar os acontecimentos,
mesmo que seja através do riso. Sobre o humor, Sá comenta: “O humor portanto,
assume a função de recuperar a poesia, confirmando que a crônica e seu contexto
jornalístico são uma realização literária sempre.” (SÁ, 1999, p. 33). Além do humor,
Ponte Preta ficou famoso, de acordo com Bender (1993), pela leveza carioca da
linguagem, pela transcrição da oralidade da fala maliciosa, a malandragem que
usava nas crônicas e pelo tom coloquial. Sérgio Porto se esconde ainda por trás de
seu pseudônimo Stanislaw Ponte Preta e através de suas características primordiais
já citadas: humor e ironia.
Seguindo outra tendência de crônicas acerca do humor, estão as do autor que
é citado por Sá (1999), Lourenço Diaferia. Este é mais voltado ao banal e focaliza
acontecimentos mais efêmeros. De acordo com Sá (1999), esses acontecimentos
são narrados em textos organizados de forma que não haja lacunas que possam
impedir o leitor de visualizar a totalidade de ciência. Da mesma forma que Diaferia,
outros cronistas podem ser citados por representarem as peculiaridades das
crônicas, tais como Paulo Mendes Campos e Heitor Cony. No primeiro, de acordo
com pareceres de Sá (1993), muitas de suas crônicas se aproximam do poema em
prosa. Já Carlos Heitor Cony possui representação tanto na literatura quanto no
jornalismo. Souza (2009) declara que, após o golpe militar de 1964, Cony se tornou
o primeiro jornalista a se manifestar contra o regime ditatorial: “A partir daí foi como
se a carreira profissional tanto de jornalista como de romancista enveredasse com
vigor para temas políticos”. (2009, p. 23).
É importante ser lembrado ainda que o lugar de cada um desses autores
neste estudo deve-se pela forma com que abordam a crônica. Pelo mesmo viés,
outros dois nomes que devem estar inseridos nesse rol são Carlos Drummond de
Andrade e Vinícius de Moraes. A principal característica de Carlos Drummond de
Andrade também está nas crônicas, até neste gênero o autor faz poesia, contudo Sá
(1999) alerta que isso ocorre porque ele conhece bem os dois gêneros:
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Dizer que a poesia está presente nas crônicas de Carlos Drummond de Andrade pode até parecer redundância. Afinal, em tudo que ele escreve – seja sob a forma de poema ou de narrativa curta – existe a magia da síntese, o ritmo adequado, o jogo de imagens e o fino humor que nos revela o desgaste da vida e a sua renovação. Mas o fato de ser ele um dos maiores poetas brasileiros não o obriga a fazer poesia quando escreve prosa: se isso acontece é porque Drummond conhece bem os deslimites dos gêneros. (SÁ, 1999, p. 65)
Além dos aspectos ressaltados por Sá (1999) - magia da síntese, ritmo
adequado, jogo de imagens e o fino humor que revela o desgaste da vida e sua
renovação -, outras premissas podem ser observadas nas crônicas de Drummond,
como enfatiza Silva (2006): “Ao focalizar cenas do cotidiano de grandes centros
urbanos, Drummond, sob a graça do riso, traz à tona flagrantes da miséria humana.”
(p. 171). As cenas dos grandes centros estão presentes, como afirma Sá (1999) na
obra Cadeira de Balanço: “Ao dividir o seu livro Cadeira de Balanço em oito seções,
chamou cada uma delas de ‘Cariocas’, aí focalizando os temas onde o núcleo
gerador é a relação invisível mas real entre o morador e sua cidade.” (p. 69) Ao
tematizar o livro acerca da expressão “Cariocas”, a cidade do Rio de Janeiro é
representada na crônica “A cidade sem meninos.” De acordo com Sá (1999), nessa
narrativa, está presente a denúncia da ausência de crianças nos centros urbanos,
como um dos índices de desenvolvimento:
As casas familiares são substituídas por casas comerciais, hoje mais habitadas pela inflação do que propriamente por funcionários e clientes. A vida se transforma e empurra os meninos para outros espaços, eliminando sua lúdica presença desses pontos que se expandem e ameaçam tomar conta de tudo, uma vez que é bem grande o número de edifícios de apartamentos com lojas no andar térreo. Família e comércio se misturam, falta uma clareira para as crianças brincarem, as pessoas envelhecem mais depressa. (p. 70)
Na mesma perspectiva, o cronista-poeta, como intitula Sá (1999), não fantasia
as sensações dos centros urbanos, mas sim as registra através das crônicas,
utilizando recursos estilísticos, contudo sempre lembrando que a crônica oscila entre
o imaginado e o que realmente existe. Assim como Drummond, Vinicius de Moraes
também utiliza como principal ferramenta em suas crônicas a representação da vida.
Acerca dessa premissa, Sá (1999) afirma:
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Enquanto o ficcionista tem o direito de criar acontecimentos, pessoas, datas, locais, etc., em função de uma verossimilhança que consiste na coerência interna do próprio texto, o cronista deve “injetar um sangue novo” em “um fato qualquer, de preferência colhido no noticiário matutino, ou de véspera”, trabalhando, pois, com um conceito de verossimilhança que liga a coerência interna do texto à coerência do fato comprovadamente acontecido. A partir desse real que não foi inventado pelo cronista é que ele injetará sangue novo no relato; isto é, usando “as artimanhas peculiares” ultrapassará os limites do real como é visto por todos nós e alcançará uma dimensão mais profunda: a essência mesma daquilo que o sujeito busca ao recriar um objeto. Nesse momento, o “prosador do cotidiano” também faz ficção. (p. 74)
É no sentido do hibridismo da literatura com o jornalismo que, assim como
Vinicius de Moraes, Carlos Drummond de Andrade mescla as duas áreas. O relato
dos fatos do cotidiano relaciona-se às premissas jornalísticas, já a subjetividade, que
se pauta no lirismo através de um jogo expresso e o silêncio do discurso, entre o
que está renomeado e a forma de representação, está em consonância com o
produzir literatura. No que tange ao subjetivismo e a relação deste com o cronista,
Sá (1999) afirma: “em suma: o subjetivismo como forma de apreensão do ser.” (p.
76) No entanto, mesmo com a gama de traços que permeiam as crônicas, elas
precisam ser lidas através de um espírito crítico, tal como Sá (1999) chama atenção:
“A crônica, apesar de sua aparente simplicidade – só pode ser valorizada quando a
lemos criticamente, descobrindo sua significação.” (p. 79). Nesse sentido, as
particularidades que compõem a crônica são melhor compreendidas se atreladas à
sua interpretação, como alerta Sá (1999), já que o leitor assume um papel crucial na
construção de sentidos para as crônicas.
Ainda sobre a crônica no Brasil, o pesquisador Francismar Ramírez Barreto,
em sua dissertação de mestrado, enfatiza a relação de Carlos Drummond de
Andrade, Paulo Mendes e Fernando Sabino e outros nomes que estiveram em
consonância com a crônica para melhor representar a importância do gênero frente
à história da literatura no Brasil. Ele inicia por Machado de Assis, que, para o
estudioso, mantém uma relação analítica com a imprensa em meados do século
XIX. Ele cita ainda autores que atestam a credibilidade de Assis frente ao gênero:
Pelo talento que demonstra para tecer os fios invisíveis da sociedade (uma sociedade que parece querer se ocultar), por fazer evidentes as tensões histórico-sociais, pelo sentido crítico ante a construção das informações, por fazer uso de um espírito lúdico, por ter desmistificado a burguesia nacional e por haver anulado alguns vícios do jornalismo do século XIX (como a manipulação por meio da retórica ou o emprego de falsos recursos poéticos), Afrânio Coutinho, José Marques de Melo, Cristiane Costa, Eduardo Portella e Wellington Pereira coincidem ao colocar o texto
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machadiano como um dos que confere personalidade ao gênero no Brasil e ao autor (Machado) como uma espécie de mito fundador da literatura brasileira. (BARRETO, 2007, p. 50)
Machado de Assis, como ressalta Barreto (2007), confere personalidade à
crônica no Brasil, e sua crônica dialoga de forma constante e direta com os seus
leitores. Essa característica pode ser exemplificada na crônica publicada
originalmente na Gazeta de Notícias, no Rio de Janeiro, em 1888. O título do texto é
“5 de abril”, e o autor inicia a crônica com a saudação, “bom dia”, já ao finalizar ele
não assina e tampouco faz menção a uma despedida formal, simplesmente, para
avisar ao leitor que terminou, acrescenta: “boas noites”. Com vistas ao diálogo com
o leitor, essa perspectiva é percebida desde as primeiras palavras:
Hão de reconhecer que sou bem criado. Podia entrar aqui, chapéu à banda, e ir logo dizendo o que me parecesse; depois ia-me embora, para voltar na outra semana. Mas, não senhor; chego à porta, e o meu primeiro cuidado é dar-lhe os bons dias. Agora, se o leitor não me disser a mesma coisa, em resposta, é porque é um grande malcriado, um grosseirão de borla e capelo; ficando, todavia, entendido que há leitor e leitor, e que eu, explicando-me com tão nobre franqueza, não me refiro ao leitor, que está agora com este papel na mão, mas ao seu vizinho. Ora bem! (ASSIS, 1983)
Com o fragmento, é possível observar a forma com que o escritor mantém as
relações com o leitor. “Senhor” e “leitor” são os termos que o narrador utiliza para
denominar aquele que está lendo, além disso, Assis até mesmo faz menção de
querer brigar com o leitor se não lhe respondesse, chamando-o de “malcriado”,
“grosseirão de borla e capelo”. Além desse diálogo entre narrador e leitor, a
linguagem é outra grande marca de Assis:
Feito esse cumprimento, que não é do estilo, mas é honesto, declaro que não apresento programa. Depois de um recente discurso proferido no Beethoven, acho perigoso que uma pessoa diga claramente o que é que vai fazer; o melhor é fazer calado. Nisto pareço-me com o príncipe (sempre é bom parecer-se a gente com príncipes, em alguma coisa, dá certa dignidade, e faz lembrar um sujeito muito alto e louro, parecidíssimo com o Imperador, que há cerca de trinta anos ia a todas as festas da Capela Imperial, pour étonner de bourgeois; os fiéis levavam a olhar para um e para outro, e a compará-los, admirados, e ele teso, grave, movendo a cabeça à maneira de Sua Majestade. São gostos) de Bismark. O príncipe de Bismark tem feito tudo sem programa público; a única orelha que o ouviu, foi a do finado Imperador, — e talvez só a direita, com ordem de o não repetir à esquerda. O Parlamento e o país viram só o resto. (ASSIS, 1983)
A forma com que Machado de Assis utiliza a linguagem e a escolha lexical de
sua narrativa é peculiar ao contexto em que o autor está inserido. Nesse sentido, é
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válido considerar que os temas também se voltam a esse contexto, e, para
exemplificar isso, enquanto Caio, por exemplo, cita, em suas crônicas, a cantora Rita
Lee, Machado de Assis faz menção a Beethoven. Essa distinção é um processo
natural também acerca das temáticas, que podem ser distintas ao longo dos
séculos. A narrativa prossegue com as explicações de que autor e leitor se
encontrarão uma vez por semana, e a forma com o que o autor utiliza a linguagem
metafórica representa a literariedade da crônica:
Portanto, bico calado. No mais é o que se está vendo; cá virei uma vez por semana, com o meu chapéu na mão, e os bons dias na boca. Se lhes disser desde já, que não tenho papas na língua, não me tomem por homem despachado, que vem dizer coisas amargas aos outros. Não, senhor; não tenho papas na língua, e é para vir a tê-las que escrevo. Se as tivesse, engolia-as e estava acabado. Mas aqui está o que é; eu sou um pobre relojoeiro, que, cansado de ver que os relógios deste mundo não marcam a mesma hora, descri do ofício. A única explicação dos relógios era serem iguaizinhos, sem discrepância; desde que discrepam, fica-se sem saber nada, porque tão certo pode ser o meu relógio, como o do meu barbeiro. (ASSIS, 1983)
Assim como os outros cronistas, Assis também descreve a sua intimidade
através da crônica, pois conta aos seus leitores que irão estar juntos uma vez por
semana no espaço do jornal, mas também já os deixa informados de que, através de
suas crônicas, poderão encontrar assuntos polêmicos, já que ele “não tem papas na
língua.” O texto tem prosseguimento quando o narrador explica por que abandonou
seu ofício:
Um exemplo. O Partido Liberal, segundo li, estava encasacado e pronto para sair, com o relógio na mão, porque a hora pingava. Faltava-lhe só o chapéu, que seria o chapéu Dantas, ou o chapéu Saraiva (ambos da chapelaria Aristocrata); era só pô-lo na cabeça, e sair. Nisto passa o carro do paço com outra pessoa, e ele descobre que ou o seu relógio está adiantado, ou o de Sua Alteza é que se atrasara. Quem os porá de acordo? Foi por essas e outras que descri do oficio; e, na alternativa de ir à fava ou ser escritor, preferi o segundo alvitre; é mais fácil e vexa menos. Aqui me terão, portanto, com certeza até à chegada do Bendegó, mas provavelmente até à escolha do Sr. Guaí, e talvez mais tarde. Não digo mais nada para os não aborrecer, e porque já me chamaram para o almoço. (ASSIS, 1983)
O contexto em que Assis está inserido novamente aparece de forma clara na
crônica, em 1888, quando o regime a que o escritor estava submetido não era
democracia, mas sim a monarquia, por isso a recorrência de reis e rainhas em suas
crônicas. O autor termina a crônica, comentando sobre a sua falta de familiaridade
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com o meio impresso e que, por ser a primeira crônica, ele ainda não sabe o quanto
escrever:
Talvez o que aí fica, saia muito curtinho depois de impresso. Como eu não tenho hábito de periódicos, não posso calcular entre a letra de mão e a letra de forma. Se aqui estivesse o meu amigo Fulano (não ponho o nome, para que cada um tome para si esta lembrança delicada), diria logo que ele só pode calcular com letras de câmbio — trocadilho que fede como o Diabo. Já falei três vezes no Diabo em tão poucas linhas; e mais esta, quatro; é demais. (ASSIS, 1983, s.p.)
A linguagem, os assuntos, a forma com que Assis se expressa são
pertinentes, como já registrado, ao seu contexto de produção. Esses aspectos
permitem deduzir as transformações que a crônica foi sofrendo ao longo dos anos.
Para melhor compreender essa evolução, é possível citar outros autores, que já
foram mencionados nesse estudo, tais como José de Alencar, que se consagra
como um dos primeiros cronistas nacionais da segunda metade do século XIX.
Sobre as crônicas de José de Alencar, Paranese (1998) observa que um dos traços
relevantes são os temas que o escritor aborda:
O cronista comporta-se na escrita como flâneur pelas ruas da cidade. Sem fixar-se em nenhum assunto, Alencar revoluteia entre as difíceis questões políticas, jurídicas, econômicas, delas saltando para o espetáculo da vida mundana: bailes, passeios, comemorações, festejos, os espetáculos líricos. (...) Dois são, no entanto, os assuntos que mais se ocupa: a política e o teatro lírico. Escritas a partir de uma intensa participação na vida social de seu tempo, as crônicas de Alencar nunca abandonam as “louçanias do estilo”, muito embora o flagrante à vontade com que o escritor se dirige a seus destinatários, especialmente suas leitoras, que ele as sabe em maioria. (PARAENSE, 1998, p. 33)
Após José de Alencar, vieram Joaquim José da França Junior e Joaquim
Manuel Macedo. Se o sentido genérico da palavra crônica for utilizado – como
registro de uma comunidade ou época, ainda outros exemplos podem ser
ressaltados, tais como O Ateneu, de Raul Pompeia, A Moreninha, de Joaquim
Manuel Macedo, Memórias de um Sargento de Milícias, de Manuel Antonio Almeida.
Essas obras podem ser designadas, como ressalta Laurito (1993), como crônicas de
costume, já que fixam, cada obra em seu contexto, tipos, hábitos e usos da
sociedade do Rio de Janeiro em tempos passados.
Acerca das transformações das crônicas, se Machado de Assis é
contemporâneo ao século XVIII, Olavo Bilac pode ser citado como referência às
45
transformações do gênero no século XIX. Sobre o autor e o contexto no qual o
gênero se firma, Candido (1989) afirma:
A leitura de Bilac é instrutiva para mostrar como a crônica já estava brasileira, gratuita e meio lírico-humorística, a ponto de obrigá-lo a amainar a linguagem, descascá-la dos adjetivos mais retumbantes e das construções mais raras, como as que ocorrem na sua poesia e na prosa das suas conferências e discursos. Mas que encolhem nas crônicas. É que nelas parece não caber a sintaxe rebuscada, com inversões freqüentes; nem o vocabulário “opulento”, como se dizia, para significar que era variado, modulando sinônimos e palavras tão raras quanto bem-soantes. Num país como o Brasil, onde se costumava identificar a superioridade intelectual e literária com grandiloqüência e requinte gramatical, a crônica operou milagres de simplificação e naturalidade, que atingiram o ponto máximo nos nossos dias. (s/d)
Sobre o estilo, formas e conceitos da crônica, o estudioso prossegue suas
explanações, ressaltando que um dos grandes prestígios da crônica moderna é,
então, o sintoma do progresso acerca na busca por uma oralidade escrita:
Na quebra do artifício e aproximação com o que há de mais natural no modo de ser do nosso tempo. E isto é humanização da melhor. Quando vejo que os professores de agora fazem os alunos lerem cada vez mais as crônicas, fico pensando a importância deste agente de uma visão mais moderna na sua simplicidade reveladora e penetrante. (CANDIDO, 1989)
Na medida em que as crônicas possuem as particularidades supracitadas
pelo estudioso, é imperioso considerar que, por ser um gênero presente tanto na
literatura quanto no jornalismo, outros nomes podem ser ressaltados conforme
atesta Barreto (2007), que, nessa perspectiva, faz referência a Lima Barreto, João
do Rio com sua crônica-reportagem, Mario de Andrade, Manuel Bandeira, Oswald
de Andrade, Rachel de Queiroz, e até mesmo as recentes personalidades (algumas
já citadas), Rubem Braga, Nelson Rodrigues, Carlos Drummond de Andrade, Paulo
Mendes Campos, Fernando Sabino, Hélio Pellegrino, Carlos Heitor Cony, Otto Lara
Resende, Sérgio Porto (Stanislaw Ponte Preta), Luis Fernando Veríssimo, José
Carlos Oliveira, Lourenço Diaféria, Mario Prata, Elsei Lessa, Ivan Ângelo, Ivan
Lessa, João Antonio, Zuenir Ventura, Clarice Lispector, Vinícius de Moraes, Antônio
Maria, Ferreira Gullar, Moacyr Scliar, Fabricio Carpinejar, Danuza Leão e, não
menos importante, Caio Fernando Abreu.
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Quanto aos escritores, Candido (1989), considerando a evolução e a
transformação que a crônica foi sofrendo ao longo dos séculos, menciona a ideia de
que há um traço comum entre esses autores:
Deixando de ser comentário mais ou menos argumentativo e expositivo, para virar uma conversa aparentemente fiada, foi como se a crônica pusesse de lado qualquer seriedade no tratamento de problemas. É curioso como elas mantêm o ar despreocupado, de quem está falando de coisas sem maior consequência e, no entanto, não apenas entram fundo no significado dos atos e sentimentos do homem, mas podem levar longe a crítica social. (CANDIDO, 1989)
Tomando-se como referência a proposição de Candido (1989) acerca de a
crônica construir a crítica social, Caio reproduz essa prerrogativa em suas narrativas,
na medida em que trata dos assuntos com o “ar despreocupado”, e assim seu texto
mostra-se atento a uma das observações de Candido (1989). O escritor utiliza o
subjetivismo no sentido que é entendido por Sá (1999) e que já fora citado neste
estudo, “como apreensão do ser” (p. 76), dessa forma, a crítica social aliada à
compreensão dos fatos cotidianos, com a representação dos “homens” pode ser
verificada de maneira notória nas narrativas de Caio.
Isso posto, é sobre Caio que o próximo tópico trata, observando-se ainda os
traços de suas narrativas, focalizando como o escritor construiu seus textos, a forma
com que apresenta suas obras tanto na prosa, quanto na novela, romance e por fim
a crônica. Mas, antes de conhecer os textos do autor, é válido conhecer a sua
história. A seguir, faz-se uma breve apresentação de Caio e sua obra, para então
abordá-lo enquanto escritor e jornalista e então ressaltar as particularidades de sua
crônica, a dificuldade em encontrar uma teoria que dê conta do gênero nos escritos
do autor, a forma com que está estruturada e a sua relação com a memória e a
sociedade.
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2. A NARRATIVA DE CAIO FERNANDO ABREU
2.1. A narrativa de Caio: do romance à crônica
Caio é um autor que transitou entre a poesia e a prosa, escrevendo em
diversos gêneros, entre eles, poemas, contos, novelas, peças teatrais, romances e
crônicas. Sua carreira literária iniciou em 1966 com a publicação de seu primeiro
conto, “O príncipe sapo”, na revista Cláudia. Nesse mesmo ano, o autor deu início à
escritura do primeiro romance, Limite Branco14, produzido na pós-adolescência. A
busca da identidade é o tema dessa narrativa.
Durante a sua trajetória literária, o escritor também se dedicou a outros
trabalhos, atuando como redator de revistas. Além da revista Cláudia, o escritor
gaúcho trabalhou em distintos segmentos editoriais do sudeste brasileiro, fez parte
ainda da equipe editorial das revistas Nova, Manchete, Pais e Filhos e Pop,
conforme Paula Dip (2009) registra na biografia sobre o autor intitulada Para Sempre
teu Caio F.: Cartas, Conversas, Memórias de Caio Fernando Abreu. Nessa obra,
Paula Dip descreve o perfil do escritor quando atuava nos periódicos da editora
Abril:
Parece que foi ontem: ele era alto, magro, pernas longas, pés descalços e caminhava pelos corredores da Editora Abril, num ritmo quase baiano, não fosse gaúcho. Jeans, camiseta, óculos redondinhos, lembrava John Lennon. Fumava sem parar, roia as unhas e passava a mão nos cabelos semilongos, um misto de príncipe Valente com cantor de rock. Tinha voz grave e lânguida, articulava as palavras, saboreando-as lentamente. Sua risada era solta e cheia de notas agudas, resquício dos tempos em que tinha voz fina e muita vergonha de falar. Diz a lenda que Caio demorou a engrossar a voz, bem mais tarde que os meninos de sua idade, a maior saia justa. Mas no auge dos 30 anos, quando nos encontramos, ele havia superado isso. (DIP, 2009, p. 19)
Paula Dip ainda relata em sua obra que Caio chegou até centro do país em
busca do jornalismo. A amizade da escritora com Caio ocorre justamente pela
proximidade que eles tinham através das redações dos jornais, eles se conheceram
na redação da editora Abril (DIP, 2009). Além de integrar a primeira parte da revista
Veja, Caio foi também editor da revista Leia Livros e colaborou em diversos jornais,
tais como Correio do Povo, Zero Hora, O Estado de São Paulo e Folha de São
14 Limite Branco foi o primeiro livro de Caio Fernando Abreu, no entanto, só foi publicado após Inventário do Irremediável.
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Paulo. Nesses jornais além de realizar trabalhos como os jornalistas, escrevendo
reportagens, em O Estado de São Paulo, Caio era editor do Caderno 2. Logo após,
em 1969, o autor recebeu o prêmio Fernando Chinaglia da União Brasileira de
Escritores pelo livro de contos Inventário do Irremediável. De acordo com o parecer
de Bizello (2006), os textos dessa obra refletem a situação social e histórica do
contexto em que foram produzidos e rompem com o que era até então estabelecido
pela tradição literária, o que incita a presença de temáticas acerca da solidão e
medo na literatura de Caio.
Nesse sentido Leal (2002) enfatiza que Inventário do Irremediável é composto
por narrativas que raramente ultrapassam cinco páginas e a obra está dividida “em
cinco inventários menores: ‘do amor’, ‘da morte’, ‘da solidão’, ‘do espanto’, cada qual
com vários contos, e o ‘do irremediável’, que é ao mesmo tempo o último ‘capítulo’ e
o mesmo texto.” (LEAL, 2002, p. 46) Em tal perspectiva, a narrativa da obra
apresenta a sensibilidade apurada do autor com relação ao mundo e um exame
detalhado sobre a representação dos personagens com o social. Destarte, Pereira
(2008) enfatiza outro aspecto de Inventário do Irremediável, já que, para a
pesquisadora, é a partir desta obra que fica mais exposta a influência de Clarice
Lispector em Caio Fernando Abreu15.
À obra Inventário do Irremediável, somam-se mais oito voltadas a contos e
ainda dois romances, três novelas, uma peça teatral intitulada “A Maldição do Vale
Negro”.16 Devido à qualidade literária de seus textos, Caio Fernando Abreu recebeu
diversos prêmios17, entre eles o Prêmio Jabuti, pelos romances Triângulo das
Águas, Os Dragões não conhecem o Paraíso e Onde Andará Dulce Veiga?
Na perspectiva das narrativas que marcaram a carreira literária de Caio
Fernando Abreu, se em Inventário do Irremediável a premissa incorria em torno da
introspecção e solidão, em O Ovo Apunhalado (1975), Pereira (2008) destaca que
tal obra marca a passagem do plano da individualidade para a alteridade. Nas
15 Inventário do Irremediável é o livro que mais deixa exposta a influência que Clarice Lispector tem em Caio, por ser uma obra em que as narrativas voltadas a autoinvestigação e o conhecimento interior do escritor, ficam mais expostas, tal como ocorre com as narrativas de Clarice. (PEREIRA, 2008) 16 Outros textos foram reunidos por autores para publicar as obras de Caio, tais como a antologia “Mel & Girassóis” e os livros A Vida Gritando nos Cantos e Pequenas Epifanias, essas últimas obras recolhendo suas crônicas. 17 Dentre os diversos prêmios recebidos pelo autor podem-se citar a menção honrosa do Prêmio Nacional de Ficção pela obra O Ovo Apunhalado, que também foi reconhecido pela Revista Veja como um dos melhores livros do ano, prêmio status de literatura pelo conto “Sargento Garcia”.
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palavras da pesquisadora: “ressalta a solidão dos grandes centros, a ausência de
interlocução, o temor em relação à imprevisibilidade do futuro, experiências de dor
dos indivíduos que não conseguiram vencer.” (p. 26). As experiências dos
personagens que estão representados na obra são decorrentes do contexto em que
o livro de contos foi produzido. Já Bizello (2006) menciona a ideia de que essa obra
representou uma denúncia do momento histórico que o Brasil estava vivenciando,
através da criação de alegorias para criticar a sociedade de consumo que pode ser
descrita como desumanizada. A autora enfatiza ainda o valor e a recepção da obra:
“embora a obra de Caio tenha sido julgada como um atentado aos bons costumes e,
por isso, tenha sofrido alguns cortes, foi considerada uma das melhores do ano pela
revista Veja.” (BIZELLO, 2006, p. 63) Por estar consolidado em uma produção
literária reconhecida com nuances da escrita através de metáforas, O Ovo
Apunhalado, segundo Costa (2008), constitui-se de uma narrativa curta no formato
do conto. Para a estudiosa, isso foi uma forma de “responder às necessidades do
tempo na urgência de comunicar os acontecimentos e suas ressonâncias
existenciais.” (2008, p. 11).
Um dos contos publicados em O Ovo Apunhalado que representa a urgência
em comunicar acontecimentos, que possui metáforas e que apresenta ainda uma
denúncia à sociedade capitalista desumanizada é “A Gravata”. Esta narrativa expõe
a situação de um indivíduo que é dominado pela sociedade, demonstrando toda a
sua submissão a uma identidade individual e a padrões de consumo estimulados
pela Indústria Cultural18 e pelo sistema capitalista. O enredo da história pauta-se em
um personagem principal que é movido pela ideia compulsiva de comprar uma
gravata, e, quando isso ocorre, ele acaba morrendo. A morte neste contexto
representa a autodestruição a que cotidianamente as pessoas são alvo quando se
rendem a um consumismo em uma sociedade pautada pelo capitalismo. Leal (2002)
observa ainda que, além da “Gravata”, os contos “Ascensão e queda de Robbéa,
manequim & robô” e “A margarida enlatada” também fazem de forma explícita uma
crítica irônica à sociedade de consumo.
18 A Indústria Cultural é parte integrante das sociedades contemporâneas. É difícil refletir a respeito deste contexto sem vinculá-la ao papel e ao poder que o consumo representa neste cenário. É praticamente impossível, neste âmbito, encontrar um indivíduo que não seja consumidor da Indústria Cultural, mesmo indiretamente.
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Com vistas a sua intersecção na representação da sociedade, O Ovo
Apunhalado se sobressaiu, de acordo com Costa (2008), no cenário da recepção em
que as obras produzidas por Caio estão calcadas: “A crítica sobre O Ovo
Apunhalado se destaca dos demais livros, para depois se estabilizar, aumentando
sua frequência cada vez que um novo livro é lançado.” (p. 12) Em comparação às
outras duas obras de Caio, a estudiosa pondera que Limite Branco e Inventário do
Irremediável assinalam a fase inaugural do escritor, ainda com resquícios de uma
prosa de caráter documental. Contudo, é a partir de O Ovo Apunhalado que o
escritor conquista notoriedade frente à crítica.
Assim como O Ovo Apunhalado, Pedras de Calcutá também foi publicado no
decênio de 1970. De maneira análoga, em Pedras de Calcutá os problemas da
década em que foi produzido também ficam evidentes em sua narrativa. Nesse
sentido, estão as imagens enigmáticas e a estrutura fragmentada, em que os
problemas sociais e o interior dos personagens estão inseridos em um contexto de
repressão. É plausível, então, inferir o engajamento que o autor possui com o
contexto do qual fez parte e o diálogo que suas narrativas estabelecem com a
realidade vigente.
Ainda com relação às obras que marcaram a carreira literária de Caio, é
oportuno lembrar que o livro de contos Morangos Mofados marcou a sua geração e
foi um dos maiores sucessos editoriais da década de 1980. Esse livro marca a
trajetória de personagens que se relacionam com perspectivas distintas propostas
pelo título da obra, já que vão da esperança sinalizada pelos morangos à descrença
sugerida pelo mofo. Morangos Mofados é composto por uma organicidade interna
que abrange três fases: “o mofo”, “os morangos” e por fim “os morangos mofados”.
Os contos desta coletânea também possuem um diferencial, eles não apresentam
uma narrativa cronológica, mas sim estão preocupados com o estado emocional dos
personagens. Nas palavras de Leal (2002):
Os contos, ao invés de centrarem sua atenção na apresentação de uma sequência de fatos, no enredo, eles se atem a descrições de estados emocionais ou existenciais das personagens. São como que mapas, quadros, retratos que expõem paisagens íntimas. (p. 53)
Outro aspecto relevante é a forma como Caio Fernando Abreu utiliza a sua
perspectiva de narrador. Mesmo sendo em primeira pessoa, a narrativa do autor
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apresenta um distanciamento autocrítico, autoirônico. É comum nos textos do
escritor uma narrativa centrada no eu, e, quando isso acontece, os contos
apresentam uma relação singular entre narrador/personagem. Os textos em primeira
pessoa contribuem para intensificar a relação entre literatura e o meio social, e Leal
(2002) afirma, nesse sentido, que, “no universo dos contos de Caio Fernando Abreu,
todas as personagens se angustiam, todas lidam com a sua própria fragilidade,
mesmo que se situem dentro dessa ou daquela classe social.” (LEAL, 2005, p. 56)
Nessa esteira, os principais focos do autor em seus textos pautam-se nas relações
vigentes na sociedade.
Já com relação ao contexto em que Caio está inserido, Carlos Alberto
Messeder Pereira (2005) explica a mudança de comportamento dos indivíduos em
decorrência do regime político vivido no Brasil nos anos de 1969 a 1974:
Havia uma revolução do comportamento em processo, a qual implicava o abandono de padrões rígidos de conduta e estilo - a expressão “sem lenço, sem documento” ganhava ares cada vez mais críticos. Testemunhava-se a invenção de formas de contestação que partiam da crença em um espaço alternativo ao “sistema”, espaço esse que se constituía verdadeira trincheira de luta contra a dominação de uma “direita” encarada criticamente, cada vez mais, de um ângulo não apenas político, mas também cultural e comportamental. (PEREIRA 2005, p. 91)
Os espaços alternativos ao sistema, que são mencionados por Pereira e as
transformações deste decênio, implicam o surgimento dos movimentos de
expressão dos anos 1970, incluindo, sob essa ótica, jornais de opiniões fortes e que
reivindicavam mudanças. Cardoso (2007) aponta a Era Desenvolvimentista como
sendo a que promoveu a expansão do jornalismo, televisão e a publicidade. Estes
campos que eram recentes no contexto brasileiro justificam o desenvolvimento de
uma linguagem mais objetiva, já que precisavam alcançar uma população mais
ampla, justamente por seu caráter de mudanças. Por conta disso, os escritores
começaram a experimentar novas formas de atuação literária, começando o
enfrentamento ao regime social político vigente: “daí a postura de negação e
invenção marcar o perfil destas novas representações narrativas.” (CARDOSO,
2007, p. 07) A estudiosa ainda relaciona a essas novas representações as
composições literárias associadas às temáticas notadamente marginais, essas que
também estão em consonância com a literatura de Caio Fernando Abreu. Além das
52
temáticas marginais, Pereira (2008) destaca a presença da poesia marginal neste
contexto:
Essa poesia agregava tanto artistas que vinham da década de 1960 envolvidos com a vanguarda do Concretismo e com o engajamento do CPCs (Centros Populares de Cultura) como pessoas que ingressavam na vida artística naquele início da década de 1970. (2008, p. 21)
Costa (2008) afirma que o vetor dominante destas obras literárias é a reflexão
sobre o programa dos mecanismos de poder, domínio e a consequente
desigualdade social. Com base nessas premissas, é possível reconhecer a
importância desse contexto por ser recorrente na literatura de Caio Fernando Abreu.
Em análise convergente, Pereira (2008), compartilhando reflexões de Hohfeldt,
ressalta a forma com que o escritor gaúcho cria personagens marginais que estão
em consonância com o contexto dos anos 1970:
Para Hohfeldt, Caio pontua de diferentes formas e com um lirismo intenso, a localização marginal dos jovens da década de 1960 a 1970 na sociedade brasileira, com extrema sensibilidade em relação a seus iguais, reconhecendo nos conflitos do outro um espelho dos seus próprios. (p. 29)
Ao reconhecer os conflitos de uma sociedade que vivenciou o contexto sócio-
histórico marcado por autoritarismo, censura e violência, Caio é apontado como o
porta-voz das gerações de 1960 e 1970. Essa geração que é veemente marcada
pelos contextos do pós-guerra, golpe militar do Brasil (em 1964), Ditadura Militar,
Guerra do Vietnã, dentre outros, está representada nas obras do escritor, através de
uma literatura com forte teor intimista:
Através da literatura, sob uma perspectiva intimista, Caio expressa as vivências e os conflitos psicológicos na visão da juventude oprimida por uma sociedade marcada pelas divisões, numa estrutura de dominação cujos valores são baseados no poder e no consumo, relegando a um segundo plano, ou, na maior parte das vezes, excluindo os valores pessoais. O escritor não apenas dá seu depoimento, mas questiona as imposições da sociedade, seus condicionamentos e padrões de conduta e denuncia a insatisfação diante da realidade, através de personagens solitários, fragmentados, caracterizados pelo desencanto, pela dor e pelo sofrimento. (COSTA, 2008, p. 11)
Em conformidade com as ideias de Costa (2008), a estudiosa Pereira (2008)
discute os recursos estilísticos que eram utilizados por Caio em suas narrativas que
contextualizavam a geração dos anos 1970, como a linguagem codificada, a
53
aproximação com a musicalidade e o cinema, que também está atrelada ao contexto
que o autor reproduz nas histórias que criou:
Sua literatura renova a complexidade da desilusão da juventude de 1970, pois, além de incorporar a seu texto todas as frustrações dessa geração, assume também suas predileções artísticas, fazendo uso da musicalidade, do refrão musical, das técnicas cinematográficas de montagem, do flashback de muita plasticidade, sugerindo como que um movimento de câmara por trás da narração. (p. 27)
A abordagem social de Caio, através dos elementos citados pela autora,
incorre de sua sutileza e das metáforas que se consolidam na construção de uma
narrativa particular que se utiliza também de elementos externos aos textos.
Pautando-se no sujeito excluído e em trânsito, as narrativas do escritor, mesmo sem
descrever de maneira contundente a Ditadura Militar, conduzem os relatos de suas
obras para a representação de um sistema repressor, cujos personagens são
concebidos através das exclusões. Esses fatos implicam, na visão de Bizello (2006),
o fato de o escritor Caio Fernando Abreu estar profundamente conexo com a
realidade histórica do Brasil, utilizando algumas estratégias textuais para esse fim:
O escritor cria jogos de linguagem, explora diálogos e monólogos e capta os detalhes da expressão humana. Com suas personagens agride o “status quo” dominante e desmistifica a visão de identidade una, pois apresenta indivíduos de perfis opostos aos exigidos pela sociedade tradicional: são homens e mulheres fragmentados e destituídos de identidade que vivem as mazelas sociais e psicológicas do século XX. (BIZELLO, 2006, p. 68)
Sob o viés apresentado pela autora, é possível considerar que, neste contexto
de indivíduos que apresentam uma identidade oposta aos esquemas tradicionais,
Caio integra o conjunto de escritores que produzem ficção urbana, de vertente
intimista. A literatura urbana é concedida por representar personagens e temáticas
ligadas aos grandes centros. Costa (2008) atribui à evolução tecnológica e industrial
um caráter capitalista, ocasionando, assim, uma sociedade com indivíduos
desequilibrados, isolados e voltados somente para si. Nessa perspectiva, ela afirma
que a literatura intimista reflete acerca desse processo, apresentando uma ótica
centrada na interioridade dos personagens e na psicologia individual, cujo
procedimento narrativo principal é a introspecção. Nas palavras de Costa (2008):
“Esse recurso é explorado nos textos de Caio, onde muitas vezes ocorre o monólogo
54
interior e o fluxo de consciência, a narrativa em primeira pessoa, o discurso direto
livre, o aspecto onírico.” (p. 10)
Nesse sentido, os personagens de Pedras de Calcutá e Morangos Mofados
fixam-se predominantemente em centros urbanos, enquanto na obra escrita
anteriormente, O Ovo Apunhalado, os personagens encontram-se nos territórios
urbanos ou em deslocamento das pequenas cidades com destino às grandes
metrópoles. Ao estar inserido nestas temáticas, Caio distancia-se dos costumeiros
eixos da literatura sul-riograndense, em que centram seus debates em torno do
regional. Para Cardoso (2007), o afastamento desses temas decorre de uma reação
ao arbitrário regime militar e pelo seu engajamento frente a realidade que o circunda.
O contexto em que Caio Fernando Abreu está inserido auxilia nesse aspecto,
já que as suas obras refletem o posicionamento do autor em relação ao ser humano
e à realidade dos indivíduos em um contexto social e histórico marcado por
adversidades. Sob essa perspectiva, as abordagens foram registradas na literatura
do escritor através de uma linguagem que, segundo Rezende e Tartáglia (2010), “se
desenvolveu acima dos convencionalismos de qualquer ordem, evidenciando uma
marca própria, justamente com uma linguagem fora dos padrões tradicionais
vigentes” (p. 32). A ideia das autoras pode ser confirmada através de alguns
elementos formais que evidenciam uma tendência do escritor em romper com os
padrões tradicionais em suas narrativas, tais como a ausência de pontuação,
narrativas fragmentadas e a alternância da posição do narrador sem a devida
marcação para o leitor.
São com essas características formais e linguísticas que Caio publica, no
decênio de 1980, a novela Triângulo das Águas. A obra é marcada pelas temáticas
da solidão, de personagens que representam almas perdidas em busca de algo,
pela presença da astrologia e o tom confessional desesperado. Triângulo das Águas
é composta por três novelas: “Pela Noite”, “O Marinheiro” e “Dodecaedro”, e, sobre
essas narrativas, Porto (2010) advoga que o simbolismo pode ser identificado nelas.
Na primeira, de acordo com a estudiosa, ocorre uma insatisfação e um
desencantamento dos personagens principais: Pérsio e Santiago: “diante de um
mundo circundante e duas buscas de refúgio para a realização de seus desejos e
amar.” (2010, p. 24). Já em “O Marinheiro” Porto (2010) ressalta outras
características que assolam os personagens: “a angústia e o sentimento de
escuridão assolam o personagem e fazem-no superar adversidades e encontrar o
55
cosmos paradisíaco desejado.” (2010, p. 25) E por fim em “Dodecaedro” ocorre uma
síntese das trajetórias de personagens esboçados em outras obras.
Na década de 1980, Caio publica o livro de contos Os Dragões não conhecem
o Paraíso, em que são apresentados personagens excluídos como nas obras
anteriores, entretanto, em especial, nessa ocorre a predominância em grupos como
de marginais, homossexuais, alienados, solitários, e todos estes giram em torno de
um mundo que está em transformação. De acordo com Cardoso (2007), a obra gira
basicamente em torno das relações afetivas: “A obra, segunda prefácio do escritor,
funciona como um romance-móbile, em que uma peça esclarece, amplia, contempla
a outra para que, no todo, constituam uma unidade.” (2007, p. 74)
Na sequência cronológica, o escritor gaúcho publica o romance Onde Andará
Dulce Veiga? O pesquisador Anselmo Peres Alós (2007), em sua tese de
Doutorado, A letra, o corpo e o desejo: uma leitura comparada de Puig, Abreu e
Bayly, serve-se de pressupostos de teorias feministas, estudos narratológicos e a
perspectiva queer para a realização de uma leitura crítica acerca de três romances,
um argentino de 1976, um peruano de 1994 e Onde andará Dulce Veiga?, publicado
em 1990. A perspectiva de Alós é importante nesse estudo, pois analisa o romance.
O estudioso cita Caio como sendo reconhecido pela crítica literária por seus contos,
romances e demais produções textuais.
Mesmo não subvertendo as convenções formais da narrativa, o olhar singular
de Caio sobre a existência sexual ocorre no sentido de desestabilizar as categorias
identitárias polarizadas em torno da homossexualidade e heterossexualidade. Nas
palavras de Alós (2007): “negando uma ‘gênese’ ou ‘origem’ para o comportamento
homossexual.” (p. 19) Os personagens que Caio constrói em suas narrativas
exemplificam a afirmação de Alós, uma vez que não estão calcados na origem
biológica de sua sexualidade, mas, sim, no encontro de almas, isto é, independente
de ser mulher ou homem, o que Caio enfatiza em seus textos é que o amor não está
relacionado ao sexo. Desse modo, as relações afetivas podem ocorrer entre dois
homens, ou duas mulheres, pois o que interessa é o encontro de almas entre duas
pessoas.
A perspectiva de Alós (2007) sobre o romance de Caio também pode ser
estendida aos contos do escritor. Em “Terça-Feira Gorda”, conto do livro Morangos
mofados, em linhas gerais, a temática homoerótica é o eixo central dessa narrativa,
em que os personagens mantêm abertamente relações, opção que é condenada por
56
outras personagens que não aceitam essa situação. Os personagens principais se
conhecem em um baile de carnaval e após demonstrar a sua opção sexual são
brutalmente agredidos pelas pessoas. O narrador-personagem frisa a expressão
“por acaso”, afirmando, assim, que o encontro de dois homens seria o encontro de
duas almas e não gêneros ligados à sexualidade, reafirmando desse modo, a
perspectiva de Alós (2007) acerca das categorias identitárias.
Sobre o romance de Caio, Onde Andará Dulce Veiga? que conta a história de
uma jornalista que busca encontrar Dulce Veiga, uma cantora desaparecida há
anos, Alós (2007) afirma que uma das vertentes críticas com maior interpretação é
aquela que explora as relações entre o texto e os primeiros impactos na sociedade
acerca da epidemia da AIDS que atingiu escalas planetárias no final do século XX.
Esse é um dos motivos que, para Alós (2007), estão atrelados aos estudos que
levaram vários pensadores, como Severino Albuquerque, a se questionarem sobre a
doença e seus reflexos na literatura do escritor gaúcho:
Na esteira dos estudos sobre literatura e AIDS, Severino Albuquerque dedica um pequeno capítulo de seu livro (intitulado Tentative Transgressions: Homessexuality, AIDS and Theather in Brazil) para analisar a dramaturgia de Caio Fernando Abreu. Em breve nota, assinala também a pertinência de se enfocar o tema da AIDS na leitura do romance Onde Andará Dulce Veiga?. (ALÓS, 2007, p. 90)
Acompanhando as ideias propostas por Alós, pode-se dizer que as narrativas
de Caio, mesmo que apontem para uma possível interpretação de temas que fazem
parte do cotidiano do autor, apresentam como perspectiva-chave a forma com que o
escritor gaúcho se utiliza de temas cotidianos para chamar a atenção dos seus
leitores, representando-os em seus textos.
No tocante à representação da sociedade, Costa (2008) declara sobre essa
particularidade nas obras, Triângulo das Águas, Os Dragões não conhecem o
Paraíso e Onde andará Dulce Veiga?:
O escritor retoma o desencanto diante da realidade manifesto nas obras anteriores, só que encarado exclusivamente pela ótica interna: a realidade “por dentro” do homem, urbano e moderno, em especial daquele que se nega a submissão, a censura, a qualquer tipo de restrição e que busca a afirmação e aceitação de sua própria identidade e individualidade, assumindo seus próprios valores e dirigindo-se para sua realização pessoal, em geral vivendo à margem da sociedade convencional (p. 20)
57
No raciocínio proposto por Costa (2008), as temáticas de Caio remetem ao
contexto do cotidiano, e os episódios da vida estão representados em suas
narrativas através de aspectos como a busca por uma identidade, solidão,
introspecção, opressão das grandes cidades, desumanização, busca de dignidade.
Ainda com relação à produção literária de Caio, em 1995, ao ser patrono da
Feira do Livro em Porto Alegre, ele publicou a antologia Ovelhas Negras. Essa
antologia é uma espécie de biografia ficcional, já que recolhe as particularidades de
suas principais obras. Nela, há um agrupamento de contos nunca publicados em
livros anteriormente, as narrativas estão organizadas em ordem cronológica pelo
próprio autor.
No que tange ao gênero contos, Bizello (2006) afirma que, de um lado, Caio
atende ao modelo tradicional de composição e, por outro, opta por uma escrita que
rompe com esse paradigma, acentuando a fragmentação forma das narrativas. Ao
escrever, segundo a autora, Caio ainda enfatiza a introspecção:
Através da diluição do enredo, aprofundamento da investigação introspectiva, da exploração dos estados oníricos, da fragmentação e da desconstrução da ilusão realista. Dessa forma o escritor manifesta via estrutura narrativa a experiência do individuo excluído que busca, em si mesmo, o refúgio para os problemas da vida moderna. (p.70-71)
Com um modo peculiar de escrever as narrativas, os ambientes de seus
contos também são diferenciados. Os espaços são condensados e, nessa
perspectiva, Costa (2008) assegura que a ação transcorre em alguns momentos,
dias e em espaços fechados, como quartos, apartamentos. Desse modo, o ambiente
externo fica secundário. Já com relação aos personagens das narrativas de Caio,
são poucos e suas histórias são contadas através de uma narrativa geralmente
escrita em primeira pessoa. Já a temática dos contos representa e problematiza
questões sociais, através de personagens que são marcados pela solidão,
carências, loucuras, isolamentos, marginalidade, mas sempre em busca do amor.
Nesse sentido, Gomes (2008) corrobora essa percepção sobre os textos de Caio ao
afirmar que a questão amorosa nos textos do escritor é apontada como forma de
resolução de conflitos individuais e coletivos. Além disso, o amor está ligado também
à reflexão sobre um sujeito aprisionador de subjetividades, elaborando uma crítica à
busca incessante sobre a idealização do amor romântico. Por esse sentido, a sua
narrativa faz uma crítica à busca desse amor.
58
Em torno de narrativas que estão calcadas no discurso sobre a identidade de
personagens e com o extenso currículo de publicações de obras, os textos de Caio
Fernando Abreu vêm ganhando destaque tanto na área acadêmica - com a
produção de dissertações, teses e estudos em artigos, quanto na área artística -
através de reproduções cinematográficas, adaptação de textos em peças de teatros
e interesse de autores pela biografia do escritor. Segundo a pesquisadora Gomes
(2008), essa visitação recorrente ao universo ficcional de Caio demonstra que a sua
produção ultrapassou as questões geracionais a que estava sujeita. Nas palavras da
autora:
... Se inscrevendo num entre-lugar bastante contemporâneo, lidando de maneira eficaz e poética com os temas da incomunicabilidade urbana, do preconceito, da solidão dos grandes centros urbanos, da busca de um diálogo crítico e uma reinterpretação da cultura pop, campe de massa, da problematização das identidades sexuais, bem como da incorporação e rediscussão do mito do grande amor. (GOMES, 2008, s/d)
Os temas a que a autora chama atenção viabilizam um primeiro conjunto de
observações sobre as temáticas mais recorrentes na obra de Caio. A solidão e a
incomunicabilidade voltam-se com maior ênfase para os grandes centros, já a
reinterpretação da cultura pop, preconceito e a problematização das identidades
sexuais estão presentes tanto no contexto urbano com um maior aglomerado de
pessoas, tais como as grandes cidades, quanto nos centros menores. Ela relata
ainda, em sua tese, que, através de estudos realizados para a sua dissertação em
2001, levantou dados acerca de diferentes concepções sobre outros temas que são
recorrentes nas narrativas de Caio Fernando Abreu: a loucura e a
homossexualidade. De acordo com a estudiosa, Caio privilegia a multiplicidade e o
caráter questionador. Nas palavras de Gomes (2008):
Percebi que, ao optar pelas configurações da loucura como um lugar de libertação e vivência dos desejos mais íntimos dos indivíduos, e da homossexualidade como uma paisagem diversa e multiforme para desejos, experiências e comportamentos sexuais, CFA apontava para espaços de questionamentos e singularizações dessas experiências, elegendo paisagens fragmentadas e saídas precárias, momentâneas, para os conflitos entre os indivíduos e a ordem social. Suas intervenções, à maneira foucaultiana, terminam por não centralizar o debate, abrindo mão de noções fixas para as representações. (s/d)
Além dos conflitos entre os indivíduos e as ordens sociais, Caio pode ser
considerado como um escritor mergulhado nos dramas do século XX, e, nesse
59
sentido, o clima de denúncia e a construção de um mundo interior e exterior aos
personagens denotam ainda mais o seu engajamento com o social. Por outro lado,
mesmo com seu engajamento, Costa (2008) alerta para o fato de que, após
descobrir sua doença, a figura principal das críticas e notícias passou a ser ele, em
vez de seus textos. Nesse sentido, o caráter autobiográfico começou a incidir em
seus textos. Através do espaço que Caio possuía em jornais para publicações de
suas crônicas, ele compartilhava com os leitores os dramas que eram seus também.
O texto do escritor é permeado por elementos textuais, que demonstram a sua
sensibilidade frente à realidade. Além disso, uma de suas principais peculiaridades é
a capacidade de reflexão, por isso suas crônicas, mesmo sendo escritas na década
de 1990, com temáticas específicas, parecem atemporais. Sob esse viés, a próxima
seção analisa algumas crônicas do autor que estão permeadas pelo seu contexto de
produção e características particulares ao gênero, tais como a linguagem coloquial,
o humor e a ironia, a subjetividade, a alusão a outros textos e a busca pelo diálogo
com o leitor.
2.2. A crônica de Caio
A crônica de Caio apresenta muitos traços importantes para serem
considerados no processo de leitura e interpretação desse gênero narrativo. O autor
mostra neste gênero uma narrativa em que o caráter autobiográfico dilui-se em meio
a temas de representação social. No tocante ao caráter autobiográfico das crônicas
brasileiras em especial, Simon (2008) argumenta que está relacionado à matiz
memorialista, uma vez que, ao contar um fato ou explorar assuntos do cotidiano, o
escritor precisa buscar em sua memória como ocorre a constituição deles:
Se é possível admitir a matiz memorialista nas crônicas e no seu conjunto, é também necessário conviver com o falseamento daqueles e de outros escritos que não se submetem à condição de reproduções fiéis dos fatos e sensações ali expostos. (SIMON, 2008, p. 57)19
19 É importante considerar sobre o caráter autobiográfico as reflexões de Roland Barthes, já que o estudioso procurou conduzir os exercícios da análise literária para longe do biografismo, para outros rumos a que o texto se afirmasse como principal objeto a ser focalizado. “Em breve, vulgarizou-se e retomou força a noção de que o autor deveria ser afastado das preocupações analíticas, criando espaço para distinções essenciais entre autor e narrador, quando se tratava de romances e contos, e entre poeta e sujeito lírico, quando os textos em questão são poemas.” (SIMON, 2008, p. 59) A percepção de Barthes torna-se importante para que as análises dos textos literários não se limitem a
60
Além da presença do signo autobiográfico, atrelado à memória, as crônicas
de Caio, com um toque de lirismo, também formam um diálogo aberto e explícito
entre escritor, leitor e sociedade. O autor ainda explora em seus textos uma
linguagem de aproximação com o leitor, para chegar aos que leem, como se
estivessem em uma conversa diária, que aborda distintos temas, desde política,
música, violência, cinema, histórias íntimas até televisão e novelas, dentre outros. A
linguagem da sua crônica ainda se mostra uma linguagem paradoxal, que vai do
nível culto ao coloquial, da escrita simples à redação mais exigente.
No que confere peculiaridades à linguagem, características formais, como
simplicidade, qualidade textual, caráter urgente e sintético, coloquialismo elaborado
e o caráter de atemporalidade - o que torna a memória como parte constitutiva do
gênero -, estão presentes nas crônicas de Caio. As suas narrativas, de forma geral,
apresentam uma tônica voltada ao social e, com as crônicas, essa premissa não é
diferente. Caio utilizava seu espírito crítico, por vezes até mesmo sendo autocrítico,
para abordar temas que cercavam a sua geração.
Considerando seu espírito crítico, induzindo o leitor à reflexão e a temas que
remetem ao cotidiano, escolhemos para compor o corpus desta pesquisa a obra A
Vida Gritando nos Cantos. A obra reúne crônicas publicadas por Caio no “Caderno
2” do jornal O Estado de São Paulo, em diferentes períodos. Nesse livro, as crônicas
estão separadas por três partes e em sequência cronológica: a primeira é composta
pelas que foram produzidas de 1986 a 1988, a segunda compreende os anos de
1993 a 1996, e a terceira são aquelas sem data.
Para contextualizar o perfil das crônicas dessa obra, identificando as suas
linhas temáticas, seus traços formais, perfis humanos representados, foram
construídos quadros que procuram apresentar, de forma sintética, características
que singularizam as narrativas de Caio publicadas no jornal O Estado de São Paulo.
Estes quadros não pretendem ser exaustivos nem indicar todos os elementos das
crônicas, mas sim constituírem-se como um guia de leitura para a compreensão e
contextualização das crônicas do autor. Em termos didáticos, para facilitar a
visualização dos traços das crônicas numa perspectiva diacrônica, os quadros foram
divididos em décadas: as crônicas dos anos 1980, as dos anos 1990 e as sem data.
aspectos formais de narrador/autor, poeta/sujeito lírico, mas sim, tenha maior riqueza com a intenção em outros aspectos.
61
QUADRO 1 - Crônicas de Caio Fernando Abreu - Década de 1980
PERÍODO 1980-1989
Crônicas
Para machuchar os
corações
Música e os sentimentos
que podem gerar nas
pessoas
Mescla de linguagem culta
com coloquial. Subjetivismo
Estrutura
fragmentadaGeração de 1972
Cidades
grandes/São PauloPresente
Diálogo com leitor, citação,
intertexto, humor, ironia,
introspecção
Meus amigos são um
barato
Histórias de quatro amigos
do narrador
Linguagem coloquial.
Subjetivismo Estrutura linear
Quatro amigos: o super-
feliz, a moderna, o "subir-
com-esforço na vida" e a "
ex-atriz, ex-cantora, ex-
traficante".
Cidades grandes Presente Intertextualidade, humor,
ironia, diálogo com leitor
Meu Deus, são estrelas
demais!
As estrelas: as dos céu e
artistas
Linguagem coloquail e
culta.
Estrutura
fragmentada
Artistas que são estrelas
em suas vidas
A cidade de
Gramado-RS, o céu
do Rio Grande do
Sul, a praia
Presente Diálogo com leitor, citação,
humor
Ah, bossa-nova, new-
bossa...
Música, em especial do LP
de Elisete Negreiros.
Mescla de linguagem culta
com coloquial.
Subjetivismo.
Estrutura linear
A representação da vida do
narrador através das
músicas e cantores.
Metrópole, parece
ser São Paulo, que é
onde vive o
narrador.
Presente Citação, intertextualidade,
subjetivismo
A vida é uma brasa,
mora?O caos da vida
Mescla de linguagem
coloquial e culta.
Subjetivismo.
Estrutura
fragmentada
Descrição do próprio
narrador e ses
comportamentos
Metrópole,
possivelmente São
Paulo
Presente
Citação, intertextualidade,
subjetivismo, diálogo com
leitor
Cola-chata-da-
sanguinhaAs gírias de Porto Alegre Coloquial Estrutura linear
Na maior parte são os
gaúchos, mas o narrador
cita, darks, punks, néos,
pós, seitas.
Cidades gaúchas Presente Humor, diálogo com leitor,
citação
Eu existo! Existo?
Os documentos do narrador
que foram roubados e
recuperados
Coloquial Estrutura linearDescrição do próprio
narrador
Pinheiros - São
Paulo Presente Humor, diálogo com leitor
Amizade telefônica Os amigos telefônicos
Mescla de linguagem culta
com coloquial.
Subjetivismo.
Estrutura linearDescrição do próprio
narrador
A cidade do
narrador, São Paulo Presente
Humor, diálogo com leitor,
subjetivismo, citação
Meu amigo CláudiaDescrição do amigo (a)
Cláudia Coloquial Estrutura linear
Descrição do próprio
narrador São Paulo Presente
Humor, citação, diálogo
com leitor
Um remédio que dá
alegria
Música, em especial, João
Gilberto e Caetano Veloso
Mescla de linguagem culta
com coloquial.
Subjetivismo.
Estrutura linearDescrição do próprio
narrador São Paulo Presente
Humor, diálogo com leitor,
citação, intertextualidade
Diário de bordo
Um diário da vida do
narrador de segunda a
domingo
Mescla de linguagem culta
com coloquial.
Subjetivismo.
Estrutura
fragmentada
Descrição do próprio
narrador São Paulo Presente
Melancolia, subjetividade,
citação, intertextualidade
Por falar em estrelas... Astrologia
Mescla de linguagem culta
com coloquial.
Subjetivismo.
Estrutura linearDescrição do próprio
narrador Sâo Paulo Presente
Diálogo com leitor, humor,
ironia, citação,
intertextualidade
Uma semana-
FassibinderFilme de Fassbinder
Mescla de linguagem culta
com coloquial.
Subjetivismo.
Estrutura
fragmentada
Descrição do próprio
narrador São Paulo Presente
Melancolia, diálogo com
leitor, citação,
intertextualidade
Em nome dos dragões Sonhos
Mescla de linguagem culta
com coloquial.
Subjetivismo.
Estrutura linearDescrição do próprio
narrador São Paulo Presente
Diálogo com leitor, humor,
ironia, citação
Fragmentos de um
domingo
Há várias temáticas: o que
ocorre em um domingo a
noite, a gripe e os sonhos
do narrador
Mescla de linguagem culta
com coloquial.
Subjetivismo.
Estrutura
fragmentada
Descrição do próprio
narrador
São Paulo, também
cita o morre de
Santa Tereza no Rio
de Janeiro, onde foi
a última vez que viu
uma amiga.
Presente
Diálogo com leitor,
subjetivismo, citação,
intertextualidade
Um sonho regado a
gim
O romance de uma
escritora estadunidense
Mescla de linguagem culta
com coloquial.
Subjetivismo.
Estrutura linear
A representação é de Zelda
Sayure e seu marido
Francis Scott
Cidade
estadunidense
Montgomery
Presente
Diálogo com leitor,
subjetivismo, citação,
intertextualidade
Lamúrias com chantili Resposta a uma carta de
leitor
Mescla de linguagem culta
com coloquial.
Subjetivismo.
Estrutura linearDescrição do próprio
narrador São Paulo Presente
Diálogo com leitor, humor,
ironia, subjetivismo,
citação, intertextualidade
Então vamos continuar
dançando Músicas, filmes, livros
Culta, coloquial,
subjetivismo. Estrutura linear
Descrição do próprio
narrador São Paulo Presente
Diálogo com leitor,
subjetivismo, citação,
intertextualidade
Bye-bye, 10ª mostra 10ª mostra do cinema
Mescla de linguagem culta
com coloquial.
Subjetivismo.
Estrutura
fragmentada
As representações centram-
se nos são paulinos que
participaram da Mostra de
Cinema
São Paulo Presente
Diálogo com leitor, humor,
ironia, subjetivismo,
citação, intertextualidade
Sexo: mais ou menos? Estatística acerca da nova
geração, se transam menos Coloquial Estrutura linear Nova geração de jovens São Paulo Presente
Diálogo com leitor, humor,
ironia, subjetivismo, citação
Tema Recorrente Linguagem das narrativas
Estrutura do
texto
Perfis humanos
representados
Cenário das
narrativas
Linha de
apoio Recursos estéticos
62
O movimento do tempo O velho/antigo, novo/jovem
Mescla de linguagem culta
com coloquial.
Subjetivismo.
Estrutura
fragmentada
As pessoas em geral, já
que o narrador está
remetendo a todos que irão
ficar velhos e o que são
jovens
São Paulo Presente
Diálogo com leitor, humor,
ironia, subjetivismo,
citação, intertextualidade
Palavras ao vento
Temáticas que podem ser
escritas em uma crônica de
domingo
Mescla de linguagem culta
com coloquial.
Subjetivismo.
Estrutura
fragmentada. .
Descrição do próprio
narrador São Paulo Presente
Diálogo com leitor, humor,
ironia, subjetivismo,
citação, intertextualidade
Caetano, caetanagem Filme de Caetano Veloso
Mescla de linguagem culta
com coloquial.
Subjetivismo.
Estrutura linear Caetano Veloso e outros
artisitas São Paulo Presente
Diálogo com leitor, humor,
ironia, subjetivismo,
citação, intertextualidade
O girassol e a greve Girassol
Mescla de linguagem culta
com coloquial.
Subjetivismo.
Estrutura
fragmentada
A representação da planta
em meio ao caos do dia-a-
dia
São Paulo Presente
Diálogo com leitor, humor,
ironia, subjetivismo,
citação, intertextualidade
Gente deve ser bom Colega de redação do
narrador, Marion Frank
Mescla de linguagem culta
com coloquial.
Subjetivismo.
Estrutura linearA representação de Marion
Frank
A redação do
Caderno 2 de O
Estado de São Paulo
Presente
Diálogo com leitor, humor,
citação (cita artistas),
melancolia, memória acerca
de seu tempo, senso crítico
Dezenas de obrigados Os melhores do ano
Mescla de linguagem culta
com coloquial.
Subjetivismo.
Estrutura linear
A crônica é autobiográfica,
narrador descreve a sua
vida e daqueles (os
melhores) que fizeram parte
dela, ao longo do ano
São Paulo Presente
Diálogo com leitor, humor,
ironia, subjetivismo,
citação, intertextualidade
Com afeto e mau
humor O ano novo (1987)
Mescla de linguagem culta
com coloquial.
Subjetivismo.
Estrutura linear Leitores São Paulo Presente
Diálogo com leitor, humor,
ironia, subjetivismo,
citação, intertextualidade
São Paulo, 40 graus O mar
Mescla de linguagem culta
com coloquial.
Subjetivismo.
Estrutura linear Amentes do marSão Paulo e Rio de
JaneiroPresente
Diálogo com leitor, humor,
ironia, subjetivismo, citação
Nem só de Aurelião... Glossário de palavras com
expressões
Mescla de linguagem culta
com coloquial.
Subjetivismo.
Estrutura linear "Moçada urbana" São Paulo PresenteDiálogo com leitor, humor,
ironia, citação
Onde andará Lyris
Castellani? Lyris Castellani
Culta, coloquial,
subjetivismo. Estrutura linear Lyris Castellani São Paulo Presente
Diálogo com leitor, humor,
ironia, subjetivismo, citação
Beta, beta, Bethânia O amor do narrador por
Maria Bethânia
Mescla de linguagem culta
com coloquial.
Subjetivismo.
Estrutura linear Maria Bethânia São Paulo PresenteDiálogo com leitor, humor,
ironia, subjetivismo, citação
Um prato de lentilhas O Brasil Desigual
Mescla de linguagem culta
com coloquial.
Subjetivismo.
Estrutura linear
Todos os brasileiros que
clamam pela justiça a que o
narrador cita
Brasil PresenteDiálogo com leitor, humor,
ironia, subjetivismo, citação
Anjos da barra pesada O Brasil Desigual
Mescla de linguagem culta
com coloquial.
Subjetivismo.
Estrutura linearBrasileiros afoitos por
justiça
São Paulo/Rio de
Janeiro/BrasilPresente
Diálogo com leitor, humor,
ironia, subjetivismo, citação
Suspiros de domingo Um final de semana cultural
Mescla de linguagem culta
com coloquial.
Subjetivismo.
Estrutura linearDescrição do próprio
narrador São Paulo Presente
Diálogo com leitor, humor,
ironia, subjetivismo, citação
No coração do Brasil
Palestra em uma
Universidade
Mescla de linguagem culta
com coloquial.
Subjetivismo.
Estrutura
fragmentada
Descrição do próprio
narrador Uberaba/São Paulo Presente
Diálogo com leitor, humor,
ironia, subjetivismo, citação
Diário de bordo II
Um diário da vida do
narrador de segunda a
domingo
Mescla de linguagem culta
com coloquial.
Subjetivismo.
Estrutura
fragmentada
Descrição do próprio
narrador São Paulo Presente
Diálogo com leitor, humor,
ironia, subjetivismo, citação
Querem acabar comigo
A dificuldade em escrever
crônicas
Mescla de linguagem culta
com coloquial.
Subjetivismo.
Estrutura linearDescrição do próprio
narrador São Paulo Presente
Diálogo com leitor, humor,
ironia, subjetivismo, citação
Doris, Antonio e Vera
As três coisas boas que
ocorreram com o narrador
Mescla de linguagem culta
com coloquial.
Subjetivismo.
Estrutura linearDescrição do próprio
narrador São Paulo Presente
Diálogo com leitor, humor,
ironia, subjetivismo, citação
Nos trilhos do tempo
A reflexão sobre a vida,
velhice
Mescla de linguagem culta
com coloquial.
Subjetivismo.
Estrutura
fragmentada
Representação da vida,
desde jovens, velhos.São Paulo Presente
Diálogo com leitor, humor,
ironia, subjetivismo, citação
63
Pílulas calientes
As férias do narrador e
algumas crônicas (anti)
sociais que ele deixa aos
leitores
Mescla de linguagem culta
com coloquial.
Subjetivismo.
Estrutura
fragmentada
Diversas representações, já
que são ao total de quinze
lides
São Paulo PresenteDiálogo com leitor, humor,
ironia, subjetivismo, citação
Cenas na beira de um
abismo A representação do Brasil
Mescla de linguagem culta
com coloquial.
Subjetivismo.
Estrutura
fragmentadaOs brasileiros de 1987
Rio de Janeiro/São
PauloPresente
Diálogo com leitor, ironia,
subjetivismo, citação
Me leva pro céu, Luni! Música
Mescla de linguagem culta
com coloquial.
Subjetivismo.
Estrutura linear A banda Luni São Paulo PresenteDiálogo com leitor, humor,
ironia, subjetivismo, citação
Verão de julho
A representação da vida
com os verões no meio do
ano
Mescla de linguagem
coloquial e culta.
Subjetivismo
Estrutura linear Os paulistanos São Paulo PresenteDiálogo com leitor, humor,
ironia, subjetivismo, citação
A novela da novela Telenovela
Mescla de linguagem
coloquial e culta.
Subjetivismo
Estrutura linear
Crônica autobiográfica, a
representação é o narrador
que se intitula como
"desempregado"
São Paulo PresenteDiálogo com leitor, humor,
ironia, subjetivismo, citação
Para embalar John
CheeverLivros, músicas
Mescla de linguagem
coloquial e culta.
Subjetivismo
Estrutura linearDescrição do próprio
narrador São Paulo Presente
Diálogo com leitor, humor,
ironia, subjetivismo, citação
Que depois de me ler Temas que poderiam ser
recorrentes a uma crônica
Mescla de linguagem
coloquial e culta.
Subjetivismo
Estrutura linear Representação de temas São Paulo PresenteDiálogo com leitor, humor,
ironia, subjetivismo, citação
Caleidoscópio Rita Rita Lee
Mescla de linguagem
coloquial e culta.
Subjetivismo
Estrutura linear Rita Lee São Paulo PresenteDiálogo com leitor, humor,
ironia, subjetivismo, citação
Adeus, agosto. Alô,
setembro
O mês de Agosto e
Setembro
Mescla de linguagem
coloquial e culta.
Subjetivismo
Estrutura linearCompositores, cantores e
escritoresSão Paulo Presente
Diálogo com leitor, humor,
ironia, subjetivismo, citação
Cenários em ruínas Memórias de uma noite que
passou
Mescla de linguagem
coloquial e culta.
Subjetivismo
Estrutura
fragmentada
Um homem sem nome, que
é descrito pelo narrador.
Não é possível identificar se
é o próprio narrador
São Paulo PresenteDiálogo com leitor, humor,
ironia, subjetivismo, citação
Safra de abobrinhas
A apresentação que o
narrador verá de Luni, um
glossário com significados,
astrologia
Mescla de linguagem culta
com coloquial.
Subjetivismo.
Estrutura linear
Diversas representações, a
do narrador, de pessoas
que se enquadram no
glossário
São Paulo ou Rio de
JaneiroPresente
Diálogo com leitor, humor,
ironia, subjetivismo, citação
Felizes para sempre Um romance
Mescla de linguagem culta
com coloquial.
Subjetivismo.
Estrutura
fragmentada
Representação de Yann
Andréa e MargueriteCenário indefinido Presente
Diálogo com leitor, humor,
ironia, subjetivismo, citação
Se eu quiser falar com
Deus
O cenário de miséria vivo
pelo Brasil
Mescla de linguagem
coloquial e culta.
Subjetivismo
Estrutura linearBrasileiros que vivem na
misériaSão Paulo Presente
Diálogo com leitor, humor,
ironia, subjetivismo, citação
Um cantinho, um
violão, uma Narinha Música: Nara Leão
Mescla de linguagem
coloquial e culta.
Subjetivismo
Estrutura linearNara Leão e sua projeção
no narradorSão Paulo Presente
Diálogo com leitor, humor,
ironia, subjetivismo, citação
Ninguém merece Jânio
Quadros
Mistura de assuntos: o
então presidente Jânio
Quadros, cultura, as cartas
dos leitores, suas obras
Mescla de linguagem
coloquial e culta.
Subjetivismo
Estrutura
fragmentada
Brasil que possui como
Presidente Jânio Quadros,
os leitores de suas crônicas
São Paulo PresenteDiálogo com leitor, humor,
ironia, subjetivismo, citação
Vamo comer Caetano?
Música com a
predominância de Caetano
Veloso
Mescla de linguagem culta
com coloquial.
Subjetivismo.
Estrutura
fragmentada
Perfis humanos
representados através de
músicas
São Paulo PresenteDiálogo com leitor, humor,
ironia, subjetivismo, citação
Ao som de Suzane
Vega O amor
Mescla de linguagem culta
com coloquial.
Subjetivismo.
Estrutura
fragmentada
Crônica autobiográfica,
quem está representado
são os sentimentos do
narrador
São Paulo PresenteDiálogo com leitor, humor,
ironia, subjetivismo, citação
Sem via de acesso Sentimentos do narrador
Mescla de linguagem
coloquial e culta.
Subjetivismo
Estrutura
fragmentada
Crônica autobiográfica,
novamente os sentimentos
melancólicos de
introspecção do narrador
estão representados
São Paulo PresenteDiálogo com leitor, humor,
ironia, subjetivismo, citação
Vamos tirar o rodenir? Novas significados de
palavras
Mescla de linguagem
coloquial e culta.
Subjetivismo
Estrutura linear
Seus amigos gaúchos e
outros que criam os
significados para os termos
São Paulo PresenteDiálogo com leitor, humor,
ironia, subjetivismo, citação
Despedida provisória Sentimentos do narrador
Mescla de linguagem culta
com coloquial.
Subjetivismo.
Estrutura linearCrônica autobiográfica,
sentimentos do narradorSão Paulo Presente
Diálogo com leitor, humor,
ironia, subjetivismo, citação
Nós amávamos tanto
Mistura de assuntos:
poemas, músicas
manifestações, sentimentos
do narrador
Mescla de linguagem
coloquial e culta.
Subjetivismo
Estrutura
fragmentada
Descrição do próprio
narrador e da geração
oprimida
Rio de Janeiro/São
PauloPresente
Diálogo com leitor, humor,
ironia, subjetivismo, citação
Mas que tempo é
esse?Filme
Mescla de linguagem culta
com coloquial.
Subjetivismo.
Estrutura linearRepresentação de 60, 70 e
também da década de 1980São Paulo Presente
Diálogo com leitor, humor,
ironia, subjetivismo, citação
Bancarrota blues A realidade de São Paulo
Mescla de linguagem culta
com coloquial.
Subjetivismo.
Estrutura linear São Paulo nos anos 1980 São Paulo PresenteDiálogo com leitor, humor,
ironia, subjetivismo, citação
Anotações depois do
Carnaval
Anotações do narrador
após o carnaval
Mescla de linguagem
coloquial e culta.
Subjetivismo
Estrutura
fragmentada
Descrição do próprio
narrador e da geração
oprimida
São Paulo PresenteDiálogo com leitor, humor,
ironia, subjetivismo, citação
Em todas as direções Tarde de domingo
Mescla de linguagem
coloquial e culta.
Subjetivismo
Estrutura linear
Descrição do próprio
narrador e da geração
oprimida
São Paulo PresenteDiálogo com leitor, humor,
ironia, subjetivismo, citação
Cine Brasil: sonho e
romance Música e cinema
Mescla de linguagem culta
com coloquial.
Subjetivismo.
Estrutura linearAna Carolina e Sérgio
BianchiniSão Paulo Presente
Diálogo com leitor, humor,
ironia, subjetivismo, citação
Venha ver os dragões Literatura
Mescla de linguagem culta
com coloquial.
Subjetivismo.
Estrutura linear Escritores brasileiros São Paulo PresenteDiálogo com leitor, humor,
ironia, subjetivismo, citação
64
Como é possível perceber no quadro, as crônicas da década de 1980
possuem vários elementos em comum. Quanto aos recursos estéticos, são adotados
na maioria o diálogo com o leitor, as citações, os intertextos. O humor e a ironia
também são recursos recorrentes. Isso porque Caio ao reproduzir temas cotidianos,
viabilizava através destes elementos um diálogo constante com o meio com o qual
estava inserido. As crônicas refletem, em sua maioria, acerca de temas comuns, não
apresentando algo complexo ao leitor; no entanto, a forma com que o escritor
gaúcho utiliza as estratégias textuais transforma suas narrativas em matéria-prima
literária.
Notamos, ainda, os títulos das crônicas, os quais não se apresentam de forma
clara ao leitor o tema. Podemos tomar como exemplo a primeira crônica da obra,
“Para machucar corações”, uma vez que, ao nos deparar com esse título, podemos
pensar em muitos temas para essa narrativa, desde sentimentos que se referem ao
coração, até mesmo, àqueles que circundam em torno de problemas familiares,
doenças. Em linhas gerais, a crônica aborda os sentimentos que as músicas podem
gerar nas pessoas. Ao ler o texto, entendemos que “Para machucar corações” está
denotando os sentimentos melancólicos, introspectivos que determinadas canções
podem nos proporcionar, contudo, somente tendo contato com esse título a
impressão tornava-se mais abrangente. De maneira análoga, ao ler “Cola-chata-da-
sanguinha”, qual é a impressão que isso nos causa? Em um primeiro momento,
poderíamos pensar ser uma crônica para nos explicar o que esses vocábulos
separados por hifens querem dizer, todavia, a crônica aborda as gírias porto-
alegrenses. O narrador cultua uma experiência que denota ser a sua, isso porque
Caio é gaúcho e conta um pouco mais sobre os leitores acerca da sua terra natal.
Ainda observamos outras peculiaridades das crônicas de 1980, como a
fragmentação, a reprodução de mesmos assuntos os quais são continuados em
alguns textos. Em outros ainda, o narrador utiliza seu espaço para responder aos
leitores cartas enviadas ou perguntas feitas, como ocorre em “Meu amigo Cláudia” e
“Um remédio que dá alegria”. Na primeira, o narrador conta como seu (sua) amiga
(o) Cláudia, descrevendo-o (a) com alguém que está no limiar de ser homem ou
mulher. Na outra crônica, o narrador retoma a anterior, comentando sobre Deus
(utilizando a intertextualidade da música de Caetano Veloso) e mistura ao assunto
anterior um de seus preferidos: a música e elementos culturais. São recursos que
também aparecem nas crônicas da década seguinte.
65
QUADRO 2 - Crônicas de Caio Fernando Abreu - Década de 1990
PERÍODO 1990-1996
Crônicas
À nossa mais completa
tradução Música
Mescla de linguagem
coloquial e culta.
Subjetivismo
Estrutura linear Rita Lee São Paulo AusenteDiálogo com leitor, ironia,
subjetivismo, citação
Reflexões à porta de um canil Novos significados
de palavras
Mescla de linguagem
coloquial e culta.
Subjetivismo
Estrutura linear
Representações de
artistas/músicos/compos
itores/ que se
enquadram nas
"cadelas"
São Paulo AusenteDiálogo com leitor, ironia,
subjetivismo, citação
Samba-enredo para um
Carnaval de horror
Violência nas
metrópoles
brasileiras
Mescla de linguagem
coloquial e culta.
Subjetivismo
Estrutura linearBrasileiros que sofrem
com a violência
São Paulo/Porto
Alegre/Rio de
Janeiro
AusenteDiálogo com leitor, ironia,
subjetivismo, citação
Adivinhem quem vem para
roubar Política
Mescla de linguagem
coloquial e culta.
Subjetivismo
Estrutura linearO político que não é
nomeadoSão Paulo Ausente
Diálogo com leitor, ironia,
subjetivismo, citação
Um presente lindaço para São
Paulo Cinema
Mescla de linguagem
coloquial e culta.
Subjetivismo
Estrutura linear Paulistanos São Paulo AusenteDiálogo com leitor, ironia,
subjetivismo, citação
Tese de mestrado à Holandesa Homossexualismo
Mescla de linguagem
coloquial e culta.
Subjetivismo
Estrutura linear Os homossexuais São Paulo AusenteDiálogo com leitor, ironia,
subjetivismo, citação
Na cama por causa de Madonna Música: Madonna
Mescla de linguagem
coloquial e culta.
Subjetivismo
Estrutura linear Madonna São Paulo AusenteDiálogo com leitor, ironia,
subjetivismo, citação
Levantando a cortina de papel
vegetal Livro
Mescla de linguagem
coloquial e culta.
Subjetivismo
Estrutura linear Os japonoses
Diversos países que
a carta do amigo do
narrador passou até
chegar nele: Tóquio,
Alemanha, Holanda,
Paris até em chegar
em São Paulo, no
Brasil
AusenteDiálogo com leitor, ironia,
subjetivismo, citação
Sugestão para cair na real...e
depois sairTeatro
Mescla de linguagem
coloquial e culta.
Subjetivismo
Estrutura linearDescrição do próprio
narrador São Paulo Ausente
Diálogo com leitor, ironia,
subjetivismo, citação
1994: um ano para a literatura LiteraturaColoquial, culta.
SubjetivismoEstrutura linear Os escritores brasileiros
São Paulo, também
cita outros paísesAusente
Subjetividade, citação
(cita elementos
culturais),
intertextualidade
(reproduz fragmento de
música), humor, ironia,
diálogo com leitor,
memória acerca de seu
tempo, elementos
sociais.
Marina Lima enfrenta o Brasil-
Barbie Música
Coloquial, culta.
SubjetivismoEstrutura linear Marina Lima São Paulo Ausente
Subjetividade, citação
(cita elementos
culturais),
intertextualidade
(reproduz fragmento de
música), humor, ironia,
diálogo com leitor,
memória acerca de seu
tempo, elementos
sociais.
Para Dulcineia, que nunca foi
del Toboso Travestis
Mescla de linguagem
coloquial e culta.
Subjetivismo
Estrutura linear Os travestis São Paulo AusenteDiálogo com leitor, ironia,
subjetivismo, citação
Pra cima com a câmera,
moçada!Filmes
Mescla de linguagem
coloquial e culta.
Subjetivismo
Estrutura linear Os filmes e o Brasil São Paulo AusenteDiálogo com leitor, ironia,
subjetivismo, citação
Viva o império das coroas
magníficas! Música e telenovela
Mescla de linguagem
coloquial e culta.
Subjetivismo
Estrutura linear
Alcione e a telenovela,
Fera Ferida (juntamente
com os atores, autores
que compõe a novela)
São Paulo, mas
narrador escreve de
Paris, e também cita
a cidade
AusenteDiálogo com leitor, ironia,
subjetivismo, citação
De laços, seis, sábados e
tormentas
Mistura de temas,
cotidiano em Paris,
canibalismo em
Olinda, saudades
Mescla de linguagem
coloquial e culta.
Subjetivismo
Estrutura
fragmentada.
Quando narrador
está melancolico,
as frases são
curtas, assuntos
variados.
O Brasil, através do
canibalismo em Olinda,
a saudade dessa terra e
o cotidiano do narrador
em Paris
Olinda, Paris AusenteDiálogo com leitor, ironia,
subjetivismo, citação
Negro amor ao som de Bruce
Springssteen
História de um
brasileiro em Paris
Mescla de linguagem
coloquial e culta.
Subjetivismo
Estrutura linear
Representação de
homossexuais, do
racismo, da AIDS
Paris AusenteDiálogo com leitor, ironia,
subjetivismo, citação
Confissões de um lusófobo
enfurecido
Portugal, a morte de
Airton Senna, amor
não correspondido
Mescla de linguagem
coloquial e culta.
Subjetivismo
Estrutura
fragmentada
Descrição do próprio
narrador Portugal Ausente
Diálogo com leitor, ironia,
subjetivismo, citação
Entre a Frau do mal e "Jente" do
bem
Viagem por
diferentes paises e
suas
particularidades
Coloquial, culta.
SubjetivismoEstrutura linear
Descrição do próprio
narrador
Diversos países que
a carta do amigo do
narrador passou até
chegar nele: Tóquio,
Alemanha, Holanda,
Paris até em chegar
em São Paulo, no
Brasil
AusenteDiálogo com leitor, ironia,
subjetivismo, citação
Afinal, quem era mesmo Lolita
Torres?Filmes
Mescla de linguagem
coloquial e culta.
Subjetivismo
Estrutura linearLolita Torres e Tâinia
Prigarina
Países que as duas
viveram e foram
mencionados pelo
narrador
AusenteDiálogo com leitor, ironia,
subjetivismo, citação
Apresentando Álvaro Caldas,
escritor Livro
Mescla de linguagem
coloquial e culta.
Subjetivismo
Estrutura linear Escritores brasileiros São Paulo AusenteDiálogo com leitor, ironia,
subjetivismo, citação
Tema Recorrente
Linguagem das
narrativas
Estrutura do
texto
Perfis humanos
representados
Cenário das
narrativas
Linha de
apoio Recursos estéticos
66
Lolita, Lisboa y otras cositas
más
Respostas a cartas
dos leitores
Mescla de linguagem
coloquial e culta.
Subjetivismo
Estrutura linear Leitores das crônicas São Paulo AusenteDiálogo com leitor, ironia,
subjetivismo, citação
Na trilha dos mistérios de
Clarice Clarice Lispector
Mescla de linguagem
coloquial e culta.
Subjetivismo
Estrutura linear
Clarice Lispector, suas
cartas, romances, a sua
forma de ver a vida
São Paulo AusenteDiálogo com leitor, ironia,
subjetivismo, citação
Delírio eleitoral à beira do
ridículo Eleições
Mescla de linguagem
coloquial e culta.
Subjetivismo
Estrutura linearOs brasileiros que irão
votarPorto Alegre Ausente
Diálogo com leitor, ironia,
subjetivismo, citação
Os onze sexos de um anjo
terapeuta
A quantia de sexos
que existem, o
carinho e amor de
um médico a seu
paciente
Mescla de linguagem
coloquial e culta.
Subjetivismo
Estrutura linear
O médico, a percepção
do narrador diante dos
sexos que podem existir
e do carinho deste
médico
São Paulo PresenteDiálogo com leitor, ironia,
subjetivismo, citação
Para Rita Lee, com amor e
irritação Rita Lee
Mescla de linguagem
coloquial e culta.
Subjetivismo
Estrutura linear Rita Lee São Paulo PresenteDiálogo com leitor, ironia,
subjetivismo, citação
Ney Matogrosso, muito além do
bustiê
Música: Ney
Matogrosso
Mescla de linguagem
coloquial e culta.
Subjetivismo
Estrutura linear Ney Matogrosso São Paulo PresenteDiálogo com leitor, ironia,
subjetivismo, citação
Feliz em conhecê-la, Natália
Lage Teatro e filhos
Mescla de linguagem
coloquial e culta.
Subjetivismo
Estrutura linear
Natália e os filhos do
narrador que poderiam
estar vivos Rio de Janeiro Ausente
Diálogo com leitor, ironia,
subjetivismo, citação
Reza forte para um egum
maldespachado
Uma fã que
assombra o escritor
Mescla de linguagem
coloquial e culta.
Subjetivismo
Estrutura linear
A fã que não lhe deixa
em paz, nem quando
estava no hospital Porto Alegre Ausente
Diálogo com leitor, ironia,
subjetivismo, citação
Vamos voltar a falar em poesia? Livros
Mescla de linguagem
coloquial e culta.
Subjetivismo
Estrutura linear As três obras literárias e
seus autores São Paulo Ausente
Diálogo com leitor, ironia,
subjetivismo, citação
Betty Crawford, Ph.D. em Najice
Comparada
Mudança de nome
de Caio F, e a
primeira dama
Mescla de linguagem
coloquial e culta.
Subjetivismo
Estrutura linearPrimeira Dama, Ruth
Cardoso Porto Alegre Ausente
Diálogo com leitor, ironia,
subjetivismo, citação
De volta ao avesso do avesso
do avesso São Paulo
Mescla de linguagem
coloquial e culta.
Subjetivismo
Estrutura linear A cidade de São Paulo e
suas lembranças São Paulo Ausente
Diálogo com leitor, ironia,
subjetivismo, citação
Inútil pranto por Santa Tereza
Cidade de Santa
Tereza
Mescla de linguagem
coloquial e culta.
Subjetivismo
Estrutura linear As lembranças acerca
de Santa Tereza Rio de Janeiro Presente
Diálogo com leitor, ironia,
subjetivismo, citação
Tentativa de sitiar uma
esquisitice
Os sentimentos do
narrador
Mescla de linguagem
coloquial e culta.
Subjetivismo
Estrutura linearDescrição do próprio
narrador Porto Alegre Presente
Diálogo com leitor, ironia,
subjetivismo, citação
Picadinho para aquecer o
inverno Diversos assuntos
Mescla de linguagem
coloquial e culta.
Subjetivismo
Estrutura
fragmentada
Representação dos
assuntos Porto Alegre Ausente
Diálogo com leitor, ironia,
subjetivismo, citação
A vaia consagradora de Denis
Stoklos Peça de Teatro
Mescla de linguagem
coloquial e culta.
Subjetivismo
Estrutura linear
Representação da atriz
Denise Stoklos e outros
artistas que já foram
vaiados Porto Alegre Ausente
Diálogo com leitor, ironia,
subjetivismo, citação
Para mãe Sonia de Oxum Apará
Duas mães do
narrador
Mescla de linguagem
coloquial e culta.
Subjetivismo
Estrutura linearDescrição do próprio
narrador Rio de Janeiro Ausente
Diálogo com leitor, ironia,
subjetivismo, citação
Entrevisão do trem que deve
passar
Anoitecer/amanhec
er
Mescla de linguagem
coloquial e culta.
Subjetivismo
Estrutura
fragmentada
O jogo de luzes que se
formam no céu Porto Alegre Ausente
Diálogo com leitor, ironia,
subjetivismo, citação
A cara do Brasil em Terra
Estrangeira Filmes
Mescla de linguagem
coloquial e culta.
Subjetivismo
Estrutura linear
A representação
recorrente é a de filmes,
cineastas Porto Alegre Ausente
Diálogo com leitor, ironia,
subjetivismo, citação
Tirando o pó do velho 1995 Diversos assuntos
Mescla de linguagem
coloquial e culta.
Subjetivismo
Estrutura
fragmentada
Representação dos
assuntos Porto Alegre Ausente
Diálogo com leitor, ironia,
subjetivismo, citação
67
As crônicas das décadas de 1980 e 1990 possuem muitas coordenadas em
comum: os títulos não tem linguagem clara, são sugestivos, os temas se repetem e
circundam em torno de elementos culturais, a alusão a elementos externos é
observada em praticamente todas as narrativas, a presença do humor e ironia,
diálogo com leitor e com elementos sociológicos, além uma constante busca pela
reflexão dos leitores. No entanto, podemos ressaltar a presença de uma distinção:
ao contrário das crônicas da década de 1980, a linguagem das crônicas de 1990 é
predominantemente linear. Notamos que, nas narrativas produzidas na década de
oitenta, há maior vazão para a crônica fragmentada, o que sugere uma busca pela
renovação da escrita e experimentação da linguagem em um contexto sócio-político
marcado pelo rompimento com convenções artísticas. Outra peculiaridade que
distingue as crônicas publicadas em cada década, é que, em oitenta, Caio publicou
mais, e os temas das crônicas da década de 1990 foram mais voltados a livros,
filmes, músicas, teatro, viagens e política.
Nesse sentido, outra diferença com relação às crônicas de 1980 é que, nas
da década de 1990, a linha de apoio ficou mais restrita, o que indica que, de uma
década para outra, o leitor adquiriu maior visibilidade, passando a ser mais
insistentemente chamado pelo narrador para construir sentido ao texto. Podemos
citar a presença clara do narrador na crônica “Tirando o pó do velho 1995”, em que
este afirma que, com o ano novo que irá chegar (1996), é preciso deixar os assuntos
com os leitores em dia. Por isso, utiliza o espaço destinado às crônicas semanais
para responder aos leitores o que estava devendo a eles, para que, no ano seguinte,
1996, possam começar novos assuntos. O narrador então responde aos vários
leitores que lhe escreveram, solicitando o número de telefone da mãe Sonia, essa
que ele contou aos leitores na crônica intitulada “Para mãe Sonia de Oxum Apará”,
quando ele comenta que existem duas mães, uma biológica e a outra mãe era a
Sonia, então, os leitores se interessam sobre ela e lhe pedem o número de telefone
para que possam entrar em contato com essa que é ligada ao Candomblé. Ainda na
crônica “Tirando o pó do velho 1995”, o narrador conta aos seus leitores, como se
fossem amigos íntimos, que como ele passou muito no hospital, não havia
conseguido cuidar de seu jardim, e por fim, faz um pedido, que não lhe enviem mais
originais inéditos para rascunhar sugestões. Sob o viés das temáticas e das
referências das crônicas, percebemos a inserção do social e o diálogo entre
narrador e leitor.
68
QUADRO 3 - Crônicas de Caio Fernando Abreu - Sem definição de data
SEM DEFINIÇÃO DE DATA
Crônicas
Cor-de-rosa, uma ova! Música
Mescla de linguagem
coloquial e culta.
Subjetivismo
Estrutura
linearMarianne Faithfull Cinema Presente
Diálogo com leitor, ironia,
subjetivismo, citação
Muito além do bordô Porto Alegre
Mescla de linguagem
coloquial e culta.
Subjetivismo
Estrutura
linear________ Porto Alegre Ausente
Diálogo com leitor, ironia,
subjetivismo, citação
Clarice Lispector ress... Clarice Lispector
Mescla de linguagem
coloquial e culta.
Subjetivismo
Estrutura
linearClarice Lispector São Paulo Presente
Diálogo com leitor, ironia,
subjetivismo, citação
Por aquelas escadas subiu feito uma
diva
A morte de uma
amiga
Mescla de linguagem
coloquial e culta.
Subjetivismo
Estrutura
linear
Ana C e sua amizade com
o narrador
São Paulo/Rio de
JaneiroAusente
Diálogo com leitor, ironia,
subjetivismo, citação
Tema Recorrente
Linguagem das
narrativas
Estrutura do
texto
Perfis humanos
representados
Cenário das
narrativas
Linha de
apoio Recursos estéticos
As crônicas sem datas trazem como temas a música, a cidade de Porto
Alegre, a escritora Clarice e a morte de uma amiga. A primeira narrativa, “Cor-de-
rosa, uma ova!”, descreve a artista musical Marianne Faithfull, “Muito além do bordô”
apresenta uma diversidade temática e o narrador inicia comentando sobre sua vida
em Porto Alegre e passa a descrever sobre música, cinema, seus amigos, palavras
com significados diversos e finaliza avisando aos leitores que ele adora lhes decifrar.
A surpresa e a satisfação de receber uma carta de Clarice Lispector estão inseridas
em “Clarice Lispector ress”, em que o narrador compartilha com os leitores a carta
da escritora. Já a melancolia ficou por conta de “Por aquelas escadas subi feito uma
diva”, a morte de uma amiga deixa o narrador introspectivo e nostálgico com as
recordações. Através das descrições dos temas, podemos perceber a forma com
que Caio utiliza suas narrativas para se aproximar dos leitores, ele transforma
assuntos comuns, como a carta que recebeu de uma amiga, em matéria-prima
literária.
Propomo-nos a elaborar esse quadro para melhor dimensionar a produção
textual, no que tange às crônicas do escritor gaúcho. Ao analisar as narrativas nas
seções, não daríamos conta de demonstrar a complexidade e a forma com que Caio
utiliza para abordar suas temáticas, então com esses quadros é possível perceber a
interação do jornalismo e da literatura, a utilização das estratégias textuais como,
humor, ironia, diálogo com leitor, utilização de memórias, alusão a elementos
externos e a utilização da linguagem oral.
Então, nas próximas seções, crônicas da obra A Vida Gritando nos Cantos
são analisadas para identificar traços, formas e estilos deste gênero na produção do
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autor. Outras particularidades são ressaltadas, como a linguagem coloquial, a busca
pelo diálogo com o leitor, a subjetividade, a alusão a outros textos e o humor. Ao
caracterizar as crônicas de Caio, também elaboramos uma reflexão sobre a
(in)suficiência das teorias da crônica para compreender esse gênero nos escritos do
autor. Iniciamos a abordagem dos traços da crônica de Caio pela linguagem que
está presente nas crônicas, para demonstrar qual é o sentido do seu emprego nas
narrativas do escritor gaúcho.
2.2.2 A linguagem coloquial de suas crônicas
Uma das particularidades das crônicas, como já fora citado, é a linguagem.
Em termos linguísticos, também se nota a presença da oralidade e da objetividade.
Essa última, de acordo com Costa (2010), é exigida em função do seu destinatário –
o leitor do jornal – pelo ambiente da escrita através da imprensa periódica e pela
exiguidade de espaço, o que obriga a síntese. Nesse sentido, quando se considera a
objetividade da crônica, em termos teóricos, esta se associa a uma pequena
extensão. Entretanto, na leitura da crônica de Caio, a objetividade ganha outra
dimensão, pois, em termos de tamanho textual, a crônica do escritor gaúcho
obedece à objetividade, mas em termos de linguagem, esta cede espaço a uma
expressão mais subjetiva, carregada de impressões pessoais, como será
demonstrado na análise dos textos do autor. Já com relação à oralidade, Sá (1999)
ressalta que também é presença constante nas páginas de jornais e,
consequentemente, nas crônicas, o que facilita o diálogo com o leitor.
Vale notar, ainda, que as marcas da oralidade incorrem pela transcrição das
falas do cotidiano para a escrita, nas crônicas de Caio em especial, esse aspecto
fica evidente pelo fato de o narrador transcrever ações que ocorrem na vida social e
pela narrativa estar concentrada em situações corriqueiras. Nesse sentido, Correa
(2010) corrobora essa perspectiva, afirmando que, “a transcrição consiste em passar
o texto oral para o texto escrito, com todas as suas características, inadequações
gramaticais e semânticas.” (p. 45). Desse modo, entendemos que Caio utiliza as
expressões das falas do dia a dia, gírias, fragmentos de livros e músicas, para
sinalizar o diálogo com os aspectos cotidianos do leitor, contribuindo, assim, para a
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identificação com a sua narrativa. É oportuno observar que a transcrição das falas
do dia a dia, garantem também a oralidade e as marcas da linguagem simples20.
A perspectiva da linguagem familiar aos seus leitores, juntamente com o
conceito de coloquialismo elaborado, está calcada neste estudo sob o viés de Costa
(2010). A linguagem familiar “tem a ver com o caráter da dicção aparentemente
desestruturada, que se assemelha a uma conversa cúmplice entre narrador e leitor,
sem transformar a linguagem em simples reprodução da fala.” (COSTA, 2010, p.
190). Para elucidar a forma como Caio utiliza esses aspectos em suas narrativas, a
crônica “Meus amigos são um barato” é tomada como exemplo. Nesta narrativa,
publicada no dia oito de abril de 1986, o narrador conta a história de quatro de seus
amigos, apontando as particularidades de cada um. Para verificar o traço do
coloquialismo elaborado proposto por Costa (2010), analisamos o seguinte
fragmento:
A verdade que não conheço ninguém mais moderno (ou pós, nos dois sentidos: o do depois e o das carreiras) que minha amiga Kate. Coberta de negro, cabelo raspado para o lado, vezenquando uma peruca rosa de náilon. Naturalmente é performática. E faz cursos sen-sa-cio-nais: o último foi de vídeo-performance – um arraso. Minha amiga Kate acha tudo meio antigo, mas concede ir ao Satã, ao Rose Bom-Bom, dá umas bandas pelo Ritz e não pisa nem morta no Pirandello. Acha que tudo é uma questão de pique-e-pá-e-crã, sabe como? Fico numas que só... (ABREU, 2012, p. 20) (grifos da autora deste trabalho)
Como se pode observar nas expressões que foram grifadas, “vezenquando”,
“sen-sa-cio-nais”, “dá uma bandas”, “de pique-e-pá-e-crã”, “sabe como? Fico numas
que só...”, são termos permeados pela oralidade. Para melhor compreender a forma
com que as expressões estão em consonância com a fala do dia a dia, observemos
cada uma delas. “Vezenquando” é a abreviação da expressão: de vez em quando,
isto é, para sinalizar a proposição de que não é sempre ou todos os dias que Kate
utiliza a sua peruca, contudo, como o narrador está descrevendo isso através de
uma linguagem totalmente familiar e impregnada pela transição das falas, a
utilização da abreviatura torna-se um componente da sua narrativa para atrair a
atenção do leitor. Pelo mesmo viés, “dá umas bandas” é uma expressão típica de
diálogos entre sujeitos próximos e, por fim, a marca da hifenização representa, do
20 A simplicidade com relação às crônicas incorrem no sentido como o autor aborda os assuntos, já com relação aos temas, e a inserção de elementos externos ao texto, estes denotam a subjetividade e a sensibilidade de Caio, tornando-as assim, com o caráter de complexidade.
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mesmo modo que nas expressões anteriores, a transcrição da oralidade para
escrita, ratificando com a presença dos hifens, as pausas da fala.
Já com relação ao conceito exposto por Costa (2010) acerca do coloquialismo
elaborado, é possível inferir que, mesmo com as marcas da oralidade, o discurso
proposto por Caio em sua narrativa se assemelha mais a uma conversa cúmplice
com seu leitor do que a uma tentativa de transformar a linguagem em simples
reprodução da fala. Nesse âmbito, a linguagem coloquial exposta através dos
vocábulos grifados reproduz a familiaridade do narrador com leitor, pois a utilização
da oralidade e do coloquialismo elaborado, deve-se à maior aproximação do tema
proposto com a realidade, já que o emprego das expressões, tais como estão
assinaladas, é presença fiel em rodas de conversas.
Além da utilização das estratégias textuais da oralidade e coloquialismo
elaborado, é possível perceber a presença de outro traço na crônica de Caio: o
diálogo que suprime a presença do narrador. Há um rompimento de convenção do
discurso, as falas são marcadas por expressões sem a pontuação correta prevista
pela gramática normativa. Essa premissa fica evidente quando o narrador indaga:
“Acha que tudo é uma questão de pique-e-pá-e-crã, sabe como?”. Ao questionar
“sabe como?”, ele dirige-se diretamente ao leitor, enunciando-o no próprio corpo do
texto e com ele mantém um diálogo aberto. É sob essa ótica que Sá (1999) entende
o coloquialismo, não como a transcrição exata de uma frase ouvida na rua, mas a
elaboração do diálogo entre cronista e leitor, “a partir do qual a aparência simplória
ganha sua dimensão exata.” (p. 11). Os elementos que são necessários para melhor
compreender a crônica e que elucidam a sua aparente sensibilidade se constituem
em externos e internos. Os primeiros estão compreendidos pela inserção social, já
os segundos pelas estratégias textuais. Desse modo, é possível referenciar que
Caio, ao fazer uso da aparente simplicidade, está atribuindo valor semântico e social
as suas crônicas.
A crônica em questão, que conta, a partir das músicas de cantores como Nara
Leão e Nirlando Beirão, a história dos quatro amigos, possui outras marcas que
denotam a presença da linguagem voltada à oralidade e ao coloquialismo elaborado.
As marcas dessas características podem ser comprovadas em trechos da narrativa:
Se Nara Leão, naquele velho disco, também achava – por que não poderia eu também achá-lo? E se o Nirlando Beirão, tão chique, tem um vizinho yuppie – por que não posso ter coisas semelhantes em minha vida de
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retinas fatigadas? E confessá-lo de público – atente na expressão – assim: meus amigos são um barato. Um baratão. (ABREU, 2012, p. 19)
As expressões “tão chique”, “coisa”, “baratão” explicitam outra ideia que está
inerente às crônicas de Caio: a informalidade. Sobre esse signo, Laurito (1993)
afirma que não transforma em fator negativo para que a crônica perca sua essência,
que é estar permeada com o comprometimento social, pelo contrário: “é o talento do
autor que vai dar a estrutura maior a um gênero comumente considerado um modo
menor de ficção.” (p. 27-28). São sob esses aspectos que as crônicas de Caio
podem ser analisadas, através de sua aparente simplicidade, no entanto, seu
engajamento com o social, exatamente como ocorre com a narrativa de “Meus
amigos são um barato”.
No tocante ao engajamento social, é preciso observar alguns aspectos. À
primeira vista, na crônica supracitada, é possível entender que o narrador está
somente nomeando quatro de seus amigos, entretanto, ao expor características
peculiares deles, não somente descreve quem são essas pessoas próximas, mas
sim os atribui outra particularidade da crônica – que também acontece com distintos
gêneros literários: a representação. O primeiro amigo descrito na narrativa é Pedro,
ele é “superfeliz”, mora com seus pais, apesar de ter trinta anos, em um apartamento
de andar inteiro de frente para a praia no Rio de Janeiro. Além disso, Pedro é rico,
mas, como relata o narrador da crônica, “anda sempre de camisetinha zurrapa e
sandália havaiana.” (ABREU, 2012, p. 19) Pedro tem certeza de que um dia todos
irão viver em paz e ser felizes. Já a Kate despreza Pedro, ela é do estilo
supermoderna. Betinho, o terceiro amigo a ser nominado, é “radicalmente o oposto.”
(ABREU, 2012, p. 20) Ele acha que para ascender socialmente é preciso muito
esforço e dedicação, e, por fim, a Joana é a ex, “ex-atriz, ex-cantora, ex-traficante”
(ABREU, 2012, p. 20), está em Florianópolis, vivendo através de meditações.
Com o relato acerca das feições dos quatro amigos, percebemos que existem
diversos segmentos sociais, entre eles: o rico, a supermoderna, o esforçado e
aquela que busca seu arrependimento por suas atitudes na vida através da religião.
No início da crônica, o narrador ainda alerta aos leitores: “qualquer semelhança com
a realidade não é mera coincidência.” (ABREU, 2012, p. 19) Tais referências
permitem inferir a ideia de que Caio, assim como outros cronistas, possui habilidade
que Sá (1999) ressalta, que é de captar com intensidade os sinais da vida, isto é,
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através da representação de quatro amigos, o narrador inclui uma grande parcela de
jovens em sua narrativa. A importância da representação para as crônicas ocorre na
medida em que o leitor passa a se identificar com o objeto narrado. Outro fator que
contribui para realçar o critério da identificação é o meio de difusão das crônicas ser
um jornal. Como Caio escrevia toda semana para O Estado de São Paulo, era
necessário criar uma periodicidade de leitura, assim, para que isso se concretizasse
de forma satisfatória, o narrador impunha estratégias para que o leitor pudesse
continuar a comprar o jornal e ler semanalmente suas crônicas. E nesse sentido é
que a representação está inserida para que os leitores pudessem se identificar com
as crônicas e passassem a comprá-las toda semana.
Voltando aos aspectos das crônicas, no que tange a simplicidade, Sá (1999)
ressalta que ela só é valorizada quando o leitor utiliza o senso crítico para ler, como
ocorre na crônica, em que, ao utilizar atributos da personalidade de cada um dos
amigos, o narrador não o faz com o intuito de ser generalista, em sentido oposto, ele
está transportando os jovens para serem representados, através do relato pessoal
sobre amigos. Ainda sob esse aspecto, a reflexão proposta pela narrativa que tem
como elementos singulares a oralidade e o coloquialismo elaborado incorre na
premissa de Laurito (1993) acerca de não nomear essas particularidades do gênero
como negativas, pelo contrário, elas são utilizadas para aproximar narrador e leitor.
No entanto, mesmo com a simplicidade, oralidade e coloquialismo elaborado, a
construção de raciocínio proposta por Costa (2010), de que as crônicas não
dispensam e nem ignoram os recursos de toda linguagem literária, são
perfeitamente aceitáveis nas crônicas de Caio. No tocante à linguagem literária, ela
pode ser verificada na medida em que apresenta a escrita figurativa e a construção
acerca de personagens, que, mesmo sem espaço de aprofundamento, são
delineados para expor a sua natureza ao leitor. (COSTA, 2010)
Ainda com relação à concepção da linguagem, é oportuno ressaltar que ela
está relacionada à estrutura das crônicas. Nesse sentido, observamos que todas as
crônicas da obra A Vida Gritando nos Cantos possuem narrador em primeira
pessoa, o que equivale a afirmar que os textos em primeira pessoa intensificam um
maior impacto social e acentuam maior envolvimento com a narrativa. Pellegrini
(2008) corrobora essa visão sobre a narrativa em primeira pessoa, afirmando:
Nas narrativas em primeira pessoa, a brutalidade da situação é transmitida pela brutalidade de seu agente (personagem), ao qual se identifica a voz
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narrativa, que assim descarta qualquer interrupção ou contraste crítico entre narrador e matéria narrada. (p. 138-39)
Já com relação às narrativas em terceira pessoa, a estudiosa ressalta que a
identificação do narrador com o personagem acaba por ser impedida por motivos
sociais. Nas palavras da autora:
O desejo de preservar a distância social levava o escritor, malgrado a simpatia literária, a definir sua posição superior, tratando de maneira paternalista a linguagem e os temas do povo. Por isso se encastelava na terceira pessoa. (p. 138-39)
Desse modo, narrar em primeira pessoa é uma forma de intensificar a relação
entre literatura e o meio social, já que o narrador está envolvendo, de maneira
notória, o leitor através de sua narrativa. Os textos de Caio podem ser analisados à
luz da experiência social, além disso, ele utiliza as estratégias textuais para se
aproximar do leitor e do meio em que está inserido. Dentre as estratégias, podemos
ressaltar a linguagem atrelada à humanização, já que, para Candido (1989), as
crônicas possuem essa peculiaridade: “Na sua despretensão, humaniza; e esta
humanização lhe permite, como compensação sorrateira, recuperar com a outra
mão certa profundidade de significado e certo acabamento de forma.” (s./p.) Além
disso, outra forma de aproximar narrador e leitor são a presença do humor e da
ironia que se estabelecem entre as narrativas. Caio está calcado nessa premissa,
por isso na próxima seção reúnem-se exemplos de como essas duas prerrogativas
são recorrentes em sua narrativa.
2.2.3. O humor e a ironia nas crônicas de Caio
Para melhor refletir acerca da presença do humor e da ironia nos textos de
Caio, é preciso manifestar a sua conceituação e a forma com que serão entendidos
nesse estudo. O conceito de ironia começa a se desdobrar com Lukács, na obra A
teoria do romance: um ensaio histórico-filosófico sobre as formas da grande épica. O
estudioso reflete acerca de sua conceituação ser recorrente dos primeiros teóricos
do romance, os estetas do primeiro Romantismo. Sobre esses, o autor cita como
exemplo a obra de Friedrich Schlegal, Kritische Ausgabe de 1967: “Para Friedrich
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Schlegal, por exemplo, entre suas inúmeras definições a ironia é a contínua
alternância entre autocriação e autoaniquilição.” (LUKÁCS, 2000, p. 74)
De acordo com essa primeira conceituação da ironia através do gênero
romance, Silva Filho (2012) ressalta que o conceito se desdobra através de um
movimento duplo: “como exigência normativo-composicional e como radicalização
subjetiva que excede a normatividade.” Isso posto, podemos entender que a ironia
foi se modificando ao longo dos anos. Moisés (2004) acrescenta o seu percurso,
desde a comédia grega, passando pela ironia dramática ou ironia trágica, até chegar
ao conceito moderno em que pauta-se no indeciso contorno dos pensamentos da
palavra, conforme indica o autor:
De modo genérico, e segundo a tradição que remonta a Quintiliano, a ironia consiste em dizer o contrário do que se pensa, mas dando-o a entender. Ou nas palavras do autor da Institutio Oratoria (VIII, 6, 54; IX, 2, 44) a ironia é uma ilusão, envolvendo uma figura e um tropo, por meio da qual entendemos alguma coisa que é o oposto do que realmente foi dito. Estabelece-se um contraste entre o modo de enunciar o pensamento e seu conteúdo. A ironia funciona pois, como um processo de aproximação de dois pensamentos, e situa-se no limite entre duas realidades, e é precisamente a noção de balanço, de sustentação, num limiar estável, a sua característica básica do ponto de vista da estrutura. (MOISÉS, 2004, p. 247)
Pode-se observar, ainda, que a ironia é uma forma de humor, ou
desencadeia-se deste: “acompanhada de um sorriso; o sarcasmo induz ao cômico e
ao riso, quando não a gargalhada.” (MOISÉS, 2004, p. 247) Ademais, para que as
características ressaltadas acerca da ironia se concretizem, ela precisa estar
inserida em um contexto, ao passo que fora dele, o seu efeito torna-se obscuro.
Com vistas à conceituação do humor, que está atrelado à ironia, podemos entender
como um conceito promulgado por Jan Bremmer e Herman Roodenburg (2000) na
obra Uma História Cultural do Humor, é apreendido em seu sentido mais genérico,
isto é, desde a troca de palavras, trotes aos trocadilhos, da farsa à sandice. Nas
palavras dos autores:
Entendemos o humor como qualquer mensagem – expressa por atos, palavras, escritos, imagens ou músicas – cuja intenção é a de provocar o riso ou um sorriso. Esta definição não só nos permite estender as investigações à Antiguidade Média, à Idade Média e ao início do período moderno, mas também fazer perguntas de interesse dos historiadores culturais: como o humor é transmitido e por quem, para quem, onde e quando? (BREMMER, ROODENBURG, 2000, p. 13)
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Por essa linha de raciocínio, os autores entendem que a noção de humor é
relativamente nova. Em seu significado moderno, a primeira vez que foi registrada
ocorreu na Inglaterra em 1962, pois, antes disso, Bremmer e Roodenburg (2000)
afirmam que significava “disposição mental ou temperamento.” (p. 14) Considerando
as distintas concepções acerca da conceituação do riso, os estudiosos reconhecem
a sua difícil conceituação: “até agora foi impossível estabelecer a coerência entre as
várias palavras, conceitos e práticas do riso.” (BREMMER, ROODENBURG, 2000, p.
15). Com vistas ao humor, Barbosa (2010), após descrever os percursos do conceito
desde a Grécia Antiga até a Comédia Clássica, compreendeu que o cômico está
atrelado a fazer rir, enquanto o humorista faz rir e pensar:
Ainda mais: enquanto a comicidade mostra, de diferentes maneiras, as contradições, o humorismo, além de mostrar essas contradições, trata de sentir dialeticamente, ao mesmo tempo, cada um dos elementos dessa contradição, a fim de compreendê-la. Assim, concluímos que o humorismo está relacionado a todos os métodos da comicidade, porém acrescentando um componente crítico. (BARBOSA, 2010, p. 46)
No que tange o humor atrelado ao componente crítico, e a ironia cujo
significado, de acordo com as acepções dos autores supracitados, consiste
basicamente em dizer o contrário daquilo que se pensa, deixando uma distância
entre aquilo que realmente existe e o que se pensa ser verdade, podemos entender
que essa é a forma com que Caio utiliza a ironia e o humor em seus textos. Na
crônica publicada em 31 de outubro de 1993, “Tese de mestrado à Holandesa”, o
narrador descreve os tipos de gays que existem no Brasil. Desde o título, é possível
perceber a presença do humor e da ironia. Em linhas gerais, o narrador relata a sua
experiência ao ajudar um amigo holandês a preparar sua tese de mestrado. Sappe
Grootendorst viveu algum tempo no Brasil, por isso o tema de seu trabalho era
intitulado como “Homossexualismo na Literatura Brasileira”:
Nas noites de inverno de Amsterdã, com os canais cobertos de gelo, eu tentava ajudá-lo a compreender o que, para uma cabeça holandesa, é tão complexo que mais parece título de outra tese: ambiguidade do comportamento sexual brasileiro. (ABREU, 2012, p. 165)
A partir deste excerto em que o narrador traduz a temática do trabalho do
amigo holandês, é possível considerar a perspectiva crítico-social que é abordada
pelo autor sobre como ocorre o comportamento sexual brasileiro. Para explicar essa
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ambiguidade, Caio aponta a literatura: [a ambiguidade] “ultrapassa a literatura, mas,
naturalmente, tem reflexos nela. Tanto que uma das maiores personagens da nossa
literatura (a/o Diadorim de Guimarães Rosa, em Grande Sertão) é um travesti.”
(ABREU, 2012, p. 165) A ambiguidade citada pelo autor aparece em “o/a”, seria o
Diadorim ou a Diadorim? Sob essa perspectiva, o escritor, para ajudar seu amigo,
subdivide os gays brasileiros em quatro tipos básicos. O contexto em que os
homossexuais são representados nesse primeiro momento da crônica assemelha-se
não a um grupo de pessoas, mas sim a objetos, que são relacionados ironicamente
a (sub)divisões. Nessa esteira, Alvarece (2009) explicita a sua construção de
raciocínio acerca da ironia. Para a autora, o conceito pode ser melhor entendido
através de um exemplo:
A frase “Sorria você está sendo filmado”, encontrada há alguns anos em inúmeros centros comerciais espalhados por todo Brasil. Na verdade, deparando com esse enunciado, somos convidados não a esboçar um sorriso, como se sugere literalmente, mas, sim, somos avisados de que estamos submetidos a uma câmera e, sendo assim, caso ajamos ilicitamente, seremos identificados. Esse é, pois, um caso em que a ironia se faz presente no cotidiano, sem oferecer dificuldades maiores de interpretação. (ALVARECE, 2009, p. 24)
O exemplo de Alvarece (2009) acerca de como a ironia pode ser
compreendida em uma situação simples do cotidiano, que está deixando uma
distância entre aquilo que realmente existe e o que se pensa em ser verdade,
também pode ser inserida na crônica de Caio. Ao mencionar que os gays foram
postos em classes diferentes, o narrador está indicando, de forma irônica, que eles
são vistos em sua forma geral e não através de peculiaridades que lhes são únicas.
Nessa perspectiva, Miskolci (2009) apresenta o conceito de heteronormatividade,
como pressuposto de algo que é fundamento da sociedade:
A heteronormatividade expressa as expectativas, as demandas e as obrigações sociais que derivam do pressuposto da heterossexualidade como natural e, portanto, fundamento da sociedade (CHAMBERS, 2003; COHEN, 2005, p.24) Muito mais do que o aperçu de que a heterossexualidade é compulsória, a heteronormatividade é um conjunto de prescrições que fundamenta processos sociais de regulação e controle, até mesmo aqueles que não se relacionam com pessoas do sexo oposto. Assim, ela não se refere apenas aos sujeitos legítimos e normalizados, mas é uma denominação contemporânea para o dispositivo histórico da sexualidade que evidencia seu objetivo: formar todos para serem heterossexuais ou organizarem suas vidas a partir do modelo supostamente coerente, superior e “natural” da heterossexualidade. (MISKOLCI, 2009, p. 156-157)
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Através do conceito de heteronormatividade, em que a sociedade se
determina a moldar os sujeitos para escolherem pessoas de sexo oposto para se
relacionar, é imperioso considerar que essa é a representação que o narrador está
determinando ao subdividir os gays em grupos. O narrador então explica quais as
características que fazem um gay ser uma Jacira. Essas, de acordo com a sua
divisão, são aquelas que todo mundo sabe que ela é, e ela mesma não se dá o
trabalho de esconder que é mesmo. “Ao contrário, até gosta de exibir isso chamando
atenção em público com gritinhos e gestos afeminados. O que talvez seja uma
grande esperteza, pois a Jacira sabe também que, em sua hipocrisia, o Brasil aceita,
aprova e até aplaude a caricatura.” (ABREU, 2012, p. 165)
Já a Irma é mais complexa:
a Irma é aquela que todos acham que ela é (dá a maior pinta), menos ela mesma. Frequentemente Irmas são casadas, ou têm noivas e namoradas, às vezes até filhos. Gente maldosa costuma chamá-las de “bichas com álibi”, mas a verdade é que, em se tratando de uma Irma, ninguém poderá provar jamais absolutamente nada.... (ABREU, 2012, p. 165)
A terceira, intitulada como Telma é parecida com Irma, nega de pés juntos a
sua opção sexual. Mas, ao contrário da primeira, Telma não “dá pinta.” (ABREU,
2012, p. 165) O problema, segundo Caio, “é que, depois do terceiro uísque, Telmas
fazem coisas que deixariam até uma Jacira ruborizada. E na manhã seguinte, lógico,
não lembram de nada.” (ABREU, 2012, p. 165) Telma ainda possui outra
característica, leva a vida duplamente: “uma, contidíssima, como Telma
propriamente dita; outra quando sai fora de si, como a mais louca das Jaciras.”
(ABREU, 2012, p. 165) Ao contrário das três, a última, Irene, faz o estilo mais
equilibrada, sensata: “Como não esconde nada, também não precisa se preocupar
em ser ou não descoberta. Em geral é culta, viajada, analisada. De todas as formas,
procura o equilíbrio, aceita seus desejos e até milita pela causa.” (ABREU, 2012, p.
166)
De acordo com a construção de raciocínio proposta por Caio acerca dos
quatro “tipos” de gays que a sociedade brasileira possui, é possível afirmar que, de
forma totalmente irônica, isto é, deixando uma distância entre aquilo que realmente
existe e o que se pensa ser verdade, a reflexão do autor pauta-se em uma exclusão
social deste grupo. Todas elas se relacionam a “dar pinta”, a observar o que os
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outros pensam, tentar fingir em ser o que não são. Mesmo a Irene, que é a mais
equilibrada, está preocupada com a posição social que a sua opção sexual irá lhe
trazer e milita pela causa. E, se isso ocorre, é porque ela está ciente dos tipos de
exclusões que a sua opção lhe traz. Camargo (2010) explicita uma reflexão sobre o
preconceito, de acordo com o autor, este é geralmente expresso por meio de
ofensas que ferem os outros, “como, por exemplo, classificar, nomear um
homossexual de ‘bicha’, de ‘viado’, de ‘gay’ ou de ‘mulherzinha’, entre outros
adjetivos pejorativos, que denigrem a imagem e a identidade sociocultural de um
determinado grupo ou indivíduo.” (CAMARGO, 2010, p. 04)
Se fossem aceitas as premissas de que o narrador não estaria sendo irônico
nesta crônica, a narrativa pautar-se-ia numa imagem de que ser gay é estar
afrontando uma sociedade que é sedimentada em valores arcaicos, uma cultura
conservadora e calcada na heteronormatividade. No entanto, Dip (2009) explica qual
foi a intenção do narrador ao criar estes gêneros:
Não contente com essa quantidade de gírias, Caio ainda inventava outras, hilárias, no seu típico humor gay, ou queer, que vinha com a liberação sexual em todos os cantos do mundo. (...) assim ele cria uma lenda de que quatro irmãs seriam os protótipos definitivos do gay masculino. (p. 70)
A autora da biografia de Caio continua relatando que ele gostava de criar
expressões: “ele vivia criando ou adotando expressões que se encaixavam em seu
léxico desbocado.” (DIP, 2009, p. 70) O escritor gaúcho criava esses termos que só
seus amigos entendiam, e Dip (2009) cita outros exemplos:
com o tempo essas criações caíram na boca de toda uma geração, tais como: saia justa, para definir uma situação difícil; lasanha para homem gostoso; rodenir, que significa aborrecido; naja, que é pessoa venenosa; a Betty Faria e o Reginaldo (Farias) para se referir a um homem bonito e que ele adoraria transar; laika, a cadela russa que foi para o espaço, que significava pobrezinha, coitada; bambi, que queria dizer suave, aviadado; bagaceira, gíria gaúcha que ele trouxe para São Paulo e que significava de baixo nível; bolacha; nome meio para sapatão; do bem, para definir uma pessoa ou coisa legal (antônimo: do mal)... (DIP, 2009, p. 71)
No tocante às divisões propostas por Caio na crônica, os quatro tipos, que
foram intitulados com nomes femininos, apresentam alguns elementos em sua forma
de representação. A Jacira, “chama atenção com gritinhos e gestos afeminados.” Os
“gritinhos” e “gestos afeminados” a que o autor se refere são relacionados a pessoas
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que têm interesses sexuais por outras do mesmo sexo. Sobre a Irma, Caio
menciona que todos acham que ela é, mas “não dá pinta”, e ainda chama-a de
“bicha álibi”, a relação entre não dar pinta e os gritinhos afeminados é direta. Não
dar pinta significa que a Irma não tem esses gritinhos (no sentido diminutivo para
indicar que se assemelham a um tom fino, mais aproximado com a voz feminina). Já
“bicha álibi” é um termo ofensivo para chamar os homossexuais, e, de acordo com o
Dicionário Aurélio, há vinte e duas significações para este termo, dentre elas,
“relativo à homossexualidade masculina, que tem determinadas características que
se atribuem à homossexualidade masculina.” (FERREIRA, 1988, p. 214)
Com relação a Telma e Irene, a primeira nega sua opção sexual, entretanto,
após estar sob efeito de bebidas com teor alcoólico, “ela se revela”, e, por fim, a
Irene não se preocupa em ser descoberta, pois até mesmo ela milita em favor dos
homossexuais. Mesmo que de forma indireta, as duas últimas apresentam
conotações pejorativas, haja vista que a primeira precisa de bebidas alcoólicas para
se revelar e a segunda participa de manifestações, o que nos permite inferir que elas
“obedecem” à sociedade que não aceita pessoas que fogem da regra quanto à
sexualidade.
Outra reflexão acerca da crônica são os nomes que o autor escolheu para
intitular os quatros tipos de gays. Jacira, Irma, Telma e Irene se relacionam ao
gênero feminino, mas por que, se o substantivo “gay” está relacionado ao
masculino? No que tange ao assunto em questão, Alós (2010) acentua o fato de
poder haver a separação entre gênero e sexualidade:
O Gênero e sexualidade, embora categorias distintas, não devem ser completamente desarticuladas, visto que se corre o risco do completo apagamento das relações de poder estabelecidas sob o signo da diferença de gênero. Se por um lado gays e lésbicas sofrem os efeitos do discurso heteronormativo, por outro a pertença ao gênero feminino transforma radicalmente a experiência das lésbicas, diferenciando assim a socialização e, consequentemente, a textualização dos significantes ‘gay’ e ‘lésbica’ na literatura. (p. 857)
Além da presença de nomes femininos para denotar os gays, o narrador
argumenta em sua crônica que nem mesmo elas se aceitam:
Os quatro tipos têm relações conflituosas. Só as Irmas, muito tolerantes, parecem aceitar as outras três. As Jaciras, por exemplo, super-radicais, acham que Irmas e principalmente Telmas não passam de “umas enrustidas”, enquanto as Irenes para elas são “umas falsas”. Já as Telmas,
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quando sóbrias, detestam Jaciras, demasiado explícitas, mas admiram a discrição das Irmas e desconfiam das Irenes. Estas, democráticas, tentam aceitar a todas, mas têm o irritante hábito de recomendar psicanálise às Irmas e Telmas, e consideram as Jaciras “umas folclóricas”. (ABREU, 2012, p. 166)
Na medida em que o narrador demonstra a relação conflituosa que existe
entre esse grupo, está afirmando o seu engajamento contra o preconceito existente
na sociedade. A forma irônica de tratar o assunto torna-se premeditada para
demonstrar que indivíduos são excluídos por uma opção que lhes é pessoal. A
exclusão, nesse caso, pode ser entendida de acordo com a reflexão proposta por
Porto (2000), como uma categoria na qual os atores sociais vivenciam essa prática
decorrente “de processos sociais fragmentados, diferenciados e plurais.”
A exclusão dessa minoria é acentuada através dos relatos do narrador no
restante da crônica:
Quando passei a relação para Karvin Von Schweder-Schreiner, a tradutora alemã de Rubem Fonseca, ela não só me garantiu que as quatro categorias eram internacionais, como imediatamente localizou uma quinta – a Renata. Que é aquela que, como a Irma, também tem um álibi, mas em lugares públicos sempre dá um jeitinho de ir a banheiros dos homens, onde presta muita, muita atenção. Pedro Paulo de Sena Madureira também localizou outra – a Ondina. Aquela que, ao entrar num ambiente mais descontraído (sauna, bar, discoteca, por exemplo), instintivamente começa a ondular feito uma Jacira. (ABREU, 2012, p. 166)
Fica evidente o olhar do narrador sobre as divisões e o seu posicionamento
quanto a esse grupo de minorias. O narrador termina a crônica, contando que seu
amigo Sappe, através dessa divisão, não somente entendeu como são os gays
brasileiros, que até mesmo os identifica: “Irmas e Telmas no metrô. Jacira era mais
difícil: ela é mais comum nos trópicos, mas não se dá bem com a severidade
europeia e precisa de calor para soltar toda sua jacirice.” (ABREU, 2012, p. 165) O
contexto a que a ironia está relacionada na crônica fica ainda mais claro quando o
autor menciona a tese de seu amigo, “quanto à tese – bem, por carta Sappe me
informa que está pronta. Chama-se, juro, ‘Literatura Bambi no Brasil’.” (ABREU,
2012, p. 165) “Bambi”, de acordo com a afirmação de Dip (2009) foi outra expressão
criada por Caio, cunhada no humor, o que acentua uma perspectiva da crônica de,
ao mesmo tempo, usar a comicidade para fazer alusão à comunidade homossexual
através da expressão “Bambi” e também de sinalizar uma crítica social ao apontar
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que os gays são sujeitos “guetificados”, excluídos socialmente e cujos rótulos são
percebidos através Jacyras, Telmas, Irmas e Irenes.
Esse traço, ao mesmo tempo cômico e crítico de “Tese de mestrado à
holandesa”, permite compreender que a crônica de Caio serve-se do humor segundo
a perspectiva de Barbosa (2010). Além deste, a crônica do autor apresenta outros
traços, como, a subjetividade e a alusão a elementos externos ao texto. Sobre essas
prerrogativas que a próxima seção irá tratar.
2.2.4. A subjetividade e o trabalho de citação nas crônicas
O tom íntimo e coloquial utilizado por Caio nas crônicas é uma de suas
marcas na escrita desse gênero. Contudo, há também várias referências a autores e
obras que sinalizam um intenso trabalho de citação nas crônicas do escritor. Nesse
contexto, o leitor possui uma importante tarefa: estar preparado para a compreensão
dos elementos externos ao texto que são citados pelo autor. Acerca destes
elementos externos, entendemos que Caio utiliza em suas narrativas o que Antoine
Compagnon, na obra O trabalho da citação, compreende como citação.
Para o estudioso, a citação pode ser comparada ao processo arcaico e lúdico
de recortar e colar, do mesmo modo que essa brincadeira é feita, o escritor utiliza os
elementos que “recorta” em seus textos. É nesse sentido que o autor afirma: “a
citação trabalha o texto, o texto trabalha a citação.” (COMPAGNON, 2007, p. 46)
Além disso, o contexto também deve ser analisado nesse processo: “A citação não
tem sentido em si, porque ela só se realiza em um trabalho, que a desloca e que a
faz agir.” (COMPAGNON, 2007, p. 47) Com vistas à perspectiva segundo a qual
ocorre um cruzamento de vozes na construção literária, o diálogo incorre na medida
em que a obra e a sociedade fazem parte dessa ótica, justamente o que pode ser
verificado em Caio. O autor utiliza elementos de citação em seu texto que estão
inseridos sob o viés de um contexto externo, que precisa ser compreendido pelo
leitor.
Por esse processo de compreensão, Compagnon (2007) entende que há
quatro figuras distintas para o processo de leitura: ablação, grifo, acomodação e
solicitação. A primeira estaria relacionada a extrair uma parte importante do texto, o
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grifo é um processo que coloca marcas ao texto, conforme relata o estudioso: “o
grifo na leitura é a prova preliminar da citação (e da escrita), uma localização visual,
material que institui o direito do meu olhar sobre o texto. Tal como o reconhecimento
militar o grifo coloca marcas.” (COMPAGNON, 2007, p. 19) No tocante à
acomodação, o autor a transpõe para um lugar de reconhecimento, já que se refere
a uma marca de leitura:
Dentre as numerosas definições em torno da citação, proporemos esta: a citação é um lugar de acomodação previamente situado no texto. Ela integra em um conjunto ou em uma rede de textos, em uma tipologia das competências requeridas para a leitura; ela é reconhecida e não compreendida, ou reconhecida antes de ser compreendida. (COMPAGNON, 2007, p. 22)
Após retirar a parte importante do texto, grifar e marcar, a solicitação é
compreendida como o retalhamento das narrativas. O autor explica:
Ela [solicitação] limitar-se-ia ao namoro, deixaria de excitar, de retalhar o texto. Seria, sem dúvida, uma interpretação, assim como uma única leitura concebível da enunciação. A solicitação é o correspondente, em leitura, da enunciação, um acomodamento, uma conciliação do enunciado. E as marcas da solicitação no texto são as excitações, os grifos, os desmembramentos: sinais sempre aproximativos e insatisfatórios, mas presunções de uma verdade que foi, instantaneamente, a da minha leitura. (COMPAGNON, 2007, p. 26)
Com vistas à aproximação que esses quatro processos possuem,
Compagnon (2007) elucida que não necessariamente se sucedem, mas sim podem
realizar-se uns nos outros:
Todavia, há entre elas uma degradação latente, uma ordem teórica, inversa daquela em que foram descritas e que, partindo da mutilação, penetrava até o intratável da paixão pela leitura, onde se perdia. Elas partem do objeto total em que é para mim o texto que me encanta na solicitação, passam pela acomodação num lugar reconhecido de satisfação, pelo grifo que aprisiona esse lugar, e alcançam o objeto parcial que destaco do texto na ablação. Trata-se através desses quatro momentos, de uma aproximação cada vez mais fina, de um quadriculado estratégico. Mas esse não tem nada a ver com a significação. (COMPAGNON, 2007, p. 27)
Por significação o autor compreende como sendo o quinto processo a que a
leitura está relacionada: “Eu recorro ao sentindo como a um último recurso, agarro-
me a ele por não poder encontrar a paixão, na ilusão desesperada de que um
esforço sobre a significação prender-me-ia ao texto, que pela solicitação, não me
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prendeu.” (COMPAGNON, 2007, p. 28) A solicitação, nesse contexto, faz parte ao
valor que é atribuído ao texto. E após a ela, o estudioso cita a excitação visto que
destaca o sentido da solicitação. Na esteira entre a solicitação e a excitação,
encontra-se a citação. Compagnon (2007) esclarece que a citação,
Está no princípio de toda leitura, pelo menos daquela que, impotente, prende-se exclusivamente à significação. A citação tenta reproduzir na escrita uma paixão pela leitura, reencontrar a fulguração instantânea da solicitação, pois é a leitura, solicitadora e excitante, que produz a citação. A citação repete, faz com que a leitura ressoe na escrita: é que, na verdade, leitura e escrita são a mesma coisa, a prática do texto que é prática do papel. A citação é a forma original de todas as práticas do papel, o recortar-colar, e é um jogo de criança. (COMPAGNON, 2007, p. 29)
O estudioso distingue várias “modalidades” de citação e defende a ideia de
que estas por si só, são provocativas para o leitor, oferecem pistas de como realizar
a leitura: “Ela marca um encontro, convida para leitura, solicita, provoca como uma
psicadela: é sempre a perspectiva do olho que se acomoda, do olho que se supõe
na linha de fuga da perspectiva.” (COMPAGNON, 2007, p. 23) Com efeito, quando o
autor cita, os leitores são levados a outros lugares, ampliando, assim, a visão de
leitura acerca das obras. Além disso, o autor destaca ser necessário não apenas
identificar o trabalho de citação em um texto, mas especialmente identificar o sentido
que essa citação confere ao texto escrito.
Conforme o viés apresentado acerca do conceito de citação, é possível inferir
que o leitor precisa compreender que os elementos externos aos textos auxiliam na
melhor compreensão das obras. Nesse sentido, Compagnon (2007) destaca que o
trabalho de citação no ato de leitura exige uma competência leitora:
A citação é um operador trivial de intertextualidade. Ela apela para a competência do leitor, estimula a máquina da leitura, que deve produzir no trabalho, já que, numa citação, se fazem presente dois textos cuja relação não é de equivalência, nem de redundância. Mas esse trabalho depende um fenômeno imanente ao sentido conduzindo a leitura, porque há um desvio, ativação de sentido: um furo, uma diferença de potencial, um curto-circuito. O fenômeno é a diferença, o sentido é a sua resolução. (COMPAGNON, 2007, p. 58-59)
Por esse prisma, somente um leitor preparado entenderá o processo de
citação, assim, a figura do leitor passa a ser considerada como destaque. O
estudioso Umberto Eco parte da premissa de que o processo interpretativo se
compõe de uma tríade que é formada entre autor-texto-leitor. Nessa esteira, será o
85
leitor quem deverá fazer um recorte sobre as estratégias textuais que o autor coloca
em seus textos. Assim, o leitor, chamado de ideal/modelo, vê a necessidade do
reconhecimento de sua interpretação como elemento importante para fazer uma boa
leitura.
Tais perspectivas estão atreladas nas crônicas de Caio em diferentes formas:
em “Beta, beta, Bethânia”, por exemplo, sem o conhecimento prévio das citações,
não é possível compreender a mensagem do narrador. Nesta crônica, que foi
publicada em 11 de fevereiro de 1987, o narrador explicita a sua afinidade com
relação às músicas de Maria Bethânia. Podemos apontar a presença dos elementos
externos ao texto através do fragmento:
Os muito darks que me perdoem, mas Maria Bethânia é fundamental. Sei, vocês vão dizer que ela é brega, careta, exagerada, melodramática. Pode ser. Mas essa coisa chamada vida, onde estamos metidos até o pescoço, às vezes também não é brega, careta, melodramática? A vida é mais Nelson Rodrigues ou mais Clarice Lispector? Mais Augusto dos Anjos ou Emily Dickinson? Fassbinder ou Jacques Demy? Philip Glass ou Dead Kennedys? Mias Sex Pistols ou mais Cecília Meireles? Bukowsi ou Bergman? (ABREU, 2012, p. 78)
A primeira frase desse excerto apresenta uma alusão a um dos versos da
poesia, Receita de Mulher, de Vinicius de Moraes, quando este poeta declara que
“as feias que me perdoem, mas beleza é fundamental”. A citação indireta desse
verso na crônica de Caio se manifesta em dois níveis: o primeiro é linguístico, já que
a sintaxe do texto original é mantida; e o segundo é conteudístico, pois, assim como
o sujeito-lírico de Moraes defende a beleza mesmo sabendo da existência de
mulheres feias, o narrador da crônica de Caio defende a música de Maria Bethânia
mesmo sabendo que um tipo especial de público, os darks, não se identificam com o
estilo musical da cantora. Esse reconhecimento da citação só é possível na medida
em que o leitor da crônica de Caio mobiliza seu conhecimento prévio e se propõe a
refletir sobre o sentido que tal citação acarreta ao texto.
Além disso, é possível destacar que, na medida em que o narrador cita desde
cantores até escritores, eles possuem um sentido para estar em seu texto, isto é,
estão atrelados a diferentes momentos de sua vida. Essa premissa pode ser
verificada no trecho:
Tudo isso, sim, e muito mais. O engarrafamento às seis da tarde de uma sexta-feira de chuva, na marginal do Tietê, pode ser uma emoção-Titãs (tipo
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“Bichos escrotos”). Transar com a garota prostituta da rua Augusta, de minissaia de couro e correntinha no tornozelo, pode ser uma emoção-Dalton Trevisan. Dar um espirro bem na hora de dizer eu-te-amo pode ser uma emoção-Woody Allen. Assim por diante, cada coisa sendo por cada um é tão particular que, mesmo lugar-comum ou já cantado em prosa e verso, é para sempre também único. Infinitiva e indivizivelmente subjetivo. (ABREU, 2012, p. 78)
O fragmento viabiliza um primeiro conjunto de observações. Um primeiro
ponto diz respeito à forma com que Compagnon (2007) reconhece as citações. Para
o estudioso, a citação por excelência é a epígrafe, e, além desta, há a citação por
aspas e a bibliografia. A recorrência das citações na narrativa de Caio se dá com a
utilização da bibliografia e das aspas, e um exemplo de como incorre o emprego da
primeira é a menção do fragmento supracitado que remete as músicas e cantores. O
crítico explica esse recurso da seguinte forma:
Assim como uma cidade (mais urbana que celeste: uma pessoal moral), o texto é cercado por todos os lados. Ao pé da muralha, um fosso reduplica e acentua a fronteira; ele é sinalizado com postes e marcos; barreiras policiais vigiam as entradas: são as referências exibidas, as notas de rodapé – foot-notes, em inglês. A todo instante elas trazem à lembrança aquilo sobre o que o texto se apoia, muletas ou estacas, aduelas: o texto é uma ponte lançada no vazio, do que tem horror; ele teme a queda. Entre seus pilares, [estão] a epígrafe e a bibliografia. (COMPAGNON, 2007, p. 124)
Por essas vias, entendemos a bibliografia – como a metáfora utilizada pelo
estudioso – o pé de uma montanha que é sinalizado por postes e marcos, então
esses seriam os elementos externos, que se incorporam ao texto, proporcionando a
sua sustentação, exatamente como a inclusão da bibliografia na narrativa de Caio é
utilizada. Nesse sentido, a referência à música dos Titãs, na crônica “Beta, beta,
Bethânia”, configura-se como uma bibliografia, isto é, um elemento externo que é
citado ao texto. Para que o leitor entenda o que está sendo exposto pelo narrador,
ele precisa ter conhecimento que a música “Bichos escrotos” do Titãs fala sobre
baratas, ratos e lixos. Além disso, é preciso saber que a marginal Tietê é uma
avenida da cidade de São Paulo que passa ao lado do rio Tietê. Este rio tornou-se
conhecido em todo país pelas constantes divulgações na mídia acerca de sua
poluição e sujeira. Por isso, o narrador, ao citar a música, está fazendo menção de
que, em dias de chuva, a sujeira se intensifica e, nesse ambiente de sujeira,
putrefação e decomposição de matéria-orgânica, todos decorrentes dos resíduos,
acarretam ainda mais um ambiente favorável para a proliferação de animais, que se
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utilizam dos entulhos que se formam nos rios para construir seu habitat. Outros
elementos externos ao texto são citados através da presença de Dalton Trevisan e
Woody Allen. Sobre o primeiro, Soerense et al (2012), afirmam:
Dalton Trevisan é um dos maiores contistas brasileiros. O autor utiliza o conto, que faz parte do gênero de narrar, para trazer à tona a reflexão sobre o cotidiano. É uma sequência de fatos corriqueiros que se caracteriza pela presença de ações, pela ocorrência de personagens prosaicas e por se referir a acontecimentos ordenados, na maioria das vezes, cronologicamente. (p. 207)
Ao reconhecer acerca do que as autoras explanam sobre Dalton Trevisan, é
possível verificar qual a interação entre a citação do narrador, quando diz “transar
com a garota prostituta da rua Augusta, de minissaia de couro e correntinha no
tornozelo, pode ser uma emoção-Dalton Trevisan” (ABREU, 2012, p. 78). O narrador
está referindo às temáticas utilizadas pelo autor paranaense, já que este se dedica
ao fazer literário sem concessões às distrações da vida pessoal e social e, nesse
sentido, podemos afirmar que, sem o conhecimento prévio acerca das temáticas
utilizadas por Trevisan, não seria possível compreender a citação do narrador. Em
sentido análogo ocorre a referência a Woody Allen, que é o nome artístico de Allan
Stewart Königsberg, um cineasta, roteirista, escritor, ator e músico estadunidense,
que no excerto é relacionado pelo narrador a sua forma de fazer cinema.
Ainda nesse aspecto, é possível inferir que os elementos supracitados, que
são encontrados no texto de Caio, estão relacionados ao processo produtivo do
escritor. Esse trabalho da escrita realizado pelo narrador pode ser melhor
compreendido com base na explicação de Compagnon (2007):
O trabalho da escrita é uma reescrita já que se trata de converter elementos separados e descontínuos em um todo contínuo e coerente, de juntá-los, de compreendê-los (de tomá-los juntos), isto é, de lê-los: não é sempre assim? Reescrever, reproduzir um texto a partir de suas iscas, é organizá-las ou associá-las, fazer as ligações ou transcrições que se impõem entre os elementos postos em presença um do outro: toda escrita é colagem e glosa, citação e comentário. (p. 39)
Nesse sentido, o estudioso afirma que escrever é sempre um ato de re-
escrever, visto que, os elementos externos ao texto – as citações – diluem-se em
meio as ideias de quem está nesse ato de escrita, construindo assim, um novo texto
que mescla essas diferentes alusões. Voltando a crônica, além deste trabalho de
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recriação por parte do narrador, identificamos outros signos: a melancolia,
subjetividade e introspecção, todos eles ligados à citação tanto da música
(referenciada na crônica por Titãs), Literatura (Dalton Trevisan) e cinema (Woody
Allen):
Darks, pós-modernos, minimalistas, gliters, apocalípticos, concretistas, skinheads, me perdoem. Na noite de sábado, caminhando sozinho pela avenida Paulista, o quarto-crescente brilhando sobre a torre da TV Globo, uma vontade desesperada de ter alguém – as únicas canções que me vieram à mente para cantar baixinho foram canções de Bethânia. Doía fundo estar perdido na grande cidade, era completamente sem remédio ser só uma pessoazinha machucada. Mas brotou então um orgulho tão grande de ser ainda capaz de sentir o coração cheio de emoções-Bethânia que era quase como uma felicidade. Sangrada, do avesso – que importa? Era real, era vivo. Isso é muito, e Bethânia canta. (ABREU, 2012, p. 79)
O narrador novamente faz menção ao excerto de Vinícius de Moraes, Receita
de Mulher, ao afirmar que os “Darks, pós-modernos, minimalistas, gliters,
apocalípticos, concretistas, skinheads, me perdoem”. (ABREU, 2012, p. 79) Nesse
sentido, o leitor precisa estar preparado para entender o trabalho desta citação. À
medida que o narrador cita esses grupos sociais, está fazendo menção que nenhum
destes tem preferência musical por Maria Bethânia, e esse é um dos motivos pelos
quais está se desculpando e já os avisa que irá cantar. Nessa esteira, o leitor
precisa também ter conhecimento prévio sobre Maria Bethânia, isso porque é
através do seu estilo musical - mais romântico e introspectivo - que o narrador se
utiliza para preencher a sua “quase felicidade”, e denotar seu estado de espírito.
Já em outras crônicas, como a “Por falar em estrelas”, publicada em 14 de
agosto de 1986, a figura do leitor também não é de passividade com relação à
interpretação dos intertextos, contudo, o narrador deixa essas citações de forma
clara, o que corrobora para que o contexto não tenha tanta relevância, quanto na
crônica anterior. A narrativa da crônica citada, de forma geral fala sobre a paixão do
narrador pela astrologia. Para confirmar que é uma ciência séria, ele cita algumas
fontes, como por exemplo:
O que seria, então? Bom, se a astrologia fosse pura idiotice, você acha que Fernando Pessoa teria sido astrólogo? Aliás, a chave – ou uma das – para a compreensão de seus heterônimos está justamente nos mapas astrais que o danado levantou dos próprios. Para quem entende do negócio, faz muito sentido saber que Ricardo Reis tinha Mercúrio, Urano, Lua e Júpiter na casa 8 – a casa das transformações, da transcendência. Ainda nessa linha: Anais Nin, escritora brilhante, também era astróloga (e psicóloga). E Milan Kundera, veja só, é outro. (ABREU, 2012, p. 39)
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Como podemos perceber, a presença de elementos externos torna-se como
na primeira crônica, evidente. No entanto, os escritores/astrólogos, Fernando
Pessoa, Anais Nin e Milan Kundera não implicam a determinação da interpretação
do leitor acerca da crônica. Mesmo sem conhecer as suas biografias, o leitor tem
informações no texto de Caio para que eles sejam reconhecidos e entendidos.
Esses aspectos podem ser melhor explorados, com o excerto da narrativa em
que o narrador explica a diferença entre astrologia e horóscopo de jornal:
O problema é que as pessoas confundem astrologia com horóscopo de jornal. E não há nada mais pessoal que uma mapa astral, o retrato do céu no momento em que nascemos. O horóscopo de jornal considera apenas a posição em que estava o Sol, ou o ascendente (a constelação do Zodíaco que subia no horizonte no momento do nascimento) e isso é vago demais. Em certos casos – como no horóscopo do Caderno 2, o de Hollander, na Folha, ou o de Pedro Tornaghi, no Around – as informações mais sérias. E mesmo assim, vagas. Para fazer uma previsão astrológica, é preciso considerar trânsitos, progressões, revoluções, direções. (ABREU, 2012, p. 39)
Mesmo sem ter o conhecimento prévio do Caderno 2, Hollander ou de Pedro
Tornaghi do Around, o leitor pode entender que o narrador está citando elementos
externos ao texto para explicar a diferença entre um horóscopo e o zodíaco. Além
desse tipo de citação - a bibliográfica - nesta crônica há a ocorrência da utilização
das aspas:
E para quem quiser ficar atento, deixo de saideira este trecho (citado de memória) de Doris Lessing, em Shikasta: “Todos nós fazemos parte das estrelas. Elas nos fazem, nós as fazemos. Somos parte de uma estranha coreografia da qual nunca, de maneira alguma, podemos pensar em nos separar.” (ABREU, 2012, p. 40)
Com a utilização das aspas, o narrador está mencionando de forma direta um
elemento estranho ao seu texto, esse elemento é a citação por aspas. Compagnon
(2007) a define como:
O que as aspas dizem é que a palavra dada a um outro, que o autor renuncia a enunciação em benefício de um outro, as aspas designam uma re-enunciação, ou uma renúncia a um direito de autor. Elas operam uma sutil divisão entre os sujeitos e assinalam lugar em que a silhueta do sujeito da citação se mostra em retirada, como uma sombra chinesa. (p. 52)
Desse modo, citando, o narrador faz com que um extratexto interfira na
escrita, perfazendo uma nova enunciação que se mistura a ideia de outrem às
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explicações do novo texto, conduzindo assim o leitor a um mundo mais extenso.
Com esteio nas ideias apresentadas, é oportuno ressaltar que, mesmo com as
diferenças que foram expostas, as crônicas possuem uma coordenada em comum: o
leitor é figura ativa. Através das narrativas pode-se refletir sobre o Leitor-Modelo que
Caio espera de seus textos. Com base em seu estilo de linguagem e a forma com
que conduz suas narrativas, podemos inferir que o Leitor-Modelo21 de Caio deve ter
conhecimentos sobre elementos que contenham significação fora de seus textos.
Nesse contexto, o narrador precisa da colaboração do leitor, no sentido, do primeiro
deixar pistas para serem apreendidas, o que estiver implícito precisa ficar claro para
o leitor. Por exemplo, quando lemos, “o filho de dona Matilde tornou-se médico”, o
que está implícito, que o autor deixa pistas para o leitor, é que dona Matilde é a mãe,
e que o filho dela é um homem, um ser vivo, que respira, etc. Nessa perspectiva de
leitura, podemos entender que Eco volta-se para a reflexão de que ler vai além da
perspectiva de compreender o que o texto diz, mas sim ler é observar as
implicaturas, aquilo que não está dito no texto: “O trabalho do leitor é duplo: ao
mesmo tempo que deve expandir certos termos, deve reduzir outros: amplia
algumas propriedades, ao mesmo tempo que mantém outras sob narcose.” (ECO,
1979, p. 91)
Nessa esteira, percebemos que a atribuição de sentido a um texto ocorre na
medida em que as hipóteses interpretativas são realizadas pelo Leitor-modelo. Esse
leitor pode até não existir, mas o autor, de acordo com Eco, precisa trabalhar seu
texto para construí-lo. Por si, o texto é visto como um sistema isolado, enquanto não
estiver inserido, correlacionado a um objeto, perderá o sentido. Mesmo com a
utilização de um dicionário para identificar o significado das palavras, não
solucionará a questão, pois sempre há propriedades semânticas que permanecem
implícitas. Outro fator que contribui para essas características citadas pelo autor é
que a comunicação de um texto não ocorre frente a frente entre leitor e autor, de
forma a obter perguntas/respostas, e, com vistas a isso, é que o leitor precisa
cooperar: “O texto é um produto cujo destino interpretativo deve fazer parte do
próprio mecanismo gerativo.” (ECO, 1979, p. 39)
21 Expressão que foi idealizada por Umberto Eco. O estudioso, em sua obra, “Lector de uma Fábula” admite que ao produzir um texto, o autor imagina como o leitor irá definir suas prerrogativas, contudo, ele não sabe ao certo como será interpretado, de como será esse leitor. E é neste contexto de produção e recepção que Eco cria a concepção de Leitor-Modelo.
91
Por interpretação, Eco (1979) entende que a sua noção, “sempre envolve
uma dialética entre estratégia do autor e resposta do Leitor-Modelo.” (p. 43) O autor
advoga ainda que a interpretação pressupõe um recorte, que são determinadas
pelas estratégias textuais entre autor, texto e Leitor-Modelo, assim, a interpretação
deve ser vista como um processo aberto e cooperativo pela tríade autor-texto-leitor.
É com base nas inter-relações formadas por autor e leitor que os diálogos nas
crônicas de Caio estão pautadas, haja vista também o intenso trabalho de citação
que é perceptível nas crônicas do autor e que mobilizam o conhecimento prévio do
leitor na construção de sentido para as crônicas. É sobre a busca pelo diálogo com o
leitor que a próxima seção trata.
2.2.5. A busca pelo diálogo com o leitor
Uma particularidade da crônica que lhe confere importância está calcada no
processo que busca a manifestação da oralidade na escrita, isto é, deixa de ser um
comentário argumentativo ou expositivo para se tornar uma espécie de conversa
entre narrador e leitor. No que tange ao leitor, é importante ressaltar que o leitor de
jornal não é uma unidade abstrata, visto que o meio impresso se dirige a um público-
alvo, dessa forma, o jornalista/cronista, sabe – de forma generalista, mas não
abstrata – a quem está escrevendo e quais os interesses destes leitores22. Nesse
sentido, torna-se mais fácil para o narrador manter uma espécie de diálogo com os
seus leitores. E é sobre esse processo de diálogo entre narrador/leitor que
observaremos nas crônicas de Caio.
A crônica publicada em seis de abril de 1986 “Para machucar corações” está
atrelada a um dos assuntos preferidos do escritor gaúcho em suas crônicas: a
música. Com vias a comentar o disco do músico John Lennon, o narrador mescla
reflexões do dia a dia em uma cidade movimentada: “Aquela fadiga que se insinua,
persistente, entre o ruído das buzinas e das descargas nos engarrafamentos de
trânsito, todo dia.” (ABREU, 2012, p. 17) A música, no contexto de cidade grande,
pode ser entendida como uma fuga dos motoristas que precisam enfrentar os
problemas citados pelo narrador.
22 Para melhor avaliar as condições de mercado em que o jornal estará inserido, uma estratégia que é utilizada, principalmente em grandes jornais, é a pesquisa de opinião pública. Esta apresenta resultados importantes, no que tange ao público-alvo, desde idade, classe social, dentre outros. Desse modo os jornalistas têm maior conhecimento a quem estão escrevendo.
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Além do assunto principal – música –, o diálogo com o leitor é frequente em
toda crônica, como pode ser observado, na linha de apoio23 da crônica: “Para quem
tem mais de trinta, trinta e cinco anos, este disco pode ser uma tortura. Não, não é
que seja um mau disco. Eu explico. Ou melhor tento.” (ABREU, 2012, p. 17) Este
fragmento constitui uma espécie de orientação de leitura que apresenta pistas ao
leitor sobre o conteúdo da crônica. Podemos relacionar a linha de apoio ao
hibridismo que as crônicas possuem com a literatura e o jornalismo, já que esse
elemento está presente em grande parte das 109 crônicas que estão reunidas na
obra escolhida para compor o corpus dessa pesquisa, A Vida Gritando nos Cantos.
Além da presença dessa orientação de leitura, a opinião do narrador fica
evidente. Sobre esse aspecto, Simon (2008) explica que, nas crônicas, o espaço do
que o “eu” enxerga está atrelado à condição de narrador:
A crônica que funde acontecimento e comentário do acontecimento é propícia como espaço para aquilo que o “eu” vê, para o que o “eu”, desdobrando-se em seguida para a expressão dos sentimentos, comentários e reflexões face ao que foi – às vezes, muito brevemente - narrado. (p. 62)
Tomando como referência a proposição do autor, o narrador reproduz na
crônica a sua visão acerca do que o disco de John Lennon acarreta no meio social.
Nesse sentido, o narrador intui a busca por um diálogo, já a marca do discurso pode
ser observada em fragmentos: “É que fatalmente eu/tu/ele/nós vamos lembrar.”
(ABREU, 2012, p. 17) O narrador inclui dessa forma o leitor, deixando-o como parte
integrante da situação que é construída por ele (o narrador): “Eu não estou certo se
essas lembranças serão boas. Ou se seria boas, lembradas hoje, você me
entende?” (ABREU, 2012, p. 17) Mesmo sem possuir as marcas do narrador e o
rompimento da convenção do discurso com relação à marcação das falas por aspas
ou travessões, quando o narrador afirma “você me entende?”, percebemos a
presença de uma espécie de diálogo.
Em leitura análoga, uma das premissas presentes nas crônicas de Caio é o
diálogo que suprime a presença do narrador. Há um rompimento de convenção do
discurso, as falas são marcadas por expressões, sem a pontuação correta e sem a
23 Linha de apoio é uma expressão com cunho jornalístico. Representa, como o nome propõe, a linha colocada abaixo do título, para explicar o que o título deixou implícito. A linha de apoio pode também ser entendida como uma sucessora do lide, isto é, do primeiro parágrafo em que as principais informações da notícia/reportagem devem ser expostas.
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marcação para o leitor da mudança de quem fala. Essa observação pode ser
exemplificada através do fragmento:
Ele foi gravado ao vivo, no Madison Square Garden, em 30 de agosto de 1972. Há quase, portanto, catorze anos. Você tinha quantos – quinze, vinte, vinte e cinco? E provavelmente também imaginava que, um dia, pudesse não haver mais guerras, nem países, nem ódio entre as pessoas. Um mundo novo, não é isso? (ABREU, 2012, p. 17-18)
Ao contextualizar os leitores da crônica acerca do período em que o disco de
John Lennon foi produzido, o narrador, em formato de indagações, reporta-se aos
leitores, observando um possível questionamento àqueles que estão lendo a
crônica. O rompimento da convenção de discurso fica evidente neste diálogo, haja
vista que, ao mesmo tempo em que o narrador pergunta, já coloca supostas
respostas que os leitores lhe poderiam inferir. Essas afirmações ficam evidentes
quando o narrador questiona: “Você tinha quantos – quinze, vinte, vinte e cinco?” E
após, ainda, faz uma reflexão do meio social, denotando, que, com essa idade, as
pessoas sonham com um mundo melhor. Nesse sentido, entendemos, além do
rompimento da convenção de discurso, um cuidado especial para inserir o leitor em
uma espécie de diálogo.
Essas mesmas marcas podem ser notadas em outras crônicas de Caio, como
em “Inútil pranto por Santa Tereza”, em que o narrador conta, em formato
autobiográfico, a sua história com a cidade de Santa Tereza. Nessa crônica, o
diálogo com o leitor está explicitando a incorporação de representar a violência que
está ocorrendo nas cidades. Os tons de diálogos são mais reflexivos e menos
diretos que em “Para machucar corações”. A marca desta premissa pode ser
verificada no trecho a seguir:
Nos fundos do apartamento, um abismo de bananeiras, flores tropicais e selvagens que ninguém sabe o nome. Vezenquando alguma sobra atravessa a rua, bem natural. E nós tão hippies, mas tão hippies que volta e meia, geralmente nos sábados à tarde, o pintor Luiz Jasmin (onde andará?), que morava ao lado, colocava as caixas de som na janela e a trilha sonora de Hair bem alto, só para nós. Os acordes de Aquaris ou Let the sunshine in eram uma declaração de simpatia ao mesmo tempo explícita e delicada. Se éramos felizes? Não sei, éramos jovens. (ABREU, 2012, p. 217)
A indagação sugestiona a introspecção do narrador através de lembranças
íntimas com o morro de Santa Tereza. Já a representação do real pode ser
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observada no último parágrafo, em que o narrador finaliza sua narrativa, após
descrever as recordações sobre a cidade de Santa Tereza:
Agora acabou. O que leio nos jornais e vejo na TV nas últimas semanas me deixa doente. Ainda mais doente. Santa Tereza sangra, transformada em Sarayejo tropical, em Chechênia invadida, estuprada. As pessoas abandonam as casas e fogem para qualquer lugar, escondendo o rosto. Balas perdidas cruzam o ar. Não, não sei se é suficiente chorar o que se perdeu e rezar pelo que ficou. Sei que, por conta disso, acabei achando um pouco ridículo FHC todo sorridente ao lado da rainha da Inglaterra e todas essas comemorações do fim da Segunda Guerra, enquanto Santa Tereza agoniza, desamparada e bela, no alto daquele morro. Quem pode fazer alguma coisa, que faça. E quem pode? (ABREU, 2012, p. 218)
Esse fragmento, mesmo sem a marca incisiva do diálogo, como foi
demonstrado em outros trechos das narrativas de Caio, demonstra de forma clara
que o recurso do diálogo, inclusive, presta-se para reforçar a ideia de que, mesmo
sem as marcas discursivas, o narrador apresenta suas ideologias, suas
interpretações frente ao leitor que passa a comungar de seus sentimentos. Ainda é
oportuno ressaltar que, através dessa descrição que envolve até mesmo FHC
(Fernando Henrique Cardoso, que era atual Presidente do Brasil na época em que a
crônica foi escrita), sugestiona como se Caio questionasse os leitores sobre suas
ideologias acerca da violência: como Santa Tereza, um lugar, que de acordo com
suas descrições na crônica, transparecia ser tão calmo, e foi se transformando? Seu
último questionamento, “e quem pode?” denota a sua preocupação com o social,
não somente com Santa Tereza, mas sim com a violência em geral. Nesse sentido,
podemos relacionar até mesmo o título da crônica: Inútil por Santa Tereza, desde a
empregabilidade destes termos, identificamos uma perspectiva melancólica e
pessimista sobre esse espaço urbano a qual é compartilhada com os leitores. Assim
como na crônica anterior em que quatro amigos são utilizados para representar os
jovens como em um todo, Santa Tereza é empregada como um dos exemplos sobre
a violência que atinge a sociedade brasileira.
Ademais, o contexto externo utilizado pelo narrador que é sinalizado através
de Sarayevo e Chechênia – duas regiões onde ocorrem conflitos armados –, estão
introduzidos na narrativa para provocar a reflexão acerca do meio social. Caio
estava atento à realidade externa e às semelhanças desta com o contexto local, e
isso pode ser evidenciado na medida em que o narrador da crônica demonstra que
considerava inadequado, diante de um Brasil sangrento, haver a imagem de um
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Presidente sorridente, que indica despreocupação e até indiferença com a triste
realidade brasileira, exemplificada através de Santa Tereza.
A relação de hibridismo que a crônica possui com a literatura e o jornalismo
elucida a forma com que Caio se utiliza do espaço que lhe é concedido no segmento
editorial dos jornais para escrever suas crônicas. A forma com que dialoga com o
leitor deixa explícito o papel da literatura; por outro lado, a confabulação com os
temas sociais fica sob o signo do jornalismo, que é marcado pelas pautas de
assuntos cotidianos, tais como o ressaltado na crônica “Inútil pranto por Santa
Tereza”, sobre a violência, um assunto corriqueiro nos jornais. Nesse sentido, a
proposição de Candido (1989) é bastante elucidativa quanto ao tratamento que a
crônica possui acerca dos assuntos:
Deixando de ser comentário mais ou menos argumentativo e expositivo, para virar uma conversa aparentemente fiada, foi como se a crônica pusesse de lado qualquer seriedade no tratamento de problemas. (CANDIDO, 1989, s/d)
É imperioso considerar que o excerto de Candido corrobora a compreensão
acerca da crônica de Caio. Isso porque, ao mesmo tempo que as narrativas do
escritor gaúcho possuem como particularidades a oralidade e percepção de
assuntos cotidiano, também estão inseridas em um profundo significado dos atos e
sentimentos humanos, estabelecendo, assim, uma crítica social a partir de diálogos
com o leitor, haja vista que, quando o narrador incita o seu leitor a questionamentos,
este fica passível de refletir sobre as prerrogativas que estão sendo propostas.
No contexto em que Caio escreve para jornais e, de certa forma, dialoga com
outros profissionais da área, é importante observar o que Arrigucci (1999) explicita
sobre a influência que os jornalistas possuem sobre a opinião pública:
Aí temos uma porção de aspectos. Primeiro que, de fato, as coisas a que o grande jornalista tem acesso, a importância que o jornal tem na formação da opinião pública, são de tal ordem que dão uma força, um poder extremo ao jornalista. Ele pode manipular a opinião pública. Isso não é pouco, é uma coisa enorme. E está tematizada lá, inclusive, no encontro do Sadat com industrias paulistas, em que os industriais não estão entendendo nada e o sujeito é que está canalizando os capitais da propaganda do sistema. Por outro lado, ele convive com as classes dominantes mesmo, exatamente porque ele tem uma parcela de poder nas mãos. Não um intelectual como
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Hugo Mann, que aspira a isso, que convive com essa gente, mas na verdade não está nessa posição. (ARRIGUCCI, 1999, p. 86)24
É oportuno lembrar que Caio não é jornalista no sentido de repórter que
escreve notícias e reportagens, mas, a partir do momento em que escreve suas
crônicas, transporta-se a esse mundo e exerce influência sobre seus leitores,
tornando-se narrador-repórter para usar uma expressão de Sá (199) ao definir o
perfil dos escritores de crônica. Com base nas premissas que circundam as crônicas
analisadas nestas seções, é possível perceber que elas possuem muitas
coordenadas em comum no que tange especialmente a sua relação entre jornalismo
e literatura: trazem à tona diversos fatos do cotidiano que não interessam ao jornal
como objeto jornalístico, pois não se constituem de sua essencial matéria-prima: a
informação. A crônica, através de assuntos e da linguagem, aproxima-se de seus
leitores. Se comparada aos jornais, ela possui o aspecto de maior subjetividade, que
pode ser ressaltado pela linguagem e as reflexões utilizadas por Caio.
Outro aspecto significativo nas crônicas do escritor gaúcho é que este vai de
um assunto a outro, levando o leitor a variados temas, contudo, é singular na
seleção de seus assuntos, baseia-se em um diálogo com o que está ocorrendo no
social, mas transforma os assuntos de acordo com a sua visão, muitas vezes irônica
e melancólica. Com um tom íntimo e coloquial, Caio se expõe ao leitor, são textos
com ironia, um pouco de humor, mas carregados de introspecção, subjetividade,
alusão a outros textos. Justamente por utilizar a sua visão para compreender o
social, não possui uma teoria que dê conta de analisar as suas crônicas, já que
estas vão muito além da linguagem coloquial, humor e ironia, subjetividade e diálogo
com leitor.
Nessa esteira, ao utilizar a sua visão para escrever as crônicas, Caio pauta-se
em uma relação entre a literatura e o social. Com vistas às relações que o escritor
gaúcho transpõe através do gênero crônica com o leitor e a sociedade, o terceiro
capítulo, “Literatura, Sociedade e Memória na crônica de Caio”, aborda como esses
aspectos estão inseridos na narrativa do escritor gaúcho e a forma com que as
narrativas refletem acerca da realidade social.
24 Fragmento retirado do livro Outros Achados e Perdidos, de uma seção de debates com Davi Arrigucci Jr., Carlos Vogt, Flávio Aguiar, Lúcia Teixeira Wisnik e João Luiz Lafetá.
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3. LITERATURA, SOCIEDADE E MEMÓRIA NA CRÔNICA DE CAIO FERNANDO
ABREU
3.1. Diálogos entre literatura e sociedade
A literatura, como forma de expressão artística, é social e dialoga com a
sociedade. Nesse sentido, ao estudar as complexas relações entre o processo
histórico-social e as manifestações artísticas na literatura, procuramos discutir como
a produção literária, com suas peculiaridades, pode fornecer elementos e subsídios
para o conhecimento da relação dinâmica que ocorre entre sociedade e literatura,
em especial, recorrendo para isso a um aparato teórico para compreender como os
diálogos entre texto artístico e sociedade se constroem na crônica de Caio.
Para melhor refletir acerca da literatura e sociedade, o olhar de Antonio
Candido é essencial para comprovar a incidência desses dois fatores no processo de
compreensão e produção de uma obra. Nessa perspectiva, convém destacar a
contribuição desse estudioso, seguindo o comentário de Lajolo (1992), que atribui a
Candido uma importante tarefa social: “Mestre de tantas gerações, a contribuição de
Antonio Candido à educação brasileira parece, no entanto ultrapassar sua prática no
ofício de professor”. (p. 118) Ao fazer uso de suas atribuições como professor,
Candido ultrapassou as fronteiras da lousa e do giz, discutindo propostas relevantes
sob a ótica das relações dos indivíduos com o social.
A obra de Candido Literatura e Sociedade, cuja primeira edição é datada de
1965, procura focalizar vários níveis da correlação à função da produção literária,
como uma constante no que se refere à estrutura da sociedade. Para melhor
entender como essas relações foram se estreitando, o autor faz um panorama em
diferentes séculos. A analogia entre a obra e seu condicionamento social, no século
XIX, chegou a ser vista como chave para compreendê-la; no entanto, essa ideia se
tornou secundária. Nessa esteira, o autor pondera: “Estamos avaliando melhor o
vínculo entre a obra e o ambiente, depois de termos chegado à conclusão de que a
análise estética precede considerações de outra ordem”. (CANDIDO, 2000, p. 05).
Para explicar como essas distintas acepções foram ocorrendo, o estudioso aponta
que antes se procurava mostrar que o significado e valor de uma obra dependiam de
exprimir ou não aspectos da realidade, assim, esses aspectos acabavam por
98
caracterizar o que ela tinha de essencial. Posterior a essas constatações, Candido
(2000) alude ideia oposta a essas prerrogativas, ou seja, procurava-se mostrar que a
matéria de uma obra é secundária e que a sua importância advém das operações
formais, atribuindo, desse modo, uma especificidade que torna essa obra de arte
independente de quaisquer condicionamentos, sobretudo, o social.
Em conformidade com as ponderações de como a relação entre o social com
a literatura foi sofrendo ao longo dos períodos, Candido (2000) argumenta:
Hoje sabemos que a integridade da obra não permite adotar nenhuma dessas visões dissociadas; e que só a podemos entender fundindo texto e contexto numa interpretação dialeticamente íntegra em que tanto o velho ponto de vista que explicava pelos fatores externos, quanto o outro, norteado pela convicção de que a estrutura é virtualmente independente, se combinam como momentos necessários do processo interpretativo. Sabemos, ainda, que o externo (no caso, o social) importa, não como causa, nem como significado, mas como elemento que desempenha um certo papel na constituição da estrutura, tornando-se, portanto, interno. (p. 5-6)
No que tange ao fator externo, o autor menciona a palavra como legítima,
quando confere o seu tratamento a sociologia da literatura, visto que esta não propõe
o valor da obra, mas, sim, por tudo que diz respeito aos condicionamentos sociais.
Candido (2000) a cita ainda como uma disciplina de cunho científico, sem orientação
estética assumida pela crítica. O problema, nesse sentido, é apresentado pelo
pesquisador, pois a crítica literária visa a analisar o íntimo das obras, aqueles fatores
que atuam na organização interna. Sobre o fator social, o pesquisador considera:
Tomando o fator social, procuraríamos determinar se ele fornece apenas matéria (ambiente, costumes, traços grupais, idéias), que serve de veículo para conduzir a corrente criadora (nos termos de Lukács, se apenas possibilita a realização do valor estético); ou se, além disso, é elemento que atua na constituição do que há de essencial na obra enquanto obra de arte (nos termos de Lukács, se é determinante do valor estético). (CANDIDO, 2000, p. 06)
Assim, o estudioso procura observar os fatores sociais e psíquicos como
agentes da estrutura e não como matéria registrada pelo trabalho de quem a produz.
Já a análise crítica rege-se acerca dos elementos de aspecto e significado da obra,
que, unidos, formam o todo em indissolúvel. Ainda no que diz respeito ao fragmento
que cita Lukács, a sua presença incorre para exemplificar como as relações de
literatura e sociedade ficaram permeadas. Nesse contexto, Lima (1992) cita os
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prefácios das primeiras obras de Lukács, em que o elemento social da literatura era
dotado como a forma:
A forma faz com que a experiência vivida pelo poeta se comunique aos outros, ao público; e só através desta comunicação “formada” e daí, através da possibilidade de exercer influência e a influência efetiva que realiza essa possibilidade, a arte assume um significado social. (LIMA, apud G. LUKÁS, 1912, p. 76)
Então, desde Lukács, a interação entre o “poeta” e o público transforma a
escrita, e o contexto social era o motivador de uma forma que enquanto estética não
tinha história. Sobre Lukács, que também é citado por Lima (1992), este afirma que
há sintonia entre Lukács e Antonio Candido, visto que ambos não se contentam com
as equações: elemento sociológico: fator externo: elemento estético: fator interno.
Mas sim, para eles, a ocorrência deveria ser o externo se tornar interno e a crítica ao
invés de sociológica, ser apenas crítica. No entanto, ao se firmarem nessa equação,
estão também acarretando alguns embaraços, como cita Lima (1992):
Como se havia notado, a fusão, proposta por Lukács, entre o sociólogo e o estético esbarrava na estabilidade a-histórica da forma. Em sua defesa, poder-se-ia dizer que Lukács tivera o cuidado de não dissolver a história interna da literatura ante mudanças externas; mesmo que isso seja válido, não basta para tornar inatacável sua posição. É também verdade que Candido não cai explicitamente na mesma armadilha, isto é, que não há nenhum enunciado declarador da a-historicidade da forma. Nem por isso ela está menos presente. (p. 157)
Com base nas prerrogativas propostas pelos autores sobre a estrutura interna
e externa das obras, Candido cita, como exemplo, o livro Senhora, de José de
Alencar. As indicações do social estão presentes em referências a lugares,
manifestações de atitudes de grupos ou classes, modas, usos e expressões de um
conceito de vida burguês e patriarcal. No entanto, para o autor, somente essas
peculiaridades não bastam para denotar a definição do seu caráter sociológico. Nas
palavras do autor:
Mas acontece que, além disso, o próprio assunto repousa sobre condições sociais que é preciso compreender e indicar, a fim de penetrar no significado. Trata-se da compra de um marido; e teremos dado um passo adiante se refletirmos que essa compra tem um sentido social simbólico, pois é ao mesmo tempo representação e desmascaramento de costumes vigentes na época, como o casamento por dinheiro. Ao inventar a situação crua do esposo que se vende em contrato, mediante pagamento estipulado, o romancista desnuda as raízes da relação, isto é, faz uma análise
100
socialmente radical, reduzindo o ato ao seu aspecto essencial de compra e venda. Mas, ao vermos isto, ainda não estamos nas camadas mais fundas da análise, — o que só ocorre quando este traço social constatado é visto funcionando para formar a estrutura do livro. (CANDIDO, 2000, p. 07)
Sob essa perspectiva, entendemos que, se ocorre a transposição do plano do
livro, de aspectos que refletem a realidade, estaremos falando em termos
sociológicos. Sobretudo, é necessário lembrar que apresentar formatos que
permeiam o social não faz de uma obra literária a sua interação com esse meio.
Candido (2000) ratifica essas prerrogativas:
Quando fazemos uma análise deste tipo, podemos dizer que levamos em conta o elemento social, não exteriormente, como referência que permite identificar, na matéria do livro, a expressão de uma certa época ou de uma sociedade determinada; nem como enquadramento, que permite situá-lo historicamente; mas como fator da própria construção artística, estudado no nível explicativo e não ilustrativo. (p. 08)
O que equivale a afirmar que, situar socialmente e enquadrar em termos que a
sociedade está constituída não transforma nenhuma obra em caráter sociológico.
Por outro lado, buscar aspectos que compreendam tanto períodos históricos atuais
quanto do passado, transpassar a obra e poder fazer com que o leitor possa refletir
em torno dos temas abordados, isso tudo denota a dimensão social como fator de
arte. A reflexão a partir dos temas que são abordados pelo artista inclui elementos
psicológicos, religiosos, linguísticos, dentre outros. Todos esses constituem-se
elementos externos e internos, visto que se diluem, transformando-se em aspectos
que visam à maior interação do social com o literário.
No entanto, a interação do social e literário sugere a formulação de outras
questões que vão além da confluência do interno/externo, tais como as propostas
por Candido (2000): “qual a influência exercida pelo meio social sobre a obra de
arte? Digamos que deve ser imediatamente completada por outra: qual a influência
exercida pela obra de arte sobre o meio?” (p. 18) Para responder a essas
indagações, o autor ressalta que a primeira pergunta refere-se em que medida a arte
é expressão da sociedade, já a segunda, consiste em avaliar o seu interesse nos
problemas sociais. Além dessas, outra tendência é citada pelo estudioso:
A segunda tendência é a de analisar o conteúdo social das obras, geralmente com base em motivos de ordem moral ou política, redundando praticamente em afirmar ou deixar implícito que a arte deve ter um conteúdo deste tipo, e que esta é a medida do seu valor. (CANDIDO, 2000, p. 19)
101
Ambas as tendências demonstram a arte e o social com a preocupação em
modificar a concepção de mundo dos leitores, avigorando ainda mais os sentimentos
de valores sociais. Outras reflexões, para responder as perguntas propostas por
Candido, sinalizam uma organização quanto às influências dos fatores socioculturais,
uma vez que, nesse sentido, estão inseridos a posição social do artista que está
produzindo a obra de arte, a configuração do grupo de receptores destas obras, a
forma e o conteúdo que será exposto e por fim a transmissão do produto final. Nesse
sentido, Candido (2000) declara que essas etapas marcam os quatro momentos da
produção: “pois: a) o artista, sob o impulso de uma necessidade interior, orienta-o
segundo os padrões da sua época, b) escolhe certos temas, c) usa certas formas e
d) a síntese resultante age sobre o meio”. (p. 20)
Nessa esteira, entendemos que não é possível separar a repercussão da obra
com quem a fez. A comunicação leva a esses quatro importantes processos, que
podem ser resumidos em: o comunicante (nesse caso o escritor), comunicado (a
obra), comunicando (o público) e após isso o efeito que produz esse comunicando,
isto é, a quem a obra se dirige. É, então, com a afirmação de que “a posição social é
um aspecto da estrutura da sociedade” (CANDIDO, 2000, p. 22), que o estudioso
atenta sobre três aspectos: a) como a sociedade define a posição e o papel do
artista do artista; b) como a obra depende dos recursos técnicos para incorporar os
valores propostos e c) como se configuram os públicos. A importância dessas três
prerrogativas configura-se na medida em que o artista, com sua atividade, estimula
diferentes grupos, assim como a criação de obras modifica os recursos de
comunicação expressiva e, por fim, as obras organizam e delimitam seus públicos.
(CANDIDO, 2000)
Dentre esses três aspectos, a posição do artista é que a primeiro se acentua
nesse processo. Com efeito, Candido (2000) inicia lembrando o percurso com que
essa posição foi tomando ao longo dos séculos. A primeira impressão configurava-se
como uma criação concebida de forma coletiva. Contudo, o estudioso advoga que
atualmente a obra exige necessariamente a presença do artista criador: “O que
chamamos arte coletiva é a arte criada pelo individuo a tal ponto identificado às
aspirações e valores do seu tempo, que parece dissolver-se nele”. (CANDIDO, p. 23,
2000) Desse modo, entendemos que o coletivo e o individual não mais são
102
arquitetados separados, mas sim, em uma ligação, visto que, são as forças sociais
que condicionam os artistas, determinando a ocasião em que a obra é produzida,
julgando a sua necessidade e se será um bem coletivo.
Em relação à coletividade de uma obra, esta será definida a partir então, dos
elementos individuais. Em termos gerais, entendemos que, em primeiro lugar, o
agente individual cria a obra, após, a sociedade (o coletivo, nesse caso) precisa
reconhecer essa obra e o seu criador; já a forma com que será recepcionada
também depende de quem a produz, de qual é o seu reconhecimento com o social e
em que circunstâncias foi criada; por fim, a obra passa a ser marcada pela sociedade
como veículo individual do artista, mas que obteve o reconhecimento do coletivo.
Nessa esteira, Candido (2000), complementa: “Se a obra é fruto da iniciativa
individual ou de condições sociais, quando na verdade ela surge da confluência de
ambas, indissoluvelmente ligadas”. (p. 23-24)
Além da implicação do individual e coletivo, no que concerne à forma com que
as obras são executadas pelo artista, passamos a configuração desta. Candido
(2000) abarca a proposição que a obra depende do artista e das condições sociais
que irão determinar a sua posição. Ademais, o autor cita outras peculiaridades que
conferem a inserção do social às obras:
Quanto à obra, focalizemos o influxo exercido pelos valores sociais, ideologias e sistemas de comunicação, que nela se transmudam em conteúdo e forma, discerníveis apenas logicamente, pois na realidade decorrem do impulso criador como unidade inseparável. Aceita, porém, a divisão, lembremos que os valores e ideologias contribuem principalmente para o conteúdo, enquanto as modalidades de comunicação influem mais na forma. (CANDIDO, 2000, p. 27)
Para exemplificar a forma com que os valores e ideologias contribuem para o
conteúdo, o autor cita como exemplo a influência decisiva do jornal sobre a literatura,
no que atribui a criação de novos gêneros, tais como a chamada crônica, ou folhetim
romanesco, que após um século, veio a influir sobre a arte do cinema. Nesse
sentido, entendemos a crônica como a atuação individual do artista/autor que a
compõe, regado pelas influências coletivas, através do social, em temas que são
ressaltados no texto e que possuem os seus valores e ideologias nas narrativas.
Retomamos, então, os processos pelos quais a obra perpassa: a sua criação
é vista como um processo que sofre as interferências do coletivo e individual, já a
103
posição do artista/narrador abarca o social e as ideologias que contribuem para o
conteúdo dessa obra, e por fim, temos a interação do público. Acerca desse último
elemento, não menos importante, Candido (2000) afirma que, da mesma forma com
que os dois anteriores, as influências sociais deixam suas marcas. O autor faz um
apanhado geral de quais eram as influências do público desde as sociedades
primitivas. Nestas, é menos nítida a separação de artistas e receptores. No entanto,
à medida que as sociedades se diferenciam, arista e público começam a se definir
nitidamente. Nesse sentido, o autor afirma: “Elas [as pessoas] aumentam e se
fragmentam à medida que cresce a complexidade da estrutura social, tendo como
denominador comum apenas o interesse estético”. (p. 31) É por isso que surgem os
grupos e dentre estes os subgrupos para diferenciar os gostos por determinados
gêneros. Estes grupos estarão unidos por interesses e gostos pessoais.
No que se refere às particularidades que influenciam o público, Candido
(2000) cita ainda os fatores socioculturais – a técnica sobre a formação,
caracterização do público e a influência social, isto é, “a dos valores, que se
manifestam sob várias designações — gosto, moda, voga — e sempre exprimem as
expectativas sociais, que tendem a cristalizar-se em rotina”. (CANDIDO, 2000, p. 32)
Com efeito, a sociedade interfere de forma sistemática e com valores sobre os
gostos do público. Para melhor exemplificar como essa interferência ocorre, Candido
(2000) explana sobre um concerto, em 1837 em Paris, em que se anunciava uma
peça de Bethoven e outra de Pixis, que era considerado obscuro compositor. Porém,
os nomes foram trocados, atribuindo a um a obra de outro, assim, quando Pixis se
apresentou como se fosse Bethoven, ele foi aclamado pelo público. Esse fato ilustra,
como afiança Candido (2000), “que mesmo quando pensamos ser nós mesmos,
somos público, pertencemos a uma massa cujas reações obedecem a
condicionantes do momento e do meio”. (p. 32) O episódio que ocorreu ainda no
século XIX demonstra que o público está impregnado pelas normas sociais e se
deixa conduzir pelos seus julgamentos.
Ainda nesse viés, a posição do artista, a configuração da obra e o público
demonstram de que maneira os fatores sociais atuam no literário. Candido (2000)
aponta de forma resumida a forma com a arte é concebida:
Na medida em que a arte é — como foi apresentada aqui — um sistema simbólico de comunicação inter-humana, ela pressupõe o jogo permanente de relações entre os três, que formam uma tríade indissolúvel. O público dá
104
sentido e realidade à obra, e sem ele o autor não se realiza, pois ele é de certo modo o espelho que reflete a sua imagem enquanto criador. Os artistas incompreendidos, ou desconhecidos em seu tempo, passam realmente a viver quando a posteridade define afinal o seu valor. Deste modo, o público é fator de ligação entre o autor e a sua própria obra. A obra, por sua vez, vincula o autor ao público, pois o interesse deste é inicialmente por ela, só se estendendo à personalidade que a produziu depois de estabelecido aquele contacto indispensável. Assim, à série autor-público-obra, junta-se outra: autor-obra-público. Mas o autor, do seu lado, é intermediário entre a obra, que criou, e o público, a que se dirige; é o agente que desencadeia o processo, definindo uma terceira série interativa: obra-autor-público. (p. 33-34)
Por outra vertente, além da influência a que Candido ressalta entre autor-obra-
público e após, obra-autor-público, Ianni (1999) ressalta que o diálogo entre a
sociologia e a literatura envolve vários enigmas: texto e contexto, sociologia e ficção,
literatura e conhecimento, estilos de pensamento e visões de mundo. Esses são
enigmas que implicam o que podemos entender entre “sociologia” e “literatura”, que
“permitem desenvolver a reflexão sobre essas formas narrativas, como expressões
do mundo da cultura.” (p. 38) Narrar, nesse âmbito relaciona-se a todos os
processos, ou seja, é uma dimensão geral tanto do processo de elaboração e
produção, quanto aos indivíduos que compõe a sociedade. É sob essa perspectiva,
que na próxima seção abordamos como o ato de narrar de Caio sofreu as influências
da conexão entre a literatura e a sociedade, à medida que o autor propiciou aos
leitores a reflexão de temas pertinentes ao social.
3.2. A representação da sociedade na crônica de Caio
Ao abordar temas e questões que vão desde o universal ao particular, Caio
denota seu estilo, o que nos permite, com instrumentais teóricos e metodológicos,
refletir acerca das relações possíveis entre a literatura e a sociedade. Nem mesmo a
pluralidade de assuntos e as variadas formas de tratamento que o autor gaúcho
confere a estes limita o caráter e diálogo do meio social com a literatura.
A interação do social com o literário pode ser observada em todas as crônicas
que compreendem o corpus dessa pesquisa. Uma das temáticas mais recorrentes
nas narrativas de Caio são os aspectos culturais, que compreendem a alusão a
músicas, cinema, literatura e tudo que esteja imbuído de termos que condizem à
cultura. Para entender a presença constante desses temas, é preciso, também, fazer
referência ao momento vivido por Caio, já que, como visto, o social influência de
105
forma direta e precisa as narrativas.
Nesse sentido é que Franco (1999) pondera sobre a geração do final dos anos
1960, esta que é contemporânea ao escritor gaúcho:
Tocadas por uma dupla determinação – o fim de um ciclo e a tendência para o constante endurecimento político da ditadura militar que, cada vez mais, adotava atitudes truculentas e repressivas – a vida cultural experimentou uma situação até então inusitada: cinema, teatro e música popular puderam compor um processo cultural integrado, raro em nossa história. (FRANCO, 1999, p. 144)
A partir da afirmação do estudioso é possível compreender o percurso das
narrativas de Caio. O autor é contemporâneo da década de 1960, e, sendo assim,
transpassar sua experiência social para as narrativas torna-se mais compreensível e
até mesmo adquire um caráter de memória sobre o contexto em que está inserido.
Sob a ótica do momento social, é oportuno ressaltar que as características do
processo histórico em que Caio está inserido influenciam a forma com que ele expõe
suas ideologias nas crônicas. Isso pode ser melhor compreendido quando avaliamos
que das 109 crônicas que fazem parte do corpus dessa pesquisa, praticamente
todas possuem pelo menos uma alusão a música. Sobretudo, em setenta e quatro
delas, o narrador envolve toda crônica com elementos culturais, como música,
cinema, literatura.
Ainda com vistas à relação do contexto nas relações sociais, Prado Jr. (1992),
confirma essa visão, explicitando: “É preciso consultar, no passado, para melhor
diagnosticar o comportamento do subsolo de nossa experiência atual da literatura e
sociedade.” (p. 11) Nessa esteira, é imperioso considerar que o fator social é
invocado em Caio para explicar a estrutura da obra e seu teor de ideias, fornecendo
elementos para determinar a sua validade e o seu efeito sobre os leitores. Para
identificar os elementos linguísticos e conteudísticos – internos e externos – ao texto
e que possuem a interferência dos condicionamentos sociais, observemos como
ocorre esse processo nas crônicas do autor.
A alusão ao passado, como propôs Padro Jr. (1992), é ratificada na crônica de
dezoito de fevereiro de mil novecentos e oitenta e sete, “Um prato de lentilhas”. Da
mesma forma que praticamente todas as narrativas da década de 1980, a linha de
apoio nos auxilia para melhor compreender o do que se trata a crônica: “Queremos
nossos direitos, nossos futuros, nossos sonhos. Nosso ridículo votinho...” (ABREU,
106
2012, p. 80) Através dessa orientação de leitura, é perceptível que a narrativa é o
desabafo de um brasileiro que vive em um país tão desigual. Com relação à
proposição de Prado Jr. (1992) de consultar o passado para observar a experiência
atual, o narrador explica ao final do texto, expressando sua vontade de não sofrer
mais censura, como os jovens da década de 1960, pois ele queria ter direito de
escolher seu presidente. “QUERO escolher meu presidente. Exijo. Não fui eu nem
ninguém quem escolheu esses senhores que estão aí em cima arrebentando a vida
da gente”. (ABREU, 2012, p. 81) O narrador segue afirmando que está falando não
por si, mas por todos que residem no país. “E falo no plural porque sou só um
brasileirinho igual a milhões de outros – certamente eu sei – com muito mais
privilégios do que a desgraçada maioria. Com ou sem privilégio, quero meus direitos.
Quero meu futuro”. (ABREU, 2012, p. 81) Após essas afirmações de representação
de todos, ele prossegue: “Quero pelo menos meu ridículo votinho. Quero, não;
queremos. Quem me dá? Pra quem – desde que roubaram a minha juventude, em
1964 – eu posso reclamar?” (ABREU, 2012, p. 81) Da forma como o narrador conduz
sua narrativa, fica evidente que as suas ideologias diluem-se em meio ao texto.
Como já dito, Caio é contemporâneo aos jovens da década de 1960, período em que
ocorreu o golpe militar no Brasil e a proibição do voto direto pra Presidente da
República, tirando assim dos brasileiros, o direito exercer a cidadania e a
democracia. A geração de 1960 sofreu ainda com a censura, as emissoras de rádio
e televisão foram fechadas e tudo no país deveria passar pelo crivo da censura. Com
base nesses fatos históricos, fica clara a imposição de alguém que sofreu com a falta
de democracia, o que é transpassado para a crônica.
Além destes aspectos conteudísticos da narrativa, os elementos sociológicos
e a interação da literatura com a sociedade fica evidenciada através dos traços
linguísticos: “Seu Zé Sarney, senhores poderosos – sempre tive nojo de política, de
poder e de economia.” (ABREU, 2012, p. 80) Nessa esteira, Zé Sarney refere-se a
José Sarney, o político que assumiu a presidência do país logo após a morte de
Tancredo Neves, na década de 1980. Os vocábulos “nojo”, “política”, “poder” e
“economia” estão permeados pelos elementos sociológicos, visto que são palavras-
chave e demonstram a interação entre o posicionamento que o narrador toma frente
à sociedade, isto é, um sentido de repulsa frente aos fatos que está descrevendo.
A crônica continua com a descrição da indignação tanto pela política, quanto
107
pelo poder e pela economia, e o narrador segue demonstrando seu estado de
espírito pelo Brasil: “Mas senhores comandantes desta coisa pobre, louca, doente e
suja que nem sei mais se posso chamar ‘Brasil’, vossas excelências sabem o que
anda acontecendo nesta terra?” (ABREU, 2012, p. 80) Com efeito, as indicações do
social estão presentes em referências, como ressalta Candido (2000), a atitudes e
palavras – que se encontram no nível linguístico, no entanto, o conteúdo da crônica
indica o seu repulso pelas condições sociais, fazendo com o leitor reflita sobre o
sentido social simbólico, pois é, ao mesmo tempo, representação e
desmascaramento das pessoas que estão à frente do Brasil. As indagações que o
narrador faz ao longo texto são exemplo da interação com o social: “Vossas
Excelências sabem o que anda acontecendo nesta terra? Parece que não. Os
senhores nunca andam nas ruas? Não veem a cara das pessoas?” (ABREU, 2012,
p. 80) Com esses questionamentos, o leitor é remetido à reflexão do que está
ocorrendo com a realidade, é como se o narrador estivesse conversando com aquele
a que o texto é destinado e lhe dissesse para abrir os olhos que, se os políticos não
tomam providências, eles precisam tomar. Além do leitor, o narrador também de
certa forma dialoga com os representantes do povo, mostrando que a realidade
precisa ser ajustada e que ele, como cidadão, está representando uma maioria
descontente.
Por esse prisma, a interação das crônicas de Caio volta-se ao social, fazendo
uso dos termos linguísticos e de conteúdo, mas também porque estão inseridas
dentro do quarto poder25, pois é assim que a mídia é denotada, justamente por sua
abrangência e pelo domínio que exerce sobre as pessoas. Ao citar o nome de José
Sarney e do Ministro da época, Celso Furtado, o narrador incita também essas
pessoas a refletirem, isso porque o meio de difusão da crônica é o jornal, e este
serve como formador de opinião. Sobre essa peculiaridade do meio, Azevedo (2006)
ressalta que o jornal se caracteriza como formador de opinião, sendo assim, é o
responsável por produzir agendas, isto é, formata questões para influenciar
percepções e comportamentos tanto no âmbito político-governamental quanto no
público em geral, “este último através dos líderes de opinião ou através da
25 Sobre a titulação de quarto poder a que a mídia possui, Alexandre e Fernandes (2006), consideram: “A imprensa passou a ser um instrumento nas mãos do poder e ganhou muito com isso, tanto que hoje, nas democracias liberais, ostenta o título de quarto poder – autônomo, logo após do Executivo, Judiciário e do Legislativo, exercido em favor do povo, que através dos anos elegeu a imprensa como seus olhos para fiscalizar aqueles que comandam a sociedade.” (p. 24)
108
repercussão da pauta dos jornais”. (p. 29) Para melhor exemplificar como a mídia
influência os aspectos sociais, e a sua atuação nas agendas, Azevedo (2006) cita as
eleições de 1989 e a de 1994:
A imprensa assumiu um papel de protagonista no episódio do impeachment do Collor. Sem dúvida, a crise do governo Collor foi um divisor de águas para a mídia (em especial para o jornalismo político), do ponto de vista da sua relação com o sistema político na nova quadra democrática, pois a grande imprensa, durante todo episódio, não só agendou o debate político como se transformou num dos principais atores da crise, denunciando o governo, mobilizando a opinião pública e colocando em pauta o impeachment. Nessa dinâmica marcada basicamente pelo jornalismo investigativo, a mídia brasileira mimetizou a função clássica do cão de guarda (watchdog) da teoria liberal do jornalismo, assumindo o papel de vigia e fiscalizador do sistema político. (p. 40)
É imperioso considerar com o excerto exposto pelo estudioso que do mesmo
modo, Caio utiliza as crônicas com um agendamento social que pode ocorrer em
dois níveis: a) pautar os assuntos que estão sendo discutidos e refleti-los nas
crônicas; b) faz com que esses assuntos sejam difundidos entre os leitores e estes
por sua vez, disseminam as informações em seus cotidianos. Ao mencionar
assuntos de teor social, Caio passa a atuar como expõe Azevedo (2006) em assumir
“o papel de vigia e fiscalizador do sistema político,” (p. 40). Nesse sentido, ao exibir
suas ideologias acerca dos problemas sociais e, ao citar o nome dos políticos
envolvidos, o narrador assume publicamente o papel de vigia, fato que toma maiores
proporções, visto que o narrador assume a posição de uma maioria e passa a
representá-los.
As mesmas reflexões presentes na crônica “Um prato de lentilhas” seguiram-
se na narrativa posterior, publicada em vinte e cinco de fevereiro de mil novecentos e
oitenta e sete, intitulada “Anjos da barra pesada”. O narrador continua a se
questionar, dessa vez, em uma viagem ao Rio de Janeiro, refletindo acerca das
mesmas perguntas sobre o Brasil:
Semana passada fui ao Rio. Estava exausto, sem energia. Tempos atrás, quando você andava assim (exausto; sem energia), ia ao Rio. Costumava dar certo. Desta vez, não deu. Chovia, não tinha sol. Pior, e mais insidioso que isso, havia pelo ar esse mesmo tipo de medo e desemparo que deixam ainda mais cinza o ar de São Paulo. O que está havendo com esse país? – continuei a perguntar lá, como pergunto aqui. E todos respondiam, lá, o mesmo que respondem aqui: dengue, meningite, aids, caos econômico, falta de amor, falta de esperança, falta de futuro. (ABREU, 2012, p. 82)
109
Como fica claro no fragmento, o estado de espírito do narrador está
condizente com os problemas do Brasil. Ele associa até mesmo a falta de sol,
denotando assim a escuridão – falta de luz e esperança, aos problemas que estão
assolando o país. Para dar respaldo a suas opiniões, o narrador cita as ideias de
outras pessoas que moram em outro Estado e conclui que, tanto em São Paulo
quanto no Rio de Janeiro, a opinião é unânime: falta tudo no Brasil. A crônica
continua com as alusões a elementos culturais: músicas, filmes, livros e teatro. Para
finalizar a narrativa, volta o questionamento:
Continuei a me perguntar: O que está havendo com este país? E todos respondem, como esse desinteresse trágico que também ando sentido: Ora, dengue, meningite, aids, caos econômico, falta de amor, falta de esperança, falta de futuro. Se alguém acrescentar “normal”, eu grito. (ABREU, 2012, p. 83)
A referência ao vocábulo “normal” indica que, ao repetir as ideias iniciais da
crônica, o narrador está afirmando acerca das anormalidades da sociedade
brasileira. A interação com o social dessa proposição, assim como na crônica
anterior, refere-se aos termos linguísticos, mas também à forma de tratamento dado
ao conteúdo dos problemas expostos pelo narrador. Em complementaridade às
ideias acerca da interação entre a literatura e o social, Ianni (1999) acentua essas
proposições:
A literatura e a sociologia aproximam-se bastante, no que se refere à construção de tipologias. Ambas as narrativas estão repletas de tipos e tipologias elaboradas literária ou sociologicamente. São notáveis os tipos ideias que povoam a literatura: Hamlet, Don Quixote, Robinson Crusoé, Don Juan, Fasto, Pai Goriot, Madame Bovary, Martin Fierro, O Senhor Presidente, Pedro Paramo, Macunaíma e outros. Assim como são notáveis os tipos ideais povoando a sociologia: o burguês, o operário, o camponês, o tirano, o príncipe, o demagogo, o carismático, o revolucionário, o intelectual e outros. (p. 12)
Com essa citação, o autor entende que há uma relação mútua com as duas
áreas, pois, ao mesmo tempo que a literatura se utiliza das representações, a
sociedade faz uso também de dramas. O autor cita ainda como exemplo a presença
da política e a revelação dos tempos modernos em O Pequeno Príncipe, de
Maquiavel. De maneira análoga, a crônica de Caio utiliza esses mesmos temas para
demostrar ao leitor aspectos da sociedade e, ao citar a política, como nas duas
110
crônicas “Um prato de lentilhas” e “Anjos da barra pesada”, o narrador desnuda as
relações sociais, através de representações, como na primeira, que cita os nomes de
políticos brasileiros, confirmando assim, uma forma de chamar a atenção dos leitores
para os problemas vividos no Brasil e propor uma mudança de ordem social.
Com vistas aos elementos utilizados nas crônicas de Caio para exprimir as
relações entre a literatura e a sociedade, Lima (1992) menciona a ideia de que a
atividade crítica-literária se enraíza em pelo menos dois eixos: “Forma o primeiro a
questão da especificidade da linguagem literária, o segundo, a relação da linguagem
literária com a sociedade”. (p. 153). No entanto, é preciso atentar que somente a
relação da linguagem literária não é possível para estabelecer o vínculo com o
social. É necessário, nesse sentido, buscar entre a arte e o social uma preocupação
em modificar a concepção de mundo dos leitores, exatamente como ocorre nas duas
crônicas supracitadas.
Se a reflexão dos leitores acerca do social sinaliza a maior interação entre e a
literatura e a sociedade, a crônica publicada no dia doze de agosto de mil
novecentos e oitenta e sete, “Que depois de me ler”, é um exemplo dos recursos
adotados pelo narrador para facilitar essa interação. O tom íntimo, coloquial e de
conversa com o leitor permeia toda narrativa, que inicia com o narrador contando ao
leitor o que pretende com o texto:
Hoje quero escrever qualquer coisa tão iluminada e otimista que, logo depois de ler, você sinta como uma descarga de adrenalina por todo o corpo, uma urgência inadiável de ser feliz. Ser feliz agora, já, imediatamente. E saia correndo para dar aquele telefonema, marcar um encontro, armar um jantar, quem sabe um beijo; para comprar aquela passagem de avião, embarcar hoje mesmo para Nova York, Paris, Hononulu. Tão revigorado e seguro – depois de me ler – que nada, absolutamente nada, dará errado: ela (ou ele) atenderá com prazer (em todos os sentidos) ao seu chamado, haverá saldo no banco para a passagem e muitos dólares. (ABREU, 2012, p. 109)
Todas as situações enumeradas pelo narrador estão situadas na esfera social,
mas elas não denotam a presença de elementos com que interfiram e demonstrem o
grau que a literatura e a sociedade exercem uma sobre a outra. Essa prerrogativa
poderá ser exemplificada à medida em que o narrador continua explicitando que,
além dessas percepções de alegria, também poderia exprimir algo terrivelmente
melancólico e triste:
Por falar em “destinos do País”, posso tentar, quem sabe, uma coisa mais
111
social, tão social quanto comício com a Lucélia Santos. Descrever com minúcias odiosas famílias inteiras morando embaixo das marquises do Conjunto Nacional. Falar naquele mendigo com que cruzei ontem na cidade e, sem querer, vi remexendo nos sacos de lixo da calçada, enfiando as mãos de unhas imundas em restos de arroz azedo. Seria esse um texto cheio de piedade e ira, de náusea e revolta. Que depois de ler, você ficasse tanto com os olhos marejados de lágrimas quanto com o coração fervilhante de ódio. E saísse correndo para fazer alguma coisa (tão abstrato “fazer alguma coisa”). Pegar em armas, por exemplo. Dar seu dinheiro (você tem algum? Parabéns) para A Causa do Povo. (ABREU, 2012, p. 109-110)
Ao citar os problemas sociais que poderiam ser explanados na crônica, o
narrador faz uso da sua interação com o social, uma vez que, além de citar os
aspectos sociais, como no primeiro fragmento, nesse segundo trecho que
exemplifica a narrativa, o narrador também reflete acerca do meio em que vive. Se
ele está citando mendigos, pessoas sem casa, e finaliza observando que os
problemas sociais estão ligados a sentimentos, relações interpessoais, mas também
são o reflexo da falta de recursos para viver, essas que advém do dinheiro ou a falta
dele. “Dar seu dinheiro (você tem algum? Parabéns)” (ABREU, 2012, p. 110), esse
contexto, sinaliza que o narrador está dialogando com o leitor, afirmando com esse
excerto, que quem tem dinheiro, parabéns, essas pessoas são uma ínfima minoria.
Ainda nessa perspectiva de relação entre texto e meio social, Facina (2004)
declara: “Também os escritores são produtos de sua época e de sua sociedade.
Desse modo mesmo o artista mais consagrado, (...) é sempre um indivíduo de carne
e osso, sujeito a condicionamentos (...) que o processo histórico do qual é parte lhe
impõe.” (p. 10) Com efeito, entendemos que toda criação literária é um produto
histórico, e essa ideia pode confirmada quando o narrador diz “falar naquele mendigo
com que cruzei ontem na cidade e, sem querer, vi remexendo nos sacos de lixo da
calçada.” (ABREU, 2012, p. 110) O mendigo faz parte da realidade em que o
narrador está inserido, são através de suas ideologias, visões acerca da realidade,
que o leitor é convidado a refletir sobre a sociedade. De maneira similar, “pegar as
armas” significa que alguém precisa fazer algo para mudar a realidade dessas
pessoas que tanto sofrem, assim como, ao refutar a proposição de dar dinheiro, e
indagar, “você tem algum?”, refere-se ao período histórico que o Brasil está
vivenciando, isto é, um país com desigualdades, em que o dinheiro fica preso a uma
minoria de pessoas. Por fim, “a causa do povo” faz referência ao período em que
essa crônica foi escrita, pois 1987 foi um dos primeiros anos em que a inflação se
tornou um dos piores problemas do Brasil. No tocante a esse período histórico,
112
Flores (2005), cita os problemas a que o governo Sarney (presidente desta época)
sofreu:
Assim, as duas heranças do governo Sarney, a economia deteriorada e as relações sem avanço nenhum com os países hegemônicos, que desprezavam verdadeiramente o Brasil, foram um fardo pesado para os governantes seguintes, (...) A colheita de impasses, de decepções e fracassos na economia interna, que chegou a passar dos 1.000% de inflação ao fim do governo Sarney, com a carga política inerente, não deixou de sugerir que, a despeito das ações concretas de integração internacional efetivamente promovidas, muito do desejado e planejado se limitou ao plano discursivo, acenando a certa altura, para uma configuração mítica, quando se juntam as partes dos discursos. O principal que se destaca é a perfeição de uma ação externa frente à imperfeição de uma política interna de todo modo malconduzida. (p. 55)
Cabe destacar que, através do panorama histórico proposto pelo autor, as
articulações feitas entre o embasamento sociológico do narrador e o texto literário
convergem para uma mesma linha de raciocínio: a sua inserção com a sociedade.
As prerrogativas das três crônicas sinalizam a forma como ocorrem essas relações,
o narrador não somente cita os problemas, mas dilui as suas visões dessa realidade
em torno da narrativa, fazendo, assim, com que os leitores possam refletir acerca da
sociedade exposta nos textos.
Além disso, a interação das crônicas com o social se reforça com a utilização
de elementos externos e internos ao texto, na medida em que o traço social é visto
funcionando para formar a estrutura das crônicas e exemplificar a forma com que a
interação entre literatura e social se constitui. Em tal perspectiva, vale fazer
referência à proposição de Candido (2000) segundo a qual somente situar
socialmente e enquadrar em termos que a sociedade está constituída não transforma
nenhuma obra em caráter sociológico. Por outro lado, ao fazer o leitor refletir os
temas abordados e que giram em torno de problemas sociais, denota a dimensão
social como fator de arte.
Nessa esteira, o narrador, ao utilizar as suas vivências para transpor ao texto
os problemas sociais e a relação da literatura com o social, a memória é realçada
nesse processo, visto que, ao refutar para o texto as suas ideologias, o narrador está
recorrendo aos processos históricos e consequentemente a memória. Será sobre
esse último aspecto que iremos abordar na próxima seção.
113
3.3. Relações entre literatura e memória
O conceito de memória vem sendo tema de estudos filosóficos há séculos. O
termo se modificou ao longo dos anos, adequando-se à sociedade de acordo com
suas utilizações e importância. Em cada época, o conceito foi denotado de diferentes
formas, girando em torno de conhecimentos que caracterizavam momentos
históricos também distintos. (CARVALHAL, 2006)
O significado de ter uma lembrança está na origem da memória com os
filósofos Platão e Aristóteles. Ricouer (2007) assinala que, para os estudiosos, não
era questão prévia saber de quem se lembra, já que a “atribuição a alguém
suscetível de dizer ‘eu’ ou ‘nós’ permanecia implícita à conjugação dos verbos de
memória e de esquecimento a pessoas gramaticais e à tempos verbais diferentes.”
(p. 106). Dessa forma, Platão e Aristóteles não conferiam importância às pessoas
gramaticais “eu” e “nós”, mas, sim, o que realmente lhes interessava era a busca por
uma recordação.
Nesse sentido, a relação entre a recordação e a memória ocorre na medida
em que a primeira é a sobrevivência do passado: “O passado, conservando-se no
espírito de cada ser humano, aflora à consciência na forma de imagens-lembranças.”
(BOSI, 2001, p. 53) No tocante ao assunto em apreço, as memórias são
experiências que ficam armazenadas no formato das lembranças, e essas, por sua
vez, são adquiridas através do contato social com outros indivíduos que poderão
contribuir para rememorá-las. Iziquierdo (1989) corrobora este contexto, atribuindo,
assim, um caráter social a memória, uma vez que ela depende deste meio para
adquirir as experiências que irão contribuir para o processo rememorativo:
Quando se diz a palavra memória, a primeira que salta à evocação não é a memória das molas, dos discos ou dos computadores; é a memória das experiências individuais dos homens e dos animais, aquela que de alguma maneira se armazena no cérebro. Desde um ponto de vista prático, a memória dos homens e dos animais é o armazenamento e evocação de informação adquirida através de experiências. (IZIQUIERDO, 1989, s/p)
Contudo, a concepção do estudioso acerca da memória como sendo o
armazenamento de informações adquiridas por experiências sofreu transformações
ao longo dos anos. O interesse por reflexões em torno do conceito de memória
ocorreu em 1970, com a historiografia francesa, em especial quando a história das
114
mentalidades se propagaram. No que tange essa raciocínio, Carvalhal (2006)
pontua:
A memória já se encontrava implícita naquele momento, principalmente porque os estudos voltados para a área em questão procuravam abordar aspectos da cultura popular, da vida em família, dos hábitos e costumes de uma localidade, da religiosidade, entre outros, que são, sem dúvida, pontos que remetem à constituição social da memória. (s/d)
Considerando esse processo histórico ao qual o termo está relacionado, um
dos primeiros trabalhos a adentrar no tema da memória foi o de Philippe Ariès, “ao
reivindicar atenção sobre o papel dos monumentos e comemorações relacionados
aos personagens políticos reconhecidos do século XIX, durante a formação dos
Estados-Nação” (CARVALHAL apud FERREIRA, 2002, p.141-52). Com vistas a
Philippe Ariès, Cardoso e Vainfas (2012) pontuam que este destacou o papel dos
rituais comemorativos com a função de fortalecer os laços familiares no final do
século XVIII e início do século XIX, nas palavras dos autores: “Ariés chamava
atenção também para o papel dos monumentos, das comemorações em torno das
figuras políticas ilustres ao longo do século XIX, e para com eles se relacionavam
com a emergência dos Estados nacionais.” (p. 175). Os autores destacam ainda que
com Ariès surgiu um novo gênero na historiografia da década de 1980, a história das
políticas de comemoração, “cujo pioneiro Foi Maurice Agulhon, que analisou a
imagem da República na França (1789-1879) em sua obra Marianne au combat
(1979).” (p. 175) É neste contexto de formulação teórica acerca da memória e no
esforço de pensar esse conceito que Maurice Halbwachs tornou-se fundamental na
elaboração da Sociologia da Memória Coletiva, acentuando, assim, a relação entre a
memória e o seu empreendimento em torno de aspectos sociais.
A questão central na obra do estudioso consiste em afirmar que a memória
individual se forma a partir da memória coletiva, haja vista que as lembranças são
constituídas através de grupos sociais. Nessa esteira, Halbwachs inicia o primeiro
capítulo de seu livro A Memória Coletiva, afirmando que é preciso recorrer a
testemunhas para reforçar ou enfraquecer, “o que sabemos de um evento sobre o
qual temos algumas informações, embora muitas circunstâncias a ele relativas
permaneçam obscuras para nós.” (HALBWACHS, 2006, p. 29). Todavia, o estudioso
atenta que, para obter essas informações, não são necessários testemunhos, no
115
sentido literal da palavra, mas sim um fato pode ser (re)contado por um grupo de
pessoas. Nas palavras do autor:
Uma ou muitas pessoas juntando suas lembranças conseguem descrever com muita exatidão fatos ou objetos que vimos ao mesmo tempo em que elas, e conseguem até reconstituir toda a sequência de nossos atos e nossas palavras em circunstâncias definidas, sem que nos lembremos de nada de tudo isso. Examinemos, por exemplo, um fato cuja realidade é indiscutível. Alguém nos traz provas seguras de que tal evento ocorreu, de que estivemos presentes e dele participamos ativamente. Não obstante, a cena continua estranha para nós, como se outra pessoas houvesse desempenhado nosso papel nesta situação. (HALBWACHS, 2006, p. 31)
Desempenhar um papel que não é daquele que está rememorando o fato
consiste em incluir a memória a uma coletividade. Por isso, Halbwachs se refere à
estrutura social desta, relacionando-a à memória coletiva em grupos (família, grupos
religiosos, classe social, dentre outros). Nesse contexto, Bosi (2001) afirma que a
memória está relacionada também aos grupos sociais:
A memória do indivíduo depende do seu relacionamento com a família, com a classe social, com a escola, com a Igreja, com a profissão; enfim, com os grupos de convívio e os grupos de referência peculiares a esse indivíduo. (BOSI, 2001, p. 54)
Com vistas às reflexões propostas por Bosi (2001) acerca de a memória estar
atrelada a grupos sociais, para Halbwachs, esse aspecto é determinante na
elaboração de uma teoria proposta acerca da influência com meio social. Além
destas formas, Janet (1928) cita ainda a linguagem como forma de integrar a
memória ao meio social. Sobre a linguagem, Le Goff (2003) a entende como uma
das possibilidades de armazenamento da memória:
Deste modo, Henri Atlan, estudando os sistemas auto-organizadores, aproxima linguagens e memórias. A atualização de uma linguagem falada, depois escrita, é de fato uma extensão fundamental das possibilidade de armazenamento da nossa memória que, graças a isso, pode sair dos limites físicos do nosso corpo para se interpor quer nos outros, quer nas bibliotecas. Isto significa que, antes de ser falada ou escrita, existe uma certa linguagem sob a forma de armazenamento de informações na nossa memória. (LE GOFF, apud Florès 1972, p. 461)
Ainda nesta perspectiva acerca da linguagem, os estudiosos se aproximam
neste estudo, na medida em que reconhecem o caráter social da memória, tendo a
linguagem como suporte. Bosi (2001) corrobora nesse sentido, afirmando que “o
116
instrumento decisivamente no mesmo espaço socializador da memória é a
linguagem.” (p. 56) As reflexões propostas pelos autores conduzem a ideia de que é
através da linguagem que os indivíduos empregam a comunicação e trocam
experiências utilizando o meio social para constituir suas lembranças.
Ainda neste contexto, além da contribuição da linguagem acerca do aspecto
rememorativo e socializador da memória, outras vertentes teóricas incluindo muitos
campos do conhecimento, tiveram grande impulso no século XX. Sobre essas, Braga
(2000) cita primordialmente o social, engajado na perspectiva direta com os
processos da memória:
Questionamos, em nosso texto, o enfoque reducionista de algumas teorias nas neurociências e na psicologia que se atêm aos aspectos biológicos da recordação. Tendo clareza quanto aos limites de nosso trabalho, tentamos mostrar algumas noções presentes em estudos sobre aspectos neurológicos e psicológicos da memória, bem como pressupostos e direções que as norteiam, destacando que, algumas vezes, o que os autores privilegiam traz problemas para a compreensão do funcionamento especificamente humano. Como é possível considerar somente o funcionamento cerebral/mental como responsável pelo processo, com repercussões comportamentais, se o desenvolvimento do homem é essencialmente social? (BRAGA, 2000, p. 17)
Mesmo com proposições que relacionem a memória a aspectos biológicos, a
pergunta que Braga (2000) refere soa como um tom reflexivo a estudos que visam a
desconsiderar a memória imbuída em seu lado social. Braga (2000) cita ainda outros
estudiosos que compravam a sua reflexão acerca do social, tais como Marx e Engels
(1982), que há sessenta anos, redimensionaram a questão da memória,
“considerando-a enquanto processo intrinsecamente relacionado à natureza social
do homem, às suas formas de vida, às organizações e práticas grupais e
institucionais.” (BRAGA, 2000, p. 19) Tais estudos voltam-se para memória enquanto
fenômeno social, contudo analisando as influências sobre as recordações
individuais.
Em contrapartida, Braga (2000) cita ainda as reflexões cuja predominância
incorre em estudos sociais, como a de Bartlett. Este observa, além das
especificidades sociais, quais as condições que a recordação possui. Nesse
contexto, o autor define:
De uma maneira geral, as análises dos dados mostraram que vários fatores que influenciaram os sujeitos eram sociais em origem e natureza. Muitas transformações que ocorreram na recordação dos sujeitos eram marcadas pela influência das convenções sociais e crenças correntes nos grupos aos
117
quais pertenciam. Bartlett afirma que, na “vida real”, os aspectos observados se acentuam, uma vez que a importância dos fatores sociais é grandemente intensificada. Ele adverte mais de uma vez, que “[...] a recordação exata é a exceção e não a regra. (BRAGA, 2006, p. 42)
Desse modo entendemos que a recordação, juntamente com a memória são
marcadas por influências sociais, sobretudo o conteúdo e o modo da recordação,
haja vista que os grupos sociais estão, de alguma forma, organizados. Assim, o
engajamento da experiência social reflete na semelhança da estrutura de como está
determinada a sociedade. No que tange ainda ao caráter social da memória, este
aspecto é reafirmado por outro autor, Bosi (2001), que abarca a questão grupal nas
reflexões em torno da memória:
Goethe já observava, em Verdade e poesia: Quando queremos lembrar o que aconteceu nos primeiros tempos da infância, confundimos muitas vezes o que se ouviu dizer aos outros com as próprias lembranças. Daí o caráter não só o pessoal, mas familiar, grupal, social da memória. (BOSI, 2001, p. 59)
Além das definições mencionadas pelos estudiosos acerca da memória, neste
estudo, consideramos ainda a presença de outro tipo de memória: a cultural. Por
essa ser constituída em heranças simbólicas que são materializadas em ritos,
monumentos, celebrações, escritura sagradas e outros objetos mnemônicos, como
os textos, consideramos a aproximação deste tipo de memória às narrativas de Caio,
isso porque o escritor gaúcho materializa as memórias culturais em seus textos.
Nesse âmbito, para melhor compreender a definição dessa memória, Costa
(2010) sugere que ela esteja ligada ao passado: “A memória cultural está ligada ao
passado longínquo. Esse passado se releva por meio de figuras simbólicas.” (p. 57-
58) Além dessas, outras peculiaridades da memória cultural são ressaltadas por
Costa (2010): a) os acontecimentos estão ligados a um passado absoluto; b) alto
grau de cristalização da forma, comunicação cerimonial, rituais; e c) representantes
especializados em tradições. Em suma, “a memória cultural é a memória do passado
primordial.” (COSTA, 2010, p. 58) Outra prerrogativa apontada pela autora é a de
que a memória cultural faz parte do conhecimento que é partilhado entre membros
de uma sociedade, nesse sentindo, entendemos que assim como a memória coletiva
ou individual, a memória cultural está estreitamente relacionada à sociedade.
Desse modo, individual, coletiva ou cultural, a memória é um dos princípios
fundamentais da sociedade, tal como pondera Le Goff (2003): “A memória é um
118
elemento essencial do que se costuma chamar de identidade, individual ou coletiva,
cuja busca é uma das atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades de
hoje, na febre e na angústia.” (p. 469) A importância da memória ocorre, então, na
medida em que ela se torna parte integrante da sociedade e se constitui como
primordial para as relações entre os indivíduos, e, para demonstrar como incide a
presença da memória, especialmente a cultural nas crônicas de Caio, a próxima
seção analisa crônicas do autor em associação à perspectiva da construção da
memória.
3.4. A construção da memória na crônica de Caio
Neste estudo, a memória está sendo concebida através do seu caráter sócio-
cultural. Assim, erigindo referenciais da seção anterior, vamos observar como ocorre
a construção da memória nas crônicas de Caio. Para melhor exemplificar essas
relações, a narrativa “Ninguém merece Jânio Quadros”, de vinte e oito de outubro de
mil novecentos e oitenta e sete, sinaliza a interação de como ocorre essa
construção.
Com essa narrativa, observamos a presença da memória individual de um tempo
histórico, marcado pela prática de governos autoritários que não estão preocupados
em resolver os problemas do povo:
Semana passada, me deu uma vergonha tão grande de morar numa cidade que tem como prefeito essa figura lamentável do sr. Jânio Quadros, que até pensei: bom, no domingo sento e escrevo sobre isso. Uma crônica/carta irada, reclamando da sujeira das ruas, da violência solta, do barulho, da poluição, do lixo. Uma carta raivosa, cheia de cobranças. Lamentando a burrice deste povo que elegeu o sr. Jânio como prefeito e é bem capaz de, nas próximas (cadê?) eleições diretas para presidente, votar naquele outro senhor — o João Baptista Figueiredo. Uma carta sugerindo o internamento imediato do sr. Jânio (como ele fez com a própria filha) para uma boa — digamos — faxina mental. Com muito detergente. (ABREU, 2012, p. 127)
Com esse fragmento, é possível observar a repulsa do narrador com relação a
Jânio Quadros. Identificamos, assim, uma herança simbólica de indignação ao
político que é materializada no texto, o que equivale a afirmar que a memória
individual sobrepõe-se, isso porque é a impressão do narrador sobre a sociedade em
que está inserido, que é ressaltada ao leitor. Por ser uma memória materializada no
texto, há ainda a presença da memória cultural.
119
Ao relatar as suas impressões acerca do cenário político, o narrador entende que
o antídoto que irá amenizar esse problema, são as questões culturais, tais como:
Aquele filme irresistível chamado Down by law; os trabalhos da família Boyle, na Bienal; o show de Os Mulheres Negras (que seria ainda melhor se eles parassem com as abobrinhas pueris e investissem na música mesmo); um bilhete de Nara Leão; a A-Z com Paulinha Toller na capa de um artigo de Bivar sobre Dadá; certa tarde no Ritz quase vazio, com a voz de Gal Costa, de repente cantando “Todo amor que houver nessa vida”, de Cazuza (Axé?); esse livro atrevido chamado Maria Ruth, de Ruth Escobar; um telefonema de Hilda Hilts; Paula Dip voltando de Londres; Nelson Beissac Peixotto me trazendo uma maquetezinha de papelão de Nova Iorque, com King Kong e tudo; um sonho com Fanny Abramovich; um chá com Jaqueline Cantore e Hugo Prata. Tanta coisa boa, bonita, gostosa, que pensei: não, o leitor o não merece Jânio Quadros. (ABREU, 2012, p. 127)
A alusão a elementos externos ao texto mostra como as tendências sociais
influenciam o processo rememorativo na percepção do narrador. Através da
linguagem, é possível perceber como a utilização do meio social sinaliza a
construção das lembranças do narrador. O filme Down by law, uma comédia
estadunidense lançada em 1986, em linhas gerais, é uma obra que mostra seres que
vivem nos limites da sociedade, longe dos ideias em que estão inseridos. Da mesma
forma com que o filme representa a expressão da década de oitenta, os outros
elementos citados pelo narrador se constituem em uma memória cultural da época
em que a crônica foi publicada. A memória, nesse sentido, pode ser entendida como
um fenômeno social, isto é, está ligada à geração de 1980, no entanto,
consideramos nesse processo, também, as influências sobre as recordações
individuais do narrador, já que são as suas percepções em torno de traços sociais
(filme, show, revista), mas que estão inseridos na sua individualidade. Por esse viés,
as recordações podem ter conotação social, mas o processo mnemônico é peculiar a
si, individual.
As recordações individuais que se sobrepõem ao coletivo podem ser ressaltadas
ainda na crônica “Adeus, agosto. Alô, setembro”, de dois de setembro de mil
novecentos e oitenta e sete. Em sentido análogo a “Ninguém merece Jânio
Quadros”, a primeira também demonstra a presença da memória, isso porque o
narrador ressalta o momento que o Brasil estava passando, e o que precisava ser
feito para suportar e refletir as adversidades da época. A linha de apoio prenuncia a
reflexão proposta pelo narrador: “Mesmo aqui no País Bandido, agosto sempre vai
embora. E setembro sempre volta, sim.” (ABREU, 2012, p. 113) Com esse excerto,
120
percebemos que a presença da memória coletiva e cultural é grifada pelo narrador. A
memória coletiva está presente quando o autor refere que agosto sempre vai
embora, já setembro sempre volta, ou seja, com o mês de setembro, predominam
acontecimentos de teor positivo, ao contrário de agosto, e, nesse contexto, é
importante ressaltar que a proposição de que agosto é um mês ruim não foi
concebida pelo narrador, mas vem sendo disseminada há séculos, o que denota a
presença da memória coletiva. Além desta, a menção do narrador possui, ainda, o
caráter da memória cultural, que pode ser apreendida na medida em que citamos as
lendas que circundam o mês de agosto.
Para melhor compreender a presença de memória coletiva (po r estar
relacionada ao mês de agosto ser apreendido por proposições de teor negativo) e a
memória cultural (referindo-se as lendas que circundam esse mês), passamos a
observar como essas características foram permeadas pelos mitos que envolvem o
mês de agosto. A etimologia de como surgiu o nome “agosto” está calcada no
império romano. Whitrow (1993) afirma que foram os romanos que denotaram a
forma do nosso calendário e as convenções do registro do tempo:
Nosso calendário atual é uma modificação do calendário introduzido por Júlio César em 1º de janeiro de 45 a.C., e que tem o seu nome. Anteriormente, os romanos tinham tentado contabilizar seu calendário civil – que, como muitos calendários antigos, baseava-se na Lua – com o ano astronômico baseado no Sol, mediante a um sistema que envolvia um mês adicional ou intercalar de dois em dois anos. Como a duração desse mês não era determinada por qualquer regra precisa, os governantes podiam arbitrá-la como quisessem, e frequentemente abusavam desse poder para fins políticos. Manipulando o número de dias do mês intercalar, podiam prolongar um mandato ou apressar uma eleição, e o resulto foi que, na época de Júlio César, o ano civil estava defasado em cerca de três meses em relação ao ano astronômico, de tal modo que os messes do inverno caíam no outono e o equinócio da primavera ocorria no inverno. (p. 82)
Seguindo as informações cronológicas, Whitrow (1993) relata que César, para
corrigir essas anomalias do tempo, decretou que o ano 46 a.C. seria prolongado a
445 dias, baseando-se em um calendário totalmente solar. Desse modo, fixou o ano
verdadeiro em 365 dias e ¼ e introduziu o ano bissexto de 366 dias de quatro em
quatro anos, já o ano civil comum iria se compor em 365 dias:
Estabeleceu que janeiro, março, maio, julho, setembro e novembro teriam todos 31 dias e os demais 30, exceto fevereiro, que normalmente teria 29 dias e, nos anos bissextos, 30. Lamentavelmente, em 7 a.C. esse bem-feito arranjo sofreu uma interferência: em homenagem a Augusto (que o
121
considerava seu mês de sorte), deu-se seu nome ao mês Sextilis, atribuindo-lhe o mesmo número de dias do mês precedente, que fora renomeado por Marco Antônio em honra ao seu tio-avô assassinado. Assim, um dia foi tirado de fevereiro e transferido para agosto. Para evitar a ocorrência sucessiva de três meses de 31 dias, setembro e novembro foram ambos reduzidos a 30 dias, e outubro e dezembro passaram a ter 31. Assim, em homenagem ao primeiro dos imperadores romanos, um arranjo ordenado foi reduzido a uma mixórdia ilógica que muitas pessoas têm dificuldade em memorizar, mas que, no curso de 2.000 anos, foi imposta com sucesso à maior parte do mundo. (p. 82)
Além dos romanos instituírem a agosto este nome, foi com esse povo que o
mês ficou conhecido como negativo, pois eles acreditavam que era nesse período
que uma criatura horripilante cruzava os céus da cidade, expelindo fogo. As lendas
que abarcam esse mês vão além das que o povo romano acreditava, pois Lacerda
(2004) associou agosto ao mês do desgosto, e, por esse prisma, Pinto (2000) afirma
que, além de agosto ser o mês do desgosto, é também o mês do cachorro louco.
Nessa esteira, outra consideração acerca desse mês deve ser ressaltada, dia 24 de
agosto é comemorado o dia de São Bartolomeu, este santo promoveu muitas
conversões ao Cristianismo, o que provocou inveja, então, ele foi executado em 51
d.C, anos depois, no mesmo dia, aconteceu um massacre na França, além disso, 24
de agosto é datado como o dia do Diabo. Newton Junior (1999) afirma que na crença
popular nordestina, o dia 24 é o dia em que o diabo anda solto pelo mundo:
É o mesmo dia, por exemplo, do nascimento do Boi Mandingueiro. Sobre esta data, afirmou Idelette Muzart: “Seja originado no martírio de São Bartolomeu ou na sangrenta lembrança da História da França, este medo supersticioso ficou ainda reforçado quando, em 1954, o Presidente Getúlio Vargas suicidou-se no dia 24 de agosto”. (p. 115)
De acordo com todas as conotações que inferem ao negativismo que agosto
possui, é que percebemos no excerto do narrador da crônica uma memória cultural.
As lembranças foram, nesse sentido, objetivadas e institucionalizadas – os
indivíduos relacionam a agosto um distanciamento dos efeitos positivos, essas
informações foram armazenadas, repassadas e reincorporadas ao longo das
gerações. É por esse caráter ser passado de geração a geração, que o narrador da
crônica “Adeus agosto. Alô setembro” inicia a narrativa afirmando:
Agosto, todo mundo sabe, nunca foi fácil. Este que nos deixou à meia-noite de ontem e pareceu durar uns seis meses, cumpriu a tradição. Levou Drummond, levou John Huston, Gilberto Freyre. O mais patético: levou Pixote. Ao saber do assassinato (é as-sas-si-na-to mesmo que eu quero
122
dizer) dele, além de sentir uma vergonha viscosa de ser brasileiro, fiquei pensando assim – Deus, o que é que está acontecendo com este país? Imagino a praça de guerra (Líbano perde) em que se transformou o Rio de Janeiro e, na trilha sonora, ficou ouvindo Lobão berrar “vida, vida, vida bandida”. Em 1987, Lobão tornou-se a mais perfeita tradução de Brasil. Um país invadido pela corrupção, pela barbárie, pela violência policial, pela bandidagem. Você vai até a esquina comprar cigarros e não sabe se volta vivo. (ABREU, 2012, p. 113) (grifos nossos)
A ideia de memória cultural ser constituída por heranças simbólicas
materializadas em textos que funcionam para incorporar significados ao que passou
é perfeitamente aceitável neste primeiro parágrafo da crônica. O narrador cita os
motivos de agosto ser considerado um mês que “não é fácil”, e ainda relaciona os
problemas vividos pelo Brasil na época em que a crônica foi escrita estarem
associados a agosto. Como na narrativa anterior, o antídoto para amenizar os
sentimentos ruins é a música. Nesse sentido, o narrador cita “Vida Bandida”, cuja
autoria é do cantor e compositor Lobão. Essa canção faz parte do terceiro álbum do
cantor e foi lançada em 1987. Os temas que compõe esse álbum, a exemplo da
música citada pelo narrador, são de teor introspectivo e dramático, porque
representam um período da vida de Lobão em que esteve na prisão. “Vida Bandida”
representa uma sociedade tal como o nome propõe: “bandida”, isto é, sem condições
mínimas para viver, o que cabe no raciocínio proposto de um país invadido por
conotações negativas: corrupção, barbárie, violência policial, bandidagem. Além da
música, o narrador cita o teatro e faz comentários positivos para que os leitores
possam ir ver a peça que seus amigos de Porto Alegre irão encenar em São Paulo.
Ao falar sobre música e teatro na crônica, entendemos que o narrador faz alusão a
esses elementos como uma forma de fuga frente a uma realidade hostil.
A memória, então, entendida enquanto fenômeno social, sobretudo, quando
analisamos as influências sobre as recordações individuais, pode ser sinalizada em
outra narrativa, a crônica de dois de outubro de mil novecentos e noventa e quatro
“Delírio eleitoral à beira do ridículo”. A narrativa representa, como nas duas
anteriores, a memória individual do narrador imbuída de processos sociológicos. Na
crônica em questão, o leitor é apresentado a uma série de estratégias para não votar
em determinadas personalidades políticas. A narrativa foi escrita em vias da eleição,
então, o narrador quer conscientizar seus leitores através de sua opinião, uma
memória individual que interfere na concepção social e individual de cada um, ou
seja o voto:
123
Assumi o pensamento quando vi Eliakin & Leila no SBT revelando que o mesmo temor atacou também Caetano Veloso, injuriado porque Enéas Carneiro ultrapassou Brizola nas pesquisas. Mais seguro, revelo para vocês aqui e agora o meu maior e mais ridículo medo pré-eleitoral – e se... o Enéas ganhar? (ABREU, 2012, p. 199)
Após a indagação, há a descrição na crônica de uma longa pausa, o que indica
que a posição individual da memória do narrador está centrada em um aspecto
negativo a que Enéas está relacionado. Além deste, o narrador cita outros políticos
cuja denotação negativa fica explícita:
Décadas atrás, o povo chegou a eleger o rinoceronte Cacareco (lembro da marchinha de carnaval: “eu-encontrei-o-Cacareco-tomando-chope-com-salsicha-e-rabanada”); houve também um certo macaco Tião. Houve até – credo em cruz! – Fernando Collor. Por que não Enéas Carneiro? Assim, de sarro. Ou de amargura, porque depois de tanta bobagem, feiúra, denúncias, golpes, cinismos, arrivismo, falsidade (alô, alô FHC), o eleitor poderia muito bem se decidir por aquela opinião que De Gaulle tinha sobre o Brasil – a célebre c’est pás un pays serieux. Oswald de Andrade, ou seu espírito, adoraria. Chacrinha talvez reencarnasse para ser, digamos, ministro da Fazenda. E Mazzaropi ou Oscarito para a Saúde, que tal? Uau, enfim, uma República Palhaça! Assumida, descarada. (ABREU, 2012, p. 200)
Cabe destacar que, através da ironia, a crônica firma-se como um exemplo de
como a memória individual influencia sua concepção de como está calcada a
sociedade em termos políticos. Nesse sentido, a memória individual é sinalizada por
ser entendida como a que é guardada por um indivíduo, nesse caso, o narrador, e
refere-se as suas vivências e experiências. No entanto, os aspectos do grupo social
também estão presentes na memória individual, visto que, ele recorda-se de
marchinhas de carnaval, programas televisivos que se encontram a nível coletivo. A
presença desses elementos exerce a mediação produzida no compartilhamento dos
sentidos como matéria-prima constitutiva da memória social. Nessa esteira, é
importante ressaltar que as relações entre memória individual e social ocorrem na
medida em que entendemos que a memória social, quando adquirida em
determinados contextos, desenvolve-se em interação e com práticas, experiências e
códigos simbólicos partilhados, é estruturada pela linguagem e é parte do processo
de reprodução social.
Para melhor conduzir as reflexões acerca da memória individual e coletiva,
Ricouer (2007) propõe a ideia de que três traços podem ser ressaltados em favor do
124
caráter essencialmente privado da memória. O primeiro relaciona-se à memória ser
radicalmente singular: “minhas lembranças não são as suas. Não se pode transferir
as lembranças de um para a memória de outro. Enquanto minha, a memória é um
modelo de minhadade, de possessão privada.” (p. 107) Um segundo ponto diz
respeito ao vínculo da memória residir no passado. Assim, nas palavras do
estudioso: “a memória é passado, esse passado é o de minhas impressões; nesse
sentido, esse passado é meu passado. É por esse traço que a memória garante a
continuidade temporal da pessoa”. (RICOUER, 2007, p. 107) E finalmente, em
terceiro,
É à memória que está vinculado o sentido da orientação na passagem do tempo; orientação em mão dupla, do passado para o futuro, de trás para frente, por assim dizer, segundo a flecha do tempo da mudança, mas também do futuro para o passado, segundo o movimento inverso de trânsito da expectativa à lembrança, através do presente vivo. (RICOUER, 2007, p. 108)
A proposição da individualidade da memória está calcada em Santo Agostinho,
após este vieram John Locke e Husserl, posterior a ele, está Maurice Halbwachs,
para quem a memória está diretamente ligada a uma entidade coletiva, que ele
denomina, grupo ou sociedade, o estudioso afirma que para lembrar-se é preciso
dos outros. Em tal contexto, Ricouer (2007), esclarece que “é a partir de uma análise
sutil da experiência individual de pertencer a um grupo, e na base do ensino recebido
de outros, que a memória individual toma posse de si mesma”. (p. 130) Com efeito, é
no caminho da recordação e da lembrança que nos deparamos com a memória dos
outros.
A recorrência da memória individual está presente na narrativa, pois as
lembranças, tanto de programas de televisão, quanto do mal que algumas
personalidades políticas fizeram ao país, estão em nível de “minhadade”, como
denomina Ricouer (2007), ou seja, elas são processos mnemônicos que possuem
exclusivamente as lembranças do narrador. No entanto, essa experiência de caráter
individual está relacionada a um grupo social, tanto é que o narrador cita os
fenômenos de ordem sociológica, além disso, entendemos essa memória como
social e coletiva, pois se baseia na cultura de um agrupamento social e em códigos
que foram apreendidos em processos de socialização. Em tal perspectiva,
percebemos a presença tanto da memória individual, quanto da social.
125
Os códigos de processos sociais estão sinalizados pelos motivos aos quais o
narrador não quer que os leitores votem em Enéas. O narrador recorda-se de uma
situação com o político:
Piada? Espero mesmo que não passe disso. Seria perigoso demais, por trás da imbecilidade aparente, Enéas parece tão fascista quanto o porco Berlusconi. Sei o que digo. Eu o conheci no final de 1990, no Aeroanta, quando Grace Giannoukas, Angela Dip e Marcelo Mansfield (na época o grupo Harpias & Ogros) ofereceram a ele um dos troféus “Créme de la Créme”. Encarregado por Martha Góes de fazer a cobertura para esse mesmo Caderno 2, dividi uma mesa com a poeta Ledusha, a atriz Maria de Moraes e, voilá, o tal Enéas. Este, levando a sério o puro deboche. Constrangedor. E me pergunto, seria tão patética assim a desilusão do povo brasileiro a ponto de cometer esse abasurdo? Razões não faltam, sei. Eu mesmo endureci muito após o affair Ibsen Pinheiro... (ABREU, 2012, p. 200)
Com o excerto, podemos atentar para o caráter dinâmico da memória: ao ser
evocada no presente (narrador expõe motivos concretos por sua desilusão com
Enéas), remete ao passado (as recordações que envolveram o nome do político),
mas sempre tendo em vista o futuro, ou seja, que Eneás não seja eleito. O final da
crônica é em sentido de despedida e de alerta aos leitores:
Peço então en-ca-re-ci-da-men-te: amanhã votem em quem quiserem, mas NUNCA em Enéas. A comédia pode virar tragédia, gente. Já pensou quatro anos de meu-nome-é – etc, perseguição às minorias e defesa da célula-mater? Posto isso, parto para Frankfurt dia 4. Terei que ler em alguma língua estrangeira sobre o que rolou por aqui. Caso essas minhas torpes fantasias se realizem, juro que nem volto: vou direto morar em Saravejo. Anyway, da estrada, mando notícias. E juízo amanhã, hein? (ABREU, 2012, p. 200)
O vocábulo “en-ca-re-ci-da-men-te” está permeado por marcas da oralidade, a
presença dos hifens denota a pausa na fala do narrador para que a expressão seja
ressaltada aos leitores. Nessa perspectiva, além da presença da memória individual,
coletiva e social, observamos a memória como construção no que tange a reflexão
acerca do social. O narrador não está somente representando a sua opinião que
interfere no social, ele propõe também que os leitores saibam refletir sobre seu voto
e mostra o quanto essa decisão possui importância.
A reflexão sobre temas sociais caracteriza as crônicas de Caio. As narrativas
possuem um peso especial no que se relaciona ao compromisso com o cotidiano e
ao tempo, ligam-se, então, a um fato ou acontecimento temporal. Por esse viés do
tempo, a memória insere-se, pois cabe ao cronista buscar em suas recordações
individuais, coletivas e sociais, a reprodução das narrativas. Em especial, nas
126
crônicas analisadas de Caio, podemos ressaltar a presença da memória individual,
coletiva, cultural e social. A memória individual está presente, pois Caio expõe as
suas posições ideológicas nas crônicas, e a memória coletiva é entendida enquanto
fenômeno social, analisando as influências sobre as recordações individuais, a
memória cultural está imbricada de lembranças objetivadas e institucionalizadas que
são armazenadas, repassadas aos leitores e materializadas através de textos e, por
fim, a memória social, com vistas a ser parte integrante do processo de reprodução
social.
Ao fazer referência a presença das diferentes memórias nas crônicas de Caio,
entendemos que suas narrativas contribuem para relacionar o aspecto literário e
jornalístico de suas crônicas, a forma com que as narrativas dialogam com a
sociedade e, por fim, que essas características constituem crônicas que, mesmo
escritas nas décadas de oitenta e noventa, são denominadas atemporais, pois
permitem ao leitor a reflexão de temas que circundam a sociedade atual.
127
CRÔNICAS DE CAIO: RELATOS DE UM NARRADOR-REPÓRTER
A leitura de crônicas de A Vida Gritando nos Cantos permite várias reflexões.
A primeira delas relaciona-se ao título que constitui uma espécie de síntese das
narrativas. Como procuramos demonstrar, as crônicas de Caio abordam o cotidiano,
tratam da vida. Assim, temos a explicitação do termo “a vida” no título. O senso
crítico das crônicas de Caio remete à imagem de grito que faz parte do título e “nos
cantos” faz alusão ao meio em que as crônicas foram veiculadas: em um jornal que
chega a muitos espaços e leitores. Enfim, A Vida Gritando nos Cantos é um recurso
de alerta aos leitores sobre temas delicados da vida social, mostrando o quanto a
arte pode atentar para problemas sociais, fazendo os leitores compreenderem o
meio do qual fazem parte.
Nessa obra, os textos de Caio trazem uma visão singular na forma de
conceber essas narrativas. A interação da literatura com a sociedade nessas
narrativas sinaliza a forma com que o escritor conduz seus textos, fazendo com que
o leitor sinta-se em meio a eles e possa refletir sobre os temas ali registrados. Nesse
sentido, podemos destacar ainda que Caio foi um leitor de seu tempo, o que nos
permite associar sua visão de cronista a uma expressão citada por Sá (1999),
“narrador-repórter”. As crônicas de Caio mostram o quanto ele foi um “narrador-
repórter”, pois entendemos que é essa a relação que o escritor gaúcho estabelece
com as crônicas: um narrador-repórter por transformar fatos cotidianos em matéria
literária.
Além desse traço, convém destacar que Caio explorou vários recursos
estéticos ao construir suas narrativas no gênero crônica. Para melhor exemplificar a
forma como as suas crônicas transpõem fatos corriqueiros em uma linguagem
imbuída de subjetividade, introspecção, alusão a elementos externos, ironia, humor,
diálogo com leitor, interação da literatura com a sociedade e a memória acerca dos
fatos que estão inseridos nas narrativas, demonstramos como todos esses
elementos se relacionam, pontuando as principais considerações desta pesquisa.
Para tanto, refazemos o percurso proposto neste trabalho com a divisão em três
capítulos e apontamos dentre estes as principais peculiaridades que podem ser
evidenciadas nas crônicas do escritor gaúcho, e por fim, mostramos alguns
desdobramentos que esse estudo pode adquirir.
128
Os objetivos a que nos propomos ao estudar a obra A Vida Gritando nos
Cantos consistem em reconhecer as características da crônica enquanto gênero
literário, identificar os traços singulares da narrativa de Caio, mostrar as relações
entre literatura e sociedade, qual a expressão dessa ligação para a crônica do
escritor gaúcho, e ainda, como incorre a construção da memória nas crônicas. Para
dar conta desses objetivos, separamos as reflexões em três momentos. O primeiro
capítulo evidenciou a teoria que envolve a crônica, o hibridismo que circunda os
campos da literatura e do jornalismo e, por fim, mostramos um pequeno esboço da
crônica brasileira em distintos autores.
É importante ressaltar que o limiar do jornalismo com a literatura foi fator
primordial para a escolha das crônicas como objeto central deste estudo, justamente
por ser um gênero que aborda aspectos da realidade, estabelecendo, assim, um
diálogo entre sociedade e contexto jornalístico, mas também utilizando a
subjetividade e elementos que se voltam para a interação com a literatura. Com
efeito, a proposição de Candido (1989), acerca do fato de a comunhão que o texto
literário estabelece com o social ocorrer pela pretensão de humanizar, é
perfeitamente aceitável para compreender as crônicas de Caio, uma vez que o
engajamento com relação ao social, a representação e a tentativa de melhor
compreensão do mundo em que estava inserido estão em consonância com as
crônicas do escritor gaúcho. Ademais, entre as particularidades que aproximam a
crônica da literatura e do jornalismo e estão presentes nas narrativa de Caio,
podemos citar ainda a busca pela subjetividade, o uso de linguagem mais livre e
descompromissada, as qualidades estéticas e a literalidade.
No que tange a essa primeira parte de reflexões que envolvem a teoria da
crônica, após percorrer o caminho de como o gênero foi sendo concebido por
distintos estudiosos ao longo dos séculos, entendemos que as características
expostas sobre esse gênero nos serviram para erigir referenciais teóricos por
evidenciar que os traços que pertencem a crônica de Caio não podem ficar restritos
as reflexões da crônica enquanto gênero tal como proposto pelos estudiosos, por
isso, podemos afirmar que os apontamentos da teoria da crônica não são suficientes
para o estudo da crônica de Caio, pois, por exemplo, a objetividade propagada pela
teoria da crônica como um traço singular desse gênero não é percebida na crônica
de Caio no sentido de que este autor usa uma linguagem objetiva em termos de
extensão, mas subjetiva em termos de construção e conteúdo. O que fizemos, foi
129
utilizar as características predominantes do gênero crônica e transportá-las para as
narrativas de Caio, presentes na obra A Vida Gritando nos Cantos. Ao eleger a
linguagem coloquial, o humor e ironia, a subjetividade e o trabalho de citação e a
busca pelo diálogo com leitor, fixamos nossas análises em algumas das
características que são pontuadas pelos estudiosos da crônica. Elegemos esses
elementos, pois observamos que a maior parte das narrativas que estavam na obra
que compreende nosso corpus atendiam a essas particularidades.
Ao observar a presença dos elementos já citados que compreendem as
análises do segundo capítulo, observamos que as narrativas formam um diálogo
aberto e explícito entre escritor, leitor e sociedade. O autor ainda explora em seus
textos uma linguagem de aproximação com o leitor, para chegar aos que leem,
como se estivessem em uma conversa cotidiana, e, nesse contexto, distintos temas
são abordados, no entanto, a preferência de Caio nas crônicas são os assuntos que
envolvem elementos externos. Ao falar sobre política, Caio cita música (cantores,
compositores, álbuns de artistas), cultura, (relaciona ao cinema, peças de tetro,
televisão) e, é claro, literatura (livros, autores consagrados), ao falar sobre violência,
histórias íntimas, viagens, tudo está permeado pela presença constante de citações
à elementos externos.
Outra importante característica que está inerente à crônica do escritor são os
aspectos sociais, seu espírito crítico e até mesmo autocrítico, os quais induzem o
leitor a temas que remetem ao cotidiano e à reflexão. Com as suas crônicas, não é
possível falar em linguagem simples, a qual, segundo a teoria da crônica é uma das
maiores particularidades do gênero. Isso porque, mesmo com a linguagem simples
ou com um fato corriqueiro, as narrativas do escritor gaúcho transformam-se,
imprimindo um grau maior de complexidade, e isso deve-se à composição que tanto
a linguagem coloquial, humor e ironia, subjetividade e trabalho de citação e diálogo
com leitor formam nas crônicas do escritor gaúcho. São através desses quatro
elementos (que se desdobram em si) que podemos resumir as principais e especiais
qualidades da crônica de Caio. Por esse motivo, eles foram escolhidos para
referenciar o capítulo dois e possuem importância nesse estudo, pois estão
presentes em todas as crônicas que o corpus dessa pesquisa compreende.
As relações que se estreitam entre literatura e sociedade, a presença dos
elementos observados nas crônicas do escritor gaúcho e que foram exemplificadas
no segundo capítulo, auxiliam-nos para melhor compreender como ocorre a
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construção da memória nas crônicas de Caio. No tocante à memória e à interação
da literatura e sociedade é que o terceiro capítulo foi construído. O envolvimento da
literatura com a sociedade foi pontuado e exemplificado nos textos e, à medida que
essa relação se compõe não somente pela alusão a elementos sociológicos, mas,
sim, pela construção que Caio utiliza em suas narrativas, isto é, temas que denotam
a reflexão, estratégias textuais que remetem a indagação e que estão permeados
por elementos sociológicos sinalizam a interação das crônicas com o meio social.
Vale ressaltar a importância que a interação do literário com o social possui
nesta pesquisa, isso porque, da mesma forma com que os elementos pontuados no
segundo capítulo, todas as crônicas que compreendem o corpus dessa pesquisa
apresentam a presença da relação entre literatura e sociedade. Para nortear o
percurso metodológico dessas reflexões, as prerrogativas propostas por Antonio
Candido foram utilizadas. O estudioso atenta que as indicações sociais estão
presentes em referências a atitudes e palavras, mas também ao conteúdo das
crônicas para que, assim, o leitor possa refletir sobre o sentido social simbólico.
Por esse prisma, as crônicas de Caio voltam-se ao social, fazendo uso dos
termos linguísticos e de conteúdo, mas também porque estão inseridas em um
jornal, e este é parte atuante do poder que a mídia possui frente à sociedade,
justamente por sua abrangência e pelo domínio que exerce sobre as pessoas. Por
esse viés, a mídia exerce, segundo Azevedo (2006), papel de vigia e fiscalização, e,
em sentido análogo, Caio também denota essa interação nas suas crônicas, já que,
ao exibir suas ideologias em torno dos problemas sociais, o narrador das crônicas
passa a assumir publicamente o papel de vigia. Além disso, através de relatos
pessoais, o narrador remete os leitores a reflexão acerca da atuação de políticos
brasileiros e ainda cita o nome dessas pessoas nos textos, demonstrando o que
precisa ser transformado frente à realidade. Ao utilizar essas estratégias, as crônicas
estão imbricadas de um viés sociológico que abrange a representação da sociedade
e permite ao leitor refletir sobre os problemas explanados nas narrativas,
correspondendo, assim, ao papel da interação da literatura com o meio social que é
sinalizado por Candido (2000).
Nessa esteira, o narrador, ao utilizar as suas vivências para transpor ao texto
os problemas sociais e a relação da literatura com o social, a memória é realçada
nesse processo, visto que, ao incorporar no texto as suas ideologias, o narrador está
recorrendo aos processos históricos e consequentemente à memória. No que tange
131
à memória, podemos destacar que as crônicas de Caio estudadas evidenciam uma
forma de construção de registro de um tempo social e histórico em que não foram
ignorados temas da cultura e da política brasileira e mundial. Ao contrário, Caio
soube captar dados do cotidiano e fatos relevantes no cenário social para
transformar em conteúdo literário, fazendo com que suas crônicas possam ser lidas
como uma forma de pensar o Brasil, a atuação de políticos e artistas, a perspectiva
dos escritores, entre outros temas. Nesse sentido, cabe ainda registrar que Caio, em
suas crônicas, manifestou uma perspectiva melancólica e até pessimista em relação
à situação do Brasil, como fica evidente nos textos “Ninguém merece Jânio
Quadros” e “Inútil pranto por Santa Tereza”. Enfim, podemos dizer que as crônicas
de Caio são um registro de seu tempo e, por isso, constroem uma memória sócio-
cultural de seu contexto de produção.
Ao realizar este trabalho, ainda é oportuno registrar que estudar as crônicas
de Caio foi uma forma de compreender narrativas de sua autoria que não são tão
requeridas quanto objeto de análise no meio acadêmico haja vista a escassez de
pesquisas sobre sua crônica. Traços desse gênero em sua produção foram
identificados na tentativa de buscar compreender melhor sua escrita cronística. No
entanto, o estudo de sua crônica não está esgotado. Ao desenvolver este trabalho,
surgiram algumas possibilidades de desdobramentos para pensar a crônica sobre
outros vieses, tais como refletir sobre o lugar que a crônica de Caio possui na
literatura do Brasil e a situação da crônica contemporânea em nossa literatura.
Nessa perspectiva, um questionamento merece ser respondido: em comparação
com outros escritores cronistas contemporâneos a Caio, que traços singularizam a
crônica do período e qual o lugar de Caio nesse contexto? Nesse sentido, referindo-
se ao cânone, outras perguntas nos parecem relevantes: como avaliar as suas
crônicas? Elas estão inseridas em um rol mediano, bom ou as suas narrativas não
se encontram nesses padrões de conceituação/valoração? Além disso, outra
possibilidade é discutir os traços da crônica de Caio e verificar se esses são
exclusivos de sua literatura ou se são recorrentes em outros cronistas e obras.
Enfim, são caminhos de leitura a se fazer. Que outros trabalhos contribuam para
desvendar as histórias desse singular narrador-repórter26.
26 A expressão “narrador-repórter” é emprega nesta seção final do trabalho no sentido de que Caio contou histórias, explorando recursos estético-literários diversos, o que o aproxima do mundo da literatura, o que permite a adoção do termo “narrador” que alude mais diretamente à capacidade criativa. O termo “repórter” é
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