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Leandro Marcos de Meira LIBERDADE NEGOCIADA: A PRÁTICA DA ALFORRIA EM ITAPETININGA-SP
(1820-1850)
CURITIBA 2008
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Leandro Marcos de Meira LIBERDADE NEGOCIADA: A PRÁTICA DA ALFORRIA EM ITAPETININGA-SP
(1820-1850)
Monografia de conclusão de curso apresentada ao Departamento de História, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, da Universidade Federal do Paraná, para obtenção do grau de Bacharel em História. Orientador: Professor Doutor Luiz Geraldo Silva
CURITIBA 2008
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SUMÁRIO
RESUMO............................................................................................................................iv
INTRODUÇÃO...................................................................................................................5
1 A SOCIEDADE ESCRAVISTA DEITAPETININGA....................................................11
1.1. Itapetininga: uma povoação no caminho das tropas.........................................11
1.2. A comunidade escrava de Itapetininga.............................................................16
2 O PADRÃO DO ESCRAVO ALFORRIADO EM ITAPETINGA.................................24
1.1. A Carta de Alforria...........................................................................................24
1.2. Sexo..................................................................................................................25
1.3. Idade.................................................................................................................27
1.4. Procedência......................................................................................................30
1.5. Modalidade......................................................................................................32
1.6. O perfil dos senhores que alforriavam.............................................................35
3 UM OUTRO OLHAR SOBRE A PRÁTICADA ALFORRIA.......................................38
CONSIDERAÇÕES FINAIS..............................................................................................43
FONTES..............................................................................................................................45
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICA..................................................................................45
iii
4
RESUMO
O costume de libertar escravos através da carta de alforria foi uma prática recorrente durante toda a existência da ordem escravista no Brasil. Cabe frisar, ainda, que essa prática foi observada em diversas localidades das Américas onde foi utilizada a mão-de-obra escrava, valendo, inclusive, para todas as regiões do Brasil. Em nosso trabalho, analisamos a prática da alforria em Itapetininga, província de São Paulo, no período compreendido entre 1820 e 1850. Itapetininga apresentou, durante todo o período estudado, uma economia voltada para a criação e comércio de animais e para a produção de gêneros alimentícios para subsistência e abastecimento interno. Nesse contexto, verificamos que o padrão do escravo alforriado era: adulto, homem ou mulher, nascido no Brasil e que conseguia a alforria mediante alguma forma de pagamento (dinheiro ou obrigação de serviço). Ainda verificamos que a maior parte dos alforriados saíram de pequenos e médios grupos de escravos, que eram utilizados enquanto cativos na produção de gêneros para o abastecimento interno. Logo, neste trabalho, concebemos a carta de alforria como sendo o momento final de uma negociação cotidiana estabelecida entre senhores e escravos. Negociação esta que poderia perpassar “boa parte” da vida dos sujeitos envolvidos.
iv
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Introdução
O costume de libertar escravos foi uma prática recorrente durante toda a existência da
ordem escravista no Brasil - desde a sua implantação no século XVI até sua extinção por decreto
em 1888. Destarte, o ato de alforriar figurou entre as práticas sociais mais comentadas nos
ensaios sobre a escravidão. Viajantes e grandes proprietários, que testemunharam o dia a dia
dos escravos, não raro, deixaram crônicas e relatos sobre a prática da alforria1.
Rompendo com o pensamento de etnocentrismo europeu vigente no século XIX, onde
apontava o elemento negro como sendo um mal biológico e social na formulação de uma
“nação brasileira”, aparece o trabalho de Gilberto Freire, Casa Grande e Senzala2. Neste
trabalho, Freire vai entender a alforria como sendo uma concessão paternalista, fruto da
“harmoniosa” relação entre senhor e escravos. Não raro, na obra de Freyre, passagens onde
cativos alcançavam a liberdade graças a benevolência e ao reconhecimento por parte dos
senhores, como por exemplo: casamentos comemorados com a libertação de alguns cativos;
mães-pretas que, graças a proximidade com a família, eram alforriadas e incorporadas a esta;
além de Sinhás-moças, que imbuídas do mesmo espírito paternalista de seus pais, alforriavam
suas mucamas.3
A partir da década de 1950, as produções brasileiras em torno do tema voltaram-se
para uma revisão sistemática das teses sobre a democracia racial e a benevolência da escravidão
brasileira4. Destacaram-se então os estudos realizados pela chamada escola sociológica paulista
5.
Estes trabalhos apontaram para o caráter capitalista e mercantil do sistema escravista brasileira,
sistema este, pautado na exploração e na violência do escravo africano - assim como de seus
descendentes. Dentro desta análise, sobressaiu a idéia de "coisificação" do escravo, colocando este
novamente numa condição de sujeito passivo da história. O entendimento a respeito da prática da
alforria acompanhou as transformações quanto ao entendimento do próprio sistema escravista no
Brasil. No modelo freyreano, negras amantes de senhores e, conseqüentemente os filhos,
formavam o grupo favorecido no momento de receber a liberdade das graças de seu senhor. Com
essa nova mudança de paradigma quanto ao entendimento do sistema escravista brasileiro, o grupo
1 Cf. entre outros, KOSTER, Henry. Viagens ao nordeste do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1942
(1ª ed. 1816). 2Cf. FREYRE, Gilberto. Casa grande & Senzala : formação da família brasileira sob o regime da economia
patriarcal. 30. ed. Rio de Janeiro : Record, 1991 3Cf. FREYRE (1991) Op. Cit. p. 368-371. 4 LARA, Silvia H. Campos da violência: escravos e senhores na Capitania do Rio de Janeiro, 1750-1808. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1988. p. 100. 5 Entre outros, podemos citar: CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e escravidão no Brasil meridional. São Paulo: Difel, 1962.
6
antes citado deixou de ser visto como principal beneficiário no momento da alforria. Em seu lugar,
essa nova geração de estudiosos da escravidão no Brasil identificou cativos idosos muito doentes e
crianças recém nascidas como preferidos no momento de se tornarem libertos. Ambos os casos
demonstravam as alforrias como uma forma de obter lucros, ao mesmo tempo em que se
eliminava o “problema“ de ter que manter escravos improdutivos. Dessa forma, estabeleceu-se o
fator econômico como determinante na decisão do senhor de libertar seu escravo.
Apesar da mudança de perspectiva quanto ao entendimento do sistema escravista, e da
conseqüente transformação na forma de se conceber a manumissão no Brasil, essa prática
continuou a ser explicada a partir de apenas um elemento envolvido nesse processo: o senhor. A
alforria era resultado de interesses de cunho econômico exclusivo dos senhores. O elemento
escravo novamente era excluído, como agente ativo, da sua própria história.
Apesar da prática da alforria figurar em diversos trabalhos até então, é a partir da década
de 1970, que este se torna um tema de interesse específico dentro da historiografia brasileira.
Importante ressaltar que até este momento, não eram utilizadas nestes trabalhos “fontes primárias”
para tratar das alforrias, concentrando as análises em relatos de viajantes e cronistas, gerando desta
forma, “especulações” que generalizavam as explicações para todo o Brasil. Os estudos sobre a
prática da alforria passam a ser trabalhados a partir de “grandes séries de fontes primárias” –
registros cartoriais, inventários, testamentos post-mortem, processos crimes, etc. - nesta década.
Logo, as explicações passam a ser direcionadas para locais específicos.
O primeiro dessa “nova onda” de trabalhos é o de Kátia Mattoso, A propósito das cartas
de alforria – Bahia, 1779-18506, publicado em 1872. Neste trabalho, Mattoso relaciona a
prática da alforria com questões econômicas, principalmente no tocante a rentabilidade e aos
custos que os senhores tinham com a mão de obra. Dessa maneira, a autora, tendo como fontes,
documentos cartoriais (registros de alforria), inventários e testamentos post-mortem, dedicou-se ao
estudo das alforrias e do preço dos escravos. Junto com o trabalho de Stuart Schwartz7, Mattoso
quantificou as variáveis contidas nas cartas de alforria e nos testamentos, o que possibilitou traçar,
solidamente, o perfil do escravo alforriado. Os perfis apontados por estudiosos nos momentos
anteriores tiveram que ser revistos. Não deixando de considerar as especificidades de cada região,
estes estudos apontaram como sendo o alforriado padrão: mulheres, adultas, nascidas no Brasil e
que pagavam (com prestação de serviços ou com dinheiro) por sua liberdade.
6 MATTOSO, Katia M. de Queirós. A propósito de cartas de alforria – Bahia, 1779-1850. Anais de História.
Assis, IV : 23-52, 1972 7 SCHWARTZ, Stuart B. A manumissão dos escravos no Brasil colonial (Bahia, 1684-1745). Anais de História. Assis, n. 6, p. 71-114, 1974.
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Apesar desses trabalhos terem revisto a tese de maioria de idosos, doentes e crianças entre
os alforriados, observa-se que Mattoso e Schwartz também direcionam suas respectivas
explicações sobre a prática da alforria na vontade do senhor. Segundo os autores, o motivo que
levava o senhor a conceder ou não a alforria a um escravo estava diretamente relacionado às
oscilações na conjuntura econômica. Mudou-se a perspectiva como era visto o ato de libertar o
escravo, mas as explicações para esse ato continuavam sendo centradas nos interesses do senhor,
fossem de ordem sentimental ou financeira.
A partir dos trabalhos pioneiros apresentados na década de 1970, e durante toda a década
seguinte, continuou o processo de renovação da historiografia que focalizava a escravidão no
Brasil. Impulsionados pela diversificação de fontes primárias utilizadas, os estudos produzidos no
Brasil sobre escravidão apresentaram uma fragmentação significativa de temas. Passaram a ser
preocupações dos estudiosos da escravidão temas como o cotidiano dos escravos nos centros
urbanos, as tradições africanas re-elaboradas através da formação de comunidades quilombolas, a
formação de família escrava dentro do cativeiro, a economia escrava, só para citar alguns temas
surgidos a partir das últimas décadas. Novamente, os estudos a respeito das alforrias
acompanharam as mudanças nas produções acadêmicas.
A fragmentação de temas dentro dos estudos sobre escravidão no Brasil não foi a
única transformação ocorrida nessa área da historiografia nas últimas décadas. Em grande
parte dos estudos surgidos a partir de então, passou-se a enfatizar a participação ativa do
escravo dentro do processo histórico8. Essa nova linha de abordagem passou a ver a
escravidão sobretudo da perspectiva do escravo, um escravo real, não reificado nem
mitificado9. O cotidiano do escravo, em meio ao sistema, podia apresentar tanto momentos de
conflito como momentos de acomodação e negociação.10
Partindo de trabalhos que seguiam tal princípio, os historiadores dessa nova geração
puderam analisar com mais propriedade a formação de redes de identidade e coletividade
8 São exemplos de trabalhos produzidos nessa perspectiva: SLENES, Robert W. “Lares negros, olhares brancos:
histórias da família escrava no século XIX”. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 8, n. 16, p. 189-203, mar./ago. 1988; LARA (1988), Op. Cit.; SILVA, Eduardo; REIS, João José. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Companhia das Letras, 1989; SLENES, Robert W. Na senzala, uma flor: esperanças e recordações na formação da família escrava, Brasil Sudeste, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. MATTOS [DE CASTRO], Hebe Maria. Laços de Família e Direitos no Final da Escravidão. In: História da Vida Privada No Brasil. Vol. 2: Império: a corte e a modernidade nacional. São Paulo: Companhia Das Letras, p. 335-383; FLORENTINO, Manolo & GÓES, José Roberto. A Paz das Senzalas: Famílias escravas e trafico atlântico, Rio de Janeiro, c. 1790 – c. 1850. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997. 9 SILVA, Eduardo; REIS, João José. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 7. 10 Idem.
8
dentro do cativeiro, ou entre escravos e outro grupos (como libertos ou livres pobres).
Utilizando-se de fontes primárias, os historiadores passaram a buscar informações sobre
atitudes dos escravos que demonstrassem estratégias de mobilidade social e/ou de
solidariedade. A análise dessas atitudes, a princípio individualistas, permitiu aos historiadores
desvendar a união de grupos de escravos em torno de projetos coletivos, como a formação de
famílias escravas, a economia no cativeiro, ou a negociação da alforria.
Diversos trabalhos sobre a prática da alforria foram produzidos no Brasil nas últimas
décadas, abarcando uma diversidade de regiões em meio a uma baliza temporal que engloba
quase todo o período escravista brasileiro. Partindo da metodologia proposta por Kátia
Mattoso11, a preocupação inicial de quantificar as variáveis encontradas nos registros para
poder estabelecer o perfil do alforriado se fez presente em todos os trabalhos observados
sobre o tema. Analisando as cartas de alforria, encontramos informações sobre o individuo
que esta vivendo a transição de escravo para liberto, como seu nome, gênero, idade, cor, local
de registro, modalidade da alforria, nome do proprietário, condições (quando condicional),
valor pago (quando paga), e ás vezes laços de parentesco e ocupação. Encontrado o perfil do
alforriado, passa-se então aos modelos explicativos sobre o processo de manumissão.
Embora fosse muito interessante realizar uma analise bibliográfica sobre todas as
produções envolvendo a manumissão de escravos, não seria oportuno realizar, neste trabalho,
tamanha empreitada. No entanto, alguns modelos que visam explicar tal prática devem ser
levados em consideração, mesmo para ajudar a delinear o caminho a ser seguido adiante.
Dentre esses modelos explicativos, podemos destacar aqueles que procuram relacionar a
prática da alforria com alguns temas recorrentes dentro dos estudos sobre escravidão no
Brasil, como paternalismo12/autonomia escrava, tráfico de escravos13, etnicidade14 e família
escrava15.
11 MATTOSO (1972), Op. Cit. 12 Dentre os trabalhos que relacionam a pratica da alforria com paternalismo, destaque para os já citados: MATTOSO (1972), Op. Cit; SCHWARTZ (1974), Op. Cit. 13Ver: SAMPAIO, Antonio C. Jucá. A produção da liberdade: padrões gerais das manumissões no Rio de Janeiro colonial, 1650-1750. In: (org.) FLORENTINO, Manolo. Tráfico, cativeiro e liberdade: Rio de Janeiro, séculos XVII-XIX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. pp.287-329. 14Ver: NISHIDA, Mieko. As alforrias e o papel da etnia na escravidão urbana: Salvador, Brasil, 1808-1888. Estudos econômicos: São Paulo, v 23, n. 2, maio/agos. 1993. pp. 227-265. 15Ver: LIMA, Adriano B. M. Trajetória de Crioulos: Um estudo das relações comunitárias de escravos e forros no Termo da Vila de Curitiba (c. 1760 - c. 1830). Dissertação apresentada como requisito para a obtenção do grau de Mestre em História pelo Departamento de História, Setor de Ciências Humanas, letras e Artes, Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2001.
9
Cabe frisar, ainda, que essa prática foi observada em diversas localidades da América
onde foi utilizada a mão-de-obra escrava, valendo, inclusive, para todas as regiões do Brasil.
Dito isto, fazemos uma ressalva: neste trabalho, entendemos que a prática da alforria, embora
dependente da vontade do senhor, era resultado de uma negociação travada cotidianamente
entre os atores envolvidos - ou seja, senhores e escravos.
Nessa negociação, os interesses do senhor em ceder a carta de manumissão
contrastavam com as possíveis estratégias dos escravos para persuadirem seus senhores de
que eram merecedores de tal beneficio (desde pecúlio até uma vida toda de bons serviços
prestados com lealdade e obediência). Destarte, como vêm demonstrando diversos trabalhos
realizados a respeito dessa prática, os interesses dos senhores e as estratégias desenvolvidas
pelos cativos variaram (e dependeram) de acordo com as características sócio-econômicas de
uma determinada região. Por exemplo, entendemos que ao alforriar um escravo, os interesses
de um grande senhor de engenho do recôncavo baiano, possuidor de dezenas de cativos,
deviam de ser diferentes dos motivos que levavam um pequeno agricultor do sul do Brasil,
possuidor de uma pequena escravaria, a libertar parte de sua mão de obra; ou então de um
senhor residente na cidade do Rio de Janeiro, cujos cativos desempenham atividades urbanas.
Os exemplos acima citados servem igualmente no que diz respeito as possíveis estratégias
desenvolvidas pelos escravos, diante de cada uma das realidades apresentadas. Não à toa, o
perfil do alforriado padrão sofrer tantas alterações dependendo das características sócio-
econômicas da região estudada.
Destarte, visando contribuir para o entendimento dessa prática tão corriqueira nas
diversas “realidades” brasileiras, analisaremos neste trabalho a prática da alforria em
Itapetininga, província de São Paulo, no período compreendido entre 1820 e 1850.
Itapetininga se caracteriza, desde sua fundação em 1770 até todo o período imperial, por ser
uma localidade voltada para a criação e comercialização de animais e para a produção de
gêneros alimentícios visando a subsistência e o abastecimento do mercado interno. Com o
incremento das culturas de exportação em São Paulo, na primeira metade do século XIX, as
áreas voltadas para o abastecimento interno também apresentam um significativo
desenvolvimento econômico e demográfico, dentre elas Itapetininga.
Qual teria sido a influencia do contexto na configuração do padrão do escravo
alforriado em Itapetininga? Qual era o perfil dos senhores que alforriavam cativos em
Itapetininga? Qual teria sido a lógica por detrás dessa prática, naquela região? Procuraremos,
neste trabalho, propor respostas para essas questões, buscando sempre o diálogo com outros
10
trabalhos que trataram do tema analisando outras regiões e/ou outros períodos. Para tanto,
dividimos a nossa pesquisa em três capítulo, buscando com que cada um deles fosse base para
o avanço da análise no capítulo seguinte.
No primeiro capítulo, buscamos, num primeiro momento, traçar um perfil sócio-
econômico sólido da região estudada, no período compreendido entre 1820 e 1850. Feito isto,
voltamos nossa análise para a configuração da população escrava de Itapetininga, enfatizando
as transformações ocorridas no perfil dessa população no período que nos interessa mais
diretamente.
Estabelecido as características sócio-econômicas da região, e mais precisamente da sua
população cativa, partimos no segundo capítulo para a análise do perfil do escravo alforriado
em Itapetininga. Para isso, quantificamos as variáveis – sexo, idade, procedência, etc. –
encontradas nas escrituras de alforria registradas no Primeiro Tabelionato de Notas de
Itapetininga, de 1820 a 1850. Na seqüência, buscamos também estabelecer o perfil dos
senhores que, em algum momento entre 1820 e 1850, cederam a alforria a um escravo.
Devido a falta de informações sobre o senhor, contidas nas cartas de alforria, recorremos as
listas nominativas de habitantes, localizadas no Arquivo Público do Estado de São Paulo, em
busca de informações que nos permitisse traçar o perfil destes que eram uma das partes
envolvidas nessa prática.
Por fim, tendo em vista o contexto da região estudada e os dados relativos aos
escravos e senhores envolvidos na prática da alforria, buscamos no terceiro capítulo propor
uma explicação para essa prática.
11
Capítulo 1: A sociedade escravista de Itapetininga.
1.1. Vila de Nossa Senhora dos Prazeres de Itapetininga: uma povoação no Caminho
das tropas.
Para entendermos o surgimento e desenvolvimento de Itapetininga, foco de nosso
estudo, faz-se necessário, primeiro, traçarmos um panorama geral da província de São Paulo,
destacando as transformações ocorridas até o período que nos interessa diretamente, ou seja, a
primeira metade do século XIX.
A região que forma o atual Estado de São Paulo foi uma das primeiras áreas a ser
explorada pelos portugueses no início da colonização do Brasil. Porém, em decorrência da
distância dos mercados europeus e da dificuldade de se chegar até suas férteis terras
cultiváveis (localizadas no interior do seu território), São Paulo não se tornaria, nesse
momento, uma região voltada para o lucrativo comércio internacional de açúcar, como
ocorreu com Bahia e Pernambuco16. Sendo assim, durante os dois primeiros séculos da
colonização do Brasil, a província de São Paulo não obteve uma posição de destaque no
contexto da colônia, pois, inviabilizada sua inserção no complexo exportador, seus escassos
habitantes dedicaram-se a uma tímida economia de subsistência, baseada na mão de obra indígena17
,
além do bandeirantismo.
Através de suas andanças pelo interior, os bandeirantes paulistas encontram, na última
década do século XVII, ouro na região do atual Estado de Minas Gerais. Essa descoberta
mudaria a situação da província de São Paulo no contexto da colônia, pois, como aponta Luna
& Klein, com a descoberta do ouro, em Minas Gerais, formou-se um amplo mercado no interior da
colônia18
. A descoberta de ouro na região das minas gerou um rápido deslocamento
populacional para aquela região. As pessoas que migraram para lá tenderam a concentrar
todos os seus recursos na mineração, devido a alta lucratividade da atividade. Isso fez com
que a fome acompanhasse sempre a riqueza nas regiões do ouro19
. Desta forma, essa região
passou a demandar uma grande quantidade de alimentos e animais (de carga e de corte)
vindos de outras partes da província (e mesmo de fora desta). Isso favoreceu a integração da
província de São Paulo, assim como de todo o sul da colônia, a um intenso mercado interno. É
16 Cf. LUNA, Francisco V.& KLEIN, Herbert. Evolução da sociedade e economia escravista de São Paulo, de
1750 a 1850. São Paulo: EDUSP, 2005. p. 26. 17 LUNA, Francisco V.& KLEIN, Herbert. Características da população em São Paulo no início do século XI. População e Família. São Paulo, n° 3, p. 71-91, 2000, USP-FFLH. p. 71. 18 LUNA & KLEIN. (2000), Op. Cit. p. 71. 19 FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. São Paulo: Editora Nacional: 1989. p.76.
12
nesse contexto, de desenvolvimento de um mercado interno de abastecimento da região das
minas, que surge Itapetininga, mais especificamente integrando a chamada rota dos tropeiros.
Com o advento da mineração no Centro-sul do Brasil (e posteriormente cana-de-
açúcar e café, como veremos adiante), observou-se a integração das atividades ligadas a
criação de gado vacum nos Campos Gerais e de muares no Rio Grande do Sul àquela, uma
vez que, como afirma Petrone, as populações que se dedicavam à mineração ou à agricultura
necessitavam abastecer-se de gado de corte e animais de carga que se destinavam ao transporte dos
produtos até os portos20
. Diante da demanda por animais vindos do Sul, foi aberto, por volta de
1730, o chamado caminho do Viamão, que ligava essa região do Rio Grande do Sul à Vila de
Sorocaba, na então província de São Paulo21. Por estar localizada no limite setentrional da
área de campos, Sorocaba acabou por ocupar lugar privilegiado com relação à circulação das
tropas e boiadas vindas do sul, pois paravam para descansar antes de seguir ao Norte, onde as
áreas de pastagens eram mais raras. Segundo Petrone, isso pode explicar, sem dúvida, o
aparecimento, em Sorocaba, da famosa feira e do Registro destinado a cobrar diversos impostos
sobre os animais que por aí transitavam22
.
Com a abertura do Caminho do Viamão e a criação da feira de muares de Sorocaba,
diversas povoações foram surgindo ao longo do trajeto, dentre elas Itapetininga. Localizada
também no limite setentrional da área de campos, Itapetininga tem origem por volta de 1750
(mesma época da primeira feira de mulas realizada em Sorocaba) com o povoado de porto
Velho, localizado as margens do rio Itapetininga, que funcionava como último pouso dos
tropeiros que vinham do Sul com destino a Sorocaba23. Dentro deste contexto, Itapetininga
torna-se referência no que diz respeito a áreas de invernada - locais onde paravam as tropas
para descanso e pastagem antes de serem comercializados na feira de Sorocaba24. Na região
de Itapetininga, inclusive, as áreas de “estações-invernadas” teriam, segundo Petrone, um
papel mais importante para a ocupação de certas áreas do que os campos reservados para a
criação de animais, atividade predominante em outras vilas surgidas a partir do “caminho do
Viamão” como, por exemplo, Castro. Itapetininga desmembra-se de Sorocaba em 1771,
20 PETRONE, Maria T. S. O afluxo de gado a Sorocaba e a importância econômica do caminho do sul na década da independência. In: A Independência: Um Debate. Org. SIMÕES DE PAULA, Eurípedes. Anais do I encontro do Núcleo Regional de São Paulo (5 a 7 de julho de 1972). São Paulo, 1973. p. 384. 21 Cf. PETRONE. (1972). Op. Cit. p. 386-388. 22 Idem Ibidem. 23 Cf. ANDRADE FILHO, Silvio Vieira de. Um estudo sócio-linguístico das comunidades negras do Cafundó,
do antigo Caxambu e de seus arredores. Sorocaba: Secretaria da Educação e Cultura de Sorocaba. 2000; p. 30. 24 Cf. PETRONE, (1972). Op. Cit. p. 385 e 402.
13
quando é elevada a condição de Vila, passando a ser chamada de Vila de Nossa Senhora dos
Prazeres de Itapetininga25.
Na época em que Itapetininga é elevada a condição de Vila, a extração de ouro na
região das minas já se apresentava em pleno declínio. No entanto, entre os anos de 1765 e
1803, a população da província de São Paulo expandiu-se a uma taxa excepcional, passando
de 86 mil para 188 mil habitantes26. As vilas localizadas no caminho do sul concentravam,
nesse momento, cerca de um quinto da população total da província, demonstrando a
importância dessa região27. Itapetininga não fugiu a regra. Conforme apontam as listas
nominativas, entre os anos de 1782 e 1798, a população de Itapetininga apresentou um
acentuado crescimento, passando de 1578 habitantes na primeira ocasião, para 3717
habitantes em 179828. Cabe ainda destacar que, dos 544 cabeças de domicílio que declararam
sua ocupação no censo de 1798, 392 diziam-se agricultores29. Podemos observar que, como
aponta Fragoso, o definhamento da mineração em Minas Gerais, a partir de 1760, não teria
arrastado consigo a economia paulista que a abastecia30
. Pelo contrário. A introdução e aumento
das culturas voltadas para a exportação (primeiro açúcar, depois café) na província de São
Paulo, acabou por aumentar a demanda por alimentos e animais de carga, favorecendo assim,
as áreas voltadas para o comércio de gêneros agro-pecuários31. Outro fator que contribuiu
para a ampliação do mercado interno foi a chegada da família real no Rio de Janeiro, em
1808. Após a chegada de D. João VI e sua corte, o Rio de Janeiro se tornou o principal
mercado interno do Brasil, favorecendo a exportação de gêneros alimentícios de outras
regiões para aquela localidade32.
Desta forma, se em boa parte do século XVIII São Paulo assistiu a um ritmo moderado
de crescimento, a partir das primeiras décadas do século XIX esse quadro se modifica,
apresentando uma significativa expansão da economia local, assim como um grande aumento
25 Cf. ANDRADE FILHO, (2000) Op. Cit. p. 30. 26 Cf. LUNA & KLEIN. (2000), Op. Cit. p. 3-4. 27 Idem Ibidem. 28 Arquivo Público do Estado de São Paulo (AESP). Maços de População. Rolo n° 78, Lata 0065 (1782-1799). Anos 1782 e 1798. 29 As outras ocupações declaradas no censo referente ao ano de 1798 são: Corpo Militar – 70; Empregos Civis- 8; lero secular – 3; Mineiros ocupados no trabalho das minas- 16; Mineiros proprietários – 10; Negociantes – 45. AESP, Maços de População. Rolo n° 78 (1782-1799). Ano 1798. 30 FRAGOSO, João Luis. Homens de Grossa Aventura: Acumulação e Hierarquia na Praça Mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998. p. 135. 31 F. FRAGOSO (1998). Op. Cit. p 135-141. 32 LUNA, Francisco V. & KLEIN, Herbert. Economia e sociedade escravista: Minas Gerais e São Paulo em 1830. In Revista Brasileira Est. Pop., Campinas, v. 21, n. 2, p. 173-193, Jul/dez. 2004. p. 177.
14
da população da província33. O número total de habitantes da província de São Paulo que,
como vimos, em 1803 era composto por 188 mil habitantes, passa, no ano de 1836, para cerca
de 282 mil pessoas34. Itapetininga também apresenta índices acentuados de crescimento
populacional a partir das últimas décadas do século XVIII, como podemos ver na Tabela 1.
Tabela 1
Evolução do número de habitantes de Itapetininga (1782-1836)
ANO N° Total de Habitantes
1782 a 1578
1798 b 3717
1815 c 5390
1820 d 6430
1830 e 9354
1836 f 11510
Fonte: a – AESP, Maços de População. Rolo n° 78. Ano 1782 b - AESP, Maços de População. Rolo n° 78. Ano 1798 c – SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem à província de São Paulo. São Paulo: Edusp, 1976. p. 203. d - AESP, Maços de População. Rolo n° 81. Ano 1820 e - AESP, Maços de População. Rolo n° 83. Ano 1830
f – MULLER, Daniel Pedro. Ensaio d’um quadro estatístico da Província de São Paulo. São Paulo: Reedição Litteral, 1923. p. 142.
Analisando a tabela 1, observamos então que Itapetininga apresentou, nas primeiras
décadas do século XIX, um acentuado crescimento populacional. Destacando o período que
aqui nos interessa mais diretamente, vemos um rápido crescimento populacional entre 1820 e
1836 - ano do último censo com dados confiáveis para a localidade. Enquanto a população de
Itapetininga era composta por 6430 habitantes em 1820, esse número cresce para 9354 em
1830, atingindo 11510 habitantes em 1836.
O aumento demográfico de Itapetininga - assim como da província de São Paulo como
um todo -, certamente esta associada às transformações na dinâmica econômica pela qual
passou a província durante a primeira metade do século XIX, como já foi apontado. Nesse
período, Itapetininga desponta como fornecedora de animais e gêneros alimentícios para o
mercados interno da província e mesmo inter-provincial (principalmente atendendo ao
mercado do Rio de Janeiro). Conforme Elizabeth Kuznesof, a agroexportação desenvolvida
em São Paulo, somada com o crescimento das áreas urbanas, teriam propiciado a transição de
uma economia voltada para a agricultura de subsistência para uma agricultura destinada ao 33 Cf. LUNA & KLEIN. (2004). Op. Cit. p. 177. 34 Idem ibidem.
15
abastecimento do mercado interno paulista e carioca35. Esse parece ter sido o caso de
Itapetininga. Um exemplo dessa transição pode ser observada no domicílio de Bartolomeu de
Medeiros, um dos senhores identificado em nossa documentação como tendo alforriado
escravos, como veremos mais adiante. No censo de 1798, Bartolomeu, com 55 anos, aparece
vivendo com sua esposa Ana Nunes Vieira, seus sete filhos, e quatro escravos, sendo dois
crianças e dois adolescentes36. Neste censo, Bartolomeu aponta como principal atividade que
planta para o sustento de sua casa. Já no censo referente ao ano de 1820, Bartolomeu de
Medeiros, vivendo com sua esposa, dois filhos, e possuindo cinco cativos37, declara ser
agricultor, tendo colhido 200 alqueires de milho, além de feijão e arroz. Bartolomeu afirma
ainda ter vendido o excedente dessa produção. Vemos então que, em algum momento no
intervalo entre 1798 e 1820, o domicilio chefiado por Bartolomeu de Medeiros deixou de
praticar apenas a agricultura de subsistência, para passar a fornecer gêneros alimentícios para
o mercado interno provincial.
Auguste de Saint-Hilaire, passando pela região em 1820, não deixou de reparar a forte
tendência agrícola de Itapetininga:
Em 1820 quase todos os habitantes de [Itapetininga] eram agricultores.
Cultivavam o milho, o arroz e o feijão, enviando esses produtos para Sorocaba, onde
a presença das tropas de burros vindas do sul e de Minas representava um consumo
que as colheitas da região não eram suficientes para atender (...) 38
.
Apesar da supremacia da produção agrícola, outras atividades também eram praticadas
em Itapetininga, como a pecuária, a cana-de-açúcar e a mineração, embora em menor grau de
importância39.
Nesse contexto de desenvolvimento econômico, a província de São Paulo passou a
demandar cada vez mais escravos africanos, o que contribuiu significativamente para o
crescimento demográfico da província. No ano de 1836, dos 282 mil habitantes da província,
35 KUZNESOF, Elizabeth, Household economy and urban development, São Paulo, 1765-1836. Westview Press, 1986. Apud. FRAGOSO (1998). Op. Cit. p. 135. 36 Escravos de Bartolomeu de Medeiros: Domingos, 15 anos; Maria, 12 anos; Felizarda, 7 anos; Paula, 3 anos. (AESP). Maços de População. Rolo n° 78, Lata 0065 (1782-1799), ano 1798. 37 Os escravos de Bartolomeu de Medeiros no ano de 1820 são: José crioulo, 33 anos; Adão crioulo, 9 anos; Ambrósio crioulo, 7 anos; Maria Benguela, 33 anos; Felizarda crioula, 31 anos. (AESP). Maços de População. Rolo n° 81, ano 1820. 38 SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem à província de São Paulo. São Paulo: Edusp, 1976. p. 203. 39 Segundo Daniel Pedro Muller, no ano de 1836, Itapetininga produziu 5500 arrobas de açúcar, vendeu 800 bois e 130 mulas. MULLER, Daniel Pedro. Ensaio d’um quadro estatístico da Província de São Paulo. São Paulo: Reedição Litteral, 1923. p. 124-129.
16
81 mil (28,7%) eram cativos40. Porém, entendemos que a formação da comunidade escrava é
resultado das necessidades dos senhores que, com base na força, obrigam o deslocamento de
seres humanos para uma determinada região, a fim de servirem como mão de obra. Destarte, o
padrão de posse de cativos na província de São Paulo, assim como o perfil da comunidade
escrava, variou de acordo com as características econômicas de cada região. Na seção a
seguir, buscaremos apontar o padrão de posse e o perfil da comunidade escrava de
Itapetininga, mas sem perder de vista o contexto maior que é a região Centro-Sul do Brasil.
1.2. A comunidade escrava de Itapetininga.
Concordando com a observação feita por Bruna Portela em seu trabalho sobre Castro,
entendemos que os escravos estavam em propriedades de Itapetininga não por sua própria
vontade, mas porque em algum momento de suas vidas foram comprados por um senhor – senão eles,
algum de seus ascendentes – e levados para aquela Vila41 . Dessa forma, a primeira característica
da comunidade escrava de Itapetininga - assim como a observada por Portela para Castro -, é
a sua constituição de maneira impositiva e coercitiva42
. Essa característica será de fundamental
importância ao analisarmos, mais adiante, a lógica presente por detrás da prática da alforria
em Itapetininga.
Não era a maioria dos domicílios de Itapetininga que podiam contar com o trabalho de
cativos. Não temos os números exatos de domicílios com/e sem cativos para Itapetininga, no
decorrer de todo o período que estudamos. Porém, a historiografia pode nos ajudar e
preencher essa lacuna. Segundo Fragoso, no período compreendido entre os anos de 1798 e
1828, cerca de 75% dos domicílios do Caminho do Sul não possuíam escravos43. Caminhando
na mesma direção, Canabrava afirma em seu trabalho sobre terras e escravos em São Paulo,
que no ano de 1818, em Itapetininga, cerca de 18,5% dos domicílios possuíam cativos, sendo
que esses domicílios controlavam cerca de 87% das terras na região44. Destarte, vemos que a
maioria das unidades agrícolas voltadas para a produção de gêneros alimentícios de
subsistência e de abastecimento interno não possuía escravos, dependendo assim do trabalho
40 Cf. LUNA & KLEIN. (2004). Op. Cit. p. 177. 41 PORTELA, Bruna M. Caminhos do Cativeiro: A configuração de uma comunidade escrava (Castro, São Paulo, 1800-1830). Dissertação apresentada a linha de pesquisa Espaço e Sociabilidades, Programa de Pós-Graduação em História (Mestrado), Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2007. p. 40. 42 Idem. 43 FRAGOSO. (1998). Op. Cit. p. 138. 44 CANABRAVA, Alice Piffer. Terras e escravos. In: História econômica: estudos e pesquisas. São Paulo: Hucitec; UNESP; ABPHE, 2005. p. 213
17
familiar45. Mesmo assim, é enorme a importância dos domicílios com escravos nesse setor da
economia.
Diferentemente dos proprietários de escravos ligados a agro exportação (açúcar e
café), os proprietários voltados à produção de gêneros alimentícios tinham em geral pequenas
escravarias46. Segundo Luna & Klein, os proprietários que possuíam cinco ou menos cativos
representavam dois terços dos agricultores com escravos nesse setor47
. Isso não descarta a
presença de grandes proprietários de escravos. Porém, cerca de 80% dos cativos utilizados na
produção de alimentos pertenciam a unidades com menos de 20 escravos.
Como já apontamos acima, a província de São Paulo e, conseqüentemente, a Vila de
Itapetininga, apresentaram acentuados níveis de crescimento econômico e populacional a
partir das últimas décadas do século XVIII, intensificando durante a primeira metade do
século XIX. Esse fenômeno é explicado a partir da introdução e aumento da agricultura de
exportação no território paulista (primeiro cana-de-açúcar seguida do café)48 e do aumento da
demanda por gêneros alimentícios e animais por parte da província do Rio de Janeiro,
especialmente após a chegada da corte portuguesa no Brasil. Com o crescimento econômico, a
província de São Paulo passou a demandar mais cativos, fato este que contribuiu
significativamente tanto para o crescimento demográfico da província (ver tabela 2), como
para o aumenta da população de Itapetininga (ver tabela 3).
Tabela 2
Evolução da população total e escrava da província de São Paulo entre os anos de 1766-1836
Ano População total Total de Escravos % de Escravos
1766-69 (a) 86.000 23.000 26,7%
1803-4 (b) 188.000 44.000 23,4%
1836 (c) 282.000 81.000 28,7%
Fontes: (a) Cf. LUNA & KLEIN. (2000), Op. Cit. p. 3. (b) Idem. (c) Cf. LUNA & KLEIN. (2004) Op. Cit. p. 177
45 Cf. LUNA & KLEIN. (2005). Op. Cit. P. 109. 46 Idem. 47 Idem. 48 Para saber mais, ver: Cf. LUNA & KLEIN. (2000). Op. Cit.; Cf. LUNA & KLEIN. (2004). Op. Cit.
FRAGOSO.(1998), Op. Cit.
18
Tabela 3 Evolução da população total e escrava de Itapetininga entre os anos de 1782-1836
Ano População total Escravos % de escravos
1782 a 1578 123 8%
1798 b 3717 426 11,5%
1815 c 5390 440 8,2%
1820 d 6430 509 8%
1830 e 9354 1072 11,5%
1836 f 11510 2700 23,5%
Fonte: a – AESP, Maços de População. Rolo n° 78. Ano 1782 b - AESP, Maços de População. Rolo n° 78. Ano 1798 c – SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem à província de São Paulo. São Paulo: Edusp, 1976. p. 203.
d - AESP, Maços de População. Rolo n° 81. Ano 1820 e - AESP, Maços de População. Rolo n° 83. Ano 1830
f – MULLER, Daniel Pedro. Ensaio d’um quadro estatístico da Província de São Paulo. São Paulo: Reedição Litteral, 1923. p. 142.
Como podemos observar comparando as tabelas 2 e 3, a população cativa de
Itapetininga não acompanhou, entre os anos finais do século XVIII e as duas primeiras
décadas do século XIX, os índices de crescimento da população escrava da capitania de São
Paulo. Nesse período, enquanto os escravos compunham cerca de um quarto da população
total da província, em Itapetininga os cativos não chegavam a um décimo da população total,
com exceção do ano de 1798, quando alcançaram 11,5%. Explicamos esse fenômeno pelo
fato de que, na virada do século XVIII para o XIX, a agroexportação escravista ainda não
prevalecia em São Paulo. Conforme aponta Fragoso, nesse período, a economia paulista se
assentava, principalmente, na produção de subsistência e naquela voltada para o mercado colonial49
.
Dessa maneira, regiões como Itapetininga, voltadas para a agricultura e pecuária, ainda não
estariam propensas à aquisição de cativos em massa.
No entanto, esse quadro muda a partir da segunda década do século XIX, período que
nos interessa mais diretamente. Analisando o período a partir de 1820, observamos a
proporção de escravos em meio à população total de Itapetininga “saltar” de 8% em 1820,
para cerca de um quarto em 1836, passando de 502 indivíduos na primeira ocasião para 2700
cativos dezesseis anos mais tarde. Não se pode entender esse súbito crescimento da população
de Itapetininga - em especial a população cativa -, sem compreender algumas transformações
econômicas da província de São Paulo nesse período. Conforme Luna & Klein, a partir da
49 FRAGOSO, (1998). Op. Cit. p. 138.
19
década de 1820, cresce o setor da agricultura comercial de exportação em São Paulo, fazendo
com que aumente o fluxo de escravos para a província50. Em paralelo, cresce também o
mercado interno de alimentos e animais, fazendo com que mais pessoas, antes destinadas a
subsistência, entrassem no mercado como fornecedores de alimento, demandando assim, mais
cativos para trabalhar também nesse setor da economia paulista51. Isso explicaria o boom na
população escrava de Itapetininga a partir da década de 1820, em especial a partir de 1830.
Ademais, não podemos deixar de apontar o crescimento no volume do tráfico de
africanos para o porto do Rio de Janeiro, principalmente a partir da década de 1820, quando
este porto passa a receber mais da metade de todos os africanos desembarcados no Brasil52.
Herbert Klein aponta como razões para o aumento das “almas” traficadas para essa margem
do Atlântico Sul, o revivescimento da tradicional economia açucareira no Brasil53
, o
crescimento dos mercados internos de Minas Gerais, assim como o desenvolvimento da
agricultura escravista no interior do Rio de Janeiro e São Paulo54.
Assim como Portela, em seu estudo sobre Castro55, também sugerimos que São Paulo
absorveu boa parte dos africanos aportados no Rio de Janeiro e que, conseqüentemente,
Itapetininga também fez parte desse movimento. Ainda complementando nosso raciocínio,
vemos que Carlos A. M. Lima, analisando a sociedade de Castro, aponta para o crescimento
da população cativa dessa localidade dando especial atenção aos africanos, que teriam
aumentado, de 1824 a 1835, em todas as faixas de tamanho dos domicílios escravistas de
Castro56. Segundo Lima, a proibição do tráfico em 1831 fez com que aumentasse a oferta de
africanos, facilitando a compra destes últimos também para os senhores de Castro57
.
Trabalhamos com essa hipótese também para Itapetininga, o que justifica a maciça entrada de
cativos em Itapetininga durante a década de 1830. Dessa forma, boa parte do contingente
cativo vindo para Itapetininga após 1830 certamente era composto por africanos.
50 Cf. LUNA & KLEIN. (2005). Op. Cit. p. 135-136. 51 Idem. 52 KLEIN, Herbert. A demografia do trafico atlântico de escravos para o Brasil. In: Estudos Econômicos. São Paulo: 17(2) 129-149, Maio/Agosto. 1987. p. 133-134. 53 Segundo Klein, isso acontece quando, após 1790, São Domingos deixa de ser um dos maiores competidores
na produção de açúcar. KLEIN (1987). Op. Cit. p. 134. 54 Idem. 55 PORTELA (2007). Op. Cit. p. 35. 56 PORTELA (2007). Op. Cit. p. 35. Apud. LIMA, Carlos Alberto Medeiros. Sobre a posse de cativos e o mercado de escravos em Castro (1824-1835): perspectivas a partir da analise de listas nominativas. In: V
Congresso Brasileiro de História Economica e 6ª Conferencia Internacional de História de Empresas – Anais. Belo Horizonte: ABPHE, 2003. p. 1-25. 57 Idem.
20
Os efeitos do aumento da entrada de africanos, entre 1804 e 1830, foram sentidos em
toda a província de São Paulo, porém, variando na intensidade de acordo com as atividades
desenvolvidas em cada região58. Entre os anos de 1804 e 1829, por exemplo, a participação de
africanos no montante de escravos nas áreas relacionadas com a produção de açúcar e café
chegou a dois terços59, enquanto que nas vilas pertencentes à região do atual Estado do
Paraná, os africanos não passaram de 15% do total de escravos60.
Observando o censo de 1836, publicado por Pedro Muller, notamos a significativa
parcela de 37,9% de africanos em meio ao total de escravos de Itapetininga61. Não dispomos
da proporção de africanos na população escrava de Itapetininga para anos anteriores a 1836.
No entanto, Luna & Klein apontam um aumento na taxa de africanidade em meio a população
total de cativos na região denominada de Caminho do Sul, subindo de aproximadamente 23%
em 180462, para 36% em 1829. O padrão assistido por Itapetininga parece ser bem
aproximado ao observado para a região denominado Caminho do Sul, uma vez que
Itapetininga estava inserida neste contexto. Destarte, afirmamos que o incremento de
africanos que adentraram a sociedade itapetininguense a partir de 1820, colaborou
significativamente para o crescimento da população cativa da localidade, aumentando
significativamente a parcela de africanos em meio ao total de escravos de Itapetininga.
Dito isto, indagamos: Qual teria sido o impacto do aumento do número de africanos no
padrão de sexo e idade da comunidade escrava de Itapetininga, no período que nos interessa
diretamente (1820-1850)?
Os estudos realizados recentemente sobre a demografia da escravidão no Brasil vêm
demonstrando as conseqüências da entrada maciça (ou não) de africanos no padrão da
comunidade escrava de uma determinada região. Em algumas áreas, e em determinadas
épocas, onde o volume de entrada de africanos era pequeno, alguns estudiosos observaram
taxas de crescimento natural positiva entre os escravos63. Esse fenômeno se explica, pois,
nessas circunstâncias, os cativos nascidos no Brasil passaram a dominar numericamente, o
que levou a um maior equilíbrio na razão entre os sexos e ao aumento da proporção de
58 Cf. LUNA & KLEIN. (2000). Op. Cit. p. 78. 59 Idem 60 GUTIÉRREZ, Horácio. Donos de terras e escravos no Paraná: padrões e hierarquias nas primeiras décadas do século XIX. In: Revista História. São Paulo, v. 25, n° 1, p 100-122, 2006. p. 114. 61 MÜLLER (1823). Op. Cit. p. 163. 62 Cf. LUNA & KLEIN. (2005). Op. Cit. p. 135. 63 Para saber mais, ver: LUNA & KLEIN. (2000). Op. Cit. P. 79; LUNA & KLEIN. (2004). Op. Cit. P. 175; LUNA & KLEIN. (2005). Op. Cit. Capítulo 6 A população escrava. P. 167-197. GUTIÉRREZ (2006). Op. Cit.
P. 114.
21
crianças na população total64
. Luna & Klein observam esse quadro para a população cativa
de Minas Gerais, no período pós-decadência da atividade mineradora, nas últimas décadas do
século XVIII65.
Embora não possamos contar com dados específicos sobre a natureza da reprodução
da população escrava de Itapetininga nas décadas finais do século XVIII, observamos que
essa população apresentava, nesse período, características compatíveis com regiões que
apresentaram reprodução natural de sua população cativa (ver tabelas 4 e 5). Nesse período,
encontramos um acentuado equilíbrio entre os sexos em meio á população escrava (50,9% de
homens), assim como, uma grande quantidade de crianças menores de 10 anos (29%).
Números parecidos aos encontrados por Gutiérrez, ao analisar a população escrava
“paranaense” nos primeiros anos do século XIX66. Em seu estudo, Gutiérrez observou o
predomínio absoluto de crioulos na região, variando de 6 a 8 crioulos para um africano. O
autor também apontou um grande equilíbrio entre os sexos na população cativa paranaense
naquele período (cerca de 50%), além de um grande índice de crianças (27%).
No entanto, devido às transformações econômicas pelas quais passou o centro-sul do
Brasil, principalmente a partir das primeiras décadas do século XIX (acima citadas), aumenta
a entrada de africanos em São Paulo, intensificando o fluxo a partir da década de 1820, como
já apontamos acima. Apesar das transformações econômicas e do fluxo de africanos ter
atingido as diversas áreas da capitania com intensidades variadas, a partir de 1804 os
africanos já estavam presentes em todas as áreas e atividades67, transformando o padrão da
população escrava em São Paulo. Conforme nos aponta Luna & Klein, o tráfico negreiro
privilegiava o comércio de homens adultos, em detrimento de mulheres e crianças, alterando
o perfil populacional, elevando a razão de masculinidade e envelhecendo a população68
. Isso
certamente alterou, negativamente, os níveis de reprodução natural da população escrava de
São Paulo.
Entre os anos de 1804 e 1829, a razão de masculinidade da população cativa da
província aumentou de 119 na primeira ocasião, para 15369. Se considerarmos as áreas da
província isoladamente, podemos observar níveis de razão de masculinidade ainda mais
acentuados. É o caso do Oeste Paulista, área voltada para a agricultura de exportação. No
64 LUNA & KLEIN. (2004). Op. Cit. P. 175. 65 Idem. 66 GUTIÉRREZ (2006). Op. Cit. P. 114. 67 Cf. LUNA & KLEIN. (2000). Op. Cit. P. 78. 68 Idem. 69 Cf. LUNA & KLEIN. (2005). Op. Cit. P. 185.
22
intervalo entre 1804 e 1829, a razão de masculinidade nessa região aumentou de 151 para
202, muito acima dos níveis médios da província70. A razão de masculinidade encontrada
entre a população escrava no Caminho do Sul chegava, em 1829, a 114 homens para cada
grupo de 100 mulheres71.
Dentro do contexto apresentado das transformações ocorridas na província de São
Paulo, especialmente a partir da década de 1820 - período este que nos interessa mais
especificamente -, vejamos mais de perto, através das tabelas 4 e 5, as transformações
ocorridas na população escrava de Itapetininga.
Tabela 4 Distribuição da População Escrava por Sexo (Itapetininga, 1798-1836)
População
escrava(a) (1798) População
escrava (b) 1804 População
escrava (c) 1820 População
escrava (d) 1830 População
escrava (e) 1836
N° % N° % N° % N° % N° % Homens 217 50,9 269 54 303 59,5 580 54,1 1410 52,2
Mulheres 209 49,1 229 46 207
40,5 492 45,9 1290 47,8
Total 426 100% 498 100% 509 100% 1072 100% 2700 100%
Fontes: (a) AESP, Maços de População. Rolo n° 78. Ano 1798 (b) LUNA & KLEIN. (2005) Op. Cit. (c) AESP, Maços de População. Rolo n° 81. Ano 1820. (d) AESP, Maços de População. Rolo n° 83. Ano 1830 (e) MULLER, Daniel Pedro. Ensaio d’um quadro estatístico da Província de São Paulo. São Paulo: Reedição Litteral, 1923. p 142.
Tabela 5
Distribuição da População Escrava por idade (Itapetininga, 1798-1836)
1798 (a) 1820 (b) 1830 (c) 1836 (d)
N° % N° % N° % N° %
Crianças (0-10)
125 29% 122 24% 227 22,3% 405 15%
Adultos (10-40)
252 59% 307 60,3% 732 68,2% 1739 64,4%
Idosos (40 ou mais)
49 11,5% 71 13,9% 102 9,5% 556 20,6%
Fontes: (a) AESP, Maços de População. Rolo n° 78. Ano 1798 (b) AESP, Maços de População. Rolo n° 81. Ano 1820. (c) AESP, Maços de População. Rolo n° 83. Ano 1830 (e) MULLER, Daniel Pedro. Ensaio d’um quadro estatístico da Província de São Paulo. São Paulo: Reedição Litteral, 1923. p 142.
70 Idem. 71 Idem.
23
O primeiro ponto que nos chama atenção ao observarmos a tabela 4 diz respeito a
proporção entre os sexos na população cativa de Itapetininga. Como podemos observar,
apesar do aumento significativo no número de africanos em meio à população escrava local,
isso não se reflete diretamente no aumento da proporção de homens – como aconteceu nas
áreas voltadas para a agricultura comercial de exportação -, mantendo-se entre 52 e 55% (com
exceção do ano de 1820, quando a porcentagem de homens atinge 59,5%). Luna e Klein
ajuda-nos a explicar esse fenômeno. Segundo os autores,
a proporção de africanos era similar entre os escravos pertencentes a proprietários
de todos os tamanhos. Mas o porte do proprietário influenciava o sexo dos seus
escravos. No agregado dos escravos possuídos pelos pequenos proprietários, a
proporção de escravas superava a proporção observada nos médios e grandes
proprietários72 .
Dessa forma, apesar da intensa entrada de escravos de origem africana na população
de Itapetininga - em especial a partir da década de 1820 -, não observamos um aumento tão
acentuado na proporção de homens no total de escravizados, como observamos no Oeste
paulista, por exemplo. Isso porque, em Itapetininga, prevaleciam as pequenas propriedades
escravistas, com escravarias inferiores a 10 escravos. Nesse contexto, entendemos que tenha
ocorrido um equilíbrio maior entre o sexo dos africanos que chegavam através do tráfico de
escravos, do que em áreas de grande plantação. Estabelecendo um paralelo com outra
localidade do chamado Caminho do Sul, vemos que, estudando a região de Castro, Portela
observou uma preferência pela aquisição de escravas africanas, aos africanos73.
Apesar do aumento de africanos na população de Itapetininga não ter alterado (pelo
menos não significativamente) a proporção de homens na população total de cativos, sentimos
o efeito dessa migração quando analisamos o padrão de idade dos escravos. Analisando a
tabela 5, podemos perceber que a partir da década de 1830, período onde ocorre um boom de
africanos na população escrava itapetininguense, a proporção de crianças cai drasticamente de
22,3% em 1830, para 15% seis anos depois. Isso é reflexo do trafico de escravos, que como já
apontamos anteriormente, privilegia os adultos em detrimento das crianças, envelhecendo a
população.
É a partir desse contexto que, buscaremos apontar, no próximo capítulo, o perfil do
escravo alforriado na Vila de Itapetininga, de 1820-1850.
72 Cf. LUNA & KLEIN. (2000). Op. Cit. P. 79. 73 PORTELA. (2007). Op. Cit. p. 46.
24
Capítulo 2: O padrão do escravo alforriado em Itapetininga.
1.1. A Carta de Alforria
A carta de alforria ou papel de liberdade – fonte principal deste trabalho - era a forma
com que se oficializava a concessão da liberdade a um ou mais escravos. Tratava-se, portanto,
de um documento jurídico onde, segundo Peter L. Eisenberg, se documentava a passagem de
um indivíduo de uma condição legal de escravo para uma condição legal de livre74
.
O registro da carta de alforria era feito no Tabelionato de Notas (Cartório), geralmente
na presença do tabelião local, duas testemunhas, o escravo e seu senhor. Era no Cartório que
se efetuava os registros legais como contratos, empréstimos, vendas e outros acordos
financeiros, além das alforrias, que grosso modo, se tratava de uma ação judicial onde os
direitos de propriedade de um escravo eram transferidos a si mesmo. Apesar do escravo ficar
com a carta original, era importante para a sua própria segurança legalizar sua alforria em
Cartório, pois, a escravização ilegal de pessoas de cor era um perigo constante entre essa
população75. Uma vez que a carta de alforria era registrada em cartório, “o ex-escravo
passava a ser considerado como homem livre pelas autoridades e perante a lei”.76
São muitas as informações que podemos encontrar nas cartas de alforria, mas
raramente todas as informações aparecem contidas num mesmo registro. Com relação ao
proprietário que estava concedendo a alforria, podemos encontrar o seu nome, sexo, título,
local de residência e, mais raramente, cor, estado civil e profissão. No que diz respeito ao
escravo que esta sendo favorecido pela manumissão, encontram-se registradas nas cartas de
alforrias informações referentes ao nome, sexo, cor, estado civil, procedência, idade e, mais
raramente, filiação e o ofício do escravo.
Consta também nas cartas de alforria o motivo e a modalidade de tal, ficando
estabelecido neste trabalho quatro modalidades: Gratuita, Onerosa, condicional Gratuita e
onerosa condicional. Neste ponto, pode-se identificar o valor pago pela alforria (quando
alforria onerosa), assim como por quem ela foi paga. Também podem ser verificadas as
condições (quando alforrias condicionais) pelas quais o cativo alcançaria a sua liberdade, 74 EISENBERG, Peter. “Ficando livre: as alforrias em Campinas no século XIX”. Estudos Econômicos. São Paulo, v. 17, n. 2, p. 175-216, maio/ago. 1987. p. 245. 75 Cf. SCHWARTZ, Stuart B. A manumissão dos escravos no Brasil colonial (Bahia, 1684-1745). Anais de
História. Assis, n. 6, p. 71-114, 1974. p. 74. 76 MATTOSO, Katia M. de Queirós. “A propósito das cartas de alforria (Bahia, 1779-1850)”. Anais de História. Assis, n. 4, p. 23-52, 1972. p. 29.
25
sendo esta condição um acordo prévio entre senhor e escravo a cerca da liberdade que será
concedida a este. Estas informações são de suma importância para analisar as relações entre
senhor e escravo, bem como essa relação era construída e entendida pelos atores nela
envolvidos. Por fim, consta nas cartas de alforria a data de emissão do documento e a data de
registro deste no cartório.
Através da quantificação das variáveis (acima referidas) encontradas nos registros de
alforria, pudemos traçar o perfil do alforriado padrão na Vila de Nossa Senhora dos Prazeres
de Itapetininga. Para tanto, foram utilizadas neste trabalho, as cartas de alforria registradas no
Primeiro Tabelionato de Notas de Itapetininga, entre os anos de 1820 e 185077. A cada
variável encontrada, procuramos estabelecer um diálogo com os resultados encontrados em
trabalhos que analisaram outras regiões do Brasil. Com isso pretendemos, além de encontrar
o padrão do escravo alforriado em Itapetininga, também situar a prática da manumissão nessa
região em meio aos resultados encontrados em estudos que visaram estudar essa prática em
outras regiões do Brasil.
1.2. Sexo
Em quase todos os trabalhos que pretenderam explicar a prática da alforria partindo da
metodologia proposta por Kátia Mattoso78 - de quantificar as variáveis contidas no documento
para estabelecer o padrão do alforriado -, a variável sexo ocupou posição de destaque dentre
as preocupações dos estudiosos. Saber se eram libertados mais escravos ou escravas numa
determinada região passou a ser uma das primeiras perguntas respondidas a partir da
quantificação das variáveis encontradas nas manumissões.
Ponto comum na grande maioria dos trabalhos que analisaram as alforrias em
diversas regiões do Brasil, é o fato das escravas figurarem como maioria entre os
manumitidos, numa proporção geralmente entre 60% e 70% dos alforriados. A constatação da
hegemonia dos cativos do sexo feminino entre os que deixavam o cativeiro através da alforria,
geralmente foi acompanhada de uma explicação para tal, variando conforme a época e as
características sócio-econômicas da região estudada. Para alguns autores, as escravas
prevaleceram dentre os alforriados graças a atividades comerciais urbanas que
desempenhavam, como quitandeiras, quituteiras, prostitutas etc. Dessa forma, as escravas
77 Arquivo do Primeiro Tabelionato de Notas de Itapetininga. Livros de Notas 8 ao 24 (1820-1850) 78 MATTOSO, (1972). Op. Cit.
26
teriam maior chance do que os escravos de acumular pecúlio para a compra da própria
liberdade, figurando assim em maior número entre os manumitidos.79 Em outros trabalhos,
foram formulados modelos explicativos que atribuíam ao baixo valor comercial das escravas a
decisão senhorial de libertá-las em momentos de desaquecimento do mercado como forma de
recuperar o dinheiro investido na sua compra;80 outros ainda apontaram as experiências sexuais
vividas pelas escravas com libertos e livres – mesmo seus senhores – como estratégia feminina
para conseguir a alforria.81
Seguimos esta tendência da historiografia especializada no tema e também
verificamos a ocorrência dos sexos entre os escravos que deixaram o cativeiro em Itapetininga
(Ver tabela 6).
TABELA 6 Movimento dos Alforriados por Sexo/Década (Itapetininga 1820-1850)
Sexo Década
HOMENS MULHERES TOTAL
1820 – 1830 17 21 38
1830 – 1840 18 14 32
1840 – 1850 20 22 42
Total 55 57 112
Fonte: Arquivo do Primeiro Tabelionato de Notas de Itapetininga. Escrituras de liberdade, 1820-1850
Na contramão da maioria dos resultados encontrados pela historiografia especializada
observamos que, em Itapetininga, entre os anos de 1820 e 1850, não ocorreu predomínio de
um sexo sobre o outro no momento do escravo ser alforriado (50,8% de mulheres e 49,2% de
homens). Proporções parecidas foram encontradas por Peter Eisenberg82 e Adriano B. Lima83,
analisando, respectivamente, Campinas (51,9% de escravas e 48,1% de escravos) e Curitiba
(52,3% de escravos e 47,7% de escravas).
Contudo, para poder ter uma noção mais consistente da importância do sexo do cativo
na prática da alforria, faz-se necessário comparar a proporção dos sexos entre os manumitidos
com a proporção destes entre a população escrava total da região estudada. Eisenberg, mesmo
79 Ver: KARASCH, Mary. Vida escrava no Rio de Janeiro, 1808-1850. São Paulo: Companhia das Letras, 2000 (1ª ed. 1987); RUSSELL-WOOD, A. J. R. Os caminhos da Liberdade. Cap. 2 In: Escravos e Libertos no Brasil
Colonial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. 80 Ver: MATTOSO (1972), Op. cit.; SCHWARTZ (1974), Op. Cit. 81 Ver: SCHWARTZ, (1974), Op. Cit.; RUSSELL-WOOD (2005), Op. Cit. 82 EISENBERG (1987), Op. Cit. 83 LIMA, Adriano Bernardo Moraes. Trajetórias de crioulos: um estudo das relações comunitárias de escravos e forros no Termo da Vila de Curitiba (c.1760 – c.1830). Curitiba, 2001. 118 f. Dissertação (Mestrado em História) – Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná.
27
tendo encontrado proporções próximas entre os sexos dos alforriados, concluiu que as
escravas estavam em vantagem contra os escravos, em Campinas, no momento de receber a
alforria, uma vez que estas se encontravam em minoria na população total de escravos, numa
proporção de 2 homens para 1 mulher. O autor explica esse fenômeno a partir da família
escrava, pois, uma vez que o status jurídico do filho dependia do da mãe, todos os esforços
seriam destinados a alforriar as mulheres.84 Já Lima, contrariando todos os trabalhos
realizados a respeito da prática da alforria até então, encontrou, analisando a sociedade
escravista de Curitiba, entre 1790 e 1825, mais escravos do que escravas alforriadas (51,9% e
47,7%). Comparando com os números gerais da população escrava existente na Vila de
Curitiba naquele momento, o autor observou que a proporção de um ou de outro sexo no total
dos alforriados representava a proporção destes em meio a população total de cativos.
Destarte, apesar de encontrar mais homens entre os alforriados, Lima não entende o sexo
como sendo um fator preponderante para explicar a lógica que permeava a prática da alforria
em Curitiba. 85
Mas qual teria sido o caso de Itapetininga?
Comparando a proporção entre os sexos dos escravos alforriados com a quantidade de
escravos e escravas na população cativa de Itapetininga, entre 1820 e 1850, observamos que a
quase equivalência entre os sexos dos alforriados acompanhou a tendência a igualdade entre
os sexos em meio aos cativos (ver tabela 4), que passou de 59,5% de homens em 1820 para
52,2% em 1836. Desta maneira, explicamos o equilíbrio entre os sexos dos alforriados em
Itapetininga também como reflexo da proporção dos sexos em meio a população escrava,
parecendo ser esta uma tendência nas áreas localizadas no contexto do caminho do Sul.
1.3. Idade
Qual seria a idade mais comum em que os escravos alcançariam a liberdade? Teriam
os senhores, motivos para alforriarem mais escravos de uma determinada faixa etária? Ou
seriam os escravos em idade ativa mais propensos a conquistar a alforria? Perguntas como
estas sempre estiveram presentes em estudos que visavam, através do levantamento do padrão
do alforriado, explicar a prática da alforria.
84 EISENBERG (1987), Op. Cit. 85 LIMA (2001), Op. Cit. p. 97.
28
Em seu estudo pioneiro86, por exemplo, Kátia Mattoso verificou que na Bahia, entre
1779 e 1850, as crianças representavam cerca de 11% do total de manumitidos. Com a
constatação da pequena ocorrência de crianças no total de escravos alforriados, Mattoso
buscou desmistificar os trabalhos que colocavam as crianças como o grupo mais favorecido no
momento de “ganhar” a liberdade. A autora não fez apontamentos sobre o número de idosos
presentes entre os alforriados, tampouco buscou uma explicação para a maior ocorrência de
cativos em idade produtiva entre os manumitidos. A despeito do resultado encontrado por
Mattoso quanto a ocorrência de crianças entre os manumitidos, Schwartz, analisando também
a sociedade escravista baiana (1684-1745), constatou um grande número de crianças entre os
escravos que deixavam o cativeiro através da alforria. Segundo o autor, 44,8% dos escravos
libertos estariam em tenra idade; 52,3% figurariam entre os adultos; e apenas 2,9% estariam na
terceira idade. Para explicar o elevado número de crianças entre os alforriados, o autor
apontou dois fatores: o baixo valor do cativo criança e os laços afetivos que os senhores
criavam com aqueles. 87
No entanto, apesar de tão importante, a variável idade a muito vem sendo um desafio
aos historiadores que estudam a prática da alforria. Conforme aponta Schwartz, “ao avaliar-se
as cartas de alforria, nenhuma característica dos libertos é mais difícil de se marcar e
analisar do que a idade”.88
Na maior parte das escrituras de liberdade, a idade do escravo que
esta sendo libertado não consta entre as informações discriminadas no documento. No caso
das alforrias referentes a Itapetininga, em apenas 29,4% dos casos, a variável idade aparece
diretamente discriminada. O que fazer então?
Existem outros caminhos pelos quais podemos elevar a margem de conhecimento a
respeito da idade dos escravos que estavam deixando o cativeiro. Schwartz propõe, para
“aumentar o leque” de conhecimento sobre a idade dos escravos alforriados, que se procure na
própria narrativa, contida no documento, indícios descritivos (como diminutivos, designação
de “muito doentes”, ocupação etc.) que nos permitam identificar a faixa etária89 na qual se
encontrava o cativo no momento da manumissão90.
86 MATTOSO (1972), Op. Cit. 87 SCHWARTZ (1974), Op. Cit. p. 89. 88 Idem. p. 88. 89 Aceitando a sugestão de Schwartz, usamos a puberdade, mais do que qualquer outra distinção baseada na
capacidade de trabalho, como divisão entre crianças e adultos(...) Quando aparecem os termos Homem ou mulher, ou consta que o escravo é casado, situamos os cativos como adultos. Os idosos aparecem entre os escravos com mais de 45 anos, devido à austeridade da vida no cativeiro. Cf. SCHWARTZ (1974), Op. Cit. P. 88-89. 90 SCHWARTZ (1974), Op. Cit. 88-90.
29
Aplicando esse “novo olhar” sobre as alforrias, aumentamos de 29,4% para 56,25% a
proporção de escravos com idade estimada conhecida em Itapetininga. A partir de então,
conseguimos traçar, com mais segurança, um padrão de idade para o escravo alforriado em
Itapetininga.
TABELA 7 Distribuição dos escravos alforriados por idade (Itapetininga, 1820-1850)
FAIXA ETÁRIA N %
Crianças 13 11,6% Adultos 38 34% Idosos 12 11% Desconhecida 49 43,4% TOTAL 112 100%
Fonte: Arquivo do Primeiro Tabelionato de Notas de Itapetininga. Escrituras de liberdade, 1820-1850.
Conforme nos aponta a Tabela 7, engrossando o coro dos trabalhos que questionam a
superioridade de crianças e idosos entre os manumitidos, encontramos 11,6% de crianças e
11% de idosos entre os escravos alforriados. Não desconsiderando o significativo índice de
43,4% dos escravos com idade desconhecida, em Itapetininga, nosso estudo apontou como
sendo os adultos, o grupo favorecido pela prática da alforria, com 34% do total de alforriados.
Essa porcentagem sobe ainda mais se considerarmos que, dos casos onde a idade não pode ser
revelada, a maioria provavelmente seria constituída por adultos.
Constatados tais números, podemos fazer alguns apontamentos a respeito da influência
da variável idade no processo de manumissão em Itapetininga. Primeiramente, vale ressaltar
que, o modelo explicativo que apontava a alforria como sendo uma prática pautada nos
interesses econômicos do senhor que alforriava – onde escravos improdutivos, como crianças
e idosos, eram descartados –, não pode ser aplicado para essa localidade. A constatação da
supremacia de escravos em idade produtiva entre os alforriados nos leva a pensar que essa
prática não dependia exclusivamente da vontade ou dos interesses do senhor que a concedia.
Pelo contrário, a hegemonia dos adultos entre os manumitidos pode ser um indicativo de que,
antes de vislumbrar a liberdade, o cativo tinha a preocupação em construir uma rede de
relações dentro da própria comunidade escrava, assim como estabelecer uma longa
negociação com seu senhor, que o permitisse alcançar o fim desejado. Acreditamos que isso
tudo não devia de acontecer pouco tempo antes do registro da alforria, mas sim, durante anos
de trabalho forçado.
30
1.4. Procedência
Outra preocupação, que não se pode deixar de lado quando pensamos no padrão do
escravo alforriado, é a procedência desse cativo. Dessa forma, em grande parte dos trabalhos
que analisaram essa prática, os estudiosos procuraram descobrir se os escravos africanos ou os
nascidos no Brasil eram favorecidos no momento de se obter a liberdade através da
manumissão. Partindo dessa incógnita, questionamos: em Itapetininga, eram alforriados mais
escravos africanos ou nascidos no Brasil? Qual a relação da procedência do escravo com sua
possibilidade de alforria? A primeira questão, responderemos através da quantificação das
variáveis presentes nos documentos.
TABELA 8 Distribuição dos Alforriados por Procedência (Itapetininga, 1820-1850)
PROCEDÊNCIA N % Crioulos/Mulatos 76 68% Africanos 91 11 9,8% Desconhecida 25 22,2% TOTAL 112 100%
Fonte: Arquivo do Primeiro Tabelionato de Notas de Itapetininga. Escrituras de liberdade, 1820-1850
Analisando a tabela 8, observamos que 68% de todos os escravos que receberam a
alforria foram classificados como nascidos no Brasil (crioulos e mulatos). Em detrimento dos
cativos nascidos no Brasil, aparecem discriminados nas cartas como sendo africanos apenas
9,8% dos escravos alforriados. Reforçando a superioridade de crioulos e mulatos entre os
manumitidos, acreditamos que a maioria dos 22,2% dos cativos com procedência
desconhecida deviam de ser nascidos no Brasil.
Como já foi apontado no Capítulo 1, entre os anos de 1820 e 1850, aumentou o
número de africanos em meio à população cativa de Itapetininga, chegando a 37,9% do total
de escravos de Itapetininga92. O aumento do número de africanos na região fez com que
aumentasse a ocorrência destes entre os alforriados, como podemos observar na tabela 9.
91 Em qualquer espécie de documentos no Brasil, quando se mencionava a procedência de escravos africanos, normalmente referia-se ao porto africano de onde o cativo havia sido trazido. Nesses casos, o nome do cativo aparecia acompanhado do local de onde ele havia sido embarcado, como por exemplo “Maria de Nação Benguela”, “João Congo” ou “Domingos Guiné”. Destarte, torna-se muito difícil identificar a etnia exata de onde descendiam os escravos africanos trazidos para o Brasil. 92 MÜLLER (1823). Op. Cit. p. 163.
31
TABELA 9 Distribuição dos africanos em meio ao total de escravos alforriados por década (1820-1850)
Década N° de escravos
alforriados N° de africanos
alforriados % de africanos
alforriados 1820 38 1 2,6% 1830 32 3 9,3% 1840 42 7 16,6% Total 112 11 9,8%
Fonte: Arquivo do Primeiro Tabelionato de Notas de Itapetininga. Escrituras de liberdade, 1820-1850
Entretanto, apesar do aumento no número de africanos alforriados, ainda assim, em
nenhum momento do período por nós analisado, os africanos chegaram a figurar entre os
alforriados na mesma proporção que o ocorrido na população escrava. Como podemos
observar, a partir da década de 1830, mesmo os africanos compondo cerca de um terço da
população cativa de Itapetininga, não ultrapassam 16,6% entre os alforriados na década de
1840, compondo apenas 9,8% do total de alforriados entre 1820 e 1850.
A proporção de africanos entre os escravos alforriados variou de acordo com as
características sócio-econômicas de cada região. Com relação à Bahia, no período
compreendido entre 1779 e 1850, Kátia Mattoso verificou que a porcentagem de crioulos
entre os alforriados variou, para todo o período por ela estudado, entre 40 e 55%,
demonstrando equilíbrio entre estes e os africanos.93 Já Schwartz, analisando Salvador (1684-
1745), encontrou 31% de africanos emancipados para 69% de escravos nascidos no Brasil. O
autor destaca que “essa distribuição é uma inversão da proporção entre escravos brasileiros
e estrangeiros, no total da população”94
. Especificando ainda mais sua análise, Schwartz
aponta os escravos crianças e pardos (mestiço) como em vantagem contra os negros, mesmo
os nascidos no Brasil, no momento da emancipação. O autor explica tal tendência através do
paternalismo senhorial, que teria maior facilidade em reconhecer a filiação (biológica ou não)
de cativos com a cor de pele mais clara.95 Em outro trabalho, analisando uma região com
características mais próximas à deste estudo, Lima encontrou, para a Comarca de Curitiba e
Paranaguá, uma imensa maioria de crioulos dentre os manumitidos no período de 1790-1825,
girando em torno de 65% a 85% do total de alforriados. O autor explica esse fato de acordo
93 MATTOSO (1972) A Propósito de... Op. Cit. p. 37. 94 SCHWARTZ (1974) A Manumissão dos... Op. Cit. p. 85-86. 95 Idem.
32
com a proporção de africanos e crioulos em meio a população geral de escravos naquela
localidade.96
Porém, em Itapetininga, como observamos, a proporção de africanos entre os
manumitidos não refletiu, simplesmente, a sua proporção em meio a população escrava. Pelo
o contrário. A comparação entre a proporção de africanos alforriados com o montante desses
em meio a população escrava de Itapetininga deixou claro que os crioulos levavam vantagem
frente aos africanos no momento de receber a alforria de seus senhores. Mas qual a razão disto
acontecer?
Explicamos o predomínio dos crioulos no momento de alcançar a liberdade pelo viés
da carta de alforria, em decorrência das relações estabelecidas e vividas dentro do cativeiro
com seus senhores, e mesmo com seus pares. Entendemos que a carta de alforria é o momento
final de uma negociação estabelecida no dia a dia, que poderia, inclusive, perpassar anos até
ser efetivada. Destarte, um cativo já nascido em meio a essa sociedade, estaria mais apto que
um africano, a “decodificar” as regras do sistema e utiliza-la a seu favor, inclusive no
momento de negociar sua liberdade com seu senhor. Os laços estabelecidos dentro da própria
comunidade escrava, com certeza, também poderiam beneficiar os crioulos no momento de
planejar a tão sonhada liberdade.
1.5. Modalidade
Como já foi apontado acima, no momento de redigir a carta de alforria, era comum
aparecer a “suposta” motivação que havia levado o senhor a “conceder” a liberdade ao cativo,
assim como o “acordo” existente entre senhor e escravo para a efetivação de tal ato. A partir
de tais informações, podemos constatar em qual modalidade a alforria se encaixava: onerosa,
gratuita, condiciona, ou onerosa condicional.
Ponto comum nos trabalhos que buscaram analisar a prática da alforria no Brasil, que
deve ser destacado, é o fato de todos eles terem encontrado, em meio ás manumissões
estudadas, uma maioria de registros onde o cativo tinha que arcar com alguma forma de ônus
pela sua liberdade, fosse pagando em dinheiro ou espécie pela liberdade, ou então, pagando na
forma de obrigação de trabalho. As explicações para esse fato também variaram de acordo
com a região e o período analisado. Alguns estudos relacionaram a modalidade da alforria
96 LIMA (2001), Op. Cit. 102.
33
com as oscilações na conjuntura econômica. Desta forma, para alguns autores, os senhores
poderiam, em momentos de alta na economia, exigir uma compensação em dinheiro pela
alforria do escravo, uma vez que não era vantagem dispensar mão de obra, ao passo que, em
momentos de crise financeira, teriam prevalecido as alforrias gratuitas, como forma de os
senhores eliminarem gastos com a manutenção dos escravos97; outros estudiosos seguiram
uma lógica mais simples: conforme subia o preço do cativo no mercado, aumentavam as
alforrias pagas, pois seria mais difícil comprar outro escravo, ao passo que, conforme
aumentava a oferta de cativos e diminuía seu valor no mercado, aumentavam as alforrias
gratuitas, uma vez que seria mais fácil repor essa mão de obra.98 Essas constatações
reforçaram a desmistificação do escravismo brasileiro como um sistema benevolente,
humanitário, onde alforria apareceria como um gesto de benevolência do senhor.99 Outros
autores ligaram o predomínio de alforrias onerosas às condições encontradas pelos cativos de
acumular pecúlio para a compra da própria liberdade. Daí terem prevalecido alforrias
onerosas em áreas urbanas100 e mineradoras101. A transição do trabalho escravo para o
trabalho assalariado, no período final da escravidão, também serviu para justificar o grande
número de manumissões condicionais, onde o cativo tinha que trabalhar por um período
combinado para seu senhor antes de ser alforriado.102
Mas qual modalidade de alforria teria prevalecido entre os alforriados em Itapetininga,
entre 1820 e 1850? Partindo dessa pergunta, passamos para a análise da variável modalidade
na configuração do padrão do alforriado em Itapetininga.
Na tabela abaixo, distribuímos a ocorrência de alforrias, por modalidade, em períodos
de dez anos.
97Cf. MATTOSO (1972),Op. Cit. P. 46 98Cf. SCHWARTZ (1974), Op. Cit. P. 99. 99Cf. FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. 46. ed. Rio de Janeiro: Record, 2002. 100Cf. KARASH (1984), Op. Cit 101Cf. RUSSEL-WOOD (2005), Op. Cit. 102 Cf. EISENBERG (1989), Op. Cit. P. 288.
34
TABELA 10 Distribuição dos alforriados por modalidade de alforria – Décadas (Itapetininga, 1820-1850)
Modalidade Gratuita Condicional Paga
(onerosa)
Onerosa e
Condicional
Década N N N N
1820 9 19 9 1
1830 7 13 11 1
1840 25 10 6 1
Total 41 (36,6%) 42 (37,5%) 26 (23,2%) 3 (2,7%)
Fonte: Arquivo do Primeiro Tabelionato de Notas de Itapetininga. Escrituras de liberdade, 1820-1850.
Confirmando a tendência apresentada pelos trabalhos acima, observamos através da
Tabela 10, que em Itapetininga também prevaleceu as alforrias onde o escravo teve que arcar
com alguma forma de ônus no momento de conquistar a liberdade. Em 63,4% das cartas de
alforria registradas em Itapetininga, consta que o cativo pagou com prestação de serviços,
moeda corrente ou ambos por sua liberdade, contra 36,6% dos registros em que não aparece
nenhum acordo específico para obtenção da manumissão. A partir de tal constatação,
apontamos algumas hipóteses a respeito dessa prática em Itapetininga.
Chamamos de onerosas, as manumissões onde o cativo pagou em espécie ou em
moeda corrente por sua liberdade. Aparecendo em 23,2% dos registros analisados, as alforrias
onerosas constituíram a segunda modalidade menos utilizada entre os alforriados em
Itapetininga, ficando a frente apenas das cartas onde o escravo, ao mesmo tempo, tinha que
pagar em moeda e prestação de serviços por sua alforria (2,7%). Acreditamos que a
explicação para esse fenômeno esta na estrutura econômica da região. Numa sociedade rural,
com a economia pautada na pecuária e na agricultura de subsistência e de abastecimento
interno, as possibilidades do escravo acumular pecúlio para a compra da própria liberdade
certamente viam-se reduzidas. Porém, não eram impossíveis, tanto que quase ¼ dos escravos
que foram alforriados pagaram por sua liberdade.
Buscando aprofundar ainda mais a nossa análise, fizemos o cruzamento entre a idade
estimada dos escravos alforriados com a modalidade da alforria, como podemos observar na
tabela 11.
35
Tabela 11 Distribuição dos alforriados por idade e modalidade da alforria (Itapetininga, 1820-1850)
gratuita condicional Paga (onerosa) Onerosa
condicional Modalidade
Idade N° % N° % N° % N° %
Criança 9 21,5% 6 14,6% 1 3,4% 0 0% Adulto 12 28,6% 12 27% 10 34,5% 1 33,3% Idosos 11 26,1% 1 2,4% 2 6,9% 1 33,3%
Desconhecida 9 23,8% 23 56% 13 55,2% 1 33,3% Total 41 100% 42 100% 26 100% 3 100
Fonte: Arquivo do Primeiro Tabelionato de Notas de Itapetininga. Escrituras de liberdade, 1820-1850
Ao cruzarmos os dados, observamos que entre os escravos em idade não-produtiva,
prevaleceram aqueles que deixaram o cativeiro sem arcar com nenhuma forma de ônus,
totalizando 47,6% do total de alforrias gratuitas registradas em Itapetininga. Já os cativos em
idade produtiva, adultos, se destacaram entre aqueles que apresentaram alguma forma de
compensação a seus senhores no momento de ser alforriado, aparecendo em 27% do total de
alforrias condicionais, e em 34% das onerosas. Se considerarmos que os adultos constituem
maioria em meio as alforrias com idade desconhecida, essa proporção aumentaria ainda mais.
Desta forma, observamos que em Itapetininga, no período compreendido entre 1820 e
1850, prevaleceram entre os alforriados os escravos adultos, mulheres ou homens, nascidos no
Brasil, e que tinham que arcar com alguma forma de pagamento no momento de receber a
alforria.
1.6. O perfil sócio-econômico dos senhores que alforriavam.
Neste trabalho, compreendemos que, ao tratarmos da escravidão e das relações entre
senhor e escravo, devemos nos lembrar que as relações históricas são construídas por homens
e mulheres num movimento constante, tecido através de lutas, conflitos, resistências e
acomodações. Relações, enfim, marcadas por ambigüidades.103 Logo, concebemos a carta de
alforria como sendo o momento final de uma negociação cotidiana entre senhores e escravos
que poderia perpassar “boa parte” da vida dos sujeitos envolvidos, senão a vida toda - ou
mesmo mais de uma geração. Entendemos também que, apesar da participação ativa do
escravo nesse processo, a decisão final sobre a alforria cabia sempre ao senhor que alforriava. 103 Cf. LARA, Silvia H. Blowin’ in the Wind: E. P. Thompson e a experiência negra no Brasil. Projeto História. São Paulo (PUC), n. 12, p. 43-56, out. 1995.
36
No entanto, na maioria dos estudos realizados a partir da década de 80 sobre a prática
da alforria, não tem sido observada a preocupação em analisar a participação dos senhores que
alforriavam em meio a esse processo. A despeito dessa falha historiográfica, procuramos
detalhar, na medida do possível, a participação destes que foram uma das partes envolvidas
nessa prática corriqueira no sistema escravista brasileiro.
A primeira dificuldade encontrada ao tentarmos identificar o perfil dos senhores que
alforriavam escravos em Itapetininga foi a falta de informações contidas nessa documentação.
Como já foi apontado acima, o máximo que conseguimos saber a respeito dos proprietários
que alforriavam escravos, analisando as cartas, é o seu nome, sexo, título, local de residência
e, mais raramente, cor, estado civil e profissão. Não era o suficiente.
Assim sendo, a fim de aprofundar o conhecimento a respeito do perfil dos senhores
que libertavam escravos em Itapetininga, buscamos o apoio de outra fonte documental: as
listas nominativas. Através dessa documentação, procuramos observar o tamanho médio dos
plantéis de escravos de onde saiam os manumitidos, assim como as atividades econômicas
desempenhadas nas propriedades dos senhores que alforriavam escravos.
Analisando as listas nominativas referentes aos anos de 1798, 1820, 1828 e 1830,
conseguimos identificar 22 propriedades de onde, em algum momento do período estudado
neste trabalho, algum cativo foi alforriado. Através dessa amostragem, pudemos então
estipular o provável tamanho dos plantéis de onde saiam a maioria dos alforriados em
Itapetininga.
Tabela 12 Distribuição dos alforriados conforme o tamanho do plantel de escravos do senhor que
alforriava (Itapetininga – 1820/1850)
Plantel de escravos por
propriedade
N° de propriedades com
escravos alforriados
N° de escravos alforriados
de 1 a 5 13 14
de 5 a 10 6 18
mais de 10 3 5
Fonte: Maços de População – Itapetininga ano 1798, 1820, 1828, 1830 Arquivo do Estado de São Paulo. Arquivo do Primeiro Tabelionato de Notas de Itapetininga (APTNI). Escrituras de alforria e liberdade, Livros de Notas números 8 ao 24 (1820-1850).
37
Analisando a tabela 12, observamos que 86,5% dos cativos que conseguiram a alforria
em Itapetininga, entre 1820 e 1850, saíram de propriedades com pequenos e médios grupos de
escravos, não ultrapassando 10 cativos por domicílio.
Tabela 13
Distribuição dos alforriados conforme a atividade produtiva desempenhada na propriedade (Itapetininga – 1798)
Atividade produtiva
desempenhada no domicílio N° de propriedades com
escravos alforriados N° de escravos
alforriados Agricultura de subsistência (a) 4 4
Pecuária e agricultura de abastecimento interno
13 26
Outros 5 7
Total 22 37
Fonte: Maços de População – Itapetininga ano 1798, 1820, 1828 e 1830 Arquivo do Estado de São Paulo. Arquivo do Primeiro Tabelionato de Notas de Itapetininga (APTNI). Escrituras de alforria e liberdade, Livros de Notas números 8 ao 24 (1820-1850). (a) Classificamos como agricultura de subsistência as propriedades que declararam esta atividade como sendo a única desempenhada nos anos selecionados. Cabe ressaltar que, nas propriedades que declararam desempenhar outro tipo de atividade, também aparece a produção de alimentos para a subsistência. (AESP – Maços de População/Itapetininga - 1798, 1820, 1828e 1830).
Conforme nos indica os dados arrolados na Tabela 13, cerca de 81% dos escravos que
conquistaram alforria em Itapetininga eram utilizados, enquanto cativos, na criação e
comércio de animais e na produção de alimentos para a subsistência e para o abastecimento
interno.
Desta forma, podemos afirmar com segurança, que o perfil econômico dos senhores
que alforriavam escravos em Itapetininga não diferenciava do padrão dos “chefes de
domicilio com escravos” dessa localidade: Senhores de pequenas e médias propriedades,
voltadas geralmente para a pecuária e para a agricultura de subsistência e abastecimento
interno, e que possuíam pequenos e médios grupos de escravos, de 10 cativos ou menos.
38
Capítulo 3: Um outro olhar sobre a prática da alforria
3.1. Reembaralhando as variáveis
Como já apontamos acima, a forma como as variáveis contidas nas cartas de alforria
são tratadas representa um modelo já tornado clássico pela historiografia sobre o tema. Esta
metodologia de tabulação dos dados contidos nos documentos104 – sexo do escravo, idade,
procedência, modalidade, etc. – tem servido de base empírica para a formulação de modelos
de análise utilizados ainda hoje por aqueles que se dedicam ao tema.
Tendo constatado o predomínio de mulheres entre os alforriados, a maior parte dos
trabalhos analisados passou a concentrar suas explicações em torno da variável sexo. Fosse
por conseqüência o intercurso sexual das escravas com seus senhores, do seu menor valor de
mercado105, ou mesmo por canta de sua maior capacidade de acumular pecúlios através do
comércio106, o gênero do escravo tem se apresentado como fundamental ao explicar essa
prática. Entretanto, mesmo tendo utilizado o mesmo procedimento destes autores, nossos
dados apontaram para outras questões, que serviram para a formulação da hipótese levantada
neste trabalho.
Foi dito no primeiro capítulo que a vila de Itapetininga vivenciou um grande
crescimento populacional nas últimas 3 décadas do XVIII, passando de 1578 habitantes em
1782 para 3717 indivíduos em 1798 (Ver tabela 1). Entretanto, o número de livres que chegou
à vila foi significativamente maior que o de escravos, tendo em vista que, nesse momento, a
população escrava não ultrapassa 12% do total de habitantes da Vila. Esses números tornam-
se mais significativos se considerarmos as duas primeiras décadas do século XIX. Entre os
anos de 1798 e 1815, observou-se que, enquanto a população livre apresentou um crescimento
de 50,4%, a população escrava aumentou apenas 3,3% (Ver tabela 3). Será somente a partir da
década de 1820 que a população escrava de Itapetininga sofrerá o maior incremento de sua
história. Entre o ano de 1820 e 1836 o número de escravos que habitavam a vila aumentou em
mais de 430%, ou seja, quase quintuplicou (tabela 3), passando de 509 cativos na primeira
ocasião para 2700 em 1836. Conforme já apontamos no primeiro capítulo, esse crescimento
acelerado da população escrava da Vila de Itapetininga acompanha as transformações que
104Ver: MATTOSO (1972), Op. Cit.; SCHUWARTZ (1974), Op. Cit. 105 MATTOSO (1972), Op. Cit. 106 KARASCH (1987), Op. Cit.; RUSSELL-WOOD (2005), Op. Cit.
39
estavam acontecendo na economia paulista como um todo, quando, devido ao incremento da
agro-exportação (cana-de-açúcar e café), passa a demandar mais escravos, acelerando o fluxo
de cativos vindo de fora através do tráfico.107 Em paralelo, como já foi apontado acima, teria
crescido também o mercado interno de alimentos e animais, fazendo com que mais pessoas,
antes destinadas a subsistência, entrassem no mercado como fornecedores de alimento,
demandando assim, mais cativos para trabalhar também nesse setor da economia paulista108.
Isso explicaria o boom na população escrava de Itapetininga a partir da década de 1820, em
especial a partir de 1830.
Embora este crescimento reflita o grande fluxo de importação de pessoas seqüestradas
do continente africano e vendidas no oeste paulista, cabe ressaltar que a entrada maciça de
africanos na vila de Itapetininga possuiu características que destoaram do padrão das
plantations paulistas. Ou seja, as razões de masculinidade anteriores ao boom do tráfico
negreiro sofreram alterações imperceptíveis ao longo da primeira metade do XIX (Ver tabela
4), variando entre 54% de homens em 1804 e 52,2% em 1836.
Isso significa que os candidatos a senhores de escravos na vila de Itapetininga ou os
antigos proprietários compravam, no varejo, homens e mulheres numa proporção muito
parecida. Explicamos esse fenômeno no primeiro capítulo quando apontamos que,
diferentemente do ocorrido nas propriedades com grandes grupos de cativos, característico do
oeste paulista, em regiões com Itapetininga, onde prevaleciam pequenos e médios grupos de
escravos por domicilio, a proporção de escravas adquiridas era bem maior.109 Isto não
significa que todas as escravarias da região possuíssem população escrava sexualmente bem
distribuída, mas que o agregado da população da vila possuía tais características.
Outra particularidade deste afluxo de escravos para a vila nas décadas iniciais do
século XIX diz respeito à idade mediana desta população. A compra de escravos, homens e
mulheres, recaiu preferencialmente sobre os adultos, o que demonstra o interesse senhorial em
adquirir mão-de-obra produtiva (e quem sabe, reprodutiva) para as atividades desempenhadas
pelos cativos (tabela 5). Ao mesmo tempo, pode-se perceber pela evolução da composição
etária da população escrava de Itapetininga, que entre 1798 e 1836 ela teria sofrido um
relativo envelhecimento (Ver tabela 5). O número de crianças cai quase pela metade (de 29%
107KLEIN (1987), Op. Cit. p. 133-134 108 Idem. 109 Cf. LUNA & KLEIN. (2000). Op. Cit. P. 79.
40
para 15%), o de idosos dobra (de 11% para 20%) e o de adultos tem leve acréscimo (60% para
65%).
Diante de todas estas observações, é possível estabelecermos uma hipótese para este
trabalho: a alforria era o resultado, a médio ou longo prazo, da negociação entre senhores e
escravos. Por mais que esta afirmação não represente nenhuma novidade no campo
historiográfico sobre a escravidão, o padrão do escravo alforriado na vila de Itapetininga
ratifica esta tese, porém de forma um pouco diferente das apresentadas nos trabalhos
consultados.
Até a década de 1820, quando os efeitos do tráfico negreiro ainda são sentidos de
maneira muito tímida em Itapetininga, pois tratava-se de uma economia voltada
majoritariamente para a subsistência, os escravos nascidos no Brasil são maioria entre os
alforriados (tabelas 8 e 9). Como já dissemos anteriormente, este padrão assemelha-se a
muitos outros encontrados Brasil afora.
Entretanto, a partir da década de 1820, a população escrava de Itapetininga passaria a
conviver de modo mais intenso com a presença dos novos africanos introduzidos pelo tráfico
atlântico. A despeito dessa nova característica do contingente escravo itapetininguense, a
participação de africanos entre os alforriados nesta década é praticamente nula. Contudo, nas
décadas seguintes, os africanos passam a ganhar espaço entre os alforriados, em detrimento
daqueles nascidos no Brasil.
Mas em que isto poderia servir para que pudéssemos analisar a prática da alforria sob
o prisma da negociação? Bem, a maior presença de crioulos entre os alforriados, segundo a
historiografia sobre o tema, seria o resultado da maior capacidade de negociação que os
escravos ladinos teriam para barganhar com seus senhores – através de pagamento ou da
prestação de serviços que prescrevia com a morte de seus senhores. Segundo esta linha de
raciocínio, os crioulos reconheceriam mais facilmente que os africanos as regras que
envolviam a política de domínio senhorial. Isto faria com que eles fossem sobre-representados
no conjunto da população liberta.
Porém, quando voltamos aos dados apresentados na tabela 9, é possível verificarmos
que os africanos adquirem, a cada década, mais espaço entre os alforriados. Ou seja, estes
números sugerem que os africanos trazidos para Itapetininga estão não só envelhecendo, mas
também se inserindo em redes de sociabilidade escrava (majoritariamente crioulas). Esta
inserção dos escravos recém chegados à vila – que podia se dar pelo casamento, compadrio ou
41
pertencimento a alguma irmandade religiosa –, lhes permitia aprender as regras do jogo que
envolvia a negociação da alforria.
Um bom exemplo que pode nos ajudar a pensar esta hipótese é o caso do preto Paulo,
escravo de nação, que teve sua alforria acordada com sua senhora e registrada em cartório em
no ano que o tráfico é extinto no Brasil.110 Além de ser um escravo em idade produtiva, como
a maioria dos alforriados em Itapetininga no período analisado, Paulo exercia alguma
atividade ou ofício que lhe permitiu dar metade de seu valor à sua senhora, Dona Florinda da
Conceição, como pagamento por sua liberdade. As altas somas pedidas pelos senhores como
compensação pela perda da posse sobre seus escravos, fazia com que os escravos inseridos em
redes de solidariedade ou de parentesco tivessem mais condições de acumular a quantia
exigida.111 É bem provável que o preto Paulo se enquadrasse nesta situação, uma vez que era
casado com uma escrava crioula da mesma senhora. Juntos, ou com a ajuda de outros
escravos com quem mantivessem proximidade, o casal deve ter acumulado pecúlio suficiente
para atender às exigências de Dona Florinda.
Da mesma forma, o fato de Paulo ser casado e possuir dinheiro guardado, sugere que
ele fora um destes africanos chegados nas décadas de 1820 ou 1830, período de auge da
importação de negros para servir como mão de obra em Itapetininga. O período que
transcorreu de sua chegada à região até o momento do registro da alforria pode representar o
tempo necessário que estes africanos levariam para aprender as regras do jogo com os
crioulos mais velhos da região.
Enfim, se pensarmos que a população de Itapetininga importou muitos escravos, que a
maioria esmagadora dos alforriados era adulta e, portanto tinha condições de arcar com o ônus
exigido pela carta de liberdade (pagamento ou condicional), que uma certa parcela deles era
formada por africanos, que esta população começa a envelhecer (no sentido de se enraizar)
nas décadas de 1840/50, não é descabida a hipótese de que a crescente participação dos
africanos representaria o aprendizado da lógica necessária para a negociação da alforria.
Não estamos com isso, tentando supervalorizar a participação dos escravos, frente aos
senhores, na prática da alforria. Como já apontamos anteriormente, entendemos a prática da
alforria como sendo resultado de uma negociação travada cotidianamente entre os atores nela
envolvidos, ou seja, senhores e escravos. Também não deixamos de destacar que, mesmo com
110 Arquivo do Primeiro Tabelionato de Notas de Itapetininga. Livro 24, folha 48 (25/11/1850) 111 Ver: Lima (2001), Op. Cit. Cap. 3.
42
todas as estratégias possivelmente desenvolvidas pelos cativos, a alforria dependia da vontade
e dos interesses do senhor que a concedia.
Dessa forma, entendemos neste trabalho que ao conceder a alforria a seu(s) escravo(s),
o senhor pretendia, de fato, fortalecer o domínio sobre sua escravaria. Não a toa, o grande
número de cativos que receberam a carta de alforria sob a condição de servir até o final da
vida de seu(s) senhor(es), cerca de 37% do total de alforriados em Itapetininga (Ver tabela
10). A lealdade desses cativos que eram alforriados sob condição era assegurada, pois, caso
não fosse assim, o senhor poderia, por lei, revogara carta de alforria.
Analisando o caso do preto Paulo, acima citado, podemos ir ainda mais fundo em
nossa afirmação. Além da metade do valor pago em dinheiro, Paulo teria ainda que servir a
Dona Florinda Rosinda da Conceição enquanto esta fosse senhora de sua mulher. Dessa
maneira, observamos que ao “acenar com a liberdade” para Paulo, Dona Florinda devia de
estar fortalecendo sua autoridade não só ao dito escravo, mas também à sua mulher que ainda
permaneceria cativa, e quem sabe mesmo a toda a sua família.
43
Considerações Finais.
Neste trabalho, analisamos a prática da alforria em Itapetininga, província de São
Paulo, no período compreendido entre 1820 e 1850. Para tanto, utilizamos as escrituras de
alforria e liberdade registradas no Primeiro Tabelionato de Notas de Itapetininga durante os
anos de 1820 e1850. Porém, antes de partirmos para a análise das alforrias, traçamos o perfil
sócio-econômico da região estudada.
Itapetininga foi fundada em meados do século XVIII. Seu papel era constituir-se como
último pouso dos tropeiros que vinham do Rio Grande do Sul com destino à famosa feira de
muares de Sorocaba. Localizada no limite setentrional da região de campos de criação e
condução das tropas, passa a integrar a rota dos tropeiros, se destacando dentro deste contexto
como área de invernada, isto é, como local no qual o gado parava para pastar e descansar
antes de ser comercializado em Sorocaba. No século XIX, Itapetininga acompanhou o rápido
desenvolvimento pelo qual passou a capitania e depois província de São Paulo. Impulsionado
pela introdução e aumento das culturas de exportação, notadamente do açúcar e do café, e
pela vinda e estabelecimento da família real portuguesa no Rio de Janeiro, Itapetininga se
tornou uma região voltada para a produção de gêneros agro-pecuários para o abastecimento
interno, atendendo a crescente demanda criada naquelas localidades. Integrada ao mercado
provincial e inter-provincial, a Vila em questão apresentou significativos índices de
desenvolvimento econômico e demográfico durante a primeira metade do século XIX,
inclusive aumentando substancialmente sua população cativa. Durante os anos de 1820 e
1836, a proporção de cativos em meio a população total da Vila passou de 8% para cerca de
um quarto dos habitantes. Explicamos esse fenômeno a partir do súbito crescimento do fluxo
de africanos para o porto do Rio de Janeiro, 112 e conseqüentemente, para a província de São
Paulo.
Assim como os padrões encontrados para as vilas localizadas no chamado Caminho do
Sul, cerca de apenas 25% dos domicílios de Itapetininga contavam com o trabalho de cativos.
Nestes domicílios, prevaleciam pequenos e médios grupos de 1 a 10 escravos. Ainda foi
observado, dentre a população escrava de Itapetininga, no período compreendido entre 1820 e
1850, o predomínio de cativos nascidos no Brasil, variando de 90% em 1820 a 62,1% em
1836. Ainda no ano de 1836, os africanos atingem seu maior índice entre a população cativa
112 KLEIN, Herbert. A demografia do trafico atlântico de escravos para o Brasil. In: Estudos Econômicos. São Paulo: 17(2) 129-149, Maio/Agosto. 1987. pp. 133-134.
44
local, 37,9%. Do mesmo modo, observa-se um nítido equilíbrio entre os sexos na população
cativa, na qual havia 54,1% de homens e 45,9% de mulheres no ano de 1830, e 52,2% de
homens e 47,8% de mulheres no ano de 1836.
Dito isto, utilizando a metodologia proposta por Kátia Mattoso, de quantificar as
variáveis contidas nas cartas de alforria, encontramos o perfil padrão do escravo que era
alforriado em Itapetininga, no período estudado: homens ou mulheres adultos, em idade
produtiva, nascidos no Brasil e que arcavam com alguma forma de pagamento (em dinheiro
ou através de prestação de serviços) no momento de conseguir a alforria. Verificamos também
que a maioria dos senhores que alforriava escravos nessa região era proprietários de pequenos
e médios grupos de escravos, e que a maior parte dos cativos alforriados eram utilizados no
comércio e criação de animais e na produção de gêneros alimentícios para a subsistência e
para o abastecimento do mercado interno.
Por fim, apontamos que a prática da alforria em Itapetininga era o resultado final de
uma - muitas vezes longa – negociação entre senhor e escravos. Não por acaso os adultos e
nascidos no Brasil estiveram em vantagem nesse processo frente aos africanos, que, como
apontamos, levariam mais tempo para compreender a lógica do cativeiro em Itapetininga, e,
conseqüentemente, compreender os caminhos que levavam à liberdade.
45
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(1816-1824), ano de 1820. Arquivo Público do Estado de São Paulo. Maços de População. Rolo 83, Lata 0069
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