Post on 10-Nov-2018
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Ler Osman Lins, a partir da sua prpria teoria sobre o espao literrio:
ilaes possveis no seu conto lrico "Os gestos".
Fernando Alexandre de Matos Pereira Lopes Escola Superior de Educao do Instituto
Politcnico de Viseu.
Na nota de apresentao obra organizada pela nossa insigne convidada
Elizabeth Hazin , sem dvida uma das mais lcidas especialistas de Osman
Lins a nvel internacional, cujo ttulo significativo O N dos Laos, diz a
pesquisadora, com aquele tom, em que a voz da poetisa ilumina o encanto do
discurso ensastico:
"Primeiro encontre, depois procure so as instigantes palavras de Cocteau, cujo
significado profundo emerge, precisamente, da inverso lgica dos verbos por
ele utilizados: encontrar que devia ser resultado de procurar. Cito-as aqui,
porque configuram perfeio o meu percurso mental em relao a Osman
Lins. Lido por primeira vez nos longes da vida, ainda poca em que residia no
Recife, se me afigurou desde o primeiro instante como o objeto de uma
procura, que a partir de ento eu deveria encetar.
H muito seduzida por seu fascnio literrio, transformei Avalovara no texto eleito
de minhas leituras e reflexes. Tanto o folheei, tanto minhas mos o
manusearam, que o volume, envelhecido, acabou transformado num alfarrbio
andrajoso: no pode haver maior prova de amor por um livro do que essa
macerao de suas pginas, tal como as ptalas de uma flor se maceram entre
as pginas de um livro. (Hazin, 2013: 7)
Depois, no douto estudo que escreve, intitulado A espiral e a pgina: criao e
intertextualidade em Osman Lins (Hazin, 2013: 69-90), procede a ensasta a um
tipo de anlise intertextual muito peculiar: a relao da literatura com a
geometria, a propsito do dialogismo que averiguou existir entre o texto
osmaniano e Matila Ghyka poeta, romancista, matemtico, historiador e
diplomata, nascido na Romnia, em 1881, que ensinou Esttica em
universidades americanas, e que veio a falecer aos 83 anos de idade, em
Londres, no ano de 1965. Este foi, sem dvida, um dos grandes inspiradores da
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obra de Osman, conhecido, sobretudo, pelos ttulos, que citamos na lngua
original em que foram escritos: The geometry of art and life, Le nombre dOr e
Esthtique des proportions dans la nature et dans les arts. Como bem esclarece
a especialista, e o que nos d logo um entendimento sobre a importncia do
espao na obra de Osman Lins, que, na sua grande fonte que foi Matila Ghyka,
os temas fundamentais so os da simetria e da analogia, atravs de conceitos
como simetria dinmica, composio sinfnica, sistema de propores, que
conduzem o leitor necessariamente ideia de harmonia e beleza no mundo
(Hazin: 2013: 71).
Por isso, tem Matila Ghyka em consequncia das suas especulaes,
derivadas da analogia a convico da similitude entre O Grande Criador do
Cosmos e o artista. Nesta perspetiva, existe tambm a certeza da
correspondncia entre o Macrocosmo (O Universo Criado pelo Grande
Ordenador) e o Homem, o Microcosmo. este pensamento que Ghyka deixa
escrito, no prefcio do seu primeiro volume, do grande Le nombre dOr:
Les plus intressantes parmi ces hypothses saccordent aussi incidemment
avec la thorie pythagoricienne de lharmonie des Sphres, les ides
philosophiques et cosmogoniques nonces par Platon dans le plus
pythagorisant de ses dialogues (le Time), et les spculations drives sur
lanalogie, la correspondance, entre le Macrocosme (lUnivers cr par le Grand
Ordonnateur) et lHomme, ou Microcosme. (Ghyka, 1980: 12)
Como parntesis e apenas porque Matila Ghyka cita o nome de Plato
lembremos que este corifeu da filosofia, e tambm da literatura, tinha escrito, na
entrada da sua Academia, l na antiga Grcia, a frase: No entre ningum que
no saiba geometria -
Tivemos uma surpresa enorme seja-nos desculpado o desabafo quando
demos conta que o grande poeta Paul Valry (1871 1945) foi o autor do
prefcio (Lettre lauteur) da obra Le nombre d'Or. Rites et rythmes
pythagoriciens dans le development de la civilisation occidentale (1931), de
Ghyka, em que se compraz com a magnfica anlise que o autor fez ao nmero
de ouro, que se escreve pela letra grega (Phi), e que grafado na matemtica
profissional pela letra (tau) grafema minsculo equivalente ao maisculo
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(Tau), de grande profuso no romance Avalovara, e que simboliza a cruz, o mais
totalizante dos smbolos, segundo Chevalier e Gheerbrant (1994: 245).
Paul Valry, que se manifesta, neste curto, mas profundo prefcio, um entusiasta
da relao intrnseca existente entre a matemtica (la mathmatique qui parat
ou qui point dans les premires et les formules, arbitraires en apparence, qui
servent dans les arts), a geometria, as artes e a literatura, afirma, em tom
difano e at perentrio:
En vous lisant, je ne puis mempcher de songer un peu la Littrature. Cet art
le cde malheureusement aux autres, en ce qui concerne la recherche de
rapports intrinsques, lobservance de proportions et de conditions formelles
Pas le Section dor. Jai toujours rv de construire quelque uvre secrtement
arme de conventions raisonnes el fondes sur lobservation prcise des
relations du langage et de lesprit. Jai toujours recul devant la difficult
excessive, - limmense travail de se refaire une conception si nette de la littrature
quelle permt den raisonner. (Valry, 1980: 8-9)
Hazin, na mesma linha em que Ghyka se referiu grande questo das palavras
palndromas e dos anagramas, pondo em evidncia os seus efeitos quase que
mgicos, e que a expresso latina SATOR AREPO TENET OPERA ROTAS
exemplifica sugestiva e singularmente, prope uma analogia que nos muito
grata, atendendo sobretudo ao facto de a lngua de Homero se nos afigurar como
a mais bela e a mais geomtrica que conhecemos: a palavra Avalovara, nome
extrado de uma divindade hindu, aproxima-se, de certa forma apenas,
obviamente, em termos visuais ou tico-grafemticos da palavra
Elizabeth Hazin que examinou, de forma minuciosa, os arquivos que contm
manuscritos, anotaes e correspondncias do escritor de Pernambuco, que
viveu de 1924-1978, depositados em So Paulo (Instituto de Estudos Brasileiros
USP) e no Rio de Janeiro (Museu de Literatura da Fundao Rui Barbosa)
teve em mos o material que, como a prpria afirma, lhe desvelou novas
possibilidades de compreenso da escrita de Lins, na fase do processo de sua
elaborao. Mas no preciso estudar este esplio privilgio que tambm
gostaramos um dia de experimentar para perceber, desde logo, o que pensa
Osman Lins sobre o espao. Ainda que parea um pouco desproporcionado,
precisamente por isso que estamos a invocar o romance Avalovara, talvez o seu
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monumentum (mais perene que o bronze, como diria o poeta latino Horcio), a
respeito do qual o escritor brasileiro afirma: A construo desta obra uma
construo que nos remete ao Cosmos [] todo o romance construdo
minuciosamente para nos remeter ordem csmica; a que acrescenta: Parti
para uma construo que fosse significativa, evocando a ordem csmica, as
medidas do mundo (Lins, 1979: 207). O mesmo estaria, decerto, a pensar o
autor de Nove, novena, quando faz anteceder o corpus ficcional, propriamente
dito, desta sua obra de uma epgrafe, que retirou da obra do grande Matila
Ghyka, Esthtique des proportions dans la nature et dans les arts, que diz o
seguinte: Uma concepo geomtrica sinttica e clara fornece sempre um bom
plano. (Lins, 2012: 5). Nesta perspetiva, tm, assim, toda a pertinncia as
palavras da Professora Elizabeth Hazin sobre uma caracterstica nodal da
poiesis osmaniana: o rigor na ordenao, o domnio sobre a matria tratada,
a recusa ao acaso, sem perder, todavia, a noo do potico, da beleza, do
transcendente (Hazin, 2013: 70).
Mas porqu tudo isto - reiteramos? Apenas para nos consciencializarmos de que
a espacialidade foi o centro de interesse nmero um deste escritor
pernambucano que, a propsito das suas grandes influncias a nvel literrio,
elegia o prosador alagoano Graciliano Ramos (1892-1953), mais at do que o
prprio Lima Barreto (1881-1922), sobre quem fez a sua tese de doutoramento,
e at o chamado Ea de Queirs brasileiro, que Machado de Assis (1839-
1908), sobre quem disse que no desejaria t-lo conhecido - se esses
anacronismos fossem possveis - prefiro ficar com Capitu, disse ele, em tom
jocoso, no ensaio Do Ideal e da Glria: Problemas Inculturais Brasileiros (Lins,
1977: 78).
Em sntese, e depois de todo este arrazoado, que fios puxar e que files
heursticos vamos privilegiar?
- Osman Lins foi um grande criador literrio, demiurgo de grandes obras
narrativas e dramticas, em que o espao, ainda que inconscientemente, era por
ele sentido, talvez, como a categoria de eleio;
- Osman Lins escreveu a sua teoria sobre o espao numa tese de doutoramento
intitulada Lima Barreto e o Espao Romanesco, escrito, pelos vistos, em seis
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meses incompletos, de 02/04/1973 a 30/09/1973 (obra que parece estar
esgotada, a nvel mundial, mesmo entre os alfarrabistas);
- Lima Barreto, at porque leu, como uma bblia de referncia, a obra de Matila
Ghyka, tinha uma conceo harmnica entre o espao, que o universo, e o
homem, tambm ele um espao.
Esta ltima ilao afigura-se-nos como uma grande aposta a evidenciar, atravs
do conto / short story Os Gestos, que, com um corpus apenas de seis pginas,
tambm a esse nvel, se configura como um exemplo particularmente feliz. No
foi por acaso que invocmos, com sintonia e agrado, Paul Valry, a respeito do
prefcio que ele escreveu obra Le Nombre d'Or (1931). que este poeta
francs, no seu Cahiers I, escreveu um texto sublime chamado Soma et C.E.M.,
sendo C.E.M., a sigla de Corps, Esprit et Monde, fazendo notar, com esta trade
indissocivel, o papel mediador do corpo, que fazia do esprito um momento da
resposta do corpo ao mundo (Cahiers I, 1973: 1125). Notemos que tambm
Merleau-Ponty, na sua obra Le visible et linvisible, afirmou que o seu corpo era
feito "da mesma carne do mundo": "Cela veut dire que mon corps est fait de la
mme chair que le monde (cest un peru), et que de plus cette chair de mon
corps est participe par le monde []" (Merleau-Ponty, 1964: 302), ou ainda, na
obra Nature, eu sou, atravs de meu corpo, parte da Natureza: Je suis une
partie de la Nature et fonctionne comme nimporte quel vnement de la Nature:
je suis, par mon corps, partie de la Nature." (Merleau-Ponty, 1994: 159) (Itlico
acrescentado.)
Todavia, devemos considerar, ainda, que um texto, segundo nos diz Michel
Collot, em La Pense-paysage. Philosophie, Arts, Littrature tambm uma
paisagem (o sentido de um texto, como de uma paisagem, assenta na
disposio dos elementos que o compem (Collot, 2011: 202)) - a tal paisagem,
que o protagonista de Os Gestos, Andr, se recusou a construir com grafemas
alfabticos, quando a filha lhe deu uma folha branca, para que ele a utilizasse
como meio alternativo de comunicao atitude que leva o incapacitado ancio
a uma reao negativa, rasgando-a. o mesmo Collot, alis, que, citando o
Merleau-Ponty do ensaio Le langage indirect et les voix du silence (Merleau-
Ponty, 1960: 117), afirma que: a tarefa da escrita consiste () em fazer da palavra
uma paisagem do pensamento (Collot, 2011: 202).
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Antes de nos debruarmos sobre o conto, comecemos pela teoria proposta por
Osman Lins sobre o espao, com uma transcrio que talvez, ainda que sub-
repticiamente, tivesse servido de mote para o ttulo que demos a esta
comunicao/ artigo. Desta forma, escreve Osman Lins, ao dilucidar o conceito
de ambientao dissimulada ou oblqua:
A ambientao dissimulada exige a personagem ativa: o que a identifica um
enlace entre o espao e a ao. Leon Surmelian designa-a como o mtodo
dramtico; description blending with the flow of action. tambm
ambientao dissimulada que se refere Georg Lukcs, quando adverte, no seu
ensaio Narrar e Descrever, no se deter a reconstituio do ambiente, em
Balzac, na pura descrio, vindo quase sempre traduzida em aes (basta
evocarmos o velho Grandet, consertando a escada apodrecida). Assim : atos
da personagem, neste tipo de ambientao, vo fazendo surgir o que a cerca,
como se o espao nascesse dos seus prprios gestos. (Lins, 1976: 83-84)
Ora, parece-nos interessante a aproximao que existe entre o ttulo do conto
Os Gestos e o segmento como se o espao nascesse dos seus prprios
gestos, com que o ensasta Osman Lins termina a dilucidao deste tipo de
ambientao que, como vamos aferir, no , de todo, a ambientao que
predomina no conto que elegemos como objeto de anlise.
O estudo Lima Barreto e o Espao Romanesco vale fundamentalmente pela
novidade da teoria da ambientao, criada por Osman Lins, e que o ensasta
muito bem aplica, sobretudo na obra Vida e Morte de M. J. Gonzaga de S, uma
obra no muito longa, mas de grande beleza esttico-literria, do escritor, to
genial, como neurastnico-dipsmano, Lima Barreto. A obra est dividida em
sete captulos, com uma bibliografia, para o tempo, algo criteriosa, onde insere
o grande escritor e crtico, desaparecido no pretrito agosto, Michel Butor (14-
09-1926 24/08/2016), a quem justo fazermos uma homenagem num
congresso sobre espacialidade. Osman cita o original francs Rpertoire II,
porque ainda no existia a traduo brasileira Repertrio (1974), onde se
encontra o estudo O Espao no Romance (Butor, 1974: 39-46), ainda hoje
muito til sobre esta matria1.
1 Quanto a Butor, porm, notemos que no Repertoire II (1964), existe, alm do estudo Lespace du roman, outro que devemos inserir tambm nesta especialidade, cujo ttulo Philosophie de
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Os trs primeiros captulos do-nos uma viso global biobibliogrfica de Lima
Barreto. O captulo quarto fala do conceito e possibilidades do que pode ser o
espao romanesco; o captulo quinto relaciona, por sua vez, o espao
romanesco e a ambientao, procedendo Osman Lins a uma destrina entre
ambientao franca, ambientao reflexa e ambientao oblqua. O captulo
sexto fala sobre as funes do espao romanesco, em que o autor estabelece
proficientes relaes entre a personagem e o espao, desvelando tambm o que
entende por espao-moldura e espao intil. No ltimo captulo, aplica toda a
sua teoria obra de Lima Barreto, Vida e Morte de M. J. Gonzaga de S.
Ozris Borges Filho, para quem sabemos que Osman Lins uma referncia
incontornvel na teoria da espacialidade, desenvolve esta perspetiva
osmaniana, na sua obra Espao e Literatura. Introduo Topoanlise,
fundamentalmente no captulo segundo, em que fala das funes do espao, e
no captulo terceiro (Perspectivas Espaciais), numa rubrica especfica que
intitula Espacializao termo que ele prefere a ambientao, proposto por
Lins. Depois h toda uma proliferao de referncias linsianas, ao longo deste
estudo de Borges Filho, nomeadamente quanto questo dos gradientes
sensoriais.
No que concerne, pois, espacializao - apropriemos esta preferncia
terminolgica do especialista da topoanlise ao que Osman Lins teorizou ela
diz respeito forma como o espao instalado na narrativa, no se devendo
confundir (se bem que lhe prxima) com a questo da descrio do espao, de
que muito se ocupou Philippe Hamon, sobretudo em Quest-ce quune
dscription (Hamon, 1972: 465-485).
A este respeito, e em traos muito gerais, devemos distinguir, assim, a
espacializao franca, composta por um narrador independente, onde a
descrio aparece eivada da maior objetividade, dependendo apenas dele,
numa narrativa de terceira pessoa; a espacializao reflexa, em que a
personagem que tem a perceo dos espaos, sem haja uma intruso direta do
narrador, exceto se o narrador tambm for personagem; por fim, a
lameublement. Estes dois estudos encontram-se, tambm, no livro de Michel Butor, Essais sur le roman, datado de 1969.
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espacializao dissimulada ou oblqua, que exige uma personagem ativa, na
medida em que so os seus prprios atos que fazem surgir o espao.
Borges Filho, sublinhando a advertncia de Osman Lins, afirma que estes trs
tipos de espacializao se podem matizar numa mesma unidade temtica,
sendo, desta forma, tarefa do topoanalista a verificao cuidadosa, nos espaos
estudados, dessas mesmas formas de espacializao, bem como os efeitos de
sentido a que as mesmas do ensejo.
A preferncia pelo termo espacializao, em vez de ambientao, justificada
por Ozris, por um motivo sobretudo operacional, uma vez que o conceito
osmaniano de ambientao pode, segundo aquele autor, levar a um equvoco
com o conceito de ambiente. E, de facto, fica patenteada um pouco essa
indistino no texto da tese de Osman Lins:
por ambientao, entenderamos o conjunto de processos conhecidos ou
possveis, destinados a provocar, na narrativa, a noo de um determinado
ambiente. Para a aferio do espao, levamos a nossa experincia do mundo;
para ajuizar sobre a ambientao, onde transparecem os recursos expressivos
do autor, impe-se um certo conhecimento da arte narrativa (Lins, 1976: 76)
O interesse pela ambientao, traduzido por Lins como equivalente ao interesse
dos recursos literrios para estabelecer, nas histrias, o espao (Lins, 1986: 89),
no foi descurado tambm por outros ensastas, nomeadamente por Antnio
Dimas, que, em Espao e Romance, pegando na teoria de Osman, procede a
uma destrina muito vlida, explicitada nos seguintes moldes:
Em outras palavras: na medida em que no se deve confundir espao com
ambientao, para efeitos de anlise, exige-se do leitor perspiccia e
familiaridade com a literatura para que o espao puro e simples (o quarto, a sala,
a rua, o barzinho, a caverna, o armrio) seja entrevisto em um quadro de
significados mais complexos, participantes estes da ambientao. Em outras
palavras ainda: o espao denotado; a ambientao conotada. O primeiro
patente e explcito; o segundo subjacente e implcito. O primeiro contm dados
de realidade que, numa instncia posterior, podem alcanar uma dimenso
simblica. (Dimas, 1985: 20) (Itlico acrescentado.)
Relativamente ao conceito de ambiente que, para Borges Filho, no se deve
confundir com o conceito de espao e que, numa conceo topoanaltica, deve
ser definida, segundo o autor, como a soma de cenrio ou natureza mais a
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impregnao de um clima psicolgico (Borges Filho, 2007: 50) bom lembrar
que ele mencionado, numa aura conceptual porfiada, na clssica obra de Ren
Wellek e Austin Warren, de 1948, intitulada Teoria da Literatura, onde lemos,
antes da dilucidao propriamente dita, o seguinte: a preocupao com o
ambiente o elemento literrio da descrio, distinto da narrao parecia,
primeira vista, diferenciar a fico do drama; mas, pensando melhor, afigura-
se que tal preocupao mais uma questo de poca (Wellek & Warren, 1962:
278). Depois, procedem os autores definio e exemplificao do conceito,
pondo em evidncia um aspeto que veio a colher seguidores diversos, entre os
quais o, ainda vivo, terico e professor francs Jean-Yves Tadi2 - a relao
metonmica e metafrica que existe entre as personagens e o espao (ambiente,
para Wellek & Warren):
O ambiente o meio circundante, e este, especialmente o interior domstico,
pode ser concebido como expresso metonmica ou metafrica da personagem.
A casa em que um homem vive um prolongamento deste. Descrev-la
descrever o seu ocupante. As pormenorizadas descries que Balzac faz da
casa do mesquinho Grandet ou da Penso Vauquer no so nem relevantes
nem esto a mais. Essas casas so a expresso dos seus donos; afetam, como
atmosfera, as outras pessoas que l tm de viver. O horror pequeno-burgus da
Pension constitui a provocao imediata da reao de Rastignac e, noutro
sentido, da de Vautrin, enquanto mede a degradao de Goriot e proporciona
constante contraste s grandezas alternadamente descritas. (Wellek & Warren
1962: 279) (Itlico acrescentado)
Nesta mesma linha, e com toda a acuidade, averigua Mrcia Rejany Mendona,
na sua tese de doutoramento, Representaes do Espao em Narrativas
ficcionais de Osman Lins, Goinia (2008), que as configuraes dos espaos
so modificadas pelo modo particular como cada personagem apreende o
2 Jean-Yves Tadi, a propsito precisamente da narrativa lrica, como o caso do conto Os
Gestos, de Osman Lins, afirma no seu Le Recit Potique:
lespace du rcit potique est toujours ailleurs, ou au-del, parce quil est celui dun voyage
orient et symbolique. Le recours aux images accroit ce mouvement, puisque, grce lui,
chaque phrase glisse de niveau: mtaphore et mtonymie font fuir ou juxtaposent les
significations. Lespace du monde tel que le reprsente le livre saccorde avec lespace
du langage quincarnent les figures, en mme temps quil se dlivre du rle subordonn,
du rle de cadre ou de hors-duvre quil occupe dans le roman classique sous le nom
dcri de description. (Tadi, 1978: 10)
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espao e que, em certa medida, os espaos apresentam ambientes e atmosferas
com significaes que se equivalem (Rejany, 2008: 63).
No excerto apresentado de Wellek & Warren, aparece-nos tambm o conceito
de atmosfera, que, como podemos constatar, mantm, por vezes, uma
correlao intrnseca com o ambiente, de modo que ambos podem ser tratados,
circunstancialmente, como elementos comuns, no obstante, tambm em muitos
textos narrativos, eles no se revelarem, de modo algum, equivalentes, j que a
atmosfera depende, por via de regra, do estado psquico da personagem,
enquanto o ambiente o resultado da aplicao de um conjunto de processos
que Osman Lins denominou de ambientao. Este autor, no seu papel de
ensasta e teorizador sobre o espao literrio, refere-se ao conceito de
atmosfera, com uma finura e uma sugestibilidade inolvidveis. Perscrutemo-lo:
Diremos, finalizando, que a atmosfera, designao ligada ideia de espao,
sendo invariavelmente de carcter abstrato de angstia, de alegria, de
exaltao, de violncia, etc. consiste em algo que envolve ou penetra de
maneira sutil as personagens mas no decorre necessariamente do espao,
embora surja com frequncia como emanao deste elemento, havendo mesmo
casos em que o espao justifica-se exatamente pela atmosfera que provoca.
(Lins, 1976: 76)
A anteceder este pargrafo, Osman Lins refere-se a um trabalho de Antnio
Soares Amora, com o ttulo Classicismo e Romantismo no Brasil, pondo em
evidncia, fundamentalmente, o captulo Iracema um Romance de
Atmosfera, em que Soares Amora, a propsito do romance de Jos de Alencar,
chega a concluses muito consentneas com o que acontece no conto Os
Gestos, falando de atmosfera () dominantemente potica (Amora, 1966:
125) e vivo sentimento lrico (idem: 125), dado que esta short story osmaniana
tambm, como tentaremos provar - ainda que de forma sinttica, atendendo
aos limites textuais que temos que cumprir , uma narrativa lrica.
No ser ousado afirmar que a liricizao, nsita em Os Gestos, se combina, e
, ao mesmo tempo, uma deriva do tipo de ambientao que, a nosso ver,
prevalece nesta narrativa - a ambientao reflexa, com uma compleio, todavia,
muito especfica, olhando a que tudo o que o narrador omnisciente nos descreve
depende, apenas e s, do mundo interior de Andr, o protagonista do conto.
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Efetivamente, so as suas pungentes, e indelevelmente incisivas, reflexes que
do matria voz do narrador, que, por vezes, chega a materializar palavras,
em discurso direto, daquele eu-personagem central, julgando-se, assim, o
sujeito da enunciao um demiurgo do espao psicolgico do protagonista.
A narrao excetuando transcries pontuais de alguns desafogos de Andr,
em primeira pessoa feita na terceira pessoa, por um narrador que evidencia
um conhecimento transcendente da histria e que utiliza uma exposio direta
ou simultnea do pensamento da personagem focalizada, analisando
permanentemente o seu fluxo de conscincia. O incipit da short story, prolongado
ao longo do primeiro pargrafo, evidencia, em absoluto, o que acabamos de
afirmar:
Do leito, o velho Andr via o cu nublar-se, atravs da janela, enquanto as folhas
da mangueira brilhavam com surda refulgncia, como se absorvessem a
escassa luz da manh. Havia um segredo naquela paisagem. Durante minutos,
ficou a olh-la e sentiu que a sua grave serenidade o envolvia, trazendo-lhe um
bem-estar como no sentia h muito. E eu no o posso exprimir, lamentou.
No posso dizer. Se agitasse a campainha, viria a esposa ou uma das filhas,
mas seu gesto em direo janela no seria entendido. E ele voltaria a cabea,
contendo a raiva. (Lins, 1994: 11)
Em termos narratolgicos, estamos, efetivamente, em presena do discurso
indireto livre que, como dizem Carlos Reis e Ana Cristina Lopes,
um discurso hbrido, onde a voz da personagem penetra a estrutura formal do
discurso do narrador, como se ambos falassem em unssono fazendo emergir
uma voz dual. A terceira pessoa e os tempos da narrao coexistem lado a
lado com os decticos, as interrogaes diretas, os traos interjectivos e
expressivos (Reis & Lopes, 1991: 312)
Este tipo de narrao concitou, sem dvida, a uma profuso de lirismo, presente,
alis, em toda a sintagmtica narrativa de Os Gestos, em que o intimismo, a
sensibilidade e a verosimilhana foram estudados, ao pormenor, pelo autor,
como tcnica de aprofundamento psicolgico da personagem principal,
construda in fieri, ao longo de toda a horizontalidade discursiva, com o desvelo
necessrio para que a sua densidade psicolgica fosse notada, merecendo, por
isso, a designao de personagem modelada ou redonda.
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Como podemos notar, o tempo e o espao esto explicitados no primeiro
pargrafo do conto, circunscrevendo-se, desta forma, a primeira categoria a uma
manh, em que durante minutos Andr ficou a olhar a paisagem, que o atraiu
de uma forma como no era habitual; quanto ao espao, ele extremamente
confinado, reduzindo-se a um quarto, com um leito, onde a personagem
protagonista se encontra retida, por incapacidade fsica, e a uma janela que lhe
possibilita, atravs do gradiente sensorial da viso, contemplar uma mangueira,
envolta numa natureza nublada, mas com algum mistrio. Como parntesis,
diremos, seguindo o pensamento de Gaston Bachelard, de A Potica do Espao,
que o que a personagem consegue ver atravs da janela pertence tambm ao
seu espao envolvente, j que A acolhida da casa to total que o que se v
da janela pertence casa. (Bachelard, 2012, 79) (Itlico acrescentado)
As coordenadas espcio-temporais, porm, ampliam-se, sobremaneira, devido
imaginao e aos fluxos de conscincia que habitam no espao mental da
personagem e que o narrador analisa detalhadamente.
A este propsito, no podemos deixar no olvido o, tambm clssico, estudo de
Robert Humphrey, O Fluxo da Conscincia, dado que a situao criada em Os
Gestos, por Osman Lins, se coaduna teorizao de Humphrey, sobretudo
quando o especialista americano se referiu ao monlogo interior indireto, numa
aceo idntica ao que hoje designamos por discurso indireto livre. Atrever-nos-
amos a afirmar que este pargrafo, citado de seguida, em traduo brasileira,
explica, na perfeio, a realidade que encontramos no conto que estamos a
analisar:
Neste caso, o monlogo interior indireto o tipo de monlogo interior em que um
autor onisciente apresenta material no-pronunciado como se viesse
diretamente da conscincia do personagem e, atravs de comentrios e
descries, conduz o leitor atravs dela. Basicamente, difere do monlogo
interior direto no sentido de o autor intervir entre a psique da personagem e o
leitor. O autor est em cena como guia para o leitor. Retm a qualidade
fundamental do monlogo interior no sentido de que direto aquilo que
apresenta em matria de conscincia; isto , vir no idioma e com as
particularidades dos processos psquicos do personagem.
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Na prtica, o monlogo interior indireto geralmente vem combinado com alguma
outra das tcnicas do fluxo de conscincia especialmente com uma descrio
da conscincia. (Humphrey, 1976: 27).
Nesta conformidade, parece-nos que as lcidas palavras de Ana Luiza Andrade,
no ensaio Osman Lins: Crtica e Criao (dos trabalhos particularmente
inteligentes de crtica literria que j tivemos oportunidade de ler!) vm
corroborar as ltimas asseres que temos vindo a expender. Fruamo-las
atentamente:
Os Gestos inaugura a coleo de contos de Osman Lins com uma nova forma
de expresso criativa e crtica os gestos -, imagens gesticuladoras que lutam
entre a represso imposta s palavras, ritual repetido, e uma nova forma de
liber-las, na arte de narrar. Os gestos so reflexos mudos das palavras que os
indicam. Por isso, o narrador onisciente preenche a ausncia de expresso dos
gestos com as palavras textuais que os traduzem ao leitor. (Andrade, 2014: 87)
Ainda para dirimir, concluindo, o problema do tipo de ambientao que julgamos
prevalecer neste conto de Osman Lins e que ser a reflexa invocamos, de
novo, o prprio autor, no seu vezo de ensasta, no estudo Lima Barreto e o
Espao Romanesco, dado que o seu teor parece-nos vir confirmar a realidade
textual do conto Os Gestos. Assim, numa primeira opinio, a propsito de
Madame Bovary, de Flaubert, afirma Lins:
H ainda a observar que essa ambientao, classificvel em princpio como
franca, na verdade reflexa: as coisas, sem engano possvel so percebidas
atravs da personagem. Atento eficcia da linguagem, reconhecia Flaubert a
inutilidade de reiterar, mediante pronome pessoal e os verbos correspondentes,
informaes j implcitas no texto. (Lins, 1976: 82)
Logo de imediato, procede clarificao do conceito de ambientao reflexa,
estabelecendo um cotejo entre o universo de Zola, estudado por Philippe Hamon,
e o que se passa em Gonzaga de S, de Lima Barreto:
A ambientao reflexa caracterstica das narrativas na terceira pessoa,
atendendo em parte exigncia, proclamada pelo estudioso de Zola, de manter
em foco a personagem, evitando uma temtica vazia. Sucede, porm, embora
mais raramente, que mesmo o personagem-narrador transfira a outrem a
perceo do ambiente, como podemos ver em Gonzaga de S. (Lins, 1976: 82)
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No resistimos a transcrever tambm uma deixa terica muito importante de
Osman Lins, a respeito ainda do mesmo conceito, cuja circunscrio no nos
parece alheia totalmente ao que se passa no conto lrico que analisamos:
A esta altura, uma pergunta se impe: os casos em que o espao nasce atravs
o discurso direto, emitido por uma das personagens (no o personagem-
narrador) representam uma modalidade da ambientao reflexa? Parece lgica,
ao primeiro exame, a resposta afirmativa. Observemos, entretanto, que, nesse
caso, desloca-se o eixo da enunciao. Assumindo a palavra, pode a
personagem, por sua vez, empregar em segundo grau, diramos os mesmos
recursos do narrador. A situao no se modifica substancialmente, sofrendo
apenas uma gradao, se o discurso direto substitudo pelo discurso indireto
ou indireto livre. (Lins, 1976: 83)
Embora com um cdigo tcnico-compositivo ligeiramente diferente, tambm se
nos afigura aplicvel ao conto Os Gestos, o que afirma Eileen Baldeshwiler, no
artigo The Lyric Short Story: Sketch of a History, a propsito precisamente de
um dos ingredientes do conto lrico e propiciador, por consequncia, s questes
existenciais dos narradores, que se aproximam da inquirio filosfica. Assim,
esta especialista lembra que, nos grandes autores russos do conto lrico, como
foram Tchekov e Turguenev, o locus da narrativa se transfere, amide, da ao
exterior para os estados mentais, concitando a que o eu narrante se aproprie,
de forma indelvel, do texto, postergando, deste modo, a ao de outras
personagens e depurando os eventos narrados:
With these authors, de locus of narrative art has moved from external action to
internal states of mind, and the plot line will hereafter consist, in this mode, of
tracing complex emotions to a closing cadence utterly unlike the reasoned
resolution of the conventional cause-and-effect narrative. (Balseshwiler, 1994:
234)
Numa situao de incapacidade, Andr tambm no podia fazer muito mais, em
termos de ao, dado o duplo confinamento em que se encontrava. Os advrbios
temporais sempre e nunca, do extrato a seguir apresentado, vo dar nfase
a essa situao irredimvel:
Para sempre exilado pensou. Minhas palavras morreram, s os gestos
sobrevivem. Afogarei minhas lembranas, no voltarei a escrever uma frase
sequer. Igualmente remotos os que me ignoram e os que me amam. S os
gestos, pobres gestos
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Os pensamentos fatigaram-no. Veio, como de outras vezes, a idia de que tudo
aquilo poderia cessar, restituindo-o companhia dos seus, mas ele recusou a
esperana. Nunca mais, insistiu. Nunca. Essa que a verdade. Sbita, febril
impacincia f-lo agitar-se, trazendo-lhe mente o seu despertar um ms antes
e o horror ao perceber que estava sem voz, mas ele tentou afastar a lembrana.
Esquecer todas as palavras. Resignar-me ao silncio. (Lins, 1994: 11)
Ana Luiza Andrade detm-se, de forma muito interessante, na destrina entre
gestos rituais e gestos vivos, a propsito deste conto, considerando que os
rituais so aqueles que se repetem automaticamente, de maneira incua e
desprovida de significado; os gestos vivos manifestam-se em determinados
momentos, quando a personagem ganha uma conscincia crtica da sua
condio.
No caso concreto de Andr, ele encontra-se impossibilitado de comunicar, quer
por palavras, quer por gestos, numa situao, portanto, de total isolamento,
atendendo sua situao compulsiva de acamado, num dos quartos da casa,
sem quaisquer condies para se poder movimentar, ainda que fosse nesse
espao interior, nem to-pouco de comunicar verdadeiramente com os seus
familiares.
Talvez, nesta linha de entendimento, possamos pensar nos efeitos perlocutivos
desta incomunicabilidade, sinnima, possivelmente, de o autor ter querido
afirmar o sentido inefvel da interioridade, sobretudo quando no existem
afinidades eletivas (para utilizar o ttulo da obra de Goethe) entre as pessoas.
Para isso, bastar recordar a antinomia que se estabelece no conto entre
Rodolfo, aquele amigo que o visita, e a prpria mulher de Andr, que nem sequer
aparece designada com nome prprio. Enquanto Rodolfo caracterizado como
tendo o rosto largo, de mas salientes, o semblante sem malcia, o torso amplo,
a alva roupa de linho (Lins,1994:12) e ar de vida, a lembrar um marinheiro que
tinha uma amplitude de viagens (idem); a mulher surge com uma indumentria
escura, apelidada de fria, magra e esquiva. por isso que Rodolfo lhe vem
acicatar como que um renascer das cinzas, pelas similitudes que nele encontra,
em termos de sensibilidade, alegria e liberdade, que o gosto pela viagem
emblematiza.
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O fragmento que se segue deixa plasmada essa identificao entre os dois
amigos, precisamente depois da visita de Rodolfo ter terminado:
Andr ficou s, olhando as rtulas fechadas. Quisera pedir esposa que as
soltasse, deixando-lhe algumas nesgas de cu, mas nem ao menos esboou o
gesto. Imobilizava-o novo acesso de fadiga e ele ficou a ouvir os passos da
mulher um caminhar sorrateiro, em que os ps se encurvavam nos chinelos,
contidos, pousando aos poucos no solo, de modo que ao fim do corredor j no
eram escutados, embora ele os acompanhasse ainda em imaginao.
A chuva anunciada chegou, banhando o arvoredo invisvel; algum correu na
calada, as primeiras gotas bateram na janela, ressoaram nas telhas. Ele sorriu,
enleado, mas uma viso trespassou-o: Rodolfo alcanado pela chuva, a mo
protegendo a fronte, a roupa de linho a molhar-se. Foi como se o visse
esmagado: oprimiu-o uma compaixo violenta; soergueu-se, tomou a campainha
e agitou-a, frentico, at que a mulher voltou e ps-se a fazer-lhe perguntas, com
tal rapidez que seria impossvel entend-la. As duas filhas surgiram na porta,
assustadas; voltou-se para elas e entrou a gesticular, ainda aflito. Veio-lhe ento
o desejo de estar s, sem aquelas presenas inteis; escorraou-as com um
gesto brutal e deitou-se. (Lins, 1994:13)
Podemos facilmente constatar que a incompreenso de que Andr se achava
vtima, exceo, obviamente, do amigo Rodolfo e tambm da sua filha mais
velha Lise, que (ao contrrio de Mariana, a mais nova) cumpria dignamente o
seu dever filial, contribua, ainda mais, para o desenvolvimento da sua
imaginao criativa, alm de ser tambm apenas, atravs da memria, que ele
consegue resgatar os espaos que conheceu quando a sua mobilidade o
permitia. nesta tica da lembrana que ele imagina ainda a filha a apanhar a
roupa estendida no quintal, aps a me lhe ter dado essa ordem, num grito, que
adveio da sala de jantar. Por outro lado, a par da lembrana, a imaginao tem
um papel muito ativo na interioridade do protagonista. Por isso, um casal de
pssaros, que esvoaava, veio-lhe lembrar a sua juventude, achando-se,
durante algum tempo, debruado ante uma paisagem lacustre (Lins,1994:11).
A murmurao daquelas trs mulheres, que nada conseguiram fazer perante a
sua inquietude, face ao mpeto violento que ele manifestou, por no poder ser
til ao amigo, que imaginava violentamente alcanado pela chuva, no seu
regresso a casa, aps a visita, deu ensejo a que Andr fizesse uma indagao
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existencial e ainda presentificasse uma memria de infncia, que uma analepse,
algo inesperada, vem confirmar:
De olhos cerrados, ouviu-as murmurar. Trs mulheres espantadas queriam que
lhes dissesse algo. Deviam saber que isso era impossvel: sua voz estava morta.
Quando pereceriam os olhos? Quando seria a morte da memria?
Afastaram-se os passos, confusos, entrelaando-se como os fios de uma trana.
Mariana, Lise e a mulher fundiram-se numa sombra vaga, dispersaram-se e
mergulharam na chuva que as dissolveu.
Ele corre na manh invernal, os ps descalos cortando poas de gua. A prima
chama-o janela; voam cabelos sobre o rosto infantil, que sorri. A viagem do
barco de papel repousa nas mos da menina. Ele toma-o, curva-se, entrega-o
enxurrada. Nascem veleiros, alvssimos, libertos no mar. (Lins,1994:13)
Em suma, os espaos que Andr conheceu, quer na sua infncia, quer num
passado mais recente, anterior sua doena incapacitante, vo ser valorizados
e transformados pela memria - que impe distncia, emoo e subjetividade -,
sendo, nessa ordem, elevados categoria de espaos lricos.
Para concluir, e deixando em aberto vetores que a circunstncia no permitiu
desenvolver, com Os Gestos, talvez Osman Lins quisesse provar a fragilidade
das palavras face essncia da interioridade humana, que possivelmente s um
gesto vivo e totalmente renovado pode manifestar. Assim se entende que, na
parte final do conto, quando Andr se apercebe, de forma luminar, que na sua
filha Mariana, que estava de costas para a janela, os cotovelos no peitoril e as
mos cruzadas sobre o ventre (Lins, 1994: 16), se tinha operado uma mudana
silenciosa, que ele no conseguiria transmitir por palavras, mesmo que tivesse
a faculdade da fala, como anteriormente. Por isso, conclui, no seu foro mais
ntimo, com palavras que o narrador transcreve na primeira pessoa:
Isso inexprimvel, pensou. E que no o ? Meus gestos de hoje talvez no
sejam menos expressivos que minhas palavras de antes. (Lins,1994:16).
Querer este conto concitar o leitor a uma atitude de busca constante daquele
signo primordial, confluente a um logos genesaco? Poder, nesta perspetiva, a
literatura ser o lugar privilegiado desse logos, em que na limitao da palavra
escrita, silente () esto a sua fora, sua vida, sua identidade, (Lins,1969:178)
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tal como o prprio autor, em Guerra Sem Testemunhas, afirmou? Tentemos
decifrar
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