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NEILA MATIAS DE SOUZA
LANCELOT E GALAAZ: REPRESENTAÇÕES DO CAVALEIRO CORTÊS E
CRISTÃO NO IMAGINÁRIO MEDIEVAL (séculos XII e XIII).
São Luís
2008
UNIVERSIDADE ESTADUAL DO MARANHÃO – UEMA
CENTRO DE EDUCAÇÃO CIÊNCIAS EXATAS E NATURAIS – CECEN
DEPARTAMNETO DE HISTÓRIA E GEOGRAFIA
CURSO DE HISTÓRIA
NEILA MATIAS DE SOUZA
LANCELOT E GALAAZ: REPRESENTAÇÕES DO CAVALEIRO CORTÊS E
CRISTÃO NO IMAGINÁRIO MEDIEVAL (séculos XII e XIII).
São Luís
2008
NEILA MATIAS DE SOUZA
LANCELOT E GALAAZ: REPRESENTAÇÕES DO CAVALEIRO CORTÊS E
CRISTÃO NO IMAGINÁRIO MEDIEVAL (séculos XII e XIII).
Monografia apresentada ao Curso de História
da Universidade Estadual do Maranhão -
UEMA, para obtenção de Grau em História
Licenciatura.
Orientadora: Prof.ª Drª. Adriana Maria de
Souza Zierer.
São Luís
2008
Souza, Neila Matias Lancelot e Galaaz: Representações do Cavaleiro Cortês e Cristão no Imaginário Medieval (séculos XII e XIII) / Neila Matias de Souza. – São Luis, 2008. 92 p. Monografia (Graduação) – Curso de História, Universidade Estadual do Maranhão, 2008. Orientador: Profª.Drª.Adriana Maria de Souza Zierer.
1.Cavaleiro Cortês 2.Cavaleiro Cristão 3.Idade Média 4.Literatura 5.Cavalaria I. Titulo
CDU: 82.091 “653”
NEILA MATIAS DE SOUZA
LANCELOT E GALAAZ: REPRESENTAÇÕES DO CAVALEIRO CORTÊS E
CRISTÃO NO IMAGINÁRIO MEDIEVAL (séculos XII e XIII).
Aprovado em ___/ ___/ ___.
BANCA EXAMINADORA
Prof.ª Drª. Adriana Maria de Souza Zierer
1º Examinador (a)
2º Examinador (a)
À minha mãe, uma grande mulher, que parece nunca perder as forças.
Ao meu pai, um herói sem armadura. E à Adriana Zierer, que me “maravilhou” com
seu conhecimento.
“Dirás o que puderes lembrar. Trabalho com fragmentos de episódios, restos de acontecimentos, e tiro disso tudo uma história, tecida num desenho providencial. Quando me salvaste, tu me deste o pouco futuro que me resta e te recompensarei, devolvendo a ti o passado que perdeste”.
(Umberto Eco).
AGRADECIMENTOS
A Deus que parece o tempo todo me colocar à prova só pra mostrar que está ao meu
lado.
À minha mãe, Teresa, que me ensinou tudo que eu sei e nunca mediu esforços – até
mesmo o impossível ela é capaz de fazer – para que eu alcançasse tudo que eu sempre quis
e nunca desistiu de acreditar em mim, mesmo com os meus erros. É a essa mulher que me
ama incondicionalmente que eu devo tudo que sou. A minha mãe sem dúvida alguma é a
melhor mãe do mundo e eu a amo muito!
A meu pai, Fernando, que sempre confiou em mim e que mesmo com os meus
defeitos ainda continua acreditando que eu sou “perfeita”. É esse o homem que eu amo!
Às minhas irmãs, Nádlla e Naíres, mesmo com todos os nossos desentendimentos
sabem que amor de irmã é assim: vive sempre em conflito, mas é único e verdadeiro.
Aos meus professores desde o Ensino Fundamental, em especial às professoras
Lauricy (História) e Iza Lopes (Matemática) e os do Ensino Médio, especialmente
Francisco Neto (História) – foi ele minha grande influência.
Aos meus colegas da Universidade, desde a primeira turma de 2003.1 e em seguida
2003.2. E principalmente aos amigos que construí no meio acadêmico: Roberta (que
sempre esteve presente nos momentos mais difíceis da minha vida), Fred (um grande
amigo!), Laiane (uma amiga de sempre), Desni, Lellya, Luciana, Gílliam, Daniela (uma
amiga recente, mas parece ser de longa data e a quem tenho um grande carinho), Daisy,
Arlindiane e Renata.
Aos amigos que conheci no curso de Inglês: Heloisa, Maristela e ao querido professor
Robette (que me ajudou com toda a boa vontade do mundo!).
À dona Roberta, secretária do curso de História, que me consolou em um dia de
angústia. Uma mulher admirável.
A todos os meus queridos professores do Curso de História e com especial carinho a
Henrique Borralho, Marcelo Cheche, Helidacy Muniz, Alan Kardec, Milena Galdez, Yuri
Costa e Fábio Henrique.
À minha querida orientadora Adriana Maria de Souza Zierer, tudo que eu possa dizer
será pouco diante do muito que ela me ensinou. É a ela que devo os anos de pesquisa
juntas, a perspicácia adquirida com a sua convivência e a certeza de que sempre
RESUMO
Entre tantos aspectos que a Idade Média nos legou, a literatura, própria desse período, foi
um dos quais nos permitiu analisar a imagem que foi construída acerca do cavaleiro na
época medieval. Essa elaboração sobre os guerreiros a cavalo foi aqui observada a partir de
três fontes pertencentes aos séculos XII e XIII: Lancelot, o Cavaleiro da Charrete; O Livro
da Ordem de Cavalaria e A Demanda do Santo Graal. A primeira diz respeito ao modelo
de cavaleiro cortês, representado pelo herói que dá título ao romance. Esse tipo de cavaleiro
tinha como característica a “vassalagem amorosa” e estava fundamentalmente ligado aos
valores mundanos. Esse modelo estava em oposição ao modelo de cavaleiro cristão
idealizado nas duas outras fontes. O Livro da Ordem constitui-se como um manual
pedagógico para o cavaleiro tornar-se um “bom cavaleiro”, o que significava ser um bom
cristão. E na Demanda Galaaz expressa o perfeito cavaleiro idealizado, ele era o melhor de
todos porque nunca se desviou dos caminhos de Deus. Através dessas fontes pretendemos
analisar como são construídos os modelos de cavaleiros – cortês e cristão – com o objetivo
de “civilizar” a nobreza e cristianizar a cavalaria.
Palavras-chave: Cavaleiro Cortês – Cavaleiro Cristão – Idade Média – Literatura –
Cavalaria.
ABSTRACT
Among several aspects that the Middle-Age left us, the literature belonging to this age
was one of the ones that allowed us to analyze the image which was built about the knight
in the medieval epoch. This elaboration about horse warriors was observed from three
sources belonging to the XII and XIII centuries: Lancelot, the Knight of the Carriage; The
Book of the Order of the Cavalry and The Demand of the Holy Grail. The first tells us
about the model of the gentle knight, who is played by the hero who names the novel. This
kind of knight was characterized by the “Vassalagem amorosa” or “lovely vassal” and it
was fundamentally related to the world’s values. This model was contrary to the model of
the Christian knight which was idealized in both other sources. The Book of the Order
establishes itself as a pedagogical manual for the knight to become a “good knight” which
meant to be a good Christian. And in the Demand Gallaz expresses the idealized perfect
knight, who was the best of all because he has never gone astray God’s ways. Through
these sources we intend to analyze how the models of knights are devised – gentle and
Christian – aiming at “civilizing” the noble and Christian the cavalry.
Key-words: Gentle Knight, Christian Knight, Middle-Age, Literature, Cavalry.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Fig. REFERÊNCIA Pág.
1
Iluminura Os Milagres de Notre Dame (Gautier de Coinsi, Paris, c.1320-1340, fol. 123r.).
22
2
Imagem do Codex Manesse. Provavelmente do Duque Henrique IV entre 1253-1259.
36
3
Iluminura do Breviculum.
43
4
Cruzado, Apocalipse, séc. III, Biblioteca Municipal, Cambrai.
53
5
A sagração do cavaleiro. Miniatura do século XIV, BNF. Consultado em: http://medieval.mrugala.net/Seigneurs%20et%20nobles/Adoubement%20de%20chevalier.htm
70
6
Imagem do Codex Manesse. 78
LISTA DE QUADROS
Fig.
REFERÊNCIA Pág.
1
Diferenças entre os bons e os maus cavaleiros.
56
2
As virtudes e os vícios dos cavaleiros.
58
3
A “Matéria da Bretanha”: Origens da Demanda do Santo Graal.
61
4
Genealogia de Galaaz.
69
SUMÁRIO Resumo ....................................................................................................................... 07
Abstract ........................................................................................................................ 08
Lista de Ilustrações ....................................................................................................... 09
Lista de Quadros .......................................................................................................... 10
INTRODUÇÃO........................................................................................................... 12
1. A ORGANIZAÇÃO DA SOCIEDADE: DA CAVALARIA AO MODELO
CORTÊS DE CAVALEIRO....................................................................................... 16
1.1 Um “Povo Triplo”............................................................................................. 16 1.2 “Homens a Cavalo”.......................................................................................... 19 1.3 O Fine Amor da Cavalaria .............................................................................. 26
1.4 “O Melhor Cavaleiro do Mundo” – um Cavaleiro Cortês .......................... 28
2. A IDEALIZAÇÃO CAVALEIRESCA NO LIVRO DA ORDEM DE CAVALARIA DE RAMON LLULL .......................................................................... 41
2.1 Ramon Llull em sua Autobiografia ................................................................ 41
2.2 “A Ordem de Cavalaria, que deve ser sem vilania”...................................... 48
3. A CONSTRUÇÃO DE UM IDEAL: GALAAZ, UM EXEMPLO DE PERFEITO CAVALEIRO CRISTÃO ..................................................................... 60
3.1 A “Matéria da Bretanha”................................................................................ 60
3.2 “O Melhor Cavaleiro do Mundo”, um Cavaleiro Cristão ........................... 67
CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................. 82
FONTES E BIBLIOGRAFIA ................................................................................ 86
INTRODUÇÃO
Antes de apresentar o tema sobre o qual me dedico e o período histórico do qual ele
faz parte, sinto a necessidade de compartilhar o porquê de minha “bela” escolha. Antes que
me condenem ou me julguem pelo uso arbitrário do adjetivo “belo”, quero reafirmar os
ensinamentos do grande mestre Marc Bloch: “ao historiador não cabe julgar e sim
compreender”. E como toda escolha é subjetiva e diz muito mais de quem a escolhe do que
a ela própria, a utilização do adjetivo diz respeito aos meus interesses e efetivamente por
ver a Idade Média através de sua beleza que parece tão inatingível, incompreensível, até
mesmo inaceitável e ofuscante para muitos.
Parece lugar-comum, clichê, ou qualquer coisa do tipo, que a história faz parte da
minha vida desde sempre. Claro que hoje ela tem para mim um outro significado, uma
outra forma de concepção, com certeza mais academicista, do que na época em que eu era
uma adolescente que, admirada, entregava-me ao estudo da disciplina que mais gostava,
mas nem por isso menos encantadora.
Embora para alguns a história não diga nada, não ensine ou sirva para uma coisa
qualquer, continuo acreditando, assim como o famoso historiador acima citado, que é dela
que fazemos parte e é nela que procuramos “consolo” para os nossos “desalentos” do
presente.
∗
A Idade Média que durante muito tempo foi considerada como época de infértil
cultura, vem cada vez mais ganhando o interesse de pesquisadores e do público leigo,
“encantado” por suas narrativas sobre reis, donzelas, cavaleiros.
Durante o período medieval, a sociedade era marcadamente simbólica, isso pode ser
observado em vários momentos da vida cotidiana como, por exemplo, as relações das
pessoas com os nomes, com os números, a própria construção das igrejas, tudo inserido
num simbolismo que fazia parte da vida do homem medieval.
Isso não era diferente em relação ao imaginário. A mentalidade dos medievos era
fortemente caracterizada por uma hierarquia social bem definida. Assim o imaginário
coletivo constituía a sociedade organizada a partir de três ordens: os oratores (dedicam-se
aos serviços de Deus), os bellatores (defendem os demais) e os laboratores (trabalham em
prol dos outros).
A História das Mentalidades tem se apresentado dentro da chamada “Nova História”,
movimento este também conhecido como “Escola dos Analles”. Embora tenha sido
bastante criticada por ter uma abordagem antropológica no sentido de privilegiar a longa
duração, a História das Mentalidades foi, desde os primórdios dos Analles e dos pais
fundadores (Lucien Febvre e Marc Bloch), um campo de estudos dedicados aos
sentimentos, crenças e costumes na historiografia ocidental. Bloch e Febvre inauguram,
pois, nos primórdios dos Analles, o estudo das mentalidades, delas fazendo um legítimo
objeto de investigação histórica. (VAINFAS, 1997, p.132).
Para entender melhor o conceito de mentalidade, Philipe Ariès reproduz uma história
contada por Lucien Febvre, segundo a qual o rei Francisco saindo da casa de sua amante, de
madrugada, passou por uma Igreja no momento do ofício, então parou para assistir à missa
e orar. Segundo Ariès:
O fato de não podermos mais nos comportar hoje com a mesma boa-fé e a mesma naturalidade de nossos príncipes do século XVI, nas mesmas situações, indica precisamente que interveio entre elas e nós uma mudança de mentalidade. Não é que não tenhamos mais os mesmos valores, mas que os reflexos elementares não são os mesmos. (ARIES, 1993, p.154).
Um fato que pode caracterizar a história das mentalidades é o seu interesse por
determinados temas não convencionais, “desbravando certos domínios da História que os
historiadores ainda não haviam pensando em investigar” (BARROS, 2004, p.37). Assim
passou-se a investigar temas como a história do medo, da morte, da crença em poderes
milagrosos. Desse modo o domínio do imaginário é constituído pelo conjunto das
representações que exorbitam do limite colocado pelas constatações da experiência e pelos
encadeamentos dedutivos que estas autorizam. (PATLAGEAN, 1998, p.291).
Ampliando a noção de mentalidade, Duby passou a relacionar mentalidade e
ideologia, um sistema de representações no seio de uma sociedade (DUBY, 1995, p. 132).
As ideologias podem ser globalizantes, pois englobam toda a sociedade, deformantes,
deformando a realidade no interesse dos que detêm o poder, concorrentes (presença de
várias ideologias na sociedade), estabilizadoras (garantindo privilégios de um determinado
grupo social) e conservadoras (pretendem manter as estruturas da sociedade como estão).
Nesse sentido, na cavalaria medieval, o conceito de Ramon Llull sobre o cavaleiro
ideal e o modelo perfeito de cavaleiro cristão representado por Galaaz são fortemente
imbuídos dessa mentalidade da época, pois havia todo um imaginário acerca do cavaleiro.
Desse modo, a cavalaria da Idade Média foi uma ordem de grande influência na sociedade
feudal. Os cavaleiros compunham um setor privilegiado daquela sociedade, era ela que
estava encarregada dos assuntos da guerra e, na ideologia trifuncional, ocupava a posição
dos bellatores (os que lutam).
A sociedade medieval era constituída por ordens hierarquicamente definidas e com
funções específicas, entre essas três ordens – oratores (clero), laboratores (camponeses) e
bellatores (guerreiros) – os bellatores, responsáveis pela proteção dos demais grupos,
adquiriam cada vez mais importância naquela composição social. A cavalaria, instituição
da qual faziam parte, elaborou uma ética e ideologia próprias assumindo feições que a
tornaria digna de ser relembrada até hoje.
Para tratar dos membros dessa corporação cavaleiresca utilizamos três fontes do
período medieval de finais do século XII e meados do século XIII: O Livro da Ordem de
Cavalaria, de Ramon Llull; A Demanda do Santo Graal e Lancelot, o Cavaleiro da
Charrete, de Chrétien de Troyes.
Nosso intuito é analisar a construção de um modelo de cavaleiro ideal, presente nas
duas primeiras fontes. Esse ideal de cavaleiro é baseado nos valores cristãos que os
cavaleiros deveriam seguir para se tornarem perfeitos, o cavaleiro perfeito seria aquele
detentor das qualidades e virtudes cristãs.
Em contraposição a esse modelo ideal, observamos também na literatura, através da
obra de Chrétien de Troyes, um outro modelo de cavaleiro: o cavaleiro cortês. Esse tipo de
cavaleiro possuía como principais características a coragem, a valentia, o galanteio, o
desejo de aventura e tinha como uma de suas funções agradar a dama a qual destinava seus
serviços.
Diante do que foi exposto, desenvolveremos aqui uma análise da construção desses
modelos de cavaleiro: o cristão e o cortês. Faremos uma comparação entre o modelo de
cavaleiro cristão presente na obra de Llull e n’A Demanda, observando os pontos em
comum entre eles e finalmente pontuaremos os elementos que contrapõem o cavaleiro
cortês de Chrétien ao cavaleiro ideal.
O período aqui abordado para a nossa análise é o final do século XII e meados do
XIII. Nesse período a sociedade medieval conheceu um forte aumento de sua população,
propiciado não somente pelo melhoramento das técnicas agrícolas como também pela
diminuição da mortandade provocada pelas grandes epidemias. Assim as cidades atingem
um considerável crescimento.
Nessa época, também conhecida como Idade Média Central, o Feudalismo se afirma
enquanto sistema político e econômico daquela sociedade. As relações feudo-vassálicas
tornam-se cada vez mais íntimas, fortalecendo, desse modo, aquela estrutura social.
É durante esses séculos que as reformas clericais da “Paz de Deus” e “Trégua de
Deus” passam a ter uma vigência efetiva. A Igreja assim conseguia afirmar o seu poder e
adquiria um progressivo “controle” sobre os homens do medievo. E a cavalaria constitui-se
como um bom meio para que o seu “controle” atingisse toda a sociedade. A nobre
instituição da Idade Média passa, então, de uma estrita organização militar para uma ordem
com nítidas feições religiosas.
O trabalho está dividido em três capítulos: “A Organização da Sociedade: da
Cavalaria ao Modelo Cortês de Cavaleiro”; “A Idealização Cavaleiresca no Livro da Ordem
de Cavalaria, de Ramon Llull” e “A Concretização de um Ideal: Galaaz, um Exemplo de
Perfeito Cavaleiro Cristão”.
No 1° capítulo analisamos a organização da sociedade medieval, de que forma ela era
estruturada e qual o lugar reservado aos cavaleiros naquela conformação social. Analisamos
também como esses homens passaram de simples guerreiros montados a cavalo a cavaleiros
com uma distinção social, principiada pelos atributos da nobreza. Seguimos para a
explicação de um modelo de cavaleiro surgido na literatura do século XII, o cavaleiro
cortês. Esse homem de armas representava a mais fiel “vassalagem amorosa”.
No 2° capítulo explicamos como foi construído uma idealização cavaleiresca através
do Livro da Ordem de Cavalaria de Ramon Llull. Examinamos como foi a trajetória de
vida desse filósofo, que procurou, por meio de sua obra, elaborar um modelo de cavaleiro
cristão que serviria de exemplo não só para o seu grupo social, como também para toda a
sociedade. Para isso ele distingue os bons dos maus cavaleiros. Segundo Llull, a única
forma de se tornar um bom cavaleiro era ser um bom cristão.
No último capítulo analisamos como uma obra de literatura do final do século XIII –
A Demanda do Santo Graal – apresenta um modelo de cavaleiro cristão perfeito,
representado pela imagem de Galaaz. Explicamos inicialmente o que é a “Matéria da
Bretanha” da qual a Demanda faz parte e seguimos para a análise de Galaaz como modelo
exemplar de cavaleiro cristão. Examinamos como foi sua participação na “demanda” pelo
Santo Graal, observando que ele só conseguiu cumprir essa sagrada busca porque era um
cavaleiro imbuído de valores religiosos.
1. A ORGANIZAÇÃO DA SOCIEDADE: DA CAVALARIA AO MODELO
CORTÊS DE CAVALEIRO.
Nesse primeiro capítulo, será analisada a constituição da sociedade medieval, como
ela se estruturava a partir de três ordens com funções específicas: oratores (oram),
bellatores (guerreiam) e laboratores (trabalham).
Depois trataremos de como a cavalaria se tornou uma instituição com ideologia, ética
e moral próprias, uma cavalaria – fechada àqueles que não eram nobres – ansiosa para sair
de sua condição que lhe parecia cada vez mais inoportuna e distante da realidade da qual
ela já fazia parte.
Finalmente chegaremos ao modelo de cavaleiro cortês, um cavaleiro disposto a
satisfazer quaisquer pedidos da mulher a quem ele se referia verdadeiramente como sua
“senhora”. Esse cavaleiro tem como um de seus maiores exemplos Lancelot, representado
aqui no romance de Chrétien de Troyes: “Lancelot, o cavaleiro da charrete”.
1.1 Um “Povo Triplo”
A Idade Média, esse longo período da História do homem que durou mil anos, tem
como caracterização social uma teoria tripartida de funções. Mas nem sempre foi assim. Na
Alta Idade Média (séc. V – X), a sociedade constituía-se de dois grupos: clérigos e laicos,
ou seja, entre aqueles que faziam a mediação celeste e os que não possuíam essa
capacidade.
Mas quando, então, a sociedade medieval passa a ser concebida por uma teoria das
três ordens funcionais?
Esse tema surge entre os séculos IX e XI e passa a ser universalmente conhecido no
século XII. Surge então uma outra indagação: por que essa teorização só aparece já no
período considerado como Idade Média Central? Observamos que há uma necessidade de
explicação da configuração social em que cada grupo teria sua importância para a
sociedade que viveria, desse modo, em harmonia. E essa sociedade harmoniosa era
inspirada na harmonia dos planetas:
Desde a época dos Pais da Igreja, os autores cristãos encontraram nos antigos, estóicos e sobretudo platônicos, um antigo quadro de reflexão
sobre o sistema social concebido como uma concórdia de ordens reguladas de acordo com o modelo da harmonia dos planetas. (IOGNA-PRAT, 2006, p. 305).
Ao lado disso, a palavra “ordem” servia muito bem a esse propósito, pois ela era
usada na voz passiva, denotando, assim, que se está socialmente conformado com a ordem
que é de origem divina. O que nos explica também Hilário Franco Júnior:
Noutros termos, ordo apresenta um duplo sentido. Primeiro, corpo social isolado dos demais, investido de responsabilidades específicas. Segundo, organização justa e boa do universo, que deve ser mantida pela moral e pelo poder. Ou seja, a sociedade de ordens dividia os homens em grupos de relativa fixidez, pois a classificação de cada indivíduo partia de uma determinação, de uma ordem, divina. De a ordem (no seu segundo sentido) terrestre baseava-se na Ordem celeste, imutável. (FRANCO JÚNIOR, 2004, p. 90).
Essa sociedade fundamentalmente cristã elaborava uma conformação social que era
baseada numa ordem divina, portanto, inquestionável.
O bispo Adalberón de Laon elucida, por volta de 1030, essa ordenação social:
A casa de Deus, que se crê uma, está assim dividida em três: uns oram, outros combatem, e os outros, enfim, trabalham. Estas três partes que coexistem não sofrem com sua disjunção; os serviços prestados por uma são a condição da obra de outros; e cada uma, por sua vez, encarrega-se de aliviar o todo. Assim, esta tripla associação não é menos unida, e a lei tem podido triunfar e o mundo tem podido gozar de paz. (Citado por LE GOFF, 2005, p.258).
Mais uma vez a idéia de harmonia social está presente, ou seja, o mundo só vive em
“ordem” distante do caos, porque cada um tem uma função definida na sociedade. Função
essa que tem seu valor e importância, pois “os serviços prestados por uma são a condição
da obra de outros; e cada uma, por sua vez, encarrega-se de aliviar o todo”.
Texto capital é a clara definição de ordem de Gregório VII:
A providência da administração divina instaurou graus e ordens distintos a fim de que, os inferiores manifestando respeito pelos superiores (potiores) e os superiores exprimindo afeição pelos inferiores, da diversidade nasça a concórdia e todos os ofícios organizem-se em uma composição harmoniosa. O conjunto (universitas), com efeito, só subsiste pela ordenação (ordo) das diferenças. (Citado por IOGNA-PRAT, 2006, p.310).
Gregório VII justifica assim a organização social pela providência divina, ou seja, não
foi o homem quem quis ou decidiu desse modo, mas é a vontade de Deus que ordenou as
diferenças de forma harmoniosa. Diferenças essas bem especificadas entre “superiores” e
“inferiores”. Os primeiros mereceriam dos últimos o respeito, enquanto estes recebiam
apenas a “afeição” daqueles, ou seja, uma forma secundária de consideração que, antes
mesmo de reconhecer o valor dos ditos inferiores, reafirmava a bondade e a virtude dos
superiores.
E desse modo a sociedade medieval estruturava-se a partir de três ordens: oratores (os
clérigos, os que rezavam), bellatores (guerreiros, os que lutavam) e os laboratores
(trabalhadores, os que trabalham).
Os oratores tinham uma função considerada superior numa sociedade como aquela
extremamente religiosa, o seu poder dizia respeito ao sagrado. Era o clero que controlava o
poder de mediação sacramental, era ele que intermediava a relação entre o terreno e o
divino, o homem e Deus, o clero tinha a capacidade de conseguir o auxílio divino. Os
bellatores – ordem que será detalhadamente analisada no decorrer do texto – eram aqueles
homens que possuíam o poder das armas, o poder militar, e que se fecham cada vez mais
dentro de seu próprio grupo1. Os laboratores constituíam aqueles responsáveis pelo
trabalho, por alimentar as demais funções. Faziam parte desse grupo não só os camponeses,
os servos, mas também os diversos componentes urbanos, ou seja, era uma “terceira
função”, um resto, que acolhia diferentes grupos.
Este esquema, que exprime uma imagem consagrada, sublimada, da sociedade, não agrupa a totalidade das categorias sociais, mas apenas as que são dignas de exprimir os valores sociais fundamentais: valor religioso, valor militar e, o que é novidade na Cristandade medieval, valor econômico. (LE GOFF, 1993, p. 82).
Das três ordens aqui apresentadas debruçar-nos-emos sobre a segunda, pois é nela que
encontra-se o cavaleiro – personagem multifacetado e ricamente desenvolvido pela
literatura dos séculos XII e XIII.
Esta teoria tripartida era, portanto, muito conveniente para a estruturação daquela
sociedade. Os grupos conformavam-se em determinada ordem e possuíam a plena
convicção de que seu lugar era importante para aquela comunidade, visto que as três
funções são imprescindíveis e que cada uma ajudava as outras duas, reafirmando assim a
noção de valor que cada ordem detinha e a harmonia necessária para que tudo ocorresse na
“santa paz de Deus”.
1 Esse fechamento constitui-se de um sentimento de pertencimento a uma ordem que possuía uma minuciosa ética nobiliárquica.
1.2 “Homens a Cavalo”
A Idade Média, época que nutriu imensa paixão pela totalidade, segundo Le Goff2,
não poderia deixar de nos legar uma de suas imagens mais recorrentes que persiste na
memória de todos aqueles que têm o mínimo de curiosidade sobre esse período. Esta
imagem é a dos cavaleiros.
Ainda viva na lembrança das pessoas que, embora não tenham vivido no período
medieval, de alguma forma apreenderam algo destes distantes séculos, o cavaleiro medieval
exerce um enorme fascínio. Essa percepção, essa imagem que é latente, é o que se chama
de imaginário – que persiste numa longa duração e é comum a todos aqueles que fazem
parte de uma mesma sociedade.
O nível da história das mentalidades é aquele do cotidiano e do automático, é o que escapa dos sujeitos particulares da História, porque revelador do conteúdo impessoal do seu pensamento; é o que César e o último soldado de suas legiões, São Luís e o camponês de seus domínios, Cristóvão Colombo e o marinheiro de suas caravelas têm em comum. (LE GOFF, 1976, p.71).
O conceito de mentalidade foi relacionado por Georges Duby com o conceito de
ideologia e Jacques Le Goff define imaginário a partir de três referências: representação,
simbólico e ideológico. Segundo ele, a representação está ligada ao processo de abstração,
sendo que o imaginário pertence ao campo da representação e o simbólico deve ser pensado
quando o objeto considerado é remetido a um sistema de valores.
De acordo com Jean-Claude Schmitt, o Imaginário é uma realidade coletiva que
consiste em narrativas míticas, ficções, imagens, compartilhadas pelos autores sociais.
Toda sociedade, todo grupo constituído produz um imaginário, sonhos coletivos
garantidores de sua coesão e de sua identidade. (SCHMITT, 2001, p.133).
Essa imagem da qual nos referimos é a do cavaleiro e que hoje é projetada com a
nossa perspectiva, com a nossa carga cultural e com os nossos valores. E isso é bastante
compreensível, pois a história é muito mais uma história do presente do que do passado.
Daí a observância da construção de “novos cavaleiros”, heróis fabricados e consumidos
2 De acordo com Le Goff, enquanto nós, no que diz respeito ao campo científico e intelectual, fragmentamos o conhecimento, nenhuma sociedade, nenhuma civilização nutriu paixão tão intensa pela globalidade, pela totalidade, quanto a Idade Média. Para o melhor e para o pior, ela foi totalitária. Reconhecer sua unidade é antes de tudo restituir sua globalidade. (LE GOFF, 2005, p.15).
pelo público em geral. São exemplos disso principalmente os heróis das histórias em
quadrinhos, somente para citar alguns: batman, homem-aranha, super-homem.
Mas será que os medievos tinham essa mesma visão romântica e heroicizada do
cavaleiro que nós temos hoje? Quando o homem que andava sobre um cavalo deixou de ser
um simples guerreiro (miles) e passou a ser chamado de cavaleiro?
Antes de mais nada, temos que compreender que nos seus primórdios o cavaleiro não
era exatamente como o concebemos hoje.
Os bellatores que ocupavam, na ideologia tripartidária, a função de guerrear,
possuíam por isso o privilégio de portar armas e de ainda serem isentos de algumas taxas e
tributos.
Na chamada Alta Idade Média, quando havia intensas influências e contatos entre os
europeus e os povos ditos “bárbaros” que ainda chegavam à Europa, a cavalaria possuía
uma importância fundamental não só em relação ao poder militar que ela representava, mas
também em relação aos valores guerreiros que ela transmitia: aspecto sagrado associado ao
cavalo, o culto da espada, valorização da coragem, veneração da força física, indiferença
perante a dor, menosprezo da morte, destreza militar. Somado a isso, havia os valores
oriundos dos povos “bárbaros”, principalmente aqueles ligados ao poder do rei-chefe da
tribo, a sua devoção pessoal. Com a comutação desses valores e de um contexto histórico
político-social, surge então a cavalaria.
Ela, de fato, possui elos estreitos com a vassalagem que se instaura, certamente, desde antes do desaparecimento do Império Romano no Ocidente; mas, também com o declínio da autoridade dos reis, depois dos condes, decorrente da desintegração do Império Carolíngio, com a formação das castelanias que marcam o início da chamada época feudal; com as tentativas da Igreja de inculcar nesses guerreiros uma ética ou , ao menos, regras de conduta que limitassem a violência e seus efeitos sobre as populações desarmadas; (...). Ora, a maioria desses elementos quase não aparece antes do ano 10003. Não é, portanto, sábio falar de cavalaria antes dessa data. (FLORI, 2005, p.12).
3 Sobre esse ano os estudiosos elaboraram uma tese chamada de mutacionista, segundo a qual teria ocorrido na sociedade ocidental, principalmente na França, uma ruptura profunda.
É assim, portanto, que, por volta do ano 1000, forma-se, no seio daquela sociedade,
uma nova classe social, com uma nítida característica que a distingue: ela é uma classe que
cavalga, a classe dos cavaleiros.
Agora, no que diz respeito aos cavaleiros, nota-se uma outra diferenciação social.
Enquanto antes havia os livres e os não-livres, a nova divisão isola aqueles que portam
armas (os milites) daqueles que são desprovidos delas (os inermes). Desse modo há um
crescente prestígio desse combatente a cavalo e um distanciamento socioeconômico e
sociojurídico separando armados e desarmados.
A palavra “cavaleiro” utilizada no início do século XII para designar o guerreiro, não
denota de nenhuma forma um nível de elevação social, antes somente caracteriza o serviço
armado. No entanto, ao longo do século XII, ela adquire cada vez mais conotações
honoríficas, culturais e ideológicas. É com essa coloração que a cavalaria será designada,
em finais do século XII, passando a ser uma instituição, uma ordem.
A própria investidura do cavaleiro não tem em seu início todo esse caráter pomposo,
ritualístico e cerimonial que, no entanto, tornar-se-ão evidentes com o final do século XII.
Investir um guerreiro não possui o sentido de “fazer cavaleiro”.
A investidura, originalmente, não tinha nenhuma conotação social, religiosa ou
cerimonial, na maioria das vezes, era apenas uma entrega de armas que poderia acontecer
até mesmo às vésperas de uma batalha. Ela tinha assim um sentido muito mais utilitário.
Desse modo, aquela bofetada ou tapa que era dado no aspirante à cavalaria, nas famosas
cerimônias de investidura, não está presente desde as suas origens. De fato, o tapa não é,
como veremos, um elemento essencial da investidura, menos ainda um elemento primitivo
ou mesmo muito antigo dessa cerimônia. Quase não temos traço disso antes da segunda
metade do século XII. (FLORI, 2005, p.24).
O adubamento é um cerimonial de enorme importância na vida de um futuro
guerreiro, pois trata-se de um rito de passagem, no qual, terminada a infância, o homem
feito será admitido na sociedade dos adultos, tornando-se cavaleiro. Os ritos de investidura
consagram essa cerimônia na qual um homem toma posse de si mesmo. (DUBY, 1987, p.
100). Ser armado cavaleiro talvez fosse considerado o evento principal na vida de um
homem.
Antes de receberem as armas, nesse dia notável, os rapazes se despiam e lavavam o corpo. Tal como se lavava o corpo dos recém-nascidos e o dos defuntos. Pois essa entrada, essa passagem, era análoga às outras passagens, nascimento, morte. Era como se eles viessem ao mundo pela segunda vez, a única, na verdade, que importava realmente. Até então o que tinham vivido era ainda a gestação, devidamente protegidos. Alguém alimentava-os, tutelava-os. Com a errância começava a liberdade, porém também o perigo. (DUBY, 1987, 100-101).
Essas armas que o cavaleiro recebia – a espada, escudo, lança, elmo, esporas – na
cerimônia de investidura também possuíam um simbolismo, que servia para fortalecer o
dever e a missão de um cavaleiro. Carregando essas armas, o guerreiro carregava também a
força cristã necessária para o combate. Pois, cada arma, cada veste, cada gesto,
transforma-se em símbolos de virtude e de requisitos cristãos. A espada será o gládio do
espírito, o elmo será a fé e assim por diante. (CARDINI, 1984, p. 66).
As armas cavaleirescas adquiriam cada vez mais simbolismos cristãos porque a
cavalaria assume importância cada vez maior na sociedade do século XIII, despertando
assim o interesse da Igreja. Observamos, desse modo, uma forte tendência de clericalização
da investidura a partir do século XIII.
E talvez o revestir da armadura que, até então, fora uma cerimônia leiga realizada no grupo de profissionais das armas que, deliberadamente, tivessem decidido cooptar um novo companheiro, tenha começado a comportar um reconhecimento religioso por parte de uma Igreja que já há algum tempo (e disso nos certifica o pontifical romano-germânico de Magúncia, no século X) costumava benzer as armas, à semelhança do que fazia com os instrumentos de trabalho e de uso diário. (CARDINI, 1989, p. 60).
Iluminura Os Milagres de Notre Dame (Gautier de Coinsi, Paris, c.1320-1340, fol. 123r.), Imagem que representa um cavaleiro diante do altar rezando e logo em seguida parte para lutar em um combate.
A investidura cavaleiresca acontecia em datas importantes, em épocas de festas
religiosas como Pentecostes, Páscoa, Natal ou São João. A cavalaria ganhava assim uma
feição religiosa, mas ainda lhe faltava uma ética e uma moral própria.
Essa moral cavaleiresca não permitia entre outras coisas que o cavaleiro fosse covarde
atacando um outro que estivesse desarmado: a moral dos guerreiros, dos autênticos, dos
nobres, dos francos mandava que se tomasse todo o cuidado no sentido de não matar os
cavaleiros; e proibia, isso de maneira formal e absoluta, matá-los desse modo, pelas
costas, ainda sem terem em mãos todas as suas armas. (DUBY, 1987, p. 108).
A ética cavaleiresca consistia, entre outras coisas, em socorrer donzelas em perigo e
mulheres que fossem violentadas por outros cavaleiros, respeito à palavra dada, zelo pela
reputação. Em suma, o cavaleiro deveria exercer perfeitamente o que incumbia sua função:
proteger os demais.
É desse modo que essa corporação assume um caráter honorífico, decorativo, ético,
cultural.
Ela se fecha no início do século XIII e se transforma em casta, que exige, para a investidura de um jovem, a prova de que quatro de seus ancestrais ao menos haviam sido eles próprios nobres e cavaleiros. (...). A nobre corporação dos guerreiros de elite se transforma em confraria guerreira dos nobres de elite. (FLORI, 2005, p. 40).
A partir disso, somente poderá ser cavaleiro quem fizer parte da nobreza, quem
compartilhava dos valores nobres. Sonho e realidade misturam-se assim para formar nos
espíritos uma cavalaria que, mais que corporação ou confraria, torna-se uma instituição,
um modo de viver e de pensar, reflexo de uma civilização idealizada. (FLORI, 2006, p.
186).
A classe superior que domina a sociedade no plano laico é a nobreza. Essa palavra
hoje em dia já não designa mais uma classe social, embora ainda hoje sejam atribuídas as
suas colorações a uma elite social. A palavra “nobre” é rara antes do século XIII e designa
uma virtude, uma elevação da alma, significando qualidades morais.
É, portanto, antes de tudo a dignidade do comportamento de certos seres, homens e mulheres, que lhes vale o qualificativo de “nobre”. Ele é sinônimo de “notável”, “digno de admiração”, “célebre”, “reputado”, e destaca, ao mesmo tempo, a excelência moral e a notoriedade social decorrente. É empregada, ainda nesse sentido, nos séculos XI e XII, em latim e em francês antigo, a respeito de coisas muito mais que de seres vivos. Uma vila, uma fortaleza, um cavalo, uma roupa ou uma espada podem assim ser qualificados de “nobres” para destacar sua opulência, sua invencibilidade, sua riqueza, sua beleza ou sua extrema qualidade. O mesmo acontece com os homens, dos quais o termo “nobilis” exprime o valor reconhecido. Dizer de um homem que ele é “originário de uma nobre família” expressa principalmente a reputação que ela tem. (FLORI, 2005, p. 115).
Somado a todos esses qualificativos, ser generoso também era ter uma atitude nobre
principalmente para com a Igreja que recrutava dessa classe, de nível social elevado, até
mesmo seus próprios santos. Ou seja, nobreza e santidade estavam intimamente ligadas.
Essa tão estimada qualidade torna-se então de cunho hereditário. Dessa forma, essas
famílias cujas atitudes eram esperadas que fossem “nobres” acabam por se tornar a sê-lo. É
assim que um membro que descendia de uma dessas famílias acabava por se tornar também
um nobre. Portanto, nascia-se nobre, nobre de sangue. Decididamente, os textos só
conhecem um elemento permanente e consubstancial ao grupo: o sangue. Desde a Alta
Idade Média, a cantilena é a mesma: genere nobilis, nobilibus ortus parentibus. Nasce-se
ingennus, “nobre de sangue”. (GÉNICOT, 2006, p. 280). A nobreza obtinha assim, além
de seu caráter moral, um caráter social, uma distinção.
Aliada a essa distinção social, a nobreza também é acompanhada pela detenção do
poder.
Poder e dinheiro engendram e mantêm uma mentalidade e um comportamento. Um nobre não deve ser sovina. Ele quer escapar de todos os tipos de controle que submetem e limitam os outros homens. Ele se casa na sua classe. Traço particularmente significativo, ele não se mistura com a massa dos fiéis. Nem na vida nem na morte. (GÉNICOT, 2006, p. 280).
Um nobre era, portanto, um homem rico e poderoso. Além da riqueza, a nobreza
possuía também a liberdade. Por isso servidão e nobreza são incompatíveis, por isso
também essa enorme distância entre nobres e servos até mesmo na hora da morte.
Ser nobre, em uma sociedade sem Estado verdadeiro e sem controle de estado civil, é antes de tudo ser percebido e considerado como tal. (...). Isso resulta de uma maneira de viver, de ser e aparecer, agir, vestir, falar; em suma, de ser admitido por seus pares em uma sociedade cujos membros se conhecem e que se reconhecem por sinais que dependem precisamente do comportamento, do parecer. (FLORI, 2005, p. 117).
Embora seja reconhecido que a nobreza se assente no nascimento, ela nunca foi uma
classe hermeticamente fechada. A nobreza não tem nenhuma política familiar. Padece com
as revoltas que acabam mal e perde muitos homens nas guerras privadas e nas vinganças.
Dessa forma, aparecem vazios em suas fileiras. (GÉNICOT, 2006, p. 282). Para sobreviver
diante de tantas mudanças que se impunham no mundo da qual fazia parte, sua renovação –
ainda que comedida – tornava-se realmente necessária.
Os cavaleiros que tão próximos viviam dos poderosos, pois eram seus braços
armados, acumulavam, além da isenção de impostos, a oportunidade de se apartarem cada
vez mais dos trabalhadores da terra, de onde a maioria deles havia saído. Foi assim que,
servindo de mãos armadas à aristocracia, esses cavaleiros se fundem a ela, conjugando
costumes e mentalidades e obtendo também uma condição socioeconômica elevada, fato
que foi propiciado por vantajosas alianças matrimoniais. A cavalaria ornamenta-se assim
com um tal esplendor que se subtrai das consuetudines comuns julgadas indecentes et
contra ordinem militarem, derrubando desta forma uma das barreiras que impedem o
acesso à nobreza. Ela concede mais brilho que o sangue. (GÉNICOT, 2006, p. 284).
É com o prestígio cada vez maior que essa instituição vem ganhando que ela
consegue confundir-se com a nobreza:
Só são armados cavaleiros os filhos de pai cavaleiro e de mãe nobre. Por essas disposições, a nobreza controla a entrada na cavalaria e reserva o acesso a ela a seus próprios membros, numa época em que a dignidade cavaleiresca acrescenta distinção àquele que a recebe. Cavalaria e nobreza acabam por se fundir ou por se confundir. (FLORI, 2006, p. 190).
Seu brilho é tamanho que passa a atrair cada vez mais os olhares da nobreza, que
reivindica, então, sua filiação, seu controle e mais tarde sua exclusividade, pois
Logo a nobreza controla e comanda a cavalaria, empresta-lhe sua ideologia a ponto de, a partir do fim do século XII, a cavalaria aparecer como expressão militar da nobreza, que a considera território particular e alicia seus membros. Desde então, um cavaleiro não é somente (e, posteriormente, nem tanto!) um guerreiro a cavalo, mas um membro reconhecido da aristocracia. Cavaleiro torna-se título nobiliárquico. (FLORI, 2006, p. 185).
Os séculos XII e XIII teriam sido o auge da cavalaria, pois, segundo Cardini, não se
falava de outra coisa: “a alta aristocracia e mesmo o rei abandonam os seus títulos
gloriosos para se ornarem simplesmente – e foi o caso de todos os grandes monarcas da
época, desde Ricardo Coração de Leão a S. Luis – com o título de cavaleiro”. (CARDINI,
1989, p.68).
A partir do século XIII, o armamento cavaleiresco tornou-se mais pesado para
diminuir o perigo e a agressividade dos torneios, que sofriam duras condenações por parte
da Igreja, conseqüentemente também ficaram mais caros, não só as armas, como todas as
estruturas – deveres, cerimônia de sagração, vestuários e banquetes – necessárias para
tornar-se cavaleiro ficaram mais onerosas. Tanto que muitos nobres que desejavam
ascender à cavalaria, o evitaram e permaneceram “donzéis”, ou seja, escudeiros e
continuavam como aspirantes a entrar na ordem.
A cavalaria entrou em decadência no século XIV e com o tempo, porém, o termo
‘cavaleiro’ parou de ser o suficiente para distinguir o detentor dessa dignidade.
(CARDINI, 1989, p.75). Assim, seu caráter essencialmente militar foi descaracterizado,
pois ser cavaleiro era uma distinção social e os que a possuíam, evitavam montar no cavalo.
A sociedade cavaleiresca foi, então, assimilada pelos estados nascentes que
diminuíam seus poderes e suas prerrogativas jurídicas e sóciopolíticas ao mesmo tempo em
que criou para a nobreza uma série de “ordens de corte”, espécie de cópia das ordens
militares religiosas e do modelo de literatura cavaleiresca. Dessa forma, a ordem de
cavalaria sobreviveu apenas no ideal da nobreza, que se distinguia enquanto tal do restante
da sociedade.
1.3 O Fine Amor da Cavalaria
O amor. Muito já se tem dito sobre esse sentimento que permanece indescritivelmente
intenso até hoje. Na Idade Média, ele ficou conhecido por “amor cortês” e tornou-se um
clichê do nosso imaginário sobre essa época.
Mas, ao contrário do que muitos pensam, o amor não surgiu na Idade Média, segundo
Lênia Márcia Mongelli o amor não foi “inventado” na Idade Média, mas “transformado”
em “motivo” por excelência da Literatura de ficção. (ENTREVISTA, 2006, p.61). É,
portanto, nesta literatura que encontraremos os maiores exemplos do que seria esse “amor
cortês”.
Entre o amor e o casamento havia um fosso praticamente intransponível, pois, além
dos matrimônios serem arranjados, ou seja, terem uma utilidade prática de pôr fim a
querelas intermináveis entre famílias ou propiciar a ascensão social de cavaleiros, como nos
afirma Georges Duby a respeito do cavaleiro Guilherme que ainda continuava pobre e
socialmente inferior devido ao fato de não ter se casado ainda: O que então desejava, perto
dos cinqüenta anos, era perder a solteirice, recebendo finalmente uma esposa que fosse
rica herdeira, casando-se a um só tempo no seu leito, na sua casa, no seu senhorio.
(DUBY, 1987, p. 165).
Não esqueçamos que o casamento era um direito do primogênito, pois era ele quem
ocuparia o lugar de seu pai e herdaria tudo que este conquistou durante toda a vida. Por isso
somente o filho que nascesse primeiro seria o único herdeiro, para que a fortuna de sua
linhagem não fosse dilapidada, dividida, para que a estabilidade dos patrimônios não fosse
ameaçada. Com isso a superioridade de sua classe estaria garantida. E para que esse rico
patrimônio se multiplicasse, um casamento vantajoso seria muito bem-vindo.
Amor e casamento eram incompatíveis no que diz respeito à idealização amorosa
advinda do amor cortês, pois a “senhora” era idealizada, assim como um amor que não se
concretizava:
Oficializar e tornar público trai o segredo amoroso; ligar a escolha amorosa a interesses sociais e materiais trai os ditames da paixão; sujeitar a mulher concreta à hierarquia do signo masculino vai contra o serviço à Dama idealizada; manter relações sexuais apenas para procriação atraiçoa a dimensão idealizante do amor cortês. Em suma, não é de se estranhar que, no século XII, a idéia de Casamento muitas vezes se contrapunha à idéia de Amor. (TORRES, 2006, p. 436).
O amor cortês do fine amor era um termo utilizado pelos trovadores para contar as
proezas desse amor perfeito, um amor trabalhado como o mais fino ouro. Eram esses
homens – que saíam de corte em corte – que espalhavam esse novo discurso a respeito do
amor e divertiam as cortes cavaleirescas.
As designações para dar conta desse conjunto de poetas-cantores são muitas – menestréis, jograis, trovadores – e escondem uma grande gama de possibilidades. Algumas características, no entanto, são comuns de todos eles, como a itinerância da maioria de seus participantes e a oralidade de sua produção. (TORRES, 2006, p. 433).
Esse amor cortês cantado pelos trovadores a partir do século XII era uma espécie de
amor que um jovem cavaleiro devotava a uma dama de posição mais elevada que a sua e
geralmente casada, às vezes com seu próprio senhor. Essa devoção, na verdade, um serviço
dedicado à dama, sua senhora, expressava-se plenamente na forma de vassalagem, uma
vassalagem amorosa. O cavaleiro prestava serviço a essa senhora dedicando-lhe obediência
e fidelidade.
Por essa questão muitos autores defendem a idéia de que, nesse tipo de amor, a
mulher exercia um papel principal, valorizado, de supremacia e controle do homem de
quem ela era “dona”. Mas, para alguns autores, como Georges Duby, esse amor cortês era
negócio de homens, no qual compareceu a vergonha e a honra, o amor – deveria forçar-me
a falar em amizade? – varonil. (DUBY, 1987, p. 75). Isso pode ser entendido, uma vez que
aquela era uma sociedade guerreira para a qual o mais nobre de todos os sentimentos – a
amizade – só poderia surgir entre dois homens.
O fato é que, ao longo do século XII e XIII, surge, na literatura cavaleiresca, o tema
do amor cortês, representado principalmente por um cavaleiro que adquire cada vez mais a
feição de “cavalheiro”, um modelo de gentleman do qual temos hoje. No entanto esse amor
cortês possuía vários significados:
À época da gênese dos textos, o amor cortesão não é um conceito unânime. Esta representação plural define ora o amor de um cavaleiro por uma dama casada e inacessível, ora um amor mais carnal, portanto adúltero, ora, ainda, o vínculo entre jovens que aspiram ao casamento. (...). Quanto aos romances, alguns casais ilustram perfeitamente a fine amor (Lancelot e Guinevere), mas não se pode falar de fine amor no âmbito de um casamento desejado e procurado. (RÉGNIER-BOHLER, 2006, p. 47-48).
É desse casal que trataremos agora, ou melhor, de Lancelot que é o maior exemplo de
cavaleiro cortês.
1.4 “O Melhor Cavaleiro do Mundo” – um Cavaleiro Cortês
Chrétien de Troyes, em sua obra Lancelot, o cavaleiro da charrete – considerada a
maior representante do modelo de cavaleiro cortês – desenvolve um romance de aventura
através da temática do amor adúltero.
Sabemos muito pouco sobre a vida de Chrétien de Troyes, fato esse muito freqüente a
respeito dos escritores do período medieval.
Ele é da região de Champagne e nasceu por volta de 1135, provavelmente em
Troyes4. Entre os seus romances, alguns dizem respeito ao tema arturiano, são eles: Erec et
Enide; Cliges ou la fausse morte; Lancelot le chevalier à la charrete; Yvaim le chevalier au
lion; esses quatro romances compõem o ciclo amoroso de Chrétien.
4 Acontecia muito freqüentemente que as pessoas dessa época agregavam ao nome a região de onde se originavam.
Em Perceval ou o Conto do Graal, a narrativa é sobre uma aventura místico-religiosa.
Tanto esse romance quanto Lancelot, o cavaleiro da charrete permaneceram inacabados.
Foram os continuadores de Chrétien que deram cabo a essas duas estórias. O Conto do
Graal não foi terminado devido à morte do autor, já sobre a inconclusão do cavaleiro da
charrete, Jean Flori arrisca uma explicação: não conclui ele próprio, consciente talvez do
caminho sem saída aonde havia sido levado pelo enredo imposto, fazendo de Lancelot ao
mesmo tempo modelo de cavaleiro fiel ao seu rei, amante fiel da rainha e salvador do
reino. (FLORI, 2005, p.166).
Alguns elementos sobre a vida do romancista ainda são motivos de conjectura, como,
por exemplo: Teria sido Chrétien um clérigo? Foi arauto d’armas? (...). Teria ele residido
na Inglaterra? Acredita-se perceber isso através de seus conhecimentos geográficos e dos
detalhes que fornece sobre várias cidades inglesas (mas tais detalhes poderiam bem ser de
segunda mão). (FOUCHER, 1991, p.20).
Chrétien esteve a serviço de duas cortes das mais importantes do século XII:
Champagne e Flandres. Sob a proteção de Leonor da Aquitânia, uma espécie de mecenas
das letras, o romancista instalou-se em tão disputado patronato. Porém as circunstâncias
políticas, mais uma certa desconfiança de Leonor “a provençal” com relação a um homem
do Norte, certamente se prestavam mal à empresa. (FOUCHER, 1991, p.19). Depois disso,
o francês passou à proteção de Henrique I de Champagne que viria a se casar com Marie,
uma das filhas de Leonor. Seguindo o exemplo da mãe, Marie também foi uma grande
incentivadora das letras e propôs a Chrétien o tema de Lancelot, o cavaleiro da charrete.
Mas, em 1181, Henrique I morreu e Marie deixou a cortesia para dedicar-se à
devoção. Foi então que Chrétien transferiu sua homenagem para a corte mais opulenta e
mais insigne pelas tradições de protetora das artes: a corte de Flandres, onde reinava o
conde Filipe de Alsácia. (FOUCHER, 1991, p.19-20).
Foi sob esse novo patronato que a obra literária de Chrétien tomou um outro rumo.
Ela teria agora conotações místicas e espirituais, nasceria assim Perceval. O grande
romancista da literatura francesa morreu em terras de Flandres por volta de 1190.
Mas, Chrétien de Troyes nos legou o maior exemplo de um romance cortês através da
figura de Lancelot que ilustra o melhor modelo de “serviço amoroso”.
Essa obra foi composta “por ordem” de Marie de Champagne: Minha senhora de
Champagne quer que eu empreenda um romance. Por isso, de bom grado o farei, como
homem que é seu todo inteiro em tudo o que possa fazer no mundo. (TROYES, 1991,
p.124). Aqui o autor demonstra o poder que a condessa tem sobre ele, pois lhe impõe um
tema de um romance com o qual não estava habituado, uma vez que tanto em “Erec et
Enide” e “Cligès” ele celebra o amor no casamento. A partir de agora, sua função é cantar
um amor adúltero.
Em Lancelot, o cavaleiro da charrete escrito entre 1177 e 1181, Chrétien narra as
aventuras do herói que dá título ao romance. Ele é considerado “o melhor cavaleiro do
mundo” e realiza proezas incríveis para libertar a rainha Guinevere, por quem nutre um
forte amor correspondido.
Como as estórias do ciclo arturiano5, o cavaleiro da charrete inicia-se com uma
grande festa. Nessas ocasiões a corte se reunia em grande pompa, com um elevado número
de barões e damas. Eis então que entra no palácio um cavaleiro que desafiou o rei Artur na
frente de todos os presentes:
Rei, se houver em tua corte um só cavaleiro de tal mérito que nele te fies o bastante para ousares permitir que leve a rainha até esse bosque aonde vou, faço um juramento: esperarei por ele e te devolverei os prisioneiros que estão exilados em minha terra. Ainda precisará tomar de mim a rainha. Terá então o direito de a trazer de volta aqui. (TROYES, 1991, p.125).
Pronto, estava lançado o desafio do qual somente um cavaleiro poderia vencê-lo:
Lancelot. Mas quem primeiro entra nessa empreitada é Kai, o senescal do Rei. Após a
chegada daquele estranho cavaleiro, Kai decide deixar a corte de Artur, mas, a pedido da
rainha, decide ficar sob uma condição: Sire – torna Kai - , ouvi então que quero e qual dom
me haveis prometido. Minha senhora que aqui está, haveis permitido que a leve comigo
para seguirmos o cavaleiro que nos aguarda na floresta. (TROYES, 1991, p.127).
Após terem partido – Kai e a rainha – Gawain, sobrinho de rei Artur, propõe segui-los
para saber o que acontecerá. Rei Artur diz que ele falou como “cavaleiro cortês”, ou seja,
um cavaleiro que tem um dever para com a dama de servi-la e protegê-la. Quando já estão
5 Diz-se “ciclo arturiano” às narrativas que giram em torno de Rei Artur e seus cavaleiros.
na floresta, aparece um cavaleiro, pedindo um cavalo a Gawain e é prontamente atendido.
O sobrinho do rei resolve então segui-lo. Pelo caminho percebe que o cavaleiro travou um
grande combate e continua em seu rastro até encontrá-lo a pé, sozinho, perto de uma
charrete abandonada.
A solidão não era algo bem visto nem bom para o cavaleiro, o isolamento de um
guerreiro o deixava muito envergonhado. Uma outra coisa que lhe causava mal e vergonha
eram as charretes.
As charretes serviam então para o que servem os pelourinhos. E em cada boa cidade onde há mais de três mil delas, não havia naquele tempo senão uma que era comum a todas, como hoje os pelourinhos, para aqueles que cometeram assassinato, para os ladrões e os bandidos de estrada. Quem fosse preso no ato, era posto na charrete, levado por todas as ruas e depois declarado fora-da-lei, não mais podendo ser ouvido em justiça, não mais sendo honrado nem festejado. Porque naquele tempo as charretes eram tão cruéis, alguém disse: “Quando vires charrete e a encontrares, persigna-te e lembra de Deus, para que não te advenha mal”. (TROYES, 1991, p.129).
Como podemos perceber, a charrete encarnava tudo que poderia haver de ruim, de
desprezível nesse mundo. Mas, ainda assim, o cavaleiro irá submeter-se a essa humilhação.
É desse modo que se inicia a grande aventura desse cavaleiro desconhecido, um caminho
inteiro de provações que ele terá que cumprir. E essa longa estrada pela qual ele terá que
seguir começa com uma das coisas que mais poderiam manchar a honra de um cavaleiro: a
humilhação.
Quando vê a charrete, o cavaleiro pergunta ao anão que a conduzia se ele tem notícias
da rainha, mas a única coisa que o anão responde é que, se ele subir na charrete, terá novas
da rainha. O cavaleiro, então, hesita e isso lhe custará muito, por fim resolve subir e
Chrétien nos saboreia com uma bela explicação sobre a luta entre o amor e a razão:
É que Razão, separada de Amor, diz-lhe que evite subir. Ela ralha e lhe ensina a nada fazer nem empreender que possa levar a desonra ou exprobação. Essa Razão não está no coração, mas na boca. Porém Amor está no coração encerrado e lhe manda e ordena que suba depressa à charrete. Amor assim quer, e o cavaleiro sobe. Não lhe importa a vergonha, pois Amor ordena e quer. (TROYES, 1991, p.129).
Gawain também encontra esse mesmo anão, mas, ao contrário do outro cavaleiro, ele
não sobe na charrete e vão-se os três até chegarem a um castelo. Quando as pessoas vêem o
cavaleiro na charrete, começam a bradar “grandes vilanias” e “grandes ultrajes” e
perguntam: Em qual suplício será judiado esse cavaleiro? Será ele esfolado, enforcado,
afogado ou queimado em braseiro? Dize, anão, tu que o levas, em qual mal feito foi ele
pego? É convicto de furto? Matou? Foi vencido em campo fechado? (TROYES, 1991,
p.130, grifos meus).
Quando alguém era levado numa charrete, indagava-se qual crime tão horrível fora
cometido para que se merecesse um ultraje tão grande como aquele. Não seria talvez algo
mais do que ser humilhado para exaltar sua dama e senhora e provar seu “serviço
amoroso”, mas também uma forma de punição por trair o rei, seu senhor? Afinal de contas,
as pessoas perguntam “em qual malfeito foi ele pego?”. Não podemos esquecer que,
mesmo tratando-se de um romance cortês, essa era uma sociedade cristã que condenava
pecados como a traição e Chrétien versa aqui sobre um tema espinhoso com o qual não
estava habituado.
Os dois cavaleiros são hospedados por uma damizela que lhes prepara dois bons leitos
e um terceiro que já havia; esse era muito mais ricamente ornado, digno de um rei, estava
destinado somente a quem o merecesse. O cavaleiro da charrete pergunta por que não pode
repousar naquele leito e, mesmo a donzela lhe respondendo que estava desonrado e que lhe
viria grande mal, o cavaleiro deita no rico leito e passa por sua primeira prova:
À meia-noite, dentre as vigas caiu como um raio uma lança, o ferro para baixo, que por pouco não costurou o cavaleiro pelos flancos ao cobertor e aos lençóis alvos e ao leito onde jazia. Da lança um pendão pendia, que todo em chamas ardia. O fogo pegou no cobertor, nos lençóis e no leito ao mesmo tempo. E o ferro da lança passa bem ao lado do cavaleiro, tirando-lhe um pouco de couro sem contudo o ferir. Então o cavaleiro ergue o corpo, apaga o fogo e toma da lança. Atira-o no meio do aposento, sem para isso deixar o leito. Torna a dormir e dorme tão tranquilamente como fizera antes. (TROYES, 1991, p.132).
No outro dia, o cavaleiro tem a visão da qual tanto necessitava: a rainha. Ela estava
sendo levada por um vil cavaleiro. Diante dessa imagem que lhe causava grande torpor e
arrebata seu coração, o cavaleiro deseja a morte: o cavaleiro na janela reconheceu que
aquela dama era a rainha. Não parava mais de a contemplar o mais longamente que
podia. Quando desapareceu, ele quis se lançar pela janela. (TROYES, 1991, p.132).
Essa passagem ilustra bem o que era o amor cortês, um amor que tomava de pronto o
coração e era tão grande e intenso que não cabia dentro dele e a dor que causava era tão
insuportável que a morte se fazia amiga.
Gawain e o cavaleiro da charrete partem em direção ao caminho em que a rainha foi
levada. Depois de muito andarem, encontram uma damizela por quem perguntam novas da
rainha. Esta é a sua resposta: Se tivesse de vós seguras promessas, poderia indicar o
caminho, dizer para qual terra ela vai e o nome do cavaleiro que a leva. Mas quem
quisesse entrar nesse país precisaria sofrer grande penar e grandes dores. (TROYES,
1991, p.133).
Estavam anunciados os grandes perigos pelos quais aquele que desejava realmente
encontrar a rainha teria que passar. Como toda e qualquer aventura de cavaleiros, essa
também seria cercada de obstáculos, provas, dificuldades, dores. Desse modo, ao mesmo
tempo, em que honrava a sua dama, o cavaleiro cortês provava seu valor enfrentando tão
grandes perigos. Os dois cavaleiros aceitam e a damizela indica o caminho:
Vós os conhecereis, mas sabei que lá encontrareis obstáculos e morte, pois é afazer mui perigoso entrar nesse país sem a permissão do rei Bandemagus. O acesso só é permitido por duas cruéis passagens. Uma tem por nome Ponte-sob-a-água, pois está realmente sob a água entre o fundo e a superfície, tem apenas um pé e meio de largura e outro tanto de espessura. A outra ponte é a mais má e a mais perigosa que jamais homem passou. É cortante como uma espada, e por isso todos a chamam de Ponte-da-espada. Tal é a verdade. Mais não vos posso dizer. (TROYES, 1991, p.133).
Gawain escolhe a Ponte-sob-a-água e o outro cavaleiro segue o caminho da Ponte-da-
espada, quando lhe surge uma mais nova aventura: é desafiado por um cavaleiro que guarda
um vau. Como estivesse atordoado em seus pensamentos pelo amor da rainha, não ouviu a
advertência do cavaleiro do vau e começa entre eles uma luta. O cavaleiro da charrete
vence, o outro lhe pede mercê por mais de uma vez. É então que ele cai em si: Pelo amor
de Deus, perdão sempre concedi a quem o requeria com tais palavras. Assim farei, mas
jura-me que serás meu prisioneiro onde e quando eu quiser. (TROYES, 1991, p.136).
Aqui temos um exemplo do que era a ética cavaleiresca: quando um cavaleiro era
vencido e pedia mercê, o vencedor lha concedia. Pois era essa a moral da cavalaria,
mostrar-se honrado, é isso que aquele que foi levado na charrete faz.
O cavaleiro encontra mais uma outra aventura: uma damizela lhe oferece alojamento
se em troca ele se deitasse com ela. Depois de muito pesar, o cavaleiro aceita a oferta
desejando que a damizela desista do que propôs: E a damizela deita, mas não tira a camisa.
Ao cavaleiro muito custa se descalçar e desvestir. Um suor de angústia o invade. Mas seu
juramento o obriga e quebra-lhe a resistência. É uma imposição? Então, que seja!
(TROYES, 1991, p.140).
Como era “homem” de uma só mulher, o cavaleiro jamais poderia entregar-se à outra,
pois estaria traindo não só a amada, mas também a si próprio e as regras do amor cortês.
Diante dessa recusa, a damizela deixa-o em paz. O cavaleiro mais uma vez prova a sua
honra, pois, mesmo estando em presença de tão bela mulher, não desvia um só momento de
sua missão e de sua fidelidade para com a rainha. Essa atitude de um cavaleiro que se
mostra tão honrado merece até mesmo os elogios de Chrétien de Troyes:
Desde que pela primeira vez conheci cavaleiro, não estimei um único que valesse a terça parte de um dinheiro angevino, afora esse aqui. Se, como penso e adivinho, ele quer empreender uma façanha tão perigosa que jamais cavaleiro a ousou empreender, Deus lhe permita chegar a cabo! (TROYES, 1991, p.141).
A damizela segue com o cavaleiro, pois naquela época era dever do cavaleiro proteger
donzela desacompanhada. Depois de já ter enfrentado algumas aventuras, o cavaleiro ganha
o direito de receber um dom de sua senhora. Encontra um pente com alguns fios de cabelo
que são da rainha. O cavaleiro desfalece e sofre grande dor, pois o amor cortês é um culto à
mulher amada em que o amante encontra-se em estado de torpor e êxtase. (RÉGNIER-
BOHLER, 2006, p.49).
Os dois continuam a cavalgar quando encontram um outro cavaleiro que deseja ter a
damizela. Como é o da charrete quem a escolta e tem o dever de protegê-la, os dois
entrarão em batalha. Quando chegam a um prado, o cavaleiro ainda sofre as conseqüências
de ter subido na charrete: Tão logo os três recém-chegados surgiram, todos cessam de
jubilar e bradam prado afora: “Vide, vede aquele cavaleiro que foi carregado na charrete!
Maldito seja quem continuar a brincar enquanto esse traidor aí estiver. (TROYES, 1991,
p.146).
Depois de muito andarem, chegam a um cemitério, onde mais uma vez uma aventura
aguarda o cavaleiro e ele provará sua honra, e encontram um túmulo com os seguintes
dizeres: Quem sozinho levantar esta pedra libertará aqueles e aquelas que estão
prisioneiros nesta terra, de onde não podem sair nem servo nem gentil-homem nascido ao
redor. Ficam presos aqui os forasteiros, mas as pessoas do país entram e saem como lhes
apraz. (TROYES, 1991, p.150).
O cavaleiro da charrete levanta essa pedra, que só poderia ser erguida por, no mínimo,
sete homens, sem o menor esforço. O monge que observava tudo ficou maravilhado com o
que aconteceu e desejou saber o nome do cavaleiro que realizou tal façanha. Mas ainda não
saberemos como se chamava, ele diz apenas que vem do reino de Logres. Importante pista
essa que nos dá o autor, pois como todos da região tinham conhecimento, o reino de Logres
– onde ficava a corte do rei Artur – era o lugar que possuía os melhores cavaleiros do
mundo.
Finalmente o cavaleiro chega à Ponte-da-espada, mas, antes de atravessá-la, tem que
passar pela Passagem-das-pedras. Quando consegue ultrapassar essa passagem, é
informado que os prisioneiros daquele país haviam iniciado uma revolta devido à esperança
trazida por um cavaleiro que combateu em muitos lugares. Homem não o pode impedir de
passar onde quiser! Homem não o pode reter, por mais dano que sofra. Dizem pelo país
que ele libertará a todos e que os nossos serão vencidos. (TROYES, 1991, p.154-155).
Eis, então, que, após ter sofrido tanta humilhação por ter subido na charrete, o
cavaleiro conhece a glória que é representada pela liberdade conquistada ao povo. O
cavaleiro é exaltado como o salvador de todos aqueles que durante anos foram cativos num
país estrangeiro.
Na Ponte-da-espada, com grande dor, como tem de ser, ele atravessa, e em grande
tormento fere mãos, joelhos e pés. Mas o acalma e cura Amor, que o guia e leva. Tudo que
sofre lhe é doce. (TROYES, 1991, p.158, grifos meus).
Isso é o amor cortês, o cavaleiro tem de sofrer muito – “com grande dor, como tem de
ser” – para se fazer merecedor de sua amada. Mas todo esse sofrimento é pouco e banal
diante do grande amor que lhe habita o peito, esse é o seu consolo, o seu prêmio.
O rei Bandemagus e seu filho Meleagant – que tinha capturado a rainha – assistiram a
todo o sacrifício do cavaleiro. O rei, então, aconselha seu filho que entregue a rainha, pois
aquele cavaleiro se mostrou um grande homem e era sensato e cortês honrá-lo, pois homem
probo deve atrair homem probo e honrá-lo com muitas gentilezas, em vez de o manter
afastado. Quem honra faz está honrando a si mesmo. E será honra para ti se honrares e
servires esse que se mostrou o melhor cavaleiro do mundo. (TROYES, 1991, p.160, grifos
meus).
É a primeira vez que o cavaleiro da charrete é caracterizado como “o melhor cavaleiro
do mundo” e esse reconhecimento parte de um rei, pai daquele que roubou a rainha, suas
próprias palavras explicam seu caráter: “homem probo deve atrair homem probo e honrá-
lo”. Como o rei era um homem honrado, soube reconhecer naquele cavaleiro também a
honra, ao contrário do filho que não a possui e não aceita os conselhos do pai.
Finalmente saberemos como se chama o cavaleiro da charrete. Quando ele luta com o
filho do rei e já está perdendo as forças, para que as recobre, uma astuta donzela imagina
que se a rainha soubesse seu nome, de mui bom grado gritaria ao cavaleiro que olhasse
para cima! (TROYES, 1991, p.163). Então é revelado seu nome: Lancelot do Lago.
Com as forças recuperadas, Lancelot é imensamente superior na refrega. Vendo isso o
rei pede para Guinevere que Lancelot termine a batalha antes de matar Meleagant. Quem
ama é obediente. De pronto e de bom grado (pois é verdadeiro amigo) Lancelot faz como
quer sua amiga. (TROYES, 1991, p.165, grifos meus). É dever do amigo obedecer sua
amiga, pois quem ama é obediente e Lancelot é o perfeito exemplo da “obediência
amorosa”, atende a todos os desejos de sua “senhora”. A batalha é finda com uma
condição: com um ano os cavaleiros travariam novo combate.
Depois de enfrentar tantas dificuldades, Lancelot agora terá o júbilo de encontrar a
rainha e também de mostrar o quanto seu coração está feliz por encontrar aquela que é dona
dele. No entanto, a rainha não demonstra nenhum agradecimento, muito pelo contrário,
sente asco em ter diante de si aquele cavaleiro. Lancelot fica arrasado:
Eis que Lancelot, o coração transpassado por tais palavras, responde-lhe muito humilde, à maneira de fino amante: - Senhora, sem dúvida me arrasais. E não ouso perguntar por quê... (TROYES, 1991, p. 167, grifos meus).
O cavaleiro cumpre muito bem seu papel de perfeito amante, obedecendo a tudo que a
dama lhe impõe sem nada contestar, mesmo esperando que, depois de tanto sacrifício para
salvá-la, ela demonstre algum agradecimento. A súplica amorosa é calcada no modelo
feudo vassálico e após ter bem servido sua dama o poeta terá talvez direito a uma
recompensa. (RÉGNIER-BOHLER, 2006, p.48-49).
Imagem do Codex Manesse. Provavelmente do Duque Henrique IV entre 1253-1259. Nessa imagem podemos observar a “prenda” que o cavaleiro recebe da dama após ter vencido o combate.
Com o desprezo da rainha, Lancelot parte para encontrar Gawain e é aprisionado.
Então, chega até a corte a notícia de que Lancelot está morto, o rei sente grande dor e ela é
maior ainda para a rainha:
- Verdadeiramente, muito me pesa sua morte, e tenho razão em meu pesar. Por mim ele veio a esta terra. Portanto tenho de sentir tristeza. Depois, disse baixinho consigo mesma, para que não a ouçam, que não
lhe peçam mais que beba nem que coma, se verdadeiramente estiver morto aquele cuja vida a fazia viver. (TROYES, 1991, p.170).
Da mesma forma que chegou à rainha a notícia de que Lancelot estava morto, chegou
a ele a má nova de que sua amiga e senhora morreu:
- Ah! Morte, bem soubeste usar de astúcia para me levar ao desespero, por mais valente que seja. Estou em desespero; mas dor não sinto, exceto pela tristeza que me tomou o coração inteiro. Verdadeiramente, tristeza é como doença mortal. Eis o que creio: se Deus assim o quer, dela morrerei. (TROYES, 1991, p.171, grifos meus).
A dor do cavaleiro é tão grande que ele próprio reconhece que, mesmo sendo tão valente, não pode suportar tal golpe em seu coração, suas qualidades cavaleirescas aqui de nada valem em face do desespero que o toma. Afinal de contas, de que valerá sua vida sem amor?
Se é verdade que a rainha amou Lancelot com amor ardente, ele a amou mil e mil vezes mais, pois seguramente amor desertou todos os outros corações para cumular a tal ponto o de Lancelot. Sim, nesse coração amor encontrou todo seu ardor, e se empobreceu em outros corações. (TROYES, 1991, p.174).
Entre Guinevere e Lancelot houve a concretização do amor, ele não foi somente
idealizado, mas também tornou-se carnal. Pois, ademais de muito ter sofrido, de ser
humilhado e passar por várias provações, o cavaleiro obteve a recompensa: o amor de sua
senhora.
Lancelot torna-se prisioneiro de Meleagant. No período em que a rainha esteve
afastada, ficou decidido que seria organizado um torneio para que as damas e damizelas
sem esposo se casassem o mais rápido possível. A nova chega rapidamente a vários lugares
e até mesmo a Lancelot.
Naquela época os torneios eram negócios e negócios muito bem organizados por
duques e condes. Eles combinavam entre si a melhor forma de escalonar esses combates
simulados durante a temporada, e de providenciar a propaganda necessária para seu bom
andamento. A cavalaria inteira contava com os bons ofícios desses organizadores.
(DUBY, 1987, p.126-127).
Muito desejoso de participar dessa competição, que pertencia a sua natureza de
cavaleiro, Lancelot consegue ir ao torneio com a promessa de que retornaria à prisão. O
cavaleiro faz questão de não ser identificado, no entanto uma espécie de arauto d’armas o
reconhece e promete não revelar sua identidade.
Os arautos tinham uma função muito importante nos torneios: eles identificavam os
jogadores e faziam a propaganda do seu esporte:
Capazes de reconhecer todos os cavaleiros, cujo rosto o elmo encobria, graças aos sinais heráldicos que ostentavam, peritos igualmente na arte de compor e interpretar uma cançãozinha para garantir o lançamento de determinada seleção ou campeão, de exaltá-lo de fazer aumentarem de fama suas façanhas e, assim, crescer seu apreço e preço (...). Tais intermediários, meio poetas, meio rufiões, parece que perambulavam e prosperavam. O sucesso dos jogos dependia deles. Sem seus ofícios não se concebe que, em um território tão vasto, num calendário tão repleto, os organizadores pudessem divulgar um programa assim denso e diversificado, e ainda juntar tantos competidores e suas torcidas. (DUBY, 1987, p.130).
Foi justamente isso que fez aquele arauto que reconheceu Lancelot: salta fora da casa
e corre gritando o mais alto que pode: - chegou aquele que dará a medida! (TROYES,
1991, p.188). Todos se perguntam quem é aquele cavaleiro que tão bem combate sozinho
valendo por mais de vinte dos melhores. A rainha logo o reconhece e envia-lhe um recado:
- Ide depressa àquele cavaleiro que porta escudo de vermeil e dizei-lhe em segredo que lhe
peço para fazer “o pior possível”. (TROYES, 1991, p.189).
Lancelot como “bom amigo” que era de sua senhora, atende prontamente ao seu
desejo e não consegue dar mais um golpe sequer.
E os cavaleiros fazem dele grandes motivos e zombarias. Vêem então mui confuso e humilhado aquele que antes tanto prezavam como herói que o arauto dissera que conquistaria a todos. E ele ouve que o desprezam e dizem: - Ora, cala-te! Este aqui não mais medirá seu valor. Tanto o mediu que está quebrada a vara de medir que muito prezaste. Era tão bravo que com toda razão os cavaleiros temiam enfrentá-lo. Agora não passa de covarde cousa. (TROYES, 1991, p.190).
Novamente o cavaleiro, que já havia sido chamado de “o melhor cavaleiro do
mundo”, é humilhado assim como quando subiu na charrete. Em todos os lugares, pessoas
começaram a dizer: - Onde está o cavaleiro pior? O mais nulo, o mais desprezível? Para onde
foi? Onde se escondeu? Onde o procurar? Onde o encontrar? Talvez não vejamos mais, pois
covardia o expulsou. (TROYES, 1991, p.190).
Mas por glória merecida de sua cortesia, como bom amante que era de sua rainha,
sempre atendendo aos seus pedidos, ela deseja agora que ele seja vencedor: - Sire, minha
senhora vos ordena que com todas vossas forças luteis agora o melhor possível.
(TROYES, 1991, p.192).
É importante atentarmos para o fato das palavras com as quais a rainha designa que
seu amante ganhe ou perca a batalha. Quando ela deseja que ele saia derrotado, o autor
utiliza o verbo “pedir”; isso significa que o cumprimento de tal desejo era de um sacrifício
muito grande para aquele cavaleiro, pois ele perderia a sua honra mostrando-se tão inábil
guerreiro, é por esse motivo que a rainha “pede” e não “ordena”. Por outro lado, quando a
vontade é a de que ele ganhe, é como se a rainha tivesse permissão para “ordenar” que ele
fizesse isso, pois, ao contrário de ser humilhado, seu pedido só aumentaria a honra e o
prestígio de Lancelot e isso não seria um sacrifício para o cavaleiro, e sim o momento de
sua glória. Então ela “ordena” e não “pede”.
É assim, então, que Lancelot recupera mais uma vez sua honra e glória abrilhantada
pelo grito do arauto: Chegou aquele que dará a medida! Vereis o que ele fará. Hoje sereis
testemunhas! (TROYES, 1991, p.194) e reconhecida por aqueles que antes o ultrajavam:
Todos os que tinham zombado dele confessam: - Cometemos grande erro em o desprezar e
difamar. Ele venceu e sobrepujou todos os cavaleiros do mundo! A ele ninguém pode se
comparar! (TROYES, 1991, p.194).
Chrétien de Troyes não terminou o romance, deixando-o a cargo de Geoffroy de
Lagny. Lancelot escapa do cativeiro com a ajuda de uma donzela que, no início do
romance, havia prometido ajudá-lo quando ele precisasse. O cavaleiro chega à corte do rei
Artur e trava o duelo que fora marcado com Meleagant e sai vitorioso.
Lancelot, o cavaleiro da Charrete é o maior exemplo de cortesia amorosa
representada pela figura de Lancelot. Ele expressa o fine amor da cortesia cavaleiresca, pois
é obediente, sente prazer em agradar sua “senhora”, sofre por ela e espera por um mísero
gesto afetuoso, atende a todos os seus desejos até mesmo aquele que lhe é mais caro:
renunciar a sua honra cavaleiresca. Lancelot reúne todas essas características e mais o
grande amor que devota a uma dama, por isso é um cavaleiro cortês por excelência.
Esse sentimento que nos foi legado pela Idade Média, dessa maneira tão romanceada,
talvez seja uma voz paralela numa sociedade que se via disputada pelos projetos divinos e
por uma crescente individualidade do homem. Cabem aqui as palavras do próprio Chrétien
sobre tão “nobre” sentimento:
O cavaleiro da charrete vai devaneando, como homem que não tem força nem defesa contra Amor que o governa. Esquece de si mesmo, não sabe se existe ou não. De seu próprio nome não lembra. Não sabe se está armado ou não. Não sabe aonde vai, donde vem. De nada lembra, exceto de uma cousa, uma única cousa, e por ela olvidou todas as outras. Nela somente pensa tanto que nada vê nem ouve. Leva-o seu cavalo, para o qual não há caminho errado, mas o mais reto e o melhor. (TROYES, 1991, p.134).
O cavaleiro cortês comungava de uma noção de cortesia. Essa dizia respeito aos
“bons modos” que esse cavaleiro deveria adquirir. O cavaleiro cortesão continua, antes de
tudo, um guerreiro que deve demonstrar todas as virtudes guerreiras, deve brilhar em
todos os exercícios militares, de forma geral, nos esportivos. Ao mesmo tempo, porém, não
pode mais ser inculto e analfabeto. (GUENÉE, 2006, p.273).
Assim o cavaleiro deveria tornar-se pelo menos suficientemente letrado (satis
litteratus) para enriquecer-se culturalmente. Com isso, ele unia proezas de armas com um
certo modo de vida da corte. Para isso era preciso saber conduzir-se bem, não simplesmente
demonstrar virtude e piedade, mas estar de acordo com as boas maneiras, “saber dizer e
fazer”, saber portar-se de acordo com os usos e modos da corte. (GUENÉE, 2006, p.273).
Surgem então, a partir do século XII, os manuais de comportamento, que ensinavam, entre
outras coisas, regras de higiene.
Uma característica que estava estreitamente ligada ao modelo de cavaleiro cortês,
expresso na literatura do século XII, que era uma literatura de corte, é a elegantia. Essa
virtude conferia a boa educação no falar, beber, comer, no bem justar, nos jogos lúdicos,
como o xadrez.
Mas acima de tudo, a elegância referia-se ao trato com a dama, o “objeto” de culto do
cavaleiro cortês, a quem ele deveria submeter-se. É através do “ser elegante” que o
cavaleiro mostrará toda a sua delicadeza para com a dama. A sua elegância se evidenciaria
também por sua galanteria – característica fortemente expressa por Lancelot. O cavaleiro
cortês era um galanteador, mas sempre muito bem educado nas questões amorosas. Afinal,
as regras do código amoroso deveriam ser respeitadas por um bom amante.
Essa literatura de corte atendia à necessidade de educar a nobreza, eram nas cortes
que se formavam os cavaleiros. O cavaleiro seria, então, “civilizado” através do ideal de
cortesia. Assim, o modelo de cavaleiro cortês prestava-se não somente ao objetivo de
“civilizar” a nobreza, controlando-a através de seus costumes, como também evidenciar sua
distinção social por meio dos atributos que lhe eram próprios.
Esse modelo cortês de cavaleiro é o oposto do modelo de cavaleiro cristão elaborado
por Ramon Llull e exemplificado pela figura de Galaaz. É sobre esse tipo de cavaleiro
idealizado que falaremos no próximo capítulo.
2. A IDEALIZAÇÃO CAVALEIRESCA NO LIVRO DA ORDEM DE CAVALARIA
DE RAMON LLULL.
Nesse capítulo analisaremos como Ramon Llull constrói um ideal de cavaleiro
baseado em valores cristãos como a caridade, a fé, a confissão, a esperança, a fortaleza, a
justiça.
Sua obra constitui-se de um manual pedagógico para ensinar os cavaleiros a se
tornarem bons cavaleiros, o que significava serem também bons cristãos. Desse modo, o
cavaleiro, para além de sua força militar e guerreira, seria um cavaleiro da fé, um exemplo
para a sociedade.
2.1 Ramon Llull em sua Autobiografia
As informações que temos sobre Ramon Llull chegaram até nós pelas suas próprias
palavras. Ele mesmo contou sua vida aos monges cartuxos de Vauvert, sua autobiografia
intitulada Vida Coetânea.
Da Vida Coetânea duas versões resistiram ao tempo: uma em latim e outra em
catalão. Utilizo aqui a tradução de Luisa Costa Gomes, que se baseia numa versão
castelhana usando a latina para tirar dúvidas e a catalã para suavizar o texto; e a tradução de
Ricardo da Costa, que se baseia na versão catalã cotejada com uma tradução latina.
Ramon Llull ou Raimundo Lúlio nasceu provavelmente entre os anos de 1232-1235
em Palma de Maiorca e morreu em 1316 quando voltava da Tunísia6.
A ilha de Maiorca pertencia à região da Espanha7 que era habitada por povos das três
grandes religiões monoteístas: judeus, cristãos e muçulmanos. Por sua vez, a ilha de
Maiorca possuía características culturais peculiares que imprimiram um tom universalista
à obra de Llull. (COSTA, 2001). Essas características podem ser observadas pelos seus
diferentes moradores, entre os quais incluíam-se mercadores pisanos e genoveses,
muçulmanos e judeus. Esses diferentes grupos conviviam em paz embora não fossem
6 Há uma lenda que ele tenha sido apedrejado até a morte. 7 Segundo Piñero Valverde nos séculos XI e XII o que se concebia por Espanha não era exatamente o que entendemos hoje. A Espanha correspondia à Hispania romana, designava toda a extensão da Península Ibérica, ou seja, os territórios portugueses e espanhóis.
cordiais, tampouco eram agressivas as relações entre os três grupos, cujo ponto de
convergência era o respeito à autoridade real. (VALVERDE, 1997, p.159).
O pai de Llull havia ajudado o rei Jaime I, o Conquistador, na conquista da ilha de
Maiorca e por isso foi recompensado com algumas propriedades. Assim, Ramon Llull foi
educado na corte real. Sua educação foi direcionada para a carreira das armas, fato que
influenciou consideravelmente sua produção posterior, imprimindo ao seu estilo um tom
elegante e gracioso, por vezes cerimonioso. (COSTA, 2000, p.XVI).
É interessante notar que a autobiografia de Llull pouco diz respeito a sua vida antes da
conversão. Quando faz referência a isso, é sempre para reafirmar como sua vida era fútil e
frívola, pois era na plenitude de sua juventude e afeito na arte de trovar e compor canções
e ditados das loucuras deste mundo. (LLULL, 1311a, p.01)8
Mas Llull foi casado com Blanca Picany com quem teve dois filhos: Domingos e
Madalena. No entanto, deixou sua família suficientemente dotada de bens que garantissem
seu sustento, para melhor dedicar-se ao serviço de Deus.
Passaremos agora a examinar a imagem que Ramon Llull quis mostrar de si próprio
através de sua autobiografia, Vida Coetânea.
O serviço que Llull deveria prestar a Deus teve seu estímulo inicial quando
disposto a compor e a escrever em vulgar uma cantiga sobre certa dama a quem amava com amor vão. Começava a escrevê-la quando, olhando à direita, viu Nosso Senhor Jesus Cristo pregado na Cruz. Vendo-o, sentiu medo e, deixando o que tinha entre mãos, meteu-se na cama para dormir. Levantando-se no dia seguinte, voltou às vaidades de sempre, pouco preocupado com aquela visão; e passados quase oito dias, no mesmo lugar e cerca da mesma hora, de novo se dispôs a escrever e a terminar a dita canção; e de novo lhe apareceu o Senhor da Cruz. (LLULL, 1311b, p. 01, grifos meus)9.
A conversão de Llull não se deu de forma imediata, ele não deixou de pronto sua
vida mundana. Mesmo depois de ter visto Jesus pela segunda vez, não abandonou seu
8 De agora em diante, utilizaremos a designação 1311a para referir-nos à tradução feita por Ricardo da Costa da Vida Coetânea. 9 A partir de agora utilizaremos a designação 1311b para referir-nos à tradução feita por Luisa Costa Gomes da Vida Coetânea.
intuito de escrever a dita canção. No entanto, a aparição persistiu e na terceira vez Llull
interrogou sobre seu significado:
Por um lado, alturas havia em que lhe ditava a consciência que aquelas aparições não pretendiam senão levá-lo a deixar imediatamente o mundo e a entregar-se por inteiro ao serviço do Senhor Jesus Cristo; por outro, a mesma consciência proclamava que ele era culpado desde há muito e indigno do serviço de Cristo. (LLULL, 1311b, p.01).
Iluminura do Breviculum. Nessa imagem observamos a
visão que Llull teve de Cristo.
Llull, segundo a Vida Coetânea, entra num dilema, pois tem consciência de não ser merecedor do serviço de Deus, mas por fim entende que o Senhor é paciente e misericordioso para com os pecadores e entrega-se a ele, segundo suas próprias palavras, de todo o coração. O filósofo tenta, dessa forma, afirmar que, mesmo sendo pecador, Deus o escolheu para Seus projetos. E para isso refletiu de qual maneira poderia melhor servir a Deus:
E, pensando nisso, ocorreu-lhe o dito do Evangelho, que diz que não pode haver maior caridade nem amor nenhum com o outro que dar a vida por aquele; e, para tanto, o dito reverendo mestre, já todo incendiado em ardor no amor para com a cruz, deliberou que maior nem melhor agradável ato não poderia fazer do que converter os infiéis e incrédulos à verdade da santa fé católica, e para aquilo colocar a sua pessoa em perigo de morte. (LLULL, 1311a, p.02, grifos meus).
Nessa passagem observamos que Llull tenta demonstrar como é capaz de sacrificar a
sua própria vida por um ideal maior. Com essa escrita ele justificaria, assim, a sua função
de propagador da fé católica.
É, então, que Ramon Llull recebe inspiração divina, de acordo com o que nos conta
sua autobiografia. Para servir a Deus, ele escreveria “o melhor livro do mundo” contra o
erro dos infiéis. Considerando de novo que, mesmo concedendo-lhe Deus, com o tempo,
escrever o livro predito, pouco ou nada, no entanto, poderia fazer sozinho, em especial por
ignorar completamente a língua árabe, própria dos Sarracenos. (LLULL, 1311b, p.02).
Desse modo o filósofo catalão tem a idéia de incitar Papas e Reis cristãos a
constituírem mosteiros onde as pessoas estudassem a língua dos infiéis. E assim três coisas
estavam firmemente concebidas em seu espírito: aceitar a morte por Cristo, convertendo
ao seu serviço os Infiéis; escrever o tal livro, se Deus lho concedesse, assim como solicitar
a fundação de mosteiros para que neles se aprendessem diversas línguas. (LLULL, 1311b,
p.02).
Mesmo tendo deliberado como seria sua atuação em converter os infiéis, Llull
continuou com sua vida mundana. Logo voltou às suas coisas, ainda extremamente
imbuído da vida e leviandade seculares e durante os três meses seguintes, quer dizer, até à
festa de S. Francisco, continuou fraco e indolente quanto à realização dos seus três
propósitos. (LLULL, 1311b, p.02). Observamos, com esse trecho da Vida Coetânea, que
Llull tem uma visão muito crítica a respeito de si mesmo antes de sua conversão.
Foi durante as festas de São Francisco, inspirado pela pregação de um Bispo sobre
como aquele santo largou tudo o que tinha para dedicar-se ao serviço de Deus, que Ramon
Llull foi tocado dentro de suas entranhas e deliberou que, vendidas as suas possessões, ele
faria o mesmo. (LLULL, 1311a, p.02). Talvez seja por essa inspiração e essa semelhança
em despojar-se das coisas mundanas que o pensamento de Llull tenha se associado ao
franciscanismo.
Transformou-se então num missionário laico, embora seu pensamento seja fortemente vinculado à espiritualidade franciscana. Ao contrário do que se costuma pensar, não existe nenhuma prova documental que Llull tenha aderido a qualquer ordem religiosa. Durante um período de sua vida esteve propenso a ingressar numa ordem, franciscana ou dominicana, mas foi dissuadido. Na verdade, Llull foi um pensador leigo e a iconografia o cristianizou. (COSTA, 2000, p. XVIII).
Para aprender a língua árabe, Llull compra um mouro. Após nove anos esse Sarraceno
blasfema contra Cristo e, ao sabê-lo, Ramon bateu em sua boca e rosto. O escravo foi
tomado de ódio e planejou matá-lo, mas prouve a Deus que Raimon desviasse um pouco o
braço do atacante. (LLULL, 1311b, p.02-03).
Não bastasse que Llull fosse salvo por vontade divina, segundo ele próprio relata,
ainda se mostra bom e generoso para com o seu agressor, pois
teve de impedir que matassem o Sarraceno; permitiu, no entanto, que o levassem, acorrentado, para a prisão, até que resolvesse o que seria melhor fazer dele. Pois parecia-lhe demasiado severo matar aquele que lhe ensinara o que tanto desejara, quer dizer, a língua árabe; mas receava perdoar-lhe ou mantê-lo mais tempo ao seu serviço, sabendo que de futuro não cessaria de maquinar a sua morte. (LLULL, 1311b, p.03, grifos meus).
Aqui percebemos como o filósofo alude, através desse escrito sobre a sua vida, para
um dos grandes deveres do cristão: ser misericordioso.
Ramon Llull está novamente diante de um dilema – o que fazer com o escravo? – assim como na época das aparições, em que tinha dúvidas sobre ser merecedor de Cristo. Deus, mais uma vez, demonstra estar ao lado do maiorquino, segundo a sua autobiografia:
Assim, naquela perplexidade, subiu a uma abadia próxima, e ali pediu a Deus orientação sobre aquele problema, intensamente, durante três dias; e, passado o tempo, maravilhando-se Raimon de que perdurasse no seu espírito a aludida perplexidade, pareceu-lhe que o Senhor não lhe atendera a oração e regressou tristemente a casa; e como no caminho fizesse um desvio até a prisão para visitar o cativo, soube que o próprio, com a corda que o prendia, se tinha enforcado. E Raimon deu alegremente graças a Deus, não só por lhe ter deixado as mãos inocentes da morte do Sarraceno, mas por tê-lo libertado da grave
perplexidade em que, pouco antes, angustiado, Lhe dirigia as suas súplicas. (LLULL, 1311b, p.03, grifos meus).
Observamos que o filósofo procura apontar, o tempo todo, que só encontra soluções
para os seus problemas através da providência divina. Llull evidencia, portanto, que, para o
cristão ter respostas para as suas dúvidas, ele deveria procurar por Deus, somente Ele
poderia livrar-nos de nossa ruína.
Depois desse triste episódio, que serviu para talvez convencer Llull de que o Senhor o
tinha escolhido para servo, ele retira-se para uma montanha de nome Randa e como
estivesse estado aqui por quase oito dias, e um dia estivesse contemplando e tendo os olhos
voltados para o céu, em um instante lhe veio certa ilustração divina, dando-lhe ordem e
forma de fazer os ditos livros contra os erros dos infiéis. (LLULL, 1311a, p.03). O filósofo
recebe inspiração diretamente de Deus, segundo suas próprias palavras, para compor o livro
que chamou de Arte e que serviria para a honra de Cristo e proveito da santa fé católica. É
com esse rogo de que sua Arte prosperasse, que Llull permanece no monte, onde agora
havia um eremitério construído por ordem divina, por mais de quatro meses. E novamente
Deus demonstra sua misericórdia para com seu servo, segundo nos é relatado pela sua
biografia:
Aconteceu que numa manhã veio um jovem pastor de ovelhas, com a cara muito alegre e divertida, o qual dentro de uma só hora lhe recontou tanta singularidade da essência divina e do céu, e singularmente da natureza angelical, como um grande homem de ciências tivesse podido explicar em dois dias; e vendo o dito pastor os ditos livros que o dito reverendo mestre havia ordenado, beijou-os com os joelhos na terra, e com lágrimas disse que por aqueles livros seguiriam muitos bens na Igreja de Deus; e, abençoando o dito reverendo mestre com o sinal da cruz, assim como se fosse um grande profeta, ele partiu e deixou o dito reverendo mestre completamente admirado, porque não lhe parecia que nunca havia visto o dito pastor, e nunca havia ouvido falar dele. (LLULL, 1311a, p.04, grifos meus).
Percebemos, através dessa passagem da Vida Coetânea, que Llull busca justificar a
importância de sua obra. Remetendo-nos à figura de um pastor que é uma imagem
carregada de simbolismo religioso, pois Deus é o pastor de Israel (Salmo 23, 1; Isaías 40,
11; Jeremias, 31, 10). Conduz seu rebanho, vela sobre ele e protege-o. (CHEVALIER e
GHEERBRANT, 1991. p.691), o catalão procura passar a idéia de que sua obra era guiada
e respaldada pelo aval divino que a protegia.
Quando finalmente Ramon parte para a terra dos Sarracenos para convertê-los, veio
lhe um pensamento de que seria apedrejado pelos mouros ou então ficaria em prisão
perpétua. Por isso Raimón, temendo pela pele, como noutros tempos S.Pedro Apóstolo na
Paixão do Senhor, esquecido o seu propósito de morrer por Cristo convertendo ao seu
culto os Infiéis, deixou-se ficar em Gênova, detido por um temor paralisante, abandonado
a si mesmo. (LLULL, 1311b, p.04).
Llull faz aqui uma comparação com São Pedro para justificar que, assim como o
grande apóstolo de Jesus havia sentido medo, ele também poderia senti-lo. O filósofo
evidencia que era um ser humano, portanto, falível, e se desespera com o escândalo que
isso causará à fé do povo e a Deus que confiou nele. Nesse penar, Llull foi acometido
durante muito tempo por uma grave doença que ninguém nunca soube a causa.
Llull teria uma outra chance, pois partiria uma barca para Tunis e agora seu remorso
chegaria ao fim. Chegando à terra dos Sarracenos, ele os desafia:
Raimon convocou, dia após dia, os mais versados na Lei de Maomé e dizia-lhes, entre outras coisas, que conhecia bem os fundamentos da Lei dos Cristãos em todos os seus artigos e que viera na intenção de se converter à seita deles no caso de, depois de ter ouvido os princípios da sua Lei e discutido com eles sobre os mesmos, aqueles se revelassem superiores aos dos Cristãos. (LLULL, 1311b, p.05).
Notamos que Llull procura enfatizar que, de fato, a religião católica era superior às
demais, pois, segundo sua autobiografia, não aparece nenhum sábio para discutir com ele.
Nas suas pregações o reverendo, de acordo com o que ele nos conta, parecia estar
tocando os infiéis, mas um desses informou ao rei e exortou-o a decapitar aquele homem
que queria submeter os muçulmanos à fé cristã. No entanto, o rei, aconselhado por seus
sábios, decidiu expulsar Ramon de Tunis. E quando o soltaram da prisão, muitos o
insultaram, lhe bateram, o humilharam. (LLULL, 1311b, p.06).
É assim, pois, que nos é contada a vida de Ramon por suas próprias palavras. Isso é
importante assinalar, pois como é o próprio Llull que nos conta sua vida, alguns pontos dela
sempre terão mais ênfase, demonstrando a sua devoção a Deus e como foi por Ele
escolhido.
De início a biografia esclarece que tudo que foi relatado sobre a vida de Llull foi
porque ele permitiu: Em honra, glória e amor do único Senhor Deus Nosso Jesus Cristo, a
instância de certos seus religiosos, referiu Ramon e permitiu que fosse escrito o que se
segue sobre a sua conversão e penitência e sobre alguns feitos seus. (LLULL, 1311b,
p.01). Ou seja, não foi o reverendo que quis contar sobre os “feitos” de sua existência, e
sim permitiu que eles fossem contados10.
Em vários momentos de sua vida, Llull, de acordo com a Vida Coetânea, sentiu
medo, revelando assim sua fraqueza humana. Medo que revela a fraqueza do homem diante
da onipotência de Deus e que também demonstra a bondade divina para com um ser que é
falível por natureza. Assim, Ramon Llull apavora-se e é tomado por dúvidas várias vezes:
quando Cristo lhe aparece crucificado; quando não entende qual a vontade de Deus com
aquelas visões; quando não sabe o que fazer com o escravo que atentou sobre sua vida;
quando não partiu no navio para pregar contra os infiéis.
Todos esses momentos servem para o propósito que Llull busca divulgar na Vida
Coetânea: o Senhor é misericordioso para com aqueles que se arrependem e se convertem à
fé católica.
O filósofo enfatiza ainda, na sua biografia, que Deus está ao seu lado, pois mesmo
sendo iletrado, constitui uma Arte que é considerada uma “ciência santa” e que é até
mesmo intelectualmente superior ao entendimento dos doutores de Paris.
Além dos medos e dúvidas, Llull passa por mais uma provação:
Considerando Raimon por um lado a sua condenação se não se juntava aos Dominicanos e, por outro lado, a perdição da sua Arte e dos seus livros se não entrava na Ordem dos Menores, escolheu (o que foi extremamente admirável) a condenação eterna em vez da perda da Arte, que sabia ter recebido de Deus para a salvação de muitos e maior honra do próprio Deus. (LLULL, 1311b, p.05).
10 As duas traduções aqui utilizadas referem-se a esse sentido, de que Llull foi instado a contar sobre sua vida.
Nessa passagem, Llull procura ratificar que está realmente pronto para a grande
missão que lhe foi incumbida, pois prefere sacrificar a si mesmo que abandonar a salvação
de muitas almas. Ele busca corroborar a idéia de que os seus objetivos estavam ligados a
um projeto maior: o cristão deveria sacrificar-se para atingir a salvação.
Parece ser esse o grande sentido da sua biografia: Ramon Llull era um homem
pecador que se converteu, deixou os sabores do mundo, sentiu medo, teve dúvidas, sofreu,
foi humilhado e ainda assim não desistiu de seu propósito. A maneira como sua biografia
foi construída tem o intuito de servir como um exemplo de que qualquer pessoa também
pode servir a Deus se construir uma vida digna, reta nos caminhos cristãos.
Dentre as obras de Llull destacamos:
O Livro da Ordem de Cavalaria;
Livro do Gentil e dos Três Sábios;
Livro da Alma Racional;
Felix, ou Livro das Maravilhas;
Livro da Árvore Imperial.
Iremos nos estender agora à análise do O Livro da Ordem de Cavalaria, uma obra
com intensos objetivos cristianizadores para o cavaleiro, que poderia atingir a salvação se
os seguisse.
2.2 “A Ordem de Cavalaria, que deve ser sem vilania”.
Deus honrado, glorioso, que sois cumprimento de todos os bens, por vossa graça e
vossa bênção começa este livro que é da Ordem de Cavalaria. (LLULL, 2000, p.03).
Essas são as primeiras palavras com as quais Llull inicia o Livro da Ordem de
Cavalaria (1279-1283). É possível perceber dois sentidos para essas suas primeiras
palavras: “ordem” pode estar sendo usada significando instituição, a ordem de cavalaria;
um outro significado pode ser de domínio, modo, “à maneira de cavalaria”.
A edição que estamos utilizando é bilíngüe e tem a tradução do Prof. Dr. Ricardo da
Costa. Não se sabe exatamente a datação da obra, nem o local preciso de sua redação, mas
ela foi escrita provavelmente entre os anos de 1279-1283.
A obra é dividida em sete partes como o próprio autor explica:
Por significação dos VII planetas, que são corpos celestiais e governam e ordenam os corpos terrenais, dividimos este Livro de Cavalaria em VII partes, para demonstrar que os cavaleiros têm honra e senhorio sobre o povo para o ordenar e defender. A primeira parte é do começo de Cavalaria; a segunda, do ofício de Cavalaria; a terceira, do exame que convém que seja feito ao escudeiro com vontade de entrar na Ordem de Cavalaria; a quarta, da maneira segundo a qual deve ser armado o cavaleiro; a quinta, do que significam as armas do cavaleiro; a sexta é dos costumes que pertencem ao cavaleiro; a sétima, da honra que convém seja feita ao cavaleiro. (LLULL, 2000, p.03).
Nessa passagem, o filósofo exemplifica sua concepção da sociedade através da
estruturação de sua obra, pois ela está organizada, ordenada assim como os planetas, ou
seja, é uma organização celestial, divina, da mesma forma que a sociedade estava
organizada nas três ordens (oratores, bellatores e laboratores) que obedecia a uma ordem
segundo a vontade de Deus.
Além do mais, Llull deixa claro a superioridade dos cavaleiros, afirmando que sua
obra é para demonstrar que eles têm honra sobre o povo para ordenar e defender. O
cavaleiro é “superior” ao povo não só porque tem o privilégio de portar armas, mas também
porque tem honra, e essa era uma qualidade, um mérito exclusivo da nobreza.
Essa divisão da obra em sete partes faz referência à simbologia do número sete, que
estava relacionada à criação do mundo por Deus (ao sétimo dia o Senhor descansou);
está também associado à soma das sete virtudes, as três virtudes teologais – fé, esperança e caridade e as quatro virtudes cardeais – justiça, prudência, fortaleza e temperança. Segundo o filósofo, o cavaleiro deveria se fiar nessas virtudes contra os sete pecados mortais: ira, glutonia (gula), luxúria, acídia (preguiça), soberba (orgulho), invídia (inveja) e avareza. (ZIERER, 2008).
Sete é também a soma dos números quatro e três: o quatro é o número próprio dos
quatro Evangelhos, dos quatro pontos cardeais, dos quatro cantos da Terra; e o três é o
número da Santíssima Trindade – Pai, Filho e Espírito Santo.
O prólogo do Livro de Llull possui muitos elementos presentes nas obras do ciclo
arturiano, como o eremita, a floresta, a fonte.
Em uma terra aconteceu que um sábio cavaleiro que longamente havia mantido a Ordem de Cavalaria na nobreza e força de sua alta coragem, (...), elegeu a vida ermitã quando viu que seus dias eram breves e a natureza o impediam, pela velhice, de usar armas. (LLULL, 2000, p.03). (...). Em um belo prado havia uma árvore muito grande, toda carregada de frutos. Um cavaleiro vivia naquela floresta. Debaixo daquela árvore havia uma fonte muito bela e clara, da qual eram abundantes o prado e as árvores que ali estavam ao redor. E o cavaleiro havia em seu costume, todos os dias, de vir àquele lugar adorar e contemplar e pregar a Deus, ao qual fazia graças e mercês da grande honra que lhe havia feito todos os tempos de sua vida neste mundo. (LLULL, 2000, p.05).
Essa imagem do cavaleiro que, no fim de sua vida, afasta-se do mundo para dedicar-
se a Deus é muito recorrente na literatura cavaleiresca, especialmente na Demanda do
Santo Graal. Nela, após uma vida inteira voltada para a guerra, os cavaleiros – como fim
último – voltam-se para consagrar o espírito vivendo de forma humilde como eremitas.
Algo semelhante a isso acontece também com Guilherme Marechal, um cavaleiro que
existiu realmente. No fim de sua vida, “deu-se” à Ordem dos Templários.
No final do século XII, muitos fidalgos (...) assim se filiavam á florescente congregação dos templários, vinculando-se desde já, porém aguardando para completar a sua integração uma hora mais avançada de sua vida, o momento preciso, ao aproximar-se a morte. (DUBY, 1987, p.21).
Uma outra alusão, que ocorre na obra de Llull, ao Rei Artur e seus cavaleiros é
quando o filósofo menciona sobre um rei de grande fama que reunirá sua corte:
Em aquele tempo, à entrada do grande inverno, aconteceu que um grande rei muito nobre e de bons e bem abundantes costumes, mandou haver cortes. E pela grande fama que tinha nas terras de suas cortes, um esbelto escudeiro, só, cavalgando em seu palafrém, dirigia-se à corte para ser armado novo cavaleiro. (LLULL, 2000, p.05).
Podemos supor que Llull tinha conhecimento sobre as narrativas a respeito do rei
Artur, que é tomado, segundo suas próprias palavras, como um rei muito bom. Artur era tão
bom e virtuoso que aqueles que pretendiam se tornar cavaleiros desejavam ser ordenados
em sua corte, isso acontece inúmeras vezes na Demanda do Santo Graal.
Esse futuro cavaleiro encontra o ermitão na floresta, que pergunta a ele por que está
ali e o que pretende. O escudeiro responde que será armado cavaleiro em uma grande corte,
é nesse momento que o ermitão relembra a Ordem de Cavalaria e o que ela representava
para a honra do cavaleiro. O escudeiro nada sabia sobre a Ordem, é então que o velho
cavaleiro lhe entrega um livro que continha os ensinamentos da Ordem de Cavalaria.
Desse modo seu livro era um manual, um ensinamento de como ser um bom
cavaleiro, já que, segundo Llull, só se pode ser bom em alguma coisa quando se tem
conhecimento sobre ela. Pois nenhum cavaleiro pode manter a Ordem que não sabe, nem
pode amar sua Ordem, nem o que pertence à sua Ordem, se não sabe a Ordem de
Cavalaria, nem sabe conhecer as faltas que são contra sua Ordem. (LLULL, 2000, p.09).
O filósofo pretendia, através de sua obra, que os cavaleiros seguissem os caminhos de
Deus, que a cavalaria voltasse a ter prestígio no que diz respeito aos valores cristãos. Há
uma valorização do cavaleiro cristão, que é tido como um cavaleiro ideal.
Assim, percebemos que as normas de cavalaria no século XIII já não estavam sendo
respeitadas e seguidas como antigamente, segundo nos ilustra o velho ermitão:
- Amável filho – disse o cavaleiro – eu estou perto da morte e meus dias não são muitos, ora como este livro foi feito para retornar a devoção e a lealdade e o ordenamento que o cavaleiro deve ter para manter sua Ordem, por isso, belo filho, levai este livro à corte aonde ides e mostrai-o a todos aqueles que desejam ser novos cavaleiros. Guardai-o e apreciai-o se amais a Ordem de Cavalaria. (LLULL, 2000, p.11) (grifos meus).
Assim, Llull tinha o desejo de que A Ordem de Cavalaria recuperasse seu antigo
prestígio, de que a nobreza, já tão envolvida em disputas internas, principalmente no que
diz respeito à primogenitura, se voltasse para os princípios cristãos. Devido à
hereditariedade dos benefícios feudo-vassálicos, os primogênitos detinham a concentração
da propriedade.
“Com isso, aqueles que fossem secundogênitos quando não conseguiam bons
casamentos capazes de lhes garantirem principalmente terras, dedicavam-se muitas vezes
ao banditismo e às guerras privadas”. (ZIERER, 2005, p.499). Esse também foi um dos
motivos para que vários secundogênitos participassem das Cruzadas, pois, além de terem a
possibilidade de adquirir riquezas, ainda eram perdoados pela Igreja por seus pecados.
Llull explica como o mundo estava perdido em inimizade, deslealdade, injúria e
falsidade até que aparece aquele que trará caridade, lealdade, justiça e verdade.
No começo, como veio ao mundo menosprezo de justiça devido à míngua de caridade, conveio que pelo temor a justiça retornasse à sua honra. E por isso, de todo o povo foram divididos em grupos de mil e de cada mil foi eleito e escolhido um homem, mais amável, mais sábio, mais leal e mais forte, e com mais nobre coragem, com mais ensinamentos e de bons modos que todos os outros. Buscou-se em todas as bestas qual era a mais bela besta e a mais veloz, e a que pudesse sustentar maior trabalho, e qual era a mais conveniente para servir ao homem; e porque o cavalo é a mais nobre besta e a mais conveniente a servir ao homem, por isso, de todas as bestas, o homem elegeu o cavalo, que foi doado ao homem que foi dos mil homens eleito. E por isso aquele homem tem o nome de cavaleiro. (LLULL, 2000, p.13, grifos meus).
O filósofo deixa claro como se forma um cavaleiro e qual era sua função diante de um
mundo imerso no caos da leviandade. Assim o cavaleiro faria com que a honra retornasse à
Ordem pelo temor, mas, ao mesmo tempo em que ele causaria o temor, suas virtudes são
acentuadas: ele era um homem amável, sábio, leal, forte, com nobre coragem. Um homem
com tais qualidades só poderia fazer e incitar o bem. Assim os cavaleiros, por nobreza de
coração e por força das armas, mantêm a Ordem de Cavalaria, e têm a Ordem em que
estão para inclinarem as gentes ao temor, pelo qual temem fazer faltas uns homens contra
outros. (LLULL, 2000, p.19).
Aproximando cada vez mais os cavaleiros dos assuntos religiosos, Llull afirma que
ofício de cavaleiro é manter e defender a santa fé católica (...) e que por força das armas
vençam e submetam os infiéis que cada dia pugnam em destruir a Santa Igreja. (LLULL,
2000, p.23).
Há aqui um discurso cruzadístico, um desejo de que a cavalaria voltasse aos seus
tempos áureos. Esses tempos gloriosos estão associados à época das Cruzadas, em que, para
defender a fé católica e proteger a Terra Santa, os cavaleiros estavam imbuídos dos mais
altos valores cristãos11. É a isso que Llull quer remeter essa cavalaria gloriosa de tempos
passados.
Esses cruzados faziam parte muitas vezes de ordens religiosas-militares que nasceram
da necessidade de se defender os territórios conquistados, de defender os peregrinos,
assistir aos fracos e aos doentes, tornar, por assim dizer “permanente” a mobilização que
possibilitara a Cruzada. (CARDINI, 1984, p.63). Entre essas ordens a que ficou mais
conhecida foi a dos Templários, mas havia também a dos Hospitalários; a ordem de Malta;
Teutônica; a ordem de Santiago e a ordem de Avis.
Cruzado, Apocalipse, séc. III,
Biblioteca Municipal, Cambrai.
Mas ao contrário desse ideal ascético de perfeição, o cavaleiro estava visivelmente
distante da elaboração proposta por Llull:
11 Não era somente por questões religiosas que os cavaleiros partiam para as cruzadas, havia também interesses econômicos, além da promessa de terem seus pecados perdoados.
Se cavaleiro que é tão honrado ofício, fosse ofício de roubar e de destruir os pobres e os despossuídos, e de enganar e de forçar as viúvas e as outras fêmeas, bem grande e bem nobre ofício seria ajudar e manter órfãos, viúvas e pobres. (LLULL, 2000, p.39). (...). Se justiça e paz fossem contrárias, Cavalaria, que concorda com justiça, seria contrária à paz; e se o fosse, então estes cavaleiros que agora são inimigos da paz e amam guerras e trabalhos são cavaleiros; e aqueles que pacificam as gentes e fogem de trabalhos são injuriosos e são contra a Cavalaria. (LLULL, 2000, p.49, grifos meus).
Percebemos aqui que o trabalho não era um atributo dos cavaleiros, sua função na
sociedade como, bem demonstra a teoria trifuncional, era a de combater. O trabalho estava
destinado aos servos, pois convém que as gentes arem e cavem e tirem o mal para que a
terra lhe dê os frutos dos quais vivam o cavaleiro e suas bestas. (LLULL, 2000, p.17).
Essa ordenação social está presente também quando Llull assinala que
Muitos são os ofícios que Deus tem dado neste mundo para ser servido pelos homens; mas todos os mais nobres, os mais honrados, os mais próximos dos ofícios que existem neste mundo são ofício de clérigo e ofício de cavaleiro; e por isso, a maior amizade que deveria existir neste mundo deveria ser entre clérigo e cavaleiro. (LLULL, 2000, p.25, grifos meus).
O filósofo distingue claramente a sociedade entre dois ofícios que são considerados
por ele os mais nobres: clérigo e cavaleiro, que fazem parte das duas primeiras ordens
sociais. Eram esses dois ofícios os responsáveis pela perfeita harmonia social, que, embora
fosse completada pelo trabalho dos laboratores, esses não tinham nenhuma função
transcendente como era a dos clérigos e nem protetora como a dos guerreiros. Mas é bom
lembrar que os próprios cavaleiros deveriam de acordo com o filósofo, respeitar as
hierarquias da nobreza, dividida segundo ele em imperador, rei, condes e outros nobres.
(ZIERER, 2008.).
Essa ordenação social e mais ainda essa ligação direta entre cavalaria e nobreza está
explícita quando Llull afirma que
Linhagem e Cavalaria se convêm e se concordam, porque linhagem não é mais que continuada honra anciã, e Cavalaria é Ordem e regra que se mantém desde o começo dos tempos em que foi iniciada, que adentrou até os tempos em que estamos. Logo, porque linhagem e Cavalaria se convêm, se fazes cavaleiro homem que não seja de linhagem, tu, por isto
que fazes, fazes serem contrários linhagem e Cavalaria. (LLULL, 2000, p.57).
Ramon Llull escreve no século XIII, época em que cavalaria e nobreza haviam se
fundido e tornado um só corpo social. A cavalaria tornava-se, portanto, um campo
exclusivo da nobreza.
É certo que, mal a dignidade cavaleiresca (...) começou a delinear-se como social e culturalmente importante (...), os príncipes da Europa feudal intervieram (...) para restringirem o acesso ao meio, embora heterogêneo, dos que estavam investidos do cingulum militare. (CARDINI, 1989, p.74).
Desse modo, as atividades do cavaleiro aproximam-se cada vez mais dos costumes da
nobreza.
O cavaleiro deve cavalgar, justar, lançar a távola, andar com armas, torneios, fazer távolas redondas, esgrimir, caçar cervos, ursos, javalis, leões, e as outras coisas semelhantes a estas que são ofício de cavaleiro; pois por todas essas coisas se acostumam os cavaleiros a feitos de armas e a manter a Ordem de Cavalaria. Ora, menosprezar os costumes e a usança disso pelo qual o cavaleiro é mais preparado a usar de seu ofício é menosprezar a Ordem de cavalaria. (LLULL, 2000, p.29, grifos meus).
Todos esses costumes, de que Llull fala, são costumes nobres, a nobreza tinha como
um de seus principais divertimentos a caça. E a caça do javali – por ser um animal feroz e
que demanda grande força e coragem para ser capturado – era exclusividade do nobre, o
camponês era proibido de caçar esse animal, a ele ficavam destinados animais de menor
“estirpe”, menos imponentes, menos “nobres”.
Além de tudo isso, o nobre é belo, o que significava ser bom, uma vez que Deus eram
bom e, antes de qualquer coisa, era belo. A beleza é sinal de nobreza. Ao contrário dela,
O camponês e tudo o que se referia a ele era apresentado como feio, sujo, grosseiro. (...). É bom frisar que o termo “vilão”, até hoje com significado pejorativo, significa o camponês livre, não totalmente sujeito ao seu senhor e com algumas diferenças com relação aos demais servos. (ZIERER, 2006, p.03).
Paralelamente a essa distinção social que lhe é proporcionada pelos atributos da
nobreza, com a constituição de uma ética e uma moral cavaleiresca, a elas irá juntar-se uma
ideologia religiosa.
A ética e a moral cavaleiresca estavam intimamente ligadas à questão da honra. O
cavaleiro deveria possuir as qualidades que o diferenciam das demais gentes, como a honra
e a coragem. Essas eram qualidades inerentes a ele, e a honra era o que mais valor tinha
para um cavaleiro.
Ao escudeiro que deseja Cavalaria convém saber a grande carga de Cavalaria e os grandes perigos que são destinados àqueles que desejam manter a Cavalaria; porque o cavaleiro deve mais hesitar perante a censura das gentes do que perante a morte; e vergonha deve dar maior paixão a sua coragem do que a fome, sede, calor, frio ou outra paixão e trabalho a seu corpo. (LLULL, 2000, p.61, grifos meus).
O ofício de Cavalaria não era um ofício qualquer, proporcionalmente a sua dignidade
era o seu fardo. E sobre todas as coisas que o cavaleiro temia perder, a honra era a principal
delas. Um cavaleiro, assim honrado, não seria sujo em suas palavras e suas vestimentas,
com cruel coração, avaro, mentiroso, desleal, preguiçoso, irascível e luxurioso,
embriagado, glutão, perjuro. (LLULL, 2000, p.63-65) e dessa forma seria considerado um
“bom cavaleiro”.
Desse modo, podemos fazer uma distinção entre os bons cavaleiros e os maus
cavaleiros através do seguinte quadro:
Quadro 1. Diferenças entre os bons e os maus cavaleiros.
BONS CAVALEIROS MAUS CAVALEIROS
POSSUIDORES DE VIRTUDES MERGULHADOS NO PECADO
PREOCUPADOS COM O ESPÍRITO DEDICADOS AOS PRAZERES DA
CARNE
NOBRES DE CORAÇÃO TINHAM UM CORAÇÃO CRUEL
HONRADOS EM SEUS DEVERES DESONRADOS EM SEUS DEVERES
DEDICADOS À FÉ PRESOS AO MUNDO
BONS CRISTÃOS MAUS CRISTÃOS
A cavalaria era caracterizada por sua atividade guerreira e conseqüentemente pela
violência advinda dela. É contra essa violência que se torna cada vez mais constante na
sociedade feudal, que a Igreja, ao longo dos séculos XI e XII, elabora os conceitos de Pax
Dei e Tregua Dei.
A Paz de Deus era a proibição de violência contra determinados locais (santuários,
hospícios, estradas) e contra as pessoas que não podiam se defender porque não portavam
armas (inermes): religiosos, mulheres desacompanhadas, camponeses. Já a Trégua de Deus
proibia o uso das armas em determinados dias da semana: impedia-se de combater entre a
noite de quinta-feira e a manhã de segunda.
Assim, embora sem proibir tout court a guerra (o que seria impensável numa sociedade em que se verificava uma supremacia de guerreiros), limitava-se a guerra o mais possível, submetendo-se às exigências de recuperação da vida social e econômica e da reforma da Igreja. (CARDINI, 1989, p.59).
A Igreja, desse modo, adentra cada vez mais nos assuntos da cavalaria, o que vai
culminar com a sua cristianização. Assim, para o escudeiro entrar na Ordem de Cavalaria,
convém que se confesse das faltas que fez contra Deus, ao qual quer servir na Ordem de
Cavalaria; e se estiver sem pecado, deve receber o precioso corpo de Jesus Cristo segundo
condiz. (LLULL, 2000, p.67).
A partir do século XIII, a cerimônia de investidura passa a adquirir formas de
sacramento:
Enquanto as cerimônias do revestir da armadura – que, apesar de alguns esforços nesse sentido, nunca tinham assumido um caráter verdadeiramente sacramental e nunca tinham sido celebradas nem na Igreja, nem na presença de religiosos (apesar de, em finais do século XIII, o Pontifical de Guilherme Durand fornecer uma sistematização litúrgica desses ritos) – vão adquirindo formas cada vez mais análogas às dos sacramentos e, em especial, do baptismo. (CARDINI, 1989, p.66).
A sagração do cavaleiro evidencia quão a Igreja se aproxima e cristianiza uma ordem
que antes era vista como mundana. Em consonância com os ideais religiosos, Ramon Llull
elabora um código de cavalaria que deveria ser seguido por todos aqueles que pretendiam
se tornar cavaleiros. Para isso, Llull defende a idéia de um cavaleiro ligado a valores
cristãos como o temor a Deus e “que saiba harmonizar o ofício de Cavalaria com as coisas
que pertencem à santa fé católica”. (LLULL, 2000, p.69).
A cerimônia de adubamento do cavaleiro, que é o revestir da armadura, é representada
pelo filósofo com toda uma simbologia. Defendendo ideais cristãos, o catalão afirma que o
escudeiro aspirante a cavaleiro deveria se confessar, jejuar e receber a eucaristia, e então:
O escudeiro diante do altar deve ajoelhar-se e levantar seus olhos, corporais e espirituais, a Deus e suas mãos a Deus. E o cavaleiro deve cingir-lhe a espada, para significar castidade e justiça; e, em significação de caridade deve beijar seu escudeiro e dar-lhe uma bofetada para que se lembre disso que prometeu e do grande cargo a que se obriga e da grande honra que recebe da ordem de cavalaria. (LLULL, 2000, p.73).
Depois de receber as armas – e tornar-se efetivamente um cavaleiro – de uma forma
que era, sem dúvida alguma, um sacramento, o cavaleiro deveria guiar-se pelos caminhos
de Deus através das virtudes que lhe eram necessárias.
Logo se desejas encontrar nobreza de coragem demanda-a a fé, esperança, caridade, justiça, fortaleza, lealdade, e nas outras virtudes, porque naqueles está nobreza de coragem, e por aquelas o nobre coração do cavaleiro se defende da maldade e do engano e dos inimigos da Cavalaria. (LLULL, 2000, p.55).
Era esse o modelo de cavaleiro que Llull propunha, um cavaleiro ideal porque cristão.
E, sendo um bom cristão,
Todo cavaleiro deve conhecer as sete virtudes que são raiz e princípio de todos os bons costumes e são vias e carreiras da celestial glória perdurável. Das quais sete virtudes são as três teologais e as quatro cardeais. As teologais são fé, esperança, caridade. As cardeais são justiça, prudência, fortaleza, temperança. (LLULL, 2000, p.89).
Das virtudes elencadas por Llull as principais são a fé e a fortaleza. A fé é importante
porque por ela o homem tem esperança e acredita em Deus. E a fortaleza é virtude que se
encontra no coração nobre contra os sete pecados mortais, que são carreiras pelas quais
vai-se aos infernais tormentos que não têm fim: glutonia, luxúria, avareza, preguiça,
(acídia), soberba, invídia, ira. (LLULL, 2000, p.95).
Observemos o quadro abaixo em que estão presentes as virtudes que os cavaleiros
deveriam conservar e os vícios a serem evitados.
Quadro 2. As virtudes e os vícios dos cavaleiros.
VIRTUDES VÍCIOS
Fé – com ela o homem vê Deus
espiritualmente.
Ira – é o turvamento do coração, o
esquecimento de Deus.
Esperança – faz ter confiança em Deus. Preguiça – é o vício do pouco trabalhar e
muito querer conseguir, esquecendo-se de
Deus.
Caridade – piedade pelos despossuídos. Soberba – é o vício da desigualdade, do
orgulho.
Justiça – contra injúrias e coisas tortas. Avareza – é o vício da maldade,
deslealdade, traição.
Prudência – é a virtude da sabedoria. Invídia – é o vício dos enganos e das
faltas.
Fortaleza – é a virtude contra os sete
pecados capitais.
Luxúria – é o vício dos prazeres
mundanos, da falsidade, traição.
Temperança – é a virtude da medida das
coisas, do equilíbrio.
Gula – é o excesso no comer, beber,
gastar demais.
É com o cumprimento dessas virtudes e o repúdio aos vícios que Llull elabora um
modelo de cavaleiro ideal, um cavaleiro que se guiasse pelos princípios cristãos e
constituísse, desse modo, um exemplo para a sociedade. O Livro da Ordem de Cavalaria é,
portanto, um manual de conduta e ensinamento para aquele que viria a ser um “bom
cavaleiro”, um cavaleiro fundamentalmente cristão. Desse modo temos uma oposição entre
os bons e os maus cavaleiros.
Esse modelo de cavaleiro aparece como uma resposta à violência que ocorria naquele
momento por parte da nobreza. Assim, com o controle dos cavaleiros a Igreja poderia
restabelecer a paz e propagar sua mensagem cristã de salvação, que era alcançada mediante
o bom comportamento e o cumprimento da fé.
Talvez essa construção de um cavaleiro perfeito tenha permanecido apenas como um
ideal elaborado por Ramon Llull. Uma nostalgia de tempos gloriosos dos quais aquela
sociedade não mais fazia parte.
Mas parece que Llull não foi um grito solitário, pois ele constrói uma idealização de
perfeição que não se concretiza numa figura específica de algum cavaleiro. No entanto,
essa concretização tomará corpo através da imagem de Galaaz, o maior exemplo de
cavaleiro perfeito porque cristão, presente na literatura da Idade Média.
3. A CONSTRUÇÃO DE UM IDEAL: GALAAZ, UM EXEMPLO DE PERFEITO
CAVALEIRO CRISTÃO.
Nesse terceiro capítulo analisaremos como é construído, na literatura arturiana, um
modelo de cavaleiro cristão, aqui representado por Galaaz. Esse cavaleiro é o eleito para
cumprir as aventuras do reino de Logres e recuperar assim a paz e a prosperidade, algo que
não acontece como veremos.
Inicialmente trataremos das origens da Demanda do Santo Graal, fonte que nos
apresenta um exemplo de cavaleiro perfeito. Esse texto faz parte do que ficou conhecido
como “Matéria da Bretanha”, que são as narrativas em torno do Rei Artur e de seus
cavaleiros.
3.1 A “Matéria da Bretanha”.
A Demanda do Santo Graal, fonte que utilizamos nesse capítulo, faz parte do que os
estudiosos chamam de “Matéria da Bretanha”. É assim chamada por compreender toda a
ficção literária em torno da figura lendária e mítica de Rei Artur e de seus cavaleiros da
Távola Redonda.
No entanto, não há nenhuma unanimidade a respeito dessas narrativas, muito pelo
contrário, elas provocam grande polêmica e inúmeras discussões entre os estudiosos
não só por causa da enorme quantidade de textos, muitos deles ainda inéditos, como também pelas numerosas versões de uma mesma obra, cada uma delas desfigurando o exemplar anterior, ao gosto do copista, que naqueles tempos se dava o direito de interferir na narrativa, restringindo-a ou ampliando-a em nomes de motivos nem sempre claros. (MONGELLI, 1992, p.55).
Alguns especialistas como Gastão Paris defendem que essa literatura surgiu no País
de Gales, visto que era um reduto no século XII da tradição céltica. Já Wendelin Foerster
defende uma origem francesa da literatura cavaleiresca, uma vez que as noções de amor e
as idéias de cavalaria são francesas. (LAPA, 1973, p.220).
Outros como o celticista Fernando Lot procurou conciliar essas duas teses afirmando
que a Bretanha francesa, Gales e Cornualha mantinham relações entre si, o que provocou o
desenvolvimento dessas lendas célticas. (LAPA, 1973, p.221).
O fato é que essa matéria chegou à Península Ibérica e isso nos interessa muito
intimamente, uma vez que o manuscrito com o qual trabalhamos é uma versão portuguesa
da Demanda que foi traduzido de um original francês no último quartel do século XIII.
Essa fonte é a única cópia hoje existente e conserva-se no códice 2594 da Biblioteca
Nacional de Viena.
A Demanda do Santo Graal constitui a terceira parte de um tríptico, a segunda
prosificação da Matéria da Bretanha, que é chamado de Post-Vulgata ou ciclo do Pseudo-
Robert de Boron. As duas primeiras partes são: O Livro de José de Arimatéia e Merlim. A
primeira prosificação dos romances em verso é chamada de Vulgata ou ciclo do Pseudo-
Map e é composta, além dos três livros com o mesmo título acima citados, de O Livro de
Lancelot do Lago e A Morte de Artur. Observemos o quadro abaixo:
Quadro 3. A “Matéria da Bretanha”: Origens da Demanda do Santo Graal.
ROMANCE EM VERSO 1º PROSIFICAÇÃO 2º PROSIFICAÇÃO
ROBERT DE BORON (séc. XII)
GRANDE CICLO DA VULGATA OU DO LANCELOT-GRAAL OU CICLO DO PSEUDO-MAP.(1215-1230).
POS-VULGATA (1230-1240) OU CICLO DO PSEUDO-ROBERT DE BORON.
L’EST DOU GRAAL L’ESTOIRE DU SAINT GRAAL
O LIVRO DE JOSÉ DE ARIMATÉIA
LE LIVRE DE MERLIN L’ESTOIRE DE MERLIN MERLIM COM SUAS CONTINUAÇÕES
DIDOT-PERCEVAL LE LIVRE DE LANCELOT DU LAC
-------
LA QUEST DEL SAINT GRAAL
A DEMANDA DO SANTO GRAAL
LA MORT D’ARTUR --------
O ciclo da Vulgata constitui a primeira prosificação dos romances em verso de Robert
de Boron. Seu primeiro título, A Estória do Santo Graal, relata as origens do santo vaso e a
sua chegada ao Ocidente; A Estória de Merlim é o livro sobre esse mago que profetiza a
chegada do cavaleiro eleito e as aventuras do Graal; O Livro de Lancelot do Lago narra as
aventuras desse cavaleiro; A Questão do Santo Graal é um romance profundamente
religioso com o cavaleiro eleito que chega ao Graal; e A Morte do Rei Artur é um relato
sobre o fim do seu reino e de sua vida.
No ciclo da Pós-Vulgata, que constitui a segunda prosificação, há uma distribuição
diferente da matéria e também uma simplificação. É composto por uma trilogia da qual faz
parte a fonte que analisamos aqui. Nesse ciclo foi eliminado O Livro de Lancelot do Lago e
houve uma redução de A Morte de Artur que foi acoplado à Demanda. A trilogia inicia-se
com o Livro de José de Arimatéia que é praticamente o mesmo texto da Estória do Santo
Graal; a segunda estória é a de Merlim que relata o casamento de Artur com Genevra e
anuncia a vinda de Galaaz; o último título da Pós-vulgata é o que nos interessa: A Demanda
do Santo Graal.
O fato é que esse tipo de literatura chegou a Portugal, pois realizaram-se no último
quartel do século XIII, talvez já na corte de D. Afonso III, traduções de romances franceses
em prosa do ciclo da Demanda do Graal e talvez de outros. (SARAIVA e LOPES, 1978,
p.88-89).
As estórias do ciclo arturiano não se restringiram somente a Portugal, elas chegaram
também a toda a Península Ibérica. Essa literatura foi conhecida na Península
especialmente depois do casamento de Afonso VII de Castela, em 1170, com Leonor
Plantageneta, filha de Henrique II da Inglaterra. (LAPA, 1973, p.222).
Também fazem parte da Matéria da Bretanha os escritos de Chrétien de Troyes, entre
os quais analisamos no capítulo um, Lancelot, o Cavaleiro da Charrete. Mas Chrétien
possui uma obra que está intimamente ligada a Demanda, é o Perceval, ou o Conto do
Graal. É nesse romance que será desenvolvido o tema do Graal, que, na obra do
romancista, assume a forma de um vaso sagrado com a função de alimentação e
manutenção da vida.
O herói que dá título ao romance, após várias aventuras, até mesmo amorosas, chega
ao castelo do Rei Pescador, que era guardião do Graal e sofria de uma grande enfermidade.
Estando no castelo real, Perceval vê passar diante de si um cortejo iniciado por uma lança
branca da qual escorria sangue, seguido do graal trazido por uma donzela.
Mesmo ardendo de curiosidade, o cavaleiro não pergunta absolutamente nada sobre o
significado daquele acontecimento, pois havia sido recomendado por um velho guerreiro
que deveria ser discreto e que só perguntasse quando fosse indispensável.
Como privou-se de perguntar, o rei não se curou de sua grave doença e Perceval
acordou sozinho no castelo. Chrétien não terminou seu romance, pois morreu antes disso.
Esse Perceval do Conto do Graal tem muito pouco da pureza que irá adquirir na
Demanda. No Conto, Perceval não evita os prazeres da carne. Talvez tenha sido por isso
que, na Demanda do Santo Graal, ele tenha sido substituído por Galaaz, um cavaleiro
imaculado que conhecerá o significado do Santo Vaso e o rei Pescador finalmente obterá a
sua cura.
A respeito do Graal, há várias explicações e linhas de interpretação sobre a sua
origem, que é de fato bastante instigante.
Não está assente onde se teria originado o culto do Graal, simbolizado ora por um vaso, como na nossa novela, ou por uma pedra preciosa, como no poema de Wolfram d’Eschenbach. Supõe alguns, entre eles Bardach,, que os primeiros esboços do Graal nasceriam em Jerusalém, entre o círculo de peregrinos cristãos, nos séculos V e VI, ao contacto de lendas persas e arábicas. De Jerusalém a fábula passaria para Constantinopla e, depois da primeira cruzada, para a Europa, onde, na Provença ou na Bretanha, teria tomado a forma definitiva. Outros, como
Jean Marx, acentuam a origem e o carácter céltico da lenda. Grande número de contos galeses e irlandeses têm por objectivo a conquista de objetos maravilhosos do outro Mundo. Entre esses objectos figuravam taças e vasos mágicos, que alimentavam as pessoas sem jamais se esvaziarem. (LAPA, 1973, p.239).
Quanto à origem celta do mito do Graal, ele teria se originado do tema do caldeirão:
Na mitologia céltica existem dois tipos de caldeirão: o caldeirão do renascimento e o caldeirão da abundância. Dagda, o pai de todos os deuses, possuía um caldeirão proveniente da cidade de Múrias. Ao provar dele ninguém passava fome. (...). No poema galês Preiddeu Annwn (Os Despojos do Outro Mundo), composto entre os séculos VIII e IX, o rei Artur e seus companheiros tentam inutilmente buscar numa expedição o caldeirão da abundância, representante da realeza e autoridade. (...). Havia ainda um terceiro caldeirão entre os celtas, o caldeirão do sacrifício, no qual os maus monarcas eram jogados. (ZIERER, 2001, p.08-09).
Com a cristianização do Graal, ele vai tomar a forma de um vaso ou taça,
relembrando o cálice da Última Ceia. Esse objeto sagrado, além de servir como alimento
material e espiritual, era também um elemento de articulação entre o povo escolhido e
Deus.
Em Merlim, além de acoplar o Graal e Merlim, uma vez que é esse mago e profeta
que preparará o povo da Bretanha para a vinda do cavaleiro eleito à “dar cima” às aventuras
do Reino de Logres, há também uma interligação entre as três mesas, a mesa do Graal, a
mesa da ceia de Cristo e a terceira mesa que é a Távola Redonda, fundada pelo rei Artur:
E Nosso Senhor ordenou que fizesse uma mesa, no modelo daquela mesa da ceia, e colocasse sobre ela o vaso (...). Nesta mesa estavam todos desejosos de tomar assento. Havia sempre um lugar vazio, em lembrança do lugar em que Judas sentou na ceia, quando ouviu o que Nosso Senhor lhe disse. E ele renunciou à companhia de Nosso Senhor e seu lugar ficou vazio até que Nosso Senhor e os apóstolos elegeram outro para ocupar seu lugar, para inteirar a conta dos doze. Essas duas mesas estão, pois, em perfeita concordância e desse modo Nosso senhor, na segunda mesa, cumula os homens com sua graça. Essa é a razão pela qual as pessoas chamam Graal a este vaso que vêem e do qual recebem essa graça. E, se quiserdes seguir meu conselho, instituireis a terceira mesa, em nome da Trindade, cujas três pessoas estarão representadas nessas três mesas. (BORON, 1993, p.122-123).
Já estava anunciado que viria um escolhido e o mais importante é que ele havia sido
eleito por Deus. Ele ocuparia um assento que representava um lugar entre os doze
apóstolos, participando dessa forma não só da mesa do Graal como também da mesa da
Última Ceia. A Távola Redonda completaria com as duas outras mesas um trio que
representava a Santíssima Trindade e conteria também um lugar vazio, do qual era dono um
verdadeiro “cavaleiro de Cristo”, o mancebo Galaaz.
Mas a exemplo do santo Vaso, a Távola Redonda também possui uma origem nas
tradições célticas. A mais geral é a da “Mesa dos Festins”. Em determinadas regiões e em
determinadas ocasiões, essa mesa podia justamente ter forma redonda. (FOUCHER, 1991,
p.16).
Como a Demanda foi cristianizada, a mesa da corte de Artur vai adquirir
correspondências com a mesa da Última Ceia e a mesa do Graal, como já foi dito
anteriormente. É assim que a Távola Redonda será dotada de um grande caráter moral
sobre os cavaleiros que dela participam.
Os cavaleiros que nela tomam lugar vêem-se imediatamente unidos, desde a primeira refeição em comum, por tão grande afeição que jamais desejarão separar-se. A partir daí, amam-se “como um filho deve amar o pai”. Sentar-se à Távola Redonda para participar de seus benefícios expressa então o ideal da cavalaria. (FOUCHER, 1991, p.17).
Na Demanda do Santo Graal, há, pois, a presença desses dois elementos, a Távola e o
Graal, além de outros elementos com forte carga simbólica. Sob esses e muitos outros
aspectos, a Demanda é um texto bastante rico no que diz respeito ao conhecimento que
podemos obter da Idade Média.
Nessa novela de cavalaria do século XIII, o núcleo principal que é a busca do Graal, é
direcionado para todos os cavaleiros que “juram” a demanda, embora apenas poucos
cheguem a cumpri-la. É por isso que, no decorrer da narrativa, serão distinguidos os “bons”
dos “maus” cavaleiros. Esses últimos sucumbem principalmente aos pecados da carne,
enquanto os primeiros conseguem resistir às tentações e manter-se fiéis ao seu propósito
espiritual de encontrar o Santo Vaso.
Segundo Rodrigues Lapa, a idéia central da narrativa continua a ser o mistério da
eucaristia, alimento espiritual e prelibação da vida eterna; e a Demanda é, em última
análise, a sede infinita das almas à procura de Deus, do sumo Bem. (LAPA, 1973, p.239).
E ainda de acordo com José Saraiva e Oscar Lopes:
A obra tem uma intenção religiosa e representa, relativamente à moral cortês, que inspira os cantares de amor, uma completa inversão de valores. Ao passo que na lírica cortês, como em todo o romance cortês anterior a esta fase, se exalta o amor como o caminho para a felicidade e a perfeição moral, na Demanda todo o amor é considerado pecaminoso, e a virgindade recomendada como o estado mais perfeito. O antigo herói, modelo de cavaleiros e amantes, Lançarote do Lago, vê-se eclipsado por seu filho, que é também a sua réplica, Galaaz, o qual não conheceu nunca mulher. (SARAIVA e LOPES, 1978, p.91).
É assim que, nessa novela da Matéria da Bretanha, os feitos de cavalaria e os enlaces
amorosos foram profunda e inteiramente adaptados a uma intenção religiosa. Portanto, o
que há de importante não são as lutas cavaleirescas por si só, mas o quanto elas significam
na aproximação com Deus.
É interessante observar que a narrativa foi estruturada em forma de novela, ou seja, há
uma multiplicidade de células dramáticas com ação, tempo e espaço que permitem um
encadeamento lógico entre si. Desse modo,
Observa-se o entrelaçamento sistemático e complexo das “aventuras”: os cavaleiros, por morte ou temporário afastamento, cedem lugar a outros, que protagonizam as suas “aventuras”, sendo, por sua vez, substituídos por terceiros, e assim por diante. A novela forma-se, portanto, da agregação de unidades dramáticas permanentemente abertas. (MOISÉS, 2004, p.322).
Organizada dessa forma e estruturada de uma maneira que chama a atenção do leitor,
a matéria não possui um narrador, é o texto que toma a palavra para falar de si: “Ora diz o
conto que...”, “Ora deixa o conto falar de...”.
De acordo com Tzevetan Todorov, há dois tipos de episódios na Demanda, uma vez
que a interpretação está incluída na própria trama narrativa. Uns e outros episódios se ligam
(sem nunca se identificar entre si) por isto de comum: os sinais, assim como sua
interpretação, não são outra coisa senão narrativas. (TODOROV, 2006, p.171).
A novela é recheada de aventuras nas quais os cavaleiros ingressam para provar-se e
assim almejarem atingir o Graal. É assim, pois, que cada aventura é ao mesmo tempo uma
aventura real e o símbolo de outra aventura (TODOROV, 2006, p.175). Desse modo, os
cavaleiros passam por diversas “provas” de aventuras que servem, na verdade, para que
eles conheçam a si próprios.
O que é narrado na Demanda é uma matéria totalmente diferente dos romances
corteses. No romance cortês, como vimos no primeiro capítulo, o que importavam eram as
aventuras do cavaleiro para provar seu valor diante da dama. Essas aventuras bastavam por
si mesmas para que o cavaleiro tivesse seu mérito reconhecido.
Na Demanda as aventuras não são o suficiente para enaltecer o cavaleiro, na verdade,
ele nem está preocupado em receber a glória de seus feitos, pelo menos se estiver realmente
comprometido com sua busca espiritual. E é esse tipo de cavaleiro o modelo proposto na
obra. Ele não deveria importar-se com as coisas mundanas, sua única preocupação era a
salvação de sua alma.
Na DSG, podemos observar a conjugação de vários elementos da cavalaria medieval
como, por exemplo, a busca de aventura, a proteção de donzelas em perigo, a lealdade
entre companheiros de batalha (SOUZA, 2007, p.55). Mas há também o contrário de tudo
isso: donzelas que eram defloradas, cavaleiros que buscavam por glórias vãs, companheiros
que se enfrentavam em combates e acabavam matando uns aos outros.
A sua mensagem maior é a busca de Deus, é o cavaleiro encontrar o Santo Vaso, que
era uma “cousa maravilhosa”. Mas completar essa missão é um cargo destinado a poucos,
somente três chegarão até ele: Persival, Boorz e Galaaz. E somente este último conhecerá
seu significado.
A novela tem, portanto, um caráter místico, religioso, messiânico. Ela constitui uma
busca, uma demanda, dos cavaleiros pelo Graal, no qual se acreditava conter o sangue de
Cristo. Muitos partem nessa demanda porque a haviam jurado, mas poucos são os
realmente comprometidos na sua busca. E, por isso, muitos perecerão. Dos três que chegam
ao Santo Vaso somente Boorz retorna à corte de Artur e ainda assim deixará sua vida de
cavaleiro tornando-se ermitão.
A narrativa que é a última parte dos relatos sobre o rei de Camaalot, também conta de
seu fim: Artur morre, mas sempre lutando, pelas mãos de seu sobrinho Morderet12. O reino
e tudo que o mantinha acaba, as linhagens dos nobres cavaleiros enfrentam-se em combate
mortal13. Tudo parece desmanchar-se no ar, não sobra pedra sobre pedra, exceto por uma
coisa, parece haver uma única esperança: Artur foi levado, mortalmente ferido, por
Morgana, a fada, sua irmã e seu corpo nunca foi encontrado.
Daí que surgiu o messianismo em torno de Rei Artur, o valoroso rei que lutou contra
os saxões e defendeu a Bretanha. Esse messianismo chega também a outros países como
Portugal, onde se espera a volta de D. Sebastião, o Encoberto, que trará a todos a paz e a
prosperidade. Prolonguemos esse messianismo ao nosso desejo de que surja um governante
bom e honrado, capaz de resolver os problemas do povo e proporcionar uma boa vida aos
cidadãos.
Mas falemos agora das “aventuras que de contar são” dos cavaleiros, especialmente
de Galaaz, o cavaleiro perfeito.
3.2 “O Melhor Cavaleiro do Mundo”, um Cavaleiro Cristão.
É assim que Galaaz é conhecido, como o “melhor cavaleiro do mundo”. Sua vinda
tinha sido profetizada há muito tempo, como vimos anteriormente. É ele, pois, que dará fim
às aventuras do Reino de Logres.
A cena não poderia ser mais apoteótica, o cavaleiro entra no palácio de tal forma que
só vem confirmar a sua predileção entre todos os cavaleiros da Távola Redonda:
Êlos em êsto falando, cataram e vírom que tôdalas portas do paaço se çarrarom e tôdalas frestas, pero que nom escoreceu porende o paaço, ca entrou i uũ tal raio de sol, que per tôda a casa se estendeu; | e aveo entam ũa gram maravilha, [ca] nom houve tal no paaço que nom perdesse a fala;
12 Na Demanda é somente nesse momento da morte do rei que Morderet é caracterizado como seu filho, mas não há nenhuma explicação a respeito. 13 Heitor Megale, em sua obra O Jogo dos Anteparos – a demanda do santo graal: a estrutura ideológica e a construção da narrativa, analisa como o reino de Artur se mantinha através de suas linhagens e como chega ao fim quando elas entram em conflito.
catavam-se uũs aos outros, e nom podiam rem dizer, e nom houve i tal que saísse da seeda, enquanto êsto durou. Aveo que entrou Galaaz (…). (DSG, 1955, p.19, v.I).
Tudo isso aconteceu no dia de Pentecostes, no qual a corte do Rei Artur estava toda
reunida. Era comum que nessas ocasiões, em dias de festas religiosas, como Pentecostes,
Natal, Candelária14, o rei convocasse todos os seus barões e cavaleiros. Nesses momentos,
o soberano demonstrava toda a sua “largueza”, distribuindo presentes entre os súditos e
proporcionando grandes prazeres de comida e bebida.
Véspera de Pinticoste, foi grande gente assũada em Camaalot, assim que poderá homem ali veer mui gram gente, muitos cavaleiros e muitas donas mui bem guisadas. El-rei, que era ende mui ledo, honrou-os muito e feze-os mui bem servir, e tôda rem que entendeu per que aquela côrte seria mais viçosa e mais lêda, todo o fêz fazer. (DSG, 1995, p.03, v.I).
A largueza, por sinal, era uma das três virtudes mais importantes que um cavaleiro
deveria possuir. Esta realiza o gentil-homem, instaura a distinção social. (...). o cavaleiro
tem o dever de nada reter em suas mãos. Tudo o que lhe chega ele dá. De sua
generosidade haure a força que possui e o essencial de seu poder. (DUBY, 1987, p.120-
121). Ela significava muito mais do que a generosidade que exprimia, era um desprender-se
das coisas materiais.
Chegando acompanhado de um raio de sol, que significa luz, iluminação não só
material como espiritual, Galaaz é confirmado como o cavaleiro que durante muito tempo
teve sua espera aguardada e profetizada: - Deus, beento sejas tu, que te prouve de tanto
viver eu, que eu, em minha casa, visse aquêle onde tôdolos profetas desta terra e das
outras profetizarom, tanto gram tempo há já. (DSG, 1995, p.21, v. I).
É possível já perceber as relações claras entre o cavaleiro esperado e Cristo. Assim
como o filho de Deus, que teve sua vinda anunciada pelos profetas como o Messias que
viria libertar o povo eleito, Galaaz também tem uma vinda predita e com um propósito:
“dar cima às aventuras do reino de Logres”. Suas primeiras palavras ao entrar no paço são
“A Paz esteja convosco”.
14 Candelária era a festa celebrada no dia 2 de fevereiro, da Purificação de Nossa Senhora. Ela possui esse nome em referência ao uso de velas na sua procissão.
Sua origem era também muito nobre, pois descendia maternamente dos reis de
Corberic – investidos da sagrada função de guardiões do Graal. Do lado paterno provém da
linhagem do Rei Bam, bastante temida e admirada por todos que prezavam cavalaria. Seu
pai, Lançarot do Lago, era o mais ilustre representante dessa estirpe de valorosos
guerreiros. É dele que Galaaz herdará não somente a destreza das armas e os feitos
cavaleirescos, como também o título de “o melhor cavaleiro do mundo”. Aliás, consegue ir
mais longe que seu pai, pois é reconhecido como o “melhor dos melhores”.
Essa era a sua linhagem terrena, pois, como “santa cousa e santa creatura” que era,
possuía também uma ascendência de grande valor espiritual: (...) o cavaleiro desejado,
aquel que vem do alto linhagem del-rei David e de Joseph Daramatia, per que as
maravilhas desta terra e das outras haverám cima. (DSG, 1955, p.19, v.I).
A partir dessas informações, podemos traçar uma genealogia simplificada de Galaaz:
Quadro 4. Genealogia de Galaaz.
No entanto, mesmo descendendo de tão alta estirpe, o cavaleiro esperado carrega uma
grande mácula. Ele é fruto de uma relação sortílega entre Lancelot e a filha do Rei Peles,
GALAAZ
Rei Peles
Filha
Eliezer
Elena x Rei Bam
?
Lancelot
não fosse isso suficiente, os seus pais não se casam e ele torna-se, portanto, um bastardo.
Mas ainda assim é merecedor da graça divina.
Ca Deus, que te fêz nascer em tal pecado, como tu sabes, por mostrar seu gram poder e sa gram virtude, te outorgou – per sua piedade e pela boôa vida que tu começaste de tua meninice ataaqui – poder e força e bondade de armas e de ardimento sôbre tôdolos cavaleiros que nunca trouxerom armas no regno de Logres; assi que tu daras cima tôdalas outras maravilhas e aventuras, u tôdolos outros falecerom. (DSG, 1955, p.07, v.I, grifos meus).
Galaaz – mesmo manchado pelo pecado de seus pais – recebe por piedade divina, mas
também porque manteve uma boa vida (entende-se por uma vida regrada no cristianismo)
desde a infância, a superioridade nas armas e na coragem sobre todos os cavaleiros, que, ao
contrário dele foram feitos, em “leal casamento”.
É das mãos de seu pai que Galaaz tornar-se-á cavaleiro. Não poderia ser de outro, pois
Lancelot era “o melhor do mundo” e o mais honrado de cavalaria. Ele era um
Modelo ideal de comportamento, admirado e imitado por quantos amavam a boa cavalaria, para ele dirigiam-se aqueles que almejavam, desde o momento de adubação, uma vida cavaleiresca cercada de glória. Por isso, dele, só dele, deveria partir o ato que introduziria, no seio da cavalaria, aquele a quem estava destinada a maior das honras terrenas: o seu filho, Galaaz. (PEREIRA, 1996, p.86).
A sagração do cavaleiro. Miniatura do século XIV, BNF. Consultado em:
http://medieval.mrugala.net/Seigneurs%20et%20nobles/Adoubement%20de%20chevalier
.htm
A primeira aventura que o cavaleiro eleito terá que acabar é a da “seeda perigosa”.
Nela estava escrito que passados CCCCLIII anos da morte de Cristo, completados naquele
dia de Pentecostes, o seu dono seria conhecido. O ermitão havia dito que muito cedo seria
visto o “bom começo” de sua cavalaria. É assim que Galaaz toma assento na “seeda
perigosa” e é recebido por todos como o “benvẽúdo”.
Sua segunda aventura traz nítidas semelhanças com o processo de legitimidade de
Artur como rei: retirar uma espada de uma pedra. Semelhante processo acontece com a
“espada da estranha cinta” que lhe confere grandes poderes de armas. Ao desafio da
primeira espada que Galaaz tem que retirar, o rei convoca dois de seus melhores cavaleiros,
seus homens de confiança, Lancelot e Galvam. O primeiro se recusa, afirmando que não é
tão bom cavaleiro para vencer uma prova como essa. Galvam é então mandado pelo rei
para provar a espada e, mesmo reconhecendo que não cumprirá a tarefa, tenta consegui-lo e
fracassa.
Essa grande “maravilha” estava reservada a outro cavaleiro. Entom filhou Galaaz a
espada polo mogoram e tirou-a tam ligeiramente, como, se naum tevesse em rem. (DSG,
1955, p.25, v.I). Essas primeiras aventuras funcionam para confirmar a eleição de Galaaz
como aquele que foi escolhido por Deus e que vai “dar cima nas aventuras do Graal”. Com
essas aventuras ele ganha o reconhecimento dos outros cavaleiros e reafirma a sua
predileção.
Galaaz tem a oportunidade de demonstrar seu valor de armas quando o rei convoca os
cavaleiros para os trabalhos no campo de Camaalot. E Galaaz, que entrou no campo,
começou as lanças a britar e a derribar cavaleiros, e a fazer tantas maravilhas que todos
diziam que nunca virom tam boõ cavaleiro de justa. (DSG, 1995, p.27, v.I).
Depois de confirmar que era o eleito de Deus através de “aventuras maravilhosas”, o
cavaleiro partiu para um desafio essencialmente terreno, que constituía o cotidiano da vida
guerreira: um combate. E nessa luta armada, da qual participavam os maiores cavaleiros –
os da Távola Redonda –, Galaaz prova que, além de terminar as “aventuras maravilhosas”,
era também capaz de vencer desafios substancialmente humanos.
Não havia mais o que provar, ele possuía os feitos de armas e os feitos
“maravilhosos”, conseguia assim a outorga divina e a terrena.
Tão “santa cousa e honrada” era Galaaz, que ele aparece, desde o início da narrativa,
acompanhado de um ermitão. Esses homens santos afastavam-se do mundo secular e
refugiavam-se principalmente em florestas, onde se dedicavam ao serviço de Deus.
É um ermitão quem dará o vaticínio de que a demanda do Santo Graal só começará
quando Galaaz chegar à corte de Artur. E como uma espécie de testemunha de seus feitos,
ele pede a Galaaz que o deixe acompanhá-lo: e eu te demando ta companha, assi como tu
ouves, que eu sei tua santa vida e ta bondade mais ca tu. E meterei em escrito tôdalas
maravilhas que Deus mostrará por teu amor [em] esta Demanda. (DSG, 1955, p.07, v.I).
Os eremitas, que são homens santos, tinham também uma participação muito
importante nas aventuras dos cavaleiros, pois eram eles quem as interpretavam. Eles
constituíam, portanto, uma categoria à parte: eram os detentores do sentido. Os cavaleiros,
por sua vez, eram os detentores da ação.
Os detentores do sentido formam uma categoria à parte entre os personagens: são os “santos homens”, eremitas, abades e reclusas. Assim como os cavaleiros não podiam saber, estes não podiam agir; nenhum deles participará de uma peripécia: salvo nos episódios de interpretação. (TODOROV, 2006, p.170).
A função desses homens santos torna-se clara quando eles explicam o significado das
aventuras e das coisas maravilhosas que acontecem aos cavaleiros. As aventuras não são
simples aventuras, e sim significância de outras coisas:
Eu vo-lo direi, disse o homem boõ. O corpo do cavaleiro nos faz entender o pôboo, que vivera sob aquela dureza, grã tempo, dos coraçoões, assi que êles eram mortos e confundudos por muitos pecados mortaes, que haviam sobre si achegados e acrescentavam sobre si dia em dia. (...). Assi podedes entender em esta aventura a significança da paixom de Jesu Cristo e a relembrança da sua santa vida. (DSG, 1995, p.81-83, v.I).
Quando o Graal chega à corte arturiana, ele provoca entre os que compartilharão de
seu maravilhoso manjar a satisfação plena dos desejos de seus corações. A sua entrada,
assim como a de Galaaz, é acompanhada de grande claridade:
Contra a noite, depois de vésperas15, quando se assentarom aas mesas, ouvirom viĩr uũ torvam tam grande e tam spantoso, que lhes semelhou que todo o paaço caía. E logo depois que o torvam deu, entrou ũ atam grande claridade, que fêz o paaço dous tanto mais claro ca era ante. E quantos no paaço siam, logo todos forom compridos da graça do Spiritu Santo e começarom-se a catar uũs aos outros, e virom-se mui mais fremosos mui gram peça que soíam a seer, e maravilharom-se ende muito desto que aveo, e nom houve, tal, que podesse falar por ũa gram peça, ante siam balados e catavam-se uũs aos outros. E eles assi sendo, entrou no paaço o Santo Graal, cuberto de uũ eixamete branco; mas nom houve i tal, que visse quem no tragia. E tanto que entrou i, foi o paaço todo comprido de boõ odor, como se tôdalas spécias do mundo i fôssem. E êle foe per meo do paaço, de ũa parte e da outra, derredor das mesas. E per u passava, logo tôdalas mesas eram compridas de tal manjar, qual em seu coraçom desejava cada uũ. E depois que houve cada uũ o que houve mester a seu prazer, saiu-se o Santo Graal do paaço, que nhuũ nom soube que fora dele, nem por qual porta saíra. E os que ante nom podiam falar, falarom entam. E derom graças a Nosso Senhor, que lhes fazia tam grande honra e que os assi confortara e avondara da graça do Santo Vaso. (DSG, 1995, p.31, v.I, grifos meus).
O Graal proporcionava, assim, para quem comungava de sua bênção, uma satisfação
material e espiritual. “Todos foram preenchidos pela graça do Espírito Santo” e nesse
momento passaram a perceber que eram maravilhosas criaturas de Deus. O Graal é o
15 Vésperas era a hora canônica correspondente a 18 horas. Havia também a hora de prima (6 horas), terça (9 horas), sexta (12 horas), noa (15 horas), completas (21 horas), matinas (24 horas) e laudes (3 horas).
espírito que alimenta a matéria e transforma-se em matéria – “boõ odor”, “spécias do
mundo”, “manjar” – para alimentar o espírito humano. Ele é um foco de força que mantém
a vida do reino. Mais do que isso, é o fiel da balança, direção reguladora, enquanto está
na Terra. (MEGALE, 1992, p.49).
A demanda do Santo Graal tinha agora começado. E os cavaleiros juram que jamais
nom quedariam de andar, ataa que vissem atal mesa e tam saborosos manjares e atam
guisados, como eram aquêles que êles aquel dia comerom, se era cousa que lhes
outorgada fosse, por afam e por trabalho que sofrer podessem. (DSG, 1995, p.33, v.I,
grifos meus).
A missão dos cavaleiros era árdua, eles próprios reconhecem que só poderiam
cumpri-la se a eles fosse outorgada e se pudesse agüentar todo o sofrimento advindo dessa
busca, assim como suportar o trabalho que ela exigia. Por isso, poucos conseguirão. E uma
das mais fortes razões para que tantos fracassassem é o pecado da carne, que fora prevenido
pelo ermitão:
Cavaleiros da Távola redonda, ouvide. Vós havedes jurada a demanda do Santo Graal. E Naciam o ermitam vos envia dizer per mim, que nhuũ cavaleiro desta demanda nom leve consigo dona nem donzela, senam fará pecado mortal. E nom seja tal que i entre, se nam fôr bem menfestado, ca em tam alto serviço de deus como êste, nom deve entrar se nom fôr bem menfestado e bem comungado e limpo e purgado de tôdolos cajoões e de pecado mortal. (DSG, 1995, p.43, v. I).
E logo Naciam explica o porquê da condenação dos prazeres mundanos, aos quais os
cavaleiros estavam tão habituados:
Ca esta demanda nom é de taes obras, ante é demanda das puridades e das cousas ascondidas de Nosso Senhor, que fará veer conhocidamente ao bem-aventurado cavaleiro que el scolheu por seu sargente antre tôdolos cavaleiros terreaes, ao qual mostrará as grandes maravilhas do Santo Graal e lhe fará veer o que coraçom mortal nom poderia pensar nem língua de homem nom poderia dizer. (DSG, 1995, p.43, v.I).
Se antes Galaaz já havia sido diferenciado dos outros cavaleiros, aqui sua distinção
torna-se mais evidente, pois ele é o que foi escolhido como “servente de Deus” para
conhecer o que jamais um mortal coração poderia imaginar. Galaaz vai se afastando cada
vez mais dos outros cavaleiros e adquirindo uma crescente áurea espiritual e santa.
Nem mesmo Galvam, o tão amado sobrinho do rei, chegará às maravilhas do Santo
Vaso. Ele é, na verdade, o contrário de Galaaz, pois é perjuro, desleal, traidor, por suas
mãos virão grandes mortes aos cavaleiros que juraram a demanda. Isso é predito pela
donzela laida:
Sabede que esta spada, que ora veedes tam fremosa e tam limpa, será tôda tinta de sangue caente e vermelho, tanto que a tever na maão aquel que fará a maravilha de matar cavaleiros em esta demanda mais que outrem. Esta spada trouxe eu aqui polo conhocerdes e pólo fazerdes aqui ficar, ca, sem falha, se êle i vai, tanto de mal e de pesar averrá ende e tanta mortura de homeẽs boõs. (DSG, 1955, p.35-37, v.I).
A participação de Galvam é, portanto, vaticinada como catastrófica, dela virão muitas
desgraças, mas ainda assim ele não desiste de entrar na demanda. Ele realmente mata
muitos de seus companheiros e, na maioria dos casos, é por deslealdade.
Galvam constitui-se, então, como um mau cavaleiro, distante dos propósitos divinos,
ligado intrinsecamente ao mundo terreno e aos valores que são prezados por ele. De modo
geral, o comportamento dos cavaleiros os revela mais inclinados a atender desvios do
padrão religioso do que a cumprir os deveres por ele impostos. (MEGALE, 1992, p.67).
Assim como Galvam, Lancelot é outro que não consegue atingir o Graal. Seus
problemas não dizem respeito à ética ou à moral cavaleirescas, e sim aos pecados da carne.
A luxúria, a prevaricação, a entrega do corpo aos prazeres mundanos é o seu desvio fatal do
caminho do Santo Vaso.
Lancelot mantinha uma relação adúltera com Genevra, esposa do rei Artur. Seu
pecado era, portanto, duplo, expansivamente mais grave que de outros cavaleiros: cometia
adultério e ao mesmo tempo traía o rei, seu senhor. Lancelot fere um dos princípios básicos
da cavalaria – a fidelidade. Por tudo isso é advertido sobre os sofrimentos que virão de seu
pecado:
Em vão entraste na demanda do Santo Graal, e tu nom acharás i sena monta, que sôbre ti vinrá, se te nam quitas dêste pecado. (...). E sabe que nhuũ coraçom mortal nom poderia pensar a grã door e a grã mizquindade que tu porém sofrerás, por pouco sabor e por pequeno que tu ende houveste, ca atal é a pendença dêste pecado, que o sabor é mui pequeno e a cuita e a door é perdurável. (DSG, 1995, p.295, v.I).
O “melhor cavaleiro do mundo” tem uma imagem de como será seu castigo através da
visão em que a rainha sofre as penas do inferno:
E el catava na cova e viia ũa gram cadeira de fogo assi acesa como se i ardesse todo o fogo do mundo. E em meo daquele fogo [stava] ũa cadeira em que siia a rainha Genevra tôda nua e suas maãos ante seu peito, e siia ascabelada e havia a língua tirada fora da bôca, e ardia-lhe tam claramente como se fôsse ũa grossa candea, e havia na cabeça ũa coroa de espinhas, que ardia a gram maravilha, e ela meesma ardia de tôdas partes ali u siia. Mas ela fazia uũ dôo tam grande e dava ũas vozes tam grandes e tam dooridas, que bem semelharia a quem na ouvisse que por todo o mundo era ouvida. (DSG, 1955, p.291-293, v.I).
Na Demanda, portanto, o amor carnal é fortemente condenado e, quando ele provinha
do pecado, seu castigo era mais fortemente acentuado. As relações amorosas são
incompatíveis com os desígnios divinos, elas maculam a carne e o corpo do homem.
O cavaleiro deveria estar purgado de todos os pecados para merecer a graça do Santo
Vaso. Por isso, ao chegar em Corberic, Lancelot é impedido de entrar na câmara do Graal:
(...) se lançou dentro o mais que pôde; mas nom entrou muito, que sentiu muitas maãos que o filharom polo corpo e polos braços e polos cabelos e sacarom-no fora e deram com el tam grande caeda em terra, que cuidou seer morto e jo[u]ve em esmorido atee que foi o dia claro. (DSG, 1970, p.322, v.II).
Esse era o “galardom” para quem não se comportava como verdadeiro cavaleiro
cristão, sucumbia em seu pecado e era impedido de conhecer as maravilhas do Graal.
Entre os três eleitos a chegarem até o Santo Vaso, Persival quase é rendido aos
desejos da carne não fosse a intervenção divina. Ele é tentado por um demônio em forma de
mulher, por quem “demandou” de amores:
Persival catou a donzela, que lhe semelhou tam fremosa, que nunca [vira] donzela que sua beldade chegasse aa beldade que em ela viu. Estonce começou-se-lhe a demudar o coraçõm feramente, que todo seu custume passou, ca seu custume era atal, que nunca jamais catava donzela por de amor nem com vontade de sua carne; mas ora era assi coitado de amor, que nom desejava rem do mundo; tanto que viu sta donzela, semelhava-lhe que fôra em boõ dia nado, se podesse seu amor haver. (DSG, 1955, p.373, v.I).
Mas o Senhor, em sua profunda misericórdia, reconhecendo a fraqueza humana, salva
um dos poucos cavaleiros que tinham feito uma boa vida na demanda. E el estando em êsto
falando, aque-vos vem de contra o céu um tam gram soõ, como se fôsse firida de torvam, e
fez ũ atam gram volta, como se movesse a terra. (DSG, 1955, p.373, v.I).
A verdadeira natureza da donzela é, então, revelada: (...) viu a donzela rir, porque
vira que houvera mêdo. E quando a viu rir, maravilhou-se e logo entendeu que era demo
que lhe aparecera em semelhança de donzela, polo enganar e o meter em pecado mortal.
Persival representa, dessa forma, uma certa inocência que não consegue reconhecer as
trapaças do demônio, mas, e até mesmo, pela grande provação porque passa, mantém-se
firme no caminho de Deus:
E em aquela demanda, vos digo bem que fêz mui boõa vida, ca mais stava em oraçoões e em rogos que em al, e nunca houve i dia que nom jejunasse, e o mais dos dias comia a pam e água, e nom achava ermitam nem empardeado a que se nom confessasse e com que nom filhasse conselho de sua alma. (DSG, 1955, p.261, v.I).
O outro cavaleiro eleito é Boorz, que embora tenha pecado – o fez uma única vez –,
leva uma vida de penitência e severa humildade: dormiu apenas três vezes num leito em
cinco anos de provações. Seu pecado deve-se ao fato de ter caído na tentação da carne:
E saibam todos, que êste conto ouvirem, que aquel Elaim o Branco foi filho de Boorz de Gaunes e feze-o em ũa filha del-rei de Gram-[Bretanha]. Pero ante que êsto fôsse, prometera Boorz a Nosso Senhor de lhe guardar sua virgindade. Mas tam toste que o ela viu, pagou-se dêle dês ali amou-o; e depois enganou-o per encantamento, e jouve com ela e fêz ali aquela noite [aquel] que foe depois emperador de Constantinopla. E se Boorz britou aquêlo que prometeu, nom foi per seu grado, mas polo encantamento que lhe a donzela fêz; e depois corregeu aquêlo que fêz, que todôlos dias da sua vida manteve [castidade]. (DSG, 1955, p.17, v.I, grifos meus).
Como o próprio texto enfatiza, Boorz só caiu em tentação porque sofreu um
sortilégio. Depois dessa falta em sua trajetória, enquanto um bom cavaleiro cristão, ele
levará uma vida “muito santa”.
Quando se vê diante de uma aventura muito “maravilhosa”, pois teria que escolher
entre salvar uma donzela em perigo e seu irmão que estava caminhando para a morte,
Boorz passa por um dilema inconciliável: como salvar seu irmão, sangue de seu sangue, e
deixar uma donzela à mercê da própria sorte, ferindo assim o código de cavalaria? Ele opta,
então, por obedecer ao código, protegendo os indefesos, ou seja, a donzela. Boorz numa
defesa intransigente da virgindade como estado de pureza absoluta, aqui, alegoricamente
representada pela donzela, (...), busca afirmar-se como um representante da cavalaria
espiritual e conquistar o acesso ao Santo vaso. (PEREIRA, 1996, p.96).
Galaaz, mesmo sendo o escolhido de Deus, não está isento das tentações. Ele passará
por uma grande prova, a mais importante porque dizia respeito à capacidade do homem de
resistir aos prazeres da carne.
Uma donzela de quinze anos, filha do rei Brutus, é tomada de amor por Galaaz assim
que o vê: assim amou a donzela Galaaz, pero nunca o vira nem soubera que cousa era
amor, e catava Galaaz e prezava-o tanto em seu coraçom, mais que tôdalas cousas e que
nunca molher homem prezou; (DSG, 1955, p.143, v.I).
A jovem, incendiada de tão louco amor, não pode mais esperar para ter seus desejos
satisfeitos, lança-se no leito em que estava Galaaz esperando que ele correspondesse aos
seus anseios amorosos:
E ela cuidava que, pois se ela ia deitar a-par dêle, que el comprisse seu coraçom, e em nhũa guisa nom cuidava, pois que ela era atam fremosa e de tam gram guisa, que el tam vilaão fôsse que nom comprisse sua vontade. Entam se chegou a êle mais que ante e pôs maão em êle mui passo polo spertar. Mas, quando sentiu a estamenha que o cavaleiro vestia – ca sem estamenha nunca êle era, noite nem dia – ela foi tam spantada. (DSG, 1955, p.147-149, v.I).
Ao perceber a estamenha16, a donzela reconhece que ele era um outro tipo de
cavaleiro, não era dos que se enamoravam. Galaaz pertencia a uma cavalaria celestial,
fundada em valores espirituais e na penitência como purgação dos pecados.
Mas, ainda assim, ela não desiste de seu intuito, ameaçando o cavaleiro: ca me
matarei com minhas maãos e haveredes ende maior pecado ca se me tevéssedes i convosco,
16 A estamenha era uma espécie de manto de lã coberto por farpas. Seu uso constiuía-se numa forma de martírio.
ca vós sodes razom da minha morte, e vós me podedes tolher, se vós queredes. (DSG, 1955,
p.151).
Quando percebeu que a donzela tinha a espada nas mãos, Galaaz promete “fazer todo
o prazer” a ela. Mas não tem mais jeito, era tarde demais, a donzela cai morta em terra. O
risco que Galaaz correu é sinal de que nem mesmo ele pode descuidar-se, pois não se sabe
a hora nem a forma da tentação. Aqui ela agiu primeiramente pela confusão dos juízos,
(...), a conduzir para o beco-sem-saída do pecado ou da morte. (MONGELLI, 1995, p.80).
Essas provas pelas quais todos os cavaleiros passam são do tipo prova-êxito-
recompensa ou prova-malogro-penitência. As primeiras estavam ligadas aos cavaleiros que
chegariam ao Graal; elas eram, portanto, provas com um caráter positivo, de proezas. Já as
últimas eram enfrentadas por aqueles cavaleiros pecadores que, justamente por esta
característica, não conseguem alcançar o êxito.
As provas positivas são incrivelmente executadas pelo cavaleiro perfeito, pois é
impensável que Galaaz malogre; (...). Galaaz não é eleito porque ele triunfa nas provas,
mas triunfa nas provas porque é eleito. (TODOROV, 2006, p.178).
O filho de Lancelot está muito mais próximo de uma natureza santa que de qualquer
outra coisa, ele parece realmente não fazer parte de um mundo terreno, sua vida estava toda
dedicada à busca religiosa de Deus.
Ele passa a maior parte da Demanda em companhia dos “homens bons”, os ermitãos,
está sempre jejuando e confessando-se para salvar sua alma e, nos feitos de cavalaria,
destaca-se entre todos, vencendo combates que parecem impossíveis de serem ganhos:
Entom se começou a peleja entre êles; e os do castelo eram já bem LX, ca todavia creciam. Mas Galaaz, que tinha a espada [da] estranha cinta, feria a destro e a sestro e matava quantos alcançava, e fazia taees maravilhas entre êles, que nom há homem que o visse que o tevesse por homem terreal, mas por algũa maravilha estranha. (DSG, 1970, p.195, v.II, grifos meus).
Imagem do Codex Manesse. Os cavaleiros combatem entre si numa campanha militar próxima
a um castelo, onde as damas observam aterrorizadas diante de tanta violência.
Galaaz compreende uma cavalaria mística, aproximando-se cada vez mais de um
modelo cristocêntrico. Ele expulsa demônios: e o encantador, que havia perdudo seu sem e
seu poder na viinda do boõ cavaleiro, que era santa cousa e santo homem. (DSG, 1970,
p.133, v.II). E ainda é capaz de salvar os filhos de Satã, interceder por eles junto a Deus: -
Ai! Galaaz, mui santo cavaleiro, roga por mim, ca ainda eu acharia mercee, se tu quisesses
rogar por mim. (DSG, 1970, p.135, v.II).
Galaaz também cura os doentes, como uma donzela que havia ficado louca e vivia
presa:
Ai, Galaaz! Santa cousa e bem-aventurado corpo, limpa carne e comprida de santa graça, beenta seja a hora em que tu foste nado, e beento seja deus que te aqui dusse, ca te ta viinda me [veo] tam grã bem, que sôo livre do maau companheiro que havia, que longamente foi comigo. (DSG, 1970, p.149, v.II).
Uma outra doente é curada ao usar sua estamenha: E a donzela que vistira a
estamenha foi logo tam saã como se nunca houvesse mal. (DSG, 1970, p.159, v.II). Mesmo
sendo instrumento para os milagres divinos, Galaaz mantém-se humilde: não deseja que se
saiba das curas que realiza e deita-se em terra firme em vez dos bons leitos que lhe eram
oferecidos. E permanece humilde quando conhece o desprezo:
Muito falarom uũs e os outros de Galaaz, mas nom em as honra. E êle sofreu todo mui bem, como aquel que era mais sofrido e mais mesurado ca nem uũ cavaleiro que homem soubesse; (...) e sofre[u]-se aquela noite tom bem que nom respondeu a rem que lhi dissessem. (DSG, 1970, p.267, v.II, grifos meus).
Após um longo probatório caminho, percorrido por aventuras que foram terminadas
com êxito, os três eleitos – Galaaz, Persival e Boorz – chegam ao Graal. Juntos eles
formarão com mais nove cavaleiros os doze que compartilharão da “postumeira festa” e
serão “avondados” do manjar do Santo Graal.
Dentre os três eleitos que conseguem entrar na câmara do Graal, Galaaz é o único que
conhece o seu significado:
- Senhor, a ti dou eu graças e a ti oro e a ti beẽgo, porque me fezeste tam grã mercee, que eu vejo abertamente o que língua mortal nom poderia dizer nem coraçom pensar. Aqui vejo eu o começo dos grandes ardimentos. Aqui vejo eu a raçom das grandes maravilhas. E pois assi é, Senhor, que vós a mi compristes mĩa vontade de me leixardes veer o que eu sempre tanto desejei, ora vos rogo que em esta hora e em esta grã ledice em que som vos plaza que eu passe desta terreal vida e vaa a celestial. (DSG, 1955, p.412, v.II, grifos meus).
Galaaz, após ser preenchido pelas maravilhas do Graal e depois de conhecer o que
estava tão distante de uma vida humana, seu espírito só deseja encontrar-se com Deus. Ele
é, então, levado por anjos ao céu, o que evidencia a santa vida que tinha construído até ali.
O Graal também é arrebatado aos céus por uma mão celeste e despede-se para sempre
da Terra, pois os homens tinham se afastado de Deus, não serviram fielmente aos
propósitos divinos e mergulharam no pecado.
Com a ascese do Santo Vaso, a Demanda sentencia que este mundo estava fadado ao
malogro, à imperfeição, porque distante dos valores cristãos. Desse modo é que, entre
tantos cavaleiros que juram a demanda, somente um conhecerá as grandes maravilhas e os
grandes significados do Graal. Somente um consegue manter-se firme aos ideais religiosos
e por isso é o eleito e o possuidor da perfeição para alcançar a graça da ascese espiritual.
O caminho de Galaaz foi percorrido com muita fé, esperança na piedade divina,
comunhão espiritual. Toda a sua trajetória foi direcionada para um conhecimento de si
mesmo que passava fundamentalmente por um caminho espiritual.
Ele constitui uma voz praticamente sozinha em meio a CL cavaleiros, mas é também
uma forma de articulá-los com a experiência cristã de conhecimento de Deus. Era ele o que
mantinha a cavalaria viva, demonstrando que nenhuma glória terrena, nenhum prazer
mundano poderia aproximar o homem de Deus.
Porque era bom, virgem, misericordioso, humilde, temente a Deus, Galaaz é o melhor
exemplo de um modelo perfeito de cavaleiro cristão. Constitui-se, portanto, como um ótimo
modelo do programa civilizador da Igreja para o cavaleiro buscando aproximá-lo cada vez
mais dos valores cristãos. Ele representaria, assim, um exemplo modelar para a sociedade.
Podemos perceber que o exemplo de Galaaz está em perfeita consonância com o
modelo de cavaleiro elaborado por Ramon Llull. Esse filósofo que procura ensinar aos
cavaleiros, através de um manual de comportamento, como se tornarem “bons cavaleiros”,
constrói um ideal de cavalaria que serviria de exemplo para todo o grupo guerreiro, assim
como para a sociedade.
E Galaaz na Demanda do Santo Graal representa todo esse ideal corporificado numa
só pessoa. Era ele o instrumento pelo qual a cavalaria poderia retornar aos seus tempos
gloriosos de uma ordem voltada especificamente para os assuntos da fé.
E ao contrário da idealização construída por Llull e do exemplo modelar de Galaaz,
Lancelot era o oposto dessas propostas cristãs. Ele representava uma cavalaria mundana,
preocupada em honrar seus valores seculares. Assim, o modelo de cavaleiro cortês era um
contra-modelo do cavaleiro cristão. Mas os dois serviram à necessidade de “civilizar” a
nobreza e o último, além disso, de cristianizar a cavalaria.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A cavalaria foi, sem dúvida alguma, uma instituição das mais importantes e de mais
elevado valor na Idade Média. Mas ela não teve seu princípio como instituição, ela chegou
a isso por meio de um longo processo de elaboração ética, moral e religiosa.
Para adquirir essas feições, esse grupo de guerreiros torna-se uma confraria que, de
tanto valor adquirido na sociedade, desperta o ávido interesse da nobreza. Ela passa, então,
a recrutar entre esse grupo de guerreiros os seus próprios membros. Isso era possível
principalmente por meio dos casamentos, que funcionavam como uma forma de ascensão
social para a cavalaria. Desde então, só poderia ser cavaleiro quem era nobre e essa
condição passa a ter um caráter hereditário.
A função dos cavaleiros estava muito bem definida pela teoria tripartida da sociedade,
sua missão aqui na Terra era proteger os demais membros da comunidade. Essa função, no
entanto, vai adquirindo progressivamente um caráter ético, moral e religioso. Assim, ao
cavaleiro não bastava apenas combater, era preciso que ele salvaguardasse os inermes e
principalmente os respeitassem.
Desse modo, a ética cavaleiresca consistia em proteger os desarmados, socorrer
mulheres e crianças, não atacar guerreiros desarmados. Entretanto, o século XII foi
marcado por inúmeras violências oriundas da nobreza. Esses conflitos se davam
principalmente porque somente os primogênitos tinham direito à herança, os outros filhos
ficavam entregues à própria sorte e envolviam-se cada vez mais em lutas internas.
Com o intuito de controlar essa nobreza guerreira, a Igreja elabora os conceitos de
Pax Dei e Tregua Dei. Eles consistiam respectivamente em: não cometer violência a
determinados lugares (santuários, hospícios, estradas), assim como às pessoas que não eram
capazes de se defenderem; e na proibição de atos de guerra em determinados dias da
semana (da tarde de sexta-feira à manhã de segunda). A Igreja buscava, portanto, impor
uma certa noção de justiça e garantir a paz.
É assim que até mesmo o adubamento do cavaleiro transforma-se numa cerimônia
com caráter sagrado. O cavaleiro receberá o armamento das “mãos” da Igreja e fará o
juramento diante dos olhos de Deus. Suas armas adquirem acentuado simbolismo e são
vinculadas à cruz, à fé e ao espírito cristão.
Enquanto isso, surge, na literatura do século XII, um modelo de cavaleiro considerado
cortês. Esse modelo foi aqui analisado através da imagem de Lancelot, representado no
livro de Chrétien de Troyes, Lancelot, o cavaleiro da charrete.
Nesse romance, o autor trata do espinhoso tema do amor adúltero protagonizado por
Lancelot e a rainha Guinevere. O cavaleiro chega até mesmo a esquecer-se dos seus
compromissos com o código cavaleiresco, importando-se somente em realizar seu amor
proibido.
Lancelot sujeita-se a todos os desejos de sua dama e “senhora”, representando o
melhor exemplo de “vassalagem amorosa”. As principais características desse tipo de
cavaleiro eram: a galanteria, a obediência amorosa, o espírito aventureiro, a valentia nos
torneios e a honra transmudada no reconhecimento daquela a quem dedicava o seu amor.
Esse modelo de cavaleiro servia à necessidade de “civilizar” a nobreza através do
ideal de cortesia. O cavaleiro cortês deveria ser educado, mas sem abandonar sua destreza
nas armas. Assim, ao mesmo tempo em que lhe eram incutidos “bons modos”, ele via-se
distanciado da agressividade militar.
Esse tipo de literatura fazia parte de um processo de afirmação cultural da
aristocracia, que se vê cada vez mais, no decorrer do século XII, confrontada por um novo
ritmo de vida econômico e social. Esse setor laico passa a agir, então, por meio de um
sistema ideológico próprio que é estruturado em torno da noção de cavalaria.
Paralelamente a essa literatura cortês, a respeito do cavaleiro, surge também uma
literatura de cunho cristão. Nela a Igreja utilizará de toda a sua retórica para cristianizar
aqueles nobres guerreiros.
Percebemos isso através do Livro da Ordem de Cavalaria, verdadeiro manual
pedagógico sobre o bom comportamento que o cavaleiro deveria ter.
Nessa obra, Ramon Llull critica enfaticamente os maus cavaleiros, que são assim
considerados porque amavam os vícios e desprezavam as virtudes. Esse cavaleiros viviam
distantes de Deus e de sua mensagem de fé, pois preocupavam-se somente em satisfazer
seus interesses mundanos.
Ao contrário deles, os bons cavaleiros eram aqueles que cultivavam as virtudes e
evitavam os vícios. Suas ações eram pautadas nos princípios cristãos de fé, esperança,
caridade, justiça, fortaleza, prudência.
Os bons cavaleiros – e eram bons porque essencialmente cristãos – dedicavam sua
vida na defesa da fé. Eles constituíam, portanto, um modelo exemplar que é idealizado para
controlar a agressividade e servir de exemplo para toda a sociedade.
Uma outra obra literária que atendia aos interesses clericais de cristianização da
cavalaria é a Demanda do Santo Graal.
Nessa fonte do século XIII, a sentença é clara: os maus cavaleiros, os pecadores,
mergulhados nos vícios, são condenados; enquanto os bons cavaleiros, que não cometem
pecados, detentores das virtudes, firmes nos ideais cristãos, conseguem atingir a graça de
alcançar o Santo Graal.
Dos CL cavaleiros da Távola Redonda, participantes da corte arturiana, a obra
distingue nitidamente, através de uma rede de oposições, os cavaleiros que chegarão ao
Santo Vaso – bons cavaleiros e os que sucumbirão em sua busca, os maus cavaleiros.
Os cavaleiros considerados maus enfrentam diversas aventuras, nas quais não
conseguem apreender nenhum ideal cristão que possa mudar seus comportamentos. Suas
aventuras apenas demonstram o “poço” de perversões, pecados, distanciamento de Deus em
que estavam mergulhados. Por isso são condenados.
Os bons cavaleiros, representados em sua forma mais perfeita por Galaaz, são aqueles
que conseguirão a glória divina de alcançar o Santo Vaso. E entre os três eleitos – Galaaz,
Persival e Boorz – somente Galaaz conhecerá seus significados.
Esse cavaleiro cristão, considerado “o melhor dos melhores”, era perfeito porque se
manteve nos caminhos da fé cristã. Ele era casto, virgem, o “puro dos puros”, jamais caiu
em tentação e passava a maior parte da demanda jejuando e se confessando.
Esse modelo representava uma articulação entre um mundo perdido no caos e a
perfeição do mundo divino. Ele integra uma cavalaria celestial, compromissada com os
valores cristãos e próxima da santidade. Era esse o modelo a ser seguido não só pelos
cavaleiros como também por toda a sociedade, pois ele era um exemplo de que, seguindo
os ideais religiosos de bondade, castidade, justiça e caridade, o homem poderia chegar à
salvação.
Essa literatura calcada nos valores religiosos representava um processo, que se
propunha vitorioso, de cristianização cavaleiresca. Como eram muito consumidas nas
cortes aristocráticas, elas incutiam nos nobres cavaleiros os ideais cristãos. Tanto que até
mesmo alguns nobres e monarcas portugueses – como o condestável D. Nuno Álvares
Pereira e o rei D. Sebastião – se propuseram a seguir o exemplo de Galaaz, através da
castidade.
Percebemos então, com o estudo das fontes utilizadas e por meio de suas análises, que
tanto a literatura cortês como a literatura cristã – cada uma a sua maneira – objetivavam
controlar a elevada agressividade da nobreza. O modelo cortês servia também para que os
cavaleiros adquirissem um “bom comportamento” e se tornassem mais educados, além de
reafirmar a distinção social da nobreza. O modelo cristão tinha uma proposta de grande
cunho religioso: a salvação da alma por meio dos bons caminhos de Deus e da fé cristã.
O modelo do cavaleiro cortês é, portanto, diametralmente oposto – essencialmente por
suas características mundanas – ao modelo do cavaleiro cristão. Lancelot constitui-se,
assim, como um contra-modelo de seu filho e de tudo o que ele representa, pois Galaaz
possuía uma educação que não era voltada para os valores mundanos da corte, e sim para os
cristãos.
Esses foram modelos construídos com o intuito de reorganizar a sociedade de acordo
com os seus interesses, a vigência real dessas propostas fora algo longe de ser alcançado.
Parece que a cavalaria sempre foi um sonho – não só para nós oito séculos depois de seu
auge – mas também, para seus próprios contemporâneos.
A ordem de cavalaria era, pois, um ideal de realização de uma sociedade em meio a
tantas forças materiais e espirituais que se digladiavam. Talvez por isso ela sempre mereceu
um lugar privilegiado em nossa imaginação, um lugar de perfeição para os nossos anseios
mais profundos.
É por isso que até hoje personagens heróicas ainda habitam entre nós com grande
sucesso. Os valores cavaleirescos de honra, dignidade, coragem, força, aventura, galanteria,
justiça, proeza, bondade sobreviveram à Idade Média e são ideais que nós consideramos
como virtudes para sermos grandes pessoas. Contra todas as expectativas de um mundo
pós-moderno, a Idade Média parece resistir ao tempo.
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