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João Paulo Lajus Strapazzon
A Experiênciada Reforma Agráriaem Santa Catarina
João Paulo Lajus Strapazzon
2011
A Experiênciada Reforma Agráriaem Santa Catarina
© João Paulo Strapazzon, 2011
Direção Editorial:Carlos Stegemanndiretor@palavracom.com.br
Direção Executiva:Leonita Fernandesleonita@palavracom.com.br
Capa e editoração:Fernando Pascaleartefinal@palavracom.com.br
Revisão:Sergio Ribeiro
Impressão:Nova Letra Gráfica & Editorawww.novaletra.com.br
Tiragem:1.000 exemplares
Ficha elaborada pela Bibliotecária: Leonita Conceição Fernandes CRB 14/615.
PalavraCom Editora Ltda.Av. Hercílio Luz, 639, sala 1111
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S897e
Strapazzon, João Paulo Lajus.
A experiência da reforma agrária em Santa Catarina /
João Paulo Lajus Strapazzon; revisão de Sergio Ribeiro. –
Florianópolis : PalavraCom Editora, 2011.
64 p.
ISBN: 978-85-64034-03-7
1. Reforma agrária – Santa Catarina. 2. Política agrícola. 3. Assentamento rural. I. Título.
CDU 347.243(816.4)
Agradecimentos
gradeço a todos os dirigentes do Incra/SC que trabalharam para
viabilizar estes feitos, deixando como legado 14 fábricas funcionando Anos assentamentos, diversos cursos realizados, milhares de casas
construídas e reformadas, estradas implantadas ou recuperadas, água potável,
educação e outras políticas públicas executadas.
E agradeço especialmente aos funcionários e funcionárias que
trabalharam ao longo desses anos, porque o menor esforço aparente na
administração oferece resultados aos que precisam em níveis que ninguém
terá noção – hoje ou no futuro.
Foi um conjunto de tarefas e atividades exercidas com abnegação,
no papel de servidores de um país que ainda precisa mudar muito. Esse é o
espírito do verdadeiro servidor público, já que não há perspectiva privada
nesse trabalho.
Registro minha profunda gratidão pelo esforço do jornalista
Fernando Goss na leitura da primeira versão do texto, esforçando-se ao
máximo para que ficasse compreensível. Não sabia que tarefas de burocra-
tas prejudicassem tanto a prática da redação.
Por último manifesto meu reconhecimento ao Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra, que expressa com clareza o significado de
uma democracia, na qual a sociedade civil tem mobilidade e luta, não deixan-
do para as elites políticas, econômicas e sociais decidirem qual o futuro da
cidadania. Sem esse apoio nenhuma das políticas públicas descritas aqui teria
sentido ou talvez nem existissem. Neste imenso Brasil, foi um dos movi-
mentos que tornou isso tudo possível e, apesar das diversas críticas,
demonstrou (junto com os outros movimentos sociais do país) que outro
mundo é possível. Em Santa Catarina o MST foi um dos protagonistas pelas
pressões que exerceu aqui no estado e em Brasília, conquistando diversas
melhorias para os assentados.
O Autor
Índice
Prefácio..............................................................................................................9
Apresentação...................................................................................................13
Introdução........................................................................................................15
Primeiras reuniões...........................................................................................17
Estratégia para qualificação dos projetos
de assentamento e a questão da moradia........................................................21
Definição da metodologia e estratégias de
desenvolvimento territorial integradas e sustentáveis...................................25
Política para não índios ocupando
terras indígenas em Santa Catarina..................................................................39
Política para remanescentes de
quilombos em Santa Catarina...........................................................................43
Política de ordenamento fundiário de Santa Catarina.......................................49
Política de meio ambiente nos
projetos de assentamento de Santa Catarina....................................................53
Política de obtenção e implantação de
projetos de assentamento em Santa Catarina...................................................57
Ouvidoria Agrária.............................................................................................61
Administração, finanças e recursos humanos...................................................63
Prefácio
elatar as experiências na gestão do Incra/SC no período de 2003 a
2010 é a proposta da presente obra. O autor, funcionário de carreira Rdessa autarquia federal, conhecedor dos assuntos da reforma agrária,
vive intensamente, como gestor, os conflitos e desafios de propor alternati-
vas de cidadania e sustentabilidade para os assentamentos em Santa Catarina.
No primeiro momento apresenta uma estratégia de mobilização para
regularização das situações de assentados irregulares e também para a
organização interna da autarquia, especialmente relacionada ao envolvimen-
to dos funcionários na nova direção do Incra/SC. Aponto que a participa-
ção desses para traçar os objetivos e buscar os resultados seria o tom do
novo período, realizando assembleias nos assentamentos e atividades de
planejamento interno.
Na busca de soluções para problemas expostos nos encontros
realizados nos assentamentos, surgem novas oportunidades aos assentados.
São os casos da assistência técnica, que traz novos conhecimentos para
superação dos desafios da produção e das cadeias produtivas definidas, e da
questão da moradia – que muitas vezes acaba ficando em segundo plano
quando se fala do meio rural, em face do excesso de foco na produção. Essas
iniciativas também contribuíram para o estabelecimento de novas políticas
públicas que visam a qualidade de vida e dignidade das pessoas que moram em
assentamentos.
Há um relato mais detalhado das atividades em cada região do estado,
em razão das especificidades das cadeias produtivas e dificuldades diferencia-
das, em termos de organização e infraestrutura. O extremo oeste com os
melhores resultados da organização e qualificação do assentamento, já
introduzindo processos de industrialização. A região oeste, com o maior
número de famílias em assentamentos e grande investimento do governo
federal, ainda apresenta problemas na organização política e de infraestrutu-
ra, mas possui um grande potencial.
A extensão geográfica do planalto catarinense aparece como
elemento que dificulta a integração dos assentamentos e a definição de
cadeias que possam afirmar os projetos para a sustentabilidade. Também a
organização interna sofre pressões da iniciativa privada. As melhorias das
estradas, à medida que sejam asfaltadas, deverão amenizar os problemas de
integração. A região do planalto norte do estado apresenta os maiores
desafios a serem superados, conforme a orientação da política implemen-
tada pela direção do Incra. A região norte tem nas hortaliças a ancoragem
do processo produtivo, mas também pretende diversificar com outras
atividades como óleos aromáticos e fitoterápicos.
O território catarinense possui uma questão de difícil solução que
trata das terras indígenas que foram vendidas pelo estado para colonos que
se instalaram em diversas regiões de Santa Catarina, reduzindo a área
destinada às populações indígenas originárias. Nesse contexto, a política de
reforma agrária, que tem sua implementação retomada com força nos
últimos anos, entra nesse cenário, em princípio, com possibilidades de
aumentar a tensão pela terra e o desafio de gestionar conflitos entre grupos
sociais distintos – indígenas, caboclos, sem terra e colonos.
A busca da cidadania evidenciada pelas lutas da população de negros
em Santa Catarina também é relatada, com os desafios de encontrar, numa
primeira etapa, soluções entre a produção e o resgate de direitos.
Certamente assim que a terra for demarcada e reconquistada pelos negros,
mais trabalho institucional, se vislumbra para o apoio à instalação e à
sustentabilidade das comunidades quilombolas.
O ordenamento fundiário catarinense traz à tona uma realidade
construída há décadas – a posse da terra de forma precária – que impede o
acesso das pessoas que vivem e trabalham no meio rural às políticas dos
governos estadual e federal. Isso gera demandas judiciais com duração
prolongada. O relato da abordagem ambiental nos assentamentos e nas áreas
a serem adquiridas pelo Incra mostra a dificuldade de qualquer organismo
em atender a burocracia da legislação e a implementação de projetos ambien-
tais na realidade catarinense. A conquista da consciência ambiental tem um
preço e aqui se verifica que pelo menos nos planos traçados há um esforço
em ação.
Algumas dificuldades operacionais do Incra/SC, como os recursos
financeiros e humanos para o desenvolvimento do trabalho, ainda são
presentes. Há precariedade desses para todo o trabalho a ser desenvolvido,
especialmente com o indicativo da política da reforma agrária propor
estruturas industriais na área rural para agregar valor aos produtos dos
assentamentos. A articulação institucional é a forma apresentada para
superar as lacunas existentes, potencializando ações em conjunto, de acordo
com os objetivos estabelecidos. Ao final são apresentadas algumas ações
que poderiam ser implementadas para melhorar a dinâmica da reforma
agrária no estado de Santa Catarina e no Brasil, com um sistema de informa-
ções públicas para afirmação desse relevante trabalho para a sociedade.
Ao longo da leitura da obra encontra-se um relato com sabor de
dever cumprido, considerando as condições existentes. E também uma
vontade de fazer mais pelos projetos de assentamentos em Santa Catarina e
no Brasil, com a defesa da presença do Estado na recuperação da cidadania de
povos por muito tempo à margem de políticas públicas. Além disso, propor
a inserção dessas populações no mundo produtivo, buscando a sustentabili-
dade dos projetos, sem a perda dos valores históricos e culturais desses
grupos, como forma de assegurar que a reforma agrária continue aconte-
cendo.
Prof. Gilberto Luiz Agnolin
Ex-reitor Unochapecó
Apresentação
psicólogo e mestre em sociologia política João Paulo
Strapazzon, servidor de carreira do Incra, com trabalhos no Oexecutivo da Prefeitura de Chapecó (SC), relata neste livro sua
experiência como superintendente do Incra de Santa Catarina, durante os
oito anos do Governo Lula.
Neste relato fica evidente a reação da elite agrária brasileira quando
o Estado tenta interferir na estrutura fundiária do país seja com ações de
reforma agrária, de demarcação de territórios remanescentes de quilom-
bolas ou de territórios indígenas. Reação tão forte que influencia em
todas as instâncias de poder do Estado brasileiro, para dificultar ou
impedir que essas políticas ganhem força e sejam massificadas.
Além disso, é notório perceber durante a leitura as dificuldades
gigantescas que a autarquia federal tem no cumprimento das suas missões,
por condições internas e externas. Apesar de ser um organismo presente em
todos os estados da Federação, ter um quadro de servidores relevante e ter
quase quadruplicado seu orçamento anual no Governo Lula. Isso leva a
maioria da sociedade a crer que, com todas essas condições o Incra já deveria
ter deixado os assentamentos em ótimas condições de desenvolvimento.
Uma das principais adversidades internas é o fato de a autarquia ser
responsável pela operacionalização de várias políticas que não seriam de
sua competência, como a implantação da infraestrutura básica, ou seja, a
construção de estradas, pontes, casas, redes de distribuição de água. E
também políticas de educação - como a alfabetização de jovens e adultos,
formação técnica e até superior - e de desenvolvimento, a exemplo da
assistência técnica, implantação de agroindústrias. Além de executar ações
de recuperação ambiental nas áreas dos projetos de Assentamento.
Podemos dizer que o Incra é um verdadeiro Estado dentro do Estado, pela
diversidade de procedimentos sob sua responsabilidade. Acrescentem ao
rol de atividades a remoção de não índios em áreas indígenas e titulação de
13
A Experiênciada Reforma Agráriaem Santa Catarina
territórios remanescentes de quilombolas. Nota-se que várias dessas
ações são implementadas sem um marco legal bem definido e seguro.
No contexto externo ao Incra, percebam o esforço enorme que se
fez em Santa Catarina para viabilizar economicamente as famílias assenta-
das, na busca de geração de renda suficiente para a sobrevivência com
dignidade. Isso se dá pelo fato de que estes beneficiários da reforma
agrária se constituem em pequenos agricultores, que normalmente não
possuem área e capital suficientes para ter escala de produção nas suas
atividades e, consequentemente, não têm a mínima condição de competir
num mercado capitalista globalizado como o nosso. Encontrar opções
para viabilizar essa parcela de produtores é um desafio gigantesco, porque
passa por mudança de modelo tecnológico de produção, e/ou buscar
formas de cooperação para enfrentar o mercado.
Apesar de todas as frustrações e dificuldades que o leitor perceberá
na gestão do Incra de Santa Catarina no Governo Lula, que, creio, sejam
as mesmas enfrentadas no restante do país (à exceção da região amazôni-
ca), houve muitos avanços. Atribuo esta evolução ao modo de condução
do Incra, de responsabilidade do autor, em especial naquilo que se refere à
tomada de decisões após intenso diálogo com os beneficiários e movi-
mentos sociais, ouvindo e respeitando suas vontades, aptidões e necessi-
dades. Este diálogo foi fundamental também para harmonizar as relações
entre Governo e movimentos sociais, que levou a diminuição de conflitos
agrários no Estado.
Celso Lacerda
Presidente Incra
14
A Experiênciada Reforma Agráriaem Santa Catarina
Introdução
ste livro relata como administrar em um estado da federação um
órgão federal que trata com assuntos conflituosos em níveis Esociais, políticos, administrativos, financeiros e econômicos.
Quando em 2002 o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva ainda estava
em campanha eleitoral, algumas pessoas me convidaram para assumir o
Incra de Santa Catarina. Isso se devia ao fato de ser funcionário de carreira
da autarquia e já estar trabalhando em cargos de direção na Prefeitura
Municipal de Chapecó (SC). Essas duas condições facilitavam o interesse
de personagens ligados à reforma agrária em indicar meu nome para
assumir esse papel e essa missão tão importante para o futuro de mais de 5
mil famílias assentadas e outras mil aguardando por assentamento.
Considerando a experiência obtida na administração pública até
aquele momento, preferi aguardar que as expectativas eleitorais se
concretizassem. O principal deste preâmbulo são as expectativas levanta-
das e as capacidades de resolução existentes.
Poucos de nós tinha conhecimento do funcionamento da adminis-
tração federal: sua burocracia, leis, instruções normativas, entre outras
peculiaridades. Quando Luiz Inácio Lula da Silva foi confirmado como
Presidente da República as pessoas que haviam me convidado voltaram a
me procurar para assumir a Superintendência de Santa Catarina, sendo que
aceitei o desafio.
15
A Experiênciada Reforma Agráriaem Santa Catarina
17
Primeiras reuniões
desafio, contudo, era muito maior que qualquer um de nós
imaginava. E aqui, sem medo de errar, incluo os próprios Odirigentes nacionais do Partido dos Trabalhadores, que posteri-
ormente revelariam toda sua inexperiência e falta de tato político, nos
prejudicando sobremaneira até hoje na condução de políticas públicas
ao considerar que seus desejos se realizariam em um passe de mágica ou
mediante um repasse de recursos.
Quando a expectativa eleitoral se concretizou, o convite foi aceito
e começamos a trabalhar a reforma agrária de maneira inédita em Santa
Catarina.
Digo isso porque nunca foram planejadas pelo Incra de Santa
Catarina questões como obtenção de terras, ordenamento fundiário,
desenvolvimento dos assentamentos e outras atividades em conjunto
com aqueles que tinham interesse nesses aspectos, ou seja: os próprios
assentados e as instituições que sempre tentaram auxiliar mas que nunca
tiveram oportunidade.
A primeira reunião que houve com o Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) foi para definir os papéis que cada
instituição deveria assumir em uma nova era democrática, com todos
tendo direito de se manifestar e de discordar. Nesse primeiro encontro
chegou-se ao consenso que os projetos de assentamento não poderiam
continuar abandonados como terras para especulação imobiliária, mesmo
que estes fossem patrimônio do Incra e não pudessem ser vendidos ou
arrendados por meio de contratos de gaveta. Dessa forma concluiu-se
que deveriam ser utilizados somente pelos agricultores assentados, que
assinaram um contrato de concessão de uso que inclui essas cláusulas, mas
que nunca foi respeitado nas administrações anteriores. O primeiro passo
adotado foi o de que qualquer venda, arrendamento ou desvirtuamento
das cláusulas dos contratos de concessão de uso do assentado com o
A Experiênciada Reforma Agráriaem Santa Catarina
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Incra, permitiria que este, por meios legais, solicitasse a reintegração de
posse do lote, utilizando-o para assentar famílias acampadas que ainda
estavam esperando por terra. Com esse pressuposto, construímos um
documento e realizamos assembleias em todas as regiões e assentamentos
de Santa Catarina, explicando aos assentados e às famílias irregulares quais
seriam os procedimentos que seriam adotados a partir daquele momento.
O ano de 2003 foi preenchido por esse desgastante trabalho, no
qual as equipes do Incra, em conjunto com lideranças assentadas e de
cooperativas, viajaram por Santa Catarina realizando assembleias. Quanto
ao aspecto interno da autarquia, muitas resistências se manifestaram, pois
a cultura da instituição era regularizar os ocupantes irregulares – e essa
prática não oferecia nenhum desconforto para os funcionários, somente
custos para a administração federal, visto que cada regularizado poderia
receber todos os benefícios de um assentado novo, desde crédito para
habitação até créditos produtivos. E aquele que vendia nunca era cobra-
do, com o interessante detalhe de que a mídia nunca se importou com isso.
Essas resistências internas também estavam baseadas no fato de que os
antigos dirigentes jamais se dispuseram a defender essas ideias, contrapon-
do-se aos zelosos funcionários que queriam implementá-las baseados na
legislação. Houve então um trabalho de cultura organizacional, expondo
as novas ideias que seriam levadas a efeito e teriam todo o apoio dos novos
dirigentes do Incra de Santa Catarina.
Porém, esse era só um pequeno passo perto dos grandes problemas
a serem enfrentados nos assentamentos. Era preciso oferecer condições
para que as famílias assentadas pudessem permanecer na terra, produzindo
e melhorando a qualidade de vida. Nesse caso, muitas mudanças normati-
vas sobre assistência técnica, moradias e infraestrutura para os assenta-
mentos ocorreram na direção nacional do Incra em Brasília, o que nos
auxiliou a conseguir avanços nestes setores. Mesmo sabendo que muitas
normas ainda terão que mudar para que a qualidade de vida destes cidadãos
possa melhorar ainda mais. Para esta análise, vamos dividir este documen-
A Experiênciada Reforma Agráriaem Santa Catarina
19
A Experiênciada Reforma Agráriaem Santa Catarina
to em diversos espaços: Qualificação dos Assentamentos,
Reconhecimento de Remanescentes de Quilombos, Não-Índios em
Áreas Indígenas, Regularização Fundiária de Agricultores Familiares e
Obtenção de Terras para Acampados.
A Experiênciada Reforma Agráriaem Santa Catarina
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Estratégia para qualificação dos projetos deassentamento e a questão da moradia
essa questão, o debate entre as diferentes instituições interessadas
concluiu, por unanimidade, que não poderíamos mais planejar o Ndesenvolvimento dos assentamentos como núcleos de famílias
isoladas, mas, ao contrário, teríamos que pensar como regiões que
organizassem cadeias produtivas, contemplando desde crédito, assistência
técnica, produção, transformação e comercialização. Tudo isso adminis-
trado pelos próprios assentados com o apoio do Incra e de outras
instituições. Nesse sentido, todos os créditos de fomento e de produção
das diversas instâncias governamentais seriam buscados para auxiliar a
fortalecer as cooperativas dos assentados, que já contavam com algumas
experiências exitosas úteis como exemplos.
Dessa maneira, realizamos seminários sobre produção em todas as
regiões do estado – com apoio da Empresa Brasileira de Pesquisa
Agropecuária (Embrapa), da Empresa de Pesquisa Agropecuária e
Extensão Rural de Santa Catarina (Epagri), do Banco do Brasil e de
Organizações Não Governamentais (ONGs) – e conseguimos chegar a um
consenso sobre três cadeias produtivas para cada região. Atividades que
potencialmente promoveriam o desenvolvimento dos assentamentos e
das regiões onde estavam instalados.
Foram seis seminários regionais que se desdobraram em outros
por produtos e condições de produção.
Nesse ínterim, o Incra já encaminhava algumas questões importan-
tes, demonstrando que a política da reforma agrária havia mudado. A
primeira foi estabelecer convênio com a Cooperativa de Trabalhadores na
Reforma Agrária de Santa Catarina (Cooptrasc) para contratação emer-
gencial de técnicos em diversas áreas para atendimento nos assentamen-
tos. Esse convênio foi o primeiro no governo Lula que contemplou
assistência técnica para assentados da reforma agrária. Por ser o pioneiro
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enfrentou muitas resistências, sendo que a Procuradoria Jurídica do Incra
viu-se na obrigação de ir ao Tribunal de Contas da União (TCU), em
Brasília, para confirmar sua legalidade. Uma vez confirmada, assinamos
um convênio com duração de quatro meses, sendo que, diante de instru-
ção normativa que regulasse esse trabalho com mais agilidade realizaría-
mos outro com maior longevidade. Essa instrução normativa e os
recursos para sua aplicação demoraram 10 meses e a partir daí firmamos
um convênio contratando 54 técnicos de diversas áreas e universalizamos
o atendimento nos assentamentos. Esse foi um grande passo para que
aquelas famílias sempre desassistidas acreditassem em um projeto de
reforma agrária capaz de melhorar a produção e a qualidade de vida.
Todavia foi apenas um pequeno avanço em uma trajetória que se
prenunciava longa. Quando um gestor público administra 5.400 famílias
instaladas em região que é atingida por problemas climáticos como
tufões, vendavais ou enchentes (sem planejamento em prevenção ou para
socorrer suas vítimas) torna-se quase impotente. Em 2003, por exemplo,
várias casas em assentamentos foram destelhadas ou destruídas no oeste
de Santa Catarina. Fato tão comum quanto as manifestações dos técnicos
do Incra que atenderam os assentamentos nestas circunstâncias e diziam
aos agricultores atingidos por essas intempéries que não poderíamos
fazer nada...
Nesse caso de 2003, um funcionário que já tinha entendido os novos
ares da instituição encontrou lacuna na instrução normativa permitindo
repassar recursos para melhorias de moradias atingidas. E foi o que fizemos,
repassando R$ 600,00 para cada família. O episódio motivou-nos em favor de
uma política pública visando reformar casas construídas há mais de 20 anos em
assentamentos, melhorando ainda mais a vida de seus moradores, que muitas
vezes se sentiam abandonados. Essa política pública de reforma e construção
de casas aumentou os recursos nos assentamentos e nas regiões vizinhas,
gerando um espetáculo de crescimento: muitos empregos foram gerados na
construção ou reforma de moradias.
A Experiênciada Reforma Agráriaem Santa Catarina
23
Cabe aqui um importante parêntese, para abordar os remanescentes de
quilombos. Decorre da luta dos quilombolas junto ao Incra a criação de uma
política para moradia rural no país, apesar do esforço dos diversos movimen-
tos rurais para que isso se concretizasse. Quando iniciamos os trabalhos com a
comunidade Invernada dos Negros, em Campos Novos, no planalto central
de Santa Catarina, para reconhecer, demarcar, identificar e titular seu território,
nos deparamos com uma realidade muito difícil. Havia vários programas do
governo federal que deviam ser executados realizados naquele território
empobrecido e expropriado, sendo um deles o Luz para Todos. Quando
questionamos os líderes da comunidade por que os projetos ainda não haviam
iniciado, fomos informados que os técnicos consideraram que suas casas não
permitiam a instalação da energia em razão da precariedade delas, o que poderia
ser perigoso aos moradores. E ainda tínhamos o agravante de que o Incra não
pode construir casas para remanescentes, devido às normas vigentes. Recorri a
um amigo que era funcionário da Caixa Econômica Federal em Brasília e que
havia trabalhado comigo em Chapecó, a quem consultei acerca de recursos a
fundo perdido para construção de casas. Segundo ele, haviam bilhões sem
aplicação pela falta de projetos. Havia a disponibilidade para liberar R$
5.999,00 por casa e o beneficiado teria a contrapartida obrigatória de R$
1.500,00. As lideranças quilombolas, entretanto, arrefeceram meu entusias-
mo, pois, após apresentar-lhes a oportunidade, ouvi que não teriam como
arcar com a contrapartida. Voltávamos à estaca zero. Procuramos o prefeito
de Campos Novos para saber se o município poderia participar da iniciativa,
oferecendo projeto e terraplenagem, o que poderia contar como contraparti-
da. Por se tratar de uma área conflituosa, pois os quilombolas reivindicam 7 mil
hectares, o prefeito ficou receoso de aderir à ideia.
Por coincidência – ou sorte? – no mesmo dia a promotora pública
de Campos Novos ligou-me perguntando se conhecia alguém de uma
empresa hidrelétrica que estava construindo uma usina. Para compensar
danos socioambientais teria que assinar um Termo de Ajustamento de
Conduta e como essa promotora conhecia a realidade dos negros
A Experiênciada Reforma Agráriaem Santa Catarina
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quilombolas perguntou-me se poderia fazer a intermediação. Na mesma
hora liguei para a empresa e uma semana depois conseguimos a contrapar-
tida para as casas, que um ano depois já estavam construídas e com a
energia instalada.
O exemplo parece singelo, porém a partir dele construímos uma
política pública reivindicada pelos agricultores assentados e não assenta-
dos que culminou com a disponibilidade de recursos para construção e
reformas de casas de agricultores. Até 2003 era possível obter recursos
para aviários, estábulos, chiqueirões, em detrimento de verbas para a
construção ou reformas de casas para os agricultores – um paradoxo
ininteligível, mas resolvido.
A Experiênciada Reforma Agráriaem Santa Catarina
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Definição da metodologia e estratégias dedesenvolvimento territorial integradas e sustentáveis
As cadeias produtivas nas regiões catarinenses
Prosseguindo com a estratégia de desenvolvimento territorial dos
projetos de assentamento, dividimos as regiões em: extremo oeste, oeste,
planalto, planalto norte e norte/litoral de Santa Catarina. Cada região tem
várias especificidades a se desenvolver no planejamento que envolveu as
cooperativas, as famílias assentadas, as instituições de apoio e a busca de
recursos para se atingir os objetivos.
Extremo Oeste
Região Oeste
Planalto
Planalto Norte
Norte/Litoral
A Experiênciada Reforma Agráriaem Santa Catarina
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O Extremo Oeste de Santa Catarina
Abrangência: São Miguel do Oeste, Bandeirante, Barra Bonita,
São José do Cedro, Paraíso, Anchieta, Palma Sola, Campo Erê, Dionísio
Cerqueira e Romelândia.
A região do extremo oeste – onde predominam as cadeias produti-
vas do leite, do frango e das indústrias de conservas – é considerada como
a mais desenvolvida e envolve aproximadamente 400 famílias assentadas.
Apenas uma indústria de leite e derivados produzia, à época, 600 mil litros
de leite longa vida/dia, além de bebidas lácteas e de realizar trabalhos
terceirizados para outras agroindústrias, contando com uma processado-
ra de queijos e leite tipo C, indústria de conservas e um frigorífico de aves
em ampliação para produção de mil aves/hora.
Esses dados revelam que se trata de um território de assentamentos
cuja qualificação ocorreu por conta própria, beneficiada com recursos
federais, mas também a partir da ousadia e empreendedorismo de seus
líderes. Os agricultores assentados têm participação social, econômica e
política com alto grau de atuação, sendo que o prefeito de São Miguel do
Oeste (eleito em 2008), principal cidade da região, é egresso de um
assentamento.
Em razão desse cenário decidimos que os investimentos do
Incra na região seriam basicamente no frigorífico de abate de aves do
município de Dionísio Cerqueira, para torná-lo referência para os
assentados e pequenos produtores do MPA (Movimento dos
Pequenos Agricultores), vinculado ao conceito de ampliação da cadeia
produtiva e introduzindo a transição da cultura do fumo para a
criação de frangos.
Tivemos a importante colaboração da Embrapa por meio de
um termo de cooperação técnica no qual a instituição contribuiu
com a melhoria genética, produtiva, administrativa e econômica da
A Experiênciada Reforma Agráriaem Santa Catarina
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Cooperativa União (CooperUnião) – a organização dos assentados
que coordena o frigorífico.
E, em um trabalho conjunto entre Incra, Embrapa e
CooperUnião, apresentamos um projeto no Ministério de Integração
Nacional, que proporcionou muitas das melhorias aqui elencadas. O
frigorífico ganhou uma fábrica de ração, câmaras de congelamento e
ampliação da rede de energia elétrica, aumentado seu transformador para
potencializar a produção. Na sequência iniciamos a aquisição de uma
máquina de abertura de traqueia e papo de aves, permitindo que o frigorí-
fico se inserisse no mercado de terceirização e assim aumentasse o capital
de giro para ampliação de seus aviários, que deverão chegar a 30 até 2013.
Tal crescimento vai garantir produção e comercialização, beneficiando
diretamente os assentados da reforma agrária e os pequenos agricultores
da região.
O frigorífico está sendo saneado financeiramente com o pagamen-
to do Programa de Crédito Especial para a Reforma Agrária (Procera) e
poderá contar com um técnico (veterinário) específico para auxiliar na
produção. Esse conjunto de esforços resultará na conclusão do ciclo
produtivo, pois teremos a produção pelos assentados e pequenos
agricultores, o saneamento do crédito, assistência técnica e, finalmente, a
rede de comercialização dos produtos Terra Viva por meio da
Cooperativa Central dos Assentados. Em Santa Catarina todos os
produtos da reforma agrária utilizam a marca Terra Viva, com marcante
capilaridade no mercado do sul do Brasil.
Os resultados e as peculiaridades da região foram determinantes
para que o maior trabalho do Incra contemplasse a melhoria da infraestru-
tura dos assentamentos, o que abrangeu estradas, pontes, captação e
distribuição d’água, assistência técnica, reformas e construções de casas.
Até 2010 esse ciclo deve estar completo, com a autonomia das cooperati-
vas em suas respectivas produções e na melhoria da qualidade de vida dos
assentados e agricultores. Disso resultando que deveremos trabalhar nos
A Experiênciada Reforma Agráriaem Santa Catarina
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municípios que não têm uma posição geográfica e logística satisfatória,
ficando afastados dos grandes centros consumidores e das melhores
linhas de transporte.
A região recebeu, nos oito anos de governo Lula, cerca de R$ 6
milhões.
Região Oeste
Chapecó, Catanduvas, Abelardo Luz, Passos Maia, Vargem
Bonita, Água Doce, Vargeão e Ponte Serrada.
Na região oeste estão aproximadamente 2.500 famílias, a maioria
do total de assentados de Santa Catarina, que, entretanto, não constituíam
um território bem organizado nos aspectos produtivos, sociais e
políticos da reforma agrária. Para que se tenha uma ideia dessa concentra-
ção, somente em Abelardo Luz, próximo da divisa com o Paraná, há cerca
de 1.500 famílias assentadas.
Há muitos anos, por meio do Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento (PNUD), do projeto Lumiar e de outras instituições,
tentamos articular a produção e a organização na região, mas as estratégi-
as ou a metodologia não surtiram o efeito desejado de melhoria da vida
dos cidadãos assentados.
A região mostrava-se como a que apresentava o maior potencial de
desenvolvimento, considerando aspectos como número de famílias,
qualidade das terras, posição geográfica e logística. O processo seria
similar ao implementado no extremo oeste, com o fortalecimento das
cooperativas e o investimento nas cadeias produtivas.
O Incra recorreu ao programa Terra Sol (Programa de Fomento
Agroindustrial) e promoveu a reforma e ampliação de um antigo barracão
localizado ao centro dos 24 projetos de assentamento daquele território
A Experiênciada Reforma Agráriaem Santa Catarina
29
e, em acordo com a CooperOeste (Cooperativa do Oeste de Santa
Catarina), implantou supermercado e loja agropecuária. Esta medida
pretendia ampliar a produção de leite na região, o que faria com que os
agricultores tivessem uma renda mensal fixa, melhorando sua condição
econômica. Em conjunto com a ampliação da cadeia do leite, foi apresen-
tado pela Cooperativa de Assentados de Abelardo Luz (Coopeal), junto à
Secretaria Especial de Aquicultura e Pesca (SEAP), projeto de construção
de um frigorífico de transformação de pescados, para que pudéssemos
utilizar o potencial de aquicultura dos assentamentos e da região.
Além disso, como todo bom planejamento deve ser flexível e
devido aos incentivos à produção de biodiesel, foi estimulado o cultivo de
girassol na região dos assentamentos, com a instalação de moedor. A
iniciativa já gerou óleo comestível desse grão e, dependendo dos estudos
de viabilidade econômica, poderá se transformar em biodiesel, no mínimo
com a perspectiva autossustentável, fornecendo energia às fábricas do
assentamento. Foi prevista a construção de uma fábrica de conservas –
pepinos, cebolas e outros legumes –, aumentando o valor agregado do
que plantavam. Como é uma região de muitas famílias assentadas e de
grande território, pretendemos introduzir seus vários municípios em um
programa de desenvolvimento sustentável integrado em parceria com o
Banco do Brasil, Embrapa, Epagri e prefeituras. Nesse território está
ainda em funcionamento um moinho em Água Doce e está sendo
construída uma indústria de conservas em Vargem Bonita para incentivar-
mos a transição do fumo para hortifrutigranjeiros. A região conta com
35 técnicos que auxiliam os agricultores assentados a se desenvolverem
dentro da estratégia de cadeia produtiva que envolve crédito, assistência
técnica, transformação da produção e sua comercialização com autono-
mia das organizações dos assentados.
Essa foi a região em que o Incra mais aplicou recursos nos oito
anos do governo Lula, seja em infraestrutura, produção ou no financia-
mento dos agricultores assentados. Além das áreas já citadas – leite, peixe,
A Experiênciada Reforma Agráriaem Santa Catarina
30
biodiesel, culturas para a indústria de conservas –, a geração de energia
elétrica por meio de Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs) deverá ser
trabalhada com mais urgência. Há restrições normativas para a instalação
dessas usinas, reprimindo as oportunidades de aproveitamento de rios de
alto potencial energético. Paradoxalmente, os investidores privados
estão construindo diversas PCHs que atingem os projetos de assenta-
mentos. As maiores adversidades a serem superadas estão nos assentamen-
tos de Passos Maia, por não termos definido com precisão quais as
atividades a serem desenvolvidas. É um desafio urgente que envolve
logística, estratégia e método. A concentração fundiária e a matriz
econômica do município, baseada na exploração de madeira, não permiti-
ram um grau de organização política, social e econômica favorável para os
assentados, que têm na agricultura familiar a principal atividade. Outro
obstáculo a ser vencido é o de integrar esses projetos de assentamento no
desenvolvimento regional, envolvendo agricultores familiares e constru-
indo uma identidade territorial que possa dar suporte ao projeto de
erguimento social, político, econômico e de cidadania dessa maioria que
ainda não conquistou seus plenos direitos na região. Há uma fábrica de
farinha de mandioca em operação e está aumentando paulatinamente a
produção de leite devido ao trabalho da assistência técnica.
Planalto
Campos Novos, Fraiburgo, Vargem, Lebon Régis e Monte Carlo.
O conjunto de municípios dessa região está no mais privilegiado
espaço de Santa Catarina, seja pela localização ou pela logística da produ-
ção – e seu potencial também foi analisado por todos os interessados na
reforma agrária e no desenvolvimento dos agricultores assentados e dos
projetos de assentamento. Nos seminários realizados, as cadeias produti-
A Experiênciada Reforma Agráriaem Santa Catarina
31
vas com grande expectativa de crescimento foram as de leite e de grãos. Já
existia uma indústria de queijos em Campos Novos, implantada e ampliada
pelo Incra por meio do programa Terra Sol, e uma indústria para benefici-
ar e embalar grãos em Fraiburgo, na Cooperativa da Região do
Contestado (Coopercontestado).
Por essa introdução, nota-se que há uma forte possibilidade de
organização dos assentados na região, multiplicada pela atuação de mais
uma organização cooperativista em Lebon Régis, Fraiburgo e Campos
Novos – a Cooperativa da Região Oeste (Cooproeste). O cenário permite
prever que o conjunto de assentamentos do planalto catarinense pode
assumir a condição de principal produtor entre as áreas utilizadas para a
reforma agrária em Santa Catarina.
Suponho que as causas que ainda não proporcionaram tal status,
além de sua plenitude em participação social, política e econômica, tenham
sido as diversas experiências frustradas na região dos assentamentos, o
que faz com que as iniciativas enfrentem sempre um alto grau de desconfi-
ança. Esse ceticismo deverá ser vencido ou não atingiremos os objetivos
nesse território.
As melhorias implementadas pela nova administração do Incra e
seus parceiros envolveram tanto a infraestrutura dos assentamentos
quanto os aspectos produtivos. A infraestrutura – aqui entendida como
estradas, pontes, água, saneamento básico, escolas, construção e reforma
de casas – demandou muitas obras, inclusive com a formação de novos
assentamentos na região. Com apoio das prefeituras, Banco do Brasil,
Programa Desenvolvimento Regional Sustentável (DRS), Embrapa,
cooperativas e assentados conseguimos avançar em vários projetos de
produção e de infraestrutura. Destaco a ampliação da Escola Técnica em
Agroecologia, realizada com verbas do Programa Nacional de Educação
na Reforma Agrária (Pronera) em Fraiburgo, que vem ampliando o
número de técnicos filhos de assentados e assentados, capacitados para
produzir alimentos agroecológicos, que podem representar um grande
A Experiênciada Reforma Agráriaem Santa Catarina
32
recurso produtivo (e um diferencial de mercado) para os assentamentos.
Com recursos do programa Terra Sol, o Incra ampliou as instala-
ções da fábrica de laticínios e deu condições de transporte no escoamento
desse produto. Na sequência, com apoio do Banco do Brasil e recursos do
Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (Bndes),
investiram-se outros R$ 500 mil naquela fábrica, para atingir a sustentabi-
lidade social e econômica e ampliar o quadro social da Coopercontestado.
O convênio com a Cooperativa de Trabalhadores na Reforma Agrária
(Cooptrasc) foi assinado em 2006 e envolveu 70 técnicos e quatro
articuladores, auxiliando na profissionalização dessas agroindústrias e no
aumento da produção dos agricultores assentados da região.
Em Fraiburgo, na indústria de empacotamento de grãos, está
sendo conduzido um projeto para produção de feijão orgânico, inserido
na estratégia das cadeias produtivas, para atingirmos um mercado pouco
explorado e de larga expectativa. Em Lebon Régis, a Cooproeste
apresentou projeto junto à Companhia Nacional de Abastecimento
(Conab) para o cultivo de alimentos para diversas instituições do municí-
pio, contando com o apoio da prefeitura e do Incra. E outro para a
construção de um centro de distribuição dos produtos da reforma agrária
da região. São iniciativas que estão se tornando realidade a partir de um
planejamento estratégico regional e territorial integrado e sustentável.
A complexidade das questões dos assentamentos no planalto
catarinense impõe a utilização de todo o potencial disponível, caso
específico da pequena agroindústria de aves construída em Campos
Novos e ainda subutilizada. Também pretendemos colocar em funciona-
mento um frigorífico de abate de suínos em Fraiburgo, iniciado no
governo passado porém não terminado. Outro fator negativo nesse
contexto é a disputa entre personalidades que utilizam equipamentos
adquiridos com recursos do Ministério do Desenvolvimento Agrário
(MDA), sem uma discussão anterior com o Incra acerca do direito de uso
dos mesmos nos assentamentos. Esses equipamentos estão prejudicando
A Experiênciada Reforma Agráriaem Santa Catarina
33
a estratégia de fortalecimento dos assentados e agricultores familiares e
favorecendo grandes empresas privadas na disputa pelo mercado do leite.
Todos esses problemas terão que ser e serão resolvidos para que possa-
mos, também na região do planalto, ter condições de que os assentados da
reforma agrária e os agricultores familiares conquistem seu espaço social,
político e econômico.
As demandas sociais estão quase solucionadas, com escolas,
moradias reformadas ou novas e poucos problemas de captação e
distribuição de água para resolver. O fortalecimento das cooperativas dos
assentados é a grande meta para que, com autonomia, dominem os
processos de produção econômica e de relacionamento político e social da
região. Com a pavimentação das estradas daquela área os assentamentos
mais afastados terão oportunidade de se inserirem nestas cadeias produti-
vas, multiplicando a capacidade de produzir e comercializar, com ganhos
reais em qualidade de vida.
Planalto Norte
Calmon, Matos Costa e Timbó Grande.
Considero, como todos aqueles que participaram dos seminários
de desenvolvimento, que essa é uma das mais preocupantes regiões para a
questão da reforma agrária e o desenvolvimento sustentável integrado de
Santa Catarina. São regiões isoladas que apenas recentemente passaram a
ter condições de acesso por vias asfaltadas, podendo ampliar sua produção
e incorporar-se em determinada cadeia produtiva.
As análises realizadas pelos diversos parceiros listaram diversas
cadeias produtivas que poderiam ser implantadas, desde leite até peixes,
mas as distâncias não possibilitavam viabilidade econômica capaz de
oferecer-lhes sustentabilidade. O trabalho que estamos realizando prevê
A Experiênciada Reforma Agráriaem Santa Catarina
34
o conhecimento dos assentados, dos técnicos que trabalham ou trabalha-
ram na assistência técnica, social e ambiental; técnicos do Instituto
Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis
(Ibama) e é relacionado ao cultivo da bracatinga, para utilizá-la como
fonte de renda e consequente melhoria de qualidade de vida. Em alguns
assentamentos estamos mapeando os maciços de bracatinga e também os
lotes que deverão ser utilizados como reserva legal ou área de preservação
permanente. Conceitualmente é uma nova reforma agrária, para agregar
dignidade – em aspectos sociais e econômicos – e também representativi-
dade política àqueles assentamentos. A bracatinga foi apontada, a partir de
estudos realizados, como madeira de muitos usos, em especial para
construção civil e carvão, e, de tal maneira, o objetivo é que os assentados
possam usufruir de seus maciços sem intermediações que levam a maior
parte dos recursos e lhes deixam com o trabalho infantil, com as doenças e
a pobreza. Iniciamos o reordenamento fundiário de vários assentamen-
tos, um trabalho demorado mas com efeitos que orgulharão a todos nós
no futuro. Nossa pretensão é a de que os produtores organizem uma
cooperativa – ou que alguma se instale nos municípios – para comerciali-
zar os subprodutos da bracatinga, fazendo com que a renda chegue às
famílias assentadas. E que esses subprodutos sejam licenciados pelos
órgãos ambientais, proporcionando total segurança e transparência em
relação ao meio ambiente.
A expansão da cadeia produtiva do leite está condicionada ao
aumento de produção por família para que se efetive como um meio
sustentável de sobrevivência – e esse é um dos mais importantes objetivos
na região. A produção de hortifrutigranjeiros para comercialização nas
médias cidades da região é outra cadeia produtiva a ser incentivada, em
conjunto com o Programa de Desenvolvimento Regional Sustentável do
Banco do Brasil.
Mas, finalmente, não podemos desconsiderar que os assentamen-
tos se constituem em uma ‘ilha’ de agricultura familiar, cercados por um
A Experiênciada Reforma Agráriaem Santa Catarina
35
mar de florestas de pínus. Considerando a pressão que a commodity vem
exercendo sobre todos os agricultores catarinenses – com apoio ostensi-
vo do governo estadual – podemos prever que se não fizermos algo
urgentemente os próprios assentamentos se transformarão em florestas
arrendadas.
Região Norte
Rio Negrinho, Canoinhas, Irineópolis, Mafra, Santa Terezinha,
Papanduva, Monte Castelo, Garuva e Araquari.
Nesta região há um grande potencial e esforço proporcional das
diversas instituições, como Banco do Brasil, Embrapa, MST, cooperati-
vas e Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), para a construção de
um processo de desenvolvimento sustentável integrado. Já foram
realizadas reuniões que resultaram em um programa de desenvolvimento
com seus projetos componentes. São as bases das diversas cadeias
produtivas incentivadas, contando com a colaboração dos agricultores
assentados e suas organizações representativas, sociais e econômicas.
Cultivo de alimentos para a indústria de conservas, ervas medicinais e
essências aromáticas e condimentares, hortifrutigranjeiros e futuramente
a cadeia do leite foram as mais promissoras cadeias identificadas.
Essas escolhas foram feitas depois de diversas análises e seminários,
quando se chegou à conclusão de que um dos meios de aumentar a
produção e enfrentar a cultura da madeira na região era fortalecer as
organizações dos assentados. A Cooperdotchi, de Garuva, por exemplo,
vende toda sua produção de hortifrutigranjeiros orgânicos e semiorgâni-
cos e conta com mercado em expansão, todavia sem possibilidade de
ampliar sua produção por falta de espaço. Conclusão: o norte de Santa
Catarina e seus assentamentos poderiam ser um espaço territorial para
A Experiênciada Reforma Agráriaem Santa Catarina
36
esta produção aproveitando as vantagens mercadológicas e logísticas já
conquistadas pela Cooperdotchi.
As características dos assentamentos do norte de Santa Catarina
são basicamente de baixo índice de desenvolvimento humano e social e
com a cadeia produtiva poderemos aumentar a renda desses agricultores,
além de auxiliá-los na implantação de plantas de transformação agroindus-
trial.
Para contribuir ainda mais nessa transformação do perfil regional,
a UFSC (por meio de intervenções do Laboratório de Estudos da
Reforma Agrária – Lecera), aprovou vários projetos no Ministério do
Desenvolvimento Social para pesquisa de campo e de mercado para
trabalhar com óleos aromáticos e condimentares na região, inserindo-se
no programa que já havia iniciado com o apoio do Banco do Brasil (DRS),
Embrapa e as organizações dos assentados.
Esse trabalho não só permite avaliar a viabilidade de implantação da
cadeia produtiva nos assentamentos do norte do estado como também do
potencial de mercado para esses produtos, além de formar agricultores
para cultivar e transformar ervas fitoterápicas. Podemos notar que nesse
projeto o ciclo produtivo também está completo: recursos para pesquisa,
técnicos para orientação, possibilidade de construção de plantas para
transformação dos produtos e extenso mercado no Brasil e no exterior.
Vários projetos envolvendo ervas medicinais estavam em
implantação na região, mas sem organização. Com esse grande
projeto de moldar as cadeias produtivas daquela área, que começou
chamando-se DRS e agora chamamos de Programa de
Desenvolvimento Sustentável Integrado (PDSI), poderemos
integrar as diversas iniciativas, formando uma base expressiva para
produção e transformação das ervas, incluindo um seminário estadual
sobre tais espécies no decorrer de 2011. Estão contempladas todas as
etapas do processo de produção: recursos, técnicos, indústria de
transformação e comercialização.
A Experiênciada Reforma Agráriaem Santa Catarina
37
O mais avançado projeto componente desse programa na região é
o de produção de hortaliças. Necessidade que surgiu a partir de oportuni-
dades analisadas nos diversos seminários realizados na região. Para auxiliar
nesta produção pretende-se, com recursos do Ministério de
Desenvolvimento Agrário, construir em Irineópolis, norte do estado,
uma indústria de transformação de pó de basalto, que faz o papel do
calcário (na correção dos níveis de acidez do solo), melhorando e economi-
zando o insumo.
A Cooperdotchi não tem produção suficiente para satisfazer o
mercado criado por seu trabalho e, quando necessita completar sua
produção, compra mercadoria no Paraná. Em razão disso e do clima
diferenciado entre o litoral e o Norte de Santa Catarina, pode-se alternar a
produção nas duas regiões para que a entrega das mercadorias não seja
interrompida. Em síntese, a demanda de uma região complementava a
eterna problemática de encontrarmos uma cadeia produtiva que desse
sustentabilidade para os assentamentos do norte do estado. Esse trabalho
também conta com expressiva colaboração da Embrapa, do Banco do
Brasil e principalmente da UFSC, que aprovou projeto no Ministério do
Desenvolvimento Social visando o desenvolvimento da produção e
comercialização de hortaliças. Para auxiliar nesse trabalho foi fornecido
um veículo do Incra para auxiliar nas pesquisas e no desenvolvimento dos
projetos.
Para prosseguir o estabelecimento dessa cadeia produtiva foram
contratados técnicos pela UFSC e o convênio de assistência técnica do
Incra para estudos e prospecção de produtores junto aos assentamentos,
trabalho já iniciado e com resultados acima das expectativas. Dessas
diversas iniciativas chegou-se à conclusão que a Cooperdotchi, estabeleci-
da em Garuva, no litoral norte de Santa Catarina, deveria ser centralizada e
a mesma foi transferida para o município de Rio Negrinho, quase no
planalto norte do estado, na divisa com o Paraná. Com tais soluções
encaminhadas foi proposto junto ao programa Terra Sol do Incra a
A Experiênciada Reforma Agráriaem Santa Catarina
38
construção de uma indústria de transformação de produtos hortigranjei-
ros em Rio Negrinho, centralizando essa atividade dos assentamentos da
região. A fábrica deverá ser implantada entre 2010 e 2011. Outra planta
industrial de preparo de hortaliças foi instalada em Garuva em 2008,
concentrando o fornecimento desses itens para a comercialização no
litoral. Os assentamentos de Santa Terezinha, entre o planalto norte e o
Vale do Itajaí, ganharam uma cozinha multifuncional, com recursos da
Secretaria de Desenvolvimento Territorial e do MDA, que servirá para
treinamento na transformação dos vários produtos agrícolas cultivados
pelos agricultores da região. Com todos esses empreendimentos em
execução, consideramos que os assentamentos do norte de Santa Catarina
estão bem adiantados no planejamento proposto em 2004. Foi quando
compreendemos – em conjunto com diversas instituições parceiras – que
o desenvolvimento e a qualificação dos projetos de assentamento não
poderiam seguir como um trabalho isolado, como realizado até aquele
momento, e que deveríamos planejar a evolução dos territórios ou
regiões onde os trabalhadores rurais foram instalados.
Quanto à infraestrutura de transportes, de energia e de bem-estar social
todas as regiões sofrem de alguma maneira. Contudo os programas de
desenvolvimento territorial integrado incorporam essas necessidades, que
poderão ser resolvidas no decorrer da implantação de cada projeto componen-
te. Há necessidade de escolas, centros de treinamento ou formação e espaços
de lazer nos assentamentos de todo o estado. Muitas dessas demandas estão
sendo resolvidas em convênios com prefeituras ou com a participação direta
do Incra. Infraestrutura é uma necessidade premente para atingirmos o
desenvolvimento planejado pelas instituições, mas as instalações sociais, como
espaços de lazer, deverão ser obtidas junto aos órgãos municipais, estaduais e
federais. E os equipamentos de lazer dependem de pressão junto ao Ministério
do Planejamento para instituirmos uma política pública favorável aos jovens
do campo, pois vários estudos indicam que o espaço rural brasileiro está cada
vez mais masculinizado e envelhecido.
A Experiênciada Reforma Agráriaem Santa Catarina
39
Política para não índios ocupando terrasindígenas em Santa Catarina
questão das terras indígenas em Santa Catarina remonta às
capitanias hereditárias e depois à política estadual de concessão de Aterras para colonização e povoamento do estado. Essas terras
ainda hoje colocam em disputa, de um lado, milhares agricultores que
compraram seus títulos do estado no passado e, de outro, os indígenas
que as perderam, sendo reivindicadas como um direito. É um problema
tão complexo que ambos os lados têm razão: os índios que foram
espoliados e os agricultores que as adquiriram de boa-fé. Quando
assumimos o Incra, esse problema já estava posto e precisávamos achar
uma solução que, por sinal (e lamentavelmente), ainda não foi encontrada.
Resumindo o problema: a partir da Constituição de 1988 as terras
ocupadas por não índios estão proibidas de serem indenizadas e somente as
benfeitorias podem ter reparação financeira da Funai, instituição respon-
sável pela política indígena no Brasil. O papel do Incra é de reassentar os
não índios ocupantes dessas terras que cumpram os requisitos de serem
clientela da reforma agrária, ou seja, arrendatários, meeiros e agricultores
familiares, entre outros. Quanto mais se aprofunda a discussão, mais
problemas aparecem. Um exemplo é o caso de não termos terras suficien-
tes na reforma agrária nem mesmo para as famílias acampadas no estado.
Outro exemplo é que quando se consegue terras para reassentar esses
ocupantes não índios eles rejeitam aderir a um contrato de concessão de
uso dessas áreas, abrindo mão de serem proprietários privados. Questões
essas que se constituem em um imbróglio aos que não têm conhecimento
da política de reforma agrária. Para esclarecer: as famílias assentadas
assinam um contrato de concessão de uso das áreas dos assentamentos,
não sendo, desta maneira, proprietários privados, mesmo com todos os
direitos de herança preservados. Entretanto, esse contrato prevê que
essas terras não podem ser vendidas, arrendadas e devem ser usufruídas
A Experiênciada Reforma Agráriaem Santa Catarina
40
pela família com seu próprio trabalho. Quando os ocupantes de terras
indígenas são esclarecidos sobre essas questões não querem mais ser
reassentados, porque consideram que estão sendo prejudicados em seus
direitos. A Constituição de 1988 colocou essa barreira à indenização de
terras indígenas baseada no fato que são terras de exploração imemoriais
pelos índios, sendo que neste caso o Estado brasileiro não poderia
indenizar o que já seria sua propriedade por natureza. Além disso teria as
condições fundiárias das regiões Norte e Nordeste do país, com seus
milhares de hectares de áreas indígenas griladas abrindo espaço para ser
indenizadas de modo fraudulento. Santa Catarina se distingue nesse
aspecto, pois foi o estado que vendeu essas terras aos agricultores e nada
mais justo que este se responsabilizasse pela sua indenização. Nos meus
primeiros anos à frente do Incra foram resolvidos alguns casos recorren-
do ao Programa Nacional de Crédito Fundiário, sugestão surgida nesta
superintendência com apoio de um técnico que trabalhava na Secretaria de
Reordenamento Fundiário do MDA, em Brasília. A sugestão incorpora-
va o financiamento da terra para esses ocupantes e incluía outras políticas
públicas que beneficiam a reforma agrária, como financiamento produti-
vo por meio do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura
Familiar (Pronaf A, em torno de R$ 20 mil), recursos para moradia,
infraestrutura e apoio do estado em assistência técnica. O documento foi
elaborado e enviado para as autoridades interessadas, sendo que até hoje
não houve nenhum sinal oficial de qual direção tomou. O problema
persiste e várias regiões estão em estado de conflito, latente às vezes e
manifesto em muitas ocasiões. Para tentarmos resolver esse problema de
maneira diversa contatamos com deputados na Assembleia Legislativa de
Santa Catarina para mudarmos a Constituição do Estado, permitindo
assim a indenização aos ocupantes não índios e que a partir daí fosse
construída uma política pública para solucionarmos definitivamente o
problema. Na Assembleia os deputados já haviam tentado aprovar uma
Proposta de Emenda Constitucional (PEC), mas não foi obtido êxito por
A Experiênciada Reforma Agráriaem Santa Catarina
41
divergências com o governador da época. Para conseguirmos aprovar
essa PEC, muitos deputados trabalharam cotidianamente (e, porque não
dizer, silenciosamente), para não haver resistências do governo de Luiz
Henrique da Silveira, que é contrário a essa política indigenista, muito
provavelmente influenciado por maus conselheiros. Finalmente consegui-
mos aprovar por unanimidade na Assembleia Legislativa a proposta que,
sendo uma PEC, é homologada por aquela própria Casa, dispensando a
sanção do chefe do Executivo estadual. Em resumo, tínhamos uma arma
que poderia e pode resolver a maioria dos problemas com terras indígenas
em Santa Catarina, pois com a regulamentação da PEC, ainda não realiza-
da, poderemos compartilhar ações entre o estado e a União, indenizar os
agricultores e os indígenas poderão ter e dispor de suas terras. Essa
proposta, que consiste em repasse de recursos para Santa Catarina
indenizar ou reassentar as famílias que ocupam terras indígenas e são
clientela potencial da política da reforma agrária, foi discutida em Brasília
com os ministros da Justiça, do Desenvolvimento Agrário, os presiden-
tes da Funai e do Incra. Esse repasse seria na ordem de 80% para o governo
federal e 20% para o estadual, mediante convênio ou instrumento que
possa ser utilizado. Tal política poderia ser realizada de maneira gradual no
período entre cinco e 10 anos e envolvendo todas as diretrizes estaduais
de benefícios aos agricultores familiares, como distribuição de calcário,
assistência técnica, troca-troca de sementes etc. Se avaliarmos que seriam
necessários R$ 150 milhões para resolver o problema podemos dizer que
a União entraria com R$ 120 milhões e Santa Catarina com o restante, os
quais, divididos numa política gradual de uma década representariam R$
15 milhões/ano. Uma política pública que é capaz de equacionar proble-
mas seculares e oferecer tranquilidade aos agricultores e aos indígenas.
A proposta não chegou ao gabinete do governador por falta de
disponibilidade de agenda por parte do administrador catarinense há mais
de três anos...
A Experiênciada Reforma Agráriaem Santa Catarina
Esperamos que o futuro nos auxilie a resolver esse problema, que,
por análise equivocada, induz a preconceitos e interesses que não aqueles
que deveriam determinar e guiar uma política pública desse perfil em Santa
Catarina e no Brasil.
42
A Experiênciada Reforma Agráriaem Santa Catarina
Política para remanescentes de quilombos emSanta Catarina
questão dos quilombolas em Santa Catarina começa com um fato
curioso e que demonstra o preconceito e a exclusão que algumas Acomunidades brasileiras enfrentam. A frase que melhor ilustra esta
situação é a de que em Santa Catarina não existiriam quilombolas, pois
seria um estado colonizado por europeus e não havia negros. Argumento
recorrente nas defesas elaboradas pelos advogados que representam
proprietários de terras estão envolvidos nessas questões. Muitos
argumentam que nunca viram ou nunca houve negros em suas terras ou
arredores, numa demonstração que a exclusão não se dá somente com
perdas materiais – terras, casas e mesmo cemitérios – mas também
excluindo os seres humanos, não os vendo, não os ouvindo e eliminando
sua existência de maneira simbólica. Essa deve ser a mais nociva e perversa
exclusão: a perda da memória, da identidade, das pessoas em detrimento de
interesses materiais. No caso de Santa Catarina, a direção do Incra
priorizou duas grandes comunidades quilombolas para iniciar seu
trabalho, levando em conta os recursos humanos e materiais disponíveis.
Todo esse trabalho iniciou quando o governo Lula emitiu um decreto
regulamentando o artigo 185 da Constituição Federal, que recuperava
historicamente a luta dos negros brasileiros pelas terras de onde foram
expulsos ou expropriados. Esse artigo poderia ter sido regulamentado no
governo de Fernando Henrique Cardoso, mas este não o fez devido às
pressões de sua base de governo. Na regulamentação, o Incra, por ser
instituição vinculada ao MDA, foi o responsável pela política de identifi-
cação, reconhecimento, demarcação e titulação das terras quilombolas
do Brasil. Em Santa Catarina o Ministério Público Federal de Joaçaba já
assumira uma ação civil pública para demarcação de um território que
envolve dois municípios – Campos Novos e Abdon Batista – chamado
Invernada dos Negros. Com essa ação em andamento, o Incra de Santa
43
A Experiênciada Reforma Agráriaem Santa Catarina
44
Catarina (apoiado pela pressão do Movimento Negro Unificado –
MNU) começou as atividades na região, sem mesmo ter uma ideia dos
rumos a tomar, por não termos experiência nessa área. Constituímos um
grupo de trabalho com servidores do Incra, Universidade Federal de
Santa Catarina e lideranças de movimentos negros – e nosso primeiro
passo foi ouvir a comunidade do território, para identificar os limites da
área. Nessa primeira fase agimos na base do ensaio e erro e enfrentamos
grandes dificuldades, inclusive respondendo judicialmente por trafegar-
mos em estradas municipais que atravessavam fazendas e plantações de
florestas de uma grande empresa da região. Diante de todas essas adversi-
dades, houve a sugestão de contratarmos ou nos conveniarmos com
alguma instituição para que esta produzisse um laudo técnico antropoló-
gico que nos permitisse realizar a demarcação do território. Uma vez
decidido que a UFSC seria a instituição capaz de elaborar esse laudo, o
Incra do Rio Grande do Sul solicitou que incluíssemos nessa perícia um
território chamado Casca, onde exerciam trabalho semelhante. Por conta
dessas diversas solicitações ampliamos o convênio e envolvemos o
território de Invernada dos Negros, a comunidade São Roque, no Sul de
Santa Catarina, e Casca (RS).
O passo seguinte foi cadastrar os integrantes das duas comunida-
des catarinenses, em um total de aproximadamente 1.200 famílias, dos
quais mil na Invernada dos Negros e o restante em São Roque. Hoje,
cerca de 100 famílias vivem na comunidade Invernada dos Negros e as
demais distribuídas por Santa Catarina.
O êxodo, pois, como consequência da exclusão.
E, mesmo diante disso, ainda há quem se apegue à suprema ironia de
afirmar que não existem negros na Invernada dos Negros.
A UFSC concluiu seu trabalho, apresentado e debatido com as
comunidades negras de Santa Catarina e deflagrou uma nova fase: a
concordância das comunidades aos limites geográficos e culturais
encontrados pelos laudos técnicos antropológicos. O caso da comunida-
A Experiênciada Reforma Agráriaem Santa Catarina
de São Roque parecia o de mais fácil solução, uma vez que a mesma
envolvia em seus limites geográficos grande parte de terras da União
dentro do Parque Nacional de Aparados da Serra – na divisa de Santa
Catarina e Rio Grande do Sul –, à época administrado pelo Ibama e
atualmente pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da
Biodiversidade (ICM-Bio). Essa área representa aproximadamente 7 mil
hectares, sendo que 70% dela estava no interior do parque e o restante
pertence a particulares. Encerrada a elaboração do laudo e a demarcação
realizada em campo pelo Incra, passamos a notificar os ocupantes da área
para que no prazo legal de 90 dias apresentassem suas contraprovas e
documentação que confirmasse a posse e o domínio da área para futura
indenização ou disputa judicial. Nessa fase o que mais surpreendeu os
técnicos do Incra, do Ministério Público Federal e os próprios quilom-
bolas foi a resistência do Ibama ao laudo antropológico, à demarcação e às
reivindicações da comunidade São Roque. Considere-se neste aspecto
que, desde a demarcação do parque, nenhuma família que estava dentro de
seus limites foi indenizada e suas reivindicações eram consideradas sem
fundamento. O prazo para contestações expirou e nenhuma contestação
apresentou requisitos legais ou históricos que invalidassem o relatório
técnico de identificação e demarcação produzido pelo Incra a partir do
laudo técnico antropológico realizado pela UFSC. O que está prejudican-
do o andamento dos trabalhos dessa demarcação é a contestação apresen-
tada pelo Ibama, que recorreu aos mesmos argumentos dos particulares,
inclusive que não existiriam quilombolas na região. Favorecido pelos
trâmites burocráticos brasileiros, esta impugnação foi levada a uma
câmara de conciliação da Advocacia Geral da União, em Brasília, para
conciliar pareceres contraditórios de duas autarquias da União (Incra e o
Instituto Chico Mendes, na época IBAMA). Absurdo kafkiano que
coloca brasileiros iguais em direitos em instâncias diferentes para julga-
mento, principalmente quando envolve a Justiça neste país. Não é por
acaso que um famoso autor chamou o Brasil de país dos bacharéis, pois
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A Experiênciada Reforma Agráriaem Santa Catarina
seus privilégios ultrapassam qualquer noção republicana de cidadania.
Mas o que realmente interessa aos quilombolas é o reconhecimento do
território, algo que pode demorar meses ou anos em razão de entendi-
mentos distintos de duas autarquias sobre um caso julgado para centenas
de particulares. Quando a portaria for editada poderemos continuar com
o trabalho de resgate dos direitos – mediante indenização das terras e
benfeitorias, além da demarcação de seu território – para que eles tenham
paz e possam ter uma vida digna e de trabalho. Até a publicação deste
livro, não era possível sequer que promovessem melhorias em suas
moradias.
Os primeiros passos (obedecendo à lógica do erro e acerto) da
operação em Invernada dos Negros, nos municípios de Campos Novos e
Abdon Batista, nos deixaram mais cautelosos para que chegássemos mais
rapidamente ao fim do processo sem grandes conflitos, mesmo conscien-
tes que eles são inevitáveis.
O início do trabalho foi conturbado, como explicado anterior-
mente, mas após termos recebido o laudo antropológico da UFSC, que
fundamentou o relatório de identificação e demarcação do território da
Invernada dos Negros, as atividades ganharam agilidade e um ritmo
satisfatório, considerando as condições materiais e humanas que o
Incra/SC dispunha. Com esse laudo, nossos técnicos foram a campo e
produziram um relatório, que nos deu as condições de prosseguir com as
notificações daqueles que estavam ocupando esse território e esclarecen-
do sobre os devidos prazos legais para contestação. Como a área do
território abrange 8 mil hectares em dois municípios, muitos interesses
foram atingidos e contrariados, provocando uma luta desigual entre os
quilombolas e os proprietários que se consideram legítimos donos dessas
terras. Além disso, a metade da área pertence a uma indústria de papel e
papelão, que tem suas florestas cultivadas e gera empregos e divisas para a
região. As consequências foram proporcionais àquilo que estava em
disputa, com agravantes de perversidade: ameaças aos quilombolas, de
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A Experiênciada Reforma Agráriaem Santa Catarina
demissões na indústria etc. Uma audiência pública realizada pela
Assembleia Legislativa, em Campos Novos, reuniu milhares de pessoas
que se opuseram às reivindicações dos quilombolas, porque perderiam
seus empregos – já que a indústria divulgou que deixaria a região se essa
política pública se tornasse realidade. As prefeituras e todas as organiza-
ções de interesses econômicos manifestaram-se contrárias, colocando
assim às claras os interesses contrapostos na região. A empresa contratou
um técnico para realizar um laudo contrário, segundo o qual não foram
encontradas evidências de quilombolas na região, apesar das centenas de
negros participando da audiência e defendendo seus interesses e reivindica-
ções. E mais: 95% das autoridades que participaram da audiência eram
contrárias a essas desapropriações, sobrando o Incra, o Ministério
Público Federal e um deputado estadual como favoráveis ao respeito à
Constituição e que necessitaram da proteção da Polícia Federal para
realizar seu trabalho.
É o que enfrentam aqueles que estão envolvidos em políticas
públicas favoráveis aos excluídos da cidadania brasileira.
Depois de diversas tentativas infrutíferas de deputados, senadores
e outros políticos, o trabalho prosseguiu e as notificações foram
entregues, com o devido prazo legal concedido para as impugnações ao
Relatório Técnico de Identificação e Demarcação (RTID) do Incra.
Vencido esse período legal e as análises da procuradoria jurídica do Incra,
não houve acatamento de nenhum argumento contrariando o RTID,
posteriormente aprovado no Conselho Diretor Regional do Incra e
encaminhado para Brasília para análise do Conselho Diretor nacional e
posterior publicação de portaria de reconhecimento assinada pelo
presidente do Incra. Uma vez publicada, em dezembro de 2009, o Incra
iniciou seus trabalhos de vistoria e avaliação das áreas privadas atingidas
pelo território quilombola, visando a posterior negociação com aqueles
proprietários que comprovassem posse e domínio para indenização. A
estratégia adotada foi principiar pelos proprietários que tivessem
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A Experiênciada Reforma Agráriaem Santa Catarina
interesse em negociação administrativa, para que pudéssemos adiantar os
trabalhos e já dotarmos a comunidade de condições de sobrevivência e
acesso a créditos e investimentos produtivos. Quanto à empresa detento-
ra de mais de 50% da área, a negociação envolve alguns parâmetros a serem
regulamentados. Pretendemos indenizar as terras, porém ainda não temos
definição para as florestas plantadas, algo a ser solucionado pela procura-
doria do Incra. Depois de negociações com o empresário dono das terras
e das florestas, ele se interessou em uma compensação com o governo
federal, abatendo dívidas contraídas. Deixando bem claro que prioriza-
mos estas duas regiões porque as outras comunidades já requereram ao
Incra seu reconhecimento e demarcação. No entanto, temos estudos que
indicam que há mais de 30 comunidades quilombolas em Santa Catarina
para serem reconhecidas. O prosseguimento de nosso trabalho, confor-
me a estratégia traçada pela direção do Incra de Santa Catarina, está
condicionado às condições humanas e materiais, envolvendo as comunida-
des já estabelecidas em suas terras, todavia sem o reconhecimento de seus
territórios. Em razão disso, priorizamos cinco territórios a serem
trabalhados: Campo dos Poli, em Monte Carlo; Aldeia, em Garopaba;
Paulo Lopes, na Grande Florianópolis, e outras três comunidades em fase
de organização. Em 2010 o Incra de Santa Catarina lançou edital de
licitação para que empresas especializadas elaborem laudo antropológico
das comunidades priorizadas. Essas negociações estão avançadas e
pretendemos para o ano de 2011 realizar esses trabalhos conjuntos e
continuar a missão institucional do Incra de identificação, reconhecimen-
to, demarcação e titulação dos territórios quilombolas de Santa Catarina.
O trabalho desenvolvido resultou na publicação de três livros, que estão
auxiliando as ações do Incra no Brasil inteiro. Livros estes publicados por
meio de convênio para realização dos três laudos técnicos antropológi-
cos, relacionados a Invernada dos Negros, São Roque e Casca (RS).
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A Experiênciada Reforma Agráriaem Santa Catarina
Política de ordenamento fundiário de Santa Catarina
uando iniciamos nosso trabalho no Incra de Santa Catarina não
havia nenhuma sinalização de setores sociais para o conjunto de Qdemandas dos agricultores familiares, em situações como falta de
documentos de suas terras ou de posses precárias. Em nível nacional, o Sul
do país não enfrentava esse problema, considerando-se as grandes
dificuldades encontradas no Norte e no Nordeste brasileiro. Essa
questão, em um primeiro momento, apareceu para a direção do Incra de
Santa Catarina de maneira totalmente casual, quando o superintendente,
em viagem, encontrou o prefeito de um município do interior que
perguntou-lhe se não haveria maneira de ajudar a maioria dos agricultores
de sua cidade, que tinham posse precária de suas terras e não conseguiam
acesso às políticas públicas do governo federal. O problema também se
evidenciou com o lançamento do programa Microbacias II, que envolve
recursos do Banco Mundial e do governo estadual. Em seus trabalhos nas
microbacias, técnicos contratados detectaram que agricultores identifi-
cavam a falta de posse legal da terra como um obstáculo sério, repercutin-
do da mesma maneira que àqueles agricultores citados pelo prefeito.
Diante disso, a direção do Incra de Santa Catarina, na reunião de planeja-
mento anual de 2006, em Brasília, notou que muitos recursos para
regularização fundiária não estavam sendo aplicados ou não haviam
projetos de regularização fundiária, já que o foco inicial de todos os
superintendentes visualizava a obtenção de terras para reforma agrária
stricto sensu, reivindicação que no novo governo havia levantado
expectativas para a maioria dos sem terra. Baseados nessa perspectiva
apresentamos projeto para, inicialmente, regularização de 500 famílias.
Aparentemente, foi o único estado brasileiro que teve essa iniciativa
naquele ano. A regularização fundiária em Santa Catarina tem peculiarida-
des que a diferencia dos outros estados, pois aqui os agricultores estão em
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A Experiênciada Reforma Agráriaem Santa Catarina
posse de terras que não são municipais, estaduais ou federais. Em Santa
Catarina não há titulação de famílias agricultoras, pois as terras não são
públicas. O processo começa com o levantamento documental das
famílias em situação fundiária precária, contratação da demarcação
georreferenciada de suas terras e ingresso na Justiça com processo de
usucapião. Encerradas todas essas fases, os agricultores não são titulados
mas recebem a própria escritura de suas terras. Porém é um processo
lento, a envolver parceiros municipais, estaduais, federais e a Justiça
estadual. Para levarmos essas tarefas à frente, firmamos convênio com o
Governo do Estado de Santa Catarina, por meio da Secretaria de
Agricultura, no qual esta se comprometia com o trabalho de cadastra-
mento, topografia e ajuizamento das ações. O governo federal aportou
os recursos necessários para o cumprimento dessas etapas e fez a certifica-
ção do georreferenciamento das áreas, que é uma das atribuições do
Incra. Nos deparamos com grandes dificuldades porque o Governo do
Estado de Santa Catarina centralizou suas ações administrativas e muitas
vezes as secretarias estão inadimplentes com algum órgão federal e não
podem celebrar convênios. Outro obstáculo foram as licitações necessá-
rias para topografia e georreferenciamento, igualmente centralizadas.
Com todos esses impedimentos contornados atuamos em diversos
municípios catarinenses, contudo nos defrontamos com problemas
políticos. O governo do estado tomou para si a paternidade e a operacio-
nalização do projeto, contudo temos equacionado essas questões
paulatinamente e pretendemos finalizá-las em 2011. A política de regulari-
zação fundiária inclui vários municípios e muitas famílias estão com o
processo em andamento, muitos desses aguardando sentença judicial. A
direção do Incra de Santa Catarina reuniu-se com o presidente do Tribunal
de Justiça de Santa Catarina, solicitando maior agilidade – dentro dos
prazos legais – na análise e sentença dessas milhares de ações que estão em
andamento pelo estado todo. Pretendemos agora planejar os próximos
passos dessa empreitada, debatendo com os demais diversos parceiros.
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A Experiênciada Reforma Agráriaem Santa Catarina
Nota-se que Brasília não tem ideia do problema da posse precária desses
agricultores no Sul do Brasil e talvez precisemos realizar uma ação
conjunta dos três estados da região para que essa política pública chegue
com mais rapidez aos cidadãos que necessitam desses documentos. O
órgão gestor da política e da malha fundiária do país não pode ficar inerte
diante de milhões de hectares que estão em produção por agricultores
familiares, que não conseguem melhorar sua qualidade de vida, seja
econômica, social ou política. A partir de 2008 formalizamos novo
convênio com o Governo do Estado de Santa Catarina, envolvendo
1.500 famílias nesse esforço de regularização de suas terras. Além da
política de regularização fundiária, a autarquia também atende aos
quilombolas, certificação das áreas rurais, desmembramentos, anulação
de cadastro e com todo o cadastro do Incra. Seguramente não teremos
condições de atender os cidadãos que nos procuram para certificar suas
propriedades, em razão da falta de recursos humanos, pois somente uma
pessoa é responsável por todo esse trabalho.
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A Experiênciada Reforma Agráriaem Santa Catarina
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Política de meio ambiente nos projetos deassentamento de Santa Catarina
questão ambiental nos projetos de assentamento de reforma
agrária, sejam estaduais ou federais, nunca foi analisada ou conside-Arada como um aspecto de grande importância nos governos
passados. Inclusive não fazia parte da estrutura do Incra ou de órgãos
estaduais que tenham envolvimento com a reforma agrária. Quando
iniciou o governo Lula o próprio Incra criou e aprovou uma resolução
junto ao Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama) que tratava
desse assunto tão em foco hoje em dia. O problema é que a demasiada
pressa em mostrar serviço de alguns novos burocratas na administração
pública federal (que ingressaram com o advento do governo Lula)
resultou em instruções muito pormenorizadas para regularizar os
projetos de assentamento, paralisando, muitas vezes, a reforma agrária
em todo o Brasil devido aos seus gritantes dispositivos inaplicáveis. Um
projeto de assentamento tornou-se uma fábrica com fontes inesgotáveis
de poluição e, para licenciá-los, os critérios eram tantos e tão absurdos
que parecia que instalávamos uma usina de energia nuclear. Os grandes
‘conhecedores’ que negociaram esta resolução junto ao Conama nunca
tinham visto um projeto de assentamento e também não sabiam das fases
necessárias para obtermos terras, licenciamento, imissão na posse e
instalação do próprio.
A resolução é tão absurda que o Incra deve solicitar licenciamento
prévio da área que poderá se tornar assentamento, ainda que a área não seja
propriedade do Incra, sem a certeza de que será produtiva e se servirá para
os interesses da reforma agrária. O absurdo é tanto que a União tem que
pagar pelo licenciamento sem mesmo saber se a área poderá se tornar um
dia um assentamento. Considero que deveriam cobrar de quem inventou
esses requisitos todas as licenças pagas e não utilizadas no Brasil inteiro,
com base na má aplicação de dinheiro público por causa de requisitos
A Experiênciada Reforma Agráriaem Santa Catarina
legais absurdos. Mas partindo dessas ‘boas intenções’, o Incra passou mais
de quatro anos tentando achar uma maneira de cumprir o que a legislação
exigia de seus assentamentos novos e antigos. O absurdo chegou a tal
ponto que os ministérios do Desenvolvimento Agrário e do Meio
Ambiente, as autarquias Incra e Ibama, além do Ministério Público
Federal, assinaram um Termo de Ajustamento de Conduta nacional,
prevendo prazos para o licenciamento dos projetos de assentamento.
Como era previsível, esse TAC não foi cumprido. Diversos fatores,
como diferenças entre os assentamentos, diferenças regionais, número de
assentamentos no país, recursos financeiros para esse trabalho e a total
falta de conhecimento e experiência na área, não somente dos órgãos
estatais, mas também de empresas privadas que poderiam ser contratadas
para realizar o trabalho, foram as causas do fracasso. Mas o trabalho a ser
realizado persistia e teríamos que começar de alguma maneira. Em Santa
Catarina técnicos do Incra com disposição para trabalhar nessa área
começaram a estudar as resoluções e tentar encontrar uma solução.
Vários estudos foram feitos, sendo que o desfecho exigiria que adaptás-
semos a resolução do Conama às condições das instituições envolvidas
com o licenciamento e a fiscalização ambiental dos projetos de assenta-
mento. Com essa base, nos reunimos com Ibama, MST, MPF, Polícia
Ambiental, Fundação de Meio Ambiente (Fatma, o órgão estadual de
meio ambiente em Santa Catarina) e todos aqueles que estivessem interes-
sados na questão. Chegou-se à conclusão de que poderíamos construir
um termo de referência que permitisse iniciar o trabalho ambiental nos
projetos de assentamento. Foi elaborado um termo de referência de
consenso e, baseado nele, construiu-se edital de concorrência pública para
a feitura dos Projetos Básicos Ambientais (PBAs) para os assentamentos
de Santa Catarina. Uma empresa do Paraná venceu a concorrência e em um
ano os referidos projetos estavam prontos para serem apresentados à
Fatma. Os PBAs contemplam todas as áreas: social, ambiental, econômica
etc. Foram utilizadas imagens de satélite dos projetos de assentamento e
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A Experiênciada Reforma Agráriaem Santa Catarina
quando essas imagens estavam prejudicadas utilizou-se aerofotograme-
tria, ou seja, voos fotografando as áreas de assentamento. A situação
ainda não estava totalmente solucionada porque a Fatma estadual não
tinha recursos materiais e humanos suficientes para análise de todos os
projetos. A saída encontrada foi o Incra/SC assinar convênio com o
Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae/SC),
tendo a Fatma como interveniente, para que se contratassem técnicos
especializados e os cedessem à Fatma para agilizar a análise dos PBAs.
Dispondo das condições necessárias para licenciarmos os projetos novos
e antigos de assentamentos de Santa Catarina, finalmente iniciou-se o
trabalho.
Quando este livro foi concluído estávamos com 98% dos projetos
de assentamento de Santa Catarina com Licenciamento Ambiental de
Operação, (LAO), também chamada de LIO em outros estados da
federação. Com esses objetivos cumpridos, já partimos para outra etapa –
executar as obras e serviços exigidos no licenciamento. Para isso a área
ambiental do Incra/SC construiu um termo de referência que servisse
para nova concorrência pública, adicionando educação e recuperação
ambiental nos projetos de assentamento. A iniciativa ainda é incipiente,
contudo já atinge 40% dos projetos de assentamento de Santa Catarina,
começando por aqueles que obtiveram a LAO e necessitam com urgência
de soluções para as questões ambientais levantadas pelos Projetos
Ambientais Básicos. Dessa maneira Santa Catarina deve ser o primeiro
estado brasileiro que consegue realizar os objetivos traçados pela
resolução do Conama e iniciar o sonho de qualquer política pública: traçar
um desenvolvimento que seja social, econômica, política e ambientalmen-
te sustentável.
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A Experiênciada Reforma Agráriaem Santa Catarina
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Política de obtenção e implantação de projetos deassentamento em Santa Catarina
ssa é uma área sem muitos avanços depois de Lula assumir o gover-
no. Apesar das grandes expectativas geradas pelo novo governo, Enão houve qualquer medida de impacto na obtenção de terras que
pudesse aumentar o estoque de áreas para projetos de assentamento. Nos
sete anos do novo governo o Incra de Santa Catarina implantou 13
projetos de assentamento em todas as regiões do estado, sendo alguns
pelo mecanismo de compra e venda, recorrendo ao decreto federal 433,
que permite a aquisição com pagamento em quatro vezes, recorrendo aos
Títulos de Dívida Agrária (TDAs). O avanço não ocorreu também
porque a legislação continua a mesma dos outros governos no que se
refere à desapropriação e, dessa maneira, em um estado que enfrenta
dificuldades de diversas origens não conseguimos ampliar as áreas de
projetos de assentamento. A estratégia da direção do Incra de Santa
Catarina foi promover um levantamento in loco das áreas indicadas pelos
movimentos sociais e sindicais. Posteriormente, com informações de seu
cadastro rural, arrolar as áreas passíveis de desapropriação e, finalmente,
atuar em terrenos do estado nos quais o Incra ainda não tinha atuado por
razões políticas e culturais da própria instituição, que são aqueles em
campos e de fazendas de florestas. O cadastro da instituição nos reservou
grandes surpresas, porque muitas das fazendas improdutivas encontradas
eram os próprios assentamentos implantados há 20 anos e que não haviam
sido atualizados. Em campo prosseguimos com vistorias constantes, não
obstante com poucos resultados concretos. Um aspecto que se destaca
nessa falta de resultados se deve ao fato de que Santa Catarina é majoritari-
amente zona de mata atlântica e de ter relevo muito acidentado, além de
apresentar altos índices de produtividade. Partindo desses pressupostos,
mais à frente listamos algumas sugestões para melhorarmos a reforma
agrária no estado e conseguirmos terras para as famílias que tanto
A Experiênciada Reforma Agráriaem Santa Catarina
necessitam. Em nossa estratégia conseguimos algumas áreas em zonas de
pecuária e campo, onde no passado não se realizavam vistorias por
pressões políticas dos proprietários e políticos dessas regiões. Ainda
assim não houve progressos, se compararmos com outras iniciativas
desenvolvidas pelo Incra em Santa Catarina. Esperamos que as sugestões
listadas possam ser implantadas, o que daria condições de resolvermos os
problemas das famílias acampadas no estado.
Sete sugestões sobre obtenção de terras e implantação de assenta -
mentos
1 – Recadastramento de todas as áreas rurais acima de 15 módulos
fiscais com cobrança de taxa de certificação pelo Incra.
- Essa medida poderia garantir vantagens estratégicas em termos
operacionais e políticos.
- Em termos operacionais poderíamos encontrar terras improdutivas
para futuros projetos de assentamento.
- Em termos políticos a taxa de certificação geraria recursos necessá-
rios para reaparelhar o Incra nesse setor e também para outros
trabalhos que a instituição realiza sem cobrança, o que obriga a
autarquia a disputar orçamento sem fonte para a União.
- Outra vantagem seria organizar, junto com a Receita Federal, uma
base cadastral confiável para praticarmos justiça fiscal no Brasil,
principalmente na área rural.
2 – Desapropriação no entorno das gra ndes usinas hidrelétricas
construídas ou a construir
Vantagens:
a) Terras para famílias atingidas pelas barragens, terras para agriculto-
res não índios ocupantes de áreas indígenas e terras para agricultores
sem terra.
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A Experiênciada Reforma Agráriaem Santa Catarina
b) Os lagos poderiam aumentar a vida útil porque suas áreas de
preservação permanente não poderiam ser usadas para plantio ou
outra operação que aumentasse o assoreamento.
c) Aumentaria a vida útil das usinas, reduzindo o custo da energia para
a sociedade.
d) Se a retirada de famílias atingidas tem o efeito perverso do benefí-
cio maior para a sociedade, com a geração da energia para indústrias,
comércio e consumidores em geral, com a desapropriação dessas
terras também poderiam ser utilizadas com esse mesmo argumento.
E adicionando o importante auxílio social aos que mais necessitam.
e) Implantação de projetos de assentamento com toda a infraestrutu-
ra realizada pelo Incra e indenização das terras pelas concessionárias
das hidrelétricas.
3 – Modificação dos índices utilizados para desapropriação
media nte uma atualização.
4 – Liberação de dados do INSS e da Receita Federal para cruzar a
produtividade e tamanho de propriedade.
5 – Cumprimento total da função social da terra.
6 – Propriedades com mais de 50 módulos fiscais cederão 10% para
reforma agrária e as fazendas florestais 15%.
7 – Regularização fundiária com recursos federais, estaduais e
municipais de todas as áreas de utilização agrícola de até 15 módulos
fiscais, sendo que em áreas de fronteira poderiam ser usados recur-
sos humanos do Exército para auxiliar nesse trabalho.
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A Experiênciada Reforma Agráriaem Santa Catarina
A Experiênciada Reforma Agráriaem Santa Catarina
61
Ouvidoria Agrária
ssa é uma área que já existia no governo anterior, mas que foi
ampliada na atual gestão, sendo que em Santa Catarina não enfrenta-Emos nenhum caso extremo de conflitos agrários nos últimos sete
anos.
A Experiênciada Reforma Agráriaem Santa Catarina
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Administração, finanças e recursos humanos
ssa é uma área nevrálgica para o Incra em todo o Brasil, porque os
recursos humanos, administrativos e financeiros não são o bastante Epara dar sustentação a essa grande política pública. Foram necessári-
as mudanças internas, funcionais e de pessoas, o que criou um clima difícil,
considerando os costumes já instalados há anos. Foram mudadas todas as
chefias e processos para que o gabinete que dirigia a instituição conseguis-
se o controle dos meios e fins da autarquia. Entre os problemas estava a
falta de respeito pela hierarquia e a relação direta dos funcionários com
Brasília, sem que o superintendente e seu gabinete tivessem conhecimen-
to. Esses poucos exemplos já indicam que a instituição não tinha uma
missão definida, não havia monitoramento e controle do que era feito na
administração, favorecendo os desvios, quaisquer que fossem. Com essas
alterações, o gabinete diretivo tem consciência do que acontece interna-
mente e os funcionários se tornaram mais profissionais, sabendo por que
estão trabalhando e não se limitando a enxergar na instituição um espaço
para receber o salário e passar os dias.
Hoje há controle dos veículos, do almoxarifado, dos recursos
humanos e de todas as tarefas administrativas. Aumentou a agilidade nas
licitações e convênios necessários para melhoria dos mais carentes, que
são os acampados, assentados, quilombolas e todos aqueles que represen-
tam a missão da instituição.
Os problemas que persistem e com tendência de aumentar são as
certificações de áreas, as certidões para aposentadoria rural – que hoje
demoram em média três meses para serem entregues, prejudicando
enormemente aqueles agricultores e agricultoras que estão se aposentan-
do junto ao INSS.
Todos esses problemas ocorrem por falta de recursos humanos
que, além de escassos, estão se aposentando em larga escala. Hoje a
superintendência do Incra/SC não dispõe de engenheiro civil, adminis-
A Experiênciada Reforma Agráriaem Santa Catarina
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trador de empresas, analista de informática, engenheiros topográficos
ou de área correlata. Desse diagnóstico podemos dizer que o Incra
logo enfrentará dificuldades para continuar com a qualidade de implan-
tação da reforma agrária em Santa Catarina, pois não há perspectiva de
reposição de mão de obra.
Em um país de dimensões continentais, paradoxalmente a reforma agrária ainda está no topo da lista das demandas sociais não resolvidas, agravada por outros passivos históricos, como as populações quilombolas e indígenas.
Servidor de carreira e dirigente do Incra de Santa Catarina, João Paulo Strapazzon relata com clareza técnica os bastidores da autarquia no esforço para implantar políticas e programas capazes de não só distribuir terras, mas também de promover a inclusão social de milhares de famílias a partir da produção e da representatividade política.
O passo a passo desse esforço desde o início do governo Lula, as dificuldades burocráticas, a falta de vontade política e os preconceitos são narrados mirando a paz e a prosperidade agrária brasileira.