Invenção de Orfeu

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Invenção de Orfeu

CANTO III

POEMAS RELATIVOS

I

Bronzes diluídosjá não são vozes,

nem são fantasmas,

tranças noturnasmais que impalpáveis,gatos nem gatos,nem os pés no ar,nem os silêncios.

E um homem dorme.

Queres ler o quetão só se entrelêe o resto em ti está?Flor no ar sem umbela

flor que sem nós há.

Subitamente olhas:nem lês nem desfolhas;folha, flor, tiveste-as.

E nem as tocaste:folha e flor. Tu - haste,elas reais, mas réstias.

III

IV

Numas noites chegamos à janela,e as mandíbulas do ar tanto nos roem,que os leitos rotos logo deliqüescemcom os nossos corpos complacentemente.

e a boca hiante das cores nos devoracarnes e sangues, poeiras de costelas,que ficamos inúteis, sem matéria.

Essas bocas nos sugam noite e dia,vigiando dia e noite nossas vidasum minuto no espaço, menos que aide chumbo soluçado nos silêncios,

na noite igual ao dia, de tão gêmeos.

V

Agora o sem sensosorriso nos ares,minha alma perdida,os vales lá embaixode minhas lonjurasde não existido,parado nos antes,nem sei de pecados,nem sei de mim mesmo,eu mesmo não sounem nada me vê;ausentes palavrasnão soam no vácuodos antes das coisas,das coisas sem nexo,nem fluidos. Só o Verbochorando por mim.

VI

Agora, escutai-meque eu falo de mim;ouvi que sou eu,sou eu, eu em mim;tocai esses cravosjá feitos pra mim,suores de sangue,pressuados sem porosverônica herdada.sem face do ser.

Embora; escutai-me,que eu falo com a voz

que a voz não é essaque fala por mim,talvez minha fala

VII

corpo casual ou vão, como a memóriadura e acídula, como um homem seconhece respirando, ou como quandose entristece sem causa ou se doente,ou se lavando sempre ou comparando-se

ou como sente os ombros de seu ser,

reencontrados países, becos, passossob as chuvas que não vos molharão.

VIII

mas tudo em vão, mesmo as plumas,

IX

Numa hora perdida cantos doeram. Os desejosE flores despenteadas, flores largas e a barbáriee inconfidentes quase abominadas dos corpos.por oculta paixão, se intumesceram. E a relatividade

Lírios eram pilares de cristal sob o cercosubindo para as aves; então dardos da matéria.desceram sobre os mais amados coloscantando amor com seus sentimentos.

Canção melhor. Mais consentimentos puros olhos. Eu sei de cor os rebanhos, e olho o mundo.Tudo contém pequenas doces máscaras.Mas da selva selvagem desce o prantodos que mastigam suas próprias fomes,sem saliva de pão, e o gosto ausente.

Ninguém consegue assim amar os lírios.E esse amor é amaríssimo e adstringentecom a memória das dores engolidas.

X

Vós não viveis sozinhosos outros vos invademfelizes convivênciasagregações incômodasenfim ambientalismos,e tudo subsistênciase mais comunidades;e tantas ventaniasacotovelamentos,desgastes de antemão,acréscimos depois,depois substituições,a massa vos tragando,as coisas vos bisando;os hábitos, os vícios,as moças embutidasmudando vossas cartas;sereis administradosno sono e nos pecados,vós mapas e diagramascom várias delinqüências,e insanidades várias,dosando o vosso espaço,pesando o vosso pãode tempos racionados;e não tereis vividoe não tereis amado,porém sereis morrido.

XI

Éreis vós Tiago, Diogo, Jaques, Jaime?

Éreis vós Tiago, Diogo, Jaques, Jaime?

XII

XIII

XIV

incluído o conforme,

e o espaço se excluísse;

pois tudo era um dia,

XV

De manhã estrelas verdesna inocência do ar coleado,intranqüilas e veementes.Ao zênite e areia em sede,asas das hastes pendidas,as nuvens-castelas altascomo painas amealhadas.De tarde a visão das velas,nuvens baixas sobre as verdesrosas das hastes fictícias;os desejos dissolvidosrepousam abertamente;e esse deserto de vozese estes cabelos perenesde seus nervos para os dramas.Mas se as palmas fossem isso,as fontes seriam pratas,

puro sonho de quem vive.Todavia o sonho é comoas palmas dessas palmeiras.

XVI

e com os dois braços:

XVII

XVIII

XIX

XX

sobe a uma origem,

esse homem gêmeo,

malgrado e clâmide

mergulho em rumos

guardo meus naipes

portanto, instáveis,

de algumas plantas

passam nos vidros,

XXI

sempre obsidionais.

sempre obsidionais.

sempre obsidionais.

XXII

XVIII

ao nume que em nós pensa.

última, única e forte.Orfeu e o estro mais fortedentro da curta vidaa taça toda fruída,fronte que já não pensacanção erma, suspensa,Orfeu diante da morte.Vida, paixão e morte,- taças ao fraco e ao forte,taças - vida suspensa.Passa-se a frágil vida,e a taça que se pensaeis rápida fruída.Abandonada, fruída,esvaziada na morte,Orfeu já não mais pensa,Calado o canto forteem cantochão da vida,cortada ária, suspensa.Lira de Orfeu. Suspensa!Suspensa! Ária fruída,sextina artes da vidaser rimada na morte.Eis tua rima forte:rima que mais se pensa.

XXIV

A sextina começade novo uma ária espessa,(sextina da procura!)Eurídice nas trevas,Ó Eurídice obscura.Eva entre as outras Evas.Repousai aves, Evas,que a busca recomeçacada vez mais obscurada visão mais espessarepousada nas trevasAh! difícil procura!

musa obscura, Eva obscura;

XXV

A musa A barba tão preta que era azul,morta que as amantes tão ruivas que eram nulasvem de Amara onze e mais uma, numa sóoutros morta, em alma, sem cadáver, semlivros tumba, e que amara - morta, morta, morta.

XXVI

mas quando nós a avizinhávamos,

ao nosso encontro, sem tocar-nos.

Mas outro dia, vago dia,abrutamente a aprisionamos.O que tu és, deusa, ignoramos,mas desejamos, qualquer coisafazer de ti, terror ou júbiloou nossa vênus favorávelou nossa esfera de vocábulos.Ela chorava, não queria;e o pranto logo dissolvia.Então descemos, ventre abaixoe renascemos de seu sexo,- trânsito virgem de palavras.Era uma deusa, pela fúriacom que nós todos a ultrajamos.Era uma deusa e não sabíamosse cada qual mesmo a violou.Era uma deusa, pela dúvidaque em cada um de nós, deixou.

XXVII

Contemplar o jardim além do odore a mulher silenciosa entre semblantes,e refazê-los todos, todos antesque o tempo condenado os atraiçoe.Porque eu quero, em memória refazê-los: À procura daflor longínqua, mulher, não pertencida, face perdidasubstância inexistente, móvel vida,intercessão de nadas e cabelos.E meus olhos ausentes me espiandoentre as coisas caducas e fugacesa minha intercessão em outras faces.Orfeu, para conhecer teu espetáculo,em que queres senhor, que eu me transforme,ou me forme de novo, em que outro oráculo?

Jorge de Lima