Post on 12-Feb-2019
Índice
I
ÍNDICE GERAL
..............
I
Resumo .............. V Abstract .............. VII Agradecimentos .............. IX INTRODUÇÃO .............. 1 Objecto .............. 1 Mapeamento da escrita: entre as coordenadas
da modernidade e da ambivalência
.............. 9
A História possível do aluno surdo na Casa Pia de Lisboa .............. 22 Os autores e a escrita .............. 26
I PARTE
PRÓTESE-OUVINTE:
QUESTÕES TEÓRICAS E ARTICULAÇÕES PRÁTICAS
..............
29
A formação de um objecto: a invenção da surdez .............. 31 Um primeiro olhar sobre a paisagem educativa: governamentalidade, police, poder e biopolítica
..............
49 A produção de saber sobre o aluno : biopolítica e normalização, saber e poder
..............
73 O surdo como hóspede entre ouvintes .............. 89 A construção do aluno surdo como sujeito ético: técnicas do eu, confissão e poder pastoral
..............
105 O corpo e a disciplina na hospedagem da língua .............. 123 A rotina dos dias num internato: aprender a ser e a estar .............. 135
II PARTE
A ESCOLA COMO OFICINA DAS ALMAS
.............. 149
1.OLHAR A PAISAGEM EDUCATIVA:
A ESCOLA COMO OFICINA DAS ALMAS
1.1. A escola para todos
..............
157
1.2. Os surdos na escola .............. 169 2. A admissão do surdo na Casa Pia de Lisboa: saúde e higiene, exames e registos
..............
191
II
Índice
III
3. As regras da casa
.............. 211
4. A comunicação entre os da comunidade surda: poder e resistência
..............
227
5. HOSPEDAR A PALAVRA NO CORPO DO HÓSPEDE
5.1. O método oral puro: coreografia de gestos, vibrações e respirações
..............
235 5.2.O período preparatório e a educação dos sentidos:
a visão e o tacto
.............. 247
5.3. Preparação do aparelho vocal: exercícios respiratórios .............. 263
5.4.Provocação da voz e leitura da fala .............. 269
5.5. Ginástica, ritmos e equilíbrios .............. 279 6. Um manual com 600 imagens
..............
289
7. A SALA DE AULA COMO LABORATÓRIO
7.1. Objectos, jogos e lições de coisas
..............
309
7.2. O corpo, a alma e o ofício: os trabalhos manuais .............. 327
7.3. O desenho .............. 341
7.4. A arte da escrita: a caligrafia .............. 367 ALGUMAS PALAVRAS FINAIS
..............
377 ÍNDICE DE IMAGENS
..............
385 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
..............
397
IV
V
RESUMO
Este texto procura traçar uma história do aluno surdo na Casa Pia de Lisboa no arco
temporal que vai desde os anos vinte do século XIX até às primeiras décadas do
século XX. Propõe-se uma abordagem centrada na figura do aluno surdo enquanto
objecto de enunciações discursivas que o produzem como um corpo anormal,
fixando-se nesses discursos o referente que nos permite pensar a constituição dos
sujeitos enquanto seres históricos.
O quadro aqui considerado é o de uma paisagem educativa de expressão
moderna, habitada por grupos de especialistas que desenvolvem uma linguagem
científica tendo a criança como objecto de intervenção. A escola e, no caso presente
um modelo escolar de internato, emerge como instituição disciplinar que reflecte a
nova atitude no governo da criança. É este o cenário em que se projecta um conjunto
de técnicas de intervenção que têm como ponto de aplicação o educando e como
objectivo, a sua normalização. Ao longo deste texto os alunos surdos surgem como os
Outros na arena educativa, ainda que o poder operante no tecido escolar não seja lido
naquilo que potencialmente teria de violentação de um estado surdo, mas antes na
produtividade que esse poder transporta ao possibilitar a transformação dos escolares.
Os processos educativos na Casa Pia de Lisboa centraram-se num domínio oralista,
mas foi nas actividades artísticas, manuais e na exploração dos sentidos que
encontraram formas de subjectivação dos escolares.
Elementos centrais neste estudo são as tecnologias disciplinares, biopolíticas e
do eu que, dirigindo-se aos alunos surdos no sentido de um domínio, vigilância e
controlo se desprendem intensamente de regimes coercivos e se fixam nos campos da
persuasão e de um trabalho sobre a alma do educando. Procede-se assim a uma
análise de questões teóricas numa perspectiva de governamentalidade e à sua
articulação com o domínio das práticas que marcaram a construção do surdo
enquanto aluno e a produção da sua identidade a partir de um quadro escolar de
carácter total.
Palavras-chave: Casa Pia de Lisboa; aluno surdo; governamentalidade; modernidade
pedagógica.
VI
VII
ABSTRACT
This text aims to trace a history of the deaf pupil in Casa Pia de Lisboa during a
temporal arch that goes from the XIX century’s twenties until the first decades of the
XX century. An approach centred in the deaf pupil as a subject of discursive
statements that produce him as an abnormal body is proposed, fixing in those
speeches the reference that allows us to consider the formation of subjects as historic
beings.
The frame considered here is the one of a modern expression educational
landscape, inhabited by specialist groups that develop a scientific language having the
child as intervention subject. The school and, in the actual case a boarding-school
scholarly model, emerges as a disciplinary institution that reflects a new attitude in
the child’s government. This is the scenery in which an intervention techniques set
which has the pupil as an application point and its normalization as an objective is
projected. Along this text deaf students emerge in the educational arena as the Others,
though the powers that be in the school tissue are not read in what they would
potentially have had of violation of a deaf state, but rather in the productivity that
those powers carry by enabling scholars transformation. The educational processes in
Casa Pia de Lisboa are centred in a spoken domain, but it was in artistic, hand-made
activities and in the senses exploration that they found the scholars’ subjectiveness
ways.
The central elements in this study are disciplinary, biopolitic and self
technologies, addressing deaf in a domain, surveillance and control sense are
intensely disengaged from coercive regimes and fix themselves in persuasion fields
and in work about the pupil’s soul. In this manner an analysis of theoretic questions
in a governmental perspective is made and it is articulated with the practice domain
that has marked the formation of the deaf as a student and his identity’s production in
a total institution.
Key words: Casa Pia de Lisboa; deaf student; governmentality; pedagogical
modernity.
VIII
IX
AGRADECIMENTOS
Agora que chega ao fim esta fase de intenso trabalho por entre leitura e escrita, a
memória do que foram estes últimos meses surge como uma sequência de imagens,
ainda muito presentes para que consiga escrever sobre elas. Foi uma época de
múltiplos acontecimentos pessoais, quase todos bons. A estas imagens estão também
ligadas pessoas que significam muito para mim.
Quero dirigir uma palavra muito especial ao Professor Jorge Ramos do Ó pela
orientação científica e pela amizade. A sua disponibilidade para ouvir, para falar, para
ler e comentar criticamente cada fase deste projecto, ainda quando o seu tempo era
escasso. O seu apoio, estímulo e entusiasmo constantes foram determinantes para que
este trabalho se desenvolvesse, apesar das incertezas que, às vezes, eu própria me
colocava. Não me esquecerei do muito que aprendi e cresci a ouvi-lo. A sua presença
na minha escrita foi, e é, marcante. Pela compreensão do que é o acto da escrita, do
que são os sujeitos da escrita e de que forma se processam as articulações entre eles
na construção de sentidos. Devo-lhe também a descoberta, para mim claro, de
autores-textos que me permitiram pensar e escrever. A sua postura na investigação e
na vida, levaram-me a compreender ainda melhor que só faz sentido criar coisas
quando se partilha, se confronta, quando é possível uma relação produtiva e de prazer
com os outros.
A todo o grupo do Mestrado em Educação Artística da FBAUL com quem no
último ano me relacionei de uma forma próxima, à Catarina, à Helena, à Leonor, à
Manuela, ao Pedro e à Teresa, une-me uma enorme amizade e cumplicidade.
Admiro-os a todos profundamente. Foram muitas e boas as conversas, as discussões,
as partilhas de ideias. Foram bons os sábados de manhã (quase sempre) que passei em
sua companhia enquanto a escrita de cada um ia ganhando forma e se contavam as
descobertas de arquivo ou de biblioteca, ou quando à volta da mesa só havia
questões. À Helena e à Leonor devo muito pelas suas palavras de ânimo, pelos seus
comentários e pelas suas ideias, pelas conversas que, às vezes, a distância obrigava a
que fossem escritas. Também à Catarina, com quem nos últimos meses fui mantendo
contacto escrito, com o agrado de pertencer à sua lista colorida.
É justo mencionar ainda todas as pessoas que trabalham na Biblioteca do
Centro Cultural Casapiano que expressaram simpatia durante a nossa presença nas
instalações, no período de pesquisa de material. Igualmente, um agradecimento muito
X
especial para aqueles que continuam a manter vivo o Ateneu Casapiano e que
manifestaram sempre grande disponibilidade para nos receber nas suas instalações e
nos presentearam com histórias feitas de experiências pessoais. Não posso deixar de
lembrar o Sr. Hélder pela sua dedicação e persistência em encontrar material que
fosse importante para este trabalho.
Gostaria ainda de agradecer aos amigos que foram ficando ligados a esta
escrita, que queriam saber novidades, que estavam sempre prontos para ouvir, que
respeitaram também os meus silêncios e as minhas ausências, por vezes, prolongados.
Para todos eles dirijo um afectuoso abraço de gratidão.
As palavras finais de agradecimento são dirigidas aos meus pais, às minhas
irmãs, Lena e Dália, e ao Filipe. Aos meus pais, por terem sempre acreditado em mim
e apoiado os meus desejos. Eles são, sem dúvida, as duas pessoas mais marcantes na
minha vida, de quem me orgulho profundamente. Às minhas irmãs, porque cada uma
à sua maneira, me apoiaram e me deram confiança para seguir em frente. É aliás essa
atitude que pauta a imagem que tenho delas, desde sempre. Ao Filipe, por me ajudar a
ver e a perceber, cada dia que passa, pormenores importantes na vida.
Se o momento da escrita é, de alguma forma, solitário, só tem sentido se se
comunicar com os espaços e com as pessoas das nossas vidas.
XI
Para o Filipe.
“On the one side A, on the other side B and in the middle, a line. A/B.
Whether visible or not, the line which comes in the middle of binary
oppositions draws not only a limit separating the one from the other but
also a minus line: A is not B. The line in the middle comes to mark the
place of the other with a loss or lack. B becomes the minus, the negative
of A. And so the story goes on: difference is the lack of identity, fiction
is the negative of truth and abstraction is the minus of reality” (Lomax,
1989: s/p).
Introdução
1
INTRODUÇÃO
OBJECTO
Só imagino o início desta tese como um convite para uma viagem. Endereçado ao
meu leitor ou à minha leitora que foram sempre imaginados ao longo da escrita. Feito
o convite, cumpre-me enunciar o plano da viagem, mas deixando desde já claro que
no deslocamento de um ponto para outro, as possibilidades na escolha de um caminho
são múltiplas. Tal como os riscos. Poderá sempre o leitor ou a leitora, optar por seguir
um caminho paralelo ou, justamente, pensar um caminho contrário ao meu. Todavia,
se pretender seguir comigo em viagem, – o que muito me agradaria –, o meu único
desejo será partir neste instante.
Nas próximas páginas desenvolve-se uma investigação centrada na figura do
aluno surdo na Casa Pia de Lisboa, temporalmente situada nos anos que vão desde a
década de vinte do século XIX até aos primeiros cinquenta anos do século XX.
Contudo, mais do que uma narrativa cronologicamente sequenciada, será meu
objectivo propor uma história do aluno surdo na Casa Pia de Lisboa, tentando
inteligibilizar processos que permitiram a construção do surdo enquanto aluno, no
longo arco temporal que se apresenta. Deste modo, a escrita não terá como fio
condutor um elemento temporal, mas antes uma linha de pensamento que se articula
em conceitos que vão desenhando a imagem do aluno surdo. Quando falo em história
do aluno surdo na Casa Pia de Lisboa refiro-me a uma construção em tensão
constante, para tentar compreender a razão e a forma pelas quais os surdos foram
sendo representados como os Outros da instituição. O título desta dissertação
pretende significar isso mesmo. Prótese-ouvinte constrói-se sob um campo
discursivamente estruturado na produção da diferença que o estado surdo significaria.
Fala de enunciações discursivas que permitiram ao surdo habitar um território
marcado pela presença maioritariamente ouvinte. Há diversas questões que me
Prótese-ouvinte
2
interessa colocar, ainda que a resposta se vá encontrando fragmentada no próprio
processo de expor o problema.
Num primeiro momento, parece-me importante compreender o modo pelo
qual a modernidade fixa os objectos: como se mostram e denominam, como figuram
e são ditos, como se reproduzem e articulam. Falo, evidentemente, da formação do
objecto surdez, da sua invenção e só depois, num movimento que cerca duplamente o
objecto, colando-o a um corpo – o do surdo. Direi surdez como invenção e surdo
como anormal porque, como terei oportunidade de desenvolver, os objectos ganham
corpo nas formações discursivas que os constituem enquanto objectos e no caso da
surdez como anormalidade, foi através da sua cristalização conceitual que se gerou a
possibilidade de intervir sobre um estado. O estado surdo. Como será sugerido nesta
viagem, o que menos importava no cenário educativo era a doença e a cura, o que
mais importava era a anormalidade e a correcção. É a normalidade que se instala
como estado regular.
Esta escrita, apesar de assumir um movimento elíptico em que os conceitos
que tornam legíveis os quadros que se apresentam se visitam regularmente, procura,
no seu conjunto, oferecer uma imagem final feita de matizes várias, onde é possível,
apesar de tudo, encontrar contornos que sugerem formas objectivas. Muitas delas,
estando inscritas num passado de há quase um século, parecerão extremamente
contemporâneas aos leitores de hoje. Mas essa é uma evidência que a voz de diversos
actores que foram marcando a pedagogia, nos permite comprovar, construindo uma
memória tantas vezes ausente. Refiro-me, por exemplo, à liberdade e autonomia do
aluno inseridas num quadro de autoregulação, à ideia de uma escola que deverá
proporcionar e explorar em cada aluno as suas aptidões, ir de encontro ao interesse do
pupilo, a um ensino hoje reclamado por medida1, e que, já no caso das crianças
surdas, já no das crianças normais, já no século XIX e inícios do século XX, marcava
vincadamente os discursos. As propostas da Escola Nova, que tiveram como
principais representantes Claparède, Ferrière, Montessori, e em Portugal, Faria de
Vasconcelos ou Adolfo Lima, entre outros, falavam na diferenciação dos escolares,
no respeito pela individualidade e natureza de cada criança, no perscrutar das aptidões
1 Esta expressão de Edouard Claparède tem que ver com a consideração das características etárias, sexuais e psicológicas de cada
criança que deveriam passar a ser consideradas no processo educativo, passando então a educação a responder às necessidades intelectuais e às aptidões de cada aluno e não a uma adaptação do aluno ao que, invariavelmente, a escola lhe propunha.
Introdução
3
de cada uma, dos seus interesses e tudo isso eram prolongamentos de uma tarefa de
governo do aluno e de técnicas disciplinares, agora cada vez mais inclinadas a atingir
a criança no seu interior, a esculpi-la a partir da alma. O caminho seria de um
autogoverno do aluno. Este, seria autónomo e livre se se dominasse a si mesmo, se
adquirisse uma disciplina interior tal, que comportamentos, acções, pensamentos, se
enquadrassem nos quadros regulamentares estabelecidos. Mas falo também, de uma
educação especial que cada vez mais reclama uma averiguação e análise da criança e
do seu percurso, do ambiente em que cresceu, de um conhecimento e capacidade de
análise e interpretação do sujeito-criança, de uma individualização e, tudo isto, inicia
de uma forma regular o seu aparecimento nas enunciações discursivas e preocupações
da escola, no já longínquo pós 1850. A educação dever-se-ia exercer tendo por base
um saber do professor sobre o educando. Só assim, a realidade particular de cada
aluno era tida como elemento fundamental ao exercício do poder.
Começarei, portanto, por referir que a narrativa que se segue se constrói a
partir de uma ambivalência. E este é o primeiro risco. Mas, também, o verdadeiro
interesse desta escrita. A ambivalência, tornou claro para mim Zygmunt Bauman, é
“um aspecto normal da prática linguística” e decorre de duas das principais funções
da linguagem, o nomear e o classificar. “O ideal desta “função
nomeadora/classificadora” seria “alcançar” “uma espécie de arquivo espaçoso” que
contivesse “todas as pastas que contêm todos os itens do mundo”. Ora, tal arquivo
seria um tipo de objecto de conservação que associaria cada item a seu lugar. “É a
inviabilidade de tal arquivo que torna a ambivalência inevitável”, porque arquivo se
compromete com reunir, com ordenar, com desejar uma eternidade pela memória
(1999: 9-11). Classificar implica sempre incluir e excluir. Nomear inclui em si,
dividir o que pode e o que não pode pertencer a um grupo. Geralmente entre uma
escolha e outra, ou, a uma e a outra escolha se atribui positividade ou negatividade.
Não é isso que se pretende nesta escrita. No meu texto, a ambivalência que o constrói
existe porque o meu texto será feito de uma invenção que marcou pessoas, práticas,
espaços, tempos, disciplinas e que criou identidades, comunidades, dispositivos,
representações, exclusões e inclusões, permitiu constituir um saber e um poder
produtivo. O meu texto será marcado por movimentos que, às vezes, não vão num só
sentido.
Foi a invenção da surdez enquanto anormalidade do corpo que possibilitou a
Prótese-ouvinte
4
transformação do surdo em aluno surdo. Defenderei que a vinda até à paisagem
educativa da criança surda, – o que aparentemente parece uma atitude de inclusão –,
se baseou numa política de exclusão, inventando e marcando a diferença e
justificando dessa forma a necessidade do acto educativo para estas crianças. Neste
sentido, mostrarei que o propósito de acolhimento daquele que era inventado como o
Outro dessa paisagem, não foi senão uma táctica para o bom governo da população.
Apresentarei o quadro de hospitalidade oferecido à criança surda como um espaço de
hostilidade porque tinha como referência a figura do aluno ouvinte. Mas os
propósitos que surgiam à superfície dos discursos eram os melhores: dar ao surdo
uma língua com que se comunicar e prepará-lo para a futura relação e integração
social. Foi este o projecto em que o aluno surdo participou: construiu-se a partir de
uma visão enquanto deficiente auditivo, mas tendo em si o poder de transformar essa
condição não só pela aprendizagem de uma língua oral, como pelo domínio de um
ofício. Com um ensino baseado no método oral puro, o estado surdo foi violentado.
Contudo, esta foi a táctica escolhida na reconceptualização de um grupo que, até
então, fugia à racionalidade da nova arte de governo inaugurada pela modernidade.
Esse Outro que foi o surdo foi uma obsessão temática em busca de o conter nas
possibilidades da sua diferença. A normalização constituiu, então, a tecnologia mais
eficaz no governo dos alunos surdos e também aquela que permitia uma constante
organização de saber sobre este novo grupo de escolares. O processo de normalização
teve como espaço de actuação privilegiado a escola, sendo ela mesma uma tecnologia
disciplinar. Quando utilizo o termo de tecnologia, faço-o no sentido que lhe atribuiu
Michel Foucault. Devo, portanto, advertir de que falarei de tecnologias aplicadas
sobre pessoas, o que significa, numa primeira abordagem, montagens que tendo como
ponto de aplicação o ser humano, derivam de saberes cada vez mais racionais e
técnicos. Estas tecnologias manifestam-se na produção de instrumentos, de espaços,
na estimulação de relações que têm sempre por fim agir transformando, de acordo
com modelos-padrão determinados por uma racionalidade governativa.
Ao processo de normalização esteve sempre associado o domínio da
moralidade que “nas sociedades modernas” “remete cada vez menos para sistemas
universais de injunção e de proibição que para um quadro de liberdade regulada” (Ó,
2003: 8). O surdo foi aparecendo nos discursos de sucessivos educadores como sendo
um ser apartado das regras sociais. Logo, a escola teria uma dupla função a exercer
Introdução
5
neste grupo de anormais. Por um lado, oferecer-lhes uma língua com que comunicar,
por outro, aproximá-los das relações e regras sociais.
Sendo o primeiro risco o de mostrar o quanto de exclusão existe nas práticas
inclusivas, o segundo não é menor. Quando me refiro ao ensino da língua oral ao
aluno surdo como única forma de este aceder a uma condição próxima da
normalidade, não o farei tendo por princípio, um quadro de inculcação, mas sim, um
quadro de acção. Como nota Jorge Ramos do Ó, “a matéria ética é historicamente
indissociável do postulado segundo o qual a escola fabricou um tipo de actor que
devia, ele mesmo, ser sujeito da sua própria educação” (2003:3). Ora, tal só seria
possível se na situação específica do aluno surdo, mais do que as regras, as coerções,
as violências várias para dominar a oralidade, ou o típico sentimento de dominação
tantas vezes referido de forma negativa quando se fala em poder, o aluno surdo fosse
convidado a construir a sua própria identidade. E aqui, claro está, o referencial que
lhe era oferecido era o da comunidade ouvinte. Seria a partir deste modelo que o
sujeito surdo aprendia a narrar-se, construindo o seu eu, numa busca permanente por
uma desejada liberdade e autonomia, localizáveis para os lados da normalidade. A
Casa Pia funcionou como dispositivo de normalização, oferecendo no seu território
ao aluno, um processo de subjectivação, quer dizer, de construção da sua identidade
através das diversas relações, práticas, regulações e autoregulações, desejos e
necessidades, modelos de conduta e de autonomia, currículos, etc. Em última análise,
tudo o que acontecia no espaço escolar contribuía, inevitavelmente, para a construção
do surdo enquanto aluno e enquanto cidadão. Parece-me indissociável deste processo
uma centralidade do corpo como construção social, todavia, sendo continuamente
proposto um quadro de liberdade ao sujeito do corpo, no interior do qual ele seria o
seu próprio autor.
A minha tese será a de procurar, nos discursos daqueles que mais
directamente lidavam com a criança surda na escola princípios que, não se aplicando
somente aos alunos surdos, tinham como objectivo intervir sobre as suas atitudes e
comportamentos, inscrevendo-lhes no corpo e na alma fórmulas de regulação da
conduta. Não poderei deixar de referir que os modelos, as técnicas, os dispositivos
inventados para o aluno surdo se deveram na totalidade a uma implicação das
ciências médicas e psicológicas com as pedagógicas. A arte de governo do aluno
surdo esteve dependente da circulação e produção de diagnósticos, observações,
Prótese-ouvinte
6
orientações psicológicas, quer dizer, de um conhecimento profundo do ser mais
íntimo da criança, e isto, mesmo ainda em pleno século XIX. É certo que a
vinculação à escrita dos actores sociais que tinham como tarefa educar estas crianças,
se fez sentir com maior intensidade com a chegada do século XX, mas as sementes já
haviam sido lançadas. Em Portugal, José Crispim da Cunha escreve sobre o seu
trabalho com surdos, nos anos 30 de 1800; em França, 1880, ano em que se realiza o
Congresso de Milão – que haveria de determinar o método oral puro para a educação
dos surdos – era preenchido com uma panóplia de registos das diversas intervenções.
No contexto francês o ensino de crianças surdas em instituições especializadas vinha
já acontecendo desde, pelo menos o século XVIII.
Antes de continuar, julgo oportuno explicar o elemento que articula a escrita
sobre a construção do aluno surdo na Casa Pia de Lisboa, as técnicas e formas de
governo deste grupo de escolares, com aquilo que constitui a escrita da minha
dissertação de Mestrado, inserida na área da Educação Artística. O título pensado
para esta escrita ‘Prótese-ouvinte’, parte da ideia de que o aluno surdo era construído
com base na característica que estava ausente do seu corpo. O ouvir, associando-se de
imediato ao falar, produzia-se enquanto falta e, portanto, anormalidade que não
podendo ser resolvida no corpo surdo, poderia ser investida por uma menor
visibilidade ou apagamento. Apagar a surdez de um corpo era gesto resolvido pela
somatização de técnicas camufladoras do estado surdo. Se ao surdo não era possível
ouvir, era possível disciplinar-lhe o olhar de tal modo que a língua ouvinte fosse nele
hospedada pela sua coreografia labial. Ora, era fazer do ouvinte, estado de desejo
para o surdo e fazer do corpo surdo espaço de acolhimento de uma língua que, ao
atingi-lo se transformava em visualidade e vibração. A língua oral concebia-se quase
como a prótese de origem, um tipo de monolíngua. “É possível ser monolingue”, diz
Derrida e “falar uma língua que não é sua” (2001:18). Na verdade, o ensino das
crianças surdas tinha como eixo orientador do discurso um domínio da oralidade pois
os Outros que eram os surdos eram seres sem-língua que dificilmente sobreviveriam
autonomamente em sociedade. O objectivo pretendido, – de hospedagem de uma
língua oral num corpo surdo –, as técnicas e as formas de concretização passariam
por abordar a criança naquilo que constituiria a sua forma natural e, a forma natural
Introdução
7
surda, é totalmente direccionada pela visualidade2. As crianças surdas só poderiam
aprender e só poderiam seguir códigos de conduta regulados, a partir do momento em
que consciencializassem e organizassem os dados que as diversas experiências lhes
iam proporcionando. O ensino artístico que desde 1780, ano da fundação da Casa Pia
de Lisboa, marcou uma forte presença nos discursos da instituição, foi considerado o
pharmakon destes pequenos anormais. Não só na vertente artística, mas na
exploração das possibilidades que a expressão através do desenho, dos trabalhos
manuais, da música, no desenvolvimento de uma educação sensorial, poderia
significar para preparar o aluno para receber a língua oral, ou não. Jacques Derrida
diria assim sobre o pharmakon, uma daquelas palavras que surge e é significada na
sua própria ambivalência: “Pharmakon, por assim dizer, é ‘a polissemia regular,
ordenada que, por desvio, indeterminação ou sobredeterminação mas sem erro de
tradução, permitiu passar a mesma palavra como ‘remédio’, ‘receita’, ‘veneno’,
‘droga’, ‘filtro’ etc.’” (Bauman, 1999: 64, 65). Ora, no caso das crianças surdas, a
determinância de um ensino assente sobre a educação dos sentidos constituía
simultaneamente a possibilidade de a criança vir realmente a dominar a oralidade ou,
caso tal não acontecesse, pelo menos ir-se-ia construindo enquanto sujeito autónomo,
numa relação consigo mesmo e com os outros, aceitando um processo de
transformação coincidente com o da sua própria normalização. As actividades
artísticas, nomeadamente os trabalhos manuais e o desenho, filiando-se nos discursos
da educação nova, partiam do carácter lúdico das disciplinas, visando uma
autoconstrução do aluno de acordo com o que ditava a sua própria natureza. Por outro
lado, a educação através de um treino dos sentidos acreditava-se desempenhar um
papel significativo no desenvolvimento da criança, processando-se a aprendizagem
dos alunos surdos na Casa Pia de Lisboa através desse treino. Não será,
evidentemente, por acaso, que o treino sensorial ou da vista, a vertente artística e
manual, ocuparam grande parte dos processos de ensino destes alunos. Era no
tacteamento experimental que se estruturava, linha por linha, um processo mediante o
qual o surdo se ia construindo. Trabalhos manuais e desenho pareciam adequar-se às 2 Não é minha intenção abordar no presente trabalho questões específicas de definição do que é uma língua, todavia, parece-me
interessante sublinhar a ideia de que a língua por meio de sinais, de gestos, é uma língua inteiramente visual que se desenvolve sem o recurso à oralidade, problematizando, portanto, a ideia construída sobre a eficácia da palavra oral para o surdo. Contudo, isto não significa que o som seja um elemento dispensável ao surdo. Como veremos na segunda parte desta escrita, o som é explorado pelo surdo sob a forma de vibrações. A língua de sinais desenvolve-se no espaço, organiza a sua sequencialidade, temporalidade e fluidez nos movimentos que acontecem nesse espaço. É uma língua “ essencialmente ‘cinemática’” (Sacks, 2005: 101).
Prótese-ouvinte
8
necessidades de construção da criança, possibilitando-lhe espaços de plena liberdade
e expressão da sua mais pura interioridade. A escola, oferecendo ao aluno um objecto
que se adequava aos seus desejos e necessidades, retirava dessa acção a produtividade
de um saber sobre o educando. O acto de fazer a que a criança surda se entregava,
expunha-se aos olhos do poder de uma comunidade de especialistas. Foram várias as
técnicas usadas na formatação destes alunos. O surdo só se tornou governável, pela
criação de um contexto ouvintista3, através de um método oral puro, porque foram
consideradas características que o próprio estado surdo da criança impunha e que um
saber governativo permitia transformar em poder. Nos programas que desenhavam o
currículo dos alunos surdos da Casa Pia, terei oportunidade de mostrar este forte
investimento nas áreas da sensibilidade visual e táctil, e um treino da atenção,
trabalhado até em exercícios de respiração. Como nos mostra Jonathan Crary em
Suspensions of Perception, a visão não foi, durante o século XIX, o único “layer” de
um corpo que poderia ser “captured, shaped or controlled by a range of external
techniques”, ao mesmo tempo, “vision is only one part of a body capable of evading
institutional capture and of inventing new forms, affects, and intensities”. No caso
dos alunos surdos, a visão assumiu contornos evidentes no processo de normalização
dos alunos e é a partir dessa consagração da visão, própria da identidade surda, que se
pode considerar os mecanismos perceptivos “in a way that insures a subject is
productive, manageable, and predictable, and is able to be socially integrated and
adaptative”. A atenção foi, na verdade, um ingrediente inevitável “of a subjective
conception of vision”, mas foi, igualmente o ingrediente que tornou possíveis as
diversas abordagens sobre o corpo do aluno surdo. Explica-o desta forma Crary:
“attention is the means by which an individual observer can transcend those
subjective limitations and make perception its own, and attention is at the same time a
means by which a perceiver becomes open to control and annexation by external
agencies” (2001: 3, 4, 5).
Cabe-me dizer uma última palavra na apresentação deste objecto que iremos
visitar. Não é minha intenção fazer qualquer julgamento positivo ou negativo do que
aconteceu no domínio da educação das crianças surdas na Casa Pia de Lisboa. Essa
3 O ouvintismo é um conceito desenvolvido por Carlos Skliar (2001: 15) que se desenvolve num contexto dominado pela
oralidade. Diz respeito às “representações dos ouvintes sobre a surdez e sobre os surdos” e assume na sua forma institucionalizada a figura do oralismo enquanto prática dominante e desejável para o surdo.
Introdução
9
posição iria contra toda estrutura desta escrita. Não se trata de um posicionamento pró
ou contra discursos ou práticas, mas antes de uma tentativa de compreensão das redes
complexas que se estabeleceram. Chamo as palavras de Zygmunt Bauman para me
auxiliarem na finalização da apresentação do objecto da viagem que aqui nos reúne:
“a marcha deve seguir adiante porque qualquer ponto de chegada não passa de uma
estação temporária. Nenhum lugar é privilegiado, nenhum melhor do que outro, como
também a partir de nenhum lugar o horizonte é mais próximo do que de qualquer
outro” (1999: 18).
MAPEAMENTO DA ESCRITA: ENTRE AS COORDENADAS DA
MODERNIDADE E DA AMBIVALÊNCIA
Não gostaria de dizer ao leitor ou à leitora que o meu texto se divide em duas partes e
cada uma delas, noutras tantas e, que entre umas e outras, existe uma hierarquia
inquestionável. Na verdade, esta escrita é apresentada em duas partes. Todavia, a
escrita é só uma, como um corpo. A anulação de qualquer capítulo não significaria
inoperância mas, tão só, um corpo outro, diferente. A suplementação com mais
membros resultaria igualmente numa diferença. Anulação e suplemento, um, aponta
para uma neutralização, o outro para um completamento ou para um excesso. A
primeira parte pode ser comparada a um campo construído sobre conceitos, alguns
deles muito próximos ainda dos textos de onde são capturados, mas que tentam uma
aproximação àquele que é o meu objecto de estudo. Na segunda parte, depois de
apresentados os cenários aos leitores, é tempo de mostrar de perto encenações que
apenas haviam sido sugeridas.
Na medida do possível, tentarei explicar o grande princípio que determinou
esta escrita, quer em termos estruturais quer teóricos. Para esta tarefa, porém,
precisarei de abordar a questão do meu objecto de estudo entre dois conceitos: o de
modernidade e o de ambivalência. O que proponho, sendo a construção do aluno
surdo na Casa Pia de Lisboa o meu objecto, é uma visão descentrada,
desterritorializada lançando um olhar sobre a construção do surdo enquanto aluno.
Este olhar apenas o consigo sem me inscrever num quadro feito de opostos. Este
olhar é lançado sobre um objecto inventado como sendo oposto a um outro.
Em primeiro lugar cabe-me explicitar o que pretendo significar quando utilizo
Prótese-ouvinte
10
a expressão modernidade, sendo que a este conceito geralmente se associam marcos
temporais razoavelmente definidos, pelo menos situando-o entre algo que está antes,
uma pré-modernidade, e algo que vem depois, uma pós-modernidade. Utilizo o termo
modernidade conectado ao campo da pedagogia, num arco temporal já aqui referido e
que vai desde 1823 até à década de cinquenta do século XX, muito embora seja um
conceito que ultrapassa a área da pedagogia, inscrevendo-se a um nível da sociedade.
Não sendo minha intenção produzir a história do ensino das crianças surdas na Casa
Pia de Lisboa, mas tão só apontar caminhos de uma história, entre tantas possíveis, a
minha visão da modernidade constrói-se mais como uma continuidade do que como
uma ruptura entre passado e presente, entre uma época clássica e uma época
propriamente moderna, mas também algo que se prolonga até nós e que, embora
incluindo transformações sociais, mutações tecnológicas, formas de racionalização
diversas, nos poderá proporcionar, através de pesquisas históricas, possíveis
proveniências da nossa própria constituição e reconhecimento enquanto sujeitos. O
sociólogo Anthony Giddens, nos seus recorrentes estudos sobre a modernidade,
sublinha a ideia de que “o termo ‘modernidade’ refere-se a modos de vida e de
organização social que emergiram na Europa cerca do século XVII e que adquiriram,
subsequentemente, uma influência mais ou menos universal. Esta definição associa a
modernidade com um período temporal e com uma localização geográfica inicial,
mas, por enquanto, deixa as suas características mais importantes guardadas, em
segurança, numa caixa negra” (1996: 1). Ora, uma das características que irei apontar
ao longo deste texto é a da relação do indivíduo com o Estado, sendo que as relações
sociais passam a ser mediadas por sistemas institucionais e que ao Estado compete o
bom governo da sociedade. Esta tarefa de governação, como iremos detalhar no
segundo capítulo da primeira parte fundamenta-se no conceito essencial de Estado-
nação, que é “um tipo de comunidade social que contrasta de maneira radical com os
Estados pré-modernos” (Giddens, 1996: 9). O sujeito moderno surge envolto numa
aura de liberdade e de responsabilidade individuais, incumbindo-lhe a ele, trabalhar-
se a si próprio para um progresso da sociedade. Pode definir-se esta linha como
evolucionista e unidireccional, baseada numa racionalidade estritamente moderna.
Adriano Duarte Rodrigues afirma que o processo da modernidade “está intimamente
associado ao projecto iluminista, à vontade de substituir a legitimidade tradicional
pela legitimidade que decorre da indagação da razão humana, em ordem à
Introdução
11
constituição de uma suma de saberes, universalmente aceite por qualquer ser racional,
saberes obtidos pela aplicação da razão à perscrutação dos fenómenos e à averiguação
das regras que regem o desenrolar do seu funcionamento” (1999: 64, 65). Se
quisermos, aliás, traçar um paralelo com aquilo que se tende a designar por pós-
modernidade, diríamos, na esteira de Jean François Lyotard4 que a pós-modernidade
coloca uma grande interrogação na grande narrativa da modernidade. Quer isto dizer
que, ao invés de uma só linha de pensamento baseada numa ciência que para cada
problema apresentava uma solução, emerge agora como cenário um ponto de vista
móvel, desterritorializado, abrangente. Michel Foucault sugere uma forma de encarar
a modernidade não como um “marco temporal”, mas como uma “atitude”. “Por
atitude, quero dizer um modo de relação que concerne à actualidade; uma escolha
voluntária que é feita por alguns; enfim, uma maneira de pensar e de sentir, uma
maneira também de agir e de se conduzir que, tudo ao mesmo tempo, marca uma
pertinência e se apresenta como uma tarefa”. Para caracterizar esta atitude Foucault
viaja até àquele que é considerado como um dos homens mais conscientes do século
XIX, o autor de Le peintre de la vie moderne, Charles Baudelaire. Ora, para
Baudelaire, embora a modernidade seja “‘o transitório, o fugidio, o contingente’”,
“ser moderno não é reconhecer e aceitar esse movimento perpétuo; é, ao contrário,
assumir uma determinada atitude em relação a esse movimento”. Não se trata,
evidentemente de uma questão de sacralização do momento presente, nem tão pouco
de coleccionar na mente fragmentos vários, resultantes de uma errância contínua de
olhos abertos, à maneira de um flanêur. O homem moderno é aquele que “‘vai, corre,
procura. Seguramente, esse homem, esse solitário dotado de uma imaginação activa,
sempre viajando através do grande deserto de homens, tem um objectivo mais
elevado do que o daquele que flana, um objectivo mais geral, diferente do prazer
fugidio da circunstância. Ele busca essa alguma coisa que nos permitirão chamar de
modernidade’”. Todavia, não é apenas a relação com o presente que caracteriza o
homem da modernidade, mas antes uma relação consigo mesmo. “A atitude
voluntária de modernidade está ligada a um ascetismo indispensável. Ser moderno
4 Lyotard designa o pós-moderno como “o estado da cultura após as transformações que afectaram as regras dos jogos da
ciência, da literatura e das artes a partir do fim do século XIX. Estas transformações serão situadas […] relativamente à crise das narrativas”. Trata-se, evidentemente, de questionar os metadiscursos a que a ciência recorre para manter o seu “próprio estatuto”, quer dizer, enquanto forma de se legitimar. O espírito moderno consistiria portanto numa ficção, na invenção que “uma regra de consenso entre o destinador e o destinatário de um enunciado com valor de verdade” instituía, sendo “considerada aceitável” se se inscrevesse “na perspectiva de uma unanimidade possível dos espíritos racionais”. Esta era, portanto, a narrativa das Luzes que o pós-modernismo vem problematizar (2003: 11).
Prótese-ouvinte
12
não é aceitar a si mesmo tal como se é no fluxo dos momentos que passam”, “é
tomar-se a si mesmo como objecto de uma elaboração complexa e dura”, algo
semelhante a fazer da existência uma obra de arte. “O homem moderno, para
Baudelaire, não é aquele que parte para se descobrir a si mesmo, seus segredos e sua
verdade escondida; ele é aquele que busca inventar-se a si mesmo. Essa modernidade
não liberta o homem em seu ser próprio; ela lhe impõe a tarefa de se elaborar a si
mesmo” (2005 a: 341-344).
O carácter reflexivo e problematizador da relação com o presente, fixa um
determinado modo de ser histórico e a constituição do sujeito como sujeito
autónomo. É, aliás, neste sentido que cabe um processo de pesquisa não mais fundado
sobre valores universais, mas precisamente uma “pesquisa histórica através dos
acontecimentos que nos levaram a nos constituir e a nos reconhecer como sujeitos do
que fazemos, pensamos, dizemos”. Sem dúvida que a elaboração desta crítica “é
genealógica em sua finalidade e arqueológica em seu método5” (Foucault, 2005 a:
347, 348). Interessa-me clarificar por exemplo que me refiro a uma modernidade
relativamente a formas de exercício de poder quando, recorrendo a Michel Foucault,
considero um poder soberano e uma transformação desse poder para uma forma não
soberana. É aqui que surgirá o conceito de governamentalidade, de um poder que se
exerce como disciplina sobre os indivíduos e como biopolítica sobre as populações. É
esta também a via de transferência deste poder para vários domínios da vida humana,
existindo por um lado uma racionalidade governativa e por outro uma certa arte de
governar. Não será difícil perceber a nova forma de poder se se considerar o
alargamento de práticas médicas a campos como o da escola, passando então a
constituir-se na própria paisagem escolar dispositivos de normalização derivados da
aplicação de instrumentos de medição, classificação e nomeação dos escolares. A
classificação do surdo como anormal permite cristalizar dois pólos referenciais, o
normal e o patológico, sendo que este último será objecto de intervenção ortopédica,
não no sentido punitivo próprio de um poder que se exerce de cima para baixo, mas
antes no interior de uma estratégia produtiva que tem por fim regular, normalizar,
5 Diz assim Michel Foucault (2005 a: 348): “Arqueológica – e não transcendental – no sentido de que ela não procurará
depreender as estruturas universais de qualquer conhecimento ou de qualquer acção moral possível; mas tratar tanto os discursos que articulam o que pensamos, dizemos e fazemos com os acontecimentos históricos. E essa crítica será genealógica no sentido de que ela não deduzirá da forma do que somos o que para nós é impossível fazer ou conhecer; mas ela deduzirá da contingência que nos fez ser o que somos a possibilidade de não mais ser, fazer ou pensar o que somos, fazemos ou pensamos”.
Introdução
13
atingindo então pontos de equilíbrio no corpo social. A modernidade é também a
época do homem por excelência e como tal, uma época de produção de um saber
sobre o sujeito e de formas de exercício de poder. O corpo tornar-se-ia alvo do poder,
inaugura-se uma microfísica do poder que trabalha o corpo tornando-o produtivo e
útil. O poder dissemina-se pela sociedade, obedecendo a uma racionalidade
governativa assente numa arte de governar que vinha sendo, pelo menos desde o
século XVI uma questão fundamental. Mais adiante voltarei a esta questão com outra
profundidade. Para já, gostaria ainda de lançar um outro fio que me parece importante
para a compreensão da modernidade e que tem que ver com a relação entre o poder, a
verdade e o sujeito. Numa primeira abordagem e de forma sucinta, direi que o poder
moderno é indissociável da produção de um saber sobre o sujeito e que, é destas
formações discursivas que emergem sistemas de verdade tendentes a fixar os sujeitos
em relação a si. São as formações discursivas vindas de campos que se afirmam como
científicos, mas também as práticas que fazem actuar. No presente trabalho
destacaremos algumas dessas práticas: os questionários ou os relatórios médicos
realizados à entrada da criança surda na Casa Pia, as fichas biográficas, ou ainda a
própria fotografia que documenta momentos passados no interior da instituição.
Documentos de arquivo ou imagens a regurgitar para o exterior que certamente
delinearam modos de ver. Na verdade, a modernidade destaca-se por uma forma de
produção dos objectos que adquirem um lugar no mundo das coisas, por uma
visibilidade que lhes é dada pelas formas materiais dos discursos. Mas um outro
aspecto que me parece importante tornar visível é o da relação entre o espaço e o
tempo numa época moderna. E aqui faz sentido considerarmos os termos pré-
modernidade, modernidade e pós-modernidade e pensarmos que estes três conceitos
são atravessados por uma transformação das relações espaciais e temporais. Numa
pré-modernidade a vida social estaria baseada num cálculo do tempo por referência
ao espaço, sendo que aos nossos olhos o tempo marcado adquire contornos de
imprecisão e variabilidade. A marcação mecânica do tempo, por meio do relógio,
vem permitir uma regularidade e um alastramento de um padrão universal com uma
intensidade crescente até aos dias de hoje. E agora, se transportarmos estes dois
conceitos para uma instituição escolar, veremos como tempo e lugar não se
dissociaram, antes foram objecto de um trabalho minucioso que se colou à pele dos
habitantes destes espaços e constituiu um elemento hábil para o seu governo. Mais
Prótese-ouvinte
14
adiante voltarei a esta problemática, a respeito dos horários de organização das
actividades numa instituição como a Casa Pia de Lisboa.
Viajaremos agora até ao terreno da ambivalência.
A modernidade inventou o anormal como par dicotómico do normal, o surdo
como par dicotómico do ouvinte. Um dos termos é sempre construído como o outro
do primeiro termo, o surdo seria o outro do ouvinte. Aqui habita o primeiro grande
problema. Se por um lado gostaria de tornar claro que só se inventa o anormal como
forma de narração do normal, que o surdo serve ao outro que é ouvinte para lhe
garantir a sua normalidade auditiva, a verdade é que esta é uma visão demasiado
estática e que pressupõe dois tipos de sujeito: um que é sujeito porque enuncia e outro
que é sujeito porque sujeitado. Ora, é minha intenção ir além desta superficialidade
que parecerá óbvia aos leitores. Terei de viajar até ao extremo que veria no sujeito
sujeitado um sujeito simplesmente violentado por um outro que sobre ele exerceria
um poder de dominação, todavia, terei também de referir que essa dominação existe
num quadro de racionalidade característico da modernidade. Além disso, aquele que à
partida teria menos força nesta relação não é feito sujeito pelo outro que pronuncia o
discurso, ele constrói-se Sujeito na experienciação desse discurso. O quadro traçado
pela modernidade é de dinâmica, o mesmo é dizer que há técnicas que, por um lado
são repressivas, mas por outro, incitam à produção. O sujeito surdo deveria ele
próprio transformar-se em sujeito surdo à imagem do modelo de surdo que o ouvinte,
– que é o par forte da relação –, para ele traçou. A modernidade não suporta a
ambivalência. Não suporta a presença de estranhos. O surdo era um estranho.
Bauman expõe-o assim:
“Existem amigos e inimigos. E existem estranhos.
Amigos e inimigos colocam-se em oposição uns aos outros. Os primeiros são o
que os segundos não são e vice-versa. Isso, no entanto, não é testemunho de sua
igualdade. Como a maioria das outras oposições que ordenam simultaneamente o
mundo em que vivemos e a nossa vida no mundo, esta é uma variação da
oposição-chave entre interior e exterior. O exterior é negatividade para a
positividade interior. O exterior é o que o interior não é. Os inimigos são a
negatividade da positividade dos amigos. Os inimigos são o que os amigos não
são. Os inimigos são amigos falhados; eles são a selvajaria que viola a
domesticidade dos amigos. O avesso e assustador ‘lá fora’ dos inimigos é, como
diria Derrida, um suplemento” (1999: 62).
Introdução
15
Ora, a tradução destas palavras para o pensamento que tento desenvolver não
pode senão acontecer numa atitude que é ela mesma de atribuição: o ouvinte e os
ouvintes são os amigos, os surdos são os inimigos que os ouvintes imaginam. Uns são
interiores, outros exteriores não à realidade, mas à realidade construída pelas
enunciações discursivas. Os inimigos terão de ser engolidos para serem objectos de
uma acção, quer dizer, terão de ser nomeados. Acção racional e que no seu
acontecimento obriga a uma reciprocidade. Por uma questão de efeitos sobre efeitos,
nunca a imobilidade seria possível como forma de estar. A assimilação do inimigo,
que é o surdo inventado, implica que o inimigo, – o surdo inventado –, reconheça
naquele que é o amigo, – o ouvinte –, a imagem de um outro, desejável, mas
inatingível. O que foi então o desejo da modernidade? Expurgar a ambiguidade.
Porquê? Porque aquele que é visto como o Outro – o surdo inventado –,
efectivamente existia na sua diferença e estava lá – era o estranho. E este estar lá, este
simplesmente estar diante e poder sempre olhar o Outro, – o ouvinte no seu ser e não
no seu ser-ouvinte –, que se queria ver como Mesmo, – como ouvinte, no desenho de
si mesmo –, colocava no jogo de olhares a possibilidade do Outro, – do estranho, isto
é, do surdo-como-ser-e-estado-surdo –, marcar (n)o seu lugar o seu ponto de vista. E
dois pontos de enunciação da visão, são insuportáveis na modernidade. A razão
encontra-se na própria forma de fabricar os objectos: a modernidade consiste numa
nova racionalidade governativa, tudo o que é diferente e estranho tem de ser contido
na diferença, na estranheza, num lugar de negatividade que permita fronteiras fixas e
um movimento auto-querido, auto-desejado de acordo com um planejamento
racional. Acima de tudo, a modernidade governativa tem de eliminar qualquer dúvida
de desejo, e tem de eliminá-la nos sujeitos governados – nos Mesmos e nos Outros –
fazendo-os viver num estado de desejo constante, de felicidade, de ordem prometida.
Porque os sujeitos Mesmos sentem uma espécie de mal-estar no Outro-estar. A
hipótese única de eliminação desse mal-estar vivido pela inquietude de haver um
Outro que, justamente, não respiraria, não partilharia desse mal, era dar como
oferenda a esse Outro o sentimento de um pensamento de ser-Outro, ou pelo menos,
nomeá-lo e classificá-lo como sendo-Outro. Fazer o surdo ler-se como o outro do
ouvinte, quer dizer, a partir da falta de audição. Fazer o surdo desejar caminhar no
sentido daquilo que é inventado como normal – o ouvinte.
Prótese-ouvinte
16
O sujeito surdo deveria construir uma identidade centrada no modelo ouvinte,
internalizando as questões da falta auditiva como incompletude do seu corpo. Essa
identidade só é entendível num contexto de relações de poder e de significações
discursivas que enredavam os sujeitos surdos em processos educativos de tipo
ortopédico. O surdo construiria a sua identidade por referência a modelos sociais,
espaciais, culturais, educativos, familiares em que imperava uma racionalidade
normativa. Para haver norma é imprescindível a existência de um desvio, mas a
norma só vale se conseguir estabelecer com o desvio uma relação tensional em que
sai ganhadora. O papel da norma no contexto da invenção da surdez era, para o surdo,
o de assegurar processos de identificação estáveis, ordenados, devendo ser
percepcionados como desejáveis e necessários à sua estrutura; para o ouvinte, era a
possibilidade de fixar fronteiras estáveis, de definir o dentro e o fora, de assegurar
ainda que provisória, precária e instavelmente uma ideia de unificação e de
ordenação.
A questão na produção e invenção da diferença, tenho mesmo de o tornar
claro, foi a de um sentimento de poder estar a ser visto pelo Outro e a incapacidade
de controlar esse olhar. E de não saber a matriz desse olhar. E de não suportar ser
visto no silêncio. E de pensar, quer dizer, racionalizar um pensamento – indigerível –
de poder haver um Outro que tem prazer em moldes desconhecidos e que não se
deixa revelar, contudo, insiste em viver num território coincidente com o território do
Mesmo. A primeira tarefa a executar é retirar ao estranho a possibilidade de qualquer
importância moral. Situá-lo numa zona de cegueira moral, local de onde tem de ser
ajudado a livrar-se. Esta ajuda tem de ser aceite pelo estranho e pela colectividade,
transforma-se numa missão colectiva de salvação e, neste enredamento o estranho vai
sendo moldado de tal forma que não há-de desejar diferentemente do que o Estado
moderno deseja. Este era o projecto.
“Assegurar a supremacia para uma ordem projectada, artificial, é uma tarefa de
duas pontas. Requer unidade e integridade do reino e segurança das fronteiras. Os
dois lados da tarefa convergem para um esforço único – o de separar ‘dentro’ e
‘fora’. Nada que for deixado dentro pode ser irrelevante para o projecto total nem
resguardar autonomia em relação aos regulamentos da ordem, que não admitem
excepção (‘válidos para todo o ser racional’). [...] “Tornar clara e nítida a
fronteira da ‘estrutura orgânica’, quer dizer, ‘excluir o meio’, suprimir ou
Introdução
17
exterminar tudo o que seja ambíguo, tudo o que fique em cima do muro e
portanto comprometa a distinção vital entre dentro e fora. Instaurar e manter a
ordem significa fazer amigos e lutar contra os inimigos. Primeiro e antes de mais
nada, porém, significa expurgar a ambivalência. No reino político, expurgar a
ambivalência significa segregar ou deportar os estranhos, sancionar alguns
poderes locais e colocar fora da lei aqueles não sancionados, preenchendo assim
as ‘brechas da lei’” (Bauman, 1999: 33).
Nomeação e classifficação eram tarefas necessárias para um possível
mapeamento. Todavia, a modernidade para Bauman foi criativa porque não sustentou
a criação de ordem numa exterminação daqueles que instabilizavam um estado
normal, mas antes num cultivo das suas diferenças: “it means licensing them. And it
means a licensing authority” (1992: XVI). Autorizar a sua presença, mantendo os
estranhos sob um olhar de vigilância e cuidado contínuos.
De um lado, é este o pensamento que quero transmitir nesta escrita. Esta
prática e esta racionalidade de separar, de estabelecer fronteiras, mas assimilar por
forma a controlar toda a possibilidade de diferença. Mas gostava, igualmente, de aqui
marcar a minha presença fraterna, que não é boa nem é má, num espaço que é suporte
para múltiplos olhares. Passo a explicá-la: neste texto darei conta da surdez como
invenção, um estado fabricado para justificar racionalmente uma diferença,
constituindo em tempo real, nessa enunciação, a própria diferença. Simultaneamente,
essa diferença só se tornaria real se assentasse na falta da audição que o ouvinte sente
que ao surdo faz falta. Esta diferença só vive entre bem e mal, bom e mau, certo e
errado, belo e feio, próprio e impróprio:
“Ela torna o mundo legível e, com isso, instrutivo. Ela dispersa a dúvida. [...] Ela
faz a opção parecer reveladora da necessidade natural” (Bauman, 1999: 63).
Mostrarei aos leitores o sentimento de estranheza que o Outro provoca em sua
existência. Os princípios que, justamente, porque está diante e é o Outro, activa
naquele que quer ter de si a imagem de normal. Os princípios são de luta, de
eliminação, de morte desse Outro. A forma como através do discurso se enuncia a
terrível fatalidade de estar diante de um Outro que se manifesta:
Prótese-ouvinte
18
O “espírito de insubordinação corrompia a moral dos [...] alunos, cujo defeito
físico os constitui os entes mais altivos e indóceis da espécie humana” (Cunha,
1835: 12, 13).
A vontade de assimilar esse ser-Outro:
“Não é ocasião agora de fazer conhecer ao público o trabalho que tive em
descobrir no intrincado labirinto da gramática portuguesa uma vereda filosófica,
segura, e fácil para ensinar a nossa língua a estes infelizes, a paciência que para
isso é necessária, e os cuidados que nos deu a educação desta deplorável gente, a
mais estúpida, ingrata, e indomável da sociedade” (Cunha, 1835: 17).
Estúpida, deplorável, ingrata e indomável, mas que, mesmo assim, terá uma
hipótese de vida, será objecto de compaixão:
“Direi somente neste lugar que não há ouro em todo o mundo que pague os
desvelos que requer tão árduo ministério, e que nenhum homem poderá
desempenhar tão difícil tarefa, se a paixão dominante do seu coração não for o
amor da humanidade” (Cunha, 1835: 18).
O anormal é o outro do normal. Só num processo de comparação entre as
virtudes de uns e os defeitos de outros, se dá aos primeiros um sentimento estável de
sua identidade e, simultaneamente, aos segundos, uma possibilidade de correcção
segundo a matriz dos primeiros:
“O surdo-mudo, socialmente, é um ser inferior; mas nem por isso deixa de ter
direito à vida e ao convívio humano […]. A sua inteligência é acanhada, porque
lhe faltam duas grandes fontes de ideias, - a audição e a fala; a sua linguagem
limita-se geralmente ao gesto: no entanto os pensadores e os filantropos têm
desde há muito buscado minorar-lhe a desgraça, fazendo-o participar de todas as
condições sociais” (Vasconcelos, 1889: 5).
Todavia, o Outro vai resistindo, vai manifestando a sua estranheza:
“Dois outros sentidos, a vista e o tacto, hão-de nos dar, em graus diferentes, esse
meio poderoso. O surdo-mudo pode ver, numa outra pessoa, a posição exacta dos
Introdução
19
orgãos produtores da fala na maior parte dos sons” (Fusillier, 1893: 393).
É neste movimento que o surdo é feito objecto de um discurso. É construído
como alvo de práticas correctivas que pretendem anular a sua estranheza
inassimilável, colocando-o como o outro lado da oposição binária ouvinte. Esta
atitude assimiladora tem como princípio conter uma força que pressente poder
rebelar-se a qualquer instante. É essencialmente este poder que faz com que o
governo do aluno surdo se estruture tendo por base uma característica do estado surdo
– a visão. Vimos a violência e um poder de dominação, mas teremos de ver também a
positividade de tal poder: é um poder que qualquer que seja o seu plano tem de
obedecer à condição que o Outro, o estranho, lhe impõe – e essa imposição é a visão.
E essa imposição resulta de um outro elemento que é próprio da nova arte de
governo: o saber para poder. Instala-se, portanto, nesta escrita, uma circularidade
inexpugnável.
Ao ser assimilada pela modernidade, a diferença seria uma nomeação e uma
classificação com lugar no arquivo do mundo ordenado e, como tal, o estranho seria
tolerado enquanto inimigo. Mas o segundo problema, e o que constitui
verdadeiramente um arrastamento desta presença dos estranhos na modernidade até
aos dias de hoje, e o que constitui para mim o problema e o pensamento sobre o
ensino das crianças surdas na Casa Pia de Lisboa, é a permanência hoje, muito mais
acutilante da estranheza, da sua força de vida, do seu respirar, do seu viver de um
modo diferente do meu. Nem melhor, nem pior, diferente porque é do Outro e porque
eu sou também um Outro na relação. Porque tanto eu como o Outro somos
fabricações discursivas. E se procuro construir ao longo desta tese um fio condutor de
uma estranheza que foi sendo racionalizada não é, agora, para saber como prosseguir.
Esse caminho conduziria, talvez a uma “paralisia terminal”. Afinal, foi isso que a
modernidade fez com o sentimento da estranheza: suprimiu, exilou porque sentiu que
poderia “perecer” ante a presença do Outro (Bauman, 1999: 68). É porque esta escrita
tem como pretensão pensar na contemporaneidade um problema que se situa num
tempo passado, para compreender, hoje, pontas que nos chegam e de que é difícil
encontrar a ponta inicial, que esta escrita tem de se tecer num arrastamento contínuo
de outras escritas. É porque o objecto desta escrita está inscrito num tempo que
desejava neutralizar a ambivalência através de um planejamento racional que, esta
Prótese-ouvinte
20
escrita é necessariamente ambivalente. A modernidade pretendeu aniquilar os
estranhos fixando fronteiras entre o dentro e o fora, entre o normal e o anormal. Para
uns e para outros desenhou movimentos: o normal circularia num estado de
permanente autoregulação para que não se aproximasse da fronteira; o anormal, teria
duas hipóteses: permanecer para sempre um excluído ou lutar por um lugar de
inclusão. Em ambas as situações o cenário seria o mesmo, de uma eterna
(in)exclusão, de um permanente estar fora, mesmo sendo devorado pela
institucionalização. Mas há um aspecto que se torna difícil explicar e, todavia,
impossível de permanecer na sombra. Já aqui o referi e voltarei a repeti-lo: o surdo só
se transforma em aluno surdo, independentemente dos referentes que lhe são
possibilitados, porque ele próprio se constitui como sujeito construtor da sua
identidade. E neste processo o aluno surdo haveria de desejar aproximar-se o mais
possível do ouvinte.
Depressa se percebeu que o enquadramento de crianças em risco, anormais ou
delinquentes, numa instituição escolar, teria de ter como ponto de partida a própria
criança. Chamando à memória as palavras de Rousseau, ainda em 1761, dizendo
sobre o aluno num aconselhamento ao mestre “que ele creia sempre ser ele a mandar
e que sempre sejais vós a fazê-lo. Não há submissão mais perfeita que aquela que
conserva o aspecto da liberdade; desse modo, até a vontade se submete”. Eis pois, os
dois lados da mesma folha, liberdade e disciplina que não serão aqui entendidos
antagonicamente. “Certamente, ela só deverá fazer o que quer; mas só deverá querer
o que quereis que faça; não deverá dar um passo que não tenha sido previsto por vós;
não deverá abrir a boca, sem que saibais o que vai dizer” (1991: 118). Ora, esta
ambivalência leva-nos a reflectir criticamente sobre as nossas próprias ideias acerca
do que foi e do que é a escola.
A reflexão que agora me proponho serve-me, a mim, para pensar a questão da
exclusão na escola, da invenção do Outro que não foi um vazio na paisagem
educativa. Nem, por outro lado, a sua presença foi totalmente desconsiderada. O
Outro da escola foi também um actor e, por isso mesmo, quando falo em poder de
dominação sobre o surdo, não me refiro a uma lógica linear. Há um conjunto de
técnicas e de práticas que enredam o aluno surdo levando-o a reagir e a responder. As
técnicas e as práticas fundam-se num saber sobre o aluno que o levará a desejar
aquilo que, efectivamente, a escola pretendia que ele desejasse. Num primeiro
Introdução
21
momento a criança surda é colocada num quadro de necessidade de salvação, para
que se possa passar à fase da dependência em relação ao ouvinte e à vontade
individual de transformação e normalização. Leva-me também a pensar sobre um
desenvolvimento de técnicas dirigidas à alma do aluno, “em que se começou a
admitir que estes menores apenas entrariam num processo de aprendizagem dos
conteúdos disciplinares e de modos de conduta quando tivessem a capacidade de
dominar internamente as experiências que as instituições de reeducação e assistência
iam colocando à sua disposição” (Ó, 2003a: 9). Há, portanto, uma espécie de
costuração do aluno surdo às práticas normalizadoras que está, neste momento, em
processo de descosturação ou, pelo menos, em processo de problematização. No meu
ponto de vista, este pensamento, – que é o que também procuro nesta escrita produzir
–, deverá sempre que possível, construir-se tendo por base uma linha de que se
saibam as pontas, ainda que não se pré-saiba o que irá resultar. Uma coisa parece-me
cada vez mais evidente, a tentativa de desocultação dos discursos e das práticas que
foram marcando a produção do Outro, permite-me aceder a uma outra história: a da
invenção de nós mesmos, fortemente marcada pelo interface pedagógico. Boaventura
de Sousa Santos, em Um Discurso sobre as Ciências destaca a ideia de que a actual
forma de conhecimento é significativa se a essa produção estiver associado “um
conhecimento compreensivo e íntimo que não nos separe e antes nos una
pessoalmente ao que estudamos” (1990: 53). Partilho desta ideia e deste carácter
quase autobiográfico e autoreferenciável do pensamento e da escrita científica, ainda
que, deva advertir os leitores, a abordagem de um objecto de estudo como os alunos
surdos ou a surdez funcionem, para mim, como pontos de mediação onde me é
possível visualizar e mostrar práticas e construções alastráveis a outros campos.
Prótese-ouvinte
22
A HISTÓRIA POSSÍVEL DO ALUNO SURDO NA CASA PIA DE LISBOA
Já aqui tentei transmitir que a minha intenção enquanto investigadora, na proposta
que apresento de uma visão da construção do aluno surdo na Casa Pia de Lisboa não
tem como preocupação restaurar um passado naquilo que ele efectivamente terá sido.
Pelo menos, não pretende fixar os acontecimentos, os elementos, a formação de uma
identidade que aqui se conta – a do aluno surdo – num quadro de irreversibilidades.
Interessa-me, mais do que reconstituir, trazer à memória enunciações discursivas do
passado que, hoje, podem ser analisadas numa dimensão que explora a forma como
essas mesmas enunciações construíram um regime de verdades e, como se
prolongaram no tempo. Parece-me interessante a compreensão de um padrão de
normalidade, – associado a uma racionalidade governativa própria de uma
modernidade recém-inaugurada – , íntima e interiormente articulado com uma arte de
governo para que se pudesse instituir como verdade.
Em O governo de si mesmo, Jorge Ramos do Ó, verifica que a racionalidade
governativa se consubstancia “nas inúmeras deliberações tendentes a inventar,
promover e instalar mecanismos de tipo normativo que devem conformar os sujeitos;
circunscreve um espaço de cálculo e de controlo”. A arte de governo, segundo o
mesmo autor, “evidencia os problemas, as dificuldades que aqueles enunciados
enfrentam para se implantar e atingir os seus objectivos mínimos. Sendo a arte de
governo” “uma arte essencialmente falhada, impõe-se retornar ao princípio, levando a
que o planeamento e as agregações estabelecidas pela primeira se intensifiquem de
novo” (2003: 58, 59). Ora, traduzindo este quadro para a compreensão do que foi a
história da criança surda na Casa Pia de Lisboa, não posso deixar de a compreender a
partir dos enunciados discursivos sobre aquilo que se dizia e se legitimava como
sendo a surdez, sobre o que deveria ser o surdo e sobre o papel da educação para as
crianças surdas. Estes três aspectos convergem numa racionalidade governativa que
para operar necessitava de ordenar, de estabelecer fronteiras entre o que inventava
como normal e como anormal. Todavia, não basta à racionalidade governativa a
criação de um dentro e de um fora se, nestes espaços se jogam diversas forças e
relações. Diz assim o autor de O Poder simbólico:
“Ninguém pode lucrar com o jogo, nem mesmo os que o dominam, sem se
envolver no jogo, sem se deixar levar por ele: significa isto que não haveria jogo
Introdução
23
sem a crença no jogo e sem as vontades, as intenções, as aspirações que dão vida
aos agentes e que, sendo produzidas pelo jogo, dependem da sua posição no
jogo” (Bourdieu, 1989: 85, 86).
Em suma, não basta impor, ou antes, a imposição é totalmente dispensável
quando surge como algo que sendo parte integrante da racionalidade governativa, terá
de se afirmar como desejo daqueles que são governados. Não me parece, portanto,
que uma história do que foi um sujeito possa ser contada apenas por aquilo que se
pensa que esse sujeito sempre terá sido. Parece-me importante situar esse e os outros
sujeitos envolvidos nas relações, como actores que estão estrategicamente colocados
em cada ponto. Novamente me explicarei aos leitores: tenho para mim que adoptar
uma posição a favor ou contra um problema, implica pensar esse problema e multi-
problematizá-lo a partir de um ponto de vista – que é o meu – mas informado e
enformado noutros pontos de vista, que até mim chegam através da escrita. A escrita
de diversos actores e do que aí se espelha do que se pretendia que fosse o governo das
crianças surdas, mas, pelas lentes de outras escritas designadas como pós-
estruturalistas6, questionar e verificar que aquilo que se afirma como sendo a surdez,
o surdo, a deficiência, a normalização, são imagens que pretendiam criar modelos de
pessoas que entroncassem por completo na racionalidade governativa proposta. Mas
esses mesmos discursos não eram lineares porque não dizem respeito somente a
instituições, mas a relações entre instituições e pessoas. O deslocamento que me exijo
é um descentramento relativamente a um núcleo a partir do qual sairiam as leis que
seriam aplicadas sobre os alunos surdos. É verdade que os alunos surdos são
habitantes de uma instituição, mas pela condição dinâmica de habitar é que não se
pode entender uma racionalidade governativa apenas como dominação linear,
aplicada verticalmente, de cima para baixo. Os surdos foram hospedados na paisagem
educativa e foi a condicionalidade dessa hospitalidade que fez deles hóspedes-reféns.
É inquestionável, do meu ponto de vista, que as crianças surdas foram objecto de
governo, que foram violentadas na sua condição surda, que foram dominadas por
6 O pós-estruturalismo é um termo utilizado para caracterizar o pensamento crítico de autores como Jacques Derrida, Michel
Foucault, Roland Barthes, entre outros, que propuseram um outro olhar sobre os objectos e os acontecimentos, desconstruindo a tese de significado único em relação a um significante. No fundo, trata-se de olhar objectos e relações não como entidades fixadas por regras verticalmente impostas ou como resultado inevitável de um devir histórico, mas antes como relações móveis entre práticas, formações discursivas, objectos, regularidades e estratégias. Diz assim Culler (1984) “‘postestructuralists investigate the way in which this project is subverted by the workings of the texts themselves’”. Traçando um paralelo com o estruturalismo, dir-se-ia que “‘structuralists are convinced that systematic knowledge is possible; postestructuralists claim to know only the impossibility of this knowledge’” (Ó, 2003: 85).
Prótese-ouvinte
24
práticas normalizadoras, mas há um aspecto que eu não quero esquecer na minha
análise: o da arte de governo. A racionalidade governativa é inseparável da arte de
governo e, esta, mostra a cada momento que as relações são dinâmicas e compõem-se
de efeitos vários para os quais, será necessário, um estudo constante e reactualizado
das técnicas e tácticas para que os princípios da racionalidade governativa sejam
minimamente cumpridos. O governo dos alunos surdos esteve dependente sempre de
um saber impulsionado por um poder, para formar um querer que permitisse nova
aplicação de poder. Impunha-se um conhecimento profundo do que seria a criança
surda para exercer sobre ela um poder. Este conhecimento mostrou que aquilo que
hoje é a marca assumida do ser surdo, foi, no passado, o que sempre determinou
qualquer acção sobre o sujeito surdo. A experienciação visual da surdez – não só o
olhar que vê, mas a língua que não é ouvida, mas vista. O poder não é, então algo que
se detenha numa mão, não é localizável num ponto, ele circula e será percebido não
numa relação, mas numa infinitude de relações de nível microscópico. Escreveu-o
assim Jorge Ramos do Ó:
“Dir-se-á, em primeiro lugar, que o poder não tem homogeneidade, é difuso e
exercido por todos. Mesmo aqueles que usualmente nos aparecem no papel de
marginalizados têm, de facto, meios e recursos próprios tanto para deflectir as
ordens, para se submeter parcialmente ou mesmo resistir, como, igualmente, para
agir de forma localizada. Mas o mais importante estará em ver que estes
movimentos não são externos ao poder, meros sinais de dissenção ou de revolta..
[…] Se a grande questão em torno do poder é a da sua reificação, há então que
dizer que esta não existe sem resistência. Portanto, o poder é menos uma
propriedade que um jogo estratégico” (2003: 64).
Só será possível identificar estes jogos estratégicos através da análise das
práticas levadas a cabo nas relações entre diversos actores. Obviamente que estas
práticas são determinadas de acordo com uma racionalidade governativa que fixa as
fronteiras, os regimes de verdade pelos quais todos se deverão reger. Isto significa
que serão utilizadas técnicas de governo que penetram a interioridade dos sujeitos,
constituindo-os cada vez mais como sujeitos ocupados consigo mesmos. Diz assim
Nanine Charbonell sobre o conceito de interioridade: “on fait de l’intérieur la
répresentation convenue de la mémoire, mais aussi bien de l’intelligence ou des
Introdução
25
qualités morales”(1991: 216). Ao inscrevermos na interioridade do sujeito a
possibilidade de algo mais do que um cenário visceral, inscrevemos nesse sujeito um
psiquismo que será articulado com mecanismos éticos, ou, correr-se-ia o risco de esta
interioridade não se manifestar senão como acultural. A escola teria por tarefa
trabalhar o sujeito a partir da sua interioridade, fornecendo-lhe simultaneamente duas
modalidades de relação: a relação consigo mesmo e esta, em relação com os outros. A
subjectividade dos alunos foi sendo configurada numa relação idiossincrática
consigo, no interior de um dispositivo escolar governamentalizado.
A história da criança surda na Casa Pia, como a irei contar, será a de uma
criança que é transformada em aluno deficiente, mas que constrói a sua própria
identidade com base num princípio de sujeito livre e autónomo, de acordo, parece
evidente, com um olhar e um olhar-se normativo, de tipo ouvinte. A sua liberdade
será mais um instrumento da governamentalidade. A racionalidade governativa da
modernidade prende-se, como veremos, com a verdade, com o poder e com a
subjectivação dos sujeitos governados. Neste processo toda uma rede de actores é
envolvida:
“Thus the exercise of government has become enmeshed with regimes of truth
concerning the objects, processes and persons governed—economy, society,
morality, psychology, pathology. Government has both fostered and depended
upon the vocation of 'experts of truth' and the functioning of their concepts of
normality and pathology, danger and risk, social order and social control, and the
judgements and devices which such concepts have inhabited” ( Rose, 1999: 30).
Do cenário exposto por Nikolas Rose fica evidente que os sujeitos são de
forma cada vez mais intensa, até à actualidade, traduzidos em enunciações
reveladoras da sua interioridade. A fronteira separadora entre interior e exterior,
público e privado, normal e anormal articula-se nos discursos de especialistas que
viajam para o interior de dispositivos disciplinares: a escola, a prisão, os internatos,
etc.
Prótese-ouvinte
26
OS AUTORES E A ESCRITA
A escrita deste texto nunca teria sido possível sem um núcleo de autores que
passaram a inundar a minha vida. Foi um processo lento, como o é qualquer processo
de transformação. Houve recuos e avanços, houve, essencialmente, tempos e espaços.
Muitos conceitos, muitos silêncios neste processo de hospedagem que pretendia,
desde o início, construir uma casa com grandes rasgos de luz e de portas abertas para
permitir a passagem, o movimento, a permanência mais ou menos prolongada, a
entrada e a saída. Para permitir também uma visibilidade constante do interior para o
exterior e o avesso deste olhar. A proposta era, no interior desta casa e através da
escrita, ir construindo uma tessitura.
No espaço de tempo que durou esta escrita habitaram e estou certa que daqui
para a frente continuarão a habitar o meu pensamento, – porque esta casa existiu em
imagem em mim mesma – , Michel Foucault, Jacques Derrida, Zygmunt Bauman,
Thomas S. Popkewitz, Nikolas Rose, Erving Goffman, Jorge Ramos do Ó, António
Nóvoa, Julia Varela e Alvarez-Uria e Carlos Skliar . Estes autores foram aqueles que
viveram dia e noite no pensamento desta escrita, que sustentaram e alicerçaram cada
minuto, cada olhar, cada proposta de interpretação, cada contar que aqui se lê.
Foucault, Derrida, Bauman, Goffman e Popkewitz são, sem dúvida, os autores
a quem peço conceitos para pensar. Mas são Ó, Nóvoa, Skliar, Varela e Alvarez-Uria,
Nikolas Rose que me ajudam nessa tarefa porque, precisamente, já eles escreveram
sobre o que também eu quero escrever.
Facilmente se encontrará na extensão deste texto a presença dos autores que o
motivaram. Antes, porém, é minha obrigação explicar ao meu leitor ou à minha
leitora a minha relação com estes autores e a implicação desse contacto para a
produção desta escrita. Procuro conceber o momento da escrita como o momento em
que me sento à mesa em companhia de outras escritas. E são estas que possibilitam a
minha própria escrita, fornecendo-me lentes pelas quais olhar. Mas falta nesta relação
um outro termo. A escrita de outros autores que não me fornecendo propriamente as
lentes para ver, me oferecem as paisagens a ser vistas. Escritas todas elas com
sujeitos da escrita que, por isso mesmo, por corresponderem as suas escritas também
elas a tessituras de outros textos, os autores desaparecem e fica a sua existência como
acto, como pensamento, como interioridade, como possibilidade de abertura que os
próprios autores esquiçaram na sua escrita: aquilo que Bakhtine chamou de
Introdução
27
dialogismo, que é a intertextualidade, que se aprofunda num sentido de
interdiscursividade:
“Face ao texto entendido nesta perspectiva, a noção de autor perde a sua
pertinência para ser substituída pela de sujeito do texto, o nome próprio que
advém de uma configuração específica do lugar de sujeito no processo de
significância; isto é, um nome é sempre e em última análise já um texto, ou o
nome de um texto, de uma configuração específica de textos. Como tal, o texto é
uma malha particular, polifónica, de citações, de transposições” (Babo, 1986:
s/p).
O texto dos autores encontra-se limitado pelos gestos que o antecederam e só
a partir dessa herança poderá aquele que escreve, tecer nova tessitura. A nova escrita
apropria-se directamente das outras escritas pela citação. Esta técnica, se traz ao texto
que se fabrica uma imagem de autoridade, vale mais, sobretudo, pelos vazios que
possibilita. Primeiro, ela resulta de um processo de leitura de um todo, depois, é
resultado desse processo. A sua imagem inicial é a marca, o sublinhado, o destacado
de uma escrita. Mas a citação compromete aquele que lê, porque o incita ao processo
da escrita, da reescrita. Mas este não é um movimento de pura repetição, ele próprio
se exige como outro significado, outro sentido. E se esta é a possibilidade para uma
interessante polissemia, é também o espaço para um comprometimento sério com o
texto.
Muito embora eu julgue essencial num texto que compõe o corpo de uma tese,
esclarecer-me totalmente perante quem lê, parece-me que mesmo assim há vazios.
Alguns acontecem para mais tarde serem resolvidos, com outro tempo e com outra
profundidade. Outros acontecem como vazios da própria escrita, como espaços ainda
sem significado e à espera de um porvir. “Mas fazer isto”, diz-nos Derrida “é ainda
um modo de dar a ler. Se dermos a ler qualquer coisa de totalmente inteligível,
qualquer coisa de plenamente saturado de sentido, não o daremos a ler ao outro. Dar a
ler ao outro significa também deixar desejar […] significa simplesmente
hospitalidade à leitura do outro e não recusa do outro” (2006: 48).
Por isso esta escrita é um convite.
Prótese-ouvinte
28
Prótese-ouvinte
29
I PARTE
PRÓTESE-OUVINTE
“ Todas as sociedades produzem estranhos. Mas cada espécie de
sociedade produz sua própria espécie de estranhos e os produz de
sua própria maneira, inimitável. Se os estranhos são as pessoas
que não se encaixam no mapa cognitivo, moral ou estético do
mundo – num desses mapas, em dois ou em todos três; se eles,
portanto, por sua simples presença, deixam turvo o que deve ser
transparente, confuso o que deve ser uma coerente receita para a
acção, e impedem a satisfação de ser totalmente satisfatória; se
eles poluem a alegria com a angústia, ao mesmo tempo que fazem
atraente o fruto proibido; se, em outras palavras, eles obscurecem
e tornam ténues as linhas de fronteira que devem ser claramente
vistas; se, tendo feito tudo isso, geram a incerteza, que por sua vez
dá origem ao mal-estar de se sentir perdido – então cada
sociedade produz esses estranhos. Ao mesmo tempo que traça suas
fronteiras e desenha seus mapas cognitivos, estéticos e morais, ela
não pode senão gerar pessoas que encobrem limites julgados
fundamentais para a sua vida ordeira e significativa, sendo assim
acusadas de causar a experiência do mal-estar como a mais
dolorosa e menos tolerável”
(Bauman, 1998: 27).
Prótese-ouvinte
30
A formação de um objecto: a invenção da surdez
31
A FORMAÇÃO DE UM OBJECTO: A INVENÇÃO DA SURDEZ
Observação psicológica pela prova de Rey
(Amaral, 1954)
“‘É preciso, tanto quanto ela autoriza, tornar a ciência
ocular’”
(Foucault, 2004: 96).
Na imagem, a surdez é o objecto gritante que não se vê.
Questões teóricas e articulações práticas
32
A formação de um objecto: a invenção da surdez
33
“A relação com o ser, que actua como ontologia, consiste
em neutralizar o ente para o compreender ou captar. Não
é, portanto, uma relação com o outro como tal, mas a
redução do Outro ao Mesmo. Tal é a definição da
liberdade: manter-se contra o outro, apesar de toda a
relação com o outro, assegurar a autarcia de um eu. A
tematização e a conceptualização, aliás inseparáveis, não
são paz com o Outro, mas supressão ou posse do Outro. A
posse afirma de facto o Outro, mas no seio de uma
negação da sua independência. […] A posse é forma por
excelência sob a qual o Outro se torna o Mesmo,
tornando-se meu” (Levinas, 2000: 34).
“A loucura não pode ser encontrada no estado selvagem.[...] Eu
quis dizer que a loucura só se tornou objecto de ciência na
medida em que ela foi descaída de seus antigos poderes.[...]
Afinal de contas, cada cultura tem a loucura que merece. E se
Artaud é louco, e se foram os psiquiatras que permitiram a
internação de Artaud, isso já é uma bela coisa, e o mais belo
elogio que se possa fazer...
-Não à loucura, com certeza...
-Mas aos psiquiatras” ( Foucault, 2002f : 163, 164).
Pensar a surdez enquanto invenção significa, logo num primeiro nível, considerá-la
como enunciação, como objecto impulsionador de um discurso de que ela própria é
objecto último. E não é objecto utilitário, mas operatório. É neste sentido que me
Questões teóricas e articulações práticas
34
importa analisar o discurso formador do objecto surdez. Mas o interesse que me guia é a
possibilidade de relacionar a invenção e descrever um objecto, para o poder jogar com
instituições, práticas e relações sociais. A invenção deste conceito irá ser por mim
analisada, do ponto de vista de um discurso que nasce no interior da medicina e que se
relaciona com estruturas institucionais outras. Não é a surdez no contexto clínico, como
patologia pormenorizadamente descrita a nível audiométrico que irei considerar,
todavia, é no seio destas práticas discursivas que se encontra a mola impulsionadora e
legitimadora para um enlace da surdez enquanto anormalidade, por todo o tecido social
e, inevitavelmente, prolongando-se para o domínio educativo e institucional.
Partir em busca somente das causas que propiciaram a invenção da surdez como
anormalidade, não é minha intenção. Procurarei verificar de que forma foi possível,
através de que técnicas, de que formações discursivas e não discursivas acerca da
anormalidade em geral, e da surdez em particular, se construiu um dispositivo de
normalidade, no qual, aquele que foi seu objecto primeiro de formação e exclusão,
haveria de ser incluído.
Era assim descrita a anormalidade por Palyart Pinto Ferreira, professor na Casa
Pia de Lisboa e colaborador da Revista A criança anormal:
“Anormalidade quer dizer desvio da normalidade”, todavia, continuava o autor,
“resta-nos saber onde termina esta e onde começa aquela”. “Caracterizaremos como
anormal toda a criança que por deficiência funcional (física ou psíquica) reage aos
estímulos exteriores duma maneira diversa daquela que em regra se nota na maioria
das crianças”. Caberia neste espaço todo o anormal “por carência” (1930: 8).
Esta constatação de Palyart não era nova nem diferente daquela que, pelo menos
desde Bacon, viria a considerar que o domínio sobre a doença só era possível
conhecendo as “suas relações com o estado normal que o homem vivo” desejava
“restaurar”. O desenvolvimento de teorias que articulavam disfuncionalidades do corpo
por comparação a estados de harmonia, “resultou na formação de uma teoria das
relações entre o normal e o patológico, segundo a qual os fenómenos patológicos nos
organismos vivos nada mais” eram “que variações quantitativas, para mais ou para
menos, dos fenómenos fisiológicos correspondentes” (Canguilhem, 2002: 21, 22). O
que esta ideia traz de útil é que apesar de uma variação quantitativa, normal e
patológico não seriam estados estagnantes, quer dizer, conservava-se uma “confiança
tranquilizadora” de “vencer tecnicamente o mal”. Ora, será esta ideia que justificará, –
A formação de um objecto: a invenção da surdez
35
embora não seja a sua causa única –, os processos terapêuticos e que sustenta os
caminhos de correcção quer em instituições de carácter médico quer educativo. Georges
Canguilhem, na sua primeira análise sobre a fabricação do normal e do patológico,
datada de 1943, mostra de que forma estes dois conceitos se desenvolveram no âmbito
científico, partindo de princípios que aparentemente seriam diferentes. Apresenta-nos,
num contexto francês, dois representantes do pensamento dos estados normais e
anormais. Por um lado, Auguste Comte, cujo interesse se dirigia “do patológico para o
normal”, com o objectivo de pela saturação de um estado, perceber as regras de
funcionamento regulares (Canguilhem, 2002: 23). Por outro, Claude Bernard, centrando
a visão no normal e viajando até ao patológico, na tentativa de racionalizar os estados
que quantitativamente se afastavam de um padrão médio. Cerca de vinte anos depois,
Canguilhem apresenta desenvolvimentos que, não contrariando a sua primeira proposta
de perceber os estados normal e patológico, trazem novas perspectivas para a
compreensão da formação do objecto ou do corpo anormal. Desde logo, o autor ensina-
nos que:
“Norma é a palavra latina que quer dizer esquadro” e “normalis significa
perpendicular”. Óbvio se torna que “uma norma, uma regra, é aquilo que serve para
rectificar, pôr de pé, endireitar”. “Normalizar é impor uma exigência a uma
existência, como um indeterminado hostil, mais ainda do que estranho”
(Canguilhem, 2002: 211).
A norma retira o seu sentido da existência, exterior a si, de estados outros não
correspondentes à exigência de que é referente. Por agora, gostaria apenas de deixar
claro que um estado só se torna preferível a um outro estado, se o primeiro for instituído
ou escolhido como favorável. Quer isto dizer que entre normal e anormal instala-se algo
que é próprio da linguagem, – a nomeação e a classificação –, e uma vontade de
controlar o segundo termo no seu desenvolvimento normal-sem normalização. Mas há
mais uma ideia que Canguilhem nos fornece, e que será essencial para a compreensão
da institucionalização da criança surda e dos processos educativos de normalização do
seu estado. Essa ideia é que não há qualquer diferença do ponto de vista da
normalização entre “o nascimento da gramática no século XVII” e a “instituição de um
sistema métrico no fim do século XVIII”: o que estaria em causa era uma regularidade
favorável na utilização de uma opção em detrimento de outra. O que se pressente,
portanto, é que há uma inter-relação entre enunciações discursivas proferidas em
Questões teóricas e articulações práticas
36
diferentes campos, cujos conteúdos também não se assemelham, mas mantêm entre si
um denominador comum: a regularidade e sistematicidade das regras que determinam a
produção dos discursos de verdade. A regra desejável será ditada pela média. Todavia, é
também de economia e eficácia que se fala: “a normalização é considerada como uma
solução para evitar a confusão de esforços, a singularidade das proporções, a
dificuldade e a demora da substituição das peças, a despesa inútil” (Canguilhem, 2002:
217). À partida, na modernidade, não há diferença alguma entre isolar um criminoso
numa prisão, um louco num hospício ou um surdo numa instituição educativa, todavia,
os discursos que permitem este movimento de exclusão/inclusão, tornam-se legítimos
primeiro, pela sua origem e depois, pelo seu interesse para um corpo que começa a ser
formado: a população. As três situações são racionalizadas como pertencentes a franjas
sociais e neutralizadas pela nomeação, classificação e localização em espaços onde se
espera um processo de regeneração activo.
Mas esta fase é posterior a uma outra que tem no olhar a sua condição primeira.
Michel Foucault, no Nascimento da Clínica, apresenta-nos um texto, do qual destacarei
ideias que permitem verificar a extensão das produções discursivas quando se trata de
fazer ver o anormal. O texto que Foucault traz até nós foi escrito por Charles-Louis
Dumas, professor de fisiologia e de anatomia em Montpellier, em 1807. A minha ideia é
colocá-lo face-a-face com um outro texto produzido um século adiante por Ary dos
Santos, médico da Casa Pia de Lisboa.
Diz assim Dumas: “‘Desvendar o princípio e a causa de uma doença em meio à
confusão e obscuridade dos sintomas; conhecer sua natureza, suas formas, suas
complicações; distinguir, no primeiro golpe de vista, todas as suas características e
diferenças’” (Foucault, 2004b: 95-96). Ary dos Santos, revela a necessidade de:
“Inquirir com todo o cuidado das causas determinantes, das acidentais e das
predisponentes que podem originar a surdo-mudez, e só então se poderá estabelecer
com rigor os casos que pertencem a uma das duas grandes divisões: surdez
congénita e surdez adquirida” (1920: 4). Dumas continua: “‘prever os
acontecimentos vantajosos e nocivos que devem sobrevir durante o curso de sua
duração’”; “‘governar os momentos favoráveis que a natureza suscite para operar a
solução’”; “‘determinar com precisão quando é preciso agir e quando convém
esperar’”. Com outras palavras, completaria Ary: “Daqui resulta a necessidade de
estudar: 1º. A hereditariedade em todas as suas manifestações; 2.° Causa de
degenerescência que pode originar a enfermidade; 3.° Os acidentes e as doenças que
durante a primeira infância originam com mais frequência a surdo-mudez. A
A formação de um objecto: a invenção da surdez
37
propósito da hereditariedade não nos devemos esquecer dos casos de transmissão
directa da enfermidade dos pais para filhos dos avós aos netos, da frequência da
surdo-mudez nos colaterais, dos casos de surdez sem mudez nos ascendentes ou nos
colaterais, da consanguinidade, e a transmissão hereditária dum grande número de
doenças nervosas, porque só assim teremos elementos para estudar um dos factores
etiológicos de maior importância” (1920: 4). Concluiria Dumas: “‘combinar todas as
possibilidades, calcular todos os casos’”; “‘tornar-se senhor dos doentes e de suas
afecções’”; “‘acalmar suas inquietudes’”; “‘adivinhar suas necessidades’”; “‘actuar
sobre seu carácter e dirigir sua vontade, não como um tirano cruel que reina sobre
escravos, mas como um pai terno que vela pelo destino de seus filhos’” (Foucault,
2004b: 95-96).
As falas destes dois médicos poderiam acontecer em simultâneo. Uma não
contradiz a outra. Um discurso é o desenvolvimento do outro e, ao que ambos se
referem, é à primazia da observação visual sobre aquilo que era tido como doença. A
clínica teria como tarefa ordenar os corpos, vê-los, isolá-los, rememorar o seu percurso,
verificar diferenças e semelhanças comparando-os, nomeá-los e classificá-los. Se este é
um olhar próximo do do naturalista, a verdade é que, a partir do século XIX, uma nova
racionalidade exige que o discurso da doença saia da boca do médico e que o seu olhar
não se limite a ver, mas a ver atentamente. O problema da atenção, dir-nos-á Crary:
“vision was open to procedures of normalization, of quantification, of discipline” (2001:
12). E Foucault oferece as vantagens do processo: ver e apreender “as cores, as
variações, as ínfimas anomalias, mantendo-se sempre à espreita do desviante” (2004b:
97). Era neste sentido que Ary dos Santos afirmava a necessidade de, diagnosticando-se
a surdez numa criança, procurar descrever pormenorizadamente o grau e as causas da
patologia. O tratamento e normalização da criança surda, teriam claramente, de se
adequar ao caso individual. A prescrição de qualquer terapêutica estaria condicionada
pela situação particular da criança. Daí, as inúmeras vantagens de um inquérito
minucioso à entrada na instituição.
A admissão do surdo na Casa Pia exigia uma tradução da criança num discurso
que lhe traçava um retrato fiel enquanto portador de surdez. Sobre ela, dizia-se tudo.
Aqueles que tinham como função encarregar-se da educação desta criança, possuíam
toda a legitimidade para o fazer pois sabiam mais do estado do sujeito do que o próprio.
O passado patológico da vida familiar da criança surda tornava-se, também, alvo de
investigação. Se havia casos de “melancolia”, “imbecilidade”, “idiotia”,
“excentricidade” ou “tiques”, se durante a gravidez a mãe teria sofrido “traumatismos”,
Questões teóricas e articulações práticas
38
ou ainda se a diferença de idades nos progenitores seria grande (Santos, 1920:5). O
discurso médico foi portador de uma verdade que ultrapassava o nível da enunciação
para se fixar no próprio enunciado de que falava. Um novo sentido, agora com uma
forma, fixa-se entre o que é dito e o seu objecto, a verdade tem que ver com a sua
relação à referência enunciativa. Uma nova relação entre a doença e o olhar que a fixa,
oferecendo-se a ele e constituindo-o. Adiantarei ao leitor ou à leitora que o desenho de
um percurso biográfico do passado da criança se relacionaria de forma evidente com a
constituição de um saber sobre ela, para que se lhe pudesse prever um comportamento
futuro. A problemática do arquivo que instintivamente anuncia a irrevogabilidade de um
porvir. Uma correlação, portanto, entre saber e poder que parte de uma articulação entre
a infância e a conduta do indivíduo. Neste cenário estará a psiquiatria como elemento
aglutinador destes campos e será a ela que caberá a tarefa de justificar comportamentos
e estados. A conduta do aluno será sempre o grande objecto a trabalhar na escola e,
figurando, apesar do silenciamento na sua enunciação, como o grande separador entre
normais e anormais. Parece-me pertinente a mudança que se opera no interior da própria
clínica. A doença em si, a verdade de uma surdez, por exemplo, deixará de ser o
elemento único ou o mais importante enquanto objecto de uma análise clínica; o que a
psiquiatria dá ao médico é a possibilidade de considerar para análise o comportamento,
o desvio, a anomalia que, evidentemente, se intensificaria caso se unisse visivelmente a
uma patologia do corpo. Há uma espécie de mesclamento de fronteiras que, mais à
frente teremos oportunidade de verificar.
Pressente-se na invenção da surdez, uma vontade de verdade que tal como
“outros sistemas de exclusão, apoia-se numa base institucional: ela é ao mesmo tempo
reforçada e reconduzida por toda uma espessura de práticas como a pedagogia, claro, o
sistema dos livros, da edição, das bibliotecas, as sociedades de sábios outrora, os
laboratórios hoje. Mas é também reconduzida, e de um modo mais profundo sem
dúvida, pela maneira como o saber é disposto numa sociedade, como é valorizado,
distribuído, repartido e, de certa forma, atribuído” (Foucault, 2002e: 4). Como de resto
aconteceu com um sistema penal, também os actos discursivos vindos da área do saber
médico, encontraram alicerces e justificação, noutros saberes que os ajudavam a fixar
enquanto discursos de verdade. Em última análise, no caso específico da surdez, um
saber social, permitiria associar a ausência do ouvir a causas outras, perfeitamente
justificáveis por uma racionalidade científica e, poderia, tal como aconteceu, encontrar
forças para reforçar a sua estrutura de verdade, em campos como os da pedagogia,
A formação de um objecto: a invenção da surdez
39
legitimando e legitimando-se nas práticas educativas e correctivas. O discurso parece,
então, corresponder a um corpus de conhecimento que, pelas relações que provoca, pelo
entrelaçamento com outros discursos, se projecta no sentido de construção de um
objecto e da forma de o dizer e pensar.
Georges Canguilhem, comentando o trabalho de Foucault em torno da
fabricação da loucura, toca no ponto essencial:
“Madness had to be constituted at first as a form of unreason held at a distance by
reason as a necessary condition for it to come into view as an object of study” (1997:
24).
A surdez, diria eu, teve igualmente de ser concebida como um estado que,
privando o sujeito de ouvir, obrigatoriamente o situaria na obscuridade e isolamento
onde, nem a palavra de Deus nem a dos homens, poderia chegar. Todavia, semear esta
percepção no tecido social, obrigava à nomeação e à classificação de um estado pela sua
inscrição racional e inteligível. Expressava-o desta forma Almeida Garrett:
“Não se concebe, na organização que ao Criador aprouve dar à espécie humana, não
se concebe como sem palavras se pudessem formar muitas das ideias, combinar
outras muitas e formar juízos”. E notava o autor: “Que ideias tem o surdo-mudo de
nascença? Quase nenhumas e imperfeitíssimas. Nem a arte sublime que a tanto
esforço e custo os restitui em parte à sociedade, os pode, ainda assim mesmo, fazer
completos participantes e membros dela” (1829: 30).
Falei na surdez como estado e, na verdade, foi mesmo necessário que ela fosse
construída como um estado para que se tornasse possível enquanto doença e enquanto
anormalidade. A razão é curta:
“Quem é sujeito a um estado, quem é portador de um estado, não é um indivíduo
normal”. “O estado pode produzir qualquer coisa, a qualquer momento e em
qualquer ordem” (Foucault, 2002: 397). Eis o perigo.
Porque é evidente que os enunciados não surgem inócuos de significado e de
efeitos, mas, pelo contrário, colocam e mantêm os sujeitos numa relação determinada, o
primeiro quadro que importa compreender é o do terreno da modernidade como espaço
de governamentalidade. No próximo capítulo desenvolverei este conceito de Foucault,
Questões teóricas e articulações práticas
40
todavia, será pertinente neste momento, considerar a governamentalidade como um
encontro entre as tecnologias de domínio dos outros e as técnicas do eu do sujeito,
levando o indivíduo a transformar-se no sentido de adoptar uma conduta ou
comportamento que, adequando-se a princípios de uma racionalidade governativa, se
inscrevem nele como desejo. Deste modo, creio poder mostrar que a educação das
crianças surdas como educação especial, funcionou como dispositivo de normalização,
utilizando-se de práticas e de técnicas que activaram os processos correctivos e o
sentimento da sua estrita necessidade. De acordo com Foucault, um dispositivo é “um
conjunto decididamente heterogéneo que engloba discursos, instituições, organizações
arquitectónicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados
científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas”. Em suma, diz o autor “o dito
e o não dito são os elementos do dispositivo” e o dispositivo “é a rede que se pode
estabelecer entre estes elementos” (Foucault, 2004 c: 244). São, portanto, as relações e
os efeitos das práticas discursivas, na sua enunciação ou no seu silenciamento que
permitem a constituição dos objectos e o seu lugar de pertencimento. Obviamente, as
práticas são marcadas por uma regularidade e racionalidade que, numa época e numa
área específica, acompanham os modos de dizer ou de fazer. As técnicas agregam à
ideia de práticas um conceito estratégico e táctico. Quer isto dizer que as técnicas de
carácter disciplinar ou do eu, funcionam no espaço escolar “ por meio de uma detalhada
estruturação do espaço, do tempo e das relações entre os indivíduos; de procedimentos
de observação hierárquica e julgamento normalizador; de tentativas para incorporar
esses julgamentos aos procedimentos e julgamentos que os indivíduos utilizam a fim de
conduzir sua própria conduta” (Rose, 2001: 38). Há, portanto, nas técnicas uma relação
entre as tácticas e as estratégias, o mesmo é dizer, entre os meios e os fins a atingir.
Embora mais adiante se especifique as particularidades das técnicas disciplinares e do
eu, direi que as primeiras surgem no pensamento de Foucault através de codificações
que esquadrinham “ao máximo o tempo, o espaço, os movimentos”, relacionam-se de
forma directa com o corpo, impondo-lhe uma “relação de utilidade-docilidade”, mas,
todavia, são as segundas que permitirão tirar das técnicas disciplinares produtividade
(2004: 118). As técnicas do eu são técnicas usadas numa relação de poder que incitará o
sujeito a transformar-se a si próprio. Quer dizer, relacionam-se com o sujeito enquanto
sujeito de um desejo, mas simultaneamente enquanto sujeito ético, e é no caminho para
essa realização do desejo que operará modificações sobre o corpo e sobre a alma,
conduzindo-se por um trilho de princípios morais vigentes no seu tempo e no seu
A formação de um objecto: a invenção da surdez
41
espaço. O caminho para o surdo que, a partir da sua admissão na instituição passava a
aluno surdo, não era o da cura, mas o da correcção ortopédica, ainda que a possibilidade
do ouvir não fosse senão uma impossibilidade. Depois de excluída do grupo dos
ouvintes, a criança surda era localizada num caminho correctivo de busca por uma
inclusão que, a acontecer, não faria dela algo diferente de um estranho. A Casa Pia de
Lisboa adquiriu a forma de um dispositivo de normalização. A surdez acolhia
visibilidade ao conectar-se aos corpos dos alunos surdos, e assumia-se como deficiência
pelas práticas educativas de carácter correctivo que aí tinham lugar.
Eram os primeiros anos do século XX e a médico-pedagogia estava já instalada
na Casa Pia de Lisboa. Procurava tornar-se visível não só a anormalidade, mas também
inteligibilizar a sua origem, ensaiando-se um cenário explicativo para as desordens do
corpo.
Michel Foucault, ao referir-se aos discursos médicos produzidos durante o
século XIX – e que iriam propagar-se a outros campos, nomeadamente à pedagogia –,
sublinha a existência de “um corpus de conhecimentos que supõem um mesmo olhar
sobre as mesmas coisas, uma mesma grade do campo perceptivo, uma mesma análise do
facto patológico de acordo com o espaço visível do corpo” (2005 a: 99, 100). Quer
dizer, o que se diz, passaria a estar regido por uma espécie de vocabulário ou gramática
da patologia. Esta forma de se dizer da doença, formulou o próprio sujeito como
depositário da enunciação e, portanto, passível de intervenção. Um dos pontos
fundamentais na construção do aluno anormal, foi a aliança estabelecida entre o
discurso da medicina e o discurso da educação, recebendo-se no espaço educativo um
sujeito engendrado na ciência médica. Faz sentido reproduzir aqui a questão que o
mesmo filósofo, colocou acerca das várias formas de enunciados presentes nos
discursos médicos do século XIX:
“Entre uns e outros, que encadeamento, que necessidade? Porquê estes e não
outros?” E para responder a estas questões, o autor, diz que, primeiro, é “necessário
descobrir a lei de todas estas enunciações” e o seu “lugar de proveniência”
(Foucault, 2005: 83).
De um campo estritamente educacional, nomeadamente de um compêndio para
o ensino dos surdos, dado à estampa em 1881, Tobias Leite esboçava e coloria uma
imagem do que seria o surdo, fornecendo indicações de reconhecimento para olhares
Questões teóricas e articulações práticas
42
menos atentos. Começando por distinguir a existência das duas espécies de “surdos-
mudos”, “congénita” e “acidental”, mostrava pela observação a forma de detecção
destas espécies:
“O surdo-mudo congénito tem a face pálida, a fisionomia morta, o olhar fixo, a
caixa toráxica deprimida, movimentos lentos e o caminhar trôpego e oscilante, é
excessivamente tímido e desconfiado. Além destes sinais há um que lhe é peculiar:
certo ruído, ou espécie de gemido que inconscientemente deixa ouvir quando come
ou faz qualquer coisa que exija esforço físico ou intelectual, ou que lhe cause
satisfação”. “O surdo-mudo acidental […] facilmente se reconhece pela face,
sucessivamente ora corada, ora pálida, pelos olhos vivos, o olhar rápido e móvel,
fisionomia alegre, curiosidade excessiva, carácter susceptível, e minimamente
violento” (Leite, 1881:VII – IX).
Daqui se deduz uma representação que se queria experiência individual e social
da surdez. Quer dizer, qualquer um poderia verificar a palidez ou rubor da face, o olhar
fixo ou vivo, a lentidão de movimentos de um corpo surdo que era considerado tímido e
desconfiado ou alegre e curioso. O próprio objecto é constituído pela formulação que
dele se faz. Não é, portanto, do lado da surdez como estado do surdo que se pode
procurar a unidade do discurso vindo da medicina ou da pedagogia. Diz assim Jacques
Derrida acerca da nudez e dos animais e eu proponho que se alargue ao pensamento da
invenção da surdez como objecto que se aplica ao corpo surdo:
“Assim, nus sem o saber, os animais não estariam, em verdade, nus. Eles não
estariam nus porque eles são nus”. “Por ele ser nu, sem existir na nudez, o animal
não se sente nem se vê nu” (2002: 17).
A unidade dos discursos sobre a surdez, a existir, está nas regras e relações que
tornaram possível o aparecimento das descrições médicas da surdez, da negatividade
das suas características, das práticas que permitiram excluir e, depois, incluir aqueles
que eram ditos e vistos como membros de uma comunidade anormal. A surdez seria,
então, o referencial – de ausência de audição com todas as suas implicações negativas –
comum ao grupo dos surdos. Tratava-se de inventar a surdez no nível da palavra: “o
acto descritivo” é “uma apreensão do ser e, inversamente, o ser não se mostra nas
manifestações sintomáticas, portanto essenciais, sem se oferecer ao domínio de uma
linguagem” (Foucault, 2004b: 104). A doença, a surdez, só é objecto a partir do
A formação de um objecto: a invenção da surdez
43
momento em que é enunciável.
No seu texto A vida dos homens infames, publicado pela primeira vez em 1977,
Michel Foucault refere-se à vida daqueles que, pelo seu lugar vulgar na sociedade,
estariam destinados “a passar ao lado de todo o discurso e a desaparecer sem nunca
terem sido” ditos (2002 d: 98). Na verdade, tal só não aconteceu porque, o seu
comportamento provocou uma vontade de representação no momento em que se cruzou
com o poder:
“Aquilo que as arranca à noite em que elas poderiam, e talvez devessem sempre, ter
ficado, é o encontro com o poder: sem este choque, é indubitável que nenhuma
palavra teria ficado para lembrar o seu fugidio trajecto” (Foucault, 2002 d: 97).
Foi necessário, antes de mais, um qualquer elemento que conduzisse o olhar do
poder para uns seres, e não para outros. O comportamento inadequado, incomum, a
loucura, constituiriam, por certo, elementos suficientemente inquietantes para que lhes
fosse concedida a devida atenção. Mas mesmo assim, permanece a dúvida, porque se
está, já, a considerar a verdade de uma loucura. Em última análise, é a “sensibilidade”
de uma sociedade “que serve como elemento regulador quando se trata de decidir”
quem é normal, ou anormal (Foucault, 2003: 80). Cada sociedade tem o seu próprio
regime de verdade, a sua política geral de verdade, quer dizer “los tipos de discurso”
aceites nessa sociedade e postos a circular como verdadeiros. Para tal, têm de ser
considerados “los mecanismos y las instancias” que permitem distinguir os enunciados
verdadeiros dos falsos, “la manera en que se sancionan” uns e outros e, claro está, o
estatuto daqueles que têm como função dizer o que funciona como verdadeiro (Castro,
2004: 345).
Na análise da invenção da surdez como anormalidade do corpo, interessa-me,
essencialmente, considerar a ligação existente entre verdade e poder. A verdade de um
objecto é inseparável dos sistemas de poder que a produzem e legitimam, dos efeitos de
poder que ela própria induz e que se multiplicam. Como disse Nietzsche “ a verdade
não será pois uma coisa existente”, mas sim “ uma coisa” que se cria, que fornece “um
nome para um certo processus; sobretudo, ela exprime a vontade de violentar os factos
até ao infinito, de introduzir a verdade nos factos por um processus in infinitum, uma
determinação activa. [...] Ela é afinal um dos nomes da vontade de poder” (2004: 259,
260). A verdade não é, neste sentido, uma ideologia, mas um núcleo de relações que,
Questões teóricas e articulações práticas
44
sendo inseparável do poder, circula horizontal e transversalmente no tecido das relações
sociais. Será o momento de clarificar o conceito de poder, desenvolvido por Michel
Foucault. Para este autor, o poder deve ser compreendido na “multiplicidade das
relações de força imanentes ao domínio em que se exercem e constitutivas da sua
organização”. Estas forças movimentam-se, transformam e transformam-se. “É o
pedestal movente das relações de força que induzem sem cessar, pela sua desigualdade,
estados de poder, mas sempre locais e instáveis”. Ensina-nos ainda Foucault que, o
poder “é um nome que se atribui a uma situação estratégica complexa numa
determinada sociedade”1 (1994 a: 95, 96). Ora, se nos interessa primeiro perceber a
invenção da surdez, depois, será importante, verificar que o governo de uma população
considerada anormal, não se efectuará por relações que têm a lei como modelo, mas
sim, a normalização; não se efectuará por relações assentes no castigo ou na coerção,
mas no controlo e nas tácticas. Tenho para mim que o ponto mais importante na
produção da anormalidade – neste caso, surda – não tinha na aprendizagem da língua
oral e, portanto, na repressão da gestualidade, o seu objectivo fundamental. Não era, a
meu ver, o mais importante, o facto de a criança surda adquirir, ou não, a língua dos
ouvintes, mas esta, foi uma táctica utilizada num dispositivo escolar, para se manter sob
controlo um grupo que, até aí, fugia à ciência do Estado, isto é, a toda a racionalidade
estatística. Para se sentir parte de uma comunidade – e aquela que era dada como
referente à criança surda, era a comunidade ouvinte – teria de se lhe incutir o desejo e a
aspiração da língua oral.
No campo da medicina, a verdade, quer dizer, o saber sobre o corpo, foi
constituído pelas práticas discursivas, pelos registos escritos, pela acumulação de
relatórios, descrevendo pormenorizadamente – ou nem tanto – o seu objecto. Esta
verdade ultrapassou o âmbito do seu campo teórico e infiltrou-se nas malhas da
sociedade.
“Uma infinidade de discursos que atravessam em todos os sentidos o quotidiano e se
encarregam [...] do mal minúsculo das vidas sem importância”. Houve um apelo à
1 No primeiro volume da História da Sexualidade, Foucault expunha o seu método de análise sobre “a formação de um certo tipo de
saber sobre o sexo” assentando não sobre a repressão ou a lei, mas sobre o poder. “Mas esta palavra poder”, dizia, “corre o risco de induzir vários mal-entendidos acerca da sua identidade, da sua forma, da sua unidade. Por poder não quero dizer ‘o Poder’, como conjunto de instituições e de aparelhos que garantem a sujeição dos cidadãos num determinado Estado. Por poder também não entendo um modo de sujeição que, por oposição à violência, teria a forma de regra. Por fim, não entendo ainda um sistema geral de dominação exercido por um elemento ou um grupo sobre outro, e cujos efeitos, por derivações sucessivas, atravessariam todo o corpo social. A análise, em termos de poder, não deve postular, como dados iniciais, a soberania do Estado, a forma da lei ou a unidade global de uma dominação; estas são antes apenas as suas formas terminais” (1994 a: 95).
A formação de um objecto: a invenção da surdez
45
discursificação que se legitimava no poder de observar para tudo saber. “ Começa a
erguer-se um murmúrio imparável: aquele mediante o qual as variações de conduta,
as vergonhas e os segredos são oferecidos pelo discurso à acção do poder”
(Foucault, 2002 d: 116, 117).
Tudo deve ser dito e, mais, tudo deve ser escrito – legitimando assim o olhar que
se lança.
Uma análise destes discursos que inventam objectos, não deve ser feita, do meu
ponto de vista, no sentido de procurar o que permanece escondido no discurso. O que se
revela como verdadeiramente interessante é, nesses discursos manifestos pressentir
funcionamentos mútuos, coexistentes e que no seu conjunto, constituiriam aquilo que
foi o modo de existência e, portanto, os regimes de verdade, dos acontecimentos
discursivos de uma cultura. “O que se trata de fazer aparecer é o conjunto de condições
que regem”, num tempo e num espaço determinados, “o surgimento dos enunciados, sua
conservação, os laços estabelecidos entre eles, a maneira” em que são agrupados, “a
série de valores ou sacralizações pelos quais são afectados”, como são utilizados “nas
práticas ou nas condutas”, “os princípios” segundo os quais “circulam”, ou são
“recalcados”, “esquecidos”, “destruídos” ou “reactivados” (Foucault, 2005 a: 95).
A necessidade de dar uma língua oral ao surdo, tão evidente no século XIX e
grande parte do século XX, era algo relativamente recente e que só pôde acontecer por
um cruzamento entre medicina, pedagogia e poder. No Crátilo de Platão, Sócrates
questionava-se:
“‘Se não tivéssemos voz nem língua e ainda assim quiséssemos expressar coisas uns
aos outros, não deveríamos, como aqueles que ora são mudos, esforçar-nos para
transmitir o que desejássemos dizer com as mãos, a cabeça e outras partes do
corpo?’”(Sacks, 2005: 29).
No século XVI, o médico-filósofo Cardano demonstrava uma sensibilidade semelhante:
“‘É possível dar a um surdo-mudo condições de ouvir pela leitura e de falar pela
escrita [...] pois assim como diferentes sons são usados convencionalmente para
significar coisas diferentes, também podem ter essa função as diversas figuras de
objectos e palavras”. “Caracteres escritos e ideias podem ser conectados sem a
intervenção de sons verdadeiros’“(Sacks, 2005: 29).
Questões teóricas e articulações práticas
46
E se esta sensibilidade parece apagada dos discursos médico-pedagógicos do
século XIX e do século XX, na realidade, ela está lá e, é sempre sobre ela que se
constroem as enunciações discursivas da surdez. Não é, uma verdadeira consagração do
surdo enquanto surdo, mas é a possibilidade de existência de uma outra língua diferente
da dos ouvintes. Uma das marcas que viajará até este texto e que é, sem dúvida, uma
das regras de produção dos discursos clínicos e pedagógicos sobre a surdez, é a
especificidade visual da experienciação surda. Este seria o limite impeditivo de uma
colonização total do corpo surdo por uma comunidade ouvinte, mas, simultaneamente, o
motor produtivo e multiplicador das inúmeras práticas com objectivos normalizadores.
A surdez como anormalidade do corpo, embora não seja manifestação visível,
foi descrita, foi tornada enunciado e enunciável. A clínica teve como tarefa ver e saber,
dizendo o que via, dominava o visível, construía um saber que legitimava qualquer
prática terapêutica que decidisse levar a cabo. A este terreno viria juntar-se a psicologia,
permitindo uma maior individualização da criança. Para já, darei apenas a ver ao leitor
uma imagem/ enunciado da surdez e lhe direi que, mais do que dar ao surdo uma língua
com que comunicar – aquilo que aparece à superfície do discurso – pretendia-se
introduzi-lo num jogo mais amplo de práticas que se justificavam pelo seu carácter
relacional. No processo de normalização, a criança seria levada a desejar a referência do
ouvinte. Proponho ao leitor olhar a imagem com que se abriu este capítulo.
Independentemente da identificação das duas personagens, interessa saber que o que
aqui se passa é uma observação psicológica pela Escala de Rey. O objectivo da grelha
de testes de observação aplicados ao aluno surdo seria “determinar os elementos
necessários para a elaboração do perfil psicológico da criança”. Um retrato, revelador,
portanto, da “vida intelectual, afectiva e volitiva do aluno” (Amaral, 1954: 49). A
relação entre um actor e outro é de face-a-face. A legenda permite identificar a acção
descrita, todavia, fosse a sua inexistência e não deixaria de se associar a imagem a um
acontecimento entre um médico e um paciente. Observador e observado, uma mesa
como elemento separador, e, contudo, nenhum objecto técnico que denuncie a prática
clínica. Apenas, é claro, o movimento de registo escrito. A constituição de um saber
sobre um objecto, como adiante terei oportunidade de mostrar detalhadamente,
intensifica as relações de poder que circulam à sua volta e se intersectam com ele.
No próximo capítulo é minha intenção mostrar de que forma é que a surdez e o
surdo, depois de nomeados e inscritos num regime de verdade continuam, com mais
visibilidade, a ser objectos de governo. Antes, porém, deixaria os leitores com uma
A formação de um objecto: a invenção da surdez
47
imagem que condensa o que até aqui se disse e antecipa o que se dirá:
“Cartography— the activity of mapping—exemplifies the ways in which spaces are
made presentable and representable in the hope that they might become docile and
amenable to government. To govern, it is necessary to render visible the space over
which government is to be exercised. This is not simply a matter of looking; it is a
practice by which the space is re-presented in maps, charts, pictures and other
inscription devices. It is made visible, gridded, marked out, placed in two
dimensions, scaled, populated with icons and so forth. In this process, and from the
perspective of its government, salient features are identified and non-salient features
rendered invisible. The construction of such a map is a complex technical
achievement. It entails practices such as exploring, surveying, tramping the streets in
order to identify the inhabitants of different dwellings, collecting statistics from far
and wide across the realm, conducting surveys of areas, regions, towns and so on. It
involves the invention of projections, the uses of colour, of symbols, of figures,
scales, keys and much more” (Rose, 1999: 36).
A actividade de mapear torna o espaço previsível. Na marcação de linhas de
fronteira entre o que está dentro e o que está fora, ambos os lados se constituem pela
presença e relação com o outro lado. O planejamento cartográfico da modernidade
obedeceu a uma racionalidade governativa expulsora da ambivalência nas relações.
Questões teóricas e articulações práticas
48
Um primeiro olhar sobre a paisagem educativa…
49
UM PRIMEIRO OLHAR SOBRE A PAISAGEM EDUCATIVA:
GOVERNAMENTALIDADE, POLICE , PODER E BIO-POLÍTICA
Aula da 4ª cadeira da Casa Pia de Lisboa, inícios do século XX
(Arquivo Fotográfico de Lisboa)
Convém antes de mais traçar o enquadramento temporal em que se situa esta análise.
Antecipei já aos leitores, na introdução, que os anos aqui tratados pertencem ao
século XIX e a parte do século XX, e a razão parece óbvia. O ensino dos surdos na
Casa Pia de Lisboa iniciou-se em 1823 com a contratação de um professor sueco –
Per Aron Borg – vindo do Instituto de surdos de Estocolmo. A direcção deste ensino
permaneceria por pouco tempo ligado à Casa Pia, – autonomizando-se –, e só a ela
Questões teóricas e articulações práticas
50
regressando em 1834. Pouco se sabe do que se passou relativamente ao ensino dos
surdos nesta instituição entre os anos trinta e os anos sessenta do século XIX. O que
nos chega, hoje, verdadeiramente interessante, é um documento escrito por José
Crispim da Cunha, professor de surdos no período que vai de 1824 a 1834. Em
História do Instituto dos surdo-mudos e cegos de Lisboa desde a sua fundação até à
sua incorporação na Casa Pia de Lisboa, Crispim da Cunha deixa transparecer todo
o seu desânimo pela incorporação desta educação especial numa instituição como a
Casa Pia, antevendo para o futuro destes seres a quem a natureza havia roubado a
impossibilidade de ouvir, um negro cenário. Na verdade, a população surda parece
não existir durante os trinta anos em que se mantém na instituição. A inexistência de
professores especializados levou a que o ensino dos surdos fosse entregue
sucessivamente a pessoas diferentes, sem grande sucesso. Os surdos foram
institucionalmente mantidos na Casa Pia de Lisboa até 1860. Foi apenas em 1905 que
a educação das crianças surdas voltou às mãos desta Casa da educação. Este ensino
aconteceu, portanto, num contexto institucional que ultrapassou o âmbito da escola,
uma vez que, para além de espaço educativo, a Casa Pia funcionou no regime de
internato. Este é um ponto fundamental, abordado num dos próximos capítulos que
ajudará a explicar a Casa Pia enquanto instituição disciplinar de carácter total, com
fins de normalização social.
Uma das primeiras afirmações que se impõe no arranque deste estudo, é a
consideração da Casa Pia de Lisboa como uma das primeiras instituições modernas
em Portugal. O sociólogo Anthony Giddens, considera que as instituições modernas
“diferem de todas as formas de ordem social precedentes”, “no que diz respeito ao
seu dinamismo, ao grau de erosão dos hábitos e costumes tradicionais e ao seu
impacte global”. Quer o autor dizer que, “a modernidade deve ser compreendida a um
nível institucional” e que estas instituições “entretecem-se de forma directa com a
vida individual e, portanto, com o self” (1994: 1). Ora, é particularmente importante
para o que proporei de seguida, partir da ideia, primeiro, de que a Casa Pia é uma
instituição moderna e, depois, de que a Casa Pia é uma instituição escolar moderna,
de carácter disciplinar. A este aspecto, haveremos de juntar, um pouco mais à frente, a
ideia de que o Estado moderno se coordena administrativamente sobre o conceito de
um Estado-nação, associando o cidadão ao progresso desse Estado.
Criada em 1780 pelo Intendente Geral da Polícia, Diogo Inácio de Pina
Um primeiro olhar sobre a paisagem educativa…
51
Manique, com o objectivo de “estabelecer um meio coercivo contra os numerosos
vagabundos que faziam das ruas de Lisboa teatro constante de seus ultrajes à moral, e
de seus atentados contra a vida e propriedade do próximo”, torna-se evidente a sua
feição de intervenção social pelo isolamento e regeneração dos acolhidos (Silva,
1896: 2). Mas esta era ainda uma traça demasiado próxima de uma forma-prisão e
que não se regia por critérios específicos e rigorosos, na escolha dos seus habitantes.
Pina Manique, que havia sido elemento muito próximo do Marquês de Pombal,
encontrou uma forma de superar o carácter meramente regenerativo através da
introdução da educação. A Casa Pia de Lisboa transformava-se num “instituto” de
“correcção” e de “lavor para os que por sua vida e costumes pervertidos ofendiam a
segurança e a moral”, era “asilo e amparo de orfãos, escola de gente popular e
desvalida”. Entendeu o Intendente, “que era mais útil e mais prático fundar antes um
estabelecimento educativo, onde pelo ensino largamente desenvolvido, se formassem
bons cidadãos, inteligentes, instruídos e aptos para servirem de elemento
regenerador” (Silva, 1896: 13, 16). Das palavras de Pina Manique emerge uma
imagem de um espaço educativo que se encarregaria no geral, de uma formação
integral de todos os seus habitantes, abrigando-os no seu interior e fazendo deles
através da acção educativa cidadãos conscientes e preparados para enfrentarem e
integrarem o corpo social. A Casa Pia foi adquirindo complexidade e se a “caridade
oficial” se desenhava como seu “objecto”, era uma “caridade produtiva, que da
esmola do pão ou da doutrina, como de semente fecundíssima, aspirava a tirar
centuplicados os frutos sociais, dando ao Estado um vassalo inteligente, honesto,
serviçal, por cada um dos que detinha e amparava já prestes a despenhar-se”
(Margiochi, 1893:7).
Julgo que esta primeira imagem será suficiente para mostrar que se transfere
para a escola “o essencial das tarefas destinadas à efectivação das categorias
modernas de pessoa e de cidadão” (Ó, 2003: 13). A escola aparecia como espaço de
socialização da criança e depressa se afirmava como seu espaço natural. Em 1829,
Almeida Garrett afirmava que “o fim geral da educação” seria “fazer um membro útil
e feliz da sociedade”. O seu objecto, “formar o corpo, o coração, e o espírito do
educando”. E o autor Da Educação não se inibia em questionar a razão de educar. Ele
mesmo adiantava a resposta: O indivíduo deveria ser educado “em relação à natureza,
para filho, esposo e pai”; “ em relação à sociedade civil e ao Estado, para cidadão”
Questões teóricas e articulações práticas
52
(1829: 8, 15). A educação surgia como o ponto de passagem obrigatório na formação
de qualquer indivíduo.
Ora, parece-me de certo modo incontornável analisar a educação das crianças
surdas na Casa Pia de Lisboa, como uma forma de governo de um grupo
populacional, – os anormais e, mais especificamente, os surdos –, num terreno
construído a partir de uma racionalidade política inteiramente moderna. Como nos
mostra Michel Foucault e teremos oportunidade de esclarecer, desenvolveu-se, nos
séculos XVII e XVIII, através de uma ideia de razão de Estado, “um conjunto bem
específico de técnicas de governo”, entre as quais a police ou polizei, adquire uma
importância capilar (2004 d: 304). O que permite esta técnica é a consideração do
indivíduo como seu objecto, a sua vida, a sua felicidade, a sua segurança, não como
consequências de uma boa governação, mas como condições e instrumentos para uma
boa efectivação dessa governação. Foucault fala mesmo da transformação da police
em disciplina, academicamente, tendo como objectivo um zelo da população,
intervindo de modo específico na conduta de cada sujeito. Para tal, a police terá de se
valer de uma intervenção racional, reguladora e regulamentadora. Num
entrelaçamento contínuo entre aquilo que passou a constituir a arte de governo do
Estado e dos seus cidadãos, trarei até este texto a paisagem escolar como uma
derivação desse espaço e dessa racionalidade governativa. Não é que ela lhe seja
derivada em termos hierárquicos, simplesmente foi uma das técnicas – das mais
poderosas – para a efectivação da nova racionalidade política. Para o
compreendermos, basta uma das definições que o século XVII produz para explicar
em que consiste a razão de Estado: “‘é um método ou uma arte que nos permite
descobrir como fazer reinar a ordem ou a paz no seio da República’” (Foucault, 2004
d: 304). A transferência para uma arena educativa1 realiza-se mantendo uma mesma
lógica estrutural: falar-se-á aqui de uma arte de governo da criança surda, no sentido
de uma nova racionalidade técnica que exige tácticas e estratégias que, atendendo
sempre à questão do indivíduo, terá uma finalidade produtiva ao nível do saber e
acréscimo de um poder. A racionalidade técnica que se transfere para a escola é
1 A expressão arena educativa é utilizada por Thomas Popkewitz, referindo-se às práticas educacionais que se estabelecem no
interior dos sistemas educativos e que funcionam segundo dinâmicas que não são exclusivas da escola, mas de toda a sociedade. Diz assim o autor: “Utilizo arena” “como um conceito histórico para considerar posições sociais e de poder” “na educação”
(1998 a: 135).
Um primeiro olhar sobre a paisagem educativa…
53
proveniente de discursos médicos e científicos que traçam o retrato dos seus
habitantes. Uma série de especialistas das ciências psicológicas entra triunfalmente
no espaço escolar e discursifica sobre o aluno, sobre as suas aptidões, características,
normalidades ou desviâncias. Traça diagnósticos, mas, igualmente prevê
desenvolvimentos, em suma, anuncia no seu esqueleto estrutural as medidas que
fariam uma população escolar feliz, motivada, imbricada nos processos de
autoconstrução da sua própria identidade, fornecendo deste modo um saber
especializado sobre como agir para alcançar. As enunciações discursivas que saíam da
boca da psicologia, posicionam-se como elementos orientadores das relações
propostas aos educandos. O segredo, a existir, está como aqui defenderei, numa
imagem de um autogoverno dos alunos, através da construção da sua identidade
enquanto futuros cidadãos, que não passa de um governo subtil de toda a população a
partir de uma razão de Estado, omnipresente e omnipotente, em todas as relações de
poder. Diz assim Nikolas Rose:
“Governing does not just act on a pre-existing thought world with its natural
divisions. To govern is to cut experience in certain ways, to distribute attractions
and repulsions, passions and fears across it, to bring new facets and forces, new
intensities and relations into being” (1999: 31).
É fundamental na relação governativa a fixação de regimes de verdade que se
colocam em circulação e intersectam a experiência de vida de todos os sujeitos. São
forças que provocam efeitos na subjectivação de cada indivíduo. Essas forças têm que
ver com tempos, espaços, regras de conduta, prescrições médicas, etc., que tendem a
individualizar cada sujeito e a fazê-lo matéria do seu próprio pensamento. Longe de
uma ideia que veria nas regras, nos tempos e espaços governáveis, um poder
repressivo em relação ao sujeito, o que será apresentado ao leitor é antes um quadro
produtivo que não aniquila a experiência de ser sujeito, mas a induz, a abre a novas
formas de produção identitária. E esta produtividade insere-se na própria
racionalidade governativa. Jorge Ramos do Ó, ao analisar a problemática da formação
do sujeito moderno nota que:
“Cada um se deve passar a relacionar consigo mesmo e a desenvolver toda uma
autêntica arte da existência destinada a reconhecer-se a si como um determinado
Questões teóricas e articulações práticas
54
tipo de sujeito” (2003: 5).
Ora, tal relacionamento fica a dever-se a um pensamento devidamente
planeado que “becomes real by harnessing itself to a practice of inscription,
calculation and action” (Rose, 1999: 32). O governo do Estado preocupar-se-á com os
indivíduos no sentido em que são estes que lhe fornecem razão de existência. A arte
de governar acontece por inúmeras relações de poder que são dinâmicas e, é aqui que
a questão do sujeito enquanto promotor de mudança, positiva ou negativa, interessa à
racionalidade governativa. São as técnicas que consubstanciam uma arte de governar
que liga os indivíduos a uma entidade social, dando a essa arte uma forma e uma
possibilidade de continuação. A questão da educação de todo um grupo infanto-
juvenil e, mesmo, o novo estatuto da infância na época moderna, surgem enquanto
necessidades de um Estado que quer governar tudo e todos, controlando até ao
mínimo detalhe a totalidade das existências, com as aleatoriedades que lhes seriam
imanentes. Há regras para a produção do detalhe e para o controlo da população. A
escola, a demografia, a medicina, a estatística, a psicologia serão áreas que permitem
o funcionamento e circulação dessas regras e a sua produtividade.
Creio ter possibilitado uma segunda imagem – ainda que geral e pouco
detalhada – do que legitima, por um lado, a existência da escola como espaço em que
se governam crianças e, por outro, que esta arte de governar se efectua sobre um
quadro que toma o indivíduo na sua singularidade, enquanto futuro cidadão. No ano
de 1869, Simões Raposo, provisor da Casa Pia de Lisboa, dizia-o com convicção:
“Ser útil à pátria é o primeiro dever do cidadão! Ser útil aos nossos semelhantes é
o primeiro e maior de todos os deveres porque é o dever que mais agrada à
divindade que no-lo recomendou! No cumprimento destes deveres é que têm o
seu princípio todas as nossas garantias, todos os nossos direitos e por conclusão
lógica toda a nossa felicidade!” (1869:13).
Era este, afinal, o projecto moderno dos Estados-nação. Do que a escola falará
é da produção de um sujeito útil, mas realizado, autónomo e feliz. De um surdo que
apesar do estigma da deficiência se possa valer a si mesmo na vida, pela
aprendizagem da língua e de um ofício.
Um primeiro olhar sobre a paisagem educativa…
55
A escola é, pois, uma instituição moderna, inventada pelo Estado para
possibilitar o governo dos seus cidadãos, mas, um ponto fundamental, é o da
emergência de novos mecanismos de auto-identidade, moldados a partir de uma
relação que os sujeitos individuais passam a estabelecer com as estruturas
institucionais. A criança, ao ser colocada em situação de escolar, iniciava a jornada de
se auto-educar. Nos bancos da escola se preparavam os futuros cidadãos, livres,
autónomos, responsáveis e participativos num Estado e numa nação a que também
eles pertenciam. A fabricação da identidade de cada aluno, resultava de uma rede
complexa de relações dinâmicas que convergem naquilo que o filósofo francês
Michel Foucault cunhou com o termo de governamentalidade.
“Num curso do Collège de France, Michel Foucault cunhou o termo de
governamentalidade (gouvernamentalité) para identificar um tipo particular de
literatura que, entre a segunda metade do século XVI e o final do século XVIII, se
foi crescentemente afirmando em torno de uma teoria proclamada como ‘arte de
governo’, isto é, uma técnica que se deduz de regras específicas” (Ó, 2003: 29).
A proposta de Foucault, logo no início do Curso, era explicar de que forma se
relacionavam a segurança, a população e o governo. A literatura de que falou
ultrapassava tematicamente a dos antigos tratados de conselhos ao príncipe. Nestes
tratados, a questão essencial, seria traçar directrizes quanto ao modo de o soberano
“se comportar, exercer o poder, de ser aceite e respeitado pelos súbditos” (Foucault,
2004a: 277). Ora, o que inaugurava a nova literatura, era um núcleo de questões que
se apresentava em múltiplos domínios, mas cuja centralidade comum a todos eles, se
situava em torno de uma arte de governar, quer dizer, no engendramento de práticas
de governo que se aplicavam sobre um corpo que deixara de ser o do súbdito, para
passar a ser o da população, e cujo núcleo irradiador não residiria mais no soberano,
mas no Estado.
Foucault apresenta a problemática da governamentalidade a partir do século
XVI, situada na convergência de dois processos. Por um lado, um movimento de
concentração Estatal que começou a substituir as estruturas tipicamente feudais e que
se corporalizou no aparecimento dos grandes Estados-nação territoriais. Por outro
lado, um processo que embora diverso do anterior, se relaciona directamente com ele
Questões teóricas e articulações práticas
56
– com sede na Igreja – e que questionava, primeiro com a Reforma, depois, com a
Contra-Reforma, “o modo” como se queria “ser espiritualmente dirigido para
alcançar a salvação”. É, portanto, entre estes dois movimentos que mais premente se
torna a questão de “como se governar, como ser governado, como fazer para ser o
melhor governante possível” (Foucault, 2004 a: 278).
Será esta a miríade de questões que durante dois séculos – e com
prolongamentos até aos nossos dias – irá constituir o governo, quer do Estado, quer
do cidadão, da família, das almas e das condutas, da criança, etc. O neologismo então
proposto por Foucault – governamentalidade – transporta consigo uma rede de
tecnologias, isto é, um conjunto de tácticas e de estratégias, patentes na arte de
governar, sem as quais seria difícil o seu exercício na modernidade. A grande
novidade que este termo acarreta é, pôr fora de campo, a trivial relação de soberania
de um rei ou de um príncipe sobre o território ou os súbditos. Não é que desapareça a
relação de poder de uns sobre os outros, mas antes que esta relação passa a definir-se
por regras específicas e, permite cruzar instituições com actores sociais, sem temer a
habitualmente considerada hierarquia que submete uns, aos outros. Este termo
ultrapassa – e muito – as simples relações de dominação que o Estado exerce sobre o
cidadão, que o professor exerce sobre o aluno, quer dizer, não as elimina, mas
também não se reduz a elas. O que interessa perceber nestas relações que acontecem
por intermédio de técnicas específicas – disciplinares, mas não só – é precisamente o
conjunto de artefactos que constitui a nova arte de governo, num deslocamento
evidente do domínio do corpo para a construção moral dos sujeitos.
“O poder liga-se antes aos modos como, numa dinâmica onde a autonomia e
liberdade estão cada vez mais presentes, se produzem cidadãos. Estes não são
destinatários mas intervenientes nos jogos e nas operações de poder” (Ó, 2003:
31).
Isso mesmo se pode ler no capítulo XI do Regulamento Geral da Casa Pia de
Lisboa, relativamente ao serviço de vigilância e disciplina. Este serviço estaria a
cargo de um prefeito geral e de quinze outros prefeitos, devendo o primeiro zelar pela
“direcção moral dos alunos, aconselhando-os e dirigindo-os de modo a inspirar-lhes
“sentimentos de bondade, rectidão e honestidade”. Tal tarefa contava com um
Um primeiro olhar sobre a paisagem educativa…
57
conhecimento da “índole dos alunos, porque só assim” se poderia ajuizar claramente
os seus “actos e avaliar os sentimentos de que são dotados”. Era ao prefeito geral que
se destinava a vigilância escrupulosa dos outros quinze prefeitos, verificando se
tratavam bem os alunos, “fazendo-se ao mesmo tempo respeitar” (Regulamento de
1904: 41- 43). Havia ainda princípios que teriam de se fazer cumprir pois constituíam
o núcleo de formação do indivíduo:
“Durante as refeições dos alunos”, ensiná-los “a estar à mesa e a servir-se dos
talheres, corrigindo-lhes qualquer maneira imprópria e inconveniente”; observar
“frequentemente se os fatos de uso estão à medida do corpo dos alunos, evitando
que usem os que, lhes prejudiquem a digestão e o crescimento, e que o calçado,
por apertado ou largo, lhes possa viciar os movimentos ou tornar defeituosos os
pés”; vigiar incessantemente pelo asseio dos alunos e pela boa conservação e
escrupuloso asseio de todos os objectos de uso pessoal dos mesmos”; “verificar
se é organizada justa e equitativamente a escala diária dos alunos que cuidam do
asseio dos colégios”. Era ainda “expressamente proibido que o prefeito geral ou
os prefeitos” castigassem “por suas mãos os alunos”. “As faltas cometidas”
seriam “levadas ao conhecimento da direcção” (Regulamento de 1904: 41- 43).
Deste Regulamento interessa-me destacar a figura do aluno enquanto
habitante de uma instituição onde ele próprio é actor, considerado na sua
individualidade, com deveres e com direitos que, a não existirem colocariam em
causa a sua posição enquanto membro activo e participativo de uma comunidade
escolar e, também, o próprio funcionamento da instituição. O discurso aqui
reproduzido deixa transparecer um conjunto de regras que se fixam à construção da
identidade do aluno enquanto sujeito social e moral que, ultrapassam as lógicas de
dominação entre vigilantes e vigiados pois, em última instância também os vigilantes
eram vigiados. Os papéis de todos e de cada um sincronizam-se numa lógica de
efeitos contínuos. As regras tenderiam a vincular-se ao corpo do aluno,
manifestando-se e transferindo-se enquanto hábitos adquiridos, em situações futuras.
Assim, em 1920, numa visita à Casa Pia de Lisboa realizada por um jornalista de O
Século, eis a composição visual e disciplinar a que se poderia assistir:
“São 19 horas, e, precipitadamente, uma sineta soa. Três minutos depois contados
pelo relógio, aqueles 389 rapazes encontram-se alinhados. Abre-se a porta do
Questões teóricas e articulações práticas
58
monumental refeitório fradesco. A dois e dois os alunos vão entrando,
acompanhados dos seus monitores; e, ainda não passaram outros três minutos, já
estão todos de pé, junto às mesas. À voz imperiosa do comando do Sr. Câmara
Leme, os rapazes sentam-se em silêncio. E no vasto refeitório, ouve-se apenas o
ruído das colheres nos pratos”. Questionado sobre a forma de manter a disciplina,
António Aurélio da Costa Ferreira, director da Casa Pia, era totalmente
esclarecedor: “Mantém-se graças aos hábitos de obediência voluntária adquirida
pelo ensino da ginástica e de comando, que os faz gerar no indivíduo. Não
deixamos contudo de cultivar a afectividade e de respeitar nos recreios a
liberdade completa do aluno, e deixarmos que a sua individualidade se manifeste
no ensino, principalmente nos trabalhos manuais e no desenho. […] As
formaturas para a entrada nos refeitórios, aulas e camaratas, o costume do
silêncio durante as refeições são práticas que se não podem banir em internatos
grandes” (Anuário 1919-20: 366-368, itálico meu).
A voz deste pedagogo traduzia, efectivamente, um dos grandes princípios de
construção da escola e que tantas vezes é esquecido ou simplesmente colocado como
oposto daqueles que são seus pares inseparáveis: liberdade e controlo, disciplina e
autonomia são termos que pertencem a uma mesma lógica discursiva. O aluno
obedeceria pela incorporação de hábitos de obediência voluntária, quer dizer, a
escola construiria um aluno cuja governação teria de se definir a partir de quadros de
liberdade regulada. O aluno seria livre para escolher e desejar no interior daquilo que
a escola lhe propunha. “Educar e educar-se transformam-se num único e mesmo
gesto” (Nóvoa, Barroso, Ó, 2003: 54).
E se esta imagem não é ainda suficientemente transparente quanto ao modelo
de aluno e de cidadão que a escola pretende criar, veja-se o que o Provedor da Casa
Pia teria a dizer acerca da escola, enquanto espaço de formação de alunos e futuros
cidadãos:
Na escola “ o presente rasga as perspectivas do futuro na modelação de almas que
se hão-de tornar em valores sociais, económicos, morais e espirituais, a
enriquecer a nação. Um clarão de esperança enche os corações com as novas
possibilidades oferecidas de vida mais elevada e digna, alargada na capacidade de
conhecer e de agir. Aqui mais portugueses se prepararão para 'bem conhecerem e
bem saberem trabalhar', fortalecidos nas virtudes que tornam as Sociedades
vigorosas e fecundas de realizações de progresso”. “Não podem estas emoções
Um primeiro olhar sobre a paisagem educativa…
59
deixar de nos impressionar mais profundamente quando a escola se destina a
crianças que sem ela ficariam reduzidas a condições sociais de inferioridade
degradante, privadas das fontes de convívio social e de conhecimento dadas pelos
sentidos do ouvido e da vista, ou diminuídas por qualquer outra deficiência no
corpo ou na mente” (Tavares, 1954: 31).
Pedro de Campos Tavares referia-se, obviamente, ao ensino das crianças
surdas na Casa Pia de Lisboa. Apesar da imagem de falta que se associava ao corpo e
à mente daqueles que eram privados dos sentidos auditivos, a verdade é que a escola
surge como o espaço onde, por direito, estas crianças deveriam ser enquadradas. O
outro lado da questão, é claro, era o de um perfeito governo destes grupos agora
contabilizados e previsíveis, num espaço onde decorriam jogos de conduta e relações
estratégicas entre indivíduos surdos e ouvintes, entre comunidades, surdas e ouvintes.
Por outro lado, também, a necessidade de uma justificativa moral e de fabricação de
uma felicidade se a criança surda fosse convertida em objecto de práticas educativas.
Em seu próprio nome, o aluno surdo, como de resto, qualquer outro aluno da
paisagem educativa, era sujeito a práticas que abertamente o iriam transformar de
modo positivo.
Ora, esta situação é sintomática do que caracterizará toda a modernidade: a
relação de poder própria da soberania, cederia lugar a uma relação assente no Estado
e esta nova relação atravessa-se pela pedagogia, tornando o governo do Estado
inerente ao governo do indivíduo. Mas, nem por isso esta relação tem como ponto de
partida único o Estado, ou melhor, se o governo dos cidadãos tem como pano de
fundo um conceito então inventado de nação, apoia-se sobre um outro conceito, não
menos inventado – o de cidadão – a quem se pede activa participação. Quando penso
na invenção do conceito de nação, penso-o enquanto objecto conceitual que, nas
práticas discursivas que lhe dão forma, deveria activar no cidadão, um sentimento de
pertença a uma comunidade. Benedict Andersen, no seu livro Imagined Communities,
propõe uma definição antropológica para nação: “it is an imagined political
community”, “it is imagined because the members of even the smallest nation will
never know most of their fellow-members, meet them, or even hear of them, yet in
the minds of each lives the image of their communion”. Todas as comunidades são
imaginadas, são, elas próprias, construções discursivas que pretendem ser o referente
Questões teóricas e articulações práticas
60
daqueles de que se dizem o núcleo de referência. Não há, portanto, como, de resto,
Andersen defende, comunidade imaginada “natural” (1991: 6). Desta forma, os
discursos que pretendem associar o indivíduo ao Estado-nação, fabricam a ideia de
nacionalidade e de progresso como estratégia de governo de toda a população,
colocada, então, em marcha, numa missão colectiva pela liberdade e salvação2. Daqui
se deduz a proposta de Foucault:
“Que o poder não é qualquer coisa que se adquire, se arranca ou se partilha,
qualquer coisa que se guarda e que se deixa escapar; o poder exerce-se a partir de
um sem-número de pontos e num mecanismo de relações não igualitárias e
móveis” (1994: 97). O poder percorre todo o corpo social, confrontando-se
continuamente e produzindo sempre, efeitos.
A inexistência de um poder soberano começa a ser explorada por Foucault na
literatura que nomeia como anti-Maquiavel. É este o espaço em que deixa
transparecer o deslocamento do sujeito do poder e, de forma lógica aproxima do
conceito de governo, outras esferas em que é também precisa uma certa arte de
governar. Não é por acaso que Foucault resgata desta literatura expressões próximas
de governar uma casa, governar as almas, governar as crianças, uma família ou um
território. Existe, portanto, um leque variado de práticas de governo, ainda que todas
elas sejam orquestradas no interior de um Estado. São essencialmente dois os textos
de que Foucault se serve para definir o domínio da governamentalidade: Miroir
Politique contenant diverses manières de gouverner, de Guillaume de La Perrière,
editado em 1555 e, uma série de escritos pedagógicos dirigidos por La Mothe Le
Vayer ao Delfim, datados da centúria seguinte.
De acordo com Foucault, o segundo autor identifica três tipologias de
governo. Uma primeira, diz respeito à arte de se governar a si mesmo, apontando
então para o campo da moral. O Delfim só poderia ser bom governante dos outros se,
primitivamente, se soubesse governar a si próprio. A segunda categoria, de ordem
económica tem no governo adequado da família, uma imagem elucidativa. A terceira,
que diz respeito à política, é a ciência de bem governar o Estado. A novidade que
2 “A ‘naturalidade’ do pressuposto de que ‘pertencer-se por nascimento’ significava, automática e inequivocamente, pertencer a
uma nação foi uma convenção arduamente construída – a aparência de ‘naturalidade’ era tudo, menos ‘natural’. Diferentemente das ‘minissociedades de familiaridade mútua’ […] a ‘nação’ foi uma entidade imaginada” que só poderia assentar sobre o “artifício de um conceito” (Bauman, 2005: 29).
Um primeiro olhar sobre a paisagem educativa…
61
ressumbra destes escritos, é a continuidade entre estas artes de governar, que permite,
precisamente, um movimento ascendente e descendente entre instituições e actores
sociais diversos. O poder, não vem, agora, de cima. “Vem de baixo”. Não existe
como “matriz geral” das relações de poder, “oposição binária e global entre os
dominadores e os dominados” (Foucault, 1994: 97). Se no modelo de soberania o
marco separador do poder do soberano era extremamente visível, a partir de agora, o
governo do Estado inscreve-se na pele dos cidadãos. É esta a grande inventividade da
governamentalidade: fazer “a realidade entrar no domínio do pensável” e servir-se de
tecnologias que “visam traduzir o pensamento no domínio da realidade e estabelecer,
no mundo concreto das pessoas e das coisas que as envolvem, espaços e dispositivos
ágeis capazes de actuar sobre ela” (Ó, 2003: 73). Será a police que no projecto
genealógico de Foucault, como há pouco referi, coloca no cerne da questão da nova
racionalidade política, a possibilidade de uma intervenção do Estado na vida de cada
cidadão.
“Quando o Estado é bem governado, os pais de família sabem como governar
suas famílias, seus bens, seu património e por sua vez os indivíduos se
comportam como devem. É esta linha descendente, que faz repercutir na conduta
dos indivíduos e na gestão da família o bom governo do Estado, que nesta época
se começa a chamar de polícia” (Foucault, 2004 a: 281).
A police, – e é necessário deixar claro que não é no sentido actual que
Foucault considera o termo, enquanto instituição ou mecanismo a funcionar no centro
do Estado –, mas como técnica de governo própria do Estado, iria permitir a
intervenção necessária do Estado em todos os domínios. Se pensarmos que a
finalidade última do bom governo, é a produção de um Estado-nação e, dos seus
cidadãos como actores sociais autónomos, livres, felizes, realizados, participativos e
úteis, facilmente nos aperceberemos que este modelo de cidadão – governado em
todas as esferas da vida – se coaduna e só é possível se funcionar no interior de um
sistema de vigilância e disciplina. Aliás, felicidade dos homens, parecia ser um dos
objectivos de que mais falam os autores que no século XVIII escreveram sobre este
novo instrumento da arte de governo. De Lamare, citado por Foucault, dizia que “‘a
polícia cuida de tudo aquilo que diz respeito à felicidade dos homens’”, mas diz,
Questões teóricas e articulações práticas
62
igualmente “‘que regulamenta a sociedade’”, outras vezes que, “‘zela pelo vivo’”.
“Em suma, a vida é o objecto da polícia” (2005b: 312, 313).
Esta será então uma técnica que assegura uma racionalidade do poder. E se o
conceito de polícia viria a derivar em disciplina, convém esclarecer que, para o autor
que temos vindo a referir, o conceito, disciplina, é apresentado em duas vertentes. Há
uma ambiguidade de significado, pois, tanto se refere a um “campo de saber”, quanto
à domesticação dos corpos e das vontades, campo, claramente do poder (Gallo, 2004:
82). No primeiro significado, são as formas discursivas de controlo de novos
discursos que mais prementes se tornam. O segundo, estabelece uma relação com o
primeiro, mas pela sua proximidade ao conceito de normalização das crianças surdas,
será mais abundantemente utilizado nesta escrita. Todavia, fácil é perceber que a
police enquanto disciplina tanto é o conjunto de saberes que se vai constituindo sobre
a população, administrativamente, como a garantia, precisamente pelo domínio de um
saber, de aplicação e efectivação dos princípios da racionalidade governativa.
Foucault fornece-nos ainda outro exemplo que ajudará a perceber esta questão. A
partir do livro de Turquet, La monarchie aristo-démocratique, de 1611, o filósofo
francês sugere uma espécie de imagem de actuação para a police que, consideraria,
então não só as pessoas, os seus interesses e aptidões, a educação, mas também os
registos da existências dessas mesmas pessoas, interesses, aptidões e educação.
Foucault vai mais além, mas o que me interessa é mostrar que qualquer intervenção
teria agregada a ideia de um conhecimento sobre os objectos sobre os quais se
propunha intervir. Esta é uma ideia com uma presença cada vez mais activa nos dias
de hoje: “life is ordered through expert systems of knowledge that discipline how
people participate and act” (Popkewitz, 1998: 5).
A penetração de saberes sobre os indivíduos no espaço escolar, iria constituir
a grande mola impulsionadora no traçado de estratégias de intervenção sobre os
alunos, sendo que este seria um processo permanentemente actualizado pois a escola
era palco e observatório de aplicação e esquiço dessas técnicas. Todavia, estas
técnicas deverão ser entendidas nos mecanismos de acção que libertam e, é
fundamentalmente esse incitamento produtivo que afasta a possibilidade de quando o
poder atinge os corpos, ser entendido negativamente. Não é um poder repressivo o
que provém de um saber que a nova racionalidade governativa estimula: é a formação
de alunos autónomos e responsáveis, cidadãos produtivos e úteis à nação, que
Um primeiro olhar sobre a paisagem educativa…
63
atravessa os discursos sobre a educação. Inquirido sobre os meios de dignificar a
criança para futuro cidadão, respondia António Aurélio da Costa Ferreira que a
solução passaria por “condições económicas e hábitos que lhes” permitissem “viver
higienicamente”, “educá-los sob a acção de um ideal” que os levasse “a amar a Pátria
e o trabalho e cultivar os sentimentos de Humanidade”, que eram: “amor ao
trabalho”, “amor à Pátria” e “religiosidade” (Anuário 1919-20: 369). Traduzindo,
poder-se-ia propor: futuros cidadãos úteis à sociedade e à nação.
Zygmunt Bauman, descreve da seguinte forma a estreita relação e, dir-se-ía a
colagem da nação ao Estado, na modernidade:
“Nos tempos modernos, a nação era a ‘outra face’ do estado e a arma principal
em sua luta pela soberania sobre o território e sua população. Boa parte da
credibilidade da nação e de seu atractivo como garantia de segurança e de
durabilidade deriva de sua associação íntima com o Estado e – através dele – com
as acções que buscam construir a certeza e a segurança dos cidadãos sobre um
fundamento durável e confiável, porque colectivamente assegurado” (2001: 211).
Estado e nação faziam, portanto, parte de um mesmo plano que tinha como
finalidade governar os seus cidadãos e território, todavia, construindo cidadãos livres,
autónomos e responsáveis3. Estreia-se um sentimento real, nascido como ficção. A
ideia de identidade, essencialmente de uma identidade que relaciona o indivíduo
consigo mesmo, aparece na modernidade com uma intensidade e numa relação de
interioridade do sujeito consigo, derivando de uma relação necessária entre indivíduo
e sociedade. A construção da identidade do indivíduo incorporava-se como objectivo
no governo dos cidadãos, como “tarefa ainda não realizada, incompleta, um estímulo,
um dever e um ímpeto à acção” (Bauman, 2005: 26). Era condição essencial da tarefa
governativa introduzir este sentimento como dever obrigatório e necessário a todos
os seus cidadãos. A construção da identidade assomava-se como uma tarefa
simultaneamente individual e colectiva, desenhava-se como identidade uma
metaidentidade, a par com a ideia de Estado-nação: “o satus de uma supra-identidade,
3 Nos últimos anos do século XVIII, Friedrich Schiller traduzia-o desta forma: “Uma vez que o Estado da humanidade pura e
objectiva serve de representante no peito dos seus cidadãos, ele terá de observar perante os seus cidadãos uma relação idêntica àquela em que eles se encontram perante si próprios. […] Se o homem interior estiver de acordo consigo próprio, salvaguardará assim também a sua particularidade por mais que universalize a sua conduta, e o Estado será apenas o intérprete do seu belo instinto, a fórmula mais clara da sua legislação interior” (1993: 35). O ideal do governo atingir-se-ia no ponto de um autogoverno.
Questões teóricas e articulações práticas
64
a mais geral, volumoso e onívora de todas, a identidade que prestaria significado a
todas as outras e as reduziria ao papel secundário e dependente de ‘exemplos’ ou
‘casos especiais’” (Bauman, 2005: 42). Ora, a escola surgia como o espaço ideal de
inscrição dessa afecção do indivíduo a si, numa conexão directa com o tecido social
em que escola e indivíduo se costuravam. Desde então, e até à nossa época e, apesar
dela, não mais o self deixou de estar “inextricably linked with how it is perceived by
other persons” (Baumeister, 1987: 163-176).
A escola foi o modelo encontrado e inventado como dispositivo normal e de
normalização de toda a criança. Certamente que no seu interior, as práticas tiveram
tendência a diferenciar-se de acordo com os sujeitos em abordagem, mas, no geral o
modelo de que fala António Nóvoa, tem-se mantido ao longo do tempo. Basta-nos
recuar aos anos de novecentos sem temer qualquer desconhecimento da paisagem.
“Fixa-se por este período uma espécie de gramática do ensino, que marca - uma
vez que constrói e que organiza - a nossa forma de ver a escola: alunos agrupados
em classes graduadas, com uma composição homogénea e um número de
efectivos pouco variável; professores actuando sempre a título individual, com
perfil de generalistas (ensino primário) ou de especialistas (ensino secundário);
espaços estruturados de acção escolar, induzindo uma pedagogia centrada
essencialmente na sala de aula; horários escolares rigidamente estabelecidos, que
põem em prática um controlo social do tempo escolar; saberes organizados em
disciplinas escolares, que são as referências estruturantes do ensino e do trabalho
pedagógico.
Inventado muito tempo antes, este modelo escolar impõe-se, doravante, como a
via única de fazer escola, excluindo todos os outros possíveis. A força deste
modelo mede-se pela sua capacidade de se definir, não como o melhor sistema,
mas como o único aceitável ou mesmo imaginável” (Nóvoa, 1995: 26, 27). E era
neste modelo que também o aluno surdo tinha o seu espaço reservado.
Do livro de Guillaume de la Perrière, Foucault recupera uma frase que é
essencial encaminhar até este texto porque nos fará clarear uma ideia essencial.
‘“Governo é uma correcta disposição das coisas de que se assume o encargo para
conduzi-las a um fim conveniente”’ (2004 a: 282).
Um primeiro olhar sobre a paisagem educativa…
65
Ora, o que Foucault retira desta frase são duas realidades fundamentais.
Primeira: governam-se coisas, aliás, homens e coisas em suas relações. O navio
fornece a metáfora perfeita porque governar um navio é, certamente, preocupar-se
com a tripulação, mas também com a embarcação e com a carga, estando, claro está,
cada decisão condicionada pelos ventos e marés, pelas tempestades e obstáculos.
Segunda realidade: existe uma finalidade num bom governo. O essencial do governo
é a forma de dispor as coisas para as conduzir a um objectivo adequado. Não é a lei
aplicada indistintamente sobre coisas diferentes, mas antes a técnica específica
pensada para cada singularidade isto é, utilizando “mais tácticas do que leis, ou
utilizar ao máximo as leis como tácticas” (Foucault, 2004 a: 284). Sendo verdade que
não há poder que se exerça sem alvos e sem objectivos, parece pacífico aceitar que
qualquer bom governo será atravessado por cálculos e por tácticas. Na mesma linha
de pensamento, a escola cumpria-se como metáfora igualmente adequada. A
sincronização de todas as actividades e relações entre os diversos actores teria de
atender às estruturas psíquicas e físicas dos alunos. Como adiante veremos, o
professor surgia como personagem que deveria dominar técnicas de interpretação de
comportamentos e aptidões, quer dizer, saber ver as propriedades totais da população
escolar que lhe estava destinada, para o sucesso da sua intervenção. De nada
serviriam as regras se não as precedessem esquiços calculados e eternamente
inacabados. É que qualquer relação de poder existe desinstalada de um território fixo,
logo, na sua errância por entre coisas e objectos, a lei vê-se substituída pelas tácticas,
a cada passo melhoradas pelo que ditam as vozes dos especialistas da alma. Em
Struggling for the soul, Thomas Popkewitz clarifica a ideia de que “the different
discursive practices about teaching and children in school” são práticas sociais
importantes porque “they normalize children by placing them into a set of distinctions
and differentiations that function to divide the children into spaces” (1998: 6). Estes
espaços, mais do que físicos, são espaços discursivos que criam fronteiras e localizam
os indivíduos nas suas estruturas.
Das realidades apresentadas, sai fortificada a utilidade do conceito de
governamentalidade, para evidenciar a forma como a criança surda foi trazida até à
paisagem educativa, localizando-a, é claro, sob o grande chapéu da anormalidade,
para que se efectivasse o bom governo da generalidade dos escolares. Sem este
conceito, não faria sentido pretender articular mecanismos fortemente disciplinares –
Questões teóricas e articulações práticas
66
de um trabalho correctivo aplicado sobre os corpos surdos numa instituição – com
mecanismos de gestão de uma população através também de instituições educativas.
Tanto as tecnologias disciplinares, dirigidas à singularidade de um sujeito, como as
tecnologias reguladoras de uma massa populacional, mantêm entre si uma estreita
relação. É certo que o exercício do poder se efectiva primeiramente através de
mecanismos de natureza disciplinar, contudo, assistimos a uma desvinculação
acentuada de práticas com carácter coercivo e a uma afinação destas mesmas práticas.
Edouard Claparède, afirmava sabiamente que “éduquer et instruire un arriére”, “fixer
son attention voltigeante”, seria possível “par l'activité” : “les méthodes verbales et
graphiques échouent presque totalement. Et c'est aussi par l'affection dont on les
entoure, par la confiance qu'on leur témoigne” (1933: 47). A percepção deste plano
de acção enquadra as relações de poder em quadros de saber e a arte de governar
entronca no bom uso do saber, através de tecnologias de regulação e de auto-
regulação.
A nova arte de governar, tem que ver com uma racionalidade de governo que
implica técnicas para o exercício de poder, de forma a conduzir a conduta de cada
um. O que procurarei demonstrar e ilustrar com quadros da pedagogia de finais de
novecentos e inícios do século XX, é que, as técnicas para disciplinar o aluno surdo
dirigem-se cada vez mais à sua alma, apelam a uma autonomia e responsabilidade
individuais, construindo uma subjectividade de acordo com um modelo do que
deveria ser o aluno surdo. Este modelo, justifica-se por uma governamentalização do
Estado que encontra na norma a possibilidade de controlo e regulação de um novo
corpo, constituído pela multiplicidade dos seus cidadãos, quer dizer, pela população.
Outro sucedâneo da governamentalidade prende-se com a existência pacífica
de disciplina e liberdade. Já aqui referi este aspecto, mas explicitarei agora duas
definições que nos permitem desmistificar uma ideia inúmeras vezes veiculada que
associaria a disciplina à coacção. Ricardo Rosa & Alberty, professor da Casa Pia,
escrevia num Relatório, a respeito de um Curso de Pedagogia científica de Maria
Montessori, realizado em Barcelona em 1916, parafraseando a mesma pedagoga que
“‘disciplina é a capacidade de ser senhor de si mesmo’, e esta só se consegue com a
educação da vontade no seu verdadeiro sentido. Coacção é o mau hábito de não
consentir que a criança se mostre como é, […] roubando-lhe todas as ocasiões de
Um primeiro olhar sobre a paisagem educativa…
67
agir, de lutar contra as suas próprias fraquezas, de se tornar responsável” (1917: 363).
Disciplina e coacção são efectivamente diferentes e, se a primeira é imprescindível na
escola, a segunda é o contrário de tudo o que diziam e defendiam os educadores
desde o século XIX. É sobre princípios de liberdade, autonomia, interesse,
individualização, que, se inscreve a produção de alunos disciplinados, cidadãos úteis
e dóceis. O processo de construção do cidadão baseava-se na fabricação de uma
identidade, também nascida como “ficção”, no Estado moderno (Bauman, 2005: 26).
Apresentarei de seguida três quadros extensos, todos eles da autoria de D.
António da Costa, – Primeiro Ministro da Instrução Pública em Portugal – que
mostram a imagem do papel da educação na formação dos cidadãos modernos e, da
sua imprescindibilidade no governo de todos os cidadãos, inclusivamente, refere o
autor, dos anormais.
“Livre por natureza, o homem carece de uma instrução que lhe desenvolva o
espírito, de uma educação que lhe forme a alma, e de um trabalho que lhe seja
vida, como encargo que a providência lhe impôs e como título de glória com que
lhe enobrece o encargo. Ensino, educação, trabalho, estas três instituições
constituem a instrução de todos, a instrução nacional, e nas mãos da instrução
nacional está a vida da nação, como nas da instrução universal está a existência
da humanidade” (Costa, 1870: 5, 6, itálico meu).
“ Não se organizou a sociedade política para destruir os direitos naturais do
homem, foi, pelo contrário, para lhe assegurar a maior soma de garantias, que
aliás lhe seriam impossíveis. A sociedade política do século XIX baseia-se na
liberdade. A liberdade chama os cidadãos todos a tomar parte na vida social. A
política nacional tem por consequência indispensável a instrução nacional. [...]
Mas não basta só o amor da liberdade. Nos governos livres o povo todo é
chamado a realizar por si próprio a vida política. É-lhe portanto indispensável
conhecê-la e realizá-la. Sem a instrução do povo não pode haver cidadãos que a
executem” (Costa, 1870: 8, 9).
“ A instrução universal rebenta de todo este sistema universal. O selvagem
serviria para a comparação com o civilizado, o louco para o desenvolvimento da
ciência, mesmo quando ao selvagem se não pudesse dar a civilização, nem o juízo
ao doido. A cada homem o seu papel na grande representação do mundo social; o
drama universal não tem comparsas, e não os ter é em princípio a lei da
Questões teóricas e articulações práticas
68
providência, e de facto há-de ser a conquista sucessiva do progresso humano
resolvida pelo ensino popular. São diversos os destinos, dir-se-á. Não há dúvida
que são. A natureza criou a desigualdade dos talentos, das aptidões e dos
serviços. Nesta mesma desigualdade reside a harmonia universal; mas todos os
destinos são igualmente sagrados e nobres, porque o título humano é a alma.
Cada homem representa um direito. Foi a ignorância que fez [...] da criança
defeituosa um fardo inútil” (Costa, 1870: 14, 15, itálico meu).
Pois bem, ao Estado caberia o papel de modificar este destino. A criança
defeituosa passaria a enquadrar uma paisagem escolar, integrando-se num mundo de
normais e servindo de referente a essa população. Veremos, de seguida, como se deu
este processo. No momento, direi apenas que, no caso da criança surda, o processo
passou, como decerto já se percebeu, pela invenção da surdez como deficiência,
permitindo uma lógica ortopédica que, por sua vez, implicava o apagamento do ser
surdo. A normalização obrigava a uma unificação daquilo que era a língua, o surdo
passaria a fazer parte da sociedade se dominasse a oralidade. Apagamento, portanto,
para que se desse uma inclusão na comunidade-nação imaginada e na comunidade
escolar.
Uma última observação de Foucault sobre o texto de La Perrière, permite
enxergar uma outra característica que marca presença numa relação de
governamentalidade. O bom governante deve ser paciente e diligente, quer dizer,
cada vez menos será pela força que se atingem os objectivos de governo dos
cidadãos. As técnicas serão, essas sim, o elemento principal, resultante, claro está, de
um estudo aturado das coisas a governar. Quem governa tem de constituir um saber
sobre os objectos de governo, condição essencial para o exercício do poder. Já o
referimos em relação à police enquanto técnica e enquanto disciplina. Na verdade, é
este o binómio poder/saber, tão necessário ao meu discurso quando se trata de falar
das tecnologias aplicadas no ensino das crianças surdas. Poder e saber, unem-se a um
outro conceito – subjectivação – que, será aqui considerado, enquanto resultado dos
vários processos, – práticas, técnicas e referentes –, que, constroem o surdo como um
sujeito de certo tipo – deficiente auditivo. A lógica em que se insere esta produção da
deficiência e, depois, da normalização dos deficientes, inscreve a deficiência
enquanto problema social. Os deficientes – já inseridos numa racionalidade de
governo – terão o direito à vida e à inclusão. Vejamos como.
Um primeiro olhar sobre a paisagem educativa…
69
Aquilo que era o direito do soberano e que consistia no poder sobre os
súbditos – poder de os “fazer morrer” ou de os “deixar viver” – não se exclui ao
passar das mãos de um soberano para um Estado, contudo, ver-se-ia penetrado,
perpassado, modificado, por um “poder inverso: poder de ‘fazer’ viver e de ‘deixar’
morrer” (Foucault, 2002 c: 287). Quer isto dizer, portanto, que passa a ser
preocupação do Estado fazer viver os seus cidadãos, acção altamente ligada a um
prolongamento da vida, obrigando a um zelo e melhoramento constantes das
condições de saúde, de habitação, de higiene, etc. O princípio elementar é o de
aperfeiçoamento da espécie – coincidente, claro está, com o progresso – eliminando e
não deixando que se perpetuem as deficiências, portadoras de desarmonia para um
desenvolvimento normal.
A doença, tal como a deficiência, é construída como fenómeno vinculado não
somente ao indivíduo que a possui, mas antes, ao conjunto de indivíduos da
população. Abria-se, então, a porta para a entrada da medicina, que não só tornaria
inteligível o mal de que padecia o sujeito, como haveria de lhe arranjar meio de cura.
A visonha da anormalidade enquanto facto não controlável sob o ponto de
vista das manifestações e comportamentos exigia do Estado, a operacionalização de
mecanismos de diagnóstico para que se seguissem os terapêuticos.
“São esses fenómenos que se começa a levar em conta no final do século XVIII e
que trazem a introdução de uma medicina que vai ter, agora, a função maior da
higiene pública, com organismos de coordenação dos tratamentos médicos, de
centralização da informação, de normalização do saber, e que adquire também o
aspecto de campanha de aprendizado da higiene e de medicalização da
população. Portanto, problemas da reprodução, da natalidade, problema da
morbidade também” (Foucault, 2002 c: 291).
Foucault refere uma nova tecnologia aplicada agora no governo dos cidadãos.
A seguir a uma primeira tecnologia, de natureza disciplinar, – como a escola
enquanto instituição disciplinar –, individualizante e produtora de sujeitos úteis à
nação e dóceis perante a prática da governamentalidade, segue-se uma outra
tecnologia dirigida não a um, mas a todos os cidadãos. Não se trata de lidar com o
conjunto dos sujeitos como se fossem um só, pois já a disciplina inaugurara esse
tratamento. A nova tecnologia, biopolítica, consiste em lidar com a massa que
Questões teóricas e articulações práticas
70
constitui a população. Por isso mesmo, a população se tornaria o verdadeiro objecto
da police. Também aqui veremos que a escola se torna num dos palcos ideais para
actuação desta biopolítica, lidando, afinal, com nada mais, nada menos do que uma
população escolar que importa manter controlada.
As palavras do autor de Vigiar e Punir, são inigualáveis quando se trata de
clarificar os conceitos que propõe:
“As disciplinas lidavam praticamente com o indivíduo e com seu corpo. Não é
exactamente com a sociedade que se lida nessa nova tecnologia de poder (ou,
enfim, com o corpo social tal como o definem os juristas); não é tampouco com o
indivíduo-corpo. É um novo corpo: corpo múltiplo, corpo com inúmeras cabeças,
se não infinito pelo menos necessariamente numerável. É a noção de
“população”. A biopolítica lida com a população, e a população como problema
político, como problema a um só tempo científico e político, como problema
biológico e como problema de poder” (Foucault, 2002 c: 292, 293).
Seria então necessário, cuidar de cada cidadão de forma individual para que o
conjunto dos cidadãos e do Estado resultasse no modelo de progresso pretendido. O
carácter individualizante de uma tecnologia disciplinar, opera ao lado de uma
biopolítica dirigida ao fenómeno do conjunto populacional. Uma e outra, são
mecanismos de controlo do cidadão e da população, visando atingir um equilíbrio
global, preservador da segurança e da ordem do conjunto, em relação a perigos
internos. O processo terapêutico ou correctivo, aplicado quer à infância anormal quer
à infância em risco, justifica-se pela tentativa de controlar dados que antes eram
aleatórios, introduzindo sujeitos em espaços de regulação, onde se procuraria
compensar os efeitos da anormalidade. O progresso da nação surge nos discursos
como progresso de cada indivíduo particular. Coroamos o final deste capítulo com
palavras de Durkheim do início do século XX:
“Ao querer a sociedade, o indivíduo quer-se a si próprio. A acção que ela exerce
nele, designadamente pela via da educação, não tem, de modo algum, por
objectivo e por efeito comprimi-lo, diminui-lo ou desnaturá-lo, mas, pelo
contrário, engrandecê-lo, transformá-lo num ser verdadeiramente humano. Não
há dúvida de que este engrandecimento somente poderá conseguir-se mercê de
Um primeiro olhar sobre a paisagem educativa…
71
um esforço. Mas é precisamente a possibilidade de fazer voluntariamente esse
esforço, uma das características mais essenciais do homem” (1984: 24).
Teremos oportunidade de verificar os diversos jogos estratégicos que a escola
fará actuar para ligar liberdade e autonomia à disciplina. Será essencialmente pela
concepção do sujeito enquanto sujeito ético, pelas tecnologias do eu, que os quadros
das regras disciplinares evidenciarão toda a sua produtividade positiva na formação
dos escolares.
Fazendo uma tradução, embora demasiado geral ainda, direi que a
institucionalização da criança surda na escola foi a via encontrada para exercer uma
prática de governo sobre este grupo populacional. Todavia, este cenário só se torna
perfeitamente compreensível quando articulado com um poder e com um saber, quer
dizer, com um poder exercido com base num acréscimo contínuo de um saber. Este
saber ficará a dever a sua ossatura a uma entrada das ciências psi na paisagem
educativa, a práticas de exame, de individualização, de registo. À definição de normal
e anormal e à fixação de condutas próprias de um e de outro estado. E se a psiquiatria
vai ser a base é porque só ela sustentará um poder clinicamente, medicamente
qualificado. A sua entrada na escola também tem uma justificação óbvia. Como
analisaremos, a infância será a base para a construção de um saber psi. Evidentemente
a criança será um objecto excelente para análise mas, não somente a criança presente,
também, a criança que se foi. E aí, falaremos já da infância passada de qualquer
homem, daquela que se guarda no arquivo da memória, que tanto contém os factos,
como os liberta a múltiplos olhares. A exposição possível abrangerá tudo e todos.
Tentarei neste momento mostrar de que forma uma tecnologia biopolítica, que
induz a técnicas de regulação e normalização, tem origem numa relação do já aqui
referenciado binómio de poder/saber.
Questões teóricas e articulações práticas
72
A produção de saber sobre o aluno…
73
A PRODUÇÃO DE SABER SOBRE O ALUNO: BIOPOLÍTICA E
NORMALIZAÇÃO, SABER E PODER
Ficha individual de aluno
surdo, primeira metade do
século XX
(Arquivo da Casa Pia de
Lisboa)
Inicio esta possibilidade de articulação entre a existência de uma tecnologia
biopolítica que tem a população e a sua normalização como objecto e objectivo,
articulando-a com a dinâmica relação entre a constituição de um saber e o exercício
de um poder. Procurarei ancorar a este par conceitual, a psicologia e a medicina
enquanto companheiras das práticas educacionais. A tecnologia biopolítica, segundo
Questões teóricas e articulações práticas
74
Michel Foucault, tem que ver com uma consideração do indivíduo, não tanto em
termos individuais, mas ao nível do grupo populacional em que se insere. É uma
tomada do poder em relação ao homem-espécie. Só assim, aliás, se justifica a
necessidade de formar objectos que fixam sujeitos de pertença, como é o caso da
surdez enquanto invenção, agregando a si todos aqueles que eram despossuídos de
capacidade auditiva. O biopoder surge abrangendo dois lados do triângulo segurança,
população e governo a que Foucault se referia para introduzir a ideia de
governamentalidade. Na verdade, o biopoder traz no seu âmago a promessa de
proteger o corpo populacional pelo próprio controlo que sobre esse corpo exerce. “De
que se trata nessa nova tecnologia do poder, nessa biopolítica, nesse biopoder que
está se instalando?” (Foucault, 2002c: 289). Foucault dá a resposta:
“Trata-se de um conjunto de processos como a proporção dos nascimentos e dos
óbitos, a taxa de reprodução, a fecundidade de uma população, etc.”.[...] Trata-se
de lançar mão “da medição estatística”, de observar “procedimentos, mais ou
menos espontâneos, mais ou menos combinados”, trata-se, igualmente, de
verificar a “natureza”, a “extensão”, a “duração”, “a intensidade das doenças
reinantes numa população” (2002c: 289, 290).
São fenómenos, evidencia Michel Foucault que introduzem na própria
sociedade a medicina, com uma função de “higiene pública”, “com organismos de
coordenação dos tratamentos médicos, de centralização da informação, de
normalização do saber”, trazendo consigo, claro está, a neutralização e exclusão de
alguns elementos dessa população (2002c: 291, 292). Mas estes serão tidos em conta
por essa biopolítica. Irão fazer parte de uma racionalidade aritmética, ajudando a fixar
uma média capaz de assegurar um retrato muito próximo daquilo que seria o corpo
populacional. Na longa transcrição que se apresenta, desenha-se o mapa em que o
poder e o saber se vão manifestar na modernidade. Mostra-se, também, de que forma
o governo dos cidadãos se estabelece como governo de uma população quantificada e
quantificável. Para além disso, antecipa-se aquilo que dará origem ao aparecimento
da norma, quer dizer, a regulamentação do corpo, do comportamento, da localização,
etc. A homeóstase a que Foucault se refere é a regulação de princípios de
funcionamento e circulação tendo em vista a obtenção de pontos médios. É a
normalização que se efectiva neste projecto, todavia, a garantia de que as imagens de
A produção de saber sobre o aluno…
75
normal e anormal coexistem é insubstituível. A relação de exclusão entre uma e outra
representação “está subordinada à operação de negação” do anormal, ainda que seja
este “existencialmente o primeiro” (Canguilhem, 2002: 216). Significa que qualquer
padrão com que se pretenda imprimir o tecido social encontrará dinâmica nos pontos
nodais que lhe pretendam modificar os ritmos.
“Nos mecanismos implantados pela biopolítica”, vai-se tratar sobretudo, de
“previsões, de estimativas estatísticas, de medições globais”. A intervenção
afirma-se como prática essencial. “Vai ser preciso modificar, baixar a morbidade;
vai ser preciso encompridar a vida”. Um dos aspectos fundamentais é
“estabelecer mecanismos reguladores que, nessa população global com seu
campo aleatório, vão poder fixar um equilíbrio, manter uma média, estabelecer
uma espécie de homeóstase, assegurar compensações; em suma, de instalar
mecanismos de previdência em torno desse aleatório que é inerente a uma
população de seres vivos, de optimizar, se vocês preferirem, um estado de vida.
[...] Não se trata, por conseguinte, em absoluto, de considerar o indivíduo no
nível do detalhe, mas, pelo contrário, mediante mecanismos globais, de agir de tal
maneira que se obtenham estados globais de equilíbrio, de regularidade; em
resumo, de levar em conta a vida, os processos biológicos do homem-espécie e de
assegurar sobre eles não uma disciplina, mas uma regulamentação” (Foucault,
2002 c: 293, 294).
A problemática da biopolítica inseria-se na prática da governamentalidade,
“which concerns the best way to exercise powers over conduct individually and en
masse so as to secure the good of each and of all” (Rose, 1999: 23). A
governamentalidade exigia uma retomada constante das práticas para fundar novos
conhecimentos, isto é, o saber está dependente sempre de um campo de análise
empírico, para pode agir e transformar. Logo, para que o poder exista, não poderá ser
considerado nem como “instituição” nem como “estrutura”, mas sim como “uma
situação estratégica complexa” que não é exterior às relações entre indivíduos e entre
estes e práticas (Foucault, 1994 a: 96). O insuflamento da vida pela medicina
contribuindo para a construção de um modelo de normalização assente na figura do
que deveria ser o normal, isto é, o modelo de homem saudável, traduz-se como “a
bela tarefa de instaurar na vida dos homens as figuras positivas da saúde, da virtude e
da felicidade”. Para além da cura, interessa, pela constituição de um saber sobre o
Questões teóricas e articulações práticas
76
corpo, passar como legítima a ideia de corpo normal como corpo saudável,
imprimindo nos indivíduos o desejo de aproximação a estes estados, intensificando-
se, portanto, a relação e o cuidado de cada sujeito consigo próprio. A gestão da
existência transfere-se para uma dinâmica entre público e privado, isto é, entre
normas sociais e imperativos individuais. A medicina “toma uma postura normativa
que não a autoriza apenas a distribuir conselhos de vida equilibrada, mas a reger as
relações físicas e morais do indivíduo e da sociedade em que vive” (Foucault, 2004 b:
38, 39).
Não me ocorre outra forma de continuar senão possibilitando de imediato a
leitura daquilo que constituía um saber sobre o aluno surdo que a Casa Pia admitia
como seu habitante. Não será agora considerado nenhum relatório médico que diria
do aluno e da sua doença, mas antes um conjunto de perguntas que respondidas e
colocadas em arquivo, juntamente com as dos restantes alunos da instituição, formava
um corpus de saber relativo aos alunos internos. Relembro apenas que sobre estes
alunos se sabe, já, a verdade da sua doença. O que agora se pretende é entrar em cada
um deles para melhor definir as estratégias de intervenção. Joga-se um pingue-
pongue constante entre indivíduo e população, entre surdo e comunidade surda, sendo
que o que será decidido para o grupo, deriva de uma possibilidade de intervenção
positiva no maior número dos seus elementos.
Sabendo que a imagem que abre este capítulo é fragmento de um documento
institucional que pertence aos arquivos da Casa Pia, e que este documento continha
também algumas das questões que serão apresentadas mais à frente, há aspectos que
se tornam evidentes. Um deles é, claramente, do domínio da imagem e do
saber/poder. A utilização da fotografia num contexto institucional diz respeito a um
poder de observação sobre os sujeitos. Fotografia de frente e de perfil, com objectivos
identificativos, fotografia, portanto, instrumental. Durante a segunda metade do
século XIX, a recém-inventada técnica fotográfica “modifica profundamente os
fundamentos da prova, o modo de ver e de compreender” (Sicard, 2006: 18). A
câmara fotográfica nasce como uma máquina de visão que cria objectos a partir de
um ponto de vista que se dilui nos olhos do observador. Os espaços disciplinares e
regulados encontravam na prática do arquivo, do registo contínuo e sistemático dos
que se enredavam neles, a possibilidade de efeitos de poder por um crescendo de
saber. Na segunda parte, no capítulo relativo às regras da casa esta questão será mais
A produção de saber sobre o aluno…
77
pormenorizada.
A admissão do aluno passava por um questionário. Eis alguns dos campos a
preencher: nome, idade, naturalidade, filiação; nasceu surdo? em que idade se
reconheceu a surdo-mudez?; qual é a causa certa ou provável da enfermidade?; falou
antes de ensurdecer?; diz actualmente algumas palavras ou frases?; o que sabe do seu
passado patológico; qual o estado das suas funções cerebrais?; apresenta estigmas de
degenerescência?; tem surdos-mudos na família?; possui alguma instrução?; onde a
adquiriu?; idade dos pais; profissões; os pais têm algum grau de parentesco?; houve
qualquer acidente ou doença infecciosa, antes ou durante o período gravídico?; estado
das funções cerebrais dos pais?; sensibilidade geral e especial (tacto, vista e ouvido)
dos pais; têm a palavra livre ou embaraçada?; apresentam quaisquer sintomas de
afecção nervosa?; há vestígios de qualquer género de vida, de quaisquer hábitos ou
excessos, principalmente do abuso de bebidas alcoólicas?. Diria Ary dos Santos sobre
as vantagens da prática e correcto preenchimento dos questionários, bem como dos
exames médicos aos alunos:
“São imprescindíveis quando se pretende avaliar do desenvolvimento físico do
surdo-mudo” (1920: 12).
Deste inquérito surgem dois cenários. Um deles que encerra a racionalidade
da nova arte de governo – governar tudo e todos –, permite a constituição de um
saber sobre o aluno e sobre a sua família. O outro tem que ver com a produção de um
discurso sobre o aluno, que é o que permite criar um dispositivo técnico de
intervenção. Há regras na produção de discurso e, no caso da escola, estas assumem
uma regularidade e sistematicidade que ainda hoje se verifica. Tal como as
enunciações discursivas que permitiram a formação do objecto surdez, também a
nível institucional, o governo da criança surda terá de se reger por um conjunto de
práticas discursivas que permitem ver e dizer daquele que é o seu objecto. O aluno
surdo seria transcrito em enunciados logo desde a sua entrada na instituição. A
modernidade educativa obrigava a um registo constante dos acontecimentos, a cada
passo formando cenários que permitiriam aceder num só instante às imagens do
acontecimento, como, também, ao controlo desses acontecimentos. É evidente que o
resultado da leitura das fichas individuais dos alunos, não tendo uma feição autoral,
Questões teóricas e articulações práticas
78
revela uma visão unitária e funcional que ligava o domínio da medicina ao domínio
da educação. O propósito seria justificar qualquer acto de normalização, de ortopedia
correctiva sobre o corpo surdo, com base num saber oriundo não apenas do seu ser
individual, mas do saber relativo a um grupo com características semelhantes. As
possibilidades de construção da identidade de cada aluno, resultavam do trabalho de
interpretação e tradução dos elementos apurados no indivíduo, por médicos,
pedagogos, psicólogos que então os analisavam no seu campo de saber específico e
prescreviam receitas de acção. José da Cruz Filipe, era claro quando afirmava que:
Seria depois de conhecer “o deficiente em todas as suas manifestações”, “depois
de vencido o período mais grave da adaptação ao nosso meio de vida entre
educador e aluno”, seria “por meio de uma acção afectiva natural e
indispensável” que mais se ensinaria, porque, precisamente, “mais se ensina e se
aprende com o coração do que com o cérebro”. “Depois de iniciarmos a
verdadeira fase de tratamento”, dizia o pedagogo, “consoante as exigências de
cada caso,- a alegria torna-se o melhor factor de acção a exercer, porque os
progressos, por mais lentos que se apresentem, são sempre motivo de incitamento
e, sobretudo, são a origem da criação de novas esperanças, porque incitam à
invenção de processos sempre baseados no muito que os próprios alunos nos
ensinam” (1942: 22).
Acabei de corroborar a ideia de que seria pela construção de um saber sobre o
aluno que se exerceria um poder produtivo. Mas há mais imagens que os documentos
nos oferecem. Fixemos a atenção, numa análise produzida por Ary dos Santos, em
jeito de balanço do ensino das crianças surdas na Casa Pia de Lisboa. Gostaria apenas
de evidenciar que este é um comentário escrito por um actor da própria Casa Pia,
médico e pedagogo, que analisa um fenómeno que inteligibiliza na forma de
produção de um saber. É suposto que esta seja uma imagem verdadeira do que
aconteceria na Casa Pia de Lisboa e, mais, que esta imagem fosse, à época, produtiva,
pois dando a ver o que era a verdade de um facto, poder-se-ia mais facilmente
delinear uma estratégia de intervenção. Dizia assim Ary dos Santos:
“Foram apenas 20 os alunos que completaram os cursos profissionais durante o
último decénio.
Se causa certo espanto a disparidade entre o número dos alunos que passaram
A produção de saber sobre o aluno…
79
pelas oficinas e o número dos que chegaram a concluir o ensino, maior surpresa
temos quando se recebe, como eu recebi, a informação de que as aptidões do
surdo-mudo, comparadas com as dos ouvintes falantes, são maiores.
Os mestres são unânimes em afirmar que, em geral, o surdo-mudo tem qualidades
de trabalho superiores: boa vontade, tenacidade, mais observação e maior,
perfeição.
Procurando informações acerca da facilidade e natureza das colocações
alcançadas pelos alunos saídos foi-me dito o seguinte:
O ensino profissional não tem tido para estes rapazes a feição prática que seria
para desejar, visto que se notam dificuldades tais que não lhes permitem na vida
prática entrar logo para lugares que certamente desempenhariam se fossem
adestrados doutra forma” (1920: 147, 148).
Uma primeira imagem que estas palavras nos oferecem é relativa ao carácter
que qualquer surdo poderia manifestar, caso fosse objecto de governo: boa vontade,
tenacidade, capacidades de observação e perfeição maiores que os seus companheiros
ouvintes, talvez devido à ausência de um sentido que significaria, quase sempre,
intensificação de outros. Mas há mais neste documento. Para além do retrato do que
acontecia no ensino dos surdos na Casa Pia, o que decerto produziria um
conhecimento desta população, o próprio Ary dos Santos dava conta de uma
produção de saber anterior, pelos próprios mestres que lidavam directamente com os
alunos, relacionando estes dados com outros que, de certo modo, pareciam
contraditórios e que eram, de uma base estatística, de cálculo entre os alunos que
entravam, que frequentavam o ensino e que saíam com sucesso da instituição. É
assim que também pela mão de Ary, ficamos a saber que dos 35 alunos admitidos na
Casa Pia em 1 de Fevereiro de 1906, sendo submetidos a um percurso de ensino oral
que duraria oito anos, nenhum deles saiu com o curso completo.
“Sendo a duração do curso de oito anos, era para esperar que depois de 1914
pudessem sair alunos com o curso completo; mas, triste é dizê-lo, até hoje ainda
não saiu do Instituto um único aluno com o ensino completo da articulação e
linguagem (8ª classe)!
Em 1914 - Saíram 3 alunos: um com a 5ª classe, outro com a 7ªclasse, por terem
completado a idade, e o terceiro saiu com o ensino da 7ª classe escrita. Este
ensino foi ministrado a todos os alunos que tinham vindo do Asilo Municipal, e
que, pela idade avançada para o ensino, já não podiam aproveitar com o método
Questões teóricas e articulações práticas
80
oral.
Em 1915 - Não saiu nenhum aluno.
Em 1916 - Saíram 3 com a 6ª classe, 2 expulsos e 1 para aprendizado; um outro
com a 7ª classe (misto) que não frequentou as aulas por se ter dedicado
exclusivamente ao ensino profissional.
Em 1917 - Não saiu nenhum aluno.
Em 1918 - Saiu apenas 1 para aprendizado e que recebeu apenas ensino escrito:
por não ter aproveitado com o método oral” (Santos, 1920: 147).
O que num primeiro momento me interessa clarificar é que o conhecimento
formado sobre um determinado grupo é constitutivo de relações de poder. Da mesma
forma, não há relações de poder que não assentem sobre saberes produzidos. Se
classificar, objectivar e normalizar os indivíduos é tarefa inerente a uma arte de
governo, não é menos verdade que estas classificações, objectivações e
normalizações só acontecem por uma prática de observação e racionalização dessa
visão sobre as coisas. Quando se fala em biopolítica, refere-se sempre uma espécie de
homeostasia que é irremediavelmente produtora de exclusões. Perante um cenário
como o que Ary dos Santos apresenta, de insucesso dos alunos surdos, o caminho
proposto é o de uma nova exclusão. Deve a Secção de Surdos-Mudos receber
qualquer candidato às suas vagas? Ary dá a resposta:
“A meu ver é necessário uma selecção cuidada, devendo-se admitir apenas
aqueles que possam aproveitar com o ensino aí ministrado. É evidente que
surdos-mudos idiotas, imbecis, arriérés, etc., necessitam duma educação
especial”, quer dizer, ainda mais especial, “exigindo do educador conhecimentos
muito vastos” para alcançar o modelo de aluno antecipado. “Julgo, pois,
vantajoso que de futuro se faça a exclusão desta espécie de anormais quando se
apresentem a disputar qualquer vaga” (1920: 7).
Sustentarei agora a ideia de que a observação fazia par com o saber e com o
poder. A simples possibilidade de estar a ser observado criaria no sujeito uma
sensação de desconforto, ou, mesmo que desconhecesse que era alvo de um olhar, só
essa visão era já constitutiva de um poder de ver, sem ser visto. Michel Foucault
analisa o Panóptico de Jeremy Bentham como a figura arquitectural por excelência
que dissocia “o par ver-ser visto” (2004:167). A proposta de Bentham era simples:
A produção de saber sobre o aluno…
81
um sistema construtivo de vigilância constante, aplicável a uma série de instituições
de carácter disciplinar, correctivo ou regenerador. Escrevia-o assim:
“Não importa quão diferentes, ou até mesmo quão opostos, sejam os propósitos:
seja o de punir o incorrigível, encerrar o insano, reformar o viciado, confinar o
suspeito, empregar o desocupado, manter o desassistido, curar o doente, instruir
os que estejam dispostos em qualquer ramo da indústria, ou treinar a raça em
ascensão no caminho da educação, em uma palavra, seja ele aplicado aos
propósitos das prisões perpétuas na câmara da morte, ou prisões de confinamento
antes do julgamento, ou casas penitenciárias, ou casas de correcção, ou casas de
trabalho, ou manufacturas, ou hospícios, ou hospitais, ou escolas” (Bentham,
2000: 17).
A escola é um dispositivo que, em cada momento, cria condições de
enunciabilidade dos seus diversos actores. Considerarei aqui, apenas a situação de
visibilidade em que o aluno surdo estava localizado. Para isso, tomarei como
referência o recreio e o que este espaço permitiria a todo o médico ou pedagogo:
“Há alegria nas almas inocentes das crianças. Elas correm, saltam, jogam, num
mundo cheio de luz, de cor e de harmonia. Dá prazer vê-las tão felizes na sua
infância descuidada. O recreio é sempre do seu agrado. [...] Num ambiente
favorável, onde não se sintam condicionadas, as crianças revelam-se tal como
são. Num tal ambiente não é possível a dissimulação. Durante o jogo, as crianças
deixam transparecer aspectos da sua vida interior, permitindo ao educador
perscrutar as forças mais recônditas da sua alma. Cada criança, através do jogo, é
para o educador uma fonte rica de conhecimentos psicológicos: é possível, desta
forma, ajuizar do seu temperamento e carácter e, consequentemente, estudar o
caminho a seguir na sua educação” (Amaral, 1954:45, 46).
A escola era o próprio laboratório. Observar, registar e experimentar seriam
tarefas produtivas ao alcance dos seus médicos e educadores. Deixei
propositadamente para o final desta incursão uma abordagem mais detalhada de como
se constituiria este saber, – pelo menos ao nível da paisagem educativa, naquilo que
constitui a acção entre professores e alunos –, que, invariavelmente, desagua nas
relações de poder. E aqui, há um aspecto fundamental que gostaria de deixar bem
explícito. Para que o professor construa um saber sobre o aluno, e esta é uma das
Questões teóricas e articulações práticas
82
marcas fundamentais do discurso científico a partir do século XIX, é evidente que ele
próprio tem de possuir uma formação adequada, possibilitadora da transformação de
um simples olhar sobre o educando, numa observação fundamentada em leis
provenientes da psicologia. O conhecimento profundo do aluno, sabendo ler nos
comportamentos e reacções de superfície o que de mais interior lhe vai na alma é uma
tópica importante e, diria, fundamental para todo o trabalho a propor no interior da
escola. Exerce também um outro papel, o de a partir da observação classificar os
escolares. Para mergulharmos directamente nesta problemática irei considerar dois
documentos essenciais: um, diz respeito às lições de Psicologia Experimental que
António Aurélio da Costa Ferreira, – director da Casa Pia no início do século XX –,
proferiu, na abertura de um Curso dirigido a professores da escola normal; o outro,
com um alcance diferente, refere-se ao programa seguido na preparação de
professores para o ensino de surdos na própria Casa Pia de Lisboa.
Numa das lições, intitulada A arte de educar e a psicologia experimental, o
pedagogo começa por desenhar uma definição da arte de educar. Explicava-a assim:
“A arte de educar é fundamentalmente a arte de regular a conduta presente e
futura dos que se têm de educar. Implica forçosamente o conhecimento da
conduta, das causas dela, do seu mecanismo e das possibilidades que o indivíduo
oferece. A arte de educar assenta, como a arte de curar, na anatomia e na
fisiologia e assim como o médico [...] tem não só de conhecer as doenças e os
remédios, mas também conhecer os doentes e encontrar as indicações, assim
também o educador [...] tem não só de conhecer os fins da educação e os meios
da educação, a pedagogia e a metodologia, mas também de saber conhecer o
educando e encontrar a forma de educação que mais lhe convenha e se adapte ao
seu feitio” (Ferreira, 1920: 315).
Estas palavras são o espelho da ideia que tenho tentado trazer a esta escrita: a
arte de educar é a arte de governar a criança, na escola e na sociedade. O que diz
António Aurélio da Costa Ferreira entronca por inteiro na perspectiva da
governamentalidade. Torna-se por demais evidente que só a partir do momento em
que a esfera da individualidade do aluno se apresenta como pensável é que o mestre
pode agir de uma forma económica e produtiva. O mapeamento do interior dos
sujeitos é condição necessária para uma intervenção a bisturi na sua alma. Alargarei
A produção de saber sobre o aluno…
83
aqui o campo de compreensão que o conceito de governamentalidade nos pode trazer.
O objectivo será mostrar que, é por uma conexão cada vez mais evidente entre actores
diversos que se pode levar a cabo uma acção sobre os sujeitos. O modelo, esse, não
será o da coerção disciplinar que criaria uma obediência à lei ou à regra, mas será o
da especialização de um saber sobre os sujeitos, levando-os a conduzirem-se a si
próprios, de livre vontade, pelos trilhos previstos. Um dos grandes, – senão o maior –,
contributo que a psicologia traz à paisagem educativa é a possibilidade de uma acção
eficaz, mas cada vez mais transparente no governo do aluno. Nikolas Rose, diz que
“making thought technical, attempts at governing are always limited by the
conceptual and practical tools for the regulation of conduct that are available,
although they may use them in novel ways and inspire the invention of new
techniques” (1999: 22). Ora, as ciências médicas fornecem à pedagogia, a partir do
final do século XIX, um conjunto de saberes e de actores especializados que, desde
daí, não mais abandonaram a paisagem educativa. Diz assim Jorge Ramos do Ó:
“Os seus praticantes serão sobretudo percebidos como os novos especialistas da
alma que, em nome dos imperativos éticos, aglutinam e racionalizam,
intensificam e desenvolvem práticas, técnicas, formas de cálculo, rotinas e
processos relativos às capacidades e performances individuais” (2003: 54).
O palco de acção destes actores será a própria arena educativa. A
disponibilidade experimental dos sujeitos que aprendem e habitam numa mesma
instituição é praticamente total. Veja-se como o recreio fornece elementos
fundamentais para a análise dos que aí deixam os sentimentos mais primários e o
rasto de acções não reprimidas, entregues ao olhar do vigilante. E o estudo desses
comportamentos, continuaria António Aurélio, “tem o maior interesse e importância
para o educador”, pois só por uma análise científica poderá encontrar uma maneira
“de as condicionar”, quando forem reacções inapropriadas. Daqui se deduz a
acutilância de uma formação de professores, habilitados para “conhecer e praticar os
meios científicos de exame”, “de estudar os fenómenos mentais”, “de possuir as
regras e os meios de condicionar esses fenómenos” (1920: 316, 317). O discurso é
explícito e refere-se sem dúvida ao governo do aluno, todavia, deixando-lhe uma
margem aberta para a expressão da sua individualidade. A questão é a de sempre:
Questões teóricas e articulações práticas
84
qualquer manifestação, por mais desadequada que seja, servirá sempre de objecto
para construir um saber. A autonomia e liberdade do educando, sabia-o uma massa de
pedagogos, de Montessori a Dewey, Ferrière ou Claparède, António Aurélio ou Faria
de Vasconcelos, era condição essencial no processo educativo. Aurélio cita Binet
quando este diz que:
É preciso deixar ao indivíduo “‘a plena liberdade de exprimir o que sente e
mesmo convidá-lo a expressamente se observar de perto durante o decurso da
experiência’” (1920: 319).
Jogos no recreio
(Amaral, 1954)
Aliás, de nenhuma outra forma se poderia cumprir aquilo por que clamava
este grupo de educadores e pedagogos ao abrir do século XX. Dizia Claparède,
embora de um modo um tanto radical que, o mestre deveria metamorfosear o seu
papel. Não seria tanto a ruptura, julgo-o, a que o autor se referia quando dizia que: “o
A produção de saber sobre o aluno…
85
educador, em vez de ser um plasmador de almas e de espíritos, tornar-se-á um
estimulador de interesses; em vez de ficar no meio do palco, (onde muitas vezes
pontifica, sem outros resultados tangíveis, a não ser a satisfação de suas tendências
autoritárias), deverá, daí em diante, permanecer nos bastidores, de onde disporá e
organizará o meio da maneira mais favorável ao despertar das necessidades
intelectuais e sociais da criança e ao início de suas andanças intelectuais, de sua
actividade, de seu esforço. Função menos decorativa do que a que lhe reserva a escola
tradicional, mas também tão mais eficaz! E função bem mais difícil e delicada,
também! Logo, não é mais modesta, senão na aparência” (1959 a: 166). O discurso é,
sem dúvida, efusivo, mas do que se trataria, mais do que de um modelo novo ou de
uma posição nova ou de uma figura nova para o professor, era somente de uma
apropriação do que outros domínios poderiam trazer ao desenvolvimento da
pedagogia. António Nóvoa refere a Educação Nova como uma “tradução no plano
educativo de formas de agir e de pensar que estão disponíveis na sociedade da
época”, mais do que “a formulação de modelos educativos (e escolares) radicalmente
novos”. Na realidade, “estes homens não põem em causa a gramática da escola, tal
como ela se consolidou no término do século” XIX. “Num certo sentido, podemos
mesmo dizer que eles aprofundam as três lógicas anteriormente mencionadas
(estatização, profissionalização e cientificação) no contexto de uma crença total nas
potencialidades regeneradoras da escola” (1995: 30). E fizeram-no, pelo menos no
domínio discursivo, com arte. Afirmava convictamente António Aurélio na Lição já
referida:
“Trabalhar a alma da criança com alma e com arte, com arte e com acerto, com
acerto e com ciência, tal é o nosso escopo” (1920: 319).
Terei oportunidade de mais detalhadamente dar a ver ao longo desta escrita o
cenário do saber/poder, directamente nos processos de educação da criança surda na
Casa Pia de Lisboa. Impõe-se, no entanto, que feche esta breve introdução às técnicas
de formação de um saber articulado com um poder, visitando o segundo documento
que referi. Não será uma visita prolongada, mas espero que seja incisiva e pertinente
para evidenciar uma vez mais a perspectiva da governamentalidade no interior da
escola. Trata-se de um Regulamento do Curso de especialização de professores para o
Questões teóricas e articulações práticas
86
ensino de surdos, e o que daqui quero destacar é o núcleo de saberes que compõe o
plano de estudos. Os futuros professores seriam treinados em “psicologia e princípios
de educação de crianças com defeitos de audição”, “didáctica de leitura da fala, do
treino auditivo e do ensino da fala e da linguagem”, “ educação sensorial e rítmica”,
“técnica psicológica”, “técnica audiométrica e auxiliares de audição”, “acústica”,
“fonética”, “anatomia, fisiologia e higiene dos aparelhos auditivo e fonador” e,
finalmente, “ história da educação de surdos”. As aulas teóricas seriam completadas
por uma componente prática e, durante o curso deveria “ser comprovada a vocação
dos candidatos para o magistério de crianças surdas, tendo em atenção as aptidões
exigidas para o ensino destas crianças” (Regulamento do Curso especialização de
professores para o ensino de surdos, 1961: 3,4). Daqui se conclui que a perspectiva da
governamentalidade abrange todos os actores que circulam no espaço educativo. O
curso de habilitação para professores de surdos foi inaugurado a 25 de Abril de 1913
e relativamente à sua organização temporal, dizia Ary dos Santos em 1915, num
Relatório dirigido ao Director da Casa Pia que “seria de grande utilidade aumentar
mais um ano, reservando este exclusivamente a trabalhos práticos, o que seria de
grande utilidade para o aluno e de grande vantagem” para os professores daqueles que
seriam futuros professores. “A prática tem-nos mostrado que nem sempre os alunos
que obtêm melhores classificações nos seus exames ou que melhores concursos
fazem são os melhores professores” (1920: 134). A formação especializada de
professores mais não é do que o governo da própria classe docente. Explica-o assim
Popkewitz:
“Modern schooling inscribes the power relations in governamentality. The
governing of the child is also the governing of the teacher. Pedagogy is the
promotion of subjectivities through the construction of pleasures and ambitions,
and the activation of guilt, anxiety, envy, and disappointment” (1998: 77).
Não é possível desarticular a prática docente das relações de poder e de
fabricação de escolares. Os professores são resultado de uma ciência devidamente
estruturada que os contamina com técnicas de saber, – eficazes numa aplicação
prática –, para um contacto produtivo com os alunos. O tipo de poder que os
professores exerciam sobre os seus alunos era semelhante àquele que os atingia
A produção de saber sobre o aluno…
87
também a eles. Não será demais lembrar que o poder não está centrado em nenhum
objecto nem em nenhum sujeito. O poder circula e provoca efeitos em série.
No processo de ensino da criança surda tornava-se imprescindível que o
mestre soubesse conhecer a criança e prever os seus comportamentos para poder agir
sobre ela. O primeiro curso de especialização para o ensino de surdos foi criado na
Casa Pia de Lisboa, como já se disse, em 1913. Nicolau Pavão de Sousa, a convite de
António Aurélio da Costa Ferreira, ficou responsável pela organização do curso e, no
geral, o pedagogo concluía que a organização de tal formação especializada auxiliaria
o surdo a deixar as “trevas” da “ignorância” que o condenava a “um isolamento
intelectual e moral”, “desprovido de todos os elementos de resistência a opor aos
embates do medonho struggle for life” (Sousa, 1913: 187). Este ensino, que teria
como função substituir a audição por um trabalho redobrado da vista e do tacto, teria
como objectivo primeiro aquilo que Popkewitz designou por struggling for the soul.
Os discursos sobre o aluno que se quer formar e as competências que este deverá
adquirir num contexto escolar, são conectados a ideias de “personal salvation” com
ressonâncias de satisfação pessoal e sucesso da criança. Mais do que o corpo, o que a
escola procurará resgatar é a alma do educando, levando-o a enquadrar-se entre os
padrões do normal e razoável. No caso das crianças surdas, os processos de
normalização correspondem a esta ideia. É a escola a produtora de exclusões e de
inclusões entre os níveis que considera favoráveis ao governo de cada espécie de
alunos: as enunciações discursivas da escola são construídas “both necessary and
legitimate for them to exercise a calculated power over the conduct of populations of
individuals, omnes et singulatim (of each and of all)” (Rose, 1999: 25).
É necessário isolar e excluir para poder juntar e incluir. Isto nos levará ao
próximo ponto. A formação do normal e do patológico. O que irei tentar dar a ver não
é totalmente novo no que já se leu deste texto, mas algumas das questões tornam-se
absolutamente indispensáveis. De qualquer forma, será aqui que terá oportunidade de
sentir de forma mais directa aquilo que constitui a grande ambivalência desta tese.
Desde já o anteciparei: depois de produzido o anormal, havia que lhe dar uma
hipótese de vida, o que, aliás, é condicente com o que se acabou de ler sobre a
tecnologia biopolítica. No entanto, no caso específico dos alunos surdos, a hipótese
de serem salvos de um mundo marginal e acultural, passava por um ensino segundo
métodos orais que, portanto, não levavam em consideração a especificidade do estado
Questões teóricas e articulações práticas
88
surdo. Sendo o Outro da paisagem educativa contemplado debaixo de um olhar
ouvinte, o tipo de hospitalidade que lhe era oferecida pertencia ao domínio
condicional. Mas, contudo, gostaria aqui de distinguir aquilo que seria uma
violentação sobre um estado, uma forma de ser surda, e uma violentação sobre
indivíduos surdos. São campos diferentes e o que se analisa neste texto é a produção
de alunos surdos numa instituição que, obviamente, possuía para eles uma imagem do
que deveria ser o aluno surdo. Simultaneamente, o referente que oferecia a estes seus
habitantes ditos especiais, era um referente de uma comunidade ouvinte.
Comunidade-família, dir-se-ia, com a qual o surdo havia de desejar ser parecido.
O surdo como hóspede entre ouvintes
89
O SURDO COMO HÓSPEDE ENTRE OUVINTES
O professor Pavão ensinando a um surdo-mudo as letras
pela ‘vibração no alto da cabeça’
(A Ilustração Portuguesa de 6 de Maio de 1907)
“Esse gesto tinha, sem dúvida, outro alcance: ele não
isolava estranhos desconhecidos, durante muito tempo
evitados por hábito; criava-os, alterando rostos
familiares na paisagem social a fim de fazer deles
figuras bizarras que ninguém reconhecia mais.
Suscitava o Estrangeiro ali mesmo onde ninguém o
pressentira. Rompia a trama, desfazia familiaridades;
através dele, algo no homem foi posto fora do horizonte
de seu alcance, e indefinidamente recuado em nosso
horizonte. Resumindo, pode-se dizer que esse gesto foi
criador de alienação” (Foucault, 2003: 81).
O aluno surdo seria para sempre o estrangeiro na comunidade ouvinte. Ouvir, para o
Questões teóricas e articulações práticas
90
surdo, constituía-se como uma impossibilidade. Decerto já se terá pressentido que o
que se vai dizer aqui, diz respeito a um estado de ser, surdo, que se viu questionado
por práticas normalizadoras. Todavia, interessa-me deixar claro que mais do que
apontar a violentação ou a repressão, o meu principal objectivo é verificar de que
forma foi possível ao aluno surdo construir a sua identidade a partir de um cenário de
referências ouvintes. Não gostaria que as minhas palavras fossem lidas como uma
indiferença face à não consideração do Outro, que era o surdo, no entanto, o enfoque
deste trabalho vai mais no sentido de identificar práticas que permitiam por um lado,
a ampliação do poder, e portanto, encaixavam-se numa racionalidade governativa e,
por outro, procurar marcas que permitam identificar naquilo que constitui uma
experienciação de vida, a construção do surdo enquanto aluno. Proponho então
analisar o processo de acolhimento, – movimento que passarei a designar por
hospitalidade –, da criança surda na Casa Pia de Lisboa, enquanto experiência
articulada com domínios do saber, práticas normativas e formas de subjectividade que
teriam o ouvinte como referencial.
Num primeiro momento, terei de considerar o processo de exclusão, quer
dizer, a construção do surdo como deficiente auditivo que, logo depois, se transforma
em processo de inclusão, ou seja, o surdo é trazido até à paisagem educativa mas já
com um nome. O projecto é mais ou menos o seguinte: há um conjunto de práticas
discursivas que enunciam a criança surda como deficiente; há, também, a vontade de
mostrar a verdade destes discursos, verdade apenas legitimada no seu processo
produtor da surdez como anormalidade e na afirmação do ouvinte como normal.
Afinal, a surdez é inventada como anormalidade por questões de organização,
classificação, domínio e controlo de um grupo que fugia à nova racionalidade
governativa. Identificados, os surdos eram convidados a incluir-se num espaço que
embora inventado há pouco, se anunciava já como próprio do ser criança, ou seja, a
escola. Simultaneamente, o convite dirigia-se no sentido de incluírem o projecto
moderno e a sua ficção de uma metaidentidade. O mecanismo de inclusão na
paisagem educativa, precedido por uma exclusão, teria necessidade de se valer de
razões de salvação de crianças ditas selvagens, para camuflar a hospitalidade hostil
que se oferecia àquele que era inventado como anormal, como o Outro da paisagem
educativa. Contudo, e é aqui que habita a grande ambivalência desta tese, pretendo
verificar que, apesar de colonizados por uma língua ouvinte, os alunos surdos “foram
O surdo como hóspede entre ouvintes
91
levados a conceder atenção a eles próprios, a interpretar-se, a reconhecer-se e a
confessar-se como sujeitos de desejo, estabelecendo de si para consigo uma certa
relação que lhes permite descobrir, no desejo, a verdade do seu ser, quer seja natural
ou corrompido” (Foucault, 1994b: 11). Em suma, o aluno surdo construiu a sua
narrativa de vida, a sua identidade no âmago da comunidade ouvinte. A escola
ofereceu-lhe processos de subjectivação que o levaram a desejar participar enquanto
sujeito, nas práticas normalizadoras. O mundo dos ouvintes e a língua dos ouvintes
ficcionou-se como o espaço no qual o surdo, sendo estrangeiro, deveria naturalizar-
se, alojando no seu corpo técnicas que, como uma prótese, lhe permitissem falar
oralmente e ouvir visualmente.
Ao considerar a produção da surdez como anormalidade do corpo, refiro-me
aos discursos que classificavam o estado surdo como uma manifestação patológica. O
que estava em causa, portanto, e era trazido até um quadro de visibilidade, era a
incapacidade de ouvir que invadia o corpo do surdo, impossibilitando-o de uma
relação comunicativa oral com o ouvinte. Claro está que o Outro, – o surdo –, era
considerado e olhado a partir de um lugar que como referente tinha apenas o seu
espaço e o seu tempo próprios – o do ouvinte. Todo o elemento que desinstaurasse o
desenvolvimento ritmado e constante de um padrão, era portador de uma desordem
instável e inquietante. Porquê? Porque aquele que é inventado como o Outro [surdo],
está aí diante de mim [ouvinte]:
“E a partir desse estar-aí-diante-de-mim, ele pode se deixar olhar, sem dúvida,
mas também” – é sempre uma possibilidade – “ele pode, ele, olhar-me. Ele tem
seu ponto de vista sobre mim. O ponto de vista do outro absoluto” (Derrida,
2002: 28).
Na introdução, quando situo esta escrita entre as coordenadas da
modernidade e da ambivalência, desenvolvi já esta ideia de que a modernidade não
suporta qualquer tipo de ambivalência. Recordo que a ambivalência transporta em si
a capacidade de desinstaurar uma ordem desejada. Bauman propõe-nos uma imagem-
movimento para a modernidade: aquela “em que se reflecte a ordem – a ordem do
mundo, do habitat humano, do eu humano e da conexão entre os três: um objecto do
pensamento, de preocupação, de uma prática ciente de si mesma, cônscia de ser uma
Questões teóricas e articulações práticas
92
prática consciente e preocupada com o vazio que deixaria se parasse ou meramente
relaxasse” (1999: 12). E como o medo de perecimento é grande, a modernidade não
desacelera na produção de registos dos seus estranhos.
Jacques Derrida, identifica o estrangeiro, como um Outro que na sua
deslocação permanente – pois em casa, ‘chez soi’, não se é estrangeiro – é
representado como um estranho. Há qualquer coisa naquele que é estrangeiro,
inassimilável, impeditiva de uma auto-identificação consigo. Um elemento estranho,
apartado da norma, desencaixado do padrão estabelecido. E, no entanto, o
estrangeiro, quer dizer, o Outro, vai permanecendo nos espaços que lhe não
pertencem.
“O estrangeiro é primeiramente estrangeiro à língua do direito na qual o dever de
hospitalidade está formulado, o direito de asilo, os seus limites, as suas normas, a
sua polícia, etc. Ele tem de pedir a hospitalidade numa língua que, por definição,
não é a sua, a língua que o dono da casa lhe impõe, o hóspede, o rei, o senhor, o
poder, a nação, o Estado, o pai, etc. Este impõe-lhe a tradução na sua própria
língua, e é a primeira violência. A questão da hospitalidade começa aí: deveremos
nós pedir ao estrangeiro para nos compreender, para falar a nossa língua, em
todos os sentidos deste termo, em todas as suas extensões possíveis, antes e a fim
de o poder acolher em nossa casa (chez nous)? Se ele já falasse a nossa língua,
com tudo o que isso implica, se nós partilhássemos já tudo quanto se partilha com
uma língua, seria o Estrangeiro ainda um Estrangeiro e poderíamos nós falar a
seu respeito de asilo ou de hospitalidade?” (Derrida, 2003: 36).
As questões que Derrida coloca são as mais pertinentes para um pensamento
sobre o Outro. O pedido lançado ao surdo para que aprendesse a língua do ouvinte,
mais não é do que um pedido de apagamento da sua própria condição surda. A
criança surda seria aceite, transformando-se em aluno surdo, autorizando-se como
objecto de normalização. É aqui que se marca a dimensão de hospitalidade que se
oferece ao Outro. Pedir-lhe que partilhe a língua que é própria da cultura ouvinte no
momento em que se lhe abre portas, significa condicionar a sua permanência.
Numa ficha individual do aluno, contendo observações e anotações da sua
vida escolar, temos acesso directo a uma visão sobre a transformação que se opera no
espaço escolar, na construção do surdo enquanto aluno. A exaustividade dos registos
produzidos sobre os alunos é imensa e pretendia ser um retrato deveras objectivo, que
O surdo como hóspede entre ouvintes
93
apagasse o fosso entre o conhecer pessoalmente, ou não, o sujeito descrito. Da leitura
do cadastro individual do aluno, resultaria um conhecimento do seu ser. Mas se trago,
neste sítio em que se fala da hospitalidade, os discursos que se produziam sobre o
aluno, – claro está, que à sua revelia –, é porque vejo nesta formação de um arquivo
de uma instituição, o alojamento pela escrita de seres que para terem direito a uma
hospitalidade, teriam de incluir-se nas regras institucionais. Não importava o quanto o
aluno surdo cumpria com sucesso as tarefas educativas. Não importava se aprendia,
ou não, a língua oral. O núcleo da questão residia no quanto um sujeito surdo poderia
ser objecto de práticas de normalização, naquela paisagem específica. Proponho que
se observe agora três fragmentos de processos individuais de alunos surdos da Casa
Pia.
Num deles, dizia-se assim: “É muito bom rapaz e regularmente dotado. Bem
comportado, gosta de cumprir e trabalhar. Tem vontade de aprender”. E isto
chega-nos, para passarmos à próxima situação: “Muito brando e pouco
inteligente, tem, no entanto, alguma habilidade. Progride muito lentamente
porque é apático e desleixado. É sossegado. Tem má voz e muita dificuldade para
a articulação. Tem certa facilidade para a aritmética”. Mas surdos havia que não
teriam neste local, espaço de hospitalidade. “Depois da entrada do menor
verificou-se ser este anormal sem condições para ser educado no referido
instituto. Na verdade, trata-se de uma criança de nulas reacções, indiferente e
apática, incapaz de reagir mesmo a quaisquer travessuras ou sinais de seus
companheiros. Nas aulas nenhum exercício por mais interessante, o atrai,
conservando-se imóvel todo o tempo lectivo. O mesmo se verifica na vida social
apenas manifestando qualquer interesse pela pessoa encarregada de olhar por ele.
É assim incapaz de qualquer vida de relação” (fichas individuais de alunos surdos
da Casa Pia de Lisboa).
A aceitação da criança surda na escola, implicou a sua afirmação como
deficiente, segundo regras específicas de um dispositivo educativo penetrado por um
outro dispositivo, de tipo clínico. A paisagem escolar e as instituições de acolhimento
foram hospitaleiras com o Outro previsto, até que ele fosse somente um hóspede de
acordo com o modelo de ser hóspede. Quer dizer:
“Este direito à hospitalidade oferecido a um estrangeiro ‘em família’,
Questões teóricas e articulações práticas
94
representado e protegido pelo seu nome de família, é ao mesmo tempo o que
possibilita a hospitalidade para com o estrangeiro, mas o que no mesmo lance a
limita e a interdita. Porque não se oferece a hospitalidade, nestas condições, a um
recém-chegado (arrivant) anónimo, nem a alguém que não tenha, nem nome, nem
patronímico, nem família, nem estatuto social, e que desde logo é tratado, não
como um estrangeiro, mas como um outro bárbaro” (Derrida, 2003: 39).
O que quero sublinhar é que a classificação que a medicina conferia ao aluno
constituía o seu lugar enquanto escolar. O estado surdo era lugar de pertença mas
deveria estar inscrito na pele do aluno para que a escola lhe abrisse as portas. O
atestado de anormalidade era condição essencial que legitimava a hospitalidade e a
oferta da língua ao aluno. Há diferenças, pois, entre aquele que é estrangeiro numa
paisagem e aquele que é o Outro absoluto. Derrida resolve exemplarmente a questão
das diferenças subtis entre um e o outro:
“A lei da hospitalidade, a lei formal que governa o conceito geral de
hospitalidade, aparece como uma lei paradoxal, pervertível ou pervertedora. Ela
parece ditar que a hospitalidade absoluta rompe com a lei da hospitalidade como
direito ou dever, com o 'pacto' de hospitalidade. Para o dizer noutros termos, a
hospitalidade absoluta exige que eu abra a minha casa (chez-moi) e que dê, não
apenas ao estrangeiro (dotado de um nome de família, de um estatuto social de
estrangeiro, etc.), mas ao outro absoluto, desconhecido, anónimo, e que lhe dê
lugar, que o deixe vir, que o deixe chegar, e ter lugar no lugar que lhe ofereço,
sem lhe pedir reciprocidade (a entrada num pacto), e sem mesmo lhe perguntar
pelo nome” (2003: 39, 40).
A hospitalidade condicional era, então, a possibilidade única de acolhimento e
salvação de sujeitos inventados deficientes. A personagem deficiente não foi a causa
da exclusão, ela foi o resultado da própria segregação. O processo de receber aquele
que se afasta da norma, é, como tivemos oportunidade de sentir nas palavras de
Derrida, hostil para a natureza desse ser Outro. O processo de acolhimento implicava
corroborar com a ideia de que o sujeito estava em carência, em falta, não possuía os
atributos considerados necessários a um sujeito normal.
O lugar da criança era a escola e neste espaço ela haveria de ser governada. A
criança surda não poderia aí ser colocada sem que se tomassem medidas que
O surdo como hóspede entre ouvintes
95
garantissem o sucesso da sua inclusão. Podemos falar de um grupo e da necessidade
de o reconceptualizar como parte de uma população governável. O espaço onde a arte
de governo dos anormais poderia acontecer, estava já inventado e assimilado como
espaço natural da socialização da criança, apenas ligeiras alterações teriam de ocorrer
para que, também o processo de excluir para, depois, incluir as crianças anormais, se
naturalizasse. A institucionalização da criança surda, significou uma apropriação do
seu corpo por dois grupos de experts. Por um lado, havia os médicos que legitimavam
a classificação do indivíduo enquanto anormal, por um saber construído pela
observação e comparação de desempenhos. Por outro lado, os actores da pedagogia
que, tinham em mãos, a tarefa correctiva das desordens do corpo.
“Por ser absolutamente necessário o professor ter de fixar a atenção do aluno num
dado ponto ou objecto, isto é, fazer-lhe a educação da vista, tem de recorrer a
exercícios de ginástica escolar, imitativa e progressiva; com estes exercícios a
vista do aluno começa a fixar-se e a educar-se, o espírito a observar, a aplicar-se e
a comparar e além dissso, estes exercícios servem também para disciplinar o
aluno” (Filipe, 1907: 10).
Esta afirmação de Cruz Filipe, professor de surdos na Casa Pia, é pertinente
quando falamos em hospitalidade. Este pedagogo afirmava a necessidade de atender a
um dos aspectos mais importantes da condição surda: o olhar. Mas o movimento que
parece dirigir-se em direcção ao Outro, violenta-se ao atingi-lo. Desconsidera a
experienciação visual do mundo como forma de estar e de ser o Outro, inserindo-a
numa lógica educativa de exercício e disciplina. “A experiência do olhar”, um dos
“marcadores” culturais do surdo, converteu-se em instrumento na subjectivação do
aluno surdo enquanto deficiente auditivo (Lopes, 2006: 1).
A escola era o espaço por excelência da correcção.
Gostaria agora de lançar os alicerces para uma possível compreensão do
fenómeno de excluir o anormal para depois o incluir, partindo da análise que Michel
Foucault desenvolve sobre as práticas de exclusão dos leprosos e, seguidamente, de
um segundo modelo. Este, de confinamento espacial e inclusão de seres ameaçados
pela peste. A consideração destes dois modelos insere-se na tentativa de traçar fios
condutores de práticas que se instalam como naturais. É na tentativa de encontrar
proveniências e não origens verdadeiras que se fundamenta este processo, ou seja,
Questões teóricas e articulações práticas
96
encontrar noutros domínios elementos que viajam por espaços mantendo uma certa
regularidade e sistematicidade discursiva.
“A exclusão da lepra”, diz o autor do Curso no Collège de France de 1974-
1975 sobre a problemática dos anormais, identificava-se como “prática social que
comportava primeiro uma divisão rigorosa, um distanciamento, uma regra de não-
contacto entre um indivíduo (ou um grupo de indivíduos) e outro”. Formava-se,
portanto, dois grupos, um deles, excluído, sofrendo práticas de marginalização, sendo
colocado à parte da comunidade saudável. Este modelo que, Foucault considera
historicamente activo até meados do século XVII, justificou ainda a “rejeição para
fora das cidades de toda essa população flutuante” – de “mendigos”, “vagabundos”,
“ociosos”, “libertinos” – ou a prática de internamento nos hospitais gerais. Em inícios
do século XVIII, reaparecia outra prática de exclusão, mas, desta feita, o movimento
de um grupo em relação ao outro não era o de expulsão. O modelo a que se refere
Foucault, é o “da inclusão do pestífero” (Foucault, 2002: 54, 55).
Movimento agora directamente ligado a um isolamento, mas no interior do
espaço governável, passando então estes seres que se insulam, a figurar num mapa.
Se até aqui se regurgitava os seres indesejáveis para fora do alcance de uma
população saudável, chegara o momento de os encerrar dentro da própria cidade. Os
indivíduos tocados pela peste viam agora a sua localização definida, fixada e
controlada. O processo era de total individualização. Numa cidade empestada, tudo o
que era “observado devia ser registado, de forma permanente, por essa espécie de
exame visual e, igualmente, pela transcrição de todas as informações em grandes
registos”. O número inicial de cidadãos apartados para quarentena – que poderia
coincidir com a totalidade de habitantes de uma cidade – era obtido pelo nome de
cada um que era anotado e guardado pela administração central da cidade. Duas vezes
por dia, as informações seriam actualizadas por uma inspecção que “fazia a triagem
dos indivíduos” (Foucault, 2002: 56,57).
O segundo modelo referido diferia do primeiro, desde logo, pela proximidade
que a observação meticulosa exigia. Todos os movimentos, todas as baixas da
população, obrigavam a um registo permanente e quase simultâneo com o acontecido.
O fito, parecia ser o de “maximizar a saúde, a vida, a longevidade, a força dos
indivíduos”, a bandeira era a da produção de “uma população sadia”. A montagem do
dispositivo de observação e registo constantes, pelo enclausuramento e confinação
O surdo como hóspede entre ouvintes
97
dos territórios permitidos a cada indivíduo, facilitava o “exame perpétuo de um
campo de regularidade, no interior do qual”, se iria “ avaliar sem cessar cada
indivíduo, para saber se” estaria, ou não, “ conforme à regra” (Foucault, 2002: 58).
Encontramos neste modelo, sem dúvida, semelhanças com o que se passará com a
institucionalização de crianças anormais. Contudo, há diferenças que têm de ser
equacionadas e, certamente que o perigo representado pela vagabundagem livre de
um pestífero, seria diferente daquele representado pela circulação social de sujeitos
anormais. Mas estes, escondiam um perigo potencial, caso não fossem convertidos
em matéria governável. A imprevisibilidade do seu comportamento impedia os ritmos
e padrões regulares1. Daí que seja necessário hospedar, detendo e contendo toda a
diferença que viaja para lá da norma.
Bauman, relembra o viscoso de Sartre, como objecto-matéria que nos ameaça.
A poética do excerto que se segue, certamente se impregnará no leitor ou na leitora e
fará compreender a presença de um abismo para lá da fronteira do normal.
“‘Aqui está o viscoso invertendo os termos: [meu ego] é subitamente
comprometido, abro as mãos, quero desfazer-me do viscoso e ele se cola em
mim, me puxa, me chupa...Já não sou o senhor...O visgo é como um líquido visto
num pesadelo, em que todas as suas propriedades são animadas por uma espécie
de vida, e volta-se contra mim.
Se mergulho na água, se afundo nela, se me deixo submerso nela, não
experimento nenhum mal-estar, pois não tenho qualquer medo de seja lá como eu
possa nela dissolver-me; continuo um sólido em sua liquidez. Se me deixo
submergir no viscoso, sinto que vou perder-me nele... Tocar o viscoso é arriscar-
se a ser dissolvido na viscosidade’”(Bauman, 1998: 39).
O sentimento que o Outro produz e que obriga a uma reconceptualização da
sua existência, tornando-o anormal e isolando-o num espaço onde será, dentro do
possível, normalizado, pode ser entendido com a violência de colonização e de
redução do Outro, ao Mesmo. Todavia, esta atitude de inclusão, de hospitalidade
hostil, é produtora de um poder positivo. O que é positivo, a meu ver, é o poder, não a
1 Foucault desenhava a peste como “um sonho político”. Significou um “momento maravilhoso em que o poder político se
exerce plenamente. A peste é o momento em que o policiamento de uma população se faz até seu ponto extremo, em que nada das comunicações perigosas, das comunidades confusas, dos contactos proibidos pode mais se produzir. O momento da peste é o momento do policiamento exaustivo de uma população por um poder político, cujas ramificações capilares atingem sem cessar o próprio grão dos indivíduos, seu tempo, seu habitat, sua localização, seu corpo” (2002: 58, 59).
Questões teóricas e articulações práticas
98
inclusão sem consagrar a figura do Outro, o seu espaço e o seu tempo. A positividade
deste poder articula-se com a sua produtividade na formação de um saber que
multiplicará os efeitos do poder. Por outro lado, este poder é também positivo porque
permite a regulação de toda a população, essencial para o seu bom governo. É,
portanto, um poder positivo no interior de uma perspectiva de governamentalidade. E,
mesmo assim, o Outro que foi o surdo manifestou-se na sua resistência de ser-Outro:
“Outro de uma alteridade que constitui o próprio conteúdo do Outro”, a “ausência
de pátria comum que faz do Outro – o Estrangeiro; o Estrangeiro que perturba o
“em sua casa”. Mas o Estrangeiro quer dizer também o livre. Sobre ele não posso
poder, porquanto escapa ao meu domínio num aspecto essencial, mesmo que eu
disponha dele: é que ele não está inteiramente no meu lugar” (Levinas, 2000: 26).
Zygmunt Bauman, no seu livro O Mal-Estar da Pós-Modernidade, refere-se,
também à produção dos estranhos na modernidade, quer dizer, daqueles que seriam,
no meu pensamento, equivalentes ao estrangeiro de Derrida, ao anormal de Foucault
e, particularmente ao surdo que tem sido o objecto mais definido nesta pesquisa.
Bauman apresenta duas estratégias alternativas, “mas complementares” que aliás, se
articulam no pensamento anteriormente referido de Michel Foucault. Uma delas teria
um carácter “antropofágico”:
“ Aniquilar os estranhos devorando-os e depois, metabolicamente,
transformando-os num tecido indistinguível do que já havia. Era esta a estratégia
da assimilação: tornar a diferença semelhante”, “promover e reforçar uma
medida, e só uma, para a conformidade” (Bauman, 1998: 28, 29).
A outra estratégia é descrita como “antropoêmica”:
“Vomitar os estranhos, bani-los dos limites do mundo ordeiro e impedi-los de
toda comunicação com os do lado de dentro”. Essa, era a técnica da exclusão, do
confinamento dos estranhos “dentro das paredes visíveis dos guetos, ou atrás das
invisíveis” (Bauman, 1998: 29).
Uma vez mais refiro que numa relação de governamentalidade, uma coisa é a
racionalidade governativa, outra a arte de governar. O segundo termo desta
O surdo como hóspede entre ouvintes
99
composição seria de busca constante, de produção incessante de um saber que
permitisse ao primeiro termo triunfar na produção de sujeitos conformados. Todavia,
o segundo termo nunca atinge a perfeição cirúrgica que deseja daí, entrar numa
circularidade de eterno retorno ao princípio com o sentido de um novo plano. Por esta
razão, aliás, as duas estratégias apresentadas por Bauman são simultaneamente
alternativas e complementares.
A educação do surdo, procurando oferecer-lhe uma língua com que pudesse
elaborar construções mentais, passa pela colonização do seu corpo, normalizando-o,
do ponto de vista do uso da palavra oral, ainda que o sentido auditivo continue para
sempre nulo. A relação entre ouvintes e surdos – que se querem falantes – é uma
relação alérgica para a condição surda. Só acontece quando se massacra a condição
do Outro – o surdo –, apagando-o. Massacra-se, mortifica-se, enclausura-se o surdo
em todos os espaços. Estabelecem-se fronteiras. Não há lugar institucional para o
gesto, para a condição e estado surdos. Mas ele existe como resistência. Inventa-se
uma anormalidade a corrigir, com uma gramática limitada. Todavia essa gramática
atende à visualidade da surdez. Era essa a alternativa possível para que o surdo
tivesse no ouvinte uma referência.
O conceito de inclusão coloca em circulação novas relações de poder,
mascaradas por saberes cada vez mais experts, que actualizam essas relações em
manifestações subtis, invisíveis e produtivas.
A questão da inclusão da criança surda na escola que esta tese procura
evidenciar, não pode ser explicada sem que se avance com a ideia de que falamos de
um sentimento novo, quer dizer, da invenção de crianças com necessidades
educativas especiais que a escola terá de acolher e governar no seu espaço. Estes
discursos da surdez enquanto deficiência, vindos de vozes institucionais, da medicina
ou da pedagogia, formam o próprio objecto de que falam tornando-o visível,
“nomeável” e “descritível”. Claro está que quem profere estes discursos possui um
papel regulamentador. Foucault (2005: 72, 73, 75), quando se refere à formação do
objecto loucura, no século XIX, diz que a sua instauração estaria ligada “ao conjunto
de indivíduos constituindo o corpo médico”, ao “saber e prática”, à “competência
reconhecida pela opinião”, à “justiça” e à “administração”. Mas, não é suficiente para
a formação de um objecto, o isolamento de qualquer dos planos apontados. A relação
entre “instâncias de emergência, de delimitação e de especificação”, é que dará
Questões teóricas e articulações práticas
100
origem a uma formação discursiva constitutiva de um objecto. Considerar, portanto, a
criança surda enquanto criança anormal, implica pensar as relações que
proporcionaram a formação deste objecto e as técnicas usadas para a sua manutenção.
Os indivíduos classificados como anormais são-no por referência e comparação a
uma medida tida como verdadeira e natural. A pedagogia correctiva surge, neste
sentido, com a função de o mais cedo possível impedir desenvolvimentos anormais
do corpo e da alma. Será, por certo, útil, alargarmos aqui a questão de formação do
objecto anormal. Para tal, usamos como mola impulsionadora desta análise, as
palavras de Varela e Alvarez-Uria:
“A principios de siglo florecerá en el jardin botánico de las especies patológicas
un nuevo árbol destinado a confundirse prácticamente con la infancia
delincuente: nos referimos a la infancia anormal. Y es que en todas las escuelas
existen niños rebeldes, incorregibles, turbulentos, niños desordenados,
inadaptados que contagian a sus compañeros y rompen el orden de la clase.
Frente a los desbordamientos de la insumisión, la autoridad magisterial, junto con
el poder médico, en una santa alianza enarbolarán el diagnóstico tranquilizador de
la anormalidad”. “Las primeras clasificaciones de los pequeños anormales fueron
sin duda tan rudimentarias como las elaboradas por los primeros alienistas pero lo
suficientemente claras para poner de relieve la emergencia de un nuevo campo en
el que las fronteras entre lo normal y lo patológico estaban a punto de borrarse. A
partir de ahora nacerá una pedagogia correctora que irá acompañada de medidas,
controles, pruebas, observaciones de cuerpos y almas. Los niños turbulentos,
indóciles, retrasados, inadaptados, inestables, débiles y deficientes van a verse así
aislados en un nuevo laboratorio de observación en el que se obtendrán técnicas
psico-pedagógicas generalizables a las escuelas. No es una casualidad que entre
los nombres de los grandes pedagogos del presente siglo figuren Decroly,
Montessori, Neill y otros conocidos “especialistas” en niños difíciles y
anormales” (1991: 224, 225).
O jardim botânico das espécies patológicas, compõe-se de comportamentos e
manifestações orgânicas e corporais que, de forma nenhuma, se poderiam transplantar
para um terreno educativo regular. A não ser que estas crianças fossem objecto de
práticas correctivas psicopedagógicas. António Aurélio da Costa Ferreira, referindo-
se a um recém-aluno da secção de surdos da Casa Pia, expressava-se desta forma:
O surdo como hóspede entre ouvintes
101
“O ar imbecil que muitas vezes tem o surdo-mudo, sem educação, resulta não da
falta de inteligência mas da falta dum dos orgãos à custa do qual ele mais se
desenvolve. E se quiserdes ter documentos vivos e recentes que provem esta
afirmação não tendes mais do que seguir as transformações que experimentam os
alunos, pobres e abandonados, que se vem matricular no Instituto de Surdos-
mudos.
Ainda hoje lá encontrareis um pequeno catatónico, na realidade inferior, que tem
apenas dias de casa, que parecia tão deficiente, no momento da entrada, que se
chegou a pensar afastá-lo das classes. Pois esse pupilo dia a dia a gente o vê, sob
a acção do ensino, disciplinar-se, ele que era um indisciplinado, e humanizar-se,
ele que só tinha maneiras e fisionomia de animal. Parece que os surdos-mudos
nascem duas vezes” (1913: 82, 83).
No dicionário de Pédagogie dirigido por F. Buisson, Baguer propunha uma
definição para os enfants anormaux. Dizia assim:
“Ce sont les sujets qui, soit au point de vue intellectuel ou moral, ne se trouvent
pas dans des conditions normales pour recevoir l’enseignement commun.
Ces enfants, qui ne peuvent être suffisamment instruits à l’école publique par les
procédés pédagogiques ordinairement employés pour les élèves pourvous de tous
leurs sens et doués d’une intelligence moyenne, sont designés sous le nom
générique d'enfants anormaux ”. A espécie dividia-se em cinco: aveugles, sourds-
muets, o grupo dos idiots, crétins, imbéciles, épileptiques, hystériques,
choréiques, paralytiques e hémiplégiques, os arrières e os instables. Os sourds-
muets eram: “ sujets privés de l’ouie, soit totalement, soit dans des proportions
qui ne leur permettent pas d’adcquérir, par l’audition, le langage spontané des
entendents-parlants normaux ” (Baguer, 1911: 79).
A surdez, portanto, arrecadava um “estatuto de irregularidade em relação a
uma norma” e, ao mesmo tempo, de “disfunção patológica em relação ao normal”
(Foucault, 2002: 205). A solução possível seria, curar e readaptar estes seres que, à
partida, se excluíam de um dispositivo de normalidade. É certo que, esta primeira
repulsa gerava o sentimento contrário de inclusão, chamando estes sujeitos à arena
educativa e fazendo-os participar das técnicas de normalização. Simultaneamente,
contaminando toda a população escolar com a ameaça da anormalidade, caso a
Questões teóricas e articulações práticas
102
conduta de cada indivíduo, não fosse exemplar.
“Essa emergência do poder de normalização, a maneira como ele se formou, a
maneira como se instalou, sem jamais se apoiar numa só instituição, mas pelo
jogo que conseguiu estabelecer entre diferentes instituições, estendeu sua
soberania em nossa sociedade” (Foucault, 2002: 32).
O instrumento que permitiria estabelecer o grau de normalidade ou
anormalidade de cada um, era, claro está, o exame. Sobre o exame, neste momento
apenas diremos que, colocava em funcionamento um poder de normalização,
constituindo-se como instrumento que num só movimento permitia dissecar,
descrever, localizar, ordenar e controlar todos os desvios. A prática do exame activa
princípios de comparação permitindo individualizar o aluno na sua performance, nos
resultados que obtém, mas também, obriga à homogeneidade. Qualquer seriação de
resultados é enquadrável numa grelha que oferece ao observador uma imagem de um
conjunto.
Há pouco dei conta da série de perguntas que constituiria um processo
biográfico do aluno surdo. Pois bem, lhe direi agora que o interrogatório se devia à
busca por um primeiro sintoma, por um indício na hereditariedade de uma origem
para o estado anormal. Em bloco, se saberia do aluno e da sua família. Nesta tomada
de saber exercia-se um poder: tudo e todos se constituíam como eventual causa da
surdez daquela criança específica. Uma vantagem que se revelava produtiva do ponto
de vista moral, uma vez que trazia a palco a questão das sexualidades ilícitas que, à
partida, seriam responsáveis pelas aberrações manifestas na descendência.
Degeneração, eis a palavra mágica que surge na segunda metade do século XIX e que
será simultaneamente a causa do caso específico daquela criança anormal, e o que faz
funcionar a tecnologia médica na eliminação de uma possível propagação do mal. Os
estados anormais passam a ser explicados nesta construção de um fio articulador
entre a criança e a família, vinculando-se a produção dos discursos à técnica do
registo escrito. Assim se ordenam os saberes, em memórias controladas, e assim
permanecerão nos arquivos. A escola é depositária desse núcleo de informações
porque é a voz, apoiada pelas ciências médicas, que tem o poder de questionar. Mas a
questão da hereditariedade e da degeneração implicam uma complexidade outra que
O surdo como hóspede entre ouvintes
103
no fundo converge no que tenho vindo a referir como hostilidade, hospitalidade
condicional ou exclusão:
“É o racismo contra o anormal, é o racismo contra os indivíduos, que, sendo
portadores seja de um estado, seja de um estigma, seja de um defeito qualquer,
podem transmitir a seus herdeiros, da maneira mais aleatória, as consequências do
mal que trazem em si, ou antes, do não-normal que trazem em si” (Foucault,
2002: 403).
Percebemos, desta forma, a produtividade positiva na formação do anormal,
nos exercícios de saber e de poder, nas tecnologias biopolíticas, na normalização,
enfim, também, nas técnicas disciplinares que serão operadas sobre os corpos surdos.
Parece igualmente incontornável a ideia de que a inteligibilidade e administrabilidade
da população, se encontra ligada à produção de um discurso sobre a anormalidade,
sobre a conduta desregrada, sobre a imoralidade, etc. O processo de subjectivação de
cada aluno, a sua fabricação enquanto indivíduo, teria no Outro, no anormal que
habita o lado de lá da fronteira, o referente para afirmar a sua normalidade. Foucault,
ao referir-se às “espécies” criadas pelos psiquiatras do século XIX, fala de uma
“mecânica do poder que persegue toda esta variedade atribuindo-lhe uma realidade
analítica, visível e permanente: ela enfia-a nos corpos, fá-la deslizar para debaixo dos
comportamentos, faz dela um princípio de inteligibilidade, constitui-a como razão de
ser e ordem natural da desordem”. Não será exclusão por exterminação dessas
espécies, mas “especificação” e “solidificação”( Foucault, 1994: 47, 48). Semeia-as
no real e incorpora essas diferenças anormais, no indivíduo. No capítulo que se segue,
analisaremos, uma das formas de incorporação da surdez como deficiência, sem que,
no entanto, o surdo deixasse de ser ele próprio autor da sua identidade.
Questões teóricas e articulações práticas
104
A construção do aluno surdo como sujeito ético…
105
A CONSTRUÇÃO DO ALUNO SURDO COMO SUJEITO ÉTICO: TÉCNICAS
DO EU, CONFISSÃO E PODER PASTORAL
Exercícios de vocalização ao espelho
(Ferreira, 1922 b)
“Nous appelons discipliné un individu qui est maitre de lui
et qui peut, par conséquent, disposer de lui-même, ou suivre
une règle de vie” (Montessori: 1958: 37).
“Dialéctica, sempre recomeçada, entre o Mesmo e o Outro”
(Foucault, 2003: 520).
Questões teóricas e articulações práticas
106
A construção do aluno surdo como sujeito ético…
107
No segundo volume da História da Sexualidade, Michel Foucault propõe-se
“estudar os jogos de verdade na relação” que o sujeito desenvolve “de si para si” e
a “constituição do eu como sujeito, tomando como referência e campo de
investigação aquilo que se poderia chamar a ‘história do homem de desejo’”
(1994b: 12). A minha referência e aquela que proporei é a do aluno surdo
enquanto sujeito experimentador de práticas e técnicas pensadas para produzir em
si uma transformação positiva. Transformá-lo em escolar, inserindo-o num campo
de relações de poder. Uns serão manifestamente dominantes, outros, dominados.
Mas uns e outros, induzem transformações, quer dizer, efeitos. Começarei este
capítulo trazendo à superfície um registo que habita os arquivos da Casa Pia de
Lisboa e com ele, espero conseguir mostrar o quão importante seria para a
comunidade de pedagogos e médicos da Casa Pia, proporcionar ao surdo uma
educação moral. Só desta forma a tarefa de resgate de um mundo acultural seria
cumprida. Tentarei, de seguida, mostrar através de que experiências o aluno surdo
se foi narrando. Pergunta assim Michel Foucault: “Através de que jogos de
verdade o homem se dedica a pensar o seu ser próprio quando ele se percebe
como louco, quando se olha como doente, quando reflecte sobre si como ser vivo,
falando e trabalhando, quando se julga e se pune a título de criminoso? Através de
que jogos de verdade o ser humano se reconheceu como homem de desejo?”
(1994b: 13). Parece-me pertinente inflectir esta pergunta na direcção do aluno
surdo.
Num parecer sobre dois alunos surdos, emitido pelos serviços médico-
pedagógicos da Casa Pia a pedido do Provedor, relativamente a uma perversão
sexual dos mesmos, começa por se caracterizar o temperamento e comportamento
dos alunos, chegando por fim ao ponto em que a dita perversão é lida, tendo em
conta o estado anormal dos alunos, e a solução encontrada, passa por uma
vigilância mais apertada, bem como por uma maior intensidade da acção
terapêutica dos diversos agentes que lidavam com o aluno. O médico escrevia
assim:
“Na interpretação etiológica da perversão sexual amputada ao aluno
(homossexualidade em função activa e, noutro caso, em função passiva) sem
antes ter precedente conhecido na Secção de Pina Manique, há que considerar
que o desvio do instinto sexual é desde há muito, entre os surdos-mudos desta
Secção de D. Maria Pia, fenómeno não só endémico, como, por vezes,
Questões teóricas e articulações práticas
108
avassalador.
E, assim, torna-se por um lado difícil determinar até que ponto haja fixação
de perversão, como por outro tem que ser muito judicioso o apuro das
responsabilidades individuais num meio que parece caracterizado por
imbecilidade moral colectiva. [...] A referida perversão tem de situar-se no
condicionamento de morbidez colectiva que atrás se definiu e o destino a dar
ao aluno é função não de castigos excessivos, reprováveis, mas de
organização técnica e profiláctica que garanta, funcionalmente, possibilidades
reeducativas”(processo individual de aluno surdo da Casa Pia de Lisboa).
A resposta à situação, foi elaborada da seguinte forma pelo Provedor:
“Parecendo os factos considerados de natureza acidental, consequência de um
estado colectivo deficiente e dada a idade dos alunos, deverão os menores ser
sujeitos a uma adequada acção terapêutica da parte do médico escolar, do
capelão, dos professores de ensino especial e dos serviços de disciplina em
coordenação de esforços e tomando em consideração os elementos
psicológicos e caracterológicos expostos pelo médico escolar” (processo
individual de aluno surdo da Casa Pia de Lisboa).
Era mesmo à escola e ao esforço contínuo e empenhado dos seus actores
da classe dirigente, que cabia a tarefa de socialização e moralização da criança
surda. Para este caso que lidava directamente com a sexualidade dos escolares, a
intervenção no sentido de a corrigir, isto é, de modificar as práticas, efectuar-se-ía
numa espécie de encruzilhada sobre os alunos. Médico, capelão, professores e
vigilantes, todos eles tentariam anular a perversão, mas, paradoxalmente, qualquer
acção levada a cabo por estes agentes, continuaria a falar de uma sexualidade, ou,
da sua possibilidade. É exactamente porque o poder não é exercido de uma forma
soberana em torno do aluno por alguém que deteria esse poder, que se organiza
este tipo de dinâmica interna de intervenção. Iria ser nas relações estratégicas
entre actores, espaços e tempos que os jogos de conduta para atingir a alma da
criança surda se efectuariam. Gostaria ainda de destacar que o estado surdo é
descrito como um espaço de degenerescência, quase como o ponto zero da
condição humana e, é nesse ponto que se situa a possibilidade de agir para pôr fim
a essa involução. A perversão sexual não era verdadeira perversão porque não
tinha como actores sujeitos normais. O processo correctivo que a escola propõe
situa-se num plano de transformação do surdo num outro sujeito, através de
processos e técnicas activadores de princípios morais, porque, na verdade,
A construção do aluno surdo como sujeito ético…
109
enquanto sujeito, o surdo é um outro que não ele próprio, ou melhor, diferente
daquele em que se deverá tornar. Uma espécie de retorno a uma forma natural, à
sua medida, mas que todavia nunca conheceu: “é inocente porque não é aquilo
que é, e culpado por ser aquilo que não é” (Foucault, 2003: 521).
Definitivamente, os castigos excessivos assumiam-se como reprováveis,
mais ainda quando se falava de sujeitos que habitavam lugares nebulosos em que
se tornava difícil estabelecer a fronteira da culpa. O lugar da culpa era
efectivamente importante, era importante perceber até que ponto as acções e
comportamentos estavam ligados a uma consciência plena do sujeito-autor, ou,
seriam apenas a manifestação sintomática da patologia. Michel Foucault refere
que a partir de 1850, a psiquiatria introduz definitivamente a questão da conduta
no imo das possibilidades patológicas do indivíduo. Tornava-se necessário
submeter toda uma massa de dados e de comportamentos a um exercício de
comparação constante relativamente a uma norma que se instituía como padrão.
As eventuais discrepâncias entre comportamentos em relação a uma norma, traria
para a boca de cena o “eixo voluntário-involuntário” (Foucault, 2002: 201).
Enfim, as ciências de origem psi adquirem o poder de instituir uma verdade sobre
os comportamentos, sobre as condutas, na medida em que, criam e dominam um
referencial que lhes permite situar cada conduta individual. Não há nada nem, na
verdade, nenhuma conduta que não possa ser analisada pelo olho psi. As
discrepâncias em relação à norma tornaram-se o objecto por excelência de
qualquer actividade psiquiátrica e psicológica, permitindo dizer do objecto e
traçar-lhe um percurso de correcção favorável.
Antes de continuar, gostaria de fazer aqui uma pequena derivação que,
julgo-o profundamente, estará na base de uma institucionalização das crianças
anormais a partir do século XIX. Solicitaria porém que se mantivesse presente a
figura da criança surda enquanto alguém que, não ouvindo, recebe a realidade
essencialmente pela visão. Este desvio assenta numa análise bastante longa de
Michel Foucault sobre os actos e comportamentos que se transformam em objecto
de estudo psiquiátrico, constituindo os seus autores como personagens anormais.
Um deles, é o de Henriette Cornier, uma mulher que nos inícios do século XIX
decapita uma criança e assume uma atitude de total passividade. Perante tal
neutralidade face ao acontecimento, houve um percurso muito especial no
processo de psiquiatrização do sucedido. No momento em que sistema judicial se
cruza com sistema médico, este último, para que o judiciário possa funcionar, é
Questões teóricas e articulações práticas
110
encarregado de elaborar um cenário explicativo para o acontecido. De que forma?
“Primeiro, procurou-se uma correlação corporal, isto é, um elemento físico que
teria podido servir pelo menos de causa desencadeadora do crime” (Foucault,
2002: 378). Quer dizer, o doentio, a patologia, um instinto monstruoso são as
imagens que se fazem penetrar na conduta e no comportamento de Henriette
Cornier. O seu acto só é justificável enquanto manifestação de uma patologia. O
outro caso que Foucault traz até nós é relativo a dois personagens, Charles Jouy e
Sophie Adam, e passa-se em 1867. O que aconteceu, revela Foucault, seria algo
muito comum na época: “ o interrogatório da menina revela que Charles Jouy a
teria feito masturbá-lo no mato. [...] Em todo o caso, Jouy dá honestamente uns
trocados à menina, que vai correndo comprar amêndoas tostadas com eles. Ela, é
claro, não conta nada a seus pais”, “foi apenas uns dias depois que sua mãe
desconfiou”. Sendo chamada a intervir neste caso que constituía uma acusação
“bem banal de um atentado bem quotidiano aos costumes bem corriqueiros”, a
psiquiatria havia de lhe pegar por um lado ainda não inaugurado (2002: 372, 373).
Quem era Charles Jouy? Era um miúdo bem conhecido na aldeia, não era portanto
um estranho, que vivia, todavia, numa marginalidade evidente. Rejeitado pela
escola, pelos amigos, nas brincadeiras, na família. Perfeitamente conhecido por
todos que, inclusivamente recorriam aos seus serviços para os trabalhos que mais
ninguém desejava realizar e por preços excessivamente baixos. Jouy vivia na
condição de estigmatizado. É esta a conclusão dos estudos psiquiátricos do caso:
“‘Claro, ele é juridicamente, judiciariamente responsável’”, todavia, o seu “‘senso
moral’” é “‘insuficiente para resistir aos instintos animais’”. Enfim, “‘um pobre
de espírito desculpável por sua obscuridade’” ( Foucault, 2002: 376). No primeiro
caso, não fosse a patologia física inscrita no corpo de Henriette e o seu crime não
se justificaria. No segundo caso, não fosse a condição de estigmatizado a
inscrever-se na estrutura da sua personalidade e, a sexualidade periférica de
Charles Jouy passaria perfeitamente despercebida, quer dizer, ignorada ou
tolerada pelos sistemas jurídicos e psiquiátricos. A partir deste quadro obviamente
que Jouy seria submetido a uma série de exames e observações que concluiriam a
sua anormalidade pelas diferenças entre o que as suas medidas permitiriam
registar e aquilo que era considerado normal. “ A boca é larga demais”, “o palato
apresenta uma curvatura que é característica da imbecilidade” (Foucault, 2002:
379). O exame desencadearia a doença. Ora, tentando agora relacionar estes casos
com a situação das crianças surdas podemos concluir que o estado surdo, ainda
A construção do aluno surdo como sujeito ético…
111
que não de uma forma explícita, seria sentido como um estado potencialmente
perigoso dado a sua proximidade a uma cegueira moral. Da situação de Cornier
retiramos a inscrição da doença no corpo, a surdez no surdo, para se justificar o
acto de homossexualidade dos dois alunos surdos referidos. Do caso de Charles,
retiramos o desequilíbrio funcional que o próprio estigma pela marginalização
provocava no comportamento. O que deveria, à partida integrar, inibir, controlar
os desejos do corpo, encontrava-se ausente porque, precisamente um elemento
perturbador se inscrevia na alma do menino. Conclui Foucault:
Há “uma espécie de dispositivo ruim nas estruturas, que faz” com “que o
instinto, ou certo número de instintos” funcionem “‘normalmente’, de acordo
com seu regime próprio, mas ‘anormalmente’ no sentido que esse regime
próprio não é controlado por instâncias que deveriam precisamente assumi-
los, situá-los” e delimitá-los. Jouy “‘agiu como uma criança e, no caso como
vemos agir com frequência entre si crianças de sexo diferente’, mas,
‘crianças mal-educadas em que a vigilância’”, estaria ausente? (2002: 381,
383, 385).
Ora bem, a psiquiatrização dos dois casos apresentados acontece de forma
diferente e, ambos se relacionam com dois elementos que passarão a constituir um
ponto nodal que se prolongaria no tempo. A conduta e a infância. Quer dizer, para
que Cornier não fosse culpada, disseram-no um tipo de psiquiatras alienistas que:
“‘Você’”, Cornier, “‘ não era o que se tornou; é por isso que não se pode condenar
você’”. Já a Charles, outros psiquiatras disseram: “‘ Se não se pode condenar
você’”, Jouy, é somente “‘porque você já era, em criança, o que é agora’”.
Percebe-se agora, a necessidade de uma inquirição e registo do percurso
biográfico de qualquer novo habitante de uma instituição. Na medida do possível,
o seu comportamento futuro estaria disponível. A infância – e não, a criança –
constitui-se, então, como rampa de lançamento para uma psiquiatria que agarra
também o adulto e, claro está, a sua conduta. Permite um aprofundamento do
saber psiquiátrico e uma intensificação do seu poder. Em tudo isto articula-se:
“prazer e sua economia”, instinto e sua mecânica”, “imbecilidade” com “inércia e
carências”. Dirá Foucault que esta última personagem, a de Charles Jouy, aloja as
figuras do “pequeno masturbador”, “ do grande monstro” e daquele “ que resiste a
todas as disciplinas” (2002: 388, 389). Uns factos passam a ser correlacionados
com outros e, do ponto de vista de uma representação que se pretende verdadeira,
Questões teóricas e articulações práticas
112
creio que haveria toda a conveniência desta difusão, deste esfumado de contornos
nos comportamentos e perigos que poderia o anormal trazer consigo. Qualquer
intervenção a realizar no corpo do anormal será no sentido mais de uma ortopedia
do que no sentido de uma cura. Não é curar o anormal que se pretende – a sua
imagem é necessária – mas levá-lo a corrigir a conduta.
Assiste-se a uma trama que engloba um considerável número de actores,
todos eles empenhados não só em restabelecer um estado regular, que se diria
normal do indivíduo, como a lembrar continuamente – por comparação à conduta
desregulada –, a norma como regra de conduta. Neste espaço, o arquivo do saber
ia crescendo, as técnicas de intervenção afinavam-se. A seta da educação deveria
ser dirigida em direcção à alma do aluno. Este rumo desenhava-se já no século
XIX na Casa Pia de Lisboa. Num Regulamento disciplinar de 1890, é possível ler
que as transgressões disciplinares dos educandos seriam punidas com os seguintes
castigos: “1º admoestação; 2º repreensão; 3º isolamento; 4º tarefa; 5º privação do
recreio; 6º detenção; 7º reclusão; 8º colégio de correcção; 9º expulsão”
(Regulamento disciplinar de 1890: 5). O que sobressai destas penas é o seu
carácter produtivo no sentido do arrependimento e consagração do aluno a uma
análise de si mesmo e do seu comportamento. No isolamento, na censura, no
trabalho, o educando estaria entregue a si mesmo, numa espécie de “‘ascese’, um
exercício de si, no pensamento” (Foucault, 1994b: 15). Nas práticas cristãs, o
movimento ascético pressupõe uma renúncia do sujeito a si mesmo como forma
de aceder a um nível de realidade superior. Renúncia que se torna produtiva num
contexto escolar em que se pretende uma transformação do sujeito.
É, portanto, na utilização de técnicas muito próximas de um ambiente
pastoral cristão, que a escola moderna fixa a punição dos alunos. Todavia, não é
somente ao nível da punição que um poder de tipo pastoral opera. É sobretudo ao
nível da subjectivação dos escolares, e ao nível do desejo. Tentarei tornar evidente
esta transferência da figura do padre enquanto orientador de condutas, para a
figura do professor ainda que, num mesmo local as duas figuras possam e devam,
se possível, coexistir. Nota Jorge Ramos do Ó:
“O poder pastoral remete para a figura idealizada do pastor que é visto [...]
como um ser distinto e superior, que quase se diviniza”. Se o professor de
alunos surdos não tivesse atingido esta altitude, teria sido improvável que os
alunos participassem do mimetismo da língua, de uma prática de emulação
mesmo sem ouvir o referente. O segredo estava na própria escola que, “mais
A construção do aluno surdo como sujeito ético…
113
do que cultivar práticas repressivas com o propósito de inculcar o medo e a
obediência passiva, procurou, e seguramente a partir daquela remota matriz
cristã, formar a personalidade do aluno através de formas de identificação
positivas e de um trabalho interior” (2003: 105).
Esta formação da personalidade, quer dizer, os processos de subjectivação,
tinham origem em técnicas actuantes no tecido escolar. Analisaremos aqui a
prática da inquirição ao aluno e da confissão enquanto técnicas que contribuiriam
para aquela ascese que referimos. Parece-me que a inquirição ao aluno surdo,
versando as suas práticas quotidianas, incutindo-lhe simultaneamente princípios
morais, está próxima do acto confessional e muito contribui para a subjectivação
da criança. Quando me refiro a subjectivação, tenho em mente os processos,
constituídos por técnicas e por práticas que permitem ao sujeito fabricar a sua
identidade numa relação consigo mesmo: relação de conhecimento, de controlo e
de cuidado.
A relação do mestre com o aluno é quase inseparável da ideia judaico-
cristã do pastor que orienta o seu rebanho, estando pronto para partir em busca de
uma das ovelhas perdidas. A relação entre o pastor e cada um dos elementos de
que é guia, deveria ser individual e total. É pertinente um conhecimento de cada
um, rico em pormenores e retrato objectivo do que mais interior lhe vai na alma.
O cristianismo é não só uma religião de salvação, como, também de confissão.
Esta interferência na alma é “acesso” directo “ao âmago da integridade de uma
criança ou de um adulto, tão assustadora quanto instigante. Um Mestre invade e
pode devastar de modo a purificar e a reconstruir” (Steiner, 2005: 25).
O acto confessional, sem dúvida, estreita a relação do mestre ou do padre,
com o aluno ou o penitente, mas, igualmente, do indivíduo consigo mesmo. Como
bem nos mostra Michel Foucault , a cultura de si1, implicava fórmulas de
interioridade diversas.
“Pode-se, à noite ou de manhã, reservar alguns momentos ao recolhimento,
1 No terceiro volume da História da Sexualidade Foucault mostra-nos que o cuidado que o indivíduo deverá ter com a sua
própria conduta, “em relação aos prazeres, insistência aos efeitos do seu abuso para o corpo e a alma”, entre outros pormenores ditados por uma moral cristã, encontram ecos remotos, embora com atitudes diferentes, na cultura grega e greco-latina (1994: 49). O próprio “aumento da austeridade sexual na reflexão moral não assume a forma de um fechamento do código que define os actos proibidos, mas de uma intensificação da relação a si através da qual cada um se constitui como sujeito dos seus actos”. Ora, este individualismo, este cuidado de si, configura-se como uma arte da existência. Este conceito “circula entre numerosas doutrinas diferentes; assumiu também a forma de uma atitude, de uma maneira de se comportar, impregnou os modos de viver; desenvolveu-se em processos, em práticas e receitas que foram desenvolvidas, aperfeiçoadas; constituiu, assim, uma prática social que deu lugar a relações interindividuais, a trocas e comunicações e por vezes mesmo a instituições; originou, finalmente, um certo modo de conhecimento e a elaboração de um saber” (1994:51, 55).
Questões teóricas e articulações práticas
114
ao exame daquilo que se tem de fazer, à memorização de alguns princípios
úteis, ao exame do dia que passou”. Estes, seriam os “princípios essenciais de
uma conduta racional”. Neste quadro, desempenharia, igualmente, papel de
destaque, “as conversas com o confidente, com os amigos, com o guia ou
director”; a isto acrescenta-se a correspondência na qual se expõe o estado da
alma, se solicitam conselhos ou se dão conselhos a quem necessita deles – o
que de resto constitui um exercício benéfico mesmo para aquele que se
chama perceptor, pois ele reactualiza-os desse modo para ele próprio: em
torno do cuidado consigo, desenvolveu-se toda uma actividade da palavra e
da escrita, em que estão ligados o trabalho de si para consigo e a
comunicação com o outro” (1994: 62, 63).
O serviço da alma que aqui se expõe, mimetizou-se na escola. Cada aluno
deveria desenvolver uma relação consigo, baseada numa condução da sua
conduta, regrada, isto é, regulada e autoregulada. O papel da confissão numa
instituição de alunos surdos, funcionaria como um controlo administrativo, no
qual se surpreenderia e avaliaria o desequilíbrio e o comportamento e se
impregnaria na pele do educando, a matriz a seguir. No segundo volume da sua
História da Sexualidade, Foucault falava em seguir o fio condutor que permitia
compreender a transformação do sujeito em sujeito ético, quer dizer, perceber de
que forma é que o sujeito se construía enquanto sujeito a partir de preocupações
morais e não de interdições objectivas. Este projecto levou-o à cultura grega e
greco-latina e a um conjunto de práticas que nessas sociedades assumiram grande
importância: as artes da existência. Foucault haveria de lhes chamar techniques de
soi. As técnicas do eu, embora com o cristianismo modifiquem substancialmente
o seu princípio, são aquilo que originariamente possibilita esta relação do sujeito
consigo mesmo. Estas técnicas, escrevia Foucault são “ práticas reflectidas e
voluntárias através das quais os homens, não apenas se fixam regras de conduta,
mas também procuram transformar-se eles próprios, modificar-se no seu ser
singular e fazer da sua vida uma obra que integra valores estéticos e responde a
certos critérios de estilo” (1994 b: 17). A dimensão na paisagem escolar não será
esta, mas parece inquestionável que será pelos modelos de identificação que o
sujeito consegue fixar a sua própria identidade. Num determinado espaço e num
determinado tempo há um conjunto disponível de identidades que servem ao
sujeito como ancoradouro de construção da sua própria identidade. No caso das
crianças surdas, circulava uma imagem de deficiência e um conjunto de
procedimentos e prescrições que asseguravam o fio da governamentalidade. Eram
A construção do aluno surdo como sujeito ético…
115
plantados dispositivos na alma do aluno, de tal forma que, ele próprio se
reconhecesse como sujeito em processo de transformação para um certo fim. A
finalidade última resultaria na prescindibilidade de qualquer vigilância ou governo
directo. O governo dos alunos surdos seria bem sucedido se, cada um, sentindo-se
governado, agisse como governando-se a si próprio, desejando aproximar-se de
um mundo de inclusão. A necessidade de ser governado, não colide com a
construção da subjectividade do aluno. Aliás, a existência de um orientador de
condutas, facilita a forma de relacionamento consigo.
Neste sentido, a figura do padre e do professor, desempenha na educação
do aluno surdo um papel de modelo a seguir, para uma autorealização do
educando. Creio que podemos observar nesta tentativa de passar a moral e a
prática religiosa, um dos elementos impulsionadores da educação dos surdos por
um método oral puro. São incontornáveis e elucidativas as palavras de Skliar:
“Para a maioria dos ouvintes a surdez representa uma perda da comunicação,
um protótipo de autoexclusão, de solidão, de silêncio, obscuridade e
isolamento. Em nome dessas representações, construídas quase sempre a
partir da religiosidade, foram e continuam sendo praticadas as mais
inconcebíveis formas de controle: a violenta obsessão por fazê-los falar”
(2003: 162).
Também Georges Steiner nos pode elucidar quando se refere à oralidade, à
palavra falada, como sendo, historicamente, parte integrante do acto de ensinar:
“O Mestre fala ao discípulo. [...] O ideal de verdade vivida é um ideal de
oralidade, de diálogo frontal” (Steiner, 2005: 18).
Passar a palavra ao surdo implicava uma preparação que poderia durar até
oito anos, havendo o risco, de nunca o aluno surdo adquirir a competência da fala
oral. Nesta situação, práticas como a da confissão ficariam comprometidas,
impossibilitadas e neutralizadas todas as tácticas que pretendiam chegar à alma do
aluno. Todavia, era do domínio dos ouvintes, preverem tal situação e por isso, um
Guia de confissão para alunos surdos adiantava que, caso alguns dos alunos
saíssem do “Colégio antes de completarem a sua educação”, ou, se ficassem
“sempre com uma linguagem imperfeita”, facilitar-se-ia “a confissão dos mesmos
com o questionário que se segue e a cujas perguntas responderá o penitente ao
Questões teóricas e articulações práticas
116
indicar-lhas o confessor”(Guia para a confissão dos alunos surdos, s/d: 3).
Momentos antes da confissão, o penitente/aluno, diria a Confissão Geral.
Antes mesmo de confessar qualquer má conduta, da sua boca sairiam as palavras
em que se reconhecia como pecador:
“Eu, pecador, me confesso a Deus Todo Poderoso e a Vós, Padre, que pequei
por minha culpa, por minha máxima culpa” ”(Guia para a confissão dos
alunos surdos, s/d: 4).
Seguir-se-ia o interrogatório, composto por cinquenta perguntas. Entre
elas, o padre queria saber:
“Foste desobediente a teus pais” e “professores”?;”Ficas com ira quando eles
te castigam”?; “Desejaste alguma vez que eles morressem”?; “Ficaste
contente com o mal dos outros?”; “Ensinaste outros a pecar”?; “Tens visto
coisas desonestas”? “ (Guia para a confissão dos alunos surdos, s/d: 5).
Michel Foucault fala de um aumento da curiosidade do questionário no
acto confessional, provocado pela própria “intensidade da confissão”. Diz o autor
que, “o prazer descoberto reflui para o poder que lhe põe cerco”. “A insistência
das perguntas singulariza naquele que tem de responder, os prazeres que sente; o
olhar fixa-os, a atenção isola-os e anima-os” (1994a: 48).
“Tens pensado coisas desonestas”?; “Tens falado em coisas desonestas?
Sozinho ou com os outros”? “Tiveste soberba, avareza, ira, gula, inveja e
preguiça”?; “Perdeste o tempo na escola ou na oficina”?; “Tens lido livros ou
jornais maus”?; “Falas ou jogas com imodéstia com pessoas de diferente
sexo”?; “Tens pena de teres ofendido a Deus com teus pecados”?; “Tens
propósito de não pecar mais”? (Guia para a confissão dos alunos surdos, s/d:
5 - 7).
Nestas questões, “o poder funciona como um mecanismo de apelo”, a
exigir uma revelação total, a fazer tudo passar “pelo moinho sem fim da palavra”
(Foucault, 1994 a: 25, 48). Quanto maior é a exposição do avesso do indivíduo,
maior a vontade de tudo saber. Para o indivíduo, quanto mais é incitado a produzir
um discurso de verdade sobre si, mais efeitos se produzirão nele próprio. Gostaria
agora de analisar um outro aspecto ao nível do conteúdo das perguntas. Da sua
A construção do aluno surdo como sujeito ético…
117
leitura fica-nos a impressão de que se fala sempre de uma moral, de bem e de mal,
de instintos, de impulsos, de comportamentos eventualmente desregrados, fala-se
também, de sexualidade mas, demarcando regiões de silêncio. Disse, silêncio e
não, repressão. Todavia, essa região de silêncio é um “procedimento de poder”
que implica “a revelação forçada” (Foucault, 2002: 213). Afinal, a técnica que
temos diante de nós é a da confissão. Esta prática de revelação seria
complementar dos discursos sobre sexualidade que as ciências psi passam a
produzir, de um ponto de vista científico, dir-se-ia. O que me interessa considerar,
sobretudo, é que a partir pelo menos do século XIII, segundo Foucault, se agrega
ao acto confessional o vínculo da obrigatoriedade da revelação. Logo, “o que vai
garantir a exaustividade” do que é dito, é o próprio padre, a revelação será
“policiada pelo poder do padre”. O padre adquire o poder de absolver o penitente,
quer dizer, passa a ter o “direito de exame”. Daí, o “formidável desenvolvimento
da pastoral, isto é, dessa técnica que é proposta ao padre para o governo das
almas” (Foucault, 2002: 221, 222, 224). Progressivamente o padre haveria de
desembocar numa espécie de director de consciência. Progressivamente será o
corpo e o prazer o assunto da confissão. No questionário apresentado, o aluno é
levado a reflectir sobre a sua própria relação consigo: se foi desonesto, se desejou
o mal, se viu ou disse coisas desonestas, se as fez, se pecou, se pretende voltar a
pecar. Quais as formas do pecado, da imoralidade, da conduta desregrada, da falta
de domínio sobre si? Foucault dá a resposta:
“A forma primeira [...] é ter tido contacto consigo mesmo: é ter se tocado, é a
masturbação. Em segundo lugar, depois do toque, a vista. É necessário
analisar os olhares: ‘Você olhou para objectos desonestos? Que objectos?
Com que fim?’”(2002: 237, 238).
A estes pecados se juntariam os dos gestos e das palavras. O problema
havia de se transferir para o desejo e o prazer. A vontade do corpo. E não posso
deixar de sugerir o quanto estes aspectos adquiriam importância na educação de
um aluno onde o eixo voluntário-involuntário que acima referimos, por uma
ausência da audição, poderia descambar para comportamentos afastados dos
padrões previstos e adequados. Todavia, se tal acontecesse, lá estariam as ciências
médicas para o explicar e, uma vez mais fazer passar a sexualidade dos escolares
pelo produtivo moinho sem fim da palavra.
Ao considerar a educação religiosa dos alunos surdos numa instituição
Questões teóricas e articulações práticas
118
total, torna-se necessário analisar os discursos não só em torno da alma, mas em
volta do corpo. Seria o bastante pensar que, os princípios da religião mantêm uma
ligação entre alma e corpo, de tal modo que, um e outro, terão de se adequar a
comportamentos regulados para detectarmos que, quando dirigidos a indivíduos
surdos, estes discursos dedicavam especial atenção aos esquemas físicos e às
movimentações do sujeito no espaço. De resto, não poderia acontecer de outra
forma, uma vez que, o aluno surdo, embora educado pelo método oral, era capaz
de falar mas não era capaz de ouvir. O dispositivo montado em volta da
inculcação de princípios religiosos no aluno surdo, tomava em conta a
especificidade da surdez no que respeita à palavra do sacerdote, mas a educação
pelo método oral puro, garantia que os alunos estavam “em condições de se
poderem confessar verbalmente com qualquer sacerdote” (Guia para a confissão
dos alunos surdos, s/d: 3). Ficaria, portanto, a manifestação religiosa do aluno
surdo reduzida a uma imitação de gestos e palavras dos ouvintes.
A arquitectura do dispositivo de confissão obedecia a regras
incontornáveis para que a palavra falada chegasse ao olhar do educando. O
aposento de revelação deveria ser “reservado” e “muito bem iluminado”. Longe
do móvel dividido em que de um lado estava o padre, do outro o penitente,
propunha-se um espaço de visibilidade sem cortina e sem rede. Todavia, o ritual
da confissão teria de manter o carácter secreto de revelação. O sacerdote
colocava-se “ voltado de frente para a luz” e formulava “ todas as perguntas em
termos breves”, não se esquecendo de “ pronunciar todas as palavras clara e
distintamente”. O surdo, fora já do seu estado selvagem, lia no “ movimento e
posição dos lábios e demais orgãos vocais” o que lhe dizia o confessor (Guia para
a confissão dos alunos surdos, s/d: 3,4).
Do acto confessional extraem-se dois aspectos positivos. Por um lado, o
aluno era inquirido e levado a debitar as suas acções, os seus pensamentos, a sua
intimidade. Deveria tudo dizer e nada ocultar. Daqui resultava um saber sobre a
criança surda, deixando-a em estado de dependência face ao adulto que a ouvia.
Esta desigualdade de exposição era necessária para que aquele que revelava as
suas faltas, se sentisse arrependido, mas liberto por as partilhar. Era mais uma
forma de ser conduzido por alguém que propunha um trilho definido.
“Um sacerdote votado de alma e coração aos princípios da religião, e cujo
único afã se traduz em querer formar os corações dos seus educandos; cuja
A construção do aluno surdo como sujeito ético…
119
única glória consiste em encaminhá-los para o bem, guiando-os pelo caminho
da verdade [...]. Tal é, cumpre aqui dizê-lo, o digno ministro da nossa santa
religião, ao qual está confiado o importantíssimo cargo de capelão e director
espiritual dos alunos deste pio e normal estabelecimento” (Raposo, 1869: 14).
Retomo neste ponto a questão da educação da criança surda e o discurso
humanista que, vendo na surdez uma anormalidade que exclui, pretende dar
através da educação, a possibilidade a estes sujeitos de se constituírem de acordo
com os princípios de liberdade e autonomia modernos. O alvo essencial a atingir
era a alma do educando, pois, o surdo não poderia nunca sair de um estado
selvagem se não incorporasse em si princípios morais que lhe ditassem uma
conduta adequada. Concorrem para esta inscrição na alma, os ensinamentos
escolares e as actividades propostas pelo professor, o controlo do corpo pelos
exercícios que o adestram e o disciplinam no comportamento e na incorporação de
uma língua oral e, sem dúvida que, o saber construído acerca de cada sujeito,
permite ao mestre exercer um poder semelhante ao do padre que conduz os seus
crentes. É, aliás, a relação de saber que permite tecer o quotidiano com práticas
elaboradas, legitimadoras dos discursos daqueles que falam em nome do surdo,
traçando a sua imagem de excluído. Mas estes apresentavam também, – e essa era
a sua função –, as terapêuticas adequadas que conduziriam a criança à inclusão no
mundo ouvinte pelo domínio da fala oral, da leitura labial e da aprendizagem de
um ofício. As implicações são as de sempre. O Outro não era tratado na sua
alteridade outra, mas inserido em contextos pensados para si, inventando-o como
especial.
Julgo que a escola enquanto dispositivo de normalização da criança surda,
é local de múltiplas relações e se a prática da confissão constituía um capítulo
essencial no processo de subjectivação do aluno, a verdade é que, os processos de
descoberta da interioridade e intimidade da criança, eram treinados noutros
espaços que não os do confessionário.
“Diz ao / à X que um dos meninos está deitado e que o outro está a tirar o seu
fato”. “No nº 236, o primeiro menino não se despiu antes de se deitar?”. “O
que vai fazer o segundo menino quando estiver despido?”. “Diz ao /à X que
todas as noites subis ao dormitório, - que vos despis, - que vos deitais, - que
adormeceis, - que dormis toda a noite, - que algumas vezes sonhais quando
dormis” (Trindade, 1906: 94, 95).
Questões teóricas e articulações práticas
120
Vemos como a criança em geral, o surdo em particular, têm de ser trazidos
até uma área de governamentalidade. Se o surdo estava impedido de ouvir e
comunicar pela palavra com os ouvintes, estava privado de uma moral sobre a
qual deveria conduzir a sua conduta. Esta moral, a escola lhe proporcionaria.
Moral entendida como “conjunto de valores e de regras de acção” que seriam
propostos aos educandos. A finalidade seria também que o indivíduo assumisse
um comportamento moral, em suma, um comportamento consonante com “as
regras e os valores que lhe” eram “propostos”. A experiência de construção da
identidade surda dependia, como aqui se tem dito, dos processos e dos resultados
derivados de uma condução da própria conduta “em referência a um sistema
prescritivo que é explícita ou implicitamente” sugerido ao aluno surdo (Foucault,
1994 b: 32, 33).
A escola produzia discursos de representação da criança surda válidos
socialmente, formando os objectos surdo e surdez enquanto anormalidades pela
desposessão de um dos sentidos. No ano de 1955, Pedro de Campos Tavares,
provedor da Casa Pia na década de cinquenta, traçava o retrato da criança surda:
“Estabelecerá certamente alguma analogia através dos sentidos de que
dispõe, mas nunca poderá atingir uma noção consciente ligada aos reflexos
cerebrais das impressões sonoras. Está sem dúvida muito longe do cego que
pela linguagem das outras pessoas pode apreender muitas das coisas que não
vê ou do paralítico que observa e compreende os movimentos que não pode
realizar. […] Estas crianças encontram-se, como se vê, em condições
inferiores nos atributos que distinguem o homem dos restantes seres da escala
animal e o condicionam como um ser dotado de responsabilidade e de vida
espiritual. […] A criança surda é um ser racional, mas não pode pôr
integralmente em acção os atributos de ser racional. Tem inteligência mas
esta encontra-se apenas em estado potencial. […] O ideal e o sonho que
fazem parte da felicidade humana não pode realizá-los e, como não pode
exprimir as suas ideias nem aperceber as dos outros dentro das virtualidades
da palavra, não pode ter confidentes nem amigos com que mutuamente se
abra. […] A palavra que no seu conteúdo e na sua modulação conforta, anima
e orienta, que enche e ilumina a vida, dá paz e alegria ao coração e é um
fundamento de felicidade, é um bem que não existe para a criança surda. Ela
é um ser à parte na comunidade, condenado a viver sombriamente isolado no
lar, na oficina e na vida social. A consciência, o valor dos actos morais, as
exigências do dever são mais aspectos em que se verificam diminuições de
personalidade na criança surda e que vêm reflectir-se na sua integração na
vida social. […] Será pois por mais este aspecto um inadaptado, não
A construção do aluno surdo como sujeito ético…
121
atingindo por falta de sentido de responsabilidade moral, as normas morais
que regulam a vida individual e social” (1955: 9-12).
Tornava-se premente confiscar este grupo até uma paisagem onde fosse
possível exercer uma arte de governo. A escola era essa paisagem. O internato
cumpria esse lugar de forma ainda mais eficaz. A regulação total dos
comportamentos e das actividades exercia-se através de técnicas disciplinadoras
como, também, por outros veículos de transmissão de princípios morais, como a
confissão ou o manual escolar. Verifica-se que a confissão ocupa um lugar de
destaque numa vida de internato pois, para além da vigilância constante e
contínua, o interno é ainda colocado em situação de exame de consciência e
revelação dos seus actos. No mundo do internato a confissão é como que uma
máquina de detecção da mentira, portanto, uma máquina da verdade. O aluno terá
de revelar, perante a possibilidade permanente dos seus actos terem sido vigiados
por um dos membros do colectivo em que habita.
Mais uma vez, a especificidade da surdez é considerada de modo a que o
acto confessional se possa realizar cumprindo com eficácia os seus objectivos.
Vale a pena determo-nos sobre o Guia para a confissão dos surdos educados no
Colégio da Imaculada Conceição, tendo presente que a secção das alunas surdas
da Casa Pia, funcionava neste Colégio e, por isso, este Guia também a elas se
dirige. Aliás, suponho que os princípios seguidos nas instalações de Belém, não
divergiriam muito dos que aqui são apresentados.
A escola era o espaço ideal para a produção de discursos e técnicas de
disciplinamento do eu surdo, através de modos de subjectivação que conduziam a
criança surda de encontro aos ideais da instituição ouvinte. O abandono de um
estado selvagem estaria dependente da localização do surdo a cargo de uma
instituição com o poder de o transformar. O surdo deixaria, então, de ser um outro
estranho com o qual se estava impedido de comunicar e, portanto, do qual não se
conhecia nem podia prever o comportamento, para passar a ser um outro marcado
pela deficiência. Novamente faz sentido chamar o conceito de hospitalidade de
Derrida, para verificar que o processo de acolhimento e educação da criança surda
aconteciam de forma condicional. O fundamento na educação deste grupo,
implicava fornecer-se um referente para a construção da identidade do aluno. A
partir desse referente, era suposto que o educando estabelecesse uma relação de
conformidade entre a sua aspiração e auto-realização e, as expectativas que os
Questões teóricas e articulações práticas
122
outros – professores, família e sociedade – depositavam em si.
É-me totalmente impossível arranjar elo de articulação ao próximo
capítulo que não seja um discurso revelador do que até aqui se tem dito: do poder
pastoral, da condução da conduta, das técnicas de si, do saber/poder, enfim, do
governo dos alunos surdos na Casa Pia de Lisboa. Leia-se o que teve a dizer José
da Cruz Filipe:
“Conhecer o aluno, viver a sua própria vida, sentir-lhe o íntimo, seguir-lhe os
pensamentos e concretizar-lhe a expressão da própria vontade, é a arte que
mais sai do coração do educador de deficientes, para amparar um resultado
que impressiona pela felicidade que causa. Um dos valores maiores é a
confiança. Ter confiança e saber criá-la no espírito dos alunos são dos
melhores meios para alcançar êxito. Além disso, o papel da afeição, do
sentimento, do carinho, dos cuidados e da preocupação constante, deve viver
permanentemente na actuação do educador. Em todo o tratamento é
utilíssimo conquistar a amizade do aluno. O respeito e a disciplina no
trabalho, não se devem impor nunca a estas crianças deficientes, antes um
ambiente carinhoso favorece extraordinariamente a nossa acção. […] E,
quando tenha de contrariar e até que constranger determinado trabalho, terá
que usar de habilidade e paciência necessária, a fim de tudo conseguir, sem
que o seu doente se aperceba de que a sua própria vontade está a ser
desviada, a fim de se aproveitar o seu esforço com mais utilidade” (1942:
25).
Julgo que o que se escreveu neste capítulo terá sintetizado uma das
grandes ideias desta escrita, que é a que reúne as tecnologias do eu, às práticas a
que o aluno é exposto e que incitam à consciencialização da sua relação consigo
enquanto sujeito. A confissão, tal como outras técnicas que lhe são similares,
incorporam no sujeito a necessidade de esquemas de autoinspecção, de auto-
regulação que o ajudam a decifrar-se e a constituir-se como um aluno com uma
identidade. E será de disciplina que agora se falará. Melhor, de técnicas
disciplinares de carácter cada vez menos coercivo.
O corpo e a disciplina na hospedagem da língua
123
O CORPO E A DISCIPLINA NA HOSPEDAGEM DA LÍNGUA
Exercício individual de articulação da fala
(Amaral, 1954)
Na imagem um aluno surdo aprende o movimento, o vibrar, o respirar da palavra
falada oralmente. Aprende-se a falar como se aprende uma coreografia. Como se
aprende uma postura corporal. É sempre disso que a escola fala: aprender, fabricar,
corrigir, tornar apto. Diz Michel Foucault que a partir da segunda metade do século
XVIII, “o soldado tornou-se algo que se fabrica”, assim como uma peça de uma
máquina mais ampla: “corrigiram-se aos poucos as posturas”, “lentamente uma
coacção calculada percorre cada parte do corpo” (1994: 117). É do corpo que se
falará neste capítulo, do corpo que se transforma, que se prepara, que se torna apto
para alojar uma língua, mas também, do corpo que vive numa instituição, sujeito,
portanto, a regras muito específicas e a uma circulação limitada no espaço. Será
através das disciplinas que o poder da norma se estabelece. Todavia, como nos será
dado a apreciar nos discursos de pedagogos e educadores, o trabalho a desenvolver
tomará a direcção da alma do aluno. Começaremos pelos regulamentos que fixavam
os indivíduos a espaços, em tempos determinados. “A coordenação através do tempo
é a base do controlo do espaço” e dos seus habitantes (Giddens, 1996: 13). Para essas
duas estruturas eram delineadas actividades, recombinando espaço, tempo e
programando a utilização deste par.
Desde os alvores do século XIX que, para além da instrução do ler e do
escrever, as meninas orfãs da Casa Pia, tinham no horário os lavores com as “mestras
Questões teóricas e articulações práticas
124
de costura e de prendas próprias do seu sexo”: “coser”, “recortar”, “fazer meia”,
“fiar”, “casear”, “coser obra de cor”, “cortar camisas” e “fazer botões”. Os rapazes
iam para as oficinas “aprender ofícios, assim que chegava a idade própria”. Os ofícios
eram de sapateiro, de alfaiate, de carpinteiro, de latoeiro de folha branca, de serrador,
de tecelão, de cordoeiro, de esparteiro e de tipógrafo (Silva, 1896: 50, 64, 111).
Num Relatório enviado em 1837 ao Governo, Pinto Basto, então
administrador da Casa Pia, dava conta dos desenvolvimentos e melhoramentos que
esta instituição estava a sofrer sob a sua mão. E a verdade é que, segundo as regras,
todos os alunos que tivessem saúde, deveriam “empregar-se em alguma coisa”, sem
esquecer a determinância da idade e a “capacidade de cada um”. Tratava-se, é
evidente, “de acostumar” os internos “ao trabalho e à subordinação”, para evitar,
dizia-o com a máxima clareza o administrador, que os alunos gastassem “o tempo em
ociosidade e travessuras” (Silva, 1896: 110). Na época de Pinto Basto eram 986 os
internos da instituição, entre alunos, orfãos, porcionistas de beneficência e surdos-
mudos e cegos. Estes últimos, agrupados numa mesma categoria, somavam-se em 25,
sendo 18 do sexo masculino e 7 do feminino.
As horas reservadas às oficinas estavam acuradamente esboçadas, o que de
resto, acontecia com qualquer outra actividade prevista ao longo do dia do educando.
Fundamentalmente, os dias estavam repartidos em dois e a programação das
actividades obedecia a uma ordenação que tinha em vista colher uma rentabilidade
máxima. O corpo do aluno adquiria significação nas relações internas da instituição.
Era, claro, “objecto e alvo de poder”, era o corpo que se pretendia manipular, treinar,
que se queria que fosse obediente, hábil, útil, que respondesse ao seu chamamento e a
ritmos temporais prescritos (Foucault, 1994: 117).
Num regulamento do mesmo ano de 1837, Pinto Basto dirigia às meninas
orfãs do Recolhimento de Santa Isabel regras da vida no internato. Este Regulamento,
mandado observar 22 anos após a sua criação, pelo então provedor da Casa Pia José
Maria Eugénio de Almeida, dizia assim:
“As orfãs desde o primeiro de Abril até trinta de Setembro, se levantarão às seis
horas da manhã, e desde o primeiro de Outubro até trinta e um de Março às sete
horas. Às seis e meia no verão, e às sete no inverno, terão varrido, e arrumado o
Colégio, e cada uma a sua cama feita. A esta hora serão acompanhadas ao
O corpo e a disciplina na hospedagem da língua
125
refeitório pelas suas Regentes, as quais ali lhes assistirão ao almoço, que não
deve exceder o tempo de meia hora; acabado este, irão acompanhadas pelas
mesmas Regentes para os seus destinos: devem repartir-se, metade para a aula de
primeiras letras, e a outra metade para as oficinas, umas de manhã e outras de
tarde, conforme o detalhe, que a Regente em chefe deverá fazer no princípio da
semana. Ao meio dia farão as Regentes reunir as orfãs, e as conduzirão ao
refeitório para o jantar, ao qual devem assistir. O jantar não deve durar mais de
meia hora, depois dele gozarão de recreio, e descanso até às duas horas, que,
reunidas as orfãs, serão conduzidas pelas suas Regentes aos seus destinos. [...]
Nos domingos e dias santos, depois do almoço, ouvirão a explicação da Doutrina
até à hora da Missa, à qual irão assistir acompanhadas pelas suas Regentes.
Depois da Missa ficarão em descanso até à hora do jantar, e depois deste gozarão
de recreio até à noite. Depois que anoitecer até à hora de ceia terão outra
explicação de Doutrina. As orfãs devem assistir à Missa, ao refeitório, aula, e a
todos os mais actos, com toda a decência e decoro, por cuja observância ficam
responsáveis as Regentes, e Mestras” (Regulamento para as orfãs e empregadas
do Recolhimento de Santa Isabel da Casa Pia em Belém, 1837: 10, 11).
Nos diferentes colégios que estavam sob a direcção da Casa Pia de Lisboa, os
regulamentos seriam semelhantes. O horário das actividades era desenhado por
ritmos de aulas, de recreios, de oficinas, de tarefas domésticas, de alimentação e de
doutrina. O encaixe de uns e de outros não era, de forma alguma, aleatório. A
articulação de uma actividade para outra obedecia a momentos de pausa e a
momentos intensos, respeitando já as estruturas e capacidades da criança. A
adequação balanceada dos ritmos temporais e dos esquemas físicos e arquitecturais a
eles associados, era um pormenor que convinha, cada vez mais, considerar. Se a
estrutura da organização das actividades, dos tempos e dos espaços, remete de
imediato para Regulamentos anteriores como os que Michel Foucault nos dá a ver na
sua História da Loucura, relativos a Salpêtrière, a verdade é que o caminho não
sendo de ruptura, é de uma individualização cada vez mais intensa. Não poderei
deixar de destacar e trazer até esta escrita, fragmentos desse Regulamento datado de
1662, para concluir que a modernidade se apropria, de facto, de modelos disponíveis
que continuariam a servir para os novos propósitos de governo. Dizia assim:
“‘ O toque de despertar será dado às 5 horas, os oficiais, as oficiais, os
domésticos e todos os pobres se levantarão, com excepção dos enfermos e das
Questões teóricas e articulações práticas
126
crianças com menos de 5 anos. [...] Às 8 horas, a oficial encarregada das obras na
casa fará soar o sino destinado a advertir que todos devem estar a postos para
começar o trabalho. As oficiais farão a seguir suas rondas, cuidando para que
todos os pobres estejam ocupados, não admitindo os inúteis’” (Foucault, 2003:
536, 537).
Atente-se no essencial da programação do tempo das meninas orfãs ou dos
oficiais, domésticos e pobres, e encontrar-se-á uma sincronização dos actores da
instituição no espaço. As alunas levantavam-se todas à mesma hora. Seguia-se a meia
hora de arrumações e igual tempo de almoço, sob o olhar vigilante das Regentes.
Eram então divididas em grupos, ao que parece, ainda não por idades. Uma das
classes dirigia-se ao ensino das letras e a outra aos ofícios. De tarde, visitavam umas,
o espaço onde haviam estado as outras. Ao jantar, novamente sob o olhar das
superiores, e depois, meia hora de recreio antes de o dia terminar. Aquilo a que se
assiste é a uma disciplina ganha num colectivo institucional, completamente
regulador da vida pessoal e social da aluna interna. O tempo era trabalhado na sua
complexidade, ajustado, combinado de modo a extrair o máximo de produtividade
com uma economia de meios. Acontecia o mesmo em Salpêtrière. Esta era, sem
dúvida, a implantação de hábitos novos, de complexos de regras que criariam na
criança uma habituação de tal ordem que, havia de constituir um habitus, engrossando
o caudal de docilidade na aprendizagem e construção moral e física dos educandos.
Desde já deverei explicar que quando me refiro a habitus tenho em mente a proposta
de Bourdieu que incorpora à palavra “capacidades criadoras, activas, inventivas”. “O
habitus, a hexis, indica a disposição incorporada, quase postural”, de um “agente em
acção” (1989: 61). Quando, aliás, menciono as práticas que acontecem na arena
educativa, faço-o como relações entre actores nas quais, independentemente da sua
localização no campo, surgem sempre movimentos. A eficiência do detalhe do tempo,
da prescrição cirúrgica das tarefas, resulta de um pensamento calculado que visa,
precisamente, incorporar no sujeito, através da sua própria acção criativa, – pois é de
transformação interior do indivíduo rumo a um desejo que deverá ser seu, mas,
igualmente o da instituição –, funcionamentos produtivos.
O horário, herança das comunidades monásticas, bem cedo foi apropriado
pelos espaços onde se pretendia governar alguém. A escola é um espaço feito de
O corpo e a disciplina na hospedagem da língua
127
tempos, de ritmos, de actividades regulares. Cada tarefa no seu tempo e a seu tempo.
O corpo do aluno, mas, também, o do mestre ajustaram-se aos imperativos temporais.
A ciência pedagógica, passando 1900, haveria de referir os vários tempos: escandi-los
de acordo com cada sujeito, adaptando o tempo de execução e de resposta à
actividade proposta ao aluno, mas, nesse mesmo movimento, bebendo na
performance do educando os elementos que permitiriam situá-lo face à
cronometragem mais comum nos escolares. “O corpo”, diz Michel Foucault,
“tornando-se alvo de novos mecanismos do poder, oferece-se a novas formas de
saber” (2004: 132).
Em 1825, no Instituto de surdos-mudos, ainda a funcionar exteriormente à
Casa Pia de Lisboa, a delineação do tempo do aluno não seria muito diferente. Os
ritmos escolares obedeciam já a cortes e a blocos mais fatigantes. Das oito e meia às
dez e das 11 à uma, os alunos surdos recebiam lições. Das dez às onze seria o
momento de pausa para o recreio. Após o almoço, a tarde, para os rapazes, era
destinada aos ofícios mecânicos e ao desenho, para as meninas, aos lavores com a
Regente.
Um século adiante, na Secção de surdos da Casa Pia, era assim que ditava o
regulamento:
“Os alunos levantam-se às 6 horas no verão e às 6 1/2 no inverno, almoçando
sempre às 7 1/2. Depois do almoço têm um pequeno recreio antes da entrada para
as aulas, que se faz às 8 1/2, onde permanecem até às 12 1/2, havendo meia hora
de intervalo para recreio. Às 13 1/4 depois da lavagem das mãos, vão jantar, indo
às 14 1/2 para as oficinas, uns, e para aulas especiais, outros. Ceiam às 19 e
deitam-se às 20” (Filipe, 1920: 21, 22).
O aluno era totalmente governado por um horário escolar quer nas obrigações
quer nos momentos de lazer. A acentuação das questões do tempo escolar não pode
ser inseparável do registo das diversas actividades ao longo do dia. Refiro-me aos
horários das actividades lectivas e oficinais e à tarefa obrigatória dos habitantes da
paisagem escolar em fixarem a sua memória futura através da escrita. Terei
oportunidade de mais à frente dar conta de planos de lições e do seu sumário pelo
mestre, os diários da classe, “onde os professores descrevem na generalidade os
assuntos de que trataram nas suas lições, bem como os métodos e processos que
Questões teóricas e articulações práticas
128
empregaram” (Simões, 1869: 15, 16). O mesmo tipo de registo se esperava do aluno,
num outro suporte, é certo, que, apesar de não fazer parte dos objectos de arquivo das
instituições escolares, subsistiu até à contemporaneidade, vinculando na aula o pupilo
ao trabalho. O caderno diário teria “efeitos sobre os alunos, visíveis não apenas no
plano de aprendizagem quanto essencialmente no da disciplina”. De efeitos,
evidentemente, é que a escola fala. De “‘ordem e método’”, de “um excelente meio
de ocupação permanente” (Ó, 2003: 329).
A Casa Pia entendeu bem cedo esta mensagem. Dizia em 1869, Simões
Raposo:
“Começou-se por estabelecer horários. Organizaram-se depois umas instruções
que definem não só as obrigações dos professores, no exercício de suas funções,
mas também a disciplina e ordem dos exercícios graduais, que em cada matéria
são obrigados a ensinar. Uma outra parte das instruções consta das recompensas e
punições que devem ser aplicadas aos alunos, e dos casos em que, recompensas
ou prémios, podem ter lugar”. Simões Raposo sonhava com o dia em que os
professores da Casa Pia tivessem na aula todo o material necessário e adaptado às
exigências de cada aluno: “colecções de problemas graduais em extensão e
intensidade”, “colecções de assuntos próprios a desenvolver a inteligência, o
senso prático das crianças, e a despertar-lhes no coração os sentimentos da honra,
do trabalho, da economia, da justiça e da caridade”. “Assuntos tirados da vida
usual, dos seus próprios brinquedos, das suas triviais ocupações e finalmente de
tudo o que possa ser aplicado à vida real” (1869: 15).
No enunciado deste actor da Casa Pia reflecte-se a noção de arte de governar.
Estão presentes as tecnologias disciplinares, os horários, o duplo sistema gratificação-
punição, mas, igualmente, a consciência de que o aluno teria de ser governado sem o
sentir. Não que não fosse dirigido, mas que o fosse de forma especial. Adaptada ao
seu ser, às suas aptidões e competências. Todo o momento se revelava oportuno para
transmitir lições morais, para despertar bons sentimentos e treinar o aluno no trabalho
e disciplina. Sempre que possível, também, convergir nos seus interesses: antecipação
do que nos dirá Dewey, Claparède ou outro pedagogo.
Gostaria de assinalar a acentuação de técnicas persuasivas, apelando sempre
que possível à interioridade do aluno, com vista a uma progressiva autodisciplina e
autoregulação do corpo e da conduta. O duplo sistema gratificação-punição dividia os
O corpo e a disciplina na hospedagem da língua
129
educadores. Se por um lado, faria o aluno participar na dinâmica dos objectivos que
para si a instituição traçava, por outro, não passava de uma motivação exterior. A
ciência ensinaria o professor “a manejar as actividades psíquicas” do aluno, “dando-
lhes o máximo rendimento útil na dinâmica social” (Rodrigues & Mártires, 1912:6).
O discurso que apresento antecipava a questão da diferença e individualidade de cada
aluno e, simultaneamente, uma economia governativa:
“Preferimos mil vezes desenvolver nos alunos o sentimento de que todos eles têm
aptidões embora muito diversas, e que é nessa diversidade que está o melhor
penhor, a mais segura garantia da felicidade e de bem-estar colectivos. Sobretudo
preferimos radicar bem no espírito dos alunos a ideia de que todas as aptidões são
iguais em dignidade e pretendemos fixar essa ideia de tal modo que passe do
estado consciente ao estado subconsciente, isto é, que se converta em sentimento”
(Rodrigues & Mártires, 1912: 9, 10).
Era no interior desta dinâmica rumo à interioridade do aluno que o professor
se situava como uma espécie de mediador. Auxiliado pela psicologia, cabia-lhe a ele
descobrir as aptidões dos escolares. Desejos e motivações deveriam formar um só
bolbo na alma do aluno. A questão do interesse assumia-se como fundamental e este
estaria conectado à disciplina. E não mais o trabalho assumiria uma imagem de
esforço. Em Leçons sur les prisons, o autor, citado por Michel Foucault, fazia
referência ao trabalho como transformador da conduta do detento: “ ‘torna-se pouco a
pouco pela força de um hábito inicialmente puramente exterior, mas logo
transformado em segunda natureza, tão familiarizado com o trabalho e os gozos dele
decorrentes que, por pouco que uma instrução sábia tenha aberto sua alma ao
arrependimento, ele poderá ser exposto com mais confiança às tentações que lhe são
trazidas pela recuperação de sua liberdade’” (Foucault, 2004: 202).
Num artigo publicado no jornal A Pátria, em 1912, relativo a uma visita à
Casa Pia de Lisboa, o jornalista constatava, deixando emergir um certo espanto:
“À uma e meia da tarde começa o trabalho nas oficinas, havendo um descanso,
para merendar, às quatro da tarde. É curioso ver a aplicação e o amor com que os
rapazes se lançam ao trabalho, disciplinados e contentes, num grande à vontade
respeitoso para com o mestre da respectiva oficina em que vêem um amigo, que
docilmente os guia e ensina. [...] Não está no espírito da instituição fazer do
Questões teóricas e articulações práticas
130
homem simplesmente uma máquina”. Os alunos frequentavam, conta-nos o autor
do artigo, as oficinas, os trabalhos manuais, assistiam “a palestras feitas por
senhoras” para evitar a “bisonhice própria dos internados”. Outros, praticavam
ainda o foot-ball, entre outras actividades, claro está, a que voluntariamente se
entregariam não só para ocuparem o tempo livre, como para encontrar um sentido
para a vida. “A Casa Pia é a interpretação fiel do tema da República, que nas
paredes de todas as oficinas se lê: Ordem e Trabalho” (Anuário 1912-1913: 142-
145).
Definitivamente, teremos que substituir as ideias de um poder exercido por
dominação, por outras que têm no trabalho sobre o educando enquanto sujeito moral
e ético a sua fundamentação. As tecnologias aplicadas na Casa Pia de Lisboa, como o
corrobora o autor do artigo, jogavam liberdade e disciplina. Eram reguladoras
obviamente, mas apenas na medida em que se articulavam com a via de uma
autoregulação do aluno. Grande parte da discursividade pedagógica alimenta-se das
próprias práticas que são aplicadas diariamente na instituição, daí que as técnicas
estejam em constante processo de fabricação. Qualquer tarefa proposta pelo mestre ao
aluno tinha origem num conhecimento do educando. E para o conhecer, nada melhor
do que saber observá-lo. Cruz Filipe, adiantava a utilização do jogo como melhor
instrumento que, não só permitia ao educador formar um saber mais profundo sobre o
aluno, como cativava a criança, levando-a a aderir espontaneamente às tarefas:
“Os jogos educativos são de aconselhar o mais cedo possível para que a criança
se prepare, brincando, para o reconhecimento dos objectos, para a imitação de
movimentos, para a observação de gravuras e, sobretudo, para progressivamente
fixar toda a sua atenção para os movimentos da palavra, ao mesmo tempo que,
também a brincar e muitas vezes ao espelho, se lhes pede a imitação dos variados
exercícios de ginástica bocal e de respiração. São exercícios de adestramento dos
orgãos da fala, que se conseguem sem esforço desde que o professor saiba
amenizá-los com as brincadeiras actuais das crianças; isto é, é indispensável que
nos tornemos crianças, brincando, rindo, ganhando confiança e afectividade,
dispondo bem o ambiente, para que tudo se aproveite com o intuito de beneficiar
a aquisição da palavra” (1942: 29, 30).
No quadro de educação das crianças surdas, o jogo serviria como recurso
lúdico para uma aproximação facilitada entre o educador e o aluno. O dispositivo
O corpo e a disciplina na hospedagem da língua
131
escolar criava, mesmo para os alunos difíceis, estratégias de intervenção. Ontem,
como hoje. Os jogos educativos não só iriam de encontro ao interesse da criança
como, também serviam enquanto meio de diagnóstico e de aprendizagem. De
diagnóstico porque, alguns tipos de jogos como os de Decroly, funcionavam como
testes que permitiam ao educador situar o seu pupilo em escalas de desenvolvimento.
E Claparède anunciava a excelente ideia de organizar escalas de testes apropriados à
determinação do grau de desenvolvimento e de cada aptidão da criança. Resumindo,
dizia Claparède:
“É preciso levar em conta as diferenças de aptidões, porque ir contra o tipo
individual é ir contra a natureza. E ir contra a natureza tem duplo inconveniente:
em primeiro lugar [...] não há rendimento, ou só um rendimento não proporcional
ao esforço dispendido. E, em seguida – é preciso insistir – repugnância. [...]
Importa que a ideia do trabalho” esteja “associada à satisfação” (1959: 149).
Eis aqui o motivo que me levou a alargar o quadro de técnicas disciplinares
aplicadas sobre o educando, ao domínio do saber produzido sobre ele, sobre as suas
aptidões e capacidades. Cedo se manifesta a ideia de que para um bom governo é
necessário considerar os interesses do educando. E estes adequar-se-iam aos padrões
de interesse disponíveis. Foi essa a lição que nos deixou a biopolítica. O
conhecimento profundo, exaustivo e detalhado do corpo populacional justifica-se
para uma intervenção que se dirá de prolongamento da vida, da saúde, intervenção de
acréscimo para os governados. Não seria pela coacção mas pelo desejo, não seria pela
lei, mas pela norma que o sujeito se constituiria como sujeito de desejo em viagem de
aperfeiçoamento constante. “Podem-se corrigir as más tendências”, afirmava-o
António Aurélio da Costa Ferreira, “modificando o organismo, actuando
medicamente sobre ele, mas também se as podem corrigir criando hábitos que as
inibam, moderem ou sublimem, e esse é o trabalho do educador” (1919: 328).
O internato soube tirar partido de regimes fortemente disciplinares como os
que incluíam a clausura – conventos ou prisões – e, desde o início houve clara
consciência da necessidade de programação da vida diária no seu interior. Os seus
habitantes precisavam de estar vigiados e ocupados a cada hora do dia e a classe
dirigente deveria saber exactamente o que cada um fazia em cada momento. Um
Questões teóricas e articulações práticas
132
papel importante que cumpre uma instituição que tutela menores, como o era a Casa
Pia, é o de um delineamento rigoroso das práticas institucionais, na medida em que
estas se aplicam a um grupo infantil que socialmente lhes foi entregue. Podemos
novamente recordar o grande princípio dos Estados-nação de construir cidadãos,
antecipando-os a partir de uma obrigatoriedade escolar, à paisagem educativa onde
seriam feitos sujeitos socialmente úteis e enquadrados. No caso específico dos
internatos, – e neste contexto, dos alunos surdos em regime de internato na Casa Pia
– , a questão de produção dos alunos enquanto sujeitos aprofunda-se, na medida em
que, a disponibilidade da sua presença permite estudar e experimentar metodologias
que, funcionando em populações anormais, facilmente seriam convertidas em
instrumentos úteis em populações normais. Não é por acaso, como veremos na
segunda parte desta tese, que as vertentes artísticas eram tidas como facilitadoras de
aprendizagens, de consolidação de conhecimentos ou de catalisadoras de energias. No
ensino de crianças classificadas como anormais, grande parte da carga curricular era
dedicada às actividades de carácter manual e artístico, funcionando estas como
tecnologia disciplinar e de subjectivação.
No ensino das crianças na Casa Pia de Lisboa, às disciplinas de matriz teórica,
cedo foram acrescentadas as disciplinas artísticas e as actividades manuais. A sua
utilidade é significativa e no tronco de conteúdos curriculares dos alunos surdos a sua
presença é expressiva. O trabalho artístico e manual cumpria o papel de
requalificação do interno como indivíduo social, ocupando-o numa actividade útil e
resignada, preenchendo o tempo quase total da vida na instituição. Ademais, passa
mesmo a ser desejado porquanto quebra os momentos de extrema solidão ou
isolamento. Não é, aliás, por acaso, que o isolamento é prescrito como um dos
castigos na prisão ou na escola. É um tipo de sanção moral. Apartado do grupo o
sujeito estaria entregue a uma relação com a sua própria consciência, impedido de
participar activamente em qualquer tarefa. A prática da ascese teria outros momentos
que não os do castigo.
Qualquer que fosse o género de aluno da Casa Pia – surdo ou ouvinte – teria o
trabalho manual no tronco de disciplinas da sua carreira de institucionalizado. O
trabalho vincula-se a outros domínios que não os da punição directa sobre os
indivíduos que cometem faltas ou desadequam o seu comportamento dos moldes
previstos. Não é tampouco o carácter produtivo e rentável de uma tarefa o que mais
O corpo e a disciplina na hospedagem da língua
133
importa, quando a instituição determina a sua obrigatoriedade. O elo entre trabalho,
instituição e escola liga-se mais aos efeitos que produz na mecânica humana.
Claramente, o trabalho veiculava um princípio de ordem e de regularidade. Habituava
o corpo a movimentos regulares, obrigava a uma fixação da atenção, ocupava enfim
todas as horas do dia. O preguiçoso se tornaria dirigente e activo, não haveria sequer
tempo para as sinuosidades da imaginação. Os pensamentos seriam direccionados
para a rotina das tarefas a executar e, de tal forma as disciplinas tocariam na alma que
o aluno haveria de se vincular. Antes de dar por terminado o capítulo gostaria de
deixar marcada a minha posição quanto à análise da escola enquanto ela mesma
tecnologia disciplinar, mas também tecnologia humana e tecnologia moral. O
enquadramento da criança na escola, e não só da surda, mas de qualquer outra,
acontece por imperativos de governação, de ajustamento e integração útil e produtiva
no tecido social. Quando trouxe até este texto a forma-prisão, pretendi com isso
evidenciar que o trabalho sobre a interioridade dos alunos, assumindo um carácter
coercivo cada vez menos presente, encontra neste modelo prisional ou conventual
verdadeira fonte de inspiração. Em primeiro lugar há o espaço de regeneração,
também a criança surda ou a criança perigosa – que passam a ser convertidas em
discurso clínico a partir de metade do século XIX – são enquadradas na escola com
fins correctivos. No interior destes espaços operam elementos disciplinares e
disciplinadores do sujeito. O treino direcciona-se no sentido de atingir uma
moralidade reguladora dos comportamentos de cada um, isto é, encaixa-se numa
perspectiva de governo de toda uma massa populacional que devia, apesar de tudo,
ser voluntariamente guiada. António Aurélio da Costa Ferreira expressava-o desta
forma:
“Viver é essencialmente adaptar-se”. “Educar é favorecer, conduzir
intencionalmente, metodicamente, esse ajustamento, essa adaptação”. O
indivíduo adaptava-se “por instinto, ou por hábito”. E mesmo “seres ineducáveis”
poderiam sofrer a influência positiva do educador, “colocando-os nos meios mais
conformes com os seus instintos, e pela forma mais conveniente à sociedade”
(1921: 384, 385).
O verdadeiro problema do educador seria tornar o real aceitável para o
educando, considerando a felicidade, o bem-estar como base de uma harmonia
Questões teóricas e articulações práticas
134
desejável, que se poderia entender como “adaptação completa dos desejos aos
poderes, e dos poderes aos meios” (Ferreira, 1921: 391). As relações disciplinares são
histórica e eticamente inseparáveis e ambas são pensadas em cada pormenor da
paisagem educativa. Na segunda parte desta escrita estas questões hão-de ter novos
desenvolvimentos. Para já, proponho que se visite a Casa Pia de Lisboa como uma
instituição próxima daquilo que o sociólogo Erving Goffman definiu como sendo
uma instituição total.
A rotina dos dias num internato…
135
A ROTINA DOS DIAS NUM INTERNATO: APRENDER A SER E A ESTAR
Refeitório da Casa Pia de Lisboa no claustro dos Jerónimos
Inícios do século XX
(Arquivo Fotográfico de Lisboa)
“As rotinas que os indivíduos seguem, à medida que os
seus caminhos de espaço-tempo se entrecruzam nos
contextos da vida quotidiana, constituem essa vida
como 'normal' e 'previsível'. A normalidade é gerida
com aturado pormenor no seio das texturas da
actividade social: isto aplica-se tanto ao corpo como à
articulação dos envolvimentos e projectos do
indivíduo” (Giddens, 1994: 113).
A Casa Pia de Lisboa, já o adiantei no capítulo referente à governamentalidade e
Questões teóricas e articulações práticas
136
poder, pode ser caracterizada como um tipo particular de instituição moderna,
nomeadamente, uma instituição total. Este é um ponto de partida essencial para a
leitura que a seguir se propõe. Decerto já se terá percebido que este capítulo antecede
a segunda parte desta tese e na verdade, sem ele tudo o que a seguir será dito, não
teria qualquer sentido. Passo a explicar: não fosse o carácter total da Casa Pia, a
identidade dos sujeitos aí produzidos, teria sido diferente. De resto, é como em tudo,
mudando as premissas o resultado é variável. Começarei por introduzir o conceito de
instituição total que, num ou noutro local deste texto, tem feito a sua aparição
pontual.
O sociólogo Erving Goffman no estudo Asylums, propõe o conceito de
instituição total, aplicando-o ao estudo de organizações formais com objectivos
sociais específicos que funcionam, simultaneamente, como núcleo residencial de
comunidades restritas. Estas comunidades são formadas por sujeitos que de alguma
forma se afastam daquilo que socialmente é inventado como norma.
Quando há pouco contextualizei o conceito de governamentalidade sugerido
por Michel Foucault, evidenciei o facto de o governo dos cidadãos estar imbricado
com tecnologias disciplinares e reguladoras da população. Ora, uma das formações
discursivas da modernidade, que visa o exercício de práticas disciplinares e
reguladoras, é a instituição social de acolhimento de crianças em risco, anormais,
órfãos, indigentes, delinquentes, etc. São vários os sistemas de carácter disciplinar
presentes na modernidade – a escola, as instituições correctivas para menores, a
prisão, o hospital para doentes mentais – sendo, necessariamente, a sua função
instrumental para garantir a ordem e o controlo da população. Estas são
essencialmente, instituições de regulação e controlo social.
De acordo com o autor de Vigiar e Punir, o nascimento da prisão é anterior à
definição dos novos códigos penais, pelo menos a presença no tecido social de uma
forma-prisão que se constitui como matriz das instituições disciplinares de carácter
total. Não são exclusivos da prisão os “processos para repartir os indivíduos”, para os
fixar e distribuir “espacialmente”. A mesma repartição, classificação e distribuição no
espaço está presente na escola, nas instituições de acolhimento de crianças, nos
hospitais para doentes mentais, constituindo-se um saber que permite tirar dos
habitantes destes espaços, “o máximo de tempo, e o máximo de forças, treinar seus
corpos, codificar seu comportamento contínuo” (Foucault, 2004:195). O isolamento
A rotina dos dias num internato…
137
dos detidos garantia a eficácia, com o grau de intensidade julgado apropriado a cada
caso, do poder exercido sobre cada um. Interessa-me clarificar que a construção do eu
do sujeito surdo estaria vinculada à experienciação a que esse sujeito era exposto.
Seria por intermédio das práticas educativas e das relações estabelecidas no espaço
escolar que o surdo se iria construindo numa relação consigo mesmo. A fixação a um
espaço, os regulamentos, os horários, os exercícios, enfim, a longa panóplia de
elementos discursivos da instituição disciplinar havia de se combinar de tal forma que
seria a imagem natural da vida diária do aluno surdo. Quando Foucault se refere à
prisão como local de aplicação de receituários de carácter disciplinar, situando-a
numa espécie de antepassado do modelo escolar de internato, fá-lo não de um ponto
de vista negativo, mas, pelo contrário, positivo. Os princípios aplicados nas celas
prisionais, como também os dos conventos e das escolas, obrigavam a princípios de
ordem e regularidade, um poder rigoroso sobre o corpo, localizando-o, afastando-o de
fontes de distracção desaconselháveis, implantando-lhe como prótese o gosto, a
vontade, o querer do próprio trabalho e disciplina. A forma-prisão referida por
Foucault pode trazer contaminações – que excedem o puro mecanismo jurídico-penal
– ao pensamento de instituição total desenvolvido por Goffman, tornando-se útil na
leitura que faço da Casa Pia enquanto instituição que acolhe seres que habitam as
franjas da sociedade. Se na Idade Média o monstro era a figura por excelência para
representar o Outro, a época moderna representa-o na figura do anormal. O anormal é
o estranho que coloca em causa toda a possibilidade de representação de um
completo e único mappa mundi. Se na Idade Média, o monstro era a figura
representada no exterior da urbe, o anormal é o monstro recuperado e inserido na
cidade, claro está, fazendo dele um interno de uma instituição total. O grande monstro
havia de se dissolver “num formigamento de anomalias” (Foucault, 2002: 205). Nesta
figura, joga-se em partida única, um duplo movimento: o anormal, vê-se encerrado
numa instituição pela desordem que poderia provocar no desenvolvimento
harmonioso do corpo social, – e é a medicina, a psicologia e a pedagogia que
patrocinam este encerramento –, e a normalização ou correcção a que é submetido,
evidencia o poder disciplinar e regulador da sociedade que se diz de cidadãos livres.
Proponho uma imagem: “O asilo é talvez sempre internamento e exclusão; mas agora
ele é, além disso, ingestão. Como se, às velhas leis tradicionais do hospital: ‘Tu não
mexerás, tu não gritarás’, se acrescentasse esta: ‘Tu engolirás’” (Foucault, 2002f:
Questões teóricas e articulações práticas
138
318). Mas esta é uma leitura muito restrita do que significa o posicionamento e a vida
no interior de uma instituição total. Neste engolimento, nesta absorção, o sujeito
transforma-se. Metamorfose que depende, como tenho vindo a afirmar, da
experienciação diária, do contacto com regras, com actores, do espaço reservado à
relação consigo mesmo.
As instituições de molde disciplinar desenvolvem técnicas de observação das
suas populações, mantendo-as “numa visibilidade sem lacuna”, de onde extraem um
corpo de saber que é registado e anotado em arquivos que expõem a interioridade dos
sujeitos a que se referem (Foucault, 2004: 195). Basta-nos recordar os processos
individuais dos alunos para convergir nesta ideia. Todavia, gostaria de oferecer aos
olhos de quem lê, algo que não pareça tão óbvio, mas cuja análise permita perceber o
carácter total de uma instituição. Para isso proponho a leitura do Capítulo I de um
Regulamento disciplinar da Casa Pia de Lisboa – já aqui citado – no entanto, agora,
relativamente aos Deveres dos Alunos:
“Artigo 1º – Os alunos devem regular o seu procedimento pelos ditames da
religião, da moral e da boa educação, observando os seguintes preceitos especiais:
1º respeitar os superiores;
2º cumprir sem hesitação todas as ordens e regulamentos que lhes digam respeito;
3º conviver bem com os colegas;
4º aplicar-se ao estudo com boa vontade;
5º ser atenciosos para com todas as pessoas;
6º ser pontuais em todas as suas obrigações;
7º ser cuidadosos no asseio e conservação dos objectos que lhes sejam dados para
seu uso;
8º apresentar à autoridade competente quaisquer escritos que pretendam enviar
para fora do estabelecimento;
9º não ter em seu poder dinheiro, objectos de ouro ou prata, relógios e outros que
a direcção entenda dever proibir;
10º não ter em seu poder manuscritos ou impressos sem que neles esteja
consignada a devida autorização;
11º não tomar parte em quaisquer jogos que a direcção entenda proibir;
12º não praticar quaisquer acções de onde possa resultar dano a pessoas ou a
coisas;
13º não dar a quaisquer objectos uso ou destino diferentes daqueles para que lhes
foram fornecidos” (Regulamento disciplinar de 1890: 3, 4).
A rotina dos dias num internato…
139
A regulação da vida do aluno, numa instituição total, faz parte do
planejamento levado a cabo por aqueles que têm a tarefa educativa a seu cargo. Na
leitura dos deveres dos alunos desenha-se de imediato uma imagem de uma escola
fechada, com funcionalidades ordenadoras, regulamentadoras e, sobretudo,
encaixadas como bunker na paisagem social. Há estabelecimento de fronteiras entre o
que é dentro e o que é fora, entre o que pode e não pode penetrar na arquitectura
institucional. Todavia, no interior da instituição, moldam-se indivíduos respeitadores,
com boa vontade, cumpridores das suas obrigações, dir-se-ia, regenerados para serem
regurgitados no tecido social. Um dos traços mais evidentes deste grupo de
instituições é o seu carácter híbrido porque, estando plantadas no mapa social, têm
uma tendência de fechamento ao exterior, marcando visivelmente o que está dentro e
o que está fora. A cesura entre o mundo interno da instituição e o mundo externo da
sociedade fundamenta-se na sua forma mais básica, no isolamento a que são sujeitos
os indivíduos institucionalizados.
A privação de liberdade constitui na modernidade uma pena por excelência,
na medida em que a liberdade é um dos sentimentos estruturais da construção do
cidadão. Avanço com a ideia, que não é nova, de que liberdade e disciplina formam
um par inseparável. Aliás, será aqui o momento de tornar claro que, apesar das
instituições de carácter total terem como matriz um princípio de enclausuramento, de
fechamento, de privação de liberdade, contudo, parece interessante verificar que
coexiste com este modelo a vontade de formar os sujeitos institucionalizados como
indivíduos autónomos e preparados para serem cidadãos. Por isso mesmo, a
ambivalência já aqui referida da minha tese. É que apesar de a criança surda ser
submetida a regimes disciplinares no sentido de ser corrigida a sua falha, a verdade é
que a correcção lhe é dada a compreender num quadro de acção prometedor de uma
inclusão. Ora, tal promessa justificaria a livre vontade de transformação. Não
gostaria, portanto, de considerar o enclausuramento e as prescrições próprias de uma
instituição total como simplesmente negativos. Esta visão desaproveitaria tudo aquilo
que Michel Foucault nos fez compreender na sua História da Sexualidade: “a
produtividade do poder disciplinar governamentalizado. O lado positivo do poder,
digamos. Aquele que submete, é certo, mas que também constitui” (Ó, 2003: 53).
Daí, evitar também, desperdiçar a ideia de que, de facto, foi por uma condição de
Questões teóricas e articulações práticas
140
isolamento, de enclausuramento, de imposição de regras disciplinares que se
formaram uns indivíduos e não outros. Partilho da ideia de Jonathan Crary quando diz
que “the ways in which we intently listen to, look at, or concentrate on anything have
a deeply historical character” (2001: 1). É por demais evidente a constituição de uma
identidade, a aquisição de um habitus através da experimentação. Convido a uma
leitura do outro lado do Regulamento de que há pouco falei. Diz assim no Capítulo
IV, relativo às Recompensas:
“Artº 29 – As recompensas concedidas aos alunos pelo seu bom comportamento,
aplicação e bom serviço de monitores, consistem na inscrição em quadros de
honra e prémios. Artº 30 – Os prémios são prendas escolares e medalhas, que
podem ser de cobre ou de prata. Artº 31 – Os prémios são conferidos anualmente
e têm por fundamento as classificações obtidas as lições durante o ano para o
prémio de aplicação. [...] Pode também ser adquirido nas aulas especiais de
desenho, ginástica e música”. [...] A inscrição nos quadros de honra e a aquisição
do prémio ou medalha, são sempre acompanhados de um certificado impresso,
designando a qualidade e motivo da recompensa” (Regulamento disciplinar de
1890: 17-19).
Parece evidente que as recompensas seriam alcançadas se houvesse um
cumprimento das normas disciplinares. Mas é certo que o núcleo das
regulamentações apelam, mais do que a um bom desempenho e brilhantes resultados
nos campos do saber, a uma relação que o sujeito passa a estabelecer consigo
enquanto sujeito de desejo, aprendendo a controlar os seus impulsos primários e a
saber-se situar na relação social. Mais autonomia do educando significaria,
precisamente, bom governo. Prémios e castigos pairariam como fantasmas na
paisagem educativa. Diria assim Faria de Vasconcelos:
“Num regímen de vida franca, livre, cordeal, aberta, o professor é um
companheiro mais velho, um amigo firme e inteligente, que compreende, que se
interessa pelo aluno, pela sua vida, pelas suas ocupações. No regímen da
autonomia escolar o professor apresenta-se ao aluno como um irmão com mais
experiência, que brinca, que ri, que trabalha com ele. A escola deixa de ser uma
prisão e o professor um polícia, um juiz. A liberdade, a confiança, a cordialidade,
fazem com que a influência do professor seja maior, os seus efeitos mais seguros
e os seus resultados mais felizes” (1925:360).
A rotina dos dias num internato…
141
Ao que o pedagogo se referia era a um regime de vida escolar de acordo com
o self-government. Não será aqui o local ideal para referir o self-government, todavia,
parece-me importante destacar algumas das ideias que constroem este regime.
Partindo-se de uma base de autonomia dos educandos, atingir-se-ia maior disciplina.
Faria de Vasconcelos deixava explícita a ideia de que ao aluno não agradava ser
“obrigado”, mas sim, ser “guiado” (1925: 356). Já deixei por esta escrita o rasto de
que o governo dos alunos seria tão mais eficaz e real quanto mais os pupilos se
sentissem guiar-se a si próprios. Obviamente que a figura do professor não se
eclipsava do horizonte educativo, aliás, a sua vigilância seria contínua. Antes de tudo
o mais, o self-government era “uma lição prática de educação cívica, a prática da
autonomia escolar seria “ o laboratório da classe de instrução cívica”. “Liberdade” e
“responsabilidade” do aluno sucediam-se como ingredientes indispensáveis neste
“método de disciplina”. Não era outro, afinal, o objectivo que intersticiamente
percorreria a lista de deveres ou de recompensas dos alunos, que não desenvolver “o
hábito da benevolência do self-control, do valor moral, da generosidade e clara
consciência do dever cívico” dos educandos (Vasconcelos, 1925: 356, 359).
Os habitantes de uma instituição total, criteriosamente seleccionados,
constituem uma comunidade, desenvolvem todas as suas vivências no mesmo espaço
físico. Numa instituição deste tipo, o sujeito come, dorme, aprende, brinca, trabalha,
descansa, cresce. É mantido sob um olhar permanente de especialistas e alvo da
constituição de um saber potenciador do exercício do poder. Logo, o poder exercido
permite não só a formação de um núcleo de conhecimentos e, os seus efeitos são
evidentes – porque provêm de um saber individualizado sobre cada um – como,
também, participa na construção de sujeitos dóceis e submissos. O tom de docilidade
e submissão se parece demasiado violento, na verdade, ocorre num mapa de liberdade
e responsabilidade individual, num espaço em que cada um é ensinado a conduzir da
melhor forma, a sua conduta. Não deveremos ler nos efeitos de dominação somente
uma “vontade única e central”. Tal concepção conduziria, como já atrás referi, a uma
impossibilidade de “apreender a contribuição própria que os agentes (incluindo os
dominados) dão, quer queiram quer não, quer saibam quer não, para o exercício da”
governamentalidade por meio das relações tácticas e estratégicas propostas
(Bourdieu, 1989: 86). A dupla poder/saber aparece como um conjunto tecnológico, –
Questões teóricas e articulações práticas
142
um prolongando o outro –, que esboça e constrói os sujeitos a que aplica os seus
instrumentos. Como estufa para mudar pessoas, a Casa Pia, procura manter e aplicar
tratamento e técnicas individualizadas, ao desenvolvimento de cada criança que
acolhe, contando para o conseguimento desta tarefa, claro está, com um conjunto de
médicos e pedagogos. No seu seio, conseguiu reunir o substancial da cela prisional,
da oficina e do hospital.
As instituições totais são espaços correctivos – quer se trate da normalização
operada sobre o surdo, quer sobre a criança delinquente, sobre o preso ou sobre o
doente mental – e de observação por excelência. Como terei oportunidade de mostrar,
esta observação ocorre em dois sentidos. Por um lado, o mecanismo de vigilância a
que são submetidos os internos, por outro – resultante deste – o conhecimento
individual de cada um, do seu comportamento, das suas disposições e aptidões. Daqui
se deduz a formação de um corpus de saber sobre cada indivíduo institucionalizado,
ficando, portanto, aberto um caminho de intervenção personalizada: exercícios
graduados de acordo com as capacidades, aptidões de cada um e práticas de
intervenção que vão direitas à alma do internado, visando, é claro, a sua adesão
voluntária às regras, às tarefas, aos comportamentos, etc. Duas vozes, separadas por
mais de meio século e, eis o que diziam:
“O professor deve conhecer o seu discípulo, estudando-lhe o temperamento, o
génio, o carácter, e até os costumes adquiridos na vida doméstica”( Leite, 1881:
VII).
“Hoje o educador tem em vista uma realidade, porque entende que não deve
perder um só momento de contacto com a criança, seguindo-a em todas as
manifestações da vida, para que a conheça tal qual ela é, com o fim único de lhe
preparar o futuro de harmonia com as suas possibilidades e, sobretudo, em
condições de poder conseguir a natural adaptação ao meio em que deverá viver”
(Filipe, 1942: 22, 23).
Na relação com o mestre ouvinte e, com a comunidade de alunos internos da
Casa Pia também ouvintes, a criança surda, até pela minoria do grupo dos iguais a si,
aprendeu a orientar e a controlar os seus comportamentos de acordo com “as
diferentes coisas que” poderia “fazer ou não fazer enquanto” desempenhava “perante
A rotina dos dias num internato…
143
os outros o seu papel” (Goffman, 1993: 9). Pierre Bourdieu em o O poder
simbólico, adverte-nos para a situação de que nem a submissão deriva de imposições
imperativas, quer dizer soberanas, nem resulta, geralmente de uma submissão
consciente (1989: 86). A abordagem deste quadro conduz-nos à racionalidade
governativa e à arte de governar, constituintes da perspectiva de governamentalidade,
embora neste momento me permita questionar a própria concepção de identidade da
modernidade, como sendo algo relativamente diferente do que se passava numa época
clássica. Baumeister (1987) analisa historicamente o tipo de relações que o sujeito
estabelece com a sociedade e o modo como a identidade desde, pelo menos, o século
XI é considerada. É certo que o autor se serve essencialmente de fragmentos literários
na apresentação do self como uma problemática criada pelo indivíduo, mas a
perspectiva apresentada é de um aumento de intensidade nas relações do sujeito
consigo mesmo, resultantes da sua localização em redes estruturais em que o olhar
dos outros assume uma presença mais activa. Poderei agora apresentar as palavras
que se seguem ao pensamento antes enunciado de Bourdieu:
“A subordinação”, como uma “espécie de orquestração sem maestro, só se realiza
mediante a concordância que se instaura, como por fora e além dos agentes, entre
o que estes são e o que fazem, entre a sua ‘vocação’ subjectiva” e “a sua ‘missão’
objectiva (aquilo que deles se espera)”. “A história objectiva, institucionalizada,
só se torna ‘actuada’ e actuante se” o “’papel’ socialmente designado e
reconhecido, ‘assinar uma petição’, ‘participar numa manifestação’” (1989: 86,
87). E estar institucionalizado, na escola ou no internato, significava assumir um
papel e participar das regras, ainda que não fosse com resposta concordante. É, de
resto, este sentido de clausura que explica e dá sentido ao controlo do espaço, do
tempo, do corpo, da alma, à organização de currículos e tarefas dirigidas à
subjectividade dos alunos.
Tentarei sempre que possível proporcionar uma visão sobre a construção do
aluno surdo como a fabricação de um eu de um sujeito que não “pré-existe às formas
históricas criadas para a sua recognição social” (Ó, 2003: 103). Nikolas Rose propõe
uma genealogia da subjectivação como uma escrita de processos através dos quais o
sujeito foi sendo fabricado como sujeito de um certo tipo, isto é, uma análise das
práticas e das técnicas que lhe são aplicadas e que ele experiencia, o que não constitui
Questões teóricas e articulações práticas
144
em si uma narrativa histórica, mas antes uma busca por pontos que se inter-
relacionam e atingem o sujeito no seu imo, criando um dispositivo de regulação e
simultaneamente, “uma espécie de plano irreal de projecção” (2001: 34, 35). É na
viagem em direcção a este plano que o sujeito se confronta com uma relação consigo
mesmo – transformando-se no sujeito de desejo de que já falei noutro capítulo – e se
confronta também com que lhe é exterior, com os outros e com os olhares dos outros.
À exterioridade, justapõe-se, na modernidade e com prolongamentos até hoje que
tornam a ambivalência como sentimento de estranheza, a interioridade. Isto é, as
relações que o sujeito passa a estabelecer consigo mesmo como um eu. Ora, estas
relações são determinadas obviamente pelos esquemas de governo de que o indivíduo
tem sido objecto. A relação do sujeito consigo tem sofrido até à actualidade uma
intensificação que se explica por “toda uma variedade de esquemas mais ou menos
racionalizados, os quais têm moldado as nossas formas de compreender e viver a
nossa existência como seres humanos em nome de certos objectivos – masculinidade,
feminilidade, honra, reserva, boa conduta”, etc. (Rose, 2001: 35, 36). Parece-me
evidente que no caso do aluno e no caso da escola, estes processos e estes esquemas
acontecem e é imprescindível que aconteçam para que, precisamente a racionalidade
governativa adquira o seu sentido. A posição ocupada pelo aluno surdo no interior da
instituição educativa, permite-nos olhá-lo como um sujeito que é atravessado por
práticas, por exercícios, por técnicas que projectam uma imagem ideal, quer dizer,
produzem um sentido. Este sentido, longe de ser produzido pela experiência é, ele
mesmo o produtor de experiência. Para que este sentido exista, ele é inventado e
reinventado na própria arte de governar os sujeitos. Logo, a genealogia da
subjectivação é prática e técnica.
Viver em internato significava uma regulação da vida privada, habitar um
espaço de permanente controlo e avaliação de qualquer actividade ou comportamento.
A clausura de uma instituição total como a Casa Pia de Lisboa, contrastava
fortemente com a ausência de espaços privados, ligando-se, então, duas entidades, a
escola e a casa, numa arquitectura única, no interior da qual o aluno estudava,
brincava, dormia, alimentava-se, vestia-se, adoecia e curava-se, em espaços comuns à
comunidade dos hóspedes daquela escola-habitação. A possibilidade de uma
vigilância non-stop sobre qualquer acção que o aluno realizasse, transformava o
observador, fosse ele o professor, o funcionário ou o companheiro, mesmo na sua
A rotina dos dias num internato…
145
ausência, em figura omnipresente de controlo. Estabelecia-se, portanto, um
meticuloso poder de observação, operante até quando nada nem ninguém estava de
vigia.
Pensarmos no ensino dos surdos na Casa Pia, equivale, necessariamente, a
considerar a vida diária destes alunos no interior de um mesmo local, um singular em
que se ia à escola, estando-se em casa. Goffman descreve um dos aspectos das
instituições totais “com a ruptura das barreiras que comummente separam essas três
esferas da vida”, quer dizer, a esfera privada, social e de actividade.
“Em primeiro lugar”, diz o autor, “todos os aspectos da vida são realizados no
mesmo local e sob uma única autoridade. Em segundo lugar, cada fase da
actividade diária do participante é realizada na companhia imediata de um grupo
relativamente grande de outras pessoas, todas elas tratadas da mesma forma e
obrigadas a fazer as mesmas coisas em conjunto. Em terceiro lugar, todas as
actividades diárias são rigorosamente estabelecidas em horários, pois uma
actividade leva, em tempo predeterminado, à seguinte, e toda a sequência de
actividades é imposta de cima, por um sistema de regras formais explícitas e um
grupo de funcionários. Finalmente, as várias actividades obrigatórias são reunidas
num plano racional único, supostamente planejado para atender aos objectivos
oficiais da instituição” (Goffman, 1961: 17, 18).
A vida quotidiana do surdo na instituição encontrava-se rodeada por um
conjunto de práticas médicas e escolares que, reservavam para o surdo a imagem de
aluno com patologia, em processo de reabilitação. O surdo institucionalizado
aprendeu a representar-se a partir do ângulo do professor ou da instituição, desejando
para si aquilo que a instituição determinava que devia exactamente desejar. O surdo
foi ensinado a olhar-se e a narrar-se como um sujeito marcado pela falta, tendo vivido
uma história de submissão ao normal ouvinte. Esta submissão, adquiria um formato
próximo de uma obrigação moral, necessitando de um cenário educativo de tipo
pastoral – no qual o professor ocupava o lugar do padre na orientação da conduta –, e
o aluno melhorava as suas capacidades individuais. Foi, portanto, participando na
construção de uma imagem de surdo e de surdez, como uma condição e um estado
dos quais, não se podendo libertar, podia, pelo menos disfarçar. Passou, claro está, a
disciplinar-se no cumprimento de uma conduta moral que, mais do que por
Questões teóricas e articulações práticas
146
interdições, seria marcada pela relação que o surdo ia estabelecendo consigo próprio.
O anormal, servindo sempre de objecto métrico da normalidade, tinha, no normal, o
equilíbrio a atingir e foi essa visão, quase miragem, que determinou, no caso do aluno
surdo, a sua viagem de transformação de um estado para um outro estado.
“Mais ainda, espera-se de um modo geral que cada um dos participantes suprima
os seus sentimentos imediatamente vividos, transmitindo em vez deles uma
imagem da situação que sinta que os outros poderão pelo menos temporariamente
considerar aceitável. A conservação deste acordo de superfície, desta aparência de
consenso, é promovida pelo facto de cada um dos participantes dissimular as suas
próprias exigências por trás de declarações que afirmam valores aos quais todos
os presentes se sentem obrigados a dar uma adesão verbal”. Numa perspectiva
temporal, os comportamentos adoptados, colar-se-iam de tal forma ao aluno que,
o comprometeriam “com o que ele” estava “a propor ser” e exigiriam “dele que”
pusesse “de lado todas as sua pretensões de ser outras coisas” (Goffman, 1993:
20, 21).
Para ilustrar o quanto uma instituição de carácter total, – embora adquira
contornos diferenciados, tratando-se de uma escola, de um internato, de uma prisão
ou de um convento –, tem como princípio transformar os actores nela encerrados,
trarei até este texto parte de uma proposta para a organização do espaço e do tempo
numa prisão:
“Calmer les passions par des occupations prédominantes, par des travaux rudes
qui exigent une grande dépense de force, mais prescrits cependant avec mesure,
tel serait le palliatif au mal qui vient d’être signalé comme une conséquence de la
grossièreté et de la brutalité de la plupart des détenus: de cette brutalité qui reçoit
une nouvelle excitation par la vie sédentaire, condition rigoureuse de l’état de
détention.
Le régime à substituer à la police pratiquée dans l’intérieur des prisons,
nécessiterait de grands changements au système de distribution dês bâtiments”
(Baltard, 1829: 5, 6).
Foi sem dúvida o trabalho, prescrito adequadamente que se transformou numa
das grandes técnicas de regeneração das instituições totais. As actividades escolares,
os diferentes exercícios de educação sensorial, organizavam-se no sentido de obterem
A rotina dos dias num internato…
147
do aluno uma eficácia máxima num esforço que este deveria sentir como mínimo.
Quer dizer, a criança surda, desde cedo, deveria sentir que o caminho do progresso,
aquele que lhe traria felicidade, reconhecimento e integração, seria o da aquisição da
língua oral. Habituada, portanto, a estar ao cuidado dos outros, médicos e professores,
fragilizada por uma examinação constante, que permitia, aliás, aos experts que com
ela lidavam adequarem as técnicas ao caso, a criança surda encontrava-se num estado
de docilidade e submissão, aprendendo a representar diariamente, cada vez melhor e
de forma mais convicta, o papel que lhe foi destinado. Contrariamente ao que se
poderia pensar, o selvagem havia-se tornado educando.
O essencial do governo, volto a repeti-lo, é mais a forma de dispor as coisas
de modo a conduzi-las a um objectivo adequado, do que impor uma lei
indiscriminadamente sobre os diversos objectos ou sujeitos a governar. Neste sentido,
pode-se considerar a institucionalização de um sujeito num organismo formal de
carácter total, como uma táctica, que a um só tempo, aplica sobre um indivíduo uma
ortopedia correctiva e rentabiliza, no corpo populacional, o conceito de norma.
Se olharmos o modo como os jornais de início de século falavam sobre os
alunos surdos da Casa Pia, deparamos com uma imagem daquilo de que o aluno
surdo seria capaz de fazer se submetido a um controlo e disciplina da instituição. A
viragem nos comportamentos e acções, seriam julgadas como positivas para a criança
surda que, participava já do mundo cultural ouvinte. Imagino poder avançar para a
segunda parte desta escrita, mas não sem antes deixar uma imagem do que poderia
representar a situação de o aluno surdo, efectivamente, adquirir a língua oral dos
ouvintes. A minha ideia é que a situação de estranheza e de inquietude que o Outro
transmite, e que conduziu à sua apropriação e apagamento, nem neste movimento de
normalização se extingue. O aluno surdo, seria sempre o aluno deficiente para os
ouvintes, por muito bem que desempenhasse o papel que lhe atribuíram. Relatava
assim, um jornal de 1917, acerca do exame de uma aluna surda da Casa Pia de
Lisboa:
“Uma pequena surda-muda, Iria das Neves, que foi educada na Secção da Casa
Pia de Lisboa” era “a primeira aluna surda da instituição a ser submetida a exame
do 1º grau”. Aquando da sua entrada para a Casa Pia, não lhe passava, com
certeza, “pela ideia que” poderia “vir a exprimir os seus pensamentos como
Questões teóricas e articulações práticas
148
qualquer outra pessoa”. No dia do exame, porém, encontrava-se “desmutizada,
graças ao processo de ensino seguido pelo método oral”. Constava a prova “de
leitura em voz alta e explicação do trecho lido, resolução de vários problemas
sobre sistema métrico e ditado feito no quadro preto, lendo a criança nos lábios
da examinadora as palavras ditas”. Já se vê que o resultado do exame “foi
brilhantíssimo” (Anuário, 1917-1918: 303, 304).
O público observava atentamente a prova – um sentido de admiração – por
estes que, estavam a viver “tecnicamente um exílio”, utilizando a língua “no lugar”
[ouvinte], mas não sendo “do lugar”(Bauman, 2001:236). A fronteira não desaparece,
ela foi marcada antes mesmo de haver qualquer espécie de estranhamento do outro;
“elas são traçadas, como regra, antes que o estranhamento seja produzido”: há um
“‘nós’” [ouvintes] e um “‘eles’” [surdos], “então os traços cuidadosamente espiados
‘neles’ são tomados como prova e fonte de uma estranheza que não admite
conciliação” (Bauman, 2001: 202, 203). Nem tem, talvez, que admitir. Cada
identidade é construída – e este é o fio que nos conduzirá à segunda parte desta
escrita.
(Coguillot, 1889)
149
II PARTE
“ANULAÇÃO. Sopro de linguagem durante o qual o
sujeito acaba por anular o objecto amado sob o volume do
próprio amor: por uma perversão especificamente
apaixonada, é o amor que o sujeito ama, não o objecto”
(Barthes, s/d: 40).
“COMPAIXÃO. O sujeito experimenta um sentimento de
violenta compaixão perante o objecto amado, sempre que
o vê, o sente ou o sabe infeliz ou ameaçado, por esta ou
por aquela razão, exterior à própria relação de amor”
(Barthes, s/d: 80).
“Dá-se então a reviravolta: pois se o outro sofre sem mim,
porquê sofrer em vez dele? A sua infelicidade arrasta-o
para longe de mim, apenas posso cansar-me a correr atrás
dele, sem esperança de alguma vez o alcançar, de coincidir
com ele” (Barthes, s/d: 81).
CONDUTA. Figura deliberativa: ao sujeito apaixonado
surgem problemas angustiosos [...] de conduta: perante tal
alternativa, que fazer? Como agir?” (Barthes, s/d: 85).
150
151
Abre-se aqui a segunda parte desta
tese. Ao leitor ou à leitora
proponho que continuem esta
viagem que terá agora como
cenários, paisagens mais interiores
da experienciação surda na Casa Pia de Lisboa. O primeiro título que marca esta
segunda parte da escrita é A escola como oficina das almas. Passo a explicá-lo: parto
da ideia de que a educação das crianças surdas, enquadrada na perspectiva da
governamentalidade exposta na primeira parte, se direcciona com grande intensidade
para o governo do aluno a partir de uma administração da sua alma. Ao longo do
texto tenho vindo a falar acerca da autonomia, responsabilidade, tecnologias
disciplinares, biopolíticas e do eu, estas últimas intimamente implicadas com a
questão da subjectivação do aluno surdo. Uma das ideias que deixei esboçada atrás
foi a de que as tecnologias aplicadas na educação destas crianças, derivadas de uma
relação de saber/poder, assumem um carácter cada vez menos coercivo, uma espécie,
adianto-o agora de “mão de ferro numa luva de veludo” (Planchard, 1982:131). É
fundamental a ideia de que o poder só se exerce sobre sujeitos livres e apenas
enquanto estes permanecem livres para obedecer passivamente ou para resistir. A
inclusão da criança surda na paisagem educativa significou, desde o início, o resgate
deste grupo para uma área discursiva onde, para lá da preocupação moral, a
preocupação do sujeito ético passou a constituir a grande problemática. Quando
Michel Foucault nos ensina a produtividade que as tecnologias disciplinares alcançam
em articulação com as artes da existência, percebemos que a construção da identidade
de cada sujeito adquire uma interessante complexidade que ultrapassa em muito os
simples sistemas punitivos. A problematização do sujeito por ele próprio tem que ver
com regras de conduta de domínio ético e com práticas que visam a transformação do
seu ser na tentativa de integrar e fazer da sua vida uma resposta positiva a essas
regras. Como nos foi possível verificar, a ética apenas adquire inteligibilidade no
domínio da prática. O aluno surdo, tal como o aluno normal, deveria ser ele próprio
autor da sua construção e, uma genealogia da subjectivação do sujeito mostra-nos que
a questão da identidade se prende cada vez mais com a relação que o sujeito
152
estabelece consigo mesmo. Todavia, o governo do aluno surdo exigia um saber
especializado sobre este grupo de escolares, inventando, reinventando e
aperfeiçoando a cada momento uma arte de governar. Ao recuar à cultura grega e
greco-latina para procurar a forma através da qual os sujeitos se relacionaram consigo
mesmo através dos jogos de verdade circulantes, Foucault abre-nos um palco de uma
constituição do sujeito, historicamente construído como experiência. Como o homem
se reconheceu como “podendo e devendo ser pensado”. No momento em que
“pensávamos ter adquirido distância”, “encontramo-nos na vertical de nós próprios”:
“a viagem rejuvenesce as coisas e envelhece a relação consigo” (Foucault, 1994b:
15,17). Ora, a escola pelo menos desde o século XIX descobriu que a prescrição de
regras de conduta deveria ir mais além de sistemas de injunção moral e fixar-se nos
próprios sujeitos, estudando atentamente a forma de os atingir no âmago da sua alma.
Poderíamos, evidentemente, recuar a Coménio para verificar que “o método de
ensinar deveria ser a arte de plantar nos espíritos” (1966: 206). Ainda em pleno
século XVII, escrevia na sua Didáctica Magna que “os súbditos devem ser
esclarecidos para que saibam obedecer prudentemente àqueles que governam
sabiamente: não coagidamente, com uma sujeição asinina, mas voluntariamente, por
amor da ordem. Com efeito, a criatura racional não deve ser conduzida por meio de
gritos, de prisões e de bastonadas, mas pela razão” (Coménio, 1966: 124, 125).
Ao analisarmos atentamente os Regulamentos da Casa Pia, verificamos que a
disciplina é fabricada no corpo do aluno como manifestação exterior de uma vontade
interior à qual o corpo voluntariamente se submete. Se podemos compreender este
quadro através das práticas militares profundamente exploradas na instituição, ou
através de práticas artísticas ou ainda do desenho que se assumiam como disciplina
do olhar, domínio total da capacidade de representar, é num mesmo fio condutor que
o ensino das crianças surdas surge como um forte disciplinamento do corpo, do que
de potencialmente continha de não racional, para o introduzir num nível de
obediência voluntária. Voltando novamente a Coménio e à sua ideia de que a
condição do homem seria semelhante à da árvore, vale a pena determo-nos num outro
fragmento da sua escrita:
“Efectivamente, da mesma maneira que uma árvore de fruto [...] pode crescer por
153
si e por sua própria virtude, mas, sendo brava, produz frutos bravos, e para dar
frutos bons e doces tem necessariamente que ser plantada, regada e podada por
um agricultor perito, assim também o homem, por virtude própria, cresce com
feições humanas [...] mas não pode crescer animal racional, sábio, honesto e
piedoso, se primeiramente nele se não plantam os gérmens da sabedoria, da
honestidade e da piedade. Agora importa demonstrar que esta plantação deve ser
feita enquanto as plantas são novas” (Coménio, 1966: 127).
Ora, o sujeito a educar seria a criança, o mais cedo possível, atendendo-se no
entanto ao seu estado de desenvolvimento. “O sujeito da educação passa por
sucessivos e característicos estádios de desenvolvimento fisiológico, estético, mental
e social, que se manifestam pelos interesses e necessidades próprios e dominadores
em cada um deles, - podemos concluir que devem adoptar-se processos especiais de
ensino e de educação de harmonia com a fisiologia e o psiquismo do sujeito” (Lima,
1932: 10). O que vem de encontro à tese de Rousseau de que “a criança nunca tenha
de fazer nada por obrigação: não há nada que seja bem para ela, a não ser as coisas
que ela sente que o são” (1990: 191). O aluno surdo desejaria a língua oral, desejaria
pelo menos participar no processo de normalização, que lhe era mostrado como o de
uma possível integração e utilidade social. Logo que o pupilo conseguisse assimilar o
significado da “palavra útil”, ficaria o mestre “com mais uma rédea para o governar”
(Rousseau, 1990: 192).
A atenção vai sendo progressivamente voltada para a subjectividade dos
alunos e, por isso, no caso das crianças surdas, mas igualmente numa população
escolar normal, as actividades que apelam à interioridade do educando, à sua
expressão livre e completa, se afirmam com a importância própria de tecnologias que
agem positivamente no governo e no autogoverno dos alunos.
Começarei o primeiro capítulo por mostrar a estrita necessidade de educar as
crianças surdas, através de discursos produzidos por diversos actores. Inicialmente
mostrarei, contudo, de que forma a educação de crianças ditas anormais se enquadra
no sistema de uma escolaridade obrigatória. De seguida, passarei ao momento de
admissão do surdo na Casa Pia de Lisboa e aqui, deter-me-ei mais
pormenorizadamente na questão da observação da surdez. No primeiro capítulo desta
escrita, procurei mostrar que a surdez só foi tornada anormalidade porque se fez
objecto. Por meio de enunciações, práticas discursivas e não discursivas. Foi colada
154
como patologia ao corpo e à identidade dos surdos. Será agora o momento de
prolongar o que foi dito, tendo como eixos orientadores a observação clínica e o
exame como condições essenciais de legitimação da anormalidade e das acções
terapêuticas em espaço escolar. Chamo à memória o caso de Charles Jouy aqui
contado, apenas para relembrar que o poder médico sobre o corpo se legitima na
inscrição da doença no corpo e na alma, na multiplicação de um saber e, na
consideração da conduta e do passado do sujeito como um estado, para o qual se irá
propor uma intervenção. Duas tópicas essenciais serão aqui desenvolvidas, após o
capítulo relativo à presença histórica das crianças surdas na Casa Pia de Lisboa. A
primeira tem que ver com os processos de admissão na instituição, colocando
enfoque nas práticas de exame, de registo e de observação dos escolares, e a segunda,
com as regras da casa, detendo-me especialmente na experiência do aluno nos
tempos de adaptação institucional. De seguida, avançaremos novamente para a
questão do poder, prolongando agora este conceito numa articulação com um
elemento que lhe é indissociável, a resistência.
Esta tese termina com dois grandes capítulos, ambos associados ao conceito
de currículo como sendo um dispositivo complexo que incorpora narrativas
particulares sobre os modelos de sujeitos que alunos e professores deverão ser. Mas
se o currículo é um campo de relações de poder, a verdade é que o saber é o outro
lado do poder e, unem-se aqui à questão da subjectivação do aluno. Não se defende
aqui uma ideia de currículo como narrativa discursiva de dominação dos escolares, na
medida em que o currículo “não está envolvido num processo de transmissão ou de
revelação, mas num processo de constituição e de posicionamento: de constituição do
indivíduo como um sujeito de um determinado tipo e de seu múltiplo posicionamento
no interior das diversas divisões sociais” (Silva, 1995: 195). Em suma, tudo o que
acontece no interior da paisagem educativa inscreve-se no currículo. É, então, dentro
desta moldura que considerarei as diversas aprendizagens propostas ao aluno surdo e
é também aqui que considerarei a construção da identidade do aluno surdo num
quadro de acção: ele próprio se faz sujeito na experienciação das relações em que está
envolvido. O currículo é, igualmente, uma forma de representação. Recordo o que se
disse no primeiro capítulo da primeira parte em torno da formação dos objectos, isto
é, da sua representação. Verificou-se que são as enunciações discursivas provenientes
de vozes consideradas legitimadoras que conferem aos objectos de que falam uma
155
existência real e verdadeira. Logo, os enunciados veiculados no interior dos
currículos, não pré-existem ao momento discursivo que lhes possibilita a inscrição em
regimes de verdade o que, de imediato, nos fará procurar as relações de poder e o
modo como estas incitam à produtividade dos sujeitos na sua própria produção
enquanto indivíduos de um determinado tipo.
Procurarei mostrar que a aprendizagem da língua oral passava pela utilização
de técnicas disciplinares e disciplinadoras: o corpo do aluno participava de exercícios
minuciosamente prescritos e empenhava-se no alcance dos detalhes. Mas se estas
eram claramente técnicas disciplinares, a verdade é que se afirmam intensamente não
pela coerção, mas pela persuasão. Além disso, são técnicas individualizadas, que se
dizem atender a cada criança na sua singularidade. É minha intenção desmontar os
discursos e perceber que efeitos de poder resultariam dessas montagens discursivas.
Visitaremos também, com alguma demora, as actividades de carácter manual e
artístico que completavam o elenco de disciplinas do aluno surdo, bem como as
actividades de natureza sensorial e táctil, os exercícios físicos e de respiração. No
fundo, será minha intenção considerar o currículo dos alunos surdos na Casa Pia de
Lisboa como um dispositivo complexo sempre inacabado, uma rede discursiva em
que operam o poder, o saber e a subjectividade. Para tal, terei de considerar por um
lado, o fechamento de cada área num conceito de disciplina, por outro, a verificação
de regularidades discursivas que atravessam os vários campos e que convergem para
a construção da identidade do aluno.
Sempre que possível será minha intenção trazer à superfície a imagem do
aluno surdo no relacionamento que lhe é proposto com o tempo e com o espaço, os
movimentos, os gestos, a modelação do seu corpo, regulado e auto-regulado e,
forçosamente, a moldagem também, da sua alma.
156
A escola para todos
157
OLHAR A PAISAGEM EDUCATIVA: A ESCOLA COMO OFICINA DAS ALMAS
1.1. A ESCOLA PARA TODOS
“ Afinal, o Estado-nação deveu seu sucesso à supressão
de comunidades que se auto-afirmavam. [...] Quanto
mais determinada a kulturkampfe iniciada e
supervisionada pelo Estado, maior o sucesso do
Estado-nação na produção de uma 'comunidade
natural'. [...] Seu esforço tinha o poderoso apoio da
imposição legal da língua oficial, de currículos
escolares e de um sistema legal unificado” (Bauman,
2001: 199).
“Magistério primário, sabeis qual seja a vossa missão?
É receber da família um depósito sagrado; exerceis um
sacerdócio; sois a primeira instituição social. Sois o
doutrinador, a pretexto de cada sucesso dentro ou fora
da escola, dos preceitos que purificam a alma. O
coração da criança é como a cera; imprimir-lhe os
verdadeiros princípios de maneira que lhes fiquem
indeléveis, eis o vosso encargo” (Costa, 1870: 33, 34).
Pelo que tenho vindo a mostrar, decerto se aceitará que mais do que quem governa
quem, é importante perceber as tácticas e técnicas de governo em cada relação – e são
múltiplas – em que se identifica a presença de poder. Importa também lembrar que a
invenção de uma série de técnicas encontra-se sempre ligada à ideia de agir sobre os
A escola como oficina das almas
158
sujeitos sem romper com a ideia de autonomia, isto é, o princípio ideal seria de um
efeito anestesiante, governar sem que os governados se sentissem governados. Neste
capítulo proponho uma agenda mais pormenorizada sobre os princípios governativos
implicados na missão de educar todas as crianças e, de forma específica, de uma
educação para aquelas que eram representadas como anormais, ainda que, em
Portugal, seja necessário ultrapassarmos o século XIX para obtermos uma maior
regularidade discursiva tomando-as como objecto. Este primeiro momento é anterior
àquele em que se falará, especificamente, da educação das crianças surdas desde
1823, num contexto ligado à Casa Pia de Lisboa. Um ponto que importa tornar
explícito, é o da leitura e compreensão da escola enquanto pedra preciosa de um
Estado que então se torna governamentalizado. Diz assim António Nóvoa:
“Ao longo do século XIX, em paralelo com a emergência de novos modos de
governo e a afirmação dos Estados-nação, a escola transforma-se num elemento
central do processo de homogeneização cultural e de invenção de uma cidadania
nacional” (1995: 26, 27).
Nasce um modelo escolar que se transforma num projecto de toda a
sociedade. Julia Varela e Alvarez-Uria definem cinco condições sociais,
possibilitadoras da invenção da escola e da sua naturalização como espaço de toda a
população infantil, recuperando-se e instrumentalizando-se uma série de dispositivos
que emergiram e se configuraram, na opinião dos autores, já no século XVI. A
importância de detecção na história de princípios que parecem ter-se prolongado no
tempo não se funda no carácter “magistral y pedagógico” que um olhar sobre o
passado poderia fazer prever, mas antes, através do “método genealógico”
Foucaultiano “abordar el pasado desde una perspectiva que nos ayude a descifrar el
presente” (1991:14,15). No sentido de compreender a escola e aquilo que se tem
mantido de um modelo escolar, apesar das inúmeras reformas que nela se têm tentado
empreender. Não se trata de buscar a origem dos objectos, mas somente compreender
a sua proveniência, as suas presenças, ausências ou mutações ao longo de um arco
temporal alargado.
Uma das condições de aparição de uma instância que articulando-se com a
ficção do Estado-nação, possibilitou uma ideia de escola que passará a ser para todos,
A escola para todos
159
associa-se à definição de um novo estatuto da infância. Nos últimos anos do século
XIX e mais profundamente na transição para o século XX, a criança é feita objecto de
observação empírica e experimental, sendo rodeada por escalas métricas,
quantitativas, quadruplamente observada nos seus planos biológico, fisiológico,
psicológico e mental. E no entanto, é este esmiuçamento do seu ser físico e psíquico
que lhe garante uma singularidade nova. A segunda condição apontada por Varela e
Alvarez prende-se com a invenção de uma necessidade. O florescimento de uma nova
forma de ser criança e de um novo tipo social infantil, exigia uma arquitectura
própria, – a escola –, todavia, organizada administrativamente, instância
simultaneamente controladora e controlada. O espaço escolar converte-se num
dispositivo disciplinar, desde a sua organização propriamente arquitectónica, à
organização das suas populações em classes, aos imperativos de composições
temporais, aos objectos e relações que abriga, habitado não só por crianças, mas, – e é
esta a terceira condição que os autores assinalam –, por um corpo de especialistas que
fala cientificamente sobre a criança, agora em contexto de aprendizagem, adquirindo
in visu a legitimidade bastante que lhe permite classificar e agir sobre este grupo
infanto-juvenil. Todavia, a sobrevivência de um modelo escolar desenvolvido desde o
século XIX, – tão semelhante ao actual –, implicou a destruição de outros modos de
educação. Os três pontos anteriores mantêm uma estreita relação com este, uma vez
que a criança deixa de ser considerada um adulto em ponto pequeno, para adquirir um
“especial 'status da infância'”. A personagem infantil passa a ser concebida como um
sujeito que precisa de ser separado de um crescimento osmótico com os adultos. É
representada como “um ser frágil, que requer estreita e constante vigilância e
interferência; um ser inocente mas que, pela própria razão de sua inocência, vivia sob
uma constante ameaça de ser 'estragada', incapaz de evitar e combater os perigos por
sua conta” (Bauman, 1998: 177, 178). A orientação e o controlo por parte do adulto
aconteceriam no espaço escolar.
As ideias sugeridas por Varela e Alvarez-Uria alimentam-se mutuamente uma
vez que será pela criação de espaços escolares onde as crianças deveriam ser
introduzidas, que a ideia de aí as incluir vai ganhando força e se vai legitimando pela
constituição de um saber psicobiológico da infância. A ciência pedagógica alimentar-
se-ia numa progressiva extracção de saber a partir da própria criança em ambiente
escolar, graduando-se de forma progressiva e assumindo uma complexidade
A escola como oficina das almas
160
crescente. O modelo de internato adoptado na Casa Pia de Lisboa, vindo já dos
colégios jesuítas vai, a partir do século XVIII, aperfeiçoar as suas práticas, passando a
graduar os seus habitantes por idades e por uma maior individualização. Já aqui
referi, na primeira parte, pelas palavras do Provedor da Casa Pia Simões Raposo, a
matriz de distribuição dos alunos, a graduação das matérias e exercícios escolares, as
pedagogias centradas no aluno e, de facto, nesta casa da educação o processo de
individualização de cada aluno começava a caminhar paralelamente a uma fórmula de
produção de discurso que “facilitasse o conhecer em qualquer momento”, “o estado
de adiantamento em que qualquer aluno se achasse”, “bem como o seu procedimento
ou esperanças quer literárias quer especiais que as suas tendências indicassem”
(Raposo, 1869: 15). O quinto elemento sugerido por Varela e Alvarez-Uria tem que
ver com a institucionalização propriamente dita da escola: a imposição da
obrigatoriedade escolar decretada pelos poderes públicos e sancionada, quando não
fosse cumprida, pela lei.
Aquilo que os dois investigadores citados consideram como emergência de
um dispositivo institucional, arquitectonicamente, um espaço fechado, encaixa-se
com a tese de Philippe Ariès de encerramento das crianças, que serviria nem mais
nem menos do que para o governo deste grupo, antes inexistente em termos de um
discurso de governamentalidade. Diz assim o autor:
“A escola substituiu o aprendizado como meio de educação. Quer isto dizer que a
criança deixou de se misturar com os adultos e de aprender a viver no contacto
directo com eles. [...] A criança foi separada dos adultos, e isolada numa espécie
de quarentena antes de ser lançada no mundo. Essa quarentena é a escola, o
colégio. Inicia-se então um longo processo de encerramento das crianças (como
dos loucos, dos pobres e das prostitutas) que não deixará de se alargar até aos
nossos dias e que se chama escolarização” (Ariès, 1988: 12).
Em Portugal deveriam ir à escola – por obrigação legal – todos os que
tivessem uma idade compreendida entre os “ seis anos até doze anos”, “de um e outro
sexo” desde que não houvesse qualquer impedimento justificativo da sua ausência.
Justificações válidas eram apenas aquelas que a lei consagrava, isto é, não estaria
obrigada à frequência escolar toda a criança que recebesse instrução “ na própria
casa, ou em escola particular”, sustentada claro está pelos pais ou tutores, aquelas
A escola para todos
161
crianças que residissem “a mais de 2 quilómetros de distância de alguma escola
gratuita, pública ou particular, permanente ou temporária”, e para além daquelas
situações de” extrema pobreza”, estariam dispensados de frequência escolar todos os
“ filhos ou pupilos” que fossem “declarados incapazes de receber o ensino em três
exames sucessivos perante os júris” (Carta de lei de 2 de Maio de 1878). Já a
Reforma de 1894 apresenta alterações quanto às tipologias de crianças que deveriam
obrigatoriamente passar pelos bancos da escola:
“Por um lado, a escolaridade primária contempla determinadas populações, até aí
excluídas, por intermédio das instituições que as albergam. Assim, formalmente,
decreta-se que “Art. 12º - Haverá escolas ou cursos destinados ao ensino de cegos
e de surdos-mudos” e também, revelando a respectiva inclusão na esfera da
instrução pública” (Correia, 2005: 194).
Abria-se definitivamente caminho para a inclusão de populações em risco ou
em perigo moral, e é, aliás, neste grupo que se poderá situar uma certa genealogia do
que viria a ser a futura escola de massas. Ao abrir as portas aos anormais, a escola
abria as portas a todas as espécies de crianças. A infância delinquente e anormal, os
retardados escolares passam a incorporar novas composições discursivas, passando a
ser possível ordená-los estatisticamente. Do que se fala aqui é, evidentemente, de
uma tecnologia biopolítica, de um corpo populacional exposto a olhares e a gestos. A
escola surgia como o terreno favorável para iniciar o governo de todos os indivíduos
e da sociedade. A educação deveria ser para todos. José Simões Raposo apresentava
em 1869 um Relatório das aulas à Administração da Casa Pia assente no princípio de
“dar educação ao maior número e dá-la pura e sem joio” (1869: 7). “É verdade”,
lembra-nos Perrenoud, “ que estes objectivos são muitas vezes formulados em termos
idealistas” e, quase nunca se diz “que se trata de adaptar o indivíduo à sociedade”.
Não era o caso dos discursos do século XIX e inícios do século XX, aí, “ não se
receava” “afirmar que a escola devia formar bons cidadãos, bons patriotas, bons
trabalhadores e até mesmo bons crentes. O indivíduo” estaria, claramente, “ao serviço
da nação” (1995: 55). Ainda que se tratasse de educar uma criança anormal, ensiná-la
“a vestir-se e a comer, a varrer, a limpar metais, a fazer um recado simples que seja”,
seria torná-la “menor encargo para quantos” a rodeassem, torná-la “um valor ainda
A escola como oficina das almas
162
que diminuto”. Colocando de lado, “por um momento, o interesse pedagógico do
problema”, “o princípio da educação dos anormais deve não ser estabelecido
unicamente como princípio humanitário, mas ainda como meio de defesa para a
sociedade”. Um outro ponto de interesse desenvolvia-se em torno do “estudo dos
métodos e processos” que a relação estabelecida com estas crianças num contexto
escolar possibilitava. Não é novidade que “é às classes especiais, à educação dos
anormais que se devem os modernos processos, as modernas normas educativas”
(Ferreira, 1930a: 7-9). A população escolar converteu-se num conjunto de habitantes
de um mesmo espaço, contabilizados, examinados, vigiados, comparados,
classificados. A possibilidade de agir sobre os corpos desregulados só acontece se
houver técnicas de busca destes corpos e de medição das suas anormalidades,
aplicando-se então uma terapêutica inibidora de um desenvolvimento indisciplinado e
aleatório.
É evidente que será necessário referir o papel do Estado na captura destes
seres habitando as franjas da sociedade, todavia, não é num Estado como “ entidade
governativa, que exerce poder de cima para baixo” que se localiza o núcleo da análise
apresentada (Popkewitz, Bloch, 2000: 33). Por esta razão, aliás, é adoptado o
conceito de governamentalidade de Michel Foucault, para explicar a produção de
sujeitos escolares com base numa arte de governar, operante através de tecnologias
dirigidas com crescente incidência, à alma das crianças. O que se visava nesta nova
arte de governo dos alunos era tatuar-lhes a alma, de tal modo que incorporassem
princípios de condução da sua conduta.
“O disciplinamento do corpo do indivíduo patológico, na prisão e no hospício do
século XIX, não envolveu apenas a sua organização no interior de um regime
externo de vigilância e normalização hierárquica e sua montagem por meio de
regimes moleculares de governo do movimento no tempo e no espaço, mas
buscou também impor uma relação interna entre o indivíduo patológico e o seu
corpo, no qual o comportamento corporal tanto manifestaria um certo controle
disciplinado exercido pela pessoa sobre si mesma quanto ajudaria a mantê-lo”
(Rose, 2001: 43).
A produção de sujeitos disciplinados e dóceis exigia, mais do que a lei ou o
castigo, um discurso orientado para a liberdade e autonomia do educando, futuro
A escola para todos
163
cidadão activo. Se do lado do Estado havia a intenção de governar toda a população,
reduzindo-a a dados estatísticos, prevendo o seu comportamento e vigiando as suas
práticas, fazendo dos cidadãos homens de trabalho e de riqueza para a nação, foi a
escola o instrumento mais eficaz no cumprimento dessa ideia. A colocação em grupos
de acordo com os perfis individuais, delineando uma série de elementos descritores
dos sujeitos é a hipótese perfeita para a governabilidade de todos e de cada um.
Governar todos os educandos obrigava a governar cada um deles, inclusivamente
aqueles que aos olhos do educador parecia situarem-se numa zona de
ingovernabilidade pela ineficácia face aos programas que a escola para si reservava.
A possibilidade de estes sujeitos se tornarem para sempre ingovernáveis era
inimaginável. Violentos, selvagens, diferentes, atrasados, imbecis, anormais, vão ser
submetidos a um discurso médico que, ao contrário de os negligenciar, os recupera
pela manifestação directa da sua inaptidão, ineficácia ou anormalidade, e os introduz
novamente numa escola que lhes serve agora um menu diferente. Programas de
ensino especial para meninos que de outra forma não seriam facilmente ensinados e,
muito menos, moralizados. A questão da escolarização era, tratando-se da infância
normal ou anormal, indissociável da necessidade de governabilidade, sem a qual a
população seria uma massa sempre crescente de insubmissão e desregramentos, em
suma de imoralidades. Compete ao Estado não só governar, como criar as estratégias
de governo, burilando os contornos de cada indivíduo aos perfis para si imaginados.
Numa crónica de 1908, publicada num jornal de Lisboa, dava-se conta da
necessidade de regenerar a infância insubmissa.
“O problema de regenerar a infância está preocupando neste momento uma parte
séria da imprensa de Lisboa. A vadiagem cresce de dia para dia
despropositadamente e a crónica das gatunices e das navalhadas toma colunas e
colunas das folhas noticiosas [...]. Nos bairros da cidade onde a indigência
abunda, na maior parte atulhados de uma estranha população de mulheres de
fábrica e de má nota, de rufiões e fadistas com cadastro, o garoto vegeta em toda
a plenitude, e nessa escola de devassidão e de torpeza, à medida que o seu pobre
organismo se atrofia e aniquila, toda a vivaz laboração precoce do seu encéfalo se
agita, se contorce, se desmanda e se acelera” (Prudêncio, 1908: 137).
A vegetação de crianças aos molhos pelas ruas de Lisboa, constituía um
A escola como oficina das almas
164
perigo simultaneamente de pouca higiene social e moral. Não seria tanto a onda de
crimes, de cutelos, de “navalhadas”, mas a indisciplina e a desordem, a “devassidão e
a torpeza”, o inaproveitamento de corpos de trabalho, o crescimento e
desenvolvimento aleatório, desordenado, insubmisso, da espécie humana e do corpo
social. É esta população, ainda infantil, que se converte numa nova área de saber e de
intervenção, não apenas disciplinar mas como refere Michel Foucault, alvo de uma
biopolítica do poder. Ao obrigar-se cada criança a um ensino obrigatório, obriga-se
todo o conjunto de crianças em condições etárias semelhantes, ao ensino obrigatário.
“El Estado tiene pues, de acuerdo con la Constitución, una función de verdadero tutor
de la libertad de enseñanza y a él corresponde regularla. No se trata
fundamentalmente de una cuestión de verdadera caridad, sino de una cuestión de
derecho civil. El Gobierno tiene la obligación de cumplir todo aquello que constituye
un derecho para los ciudadanos, derecho pues de tutela, de protección y de auxilio,
para que todos los individuos reciban una educación acorde con el progreso de los
tiempos”. Educar, desenvolvem os autores, “equivale actualmente a domar, adiestrar,
domesticar” (Varela, Alvarez-Uria, 1991: 191, 194). Intervém-se sobre cada corpo
mas sobretudo regula-se todos os corpos. Podendo existir individualmente corpos
desregulados, a verdade é que no colectivo apresentam uma incidência que é possível
calcular e prever. Tornava-se uma tarefa urgente, de salvação até, retirar estas
crianças “orfãs” da rua e dar-lhes o acolhimento numa instituição-prótese da
instituição familiar ou aplicar ortopedias correctivas às crianças classificadas fora da
norma.
Se ao garoto desvalido, “se acaso alguém lhe vale, se alguém o aproveita, ele
saberá recompensar em êxito a bondade paternal com que o tratem e os esforços de
paciência disciplinar que para com ele empreguem. Se ninguém o chama, e à revelia
deixam o extraordinário progresso das suas faculdades, não tardará ao desgraçado,
com as mórbidas predisposições da hereditariedade - toda uma gestação de
concubinatos crapulosos” (Prudêncio, 1908: 138). Aumentava assim
assustadoramente o número de indivíduos ameaçadores da lei, constituindo-se a
infância como elemento de periculosidade social. É aliás esta infância em perigo, que
possibilita a emergência de uma outra infância - a anormal. Esta última, por sua vez,
na sua invenção, constitui-se como barómetro de regulação da infância normal. Uma
e outra, infância normal e anormal, exigem um espaço escolar para que possam
A escola para todos
165
acontecer.
“La instrucción de los hijos de los trabajadores aparece, para los hombres de
gobierno, como uno de los dispositivos más eficaces para moralizar, domesticar e
integrar a los trabajadores del mañana. La niñez se percibe como un campo ductil
y fácilmente influenciable que ofrece, en vistas a su transformación, menos
resistencias que los trabajadores adultos... Además, la imposición de la escuela
obrigatoria se verá posibilitada y reforzada por otras leyes también sociales y
estrechamente relacionadas con ella, leyes que regulan el trabajo de mujeres y
niños, combaten la mendicidad infantil y protegen a la infancia menor de diez
años” (Varela, Alvarez-Uria, 1991: 178).
Produz-se um discurso de obrigatoriedade escolar que é construído como
imagem de protecção da infância e protecção social. Por um lado, toda a criança
deverá, porque a isso tem direito, ser educada numa escola obrigatória e, gratuita,
permitindo assim a frequência das camadas sociais filhas de uma massa proletária. Da
impossibilidade de um domínio eficaz deste grupo passa-se a um controlo a partir da
paisagem escolar. Estas crianças tornam-se agora corpos a disciplinar e seres vigiados
por um grupo de profissionais e por um conjunto de técnicas aplicadas sobre o seu
corpo. No caso da infância anormal, enquanto representação desviante, é uma
invenção apenas possível a partir deste enquadramento total de um grupo na escola.
Em 1907, Henri de Weindel, por ocasião de uma visita ao Instituto Nacional
de Surdos-mudos de Paris, escrevia um artigo extenso sobre o ensino dos surdos nesta
instituição e dava a conhecer as palavras do director deste Instituto, M. Coguillot:
“'Démutiser un sourd-muet, lui donner une instruction primaire, c'est sans
conteste lui rendre un grand service; mais développer chez lui un jugement sain et
des sentiments délicats, c'est une oeuvre non moins importante et non moins
difficile. Pour la mener à bien, l'action quotidienne du professeur est
indispensable, mais la discipline bien comprise est aussi d'un utile secours'“. A
disciplina assumia-se como par inseparável da liberdade. O governo dos alunos
surdos exigia um aperfeiçoamento constante de uma arte de governar, possível
pela constituição de um saber sobre estas crianças. “Dans les premières années,
ils subissent les règles qu'on leur impose; ils y mettent plus ou moins de bonne
grâce, selon que leur caractère est plus ou moins bon, mais ils s'inclinent devant
l'autorité du maitre. Mais à mesure que leur esprit s'ouvre et se meuble, ils
A escola como oficina das almas
166
cherchent à se rendre compte de ce qui se passe autour d'eux; ils se mettent à
raisonner sur les choses de leur propre existence. Alors s'ouvre la deuxième
période. Ils commencent par réclamer une liberté absolue, proclament illégitime
toute règle qui y porte atteinte; on leur montre alors la nécessité de l'ordre et de la
loi pour pemmetre à chacun de jouir de sa part de liberté sans entraver celle
d'autrui” (Weindel, 1907: 21, 22).
Liberdade e disciplina articulam-se num mesmo discurso caminhando num
sentido de autonomia do sujeito e de um governo de si mesmo. Era este o princípio
defendido na Casa Pia de Lisboa na educação de todos os seus alunos desde o século
XIX. E em inícios do século XX era também a esta ligação que Montessori se referia
quando propunha desenvolver na criança uma liberdade correlacionada com
autonomia e responsabilidade. Disciplinado, afirmava-o Montessori, era um
indivíduo que fosse mestre de si mesmo, dispondo do controlo do seu corpo e alma.
Todavia, este sujeito só se produziria na escola através de um trabalho especial do
professor: “Il est nécessaire que la maitresse ait une technique spéciale pour conduire
l'enfant à une telle discipline; mais il marchera ensuite toute sa vie dans cette voie,
avançant toujours vers une but de perfection”(Montessori: 1958: 37). Disciplina que
se estenderia a todos os domínios da vida do aluno, escola e sociedade seriam apenas
prolongamentos comunicantes.
Os trabalhadores do futuro, afirmam Julia Varela e Alvarez-Uria, só seriam
rentáveis se tivessem sido fabricados em condições ideais de pressão e temperatura
social (1991: 211). O Estado que tutela e protege a criança – devendo-lho por direito
– deverá ser visto por ela e pela sociedade em geral com legitimidade bastante para o
fazer, velando pelo bem da sua família, pelas suas necessidades e pelos seus
interesses. Claro está que não por acaso se viu a paisagem escolar invadida por
pedagogos, médicos e psicólogos que então classificavam o normal e o patológico, e
prescreviam terapêuticas correctivas. O binómio saber/poder encaixa-se neste cenário
e é com facilidade que se percebe que o saber sobre o aluno, sobre as suas
capacidades e aptidões, comportamentos, sentimentos e paixões irá determinar o
exercício da governamentalidade de cada um. As formações discursivas produzidas
pelos experts da alma, instalam-se por um período que chega até nós, nos bastidores
do palco educativo e influenciam as práticas, currículos e relações entre actores. Não
foram só os especialistas da alma, foram também os da política governativa, a
A escola para todos
167
escolarização de todas as crianças implicou uma nova racionalidade política e
científica da infância – todos seriam agora matéria populacional, filhos e pais –, mas
era também a partir deste quadro que todos eram convidados a construir-se como
cidadãos livres e autónomos. Para isso, estes discursos que promoviam a liberdade e a
responsabilidade do aluno ou do cidadão, operavam com técnicas disciplinadoras e
reguladoras que haviam de se manifestar em padrões de comportamento e acção
regulados e, mais, autoregulados. A vertente em que ao longo deste texto é
apresentada a educação das crianças surdas pelo método oral, constitui-se como um
dos trunfos no processo de construção do aluno surdo autónomo e livre, capaz de, por
si, comunicar com o mundo ouvinte. Deste quadro resulta um forte disciplinamento
desenvolvido a partir dos processos de subjectivação que a escola propôs ao
educando. É pois, a escola, um tipo particular de instituição disciplinar que
incorporando no aluno princípios morais e éticos através de práticas pedagógicas e de
conteúdos curriculares, é bem sucedida na modelação das crianças a padrões
ajustados de normalidade.
“Por exemplo, as escolas deveriam moldar o carácter das crianças e da família.
Novos regimes de controlo do corpo (higiene científica) e do intelecto (literacia,
matemáticas), bem como a inculcação de hábitos de virtude na infância, tinham
por objectivo gerir, disciplinar e articular a formação do carácter, quer nas
crianças, quer nas famílias” (Popkewitz, Bloch, 2000: 39).
O que acontece na arena educativa não está de modo nenhum separado do que
se passa na sociedade. A forma de administração da população escolar ocorre com
base nos discursos liberais e é por esta razão que a construção do cidadão do futuro
estaria associada à preparação prévia desse cidadão enquanto escolar. O encerramento
da população em classes, a partir da infância, surge como alternativa única de
controlo, de imposição de uma ordem mas, de uma ordem imposta servindo o próprio
indivíduo educando de mecanismo regulador da sua conduta. A escola só cumpriria a
sua função moralizadora se, ao contrário de repressiva, castigadora, proibitiva, fosse
produtiva no sentido de o educando ser simultaneamente objecto e mecanismo
impulsionador de uma prática e de um “cuidado de si”. Sob a vigilância atenta de
educadores e psicólogos a criança ía seguindo caminho, encontrando-se, explorando-
A escola como oficina das almas
168
se, desenvolvendo as suas potencialidades intelectuais, físicas e morais, bem como as
suas aptidões. Na sala de aula, as crianças são distribuídas espacialmente, cada corpo
em seu lugar, alinhados, seriados, vigiados, entregues aos exercícios de escrita, de
gramática, de contas, de desenho, de manualidades, de ouvir, sempre, a voz do
professor mas, igualmente, pela disciplina, aprender a ouvir uma voz interior que dita
o dever e o bem fazer.
A atenção dedicada à infância fazia sobressair uma imagem de criança que
deveria ser formada intelectual, física e moralmente. “A escola” reinventaria “a
criança na sua individualidade para reagrupá-la em populações organizadas
tipologicamente” (Correia, 2005: 201). Esta ideia constrói-se sob um terreno que tem
a medicina como instrumento legitimador de princípios reguladores que, numa
economia de movimentos, pretende atingir uma maximização de forças seja ao nível
do rendimento escolar, seja ao nível da ortopedia correctiva. Como veremos mais
pormenorizadamente num dos próximos capítulos, a introdução de um corpo de
especialistas, falantes de uma linguagem médica, traria a necessária colaboração à
pedagogia, conferindo-lhe o poder de agir sobe o aluno. Faria de Vasconcelos, nas
suas Lições de Psicologia e Pedologia Experimental, diria que “a intervenção do
médico na escola”, limitando-se no início “ a uma simples missão de medicina
repressiva” havia alargado as suas funções (s/d: 12). É neste contexto que as
instituições de carácter social que em nome da criança em risco, em perigo ou
anormal, iniciam uma marcha pela educação e normalização destes seres.
Os surdos na escola
169
1.2.OS SURDOS NA ESCOLA
Aula de treino auditivo e rítmico
(Amaral, 1954)
“Os alunos de ambos os sexos Surdos-Mudos e um Cego do Real
Instituto no sítio da Luz, tiveram no dia 2 do corrente mês de Julho
a distinta honra de ser admitidos à Real Presença de Sua Majestade
no Real Paço da Bemposta, conduzidos pelo Directores daquele
Estabelecimento, o Major João Hermano Borg, a felicitar e beijar a
Mão de Seu Augusto Pai e Benfeitor, Sua Majestade para dar mais
um testemunho da suma Benevolência, com que sob a sua
Protecção acolhe os mais infelizes dos Seus vassalos, houve por
bem destinar-lhes Audiência particular e descendo do Trono, que
tão heroicamente ocupa, os recebeu com angélica afabilidade,
mostrando-se para com este Pio estabelecimento mais do que Rei, e
estas inocentes crianças ao mesmo tempo que reverentes beijavam a
Real Mão que os protege, expressavam por meio da sua linguagem
própria os votos de seus corações pela conservação preciosa do
A escola como oficina das almas
170
mais caro dos seus Benfeitores, e uma das alunas pôde entoar bem
inteligivelmente estas palavras, que jamais os Bons Portugueses
cessarão de repetir:=Viva o Senhor Dom Miguel Primeiro, Nosso
muito amado Rei!” (Gazeta de Lisboa, 11 Julho de 1829: 670).
Este fragmento era parte do corpo da notícia que A Gazeta de Lisboa imprimia
a 11 de Julho de 1829. Recebidos em audiência particular perante o Rei, os alunos
surdos e um cego do Instituto da Luz, expressaram por meio de linguagem própria
toda a sua gratidão pelo acolhimento e protecção Reais. Uma das alunas, dominando
já a língua dos ouvintes, articulou uma frase de Viva a D. Miguel. Alunas e alunos
presentearam ainda Sua Majestade com dois sonetos que o Director do Instituto
garantiu terem sido escritos por uma aluna, Maria Bárbara da Conceição, e por um
aluno, Augusto de Castro, ao som das palavras ditadas pelo ajudante, segundo
professor do Instituto. Dizia assim parte do soneto das meninas: “Agora, que por Arte
mais que humana, / Vê nossa reflexão esclarecida, / Um Deus no Céu, / Autor de
nossa vida, / Na Terra o Rei, que nossos males sara;”. E o dos rapazes: “Pois se a
sorte cruel com força injusta/ Nos malfadou o triste nascimento, / Aos Pés do Trono
achando acolhimento, / A nosso coração já nada assusta. / Se o Mudo o som não
sente, e a voz tem presa, / Se o Cego o Sol não vê, e em trevas moralmente por dura
Lei, / que oculta a Natureza; / Nenhum de nós em tal condição chora, / Porque temos
um Rei, cuja Grandeza/ Estende sobre nós Mão protectora” (Gazeta de Lisboa, 1829:
670). Ora, daqui se deduz uma representação, ainda que apenas esboçada do surdo e
da surdez. Nascendo com mau fado, mau futuro pela frente, os alunos e alunas surdos
teriam na protecção do Rei, – através do patrocínio da sua educação –, a cura possível
da sua deficiência, quer dizer, um horizonte menos mau para o qual caminhariam. A
surdez emergia como representação de um estado atribuível àquele que tinha uma
falta, um vácuo relativamente a um ponto referencial ouvinte. E ouvir era o estado
normal de quem não era surdo, capacidade conectada ao bom e ao útil. “Segundo esta
teoria, bom é aquilo que sempre se revelou útil e que, desse modo, pode afirmar-se
como ‘valioso em grau supremo’, como ‘valioso em si’“ (Nietzsche, 2000: 23).
Torna-se evidente que de um ponto de vista estritamente moderno, o lugar do ouvinte,
associado ao bom, implica traçar o lugar do surdo, no lugar do mau. A surdez era
Os surdos na escola
171
inventada como objecto de intervenção ortopédica desenrolada pela oferenda amorosa
e desinteressada de uma língua oral, do ouvinte ao surdo. Nietzsche fala numa
genealogia da moral, associada à procura da proveniência dos sentidos dos juízos
avaliativos de bom e de mau. Quanto ao bom, diz-nos o autor, que “ainda hoje com
alguma frequência transparece um matiz principal que indica que os mais nobres
sentiam que eram gente de uma ordem superior” e que tendem a designar-se
“segundo um traço típico de carácter”: “os verídicos”. Segundo a raiz grega desta
última palavra, verídico é “‘um indivíduo que é’, que possui realidade, que é real,
verdadeiro” (2000: 25). É neste sentido que ser ouvinte é construído como bom e
verdadeiro e é, por oposição, que ser surdo é mau, mas também verdadeiro. Um
verdadeiro indesejável porque só não é falso por uma estranha presença do surdo
frente ao ouvinte. E neste processo, “as palavras que designam ‘mau’, ‘baixo’,
‘infeliz’, nunca mais deixaram de ter uma ressonância, um matiz em que é a ideia de
‘infelicidade’ que predomina” (Nietzsche, 2000: 37). Quando seis anos mais tarde,
em 1835, José Crispim da Cunha escreve sobre o ensino das crianças surdas no
Instituto de surdos-mudos, transparece a ideia de que educar significaria, em primeiro
lugar acolher o Outro para, depois, o corrigir e tratar, tentando arrancá-lo à
infelicidade correspondente ao estar do lado do mau. Esta vertente normalizadora,
pelo menos, no sentido de incorporação da palavra oral no corpo surdo, fez-se sentir
com mais intensidade a partir de finais do século XIX, embora nesta altura, o aluno
surdo se visse rodeado por um conjunto de especialistas que reclamava a
adaptabilidade da terapêutica a cada indivíduo. Assiste-se ao alargamento do conceito
de acolhimento/hospitalidade da criança surda na escola e na comunidade social, uma
permissão, um direito a uma existência verdadeira. De facto, estas crianças deveriam
ser salvas dos mundos aculturais onde a surdez as posicionava e a ideia de que esse
resgate do mundo dos excluídos era um direito da criança, começa a tornar-se
aliciante para a eficácia das técnicas usadas na sua educação. Ficava claro, portanto,
que toda a criança – mesmo a cega e a surda – deveria passar pela fase de preparação
para a vida que invariavelmente significaria adquirir a língua oral.
No terceiro ensaio da sua Genealogia da Moral, Freidrich Nietzsche abre a
escrita com o título Que significam os ideais ascéticos?. A resposta elabora-a
diferente para diversos tipos de ser: para os artistas, para os filósofos, os eruditos, as
mulheres, para os malformados e para os desequilibrados, para os padres e para os
A escola como oficina das almas
172
santos. Ora, se o ideal ascético significou “tanta coisa para o homem exprime desde
logo o traço fundamental da vontade humana”, a saber, “o seu horror vacui: o homem
precisa de um objectivo” (2000: 115). Constitui-se então o homem de desejo de que
nos falou Michel Foucault e que é novamente trazido até esta escrita para, uma vez
mais, referir a construção da identidade do aluno surdo conectada à ideia de uma
autoconstrução alimentada pelo desejo de uma língua oral, única chave para uma
prometida inclusão. Um e outro elemento só assumem contornos nítidos num
contexto educativo/correctivo, na aceitação de uma relação de tipo pastoral do aluno
com o seu mestre. Como a que nos é permitido imaginar da leitura de um outro texto
publicado a 10 de Novembro de 1830 na Gazeta de Lisboa:
“Para solenizar o Faustíssimo aniversário do nosso Rei, O Senhor D. Miguel
Primeiro, sob cuja Augusta Protecção prospera o Real Instituto dos Surdos-
Mudos e Cegos, houve no dia 26 do mês de Outubro um exame de alunos e
alunas deste Estabelecimento, na presença de seus parentes, e de outras mais
pessoas de distinção, que tiveram ocasião de admirar os felizes progressos destes
meninos na laboriosa carreira da sua educação, e de abençoar o generoso
Governo que tão Pia Instituição promove. O director e primeiro Professor João
Hermano Borg, depois de uma sucinta exposição dos princípios desta importante
arte de instruir os Surdos-mudos, fez conhecer a instrução das meninas em uma
multidão de palavras, que elas perfeitamente escreveram, mostrando saber já as
declinações dos nomes, e as conjugações dos verbos, o uso dos adjectivos e
pronomes, e entrando já na inteligência das palavras abstractas. Também
executaram as quatro operações de aritmética e distinguindo-se particularmente a
primeira aluna Maria Bárbara da Conceição, que resolveu uma proposição
algébrica, fez por escrito várias perguntas às suas condiscípulas, e pronunciou
bem distintamente toda a Oração do Padre Nosso” (Gazeta de Lisboa de 10 de
Novembro de 1830: 1079).
Esta imagem, diferente daquela que um ano antes era notícia, abre-se agora
para um campo em que a educação das alunas tinha já atingido um alto grau de
desenvolvimento. Eram prestadas provas. Fazia-se um exame a estas meninas surdas
sob o olhar incrédulo, decerto, de todos quantos pensavam estes seres
irremediavelmente perdidos na sua mudez, mais do que na sua surdez. Pela leitura
labial, terão escrito uma multidão de palavras, mostrando dominar as declinações dos
Os surdos na escola
173
nomes e a conjugação dos verbos, usar adjectivos e pronomes, perceber a abstracção
das palavras, realizar operações de aritmética e uma das meninas, novamente Maria
Bárbara, recitou perante a audiência toda a oração do Padre Nosso. Esta actuação,
resultado de um intenso trabalho desenvolvido no Instituto, só se torna possível por
uma aderência do desejo do aluno surdo aos objectivos do professor ouvinte. “A
actividade mecânica e o que dela faz parte – como a regularidade absoluta, a
obediência pontual e incondicional, a adopção de uma vez por todas de uma certa
opção de vida, o preenchimento integral do tempo... e também uma 'impessoalidade',
um auto-esquecimento, uma incuria sui, até certo ponto autorizada, mas também
cultivada com disciplina –, tudo isto o sacerdote ascético soube utilizar de modo tão
radical e tão refinado na sua luta com a dor”. Tudo isto a escola soube transportar
para o seu espaço, manifestando-se na relação de poder pastoral entre mestre e aluno.
O pastor que está sempre pronto para partir em busca da ovelha perdida ou sempre
em posição de guia do seu rebanho, tem de dominar uma certa arte de governo “para
conseguir que essa gente passasse a ver um benefício ou uma relativa felicidade em
coisas que até aí detestava” (Nietzsche, 2000: 166). O modo de o fazer, se já o tenho
deixado dito um pouco por todo o texto, volto a repeti-lo, outra vez, agora pelas
palavras de Nietzsche:
“Um outro meio ainda mais apreciado [...] consiste na prescrição de uma pequena
alegria, fácil de obter e fácil de converter em regra; esta medicação é
frequentemente usada em associação com a anterior. Na maior parte dos casos
esta alegria usada como medicamento é prescrita sob uma forma típica: a alegria
de dar alegria (fazer boas acções, dar ofertas, suavizar sofrimentos, prestar
auxílios, encorajar, consolar, louvar, premiar). No fundo, ao prescrever o ‘amor
ao próximo’, o sacerdote ascético prescreve de facto uma excitação do instinto
mais forte, do instinto mais afirmativo da vida, uma excitação da vontade de
poder, muito embora numa dosagem mínima. Essa felicidade – decorrente da
ínfima superioridade que o facto de praticar boas acções, de ser útil, de ajudar ou
de distinguir alguém sempre provoca – é, entre os remédios para a obtenção do
consolo, o mais eficaz de que se costumam servir os indivíduos atingidos pela
inibição fisiológica, mas com a condição de haver um bom aconselhamento,
porque, caso contrário, provocam dor uns nos outros, ao obedecerem ao mesmo
princípio fundamental” (2000: 167).
A escola como oficina das almas
174
A verdade é que este movimento opera em dois sentidos: um do lado do
aluno, outro do lado do mestre e ambos se inscrevem na perspectiva da
governamentalidade. Tal como o sacerdote ascético ou o pastor, o professor surge
como o “salvador predestinado”, aquele que, para além de conduzir o rebanho tem,
igualmente de se conduzir a si próprio, exercendo sobre si mesmo “um domínio ainda
maior do que sobre os outros”, “tem que permanecer incólume designadamente
quanto à sua vontade de poder, para ter a confiança e o temor dos doentes, para poder
ser para eles um amparo e um obstáculo, um apoio e um constrangimento, um
instrutor e um tirano, para poder ser o seu deus. E tem que proteger o seu rebanho”
(Nietzsche, 2000:154).
Depois do exame, a Regente e mestra das alunas surdas “fez ver o seu
adiantamento na costura, obras de cabelo e mais prendas próprias do seu sexo”,
levando, por certo, os objectos produzidos em espaço escolar e mostrando-os perante
os espectadores. Seguiu-se o exame dos alunos e foi Crispim da Cunha quem os
orquestrou, fazendo “ praticar todas as operações de aritmética até aos números
quebrados, e no estudo gramatical mostraram eles conhecer as diversas espécies de
palavras, as declinações dos nomes e pronomes, as conjugações dos verbos, e
observar as regras da sintaxe em muitas perguntas e respostas, que entre si fizeram,
dando por este modo a mais alta ideia da eficácia do método que por meio da escrita
restitui à comunhão social estes outrora degredados entes”. Mas a oralidade, que se
iria tornar o prato forte a prescrever na instrução das crianças surdas, começava já a
mostrar o seu perfil: “três de entre eles pronunciaram muitas sílabas e palavras, que
se lhes escreveram, e já dois entendem, e perfeitamente escrevem de memória a
Oração Dominical”. De tal modo era importante mostrar ao surdo a inoperância da
sua audição que, após uma visita às oficinas e à aula de desenho, surgiu o retrato do
rei, “num arco triunfal, majestosamente armado pelos alunos, e uma das alunas
recitou uns versos em acção de graças ao Todo Poderoso pela preciosa vida do Nosso
Augusto Soberano, seguindo-se depois uma dança entre os alunos e alunas dirigida
pelo Mestre de dança e esgrima João Batista Gambette, e acompanhada ao som da
rabeca pelo aluno cego” (Gazeta de Lisboa de 10 de 1830: 1079, 1080).
Disciplinados, os surdos terminaram a demonstração de oralização dançando ao som
da música que não ouviam, mas sob a orientação de um ouvinte. A visibilidade que
estas exibições e os discursos que as relatam dão ao processo de normalização do
Os surdos na escola
175
corpo surdo, sublinha a identidade deficiente enquanto problema que pode, no
entanto, ser corrigido pelo empenho e boa condução do professor. Dando visibilidade
ao que é produzido no interior da escola, a instituição expõe os seus habitantes ao
olhar de outros que podem, a partir do exterior, testemunhar os processos de
transformação que a escola opera sobre os anormais. A diferença do surdo face ao
ouvinte só é pensável na modernidade pela sua fixação a um campo enquadrável,
onde possa ser olhada e nomeada. A instituição escolar foi o espaço encontrado. Com
o surgimento da fotografia e com a sua utilização pelas instituições, a representação
dos objectos, – de que a surdez é exemplo –, faz com que os olhares de quem está do
lado de fora e olha para o interior passem a ser governados por aquilo que as imagens
dão a ver.
O Sr. Presidente da República assistindo a um
dos exercícios no Instituto de Surdos-mudos
(Anuário, 1924)
A 5 de Dezembro de 1923, o Presidente da República Teixeira Gomes,
visitava as instalações da Casa Pia de Lisboa. Os jornais fizeram notícia. No Diário
de Notícias de 6 de Dezembro, poder-se-ia ler:
“‘O Sr. Teixeira Gomes declarou que aquela Casa lhe merecia um carinho
especial […]. Naquele estabelecimento se trabalha a sério na preparação dos
alunos para a vida. A Casa Pia tem as tradicionais e grandes virtudes da
actividade, do método prático, do espírito de observação, da percepção e de
aperfeiçoamento que muito a distinguem. […] Em seguida dirigiu-se para o
A escola como oficina das almas
176
Instituto de Surdos-Mudos, onde o seu ilustre professor, Sr. José da Cruz Filipe,
fez uma lição demonstrativa do seu método de ensino, tendo começado pelos
exercícios de leitura labial e prova escrita e terminando pelo da articulação,
exercício este que faz com que o aluno chegue a falar claramente. O Sr. Teixeira
Gomes, que admirou tão interessante método de ensino, teve no final palavas de
felicitação e de incitamento para o ilustre professor’” (Anuário, 1924: 11, 12).
A fotografia passaria a ser mais uma formação discursiva de fácil assimilação.
Na imagem, Cruz Filipe executa um movimento bocal e faz perceber ao aluno surdo
nº 55 o que se espera da sua exibição. Teixeira Gomes, à esquerda, observa
atentamente o desempenho oral do surdo. A normalização estava institucionalizada
como prática de salvação destas crianças.
Em Portugal, o ensino dos surdos iniciou-se como já aqui foi dito em 1823,
sob a tutela da Casa Pia de Lisboa. Este primeiro instituto de surdos, ficava localizado
numa casa do Conde de Mesquitela, à Luz, tendo sido fundado a expensas do Rei e
sob o patrocínio da infanta D. Maria. Inicialmente o Instituto só admitia indigentes,
contando em 1824 com 8 alunos, um deles cego, sendo 5 do sexo masculino e 3 do
feminino. Todavia, noutros países, a batalha por uma educação para aqueles que se
afastavam da norma, havia começado muito tempo antes. Um prospecto de 1792 de la
Pension de L'Institution Nationale des Sourds-Muets de Paris identificava a
necessidade de enquadrar as crianças surdas num espaço em que o objectivo essencial
seria:
“les mettre en communication avec les autres hommes, on leur apprend à lire et à
ecrire, afin que l'ecriture qui, dans tous les cas, remplace la parole, leur serve à
exprimer leurs idées et à comprendre celles des autres” e as condições de
admissão adiantavam que a educação gratuita poderia ir até aos seis anos.
Admitidos seriam todos os surdos “ de quelque pays, de quelque religion, de
quelque etat que soient leurs parents”. O acolhimento poderia ocorrer em
qualquer idade desde que os pais pagassem a sua pensão e, até aos 10 anos, se
pretendessem usufruir da gratuitidade do ensino. O passe de entrada obedecia a
“un examen rigoreux du médecin et du chirurgien de la maison” (1792: 1-4).
Na Casa Pia de Lisboa, os processos de admissão viriam a ser um pouco mais
rigorosos, principalmente quanto ao número de alunos que seria possível receber na
Os surdos na escola
177
instituição. As idades iriam variar, após 1905, entre os 7 e os 11 anos para o período
de admissão e os 18 anos como limite de saída da instituição. A desvinculação do
Instituto da tutela da Casa Pia, ainda em 1824, contou com uma vinculação directa ao
Estado que dotando o instituto com 4.600$00 reis anuais, elevou em quatro o número
de alunos a serem admitidos. Oito alunos do sexo masculino e quatro alunas deveriam
perfazer a população surda que beneficiava de ensino e habitação nesta instituição até
1834. Todavia, eram dezoito os alunos existentes em Fevereiro desse ano e ainda se
abria mais seis vagas (Cunha, 1835: 44). As idades escolares deveriam variar entre os
oito e os catorze anos, tal como previa o regulamento provisório em 1827 (Santos,
1920: 95). Um Decreto de 25 de Fevereiro de 1834, viria, no entanto, estabelecer
nova articulação do instituto de surdos com a Casa Pia de Lisboa. Dizia assim:
“‘Não correspondendo os resultados do Instituto dos Surdos-mudos e cegos, tal
qual se acha organizado à excessiva despesa com ele feita, sendo todavia a
existência de tão útil, quanto benéfica instituição aconselhada, e instada pelos
princípios de humanidade e de filantropia em virtude do que convém determinar
uma outra forma, porque tal estabelecimento, mantendo-se, atinja os saudáveis
fins a que é consagrado. E porquanto considerando eu, que pela união do
sobredito instituto na Casa Pia, vindo a poupar-se as despesas do edifício,
mestres, serventes, e outras, melhor se poderão prover ao sustento, e educação
dos alunos dele, aplicando além disso as sobras do seu dispêndio em proveito da
Casa Pia’” (Cunha, 1835:33, 34).
Esta ordenação, dirigida ao então director do Instituto de surdos-mudos e
cegos – José Crispim da Cunha –, levou-o a escrever a História do Instituto de
surdos-mudos e cegos de Lisboa desde a sua fundação até à sua incorporação na
Casa Pia de Lisboa, demitindo-se do seu cargo e desafiando todos para que lhe
apontassem um “estabelecimento de caridade e educação cujos directores e mestres”
desempenhassem “encargo de tanta paciência e trabalho, em que os alunos” fossem
“mais decentemente vestidos, e alimentados”, estabelecimento que apresentasse
“melhores resultados” do que o que então dirigia. Além do mais, Crispim da Cunha
dizia com satisfação que os alunos a si entregues, permaneciam todos de perfeita
saúde, não tendo conhecido “sarna, nem moléstias de olhos” (Cunha, 1835: 45). E
esta era uma época em que a Casa Pia teria tido no seu interior grandes enfermidades
A escola como oficina das almas
178
“algumas das quais se haviam já tornado verdadeiras endemias no estabelecimento”,
“uma delas, a oftalmia, que ainda por muitos anos devia servir de flagelo da
população da Casa Pia” (Silva, 1896: 76).
Sucederam no ensino dos surdos a Crispim da Cunha, dois antigos alunos
surdos da instituição, Augusto de Castro e José da Costa, que ali permaneceram por
pouco mais de uns meses, pois ainda no ano de 1835, viria a ocupar o lugar de
professor de surdos um empregado do instituto, Bernardo José Fragoso que, na
opinião de César da Silva na sua Breve História da Casa Pia nos diz que “o
verdadeiro professor” deveria ser “algum surdo-mudo, que por mais inteligente ou
mais prático no método, se prestava a ensinar os seus companheiros” (1896: 93). Em
1836, José Ferreira Pinto Basto era nomeado Administrador da Casa Pia de Lisboa e
num relatório elaborado em inícios de 1837, dava conta das aulas em exercício na
instituição: “‘caligrafia, aritmética, gramática portuguesa, ortografia, inglês, francês,
geografia, pintura, desenho, litografia, música instrumental e vocal, dança e
esgrima’”. Dizia o Administrador que estas aulas eram “‘regidas por professores’”
que, a seu ver, eram competentes para as leccionar a “‘discípulos de ambos os sexos,
e até surdos e mudos, que pelos seus progressos’” dariam grande “‘satisfação a Vossa
Majestade e honra à nação portuguesa’” (Silva, 1896:106, 107).
No ano de 1840, é José Maria Pereira, aluno surdo da Casa Pia que assume a
direcção da educação dos alunos surdos, acumulando este cargo com o de escriturário
da repartição de fazenda. Ary dos Santos afirma que “o seu trabalho como professor
não foi digno de menção”, sendo a causa principal uma instrução pouco elevada, mas
era um “desenhador bom” e um “calígrafo distinto”. Por esta altura, o ensino dos
surdos na Casa Pia era misto e constava “do ensino das letras, contas, desenho e
cursos profissionais de alfaiate, sapateiro, canteiro, funileiro, carpinteiro e torneiro”.
Para as surdas compunha o currículo escolar a costura, “fazer meia, marcar, bordar e
fazer cordões de cabelo, artefactos que então estavam muito em moda” (1920: 98).
Ditava o regulamento que poderiam ser admitidos alunos pensionistas mediante 3$00
ao mês e quanto a idades, sabe-se que era permitido que os alunos permanecessem na
instituição após os vinte anos, facto este que, ainda na opinião de Ary terá contribuído
para que “contraíssem hábitos que os inutilizaram para a vida honesta e
independente” (Santos, 1920: 98). Em 1844, o subsídio concedido pelo governo para
auxílio dos surdos-mudos foi suspenso, desorganizando completamente este ensino
Os surdos na escola
179
na Casa Pia de Lisboa. Seria em 1860, definitivamente extinto o ensino dos surdos na
instituição e durante todo o tempo que restava do século XIX. José Maria Eugénio de
Almeida traçava o cenário em que habitavam os surdos na Casa Pia de Lisboa,
aquando da sua entrada como Provedor:
“Há surdos e mudos de um e de outro sexo: os do sexo masculino têm como
único mestre, único regente e único guia, um surdo-mudo dos que foram
educados no antigo instituto, o qual tem desempenhado como simples aluno essas
funções todas do modo que pode; os do sexo feminino não têm mestra sua, e
quando aquele tem ocasião vai lá dar-lhes algumas lições. Das aulas próprias para
ensinar a escrever, a contar e tudo o mais que se pode ensinar aos cegos, não
achei vestígio algum.
Em toda a parte, onde tenho visitado estabelecimentos desta natureza, notei que
havia guias para dirigir esses infelizes nos passeios, nos recreios e nos exercícios,
e que estes eram combinados de um modo especial a fim de lhes serem úteis. Na
falta disto, acontece que essas pobres crianças mudas e cegas estão aqui expostas
a padecer sem poderem queixar-se de todas as travessuras que lhes fazem as
outras crianças que as cercam por toda a parte. Notei também que se procurava
nesses estabelecimentos desenvolver a inteligência e guiar a vontade por uma
infinidade de mapas, de quadros, de objectos em relevo, de mil lembranças
engenhosas, que homens distintos, com vista e com fala, postos à testa daqueles
institutos têm inventado e aperfeiçoado com arte delicada e com paciência
incansável. [...] Escuso dizer a V. Ex.ª que nada disto há aqui. O que há pois? Há
um nome sem realidade; impostura indigna da nação em cuja boca se põe, e que
serve somente para iludir o público, fazendo-lhe acreditar que existe ainda este
estabelecimento, quando dele não restam senão miseráveis fragmentos”
(Almeida, 1861: 95, 96).
Das palavras de Eugénio de Almeida fica traçada a ideia de que após a saída
de Crispim da Cunha, o ensino dos surdos não terá atingido qualquer progresso,
muito pelo contrário, acelerou-se em decadência ao ponto de existir o nome sem a
realidade. É com José Maria Eugénio de Almeida que se dão as grandes reformas da
Casa Pia de Lisboa, “alma generosa”, “dotada com uma razão ilustrada e com uma
vontade indomável, livre de preconceitos” que “empreendeu, qual médico experiente”
“a cura radical da doença de que estava enfermo o estabelecimento”. Na Casa Pia
anterior a Eugénio eram grandes as desproporções entre “despesa real” e “despesa
A escola como oficina das almas
180
racional”, “a educação física, compreendendo a alimentação, o asseio a higiene e a
ginástica” eram fracas, incompletas e viciosas (Raposo, 1869:7-9). Daqui resultava
um cenário de ingoverno da população estudantil, de uma má educação, de um foco
de doenças contagiosas em que as oftalmias, crescendo a olhos vistos, deixavam
muitos alunos cegos. Foi, portanto, neste contexto que terão sobrevivido os alunos
surdos da Instituição. Tornava-se necessário, na visão estratégica de Almeida, alterar
a organização do estabelecimento. Um dos pontos fundamentais era a redução do
número de alunos. Dos “oitocentos a mil e tantos alunos” do antigamente, passou-se a
seiscentos. Dos 20% que sucumbiam e de outros tantos que ficavam “inabilitados”,
caminhou-se para quatro mortos em 8 anos (de 1860 a 1869) e mais nenhum
inabilitado (Raposo, 1869: 9). Era de todo inviável que um “colégio de educação
popular” fosse “conjuntamente asilo de inválidos, hospital de incuráveis e casa de
educação”. Deste modo, nenhum dos fins poderia ser “regularmente desempenhado,
porquanto as regras disciplinares, os cuidados, os alimentos, os recreios, a educação,
enfim, que tem aplicação a uma destas classes não a pode ter às outras” (Almeida,
1862: 103, 104). A desarmonia seria completa, pelo que, uma das primeiras decisões
passava por:
“considerando que por falta de providências bem combinadas que estabeleçam de
modo eficaz o exame do estado sanitário dos orfãos que são mandados para esta
casa, e que pelo resultado desse exame regulem as entradas, acontece que há hoje
na Casa Pia um número considerável de orfãos de um e de outro sexo, que pelo
seu estado moral ou físico são incapazes de se lhes aplicarem os regulamentos da
casa e de receberem a educação que nela se deve dar, e tais são os idiotas, os
paralíticos, os cegos, os surdos, os tísicos, os atacados de moléstias incuráveis ou
contagiosas, especialmente os oftálmicos, os enfezados, os quais todos pedem
cuidados constantes e minuciosos” e por isso, “Artigo 1 - É instituído na Casa Pia
um colégio especial e inteiramente separado dos outros, o qual será formado
exclusivamente com os alunos que pelo seu mau estado físico permanente ou
temporário devem ser separados de regime comum aos outros alunos e receber
cuidados especiais” (Almeida, 1862: 103-105).
Este colégio deveria tomar a denominação de Colégio dos inválidos. Apesar
da data de publicação destas Portarias, aquela que aqui se refere datava de 22 de Maio
de 1860, ano, portanto, em que definitivamente se punha termo à presença dos surdos
Os surdos na escola
181
na Casa Pia, transferindo-os para secções do Asilo Municipal de Lisboa. A decadência
em que vivia o instituto de surdos na Casa Pia, foi também corroborada por Vítor
Ribeiro na sua História da Beneficência Pública:
“Na Casa Pia teve o instituto vários professores, e apesar da decadência em que
caíra, alguns dos seus educandos se dedicaram com proveito ao desenho, e foram
completar cursos à Academia de Belas-Artes, ou alcançaram profissões práticas,
com que conquistaram vida independente” (1907: 204). Francisco José Marques
ou Rafael Idésio Maria Pimenta são disso exemplo, destacando-se o primeiro
como pintor e o outro como gravador.
É certo que a partir desta data surgiram iniciativas particulares de ensino de
surdos em Lisboa, no Porto e em Guimarães. Em Lisboa não poderemos esquecer
Pedro Maria de Aguilar que abriu no Liceu de Lisboa um curso gratuito para surdos e
que em 1872, se deslocou para Guimarães onde continuou o seu trabalho de instrutor
destas classes. A ajudá-lo tinha dois sobrinhos, Eliseu de Aguilar e Joana Barbosa do
Lago. Em Guimarães, Pedro de Aguilar não terá permanecido por mais de dois anos,
mudando-se então para o Porto, cidade onde continuou o seu trabalho, chegando
mesmo em 1877 a ser subsidiado pela Câmara. É Eliseu que lhe sucede no ensino dos
surdos nesta cidade. Também no Porto, por escritura de 21 de Março de 1893, surge
“um notável instituto de surdos-mudos”, custeado pela herança que José Rodrigues
Araújo Porto lega para a causa de ensino dos surdos (Ribeiro, 1907: 205). Foram aí
professores Joaquim José da Trindade e Nicolau Pavão de Sousa, este último indo
para Paris realizar o curso especial do Instituto Nacional de surdos-mudos e mais
tarde, transferindo-se para a Casa Pia de Lisboa. Em Lisboa, após a extinção do
ensino para surdos na Casa Pia, funcionou na Rua de S. Lázaro e na do Benformoso,
de 1880 a 1887, um instituto para surdos e cegos dirigido por Emídio José de
Vasconcelos. No seu colégio terá tido apenas catorze alunos entre os 11 e os 13 anos,
ensinando-lhes “caligrafia e um dos seguintes ofícios: alfaiate, sapateiro e
encadernador” (Santos, 1920: 114). Apesar dos subsídios recebidos pela Câmara
Municipal, as receitas não eram bastantes para uma continuação independente deste
instituto pelo que foi definitivamente absorvido pela Câmara, passando a sua sede
para a Ajuda. Foi esta escola incluída nas secções que compunham o Asilo municipal
de Lisboa, “em internatos mistos de falantes e surdos-mudos”. Em 1887, era Eliseu
A escola como oficina das almas
182
de Aguilar que dirigia o então Instituto Municipal de surdos-mudos de Lisboa, sendo
suspenso pouco tempo depois e assumindo o cargo de professor Inácio José Miranda
de Barros que “tentou introduzir o ensino pelo método oral” (Filipe, 1920: 11). Por
esta época a população de alunos contabilizava-se em 23 alunos surdos e 7 alunas
surdas, os primeiros internados em instalações na Rua da Santíssima Trindade e as
segundas num edifício do Largo da Graça. A Reforma da Beneficência Pública de 24
de Dezembro de 1901, viria determinar que o ensino nas duas classes passasse a ser
ministrado pelo professor surdo-falante Augusto Joaquim da Silva Campos, que viria
a ser professor de desenho no Curso industrial da Casa Pia de Lisboa. Os alunos
permaneceriam no instituto até aos dezoito anos, recebendo ensino profissional nas
escolas industriais. A título particular, a cidade de Lisboa contou ainda com o ensino
gratuito para surdos no Convento do Bom Sucesso, ministrado por madre Maria
Petronilla e, talvez o exemplo de maior sucesso, um colégio para surdos, em Benfica,
dirigido por Anicet Fusillier e por sua mulher. Fusillier havia iniciado o seu trabalho
no Instituto de surdos-mudos de Paris, tendo igualmente leccionado no instituto de
Chambery e no de Gentilly. Fundado em 1890, este colégio admitia alunos internos e
externos, “sendo a mensalidade dos primeiros 45$00 réis, tornando-se por esta razão
privativo dos alunos pertencentes a famílias abastadas” (Santos, 1920: 116). Todavia,
a irregularidade e os inúmeros percalços sofridos ao longo dos anos, levavam a que,
ainda em 1942, José da Cruz Filipe, constatasse a necessidade de alargamento na
educação de crianças com desenvolvimento irregular:
“Porém, em muitos países já se vai reconhecendo também a necessidade de
obrigatoriamente ser cuidada e alargada a educação de milhares de crianças, cuja
irregularidade de desenvolvimento prevê funestas consequências se, a tempo, se
lhe não opuserem as devidas barreiras. Mas, para que essa acção possa ser
profícua, é indispensável uma campanha forte em favor desta questão humana
quão imperiosa, devendo a influência dessas salutares medidas atingir todos os
que se encontrem em estado de carecer delas” (1942: 14, 15).
Mas foi o decreto de 27 de Dezembro de 1905 que reorganizando os serviços
de beneficência pública, transferia para a Casa Pia de Lisboa as crianças surdas até aí
cuidadas na Secção de surdos-mudos do Asilo Municipal. Foram 35 no total os novos
alunos e alunas surdos, a habitarem as instalações de Belém. Outro decreto, de 5 de
Os surdos na escola
183
Abril de 1906, autorizou a admissão de alunos surdos pensionistas e mandou adoptar
o método intuitivo oral “por ser o que melhores resultados, até então, havia dado nas
escolas estrangeiras” (Filipe, 1920: 16). Estava traçado o perfil do que viria a ser o
ensino das crianças surdas durante grande parte do século XX. O método oral puro,
considerado a partir do Congresso Internacional de Milão, realizado em 1880,
largamente favorável ao ensino das crianças surdas, marcava presença orientadora
nos principais institutos de surdos da Europa. Em 1900, num Congresso Internacional
pour l'etude des questions d'assistance et d'education des sourds-muets, Henri
Gaillard, apresentava uma comunicação em que dizia que “entre toutes les méthodes,
celle qui semble la plus excellente, c'est la méthode orale pure, celle qui rend le
mieux, je ne dis pas complètement, le sourd-muet à la sociétè”. O especialista
aconselhava a começar-se, pelo menos a partir dos seis anos “sans tarder l'étude de la
langue, non pas avec des livres, des vocabulaires plus ou moins ingénieux, mais avec
les phrases de la vie courante, d'une portée usuelle. C'est comme cela que l'enfant
comprendra le sens des mots et sourtout leur valeur exacte. Parallèlement, menez
l'enseignement de l'écriture, l'enseignement du dessin et les travaux manuels”. E
mesmo que o aluno surdo se rebelasse contra a aprendizagem do método oral,
manifestasse predominância do gesto sobre a palavra, os primeiros quatro anos de
escola, decerto o fariam perceber “des bienfaits de l'orale”. “Cette rebellion est peut-
être le fait d'une arriération d'esprit, d'une mauvaise disposition, aphasie motrice, des
organes vocaux, d'une précarité endémique de la santé, d'un état général
supranerveux, ou plus simplement d'une antiphathie volontaire ou impulsive de
l'enfant”. Em semelhante situação, o professor de surdos deveria servir-se de um
saber sobre o aluno e criar técnicas de intervenção. Poderia tirar partido da
preferência pelo gesto e trabalhá-lo como meio de aproximação ao seu aluno,
tentando então um método misto de signos: palavra e escrita. Pormenor de extrema
importância no processo educativo das crianças surdas era o próprio contexto em que
decorria o processo. Um sistema de internato surgia como proposta aliciante porque
possibilitaria que os alunos vivessem “en récréation, au réfectoire, au dortoir”,
aprendendo “à se connaitre, à s'aimer, à s'entr'aider, à se pénétrer de tous les
sentiments de solidarité qui doivent régir la société de demain” (1900: 83-85).
Nenhum campo será tão profícuo quanto o da escola, para controlar e disciplinar toda
uma população. É a partir da inserção da criança na escola que é possível criar
A escola como oficina das almas
184
tipologias, perceber cientificamente as diferenças entre os escolares e classificá-los de
acordo com elas.
São estas produções discursivas que tecem sistemas de verdade que, por sua
vez, no interior da escola, pelo recurso a técnicas – derivadas de um saber sobre os
sujeitos –, os produzem de acordo com modelos normativos. Os atributos e
competências de cada aluno, quando classificados negativamente, instalam-se como
estigma no indivíduo que os possui. Erving Goffman, define o estigma como a
representação construída sobre a figura do Outro, tendo, evidentemente, como
referente uma visão idiossincrática. É o atributo que o Outro exibe, diferente daqueles
que dentro de uma determinada categoria seria previsível assumir:
“While the stranger is present before us, evidence can arise of his possessing an
attribute that makes him different from others in the category of persons available
for him to be, and of a less desirable kind - in the extreme a person who is quite
throughly bad, or dangerous, or weak. He is thus reduced in our minds from a
whole and usual person to a tainted, discounted one. Such an attribute is a stigma,
especially when its discrediting effect is very extensive; sometimes it is also
called a failing, a shortcoming, a handicap. […] “which are incongruous with
our stereotype of what a given type of individual should be” (1990:12,13).
A escolaridade obrigatória implicou um alargamento da educação ao conjunto
da população infanto-juvenil, ainda que fosse essa mesma escola que se queria para
todos, a produtora de exclusões. A educação era vista como via única para um
progresso do Estado-nação e a criança classificada anormal, via-se envolvida em
práticas correctivas que pretendiam restituir-lhe uma normalidade imaginada. As
escolas convertem-se em laboratórios de detecção de casos desviantes e de aplicação
de pedagogias correctivas, mas estas crianças diferentes desempenham o importante
papel de barómetro de regulação da normalidade. Foi exactamente pela detecção de
casos desviantes que se tornou possível criar dispositivos reguladores de condutas
numa população escolar normal. A escola seria então o espaço da correcção.
A funcionar desde 1905, a Secção de surdos-mudos da Casa Pia admitia
apenas anormais com o domicílio de socorro na capital. Em 1915, porém, alterou-se o
Regulamento, passando a instituição a receber os alunos com domicílio fora de
Lisboa e os de Lisboa que não tinham residência, em regime de internato, sendo que
Os surdos na escola
185
os alunos com residência em Lisboa, passariam ao regime de semi-internato. A estes,
era-lhes atribuído um pequeno subsídio, compensatório da cessação do favor de
internamento. Continuariam a ser admitidos pensionistas à razão de 6$00 mensais.
Em 1918, era manifesta a necessidade de alargamento do quadro docente da Casa Pia.
Passa a haver dois professores efectivos e três auxiliares na secção masculina e dois
professores efectivos e um auxiliar na secção feminina. Nesta secção só seriam
admitidas professoras. As disciplinas de trabalhos manuais, de desenho e de ginástica
poderiam ser leccionadas pelos professores que também as ministravam aos ouvintes-
falantes.
Os regimes disciplinares, combinados com os discursos pedagógicos sobre
como actuar com a criança surda, tinham a ambição de transformar a sua
incapacidade comunicativa com o ouvinte, levando-a a aceitar medidas de
normalização social. Não foi nunca esquecida a construção da autonomia e
responsabilidade do aluno surdo, transferindo-lhe como desejo e necessidade a
aprendizagem da língua oral, mas também dos restantes saberes escolares ou dos
ofícios que lhe permitiriam, mais tarde, incluir-se como corpo produtivo e útil na
sociedade.
José Crispim da Cunha, professor de surdos no período compreendido entre
Novembro de 1824 e Fevereiro de 1834, traça um primeiro quadro da organização da
educação das crianças surdas. Os alunos eram divididos em duas classes, de um lado
as meninas, do outro, os rapazes.
“Em todos os dias não notificados havia lições desde as 8 e meia horas da manhã
até às 10, e desde as 11 até à uma hora. De tarde se ensinavam os ofícios
mecânicos, e o desenho, para o que havia um mestre alfaiate, um sapateiro, um
carpinteiro, ou marceneiro, e um funileiro, sendo o desenho ensinado pelo
ajudante ou por mim: as meninas eram ocupadas pela Regente nos trabalhos
próprios do seu sexo, e ao cego se ensinava a tocar piano, rabeca, fazer meia,
&c.” (Cunha,1835: 16, 17).
Reconhece-se aqui o esboço de um espaço de governo da classe. Os horários,
a divisão por género, a prescrição de tarefas úteis do ponto de vista social e
disciplinadoras do aluno.
Em 1907, Cruz Filipe enviava de Paris um relatório – resultado da sua
A escola como oficina das almas
186
investigação no Instituto de surdos-mudos dessa cidade – em que dava conta dos
“processos empregados, para preparar os orgãos do aluno a perceber e a emitir a
palavra, para provocar e corrigir a voz, para ensinar de per si cada elemento fonético,
para unir estes elementos entre si, segundo as múltiplas combinações” que
constituíam “a língua falada”. Mas antes tornava-se inteiramente necessário preparar
o aluno para a hospedagem da palavra.
A educação dos surdos era diferente da dos ouvintes. Ao surdo não se podia
fazer ouvir o som da língua oral, o que desde logo deveria constituir razão suficiente
para não fazer desta língua uma língua materna. Contudo, se por um lado se
pressentia que era pelo gesto que melhor o surdo se comunicava, por outro, em
sociedade a língua das mãos dificilmente seria percebida. Havia até quem
considerasse próprio do surdo falar com as mãos, e imaginasse mesmo “que o ensino”
só se podia “dar pelos sinais”. E era verdade que estes constituíam “uma linguagem
própria, conhecida há muito e enriquecida pouco a pouco, linguagem rica em
vocábulos, com uma sintaxe particular” que facilitava “imenso a expressão rápida das
ideias. Com ela, surdos-mudos inteligentes alcançaram resultados surpreendentes e
tornaram-se úteis aos seus infelizes irmãos, ministrando-lhes depois ensino regular”.
Ainda assim – apesar das vantagens – seriam numerosos os inconvenientes: a sintaxe
produzida pelo surdo era contrária à da ordem gramatical do ouvinte, os seus gestos
eram violentos para o olhar do que ouvia, era grande a morosidade do dizer das coisas
e, também, do fazer-se perceber “fora do colégio” (Fusillier, 1893: 391, 392).
É, portanto, o problema da implantação da língua que aqui se coloca. Mas de
uma forma específica, pois esta implantação longe do sentimento de violentação,
deveria sentir-se como convite de todo favorável à criança surda. Os mestres do
ensino falavam constantemente dos inúmeros benefícios que adviriam a estes
“deserdados da sorte, preparando-os e dotando-os com a palavra” para que “mais
facilmente” afrontassem “as vicissitudes da vida” (Filipe, 1920:3).
Aprender a falar com a boca, e ler a fala na boca dos outros, constituía-se
como o grande desejo da criança surda. Ou pelo menos assim se construía.
A construção do surdo enquanto educando numa escola de ouvintes
pressupõe, à partida, que o mestre seja autor de uma conquista. Com que arte, era já
uma questão apresentada num compêndio para o ensino dos surdos-mudos, de 1881.
A resposta não anda longe do que tenho tentado tornar evidente. O trabalho sobre a
Os surdos na escola
187
alma do educando, parece ser o ponto essencial para que se alcance a sua vontade. “É
estimá-lo, e dar-lhe sinais de afeição. Por outro modo não se poderia obter dele
confiança, nem dominar sua índole selvagem”. Parece não haver qualquer dúvida de
que para conquistar a confiança do aluno, “ que se traduz logo em cega afeição, só há
um meio, a amizade, manifestada racionalmente por todos os meios e em todas as
ocasiões”. Construído um ambiente de confiança, o professor teria “nas suas mãos um
discípulo tão dócil” quanto “é dúctil a cera”. Daí para a frente, “com o calor do
carinho”, poderia moldá-lo à “forma” que lhe indicassem “a sua sabedoria e os
sentimentos do seu coração” (Leite, 1881: X, XI, 6, 7). Para que o processo educativo
do aluno surdo fosse viável, teve de se isolar o aluno numa espécie de redoma
protectora fabricada na espessura de mecanismos de relação professor-aluno, de
centragem do ensino na criança, de sistemas de vigilância, de tecnologias reguladoras
através das práticas inscritas no espaço institucional.
O que pretendo mostrar é que a colonização do corpo da criança surda pela
língua oral, torna-se possível unicamente porque o ouvinte, mestre, sabe como actuar
sobre a sua alma. Tomem-se as palavras de D. António da Costa, ainda no século
XIX, como ilustração do que deveria acontecer no processo educativo:
“Na educação, medicina da alma, o tecto é tudo; esforçai-vos por alcançá-lo.
Infiltrai-lhe o amor ao trabalho. Preparai-a para combater as paixões com que se
vai achar a braços, e para sair delas vitoriosa. A criança vai pedir à escola a
ciência da felicidade. Ensinai-lha, professores, convencendo-a de que a felicidade
consiste no cumprimento do dever, na limpidez da consciência, nas nobres
ambições de ilustrar o próprio nome com actos que beneficiem a humanidade”
(1870: 34, 35).
A educação enquanto medicina da alma tinha por função curá-la, afastá-la da
preguiça e de vícios, infiltrando-lhe o amor ao trabalho, prepará-la para enfrentar
paixões, negando-as e escolhendo caminhos racionais. No fundo, tudo o que a criança
desejava era ser feliz e a sua felicidade seria aquilo que o mestre desejasse que o
fosse. Era preciso, primeiro, que o educador mais do que instruir conseguisse captar o
seu aluno por forma a estabelecer uma relação de afecto. “Já que o surdo-mudo” se
apresentava, “antes de adquirir a instrução necessária como uma espécie de
selvagem”, o “primeiro cuidado” seria mesmo “o de merecer a sua confiança e
A escola como oficina das almas
188
estima” pelas “maneiras afectuosas e de o subjugar pela doçura e bondade” (Filipe,
1907: 6). Se, em certas pessoas, “a formação da vontade” era “fácil”, noutras, dizia-o
o Director Geral da Saúde Escolar, João Serras e Silva, era tarefa “difícil, e até muito
difícil”, “conforme a natureza” ajudasse ou não ajudasse. “Cultivar a vontade”
equivalia a “fazer grande parte da educação moral – dominar os desejos, as
impulsões, o amor do prazer ilícito […], o temor do esforço, […]. Ser dono de si
mesmo, dos seus nervos e das suas paixões. Cultivar a vontade não pertence ao
programa dum ano do liceu, pertence a todos eles” (1938: 222,223).
A transformação do surdo em aluno surdo implica o abandono de um estado
selvagem, e a entrada num mundo de moral. A aquisição da língua seria a
possibilidade de este desenvolver ideias – boas, más, justas, injustas, correctas,
incorrectas – legitimadas por uma comunidade que estabelecia a norma. “A
consciência, o valor dos actos morais, as exigências do dever”eram sem dúvida
“aspectos em que se” verificavam “diminuições de personalidade na criança surda”.
O dever – obrigação moral de qualquer membro da sociedade - seria, como já referi,
oferecer hospitalidade a estes estrangeiros que por não ouvirem estavam tão próximos
do despotismo dos “desejos”, das “impulsões”, dos “prazeres ilícitos”, da preguiça e
de tantos outros males, sem sequer disso terem consciência (Tavares, 1959: 11).
A ideia de um Estado jardineiro de que Bauman fala em Modernidade e
Ambivalência, tem que ver com um cultivo das plantas úteis e uma remoção, ou, pelo
menos um controlo e localização do crescimento das ervas daninhas. Ainda mais
porque essas que eram nomeadas como ervas daninhas eram “plantas que se
tornavam ervas daninhas simplesmente porque uma razão superior exigia que a terra
ocupada por elas fosse transformada em jardins de outros” (Bauman, 1999: 38). O
professor deveria assumir-se como jardineiro, devendo proporcionar à criança
condições de desenvolvimento em consonância com a sua vida interior. Não era,
portanto, da anulação do mestre que se falava mas antes de um actor que, dominando
técnicas especiais de intervenção, conseguisse criar raízes férteis na alma do aluno. A
postura do professor numa perspectiva das construções da modernidade, como a do
médico e, por analogia a do jardineiro, era construtiva mesmo quando identificava
irregularidades. Sobretudo, eram essas irregularidades que potenciavam os regimes
correctivos, ortopédicos ou higiénicos.
Saber, técnicas e discursos científicos tecem a possibilidade de poder, de
Os surdos na escola
189
controlar, de neutralizar, de modificar aqueles que se afastam da norma. São três os
tipos de tecnologias implicadas na educação das crianças surdas: as disciplinares, as
biopolíticas ou regulamentadoras, e as tecnologias do eu. Nesta segunda parte será
dada maior ênfase às tecnologias disciplinares e do eu, embora a regulamentação, a
normalização do aluno surdo permaneça sempre como pano de fundo de tudo o que
aqui será escrito, mas a verdade é que a alma, mais do que o corpo será o primeiro
objecto a ser conhecido e disciplinado.
(Amaral, 1954)
A escola como oficina das almas
190
A admissão do surdo na Casa Pia de Lisboa
191
2.A ADMISSÃO DO SURDO NA CASA PIA DE LISBOA: SAÚDE E HIGIENE,
EXAMES E REGISTOS
Ficha individual do aluno Correcção da respiração Observação audiométrica
(Arquivo da Casa Pia de Lisboa) (Amaral, 1954) (Amaral, 1954)
Será agora altura de olhar a paisagem educativa da Casa Pia como sendo habitada por
um conjunto de actores que assumia uma preponderância máxima quando se tratava
de dizer da saúde, do desenvolvimento, da normalidade e da anormalidade dos
escolares. Refiro-me claro está aos médicos que começam a ser presença constante na
Casa Pia de Lisboa desde o século XIX, muito embora, tenham sido o tempo e a
experiência a desenvolver a operatividade das técnicas médico-pedagógicas. A
criação de um Instituto médico-pedagógico na Casa Pia de Lisboa data de 1915,
instalado no edifício de Santa Isabel e devendo-se à iniciativa do seu director,
António Aurélio da Costa Ferreira. Iniciarei esta incursão sobre a figura do médico na
paisagem casapiana considerando duas tópicas essenciais a partir mais ou menos de
1850: a saúde e a higiene dos escolares. Embora pouco demorada, esta visita traçará
uma linha que nos conduzirá às práticas do exame e do registo, levando-me a
desenvolver estes conceitos de uma forma articulada. O exame dos escolares seria
inseparável da prática de registo que iria habitar os arquivos da instituição. A prática
Saúde e higiene, exames e registos
192
que Erving Goffman lê como sendo de violação da reserva de informação quanto ao
eu do sujeito que é institucionalizado: “during admission, facts about the inmate’s
social statuses and past behaviour – especially discreditable facts – are collected and
recorded in a dossier available to staff”, naturaliza-se de tal forma que passa a ser um
procedimento que não é posto em causa nem pelos actores ao serviço da instituição
nem pelos que nela ingressam (1991: 32). De facto, esta prática de registo é útil a
vários níveis e insere-se numa perspectiva de governamentalidade. As relações de
poder e de saber aqui envolvidas determinam e legitimam a sua existência. Gostaria
de referir, por exemplo, que a obrigatoriedade de registo dos dados resultantes de um
exame determinava a vinculação à escrita dos actores da instituição. O saber passava
pela sua transcrição num discurso escrito que fixava, obrigatoriamente, uma
linguagem comum ao grupo de especialistas que tinha o poder de dizer sobre o aluno.
Foi aliás esta regularidade do registo que permitiu “estruturar uma política integrada
de governo, racionalizando o movimento e a distribuição da população” escolar,
“viabilizando igualmente um ensino individualizado e um trabalho terapêutico
direccionado para o corpo e a alma” de cada aluno (Ó, 2003: 10).
A introdução da medicina na paisagem escolar vem criar e desenvolver uma
lógica de construção científica do normal e do patológico. Será, portanto, mais uma
técnica moderna de controlo da sociedade: não só um poder que se fixa no corpo do
aluno, mas também, como se verá, na família e nos antecedentes hereditários dos
alunos (pais, avós, etc.). A presença de médicos na escola dá corpo à estratégia
biopolítica já apontada, marcando pela continuidade e intensividade do seu exercício
um regime normal que servirá de referente para a produção da docilidade e utilidade
do corpo. O aluno surdo seria, no contexto educativo, um objecto diferenciado pelo
olhar de um grupo de especialistas e, também, objecto de intervenção ortopédica. O
poder aplicado sobre estes alunos no sentido de uma normalização, invasivo da
condição surda é, porém, positivo e produtivo sob a perspectiva de
governamentalidade inerente ao bom governo da população. As estratégias de
distribuição, diferenciação e classificação dos escolares actuam em sistemas
reguladores e normalizadores, orientados pela ideia de uma população saudável. O
alargamento da prática clínica ao espaço escolar é imagem da contaminação de várias
áreas da vida e campos do saber por estas práticas, passando então a considerar-se no
interior do foro médico questões antes situadas fora deste e intensificando-se a
A admissão do surdo na Casa Pia de Lisboa
193
relação que o sujeito passa a estabelecer consigo, impulsionada agora por um olhar
científico que funciona como interface na visão do corpo próprio.
Num Regulamento para os Regentes da Casa Pia de Lisboa datado de
Dezembro de 1859, são já manifestas as preocupações com a saúde dos educandos.
No artigo 6º ordenava-se que os Regentes evitassem “com a maior eficácia, que os
alunos” andassem “expostos ao sol” e que proibissem “qualquer divertimento que
lhes” pudesse “ser prejudicial”. No artigo 15º do mesmo Regulamento lê-se que “os
Regentes” procurariam “com a maior vigilância descobrir se algum dos seus alunos
sente algum incómodo de saúde, e neste caso”, os conduziria “imediatamente à
enfermaria” (Regulamento manuscrito, s/p). Saúde e higiene foram duas faces da
mesma moeda. Em 1880, num Regulamento para o Prefeito e sub-Prefeitos da Casa
Pia de Lisboa, determinava-se a obrigatoriedade destes actores em desempenharem
um cuidado serviço de vigilância quanto ao “asseio pessoal dos alunos, vestuário,
camas e utensílios do seu uso”. No artigo 16º estabelecia-se que nenhum aluno
deveria ter “bacia de cabeceira” que estivesse rachada, pois poderia feri-lo, e não era
permitido manter estes objectos “sem uma pequena porção de água a cobrir o fundo,
para evitar os maus cheiros e as incrustações”. Artigo 17º: os sub-Prefeitos
ordenariam “que os pentes finos se” conservassem “limpos, fazendo substituir
qualquer, que, pelo seu muito serviço não” estivesse em estado de bem servir”. Artigo
31º: Cada sub-Prefeito daria sempre “atenção aos alunos, quando” estes se
queixassem “de doenças, ainda que à primeira vista” parecesse o lamento
“impertinente ou vicioso, porque as crianças geralmente fogem a queixar-se, e
quando alguma maliciosamente o” fizesse, lá estaria “o facultativo para corrigir esse
abuso”. A regularidade de um discurso científico sob o ponto de vista da
maximização da saúde dos escolares adquiria grande expressão a tal ponto que,
mesmo os banhos quentes dos alunos, eram objecto de observação com o termómetro,
para verificar se a água estaria “na temperatura de 30 a 32 graus centigrados”, não
devendo ser o banho mais demorado do que “8 a 10 minutos”, e a presença dos sub-
Prefeitos para o rigoroso cumprimento destas normas disciplinares seria essencial.
Era sua a preocupação de vigiar as correntes de ar que pudessem “prejudicar a saúde
de qualquer aluno” e a manutenção no espaço da “casa de abafo” por um período de
“pelo menos dez minutos antes de saírem” para o exterior (Regulamento para o
Prefeito e sub-Prefeitos, 1880:7-19). Mas quem eram estes sub-Prefeitos e como
Saúde e higiene, exames e registos
194
conseguiriam fazer cumprir as regras? É evidente que “nem toda a gente tem a
predisposição mais conveniente para dirigir e tratar rapazes”. Decerto não seriam a
“severidade e a rispidez” “os melhores guias para governar crianças”, tampouco a
“benevolência piegas”. Os sub-Prefeitos eram pessoal que pela “força da autoridade,
conquistada pela correcção do procedimento, pela justiça e imparcialidade nas
apreciações e no julgamento dos factos e dos actos de todos os dias” relacionavam-se
com os alunos de forma afável, “com suavidade no trato”, com “seriedade de
carácter” (Margiochi, 1893: 23). As regras e o papel de cada actor permitiam gerir o
corpo de habitantes sob o mesmo tecto, tanto em termos disciplinares como
higiénicos e, consequentemente, em termos administrativos. Quando se sabe do
“terrível mal das oftalmias, que durante muitos anos zombou de todas as medidas
tomadas para seu aniquilamento”, atingindo “as proporções de 15 a 20 por cento, em
relação à população asilada” e das influências “do deplorável estado sanitário” desta
população devido à “acumulação em alojamentos de capacidade insuficiente”, às
influências nefastas de uma parca alimentação e à capacidade estrondosa de
proliferação das doenças devido a uma ausência de princípios higiénicos, facilmente
se percebe a necessidade de incorporar no corpo de especialistas da Casa Pia
elementos médicos (Silva, 1896: 125). Foi em 1861, por altura das grandes reformas
de José Maria Eugénio de Almeida que a Casa Pia passou a incorporar um médico
especialista de doenças oftálmicas. Na Portaria nº 20 de 25 de Janeiro de 1860,
Eugénio de Almeida, mandava publicar que os facultativos da Casa Pia passariam a
proceder a “uma inspecção rigorosa de todos os alunos para o fim especial de
examinarem as doenças de olhos, mais ou menos graves, de que cada um deles”
padecesse. Os resultados destes exames deveriam ser postos por escrito, “em um ou
mais documentos”, nos quais deveria constar o número do aluno na matrícula geral, o
colégio a que pertencia, o nome e idade. Igual inspecção deveria ser realizada às orfãs
e os documentos de registo teriam de especificar detalhadamente o estado geral da
saúde dos alunos, bem como a especificação da doença (Portarias da Administração,
nº1 a nº66: 66). Em 1895, Francisco Simões Margiochi, escrevia em A Real Casa Pia
de Lisboa, Notícia da sua fundação, que os “serviços sanitários” estavam a “cargo de
3 facultativos efectivos, 3 suplentes e um enfermeiro. Dois dos facultativos”
revezavam-se “fazendo serviços aos meses alternados”, sendo o terceiro “especialista
de doenças dos olhos” (1895: 24, 25). Sobre a higiene dizia ainda o Provedor:
A admissão do surdo na Casa Pia de Lisboa
195
“A higiene, isto é, o conjunto de regras e precauções, que harmonicamente
concorrem para a conservação da saúde, é na Casa Pia escrupulosamente
atendida; é ela o objecto de um verdadeiro culto. [...] A higiene – segundo a
expressão de um médico distinto – é o senso comum aplicado a tudo. Por isso na
Casa Pia de Lisboa os cuidados da higiene” “acompanham o aluno de dia e de
noite, em casa e na rua” (Margiochi, 1895: 27).
Para uma boa higiene, para uma boa saúde dos alunos, todas as prescrições
desenvolvidas nos Regulamentos da Instituição entravam em diálogo. Era o discurso
positivo da ciência a legitimar as práticas disciplinares da instituição: mens sana in
corpore sano, corpos disciplinados, dóceis e úteis. Trabalhados nos mais ínfimos
pormenores, nos detalhes. Os espaços físicos como dormitórios, casas de banho e a
capacidade máxima de alunos por aulas, eram aspectos de extrema importância. O
desenvolvimento de uma mecânica temporal, alternando-se os momentos de trabalho
com os de lazer. A reformulação do horário das refeições “para estabelecer uma boa
relação entre estas e o trabalho escolar”. As tabelas de alimentação “estudadas de
modo que as necessidades fisiológicas da nutrição sejam inteiramente satisfeitas”. Os
pesos médios e, portanto, normais, dos alunos. A regra de que após o jantar “só há
aulas, em que não se exige trabalho intelectual”: “desenho, música vocal e
instrumental, ginástica e exercícios militares”. Para os recreios, Margiochi propunha
o foot-ball, iniciando-se aí uma prática marcante no percurso escolar dos alunos
casapianos. “Como fecho completo de um sistema de higiene” determinava-se
absolutamente a proibição de “castigos corporais. No código disciplinar” figurariam
apenas “castigos que não” prejudicassem “fisicamente os alunos” (Margiochi, 1895:
28, 29).
Todos estes parâmetros eram objecto de representação em quadros e tabelas:
fixava-se números, contabilizava-se presenças e ausências, propunha-se prémios e
castigos, desenhava-se horários, prescrevia-se exercícios, ordenava-se tarefas,
recomendava-se receituários, apontava-se as entradas e as saídas, as admissões e as
baixas. Entre uma linha vertical e uma linha horizontal sugeria-se uma imagem da
população escolar homogeneizada, ainda que depois, nas práticas escolares, médicas,
de exame ou de registo cada um tivesse direito ao seu espaço. O que merece lugar de
destaque é este apego à prática da escrita: tudo e todos são contabilizados. Todos são
Saúde e higiene, exames e registos
196
normalizados na higiene, na alimentação, nas doenças, nos horários, nas
necessidades. Uns são objecto da escrita, outros são sujeitos da escrita. Ambos se
encontram vinculados à instituição e são localizáveis. Em 1880, o Provedor da Casa
Pia, aprovava o Regulamento para as repartições da secretaria e fazenda
“considerando que, tornando-se mais completo o sistema fiscal, teve de aumentar a
escrituração; a disciplina, tornando-se mais rigorosa e eficaz, sobrecarregou a parte
administrativa, de onde veio a necessidade de multiplicar o serviço de expediente”
(Almeida, 1881:62). O objecto onde se lêem estas palavras era igualmente elo de
ligação à prática do registo. Os Relatórios da Administração, regulares pelo menos a
partir de 1850, constituíam a memória das práticas que hoje se abrem a múltiplos
olhares. Já aqui referi que a biopolítica enquanto tecnologia que toma o corpo da
população tendo em vista contabilizar, classificar e corrigir-lhe os erros, estrutura-se a
partir da produção de um saber que promete pela norma, atingir cada sujeito na sua
individualidade e o faz caminhar em busca de uma felicidade. O controlo, a
observação, a fixação das práticas em discursos escritos, fundamentam a necessidade
de regulamentar para atingir pontos de equilíbrio. Evidentemente que a estatística
aparece como a ciência capaz de passar do uno ao múltiplo, possibilitadora de uma
imagem de um só corpo com inúmeras cabeças como o dos habitantes da Casa Pia de
Lisboa:
“Nos grandes agrupamentos de indivíduos, agrupamentos a que se dá o nome de
estados, não há dúvida de que a estatística, reduzida [...] a um estabelecimento
ainda assim da importância da Real Casa Pia de Lisboa, que, na sua larga
existência, tem tido um enorme movimento de gente, de material, de dinheiro e
de factos de variadíssima ordem” “além de dar uma noção clara e precisa da
marcha da existência da instituição, deve, pela comparação dos números,
despertar a atenção para muitos assuntos que, sem esse precioso auxiliar de toda a
administração, passariam sem reparo, não havendo meio de apreciar factos sem
intervir a comparação numérica de onde provenha mudança de orientação numa
determinada ordem de ideias” (Margiochi, 1893: 27, 28).
Não bastaria a compilação de dados, afirmava Margiochi, era necessário
interpretar esses dados para se atingir uma maximização de forças, com uma
economia de meios. Então, a introdução de “dados estatísticos” em “dezenas de
A admissão do surdo na Casa Pia de Lisboa
197
quadros comparativos, seriam elementos preciosos de estudo”. “E que valiosos
elementos de estudo para tantos fins” (Margiochi, 1893: 30). É de disciplina que se
fala, de observação dos mínimos detalhes, de um poder que estende o seu olhar sobre
todos os sujeitos, sobre os gestos mais quotidianos e que se faz circular. A Casa Pia
foi uma instituição moderna que nunca cristalizou e por isso é necessário entendê-la
na complexidade de redes que se foram estruturando. O exercício do poder que mais
facilmente se lê em quadros de submissão a regras institucionais, na verdade,
constituiu sempre um jogo estratégico de acções sobre acções, de efeitos sobre
efeitos.
Impossível não considerar o corpo como elemento central dos discursos
produzidos em volta do aluno: o corpo no espaço, o corpo na relação com os outros, o
corpo disciplinado, o corpo útil, o corpo a corrigir, o corpo a alimentar, o corpo a
educar, o corpo sempre alvo de observação. O corpo visto, escrito, fichado, dito e
guardado em palavras ou em imagens fotográficas nos arquivos casapianos. Mas
também, o corpo que se fabricou a si mesmo na sua experimentação do espaço, nas
relações com outros, que se disciplinou, se tornou útil e se corrigiu porque esse era
um domínio sobre si mesmo.
Sugiro agora apresentar o corpo na sua relação directa com as práticas
clínicas.
Lê-se assim no artigo 12 da Portaria nº 169, de 1886:
“Os orfãos chamados para entrar serão, antes da admissão, examinados por uma
comissão de facultativos, para se verificar se têm moléstia ou impedimento, de
que derive impossibilidade de entrar na Casa Pia.
§Único. Quando a moléstia ou impedimento, de que trata este artigo, for
temporário, o orfão será submetido a novo exame, três meses depois de se haver
feito o primeiro exame” (Almeida, 1886: 9).
Ora, o que se detém desta regra é o poder de constituir um saber sobre o
indivíduo, mesmo antes de ele ser incorporado na instituição. O exame de admissão
de qualquer aluno na Casa Pia passava pela observação e pelo registo, pelo olhar
legítimo de um especialista capaz de traduzir o que vê num discurso científico. E não
é apenas, como veremos, o sujeito que no momento da admissão se expõe perante o
médico, mas também o sujeito que se foi e o meio de que se provém. Michel Foucault
Saúde e higiene, exames e registos
198
refere a introdução do ‘biográfico’ no sistema penal como algo que faz “existir o
criminoso antes do crime e, num raciocínio-limite, fora deste” (2004:211). Como se o
passado que constituiu o indivíduo que se tem diante pudesse justificar as suas falhas,
os seus comportamentos actuais ou futuros. Estabelece-se uma rede causal entre o
que se foi e o que se será, legitimando assim qualquer prescrição terapêutica vinda da
boca de especialistas.
O Regulamento Geral da Casa Pia de Lisboa de 1904 determinava no Capítulo
X, os procedimentos obrigatórios relativos ao serviço clínico da instituição. Este
serviço médico seria feito por dois especialistas, um deles de doenças dos olhos,
competindo-lhes “fazer diariamente o serviço clínico dos alunos e empregados
internos doentes”, “fazer semanalmente uma inspecção geral de saúde”, “fazer o
serviço de inspecção para admissão dos menores”. No momento de admissão
deveriam os dois médicos examinar “minuciosa e atentamente os menores
apresentados” e preencher “o respectivo boletim, no qual” indicariam “se o menor”
estaria “apto para ser desde logo internado” ou se carecia de ficar em espera um
período de tempo por razões do “seu estado físico ou moral” ou por não poder
“aproveitar a educação” ou ainda, por a sua admissão representar um perigo para o
higiene do estabelecimento. No momento de admissão e “em épocas” determinadas
pela direcção, dever-se-ia proceder às “mensurações antropométricas dos alunos”
(Regulamento 1904: 38, 39). Não há, portanto, muitas diferenças entre os ditames
deste Regulamento e o de 1886, ainda que aqui se apele a uma cientificidade e rigor
da observação e se refira uma nova ciência de apuro de medidas e comparações.
Mesmo esta era, de resto, já falada em 1894. A portaria nº 70 desse ano considerava
“muito conveniente e interessante que numa colectividade tão numerosa como” o era
“o corpo dos alunos da Real Casa Pia de Lisboa”, se estudasse “em todo o
desenvolvimento a antropometria”. Francisco Simões Margiochi afirmava que era
mesmo “obrigação moral” “colher dados” que representassem uma “contribuição
valiosa para os estudos antropológicos” e que poderiam “com vantagem, ser
aproveitados pelos indivíduos ou corporações” que se dedicassem a tais estudos,
“como a sociedade de ciências médicas”. Este era um saber cujos custos de obtenção
eram praticamente nulos. Os alunos estavam à total disposição para serem
observados, tal como o pessoal em exercício de funções no estabelecimento. Todavia,
enquanto que para os segundos a submissão a exames antropométricos seria
A admissão do surdo na Casa Pia de Lisboa
199
facultativa, para os primeiros estabelecia-se que passasse a obrigatória. Desenhavam-
se três campos de observação e registo: perimetria da cabeça, do tórax e da coxa,
dinamometria das mãos, do pulmão, da tracção, do murro, do soco e do pontapé, por
fim, o peso dos escolares (Margiochi, 1894: 36, 37).
Em 1915, por ocasião da inauguração do Instituto médico-pedagógico,
António Aurélio manifestaria a utilidade de um diálogo próximo entre pedagogia e
antropologia. Dizia mesmo que “de futuro, todo o educador será antropologista, visto
que àquele muito importa conhecer a acção da hereditariedade, para melhor
aproveitamento e mais completos resultados do seu trabalho”. A razão era explícita:
“certos degenerados que muitas vezes na escola não conseguiriam aprender a
conhecer sequer os números, são susceptíveis de aprender a ler por processos
especiais de educação. Depende de lhes ir educando os sentidos, habituando-os a
fixar a sua atenção sobre as coisas e os objectos, ensinando-os progressivamente a
distinguir cores, formas, dimensões, etc.” (Anuário 1915-1916: 411). Do que falava o
Administrador da Casa Pia era da constituição de um saber que facilitasse o exercício
de um poder sobre o aluno, tornando mesmo aqueles que à partida se considerariam
ineducáveis, em sujeitos educáveis como todos os outros. Convertê-los em alunos
passando então a governá-los, estudando técnicas aplicáveis e eficazes sobre estes
seres. Cada indivíduo se tornaria um corpo útil, fosse pelo saber que permitia extrair
da sua condição, fosse pela incorporação de gestos, de comportamentos disciplinados,
pelos efeitos, relações e articulações com outros. Um primeiro momento de exame
pode ser visual, o médico observando o doente, mas é no interior dessa observação
que o médico garante ao questionário que se seguirá, o seu lugar num campo
discursivo. Cada um se torna um elemento observável e descritível mas não, como já
referi, objecto de um olhar naturalista. A leitura do indivíduo parte de uma visão
médica que percorre o corpo, mede, compara, procura revelar segredos que o corpo
esconde, desoculta verdades. Na admissão à Casa Pia de Lisboa os futuros alunos
expunham-se a um olhar sábio e produtivo, entravam individualmente num campo de
saber.
As crianças surdas que passaram a habitar a Casa Pia a partir de 1905 estariam
sujeitas a este mesmo Regulamento, ainda que, no seu caso, os exames médicos de
admissão tivessem de ser mais rigorosos e específicos no que dizia respeito à
incapacidade auditiva. Era necessário determinar com rigor as causas e os graus da
Saúde e higiene, exames e registos
200
surdez, não só para que sobre a doença se pudesse constituir um retrato rigoroso, mas
também para traçar com rigor as práticas pedagógicas a aplicar a cada aluno. O
exame enquanto técnica que documenta aquele que a ele se sujeita “faz de cada
indivíduo um ‘caso’: um caso que ao mesmo tempo constitui um objecto para o
conhecimento e uma tomada para o poder”. O caso “é o indivíduo tal como pode ser
descrito, mensurado, medido, comparado a outros e isso em sua própria
individualidade; e é também o indivíduo que tem que ser treinado ou retreinado, tem
que ser classificado, normalizado, excluído, etc.” (Foucault, 2004: 159).
Ary dos Santos após uma observação rigorosa das papeletas sanitárias dos
alunos da secção de surdos relativas aos primeiros 52 alunos do século XX, bem
como dos questionários realizados no momento de admissão, denunciava
“deficiências nas respostas e até manifestas contradições” (Santos, 1920:3). Ora, seria
tarefa dos médicos escolares inquirir pormenorizadamente a família do surdo quanto
à primeira infância da criança e também indagar relativamente aos antecedentes
familiares do aluno. Muitas das causas da surdez poderiam resultar de manifestações
hereditárias ou de acontecimentos patológicos precoces na vida da criança. Num
quadro que nos fornece uma imagem da população surda da Casa Pia nos anos de
1905-1906, dos 37 alunos registados, ficamos a saber da causa da surdez de 29 destes
alunos. Destes, 19 foram diagnosticados com surdez adquirida devido essencialmente
a meningite, mas também, embora numa percentagem muito inferior, se possa
encontrar o sarampo, a febre tifóide, otite, garrotilho e escarlatina. Os restantes 10
alunos foram classificados como surdos congénitos devido à consanguinidade dos
pais (primos em 1º grau), ao facto de provirem de regiões montanhosas e húmidas, a
quedas graves, maus-tratos ou sustos da mãe durante o período de gestação. Para
além da identificação de cada um dos alunos, este mapa geral da população surda da
instituição fornece-nos as idades dos mesmos, variando entre os 4 e os 20 anos, sendo
que na coluna relativa ao estado intelectual dos alunos a 1 de Fevereiro de 1906, nos
informa que uns são ‘nulos’, outros que sabem ler, escrever e contar, uns
mediocremente, outros, de forma regular, alguns deles desenham. Todavia, os
inúmeros exames médicos efectuados aos alunos permitiriam compor uma tabela de
incidências de várias doenças em surdos do sexo feminino e masculino, uma
comparação relativamente aos mesmos géneros ouvintes, extrair conclusões e estudar
possibilidades correctivas para este grupo.
A admissão do surdo na Casa Pia de Lisboa
201
Ary dos Santos foi incisivo nos estudos apresentados até 1920 relativos aos
exames efectuados aos alunos surdos da Casa Pia de Lisboa. Apresentou inúmeros
quadros estatísticos contendo “resumidamente tudo quanto” colheu “ nas inspecções
clínicas feitas aos alunos da Secção de surdos-mudos” (Santos: 1920: 32). Mais do
que os dados aí fornecidos, interessa-me analisar a prática do registo como forma de
classificação e diferenciação dos alunos que permitiria, fundamentalmente, duas
situações. A primeira era um retrato da população acolhida na instituição, pensada já
de forma racional, inserida numa grelha acessível a qualquer actor que lidasse
directamente com o aluno, quer dizer, uma massa de dados claramente útil do ponto
de vista de uma tecnologia biopolítica. A segunda situação prende-se com a
legitimidade que esta recolha e registo de informações relativos a cada um dos
escolares dava às prescrições terapêuticas e práticas educativas dirigidas a cada
educando. Dois processos, portanto, de objectivação e de sujeição produtiva. Estes
quadros de visualização respondiam de forma clara à inscrição no tecido escolar de
um novo vocabulário, progressivamente mais técnico e mais detalhado, de
enunciações discursivas que acabavam por determinar o tipo de experiência e o tipo
de aluno que seria construído no interior daquela paisagem escolar. Era também a
inscrição de cada aluno num campo de observação.
Observação psicológica pela Escala de Weschler
(Amaral, 1954)
Gabinete médico. Um aluno surdo segura na mão direita uma folha que lhe é
Saúde e higiene, exames e registos
202
dada pelo médico. O aluno observa o papel e é observado pelo clínico que o olha,
expectante, à espera de uma resposta, de um gesto, de um assentimento de cabeça. O
médico segura também o pequeno pedaço de papel com a mão esquerda enquanto
com a mão direita agarra uma caneta pronta a registar qualquer resultado. A imagem
é de tensão, nela se exprimem saber e poder e há uma articulação clara entre um e
outro. O aluno olha o papel, o médico olha o aluno e segura o papel, a mala de onde o
papel terá sido retirado permanece aberta pronta a contê-lo novamente, para posterior
utilização com qualquer outro aluno. A mesa separa o observador do observado,
todavia, também este é observador e será do resultado da sua observação que se
produzirá um saber sobre si. Aurélio da Costa Ferreira expressava-o desta forma:
“Os fenómenos psíquicos, as formas de actividade do indivíduo, os seus actos, as
suas maneiras de reagir, são fenómenos que se podem observar, provocando-os
ou não, em circunstâncias estritamente definidas e praticando os métodos que se
praticam, por exemplo, na física: a observação e a experiência, cientificamente
dirigidas, isto é, em condições de se poderem repetir e verificar, com precisão. A
mentalidade, a alma, é um conjunto de possibilidades, de faculdades ou poderes
de reagir, que se manifestam, que se exteriorizam em acções, as quais se podem
estudar cientificamente” (1922: 13).
O indivíduo seria caracterizado pela forma da sua resposta. Instrumentos
necessários eram, tal como afirmava Binet, nenhuns outros para além de “uma pena,
um pouco de papel e muita paciência” (Ferreira, 1922: 15). Ora, parece-me por
demais evidente que as regras de governamentalidade estão instaladas no discurso
médico-pedagógico, quer dizer, o clínico produzia um discurso que, no limite, se
estruturava como a verdade sobre aqueles que eram objecto de enunciação. O
conhecimento produzido sobre cada escolar condicionava e ao mesmo tempo
constituía a sua idiossincrasia, tornava-o também elemento calculável num espaço
composto e complexo de relações entre uns e outros, como o era a escola. Mas neste
processo de representação do aluno, também o médico esboçava uma representação
de si próprio. O espaço da escrita é um espaço de governo e de autogoverno. Registos
diários são realizados por cada professor em cada disciplina, assinalando a presença
ou ausência do aluno, a sua performance face aos que conteúdos ou às atitudes que se
pretende que ele incorpore e manifeste, a sua evolução ou possível regressão. No
A admissão do surdo na Casa Pia de Lisboa
203
processo individual de cada aluno consta, também a classe dos factos mais
importantes a destacar no interior da instituição. Há, em primeiro lugar, uma ficha de
admissão, cartas de pedido de entrada na instituição ou encaminhamento
especializado, questionários exaustivos feitos por especialistas da instituição sobre a
vida anterior do aluno, situação dos pais, ocupação, doenças, maus vícios, economias.
Depois, consta o percurso do aluno desde o momento da entrada na instituição. As
suas capacidades, o seu comportamento, positivos ou negativos, dão origem a
prémios ou a castigos. Contudo, prémio e castigo tendem a cada vez mais ausentar-se
do campo da materialidade.
Importava estabelecer um espaço discursivo útil que, por um lado
individualizava o corpo do aluno, localizando-o num ponto específico ao longo de
uma série e, por outro, homogeneizava o corpo de todos, num único corpo, corpo
múltiplo, capaz de por si falar de todos: “a colocação em quadro tem por função”
“tratar a multiplicidade por si mesma, distribuí-la e dela tirar o maior número possível
de efeitos”. Ligando a singularidade de cada aluno, à multiplicidade do grupo, a
transcrição e codificação dos dados obtidos a partir da observação, do exame ou do
inquérito, permitia “ao mesmo tempo a caracterização do indivíduo como indivíduo,
e a colocação em ordem de uma multiplicidade dada”. Esta era e é ainda hoje, uma
táctica disciplinar que funciona como “condição primeira para o controle e o uso de
um conjunto de elementos distintos: a base para uma microfísica de um poder que
poderíamos chamar ‘celular’” (Foucault, 2004: 127).
O registo escrito articulava-se com a prática do exame. Em contexto escolar o
exame assume uma presença marcante e, quer seja de um exame que procura aferir as
capacidades intelectuais, de memorização, de operatividade, é sempre do corpo que
se fala. Do corpo enquanto objecto impulsionador de um saber que induz a uma
hierarquização, vigilância e normalização. Numa instituição de carácter disciplinar a
prática do exame é espelho da manifesta “sujeição dos que são percebidos como
objectos” e, igualmente, “objectivação dos que se sujeitam” (Foucault, 2004: 154).
Todavia, porque precisamente possibilita relações de poder, o exame é uma técnica
útil e produtiva na constituição de um saber necessário ao governo dos alunos, mas de
um saber que se cola à pele do sujeito que é seu objecto, tornando visíveis e
inteligíveis as suas características, traçando referenciais reguladores porque
construídos discursivamente como desejáveis. É certo que o exame se concebe como
Saúde e higiene, exames e registos
204
instrumento estruturado e estruturante, resultando daqui um poder simbólico que
impõe padrões normativos: “combinando vigilância hierárquica e sanção
normalizadora” (Foucault, 2004: 160). É importante notarmos que os saberes
provenientes da prática do exame derivam da voz de um conjunto de especialistas
inscritos numa área médica e, portanto, falando uma linguagem verdadeira e
verdadeiramente científica. Era esta linguagem rigorosa que haveria de constituir a
base para uma futura acção no sentido de corrigir o mais possível defeitos físicos
associados à surdez e determinar uma conduta moral e ética regulada. Práticas
comuns nos exames dos alunos surdos seriam as mensurações toráxicas,
determinando perímetros axilares e xifoideos máximos, mínimos e diferenciais,
estabelecendo médias para um e para outro sexo; mensurações dinamométricas da
pressão da mão direita e da mão esquerda, tracções e médias; determinação da
circunferência máxima dos membros: braço, coxa, antebraço, perna e respectivas
médias; exame objectivo do ouvido externo; exame funcional do labirinto;
verificação das anomalias do pavilhão auricular quanto às inserções assimétricas,
comprimentos bilaterais excedendo ou sendo inferiores às linhas limítrofes,
dimensões e larguras desiguais, ângulos céfalo-auriculares maiores do que o normal e
desiguais, assimetria do tubérculo de Darwin e um sem número de pontos detalhados,
pertencentes a um campo de saber estritamente clínico. Esta gramática dominada por
um grupo restrito de especialistas, permitia, no entanto, fazer o levantamento das
características, propriedades e taxinomias relativas a cada sujeito.
No terceiro volume da História da sexualidade, Michel Foucault mostra-nos
como o cuidado que o indivíduo estabelece consigo mesmo está, “segundo uma
tradição que remonta longe na cultura grega”, “em correlação estreita com o
pensamento e a prática médicas”. A partir de um conceito de “phatos”, aplicado
“tanto à paixão como à doença física, à perturbação do sono” ou “ao movimento
involuntário da alma”, percebe-se uma perturbação do equilíbrio capaz de induzir
comportamentos ou manifestações no sujeito, contrárias à sua vontade. Tornou-se
possível construir uma “grelha de análise válida para os males do corpo e da alma”,
um esquema nosográfico que permitiu aos estóicos fixar graus de desenvolvimentos
dos males e desenvolver mecanismos de cura para os diversos estádios da doença
(1994: 66, 67). “Séneca”, diz Foucault:
A admissão do surdo na Casa Pia de Lisboa
205
“distingue os doentes curados total ou parcialmente dos seus vícios, dos que se
libertaram das suas doenças mas não ainda das suas afecções; há aqueles que
recuperaram a saúde mas são ainda frágeis por causa das disposições que não
foram corrigidas. Estas noções e esquemas devem servir de guia comum à
medicina do corpo e à terapia da alma. Permitem não apenas aplicar o mesmo
tipo de análise teórica às perturbações físicas e às desordens morais, mas também
seguir o mesmo género de abordagem para intervir em relação a uns e a outros,
ocupar-se deles, tratá-los e, eventualmente, curá-los” (1994: 67).
O que gostaria de destacar do quadro que Foucault nos fornece analisando a
cultura grega, como forma de conceber, volto a repeti-lo, uma genealogia do modo
como o sujeito se relaciona consigo de um ponto de vista ético, diz respeito à
interdependência crescente do objecto corpo e da ciência médica, estabelecendo
quadros que permitem localizar e classificar cada sujeito ao longo de uma linha
imaginária, mas referencial. O cuidado de si, que se inscreve como questão de
construção da identidade e da subjectividade, fixa-se a um nível da linguagem
enquanto tecnologia do eu, pretendendo por uma certa arte de governar, fundir-se
com as técnicas do eu:
“Tratar-se-ia de transformar a linguagem e os critérios fornecidos para agir sobre
o corpo, os pensamentos e a conduta do aluno exactamente naqueles em que ele
deveria percepcionar os seus próprios, defeitos, desvios ou vícios ou ainda
projectar os seus ideais de realização e felicidade” (Ó, 2003: 401).
Seria conveniente corrigir os males do corpo pois estes facilmente
contaminariam a alma. O corporal não poderia nunca sobrepor-se a uma vontade
consciente do sujeito. O intercâmbio entre os males do corpo e da alma era
acautelado por uma relação entre actores. Para que o cuidado de si fosse uma prática
real, teria de se construir a partir do convite de “aproximação (prática e teórica), entre
medicina e moral”. “A prática de si implica que o sujeito se constitua a seus próprios
olhos não apenas como indivíduo imperfeito, ignorante e que tem necessidade de ser
corrigido, formado e instruído, mas ainda como indivíduo que sofre de certos males e
que deve tratá-los seja por si mesmo, seja através de alguém que tenha competência
para o fazer. Cada um deve descobrir que está em estado de necessidade, que lhe é
preciso receber medicação e socorro” (Foucault, 1994: 70). Ora, esta perspectiva
Saúde e higiene, exames e registos
206
permite uma instalação dos especialistas da alma na paisagem educativa. Mesmo o
pedagogo, como aliás, verificámos já noutra secção, deveria passar a dominar uma
gramática assente numa técnica de análise psicológica de forma a centrar qualquer
acção, na alma do seu educando.
José da Cruz Filipe, num Relatório enviado em 1907 à Casa Pia de Lisboa,
dando conta da sua especialização no Instituto de surdos-mudos de Paris, dizia que:
“A primeira preocupação do professor, assim que o aluno se apresenta na aula,
deve ser a de proceder ao exame do seu estado físico e intelectual”. Eram sete os
pontos essenciais da observação informada do professor: “1º Se o aluno
apresenta alguns defeitos físicos, tais como: a deformação do crânio ou da cara, a
paralisia de um membro, o estado defeituoso da dentição, etc,; 2º Se o aluno
ainda possui um pouco de ouvido; para este exercício basta o professor colocar o
aluno de costas voltadas para si próprio e pronunciar-lhe as vogais ao ouvido; se
ele as repetir é porque se poderá servir do ouvido, não muito, durante o tempo da
sua instrução, mas é preciso ainda submetê-lo a exercícios especiais; - se não as
repetir, mas se der a entender que ouviu um ruído é porque só possui um pequeno
resto de audição, o qual não pode ser empregado no ensino; 3º Se o aluno
apresenta algum defeito das pernas, e para isso, é preciso que o faça marchar; 4º
Se o aluno tem defeitos na vista, tais como: a miopia, o estrabismo etc, etc, que é
muito prejudicial para o ensino. Se acaso se lhe apresentar um aluno nestas
condições o professor deve ter o cuidado de o colocar o mais perto de si, possível
para poder seguir os mesmos exercícios que os seus camaradas; 5º A voz que o
aluno ainda pode possuir, porque é importante conhecer desde o começo da
instrução a voz ou a afonia de cada aluno; 6º Se nos primeiros exercícios que
fizer, há alguns alunos que são mais rápidos a executá-los. Este exame tem a
vantagem do professor vir a saber quais são os alunos mais atrasados, para depois
os tomar mais especialmente aos seus cuidados, para evitar que haja uma cauda
na classe, isto é, para evitar que haja alguns alunos muito mais atrasados do que
outros; o que será prejudicial porque o professor não poderá fazer os mesmos
exercícios, ao mesmo tempo a todos os alunos;7º Se o aluno recebeu alguma
instrução; algumas vezes é mesmo ele que nos diz o que ele sabe; mas caso, seja
necessário o professor proceder a este exame pode servir-se da leitura super labial
e da escrita. A única linguagem que o professor deve empregar com o seu aluno
no começo da instrução, é a linguagem da acção, quer dizer, a linguagem que fala
à inteligência a realização completa de uma acção material, a designação directa
de objectos ou de fenómenos acessórios à vista” (Filipe, 1907: 7-10).
A admissão do surdo na Casa Pia de Lisboa
207
Longe iam os tempos do século XIX em que se “utilizava uma trombeta para
verificar se os seus alunos conservavam alguns sinais de audição” (Filipe, 1920: 6).
Nos anos cinquenta do século XX, Antonino Gonçalves Amaral, director do instituto
de Jacob Rodrigues Pereira, referia-se aos testes auxiliares para classificação de cada
criança com problemas auditivos como sendo a única possibilidade para a
determinação de um correcto caminho didáctico. “Lamirés”, “compreensão dos
sons”, “peep-show” e testes audiométricos afiguravam-se como as provas necessárias
para determinar o quantum de surdez invadia o corpo da criança (Amaral, 1956: 11-
13). Todavia, não se pode pensar a entrada de novos instrumentos e de novos
especialistas na paisagem escolar sem que se considere a imprescindibilidade da sua
presença para aquilo que era o próprio projecto da escola. Quando Cruz Filipe esboça
esta proposta de observação individualizada do aluno, tem em mente a prescrição de
um conjunto de exercícios que deveria facilitar a aquisição da língua oral ou a
correcção de defeitos associados ao estado surdo do aluno. E Amaral falava “em
normalizar tanto quanto possível a vida dos deficientes de audição” (Amaral, 1956:
5). A observação sobre o aluno e a sua performance, quando determinada por lentes
científicas, inscrevia-se a um nível de economia dos discursos, precisamente porque
se situava num campo de conhecimento científico. Apesar desta objectivação dos
dados recolhidos, que tornavam o aluno visível num campo de nomeação, a verdade é
que se abre espaço para as variabilidades individuais de cada educando e, no caso das
crianças surdas, o seu agrupamento em classes de aprendizagem deveria depender das
suas necessidades específicas. O campo do registo e observação médico-pedagógico é
um dispositivo tecnológico que se estende muito para lá do momento em que
acontece num gabinete médico. Configura-se como acontecimento ininterrupto no
dia-a-dia da Casa Pia de Lisboa. Os olhares dos educadores, como o dos médicos
deveria ser treinado para ver e interpretar nos escolares manifestações determinadas,
sob um ângulo de visão médico e psicológico.
Palyart Pinto Ferreira alimentava a ideia de que o exame psicológico de uma
criança “deveria ser mais para os professores do que para os médicos”. Os primeiros
estariam “mais habituados a tratar com crianças” do que os segundos, “melhor”
conheceriam “as suas formas de defesa, e como pô-las à vontade”, sendo este um
factor essencial para “o descobrimento das suas faculdades” (Ferreira, 1930a: 12, 13).
Saúde e higiene, exames e registos
208
Em 1934, Faria de Vasconcelos reunia Algumas das Fichas mais Notáveis de
Observação, Para Observar as Crianças, onde exprimia a necessidade de o professor
conhecer as diferenças entre cada escolar, “pois de outro modo não pode educar os
alunos convenientemente”. E para conhecer as crianças era “indispensável colher
sobre cada uma delas todos os dados necessários”. Como o fazer, satisfazendo todas
“as exigências do espírito científico” era o que o pedagogo se propunha examinar. “A
experiência do observador” assumia o topo da lista de prioridades numa boa
observação e esta seria resultado de um “treino persistente prolongado” (Vasconcelos,
1934: 10-12). Quando instalada no espaço escolar, mais a mais num espaço de
internato, e tendo como actor o próprio professor, a técnica de observação-registo-
interpretação concebia-se num ambiente de todo favorável pois teria ao seu dispor,
em directo, os indivíduos em inúmeras situações ao longo do dia. Exigia-se,
obviamente, a vinculação à escrita e o estabelecimento de um plano e era aqui que
entravam, com inúmeras vantagens, as fichas de observação que Vasconcelos refere.
“Estas fichas”, escrevia-o assim:
“são um repertório de perguntas ordenadas e agrupadas sob as rubricas dos
principais processos e actividades fisiológicas e psicológicas da criança”, tendo
por objecto “auxiliar o professor e o médico no caminho a seguir para observar a
criança”. Isto é, delinear um trajecto para a produção de um conhecimento.
“Permitir que com os dados obtidos” “se possam estabelecer as características
diferenciais da criança”, bem como as “suas qualidades, aptidões, lacunas e
defeitos”. Dados estes que serviriam de “guia, depois de colhidos” “para
proceder, em bases mais seguras, à sua educação ou ao seu tratamento”
(Vasconcelos, 1934: 19).
A escrita configurava objectos documentais que serviam para ser utilizados
num contexto disciplinar extremamente produtivo e útil. Não posso deixar de voltar à
questão da admissão do aluno surdo na Casa Pia de Lisboa e de referir duas tópicas
essenciais. Uma tem que ver com a discursividade tecida pelo inquérito e primeiros
exames médicos ao aluno, estruturando a sua história de vida e configurando o seu
estado no momento da admissão. Dando-lhe uma visibilidade sem lacunas. A ficha
biográfica, enraizando-se num conhecimento científico da criança, era o equivalente à
cartilha biográfica Montessoriana, consistindo num inquérito à vida social, familiar e
A admissão do surdo na Casa Pia de Lisboa
209
eventualmente escolar, do aluno. Das respostas surgiriam “valiosos subsídios para a
determinação do carácter e do tipo mental do aluno”. Através de factores como
“descendência, alimentação, trabalhos extra-escolares”, “condições sociais e meio
ambiente em que nasceu e vive, heranças atávicas, princípios ancestrais que sobre” a
criança pesariam, enfim, um avultado número de parâmetros influentes naquilo que
cada criança poderia ser enquanto aluno (Anuário 1916-1917: 314, 315). Pelo
conhecimento individual de cada aluno tornava-se cada individualidade governável e,
simultaneamente tornava-se possível qualquer intervenção de tipo correctivo. A
segunda, apresento-a como uma imagem instantânea, daquelas que num momento são
e depois já não são senão memória, a não ser pela sua cristalização em escrita que se
conserva arquivada. Esta imagem será o impulso para o próximo capítulo:
“A entrada é sempre uma passagem, uma mudança de status – e esse misterioso
evento de avatar mais do que tudo coloca o ‘estranho de ontem e nativo em
perspectiva’ em conflito com o mundo onde deseja entrar, um mundo que baseia a
sua confiança (e, antes de mais nada, sua atracção para o estranho) na suposição
de que ninguém jamais é transformado, de que ninguém jamais sai nem se
encontra cá fora. O episódio de entrada marca o ‘ex-estranho’ para sempre –
como uma criança trocada ao nascer, uma pessoa que pode optar e escolher, que
tem a liberdade que os ‘apenas nativos’ não possuem, cujo status não pode jamais
ter o mesmo grau de solidez, finalidade e irreversibilidade que o dos nativos”.
“Ele é um eterno nômade, sempre e em toda a parte errante, sem esperança de
jamais ‘chegar’” (Bauman, 1999: 88, 89).
Esta ausência de um chegar definitivo é o que marca a construção da
identidade do surdo e determina uma busca perpétua por uma perfeita arte de
governar.
Saúde e higiene, exames e registos
210
As regras da casa
211
3.AS REGRAS DA CASA
Alunos vestindo-se depois do banho
(A ilustração Portuguesa de 8 de Abril de 1907)
“Não há um só lugar na sociedade em que estejam
[os indivíduos] realmente à vontade e que possa
conferir-lhes uma identidade natural. A identidade
individual torna-se portanto algo a ser ainda
alcançado (e presumivelmente a ser criado) pelo
indivíduo envolvido e nunca segura e definitivamente
possuído – uma vez que é constantemente desafiado
e deve sempre ser de novo negociado. [...] Todas as
relações com os outros sendo em última análise
meras estações na estrada pela qual o eu chega a si
mesmo” (Bauman, 1999: 211).
Prótese-ouvinte
212
Nesta secção pretendo abordar a entrada da criança surda na Casa Pia de Lisboa a
partir de dois ângulos. Um deles, aberto para as regras impostas por uma instituição
de carácter total e outro, com abertura para o campo da experimentação dessas
mesmas regras pelo próprio aluno surdo. Para tal conto essencialmente com dois tipos
de documentação: os enunciados discursivos que compunham os Regulamentos e a
narração na primeira pessoa, escrita por um ex-aluno surdo da Casa Pia de Lisboa
relativamente ao seu tempo de aluno.
Erving Goffman utiliza a expressão regras da casa, “house rules”, referindo-
se a um conjunto explícito e formal de “prescriptions and proscriptions that lays out
the main requirements of inmate conduct” (1991: 51). Estas regras, como nos foi
possível verificar no último capítulo da primeira parte, determinam e especificam
detalhadamente a vida diária do interno numa instituição de carácter total. Goffman
desenvolve aqui, no entanto, um aspecto que impulsionará esta análise no que diz
respeito à experiência inicial por que passa o sujeito que é institucionalizado. Diz
assim:
“Admission procedures, which strip the recruit of his past supports, can be seen
as the institution’s way of getting him ready to start living by house rules”
(Goffman, 1991: 51).
Na verdade, o momento de entrada numa instituição que passará a ser também
habitação, é acompanhado por uma série de processos de observação e descrição que
fixam desde cedo o sujeito à rede daquele dispositivo disciplinar. Os rituais de
passagem, quer dizer, “as transições ou passagens cerimoniais que marcam a entrada”
de um sujeito numa instituição de tipo total, são determinantes para o início da nova
dinâmica institucional (Goffman, 1999: 138). Já aqui referi os exames médicos a que
estariam sujeitos todos aqueles que viessem a fazer parte da população escolar, bem
como os registos biográficos que vão preenchendo os arquivos. Todavia, darei agora
conta de outras técnicas que, não sendo exclusivas de uma paisagem de internato,
adquirem neste contexto uma significação própria e por vezes próxima daquela que
lhe é conotada em contextos prisionais, hospitalares ou conventuais. No seu estudo
Asylums, o sociólogo Erving Goffman desenvolve articulada à ideia de total
institution e house rules, uma outra que tem que ver com mortification of the self,
As regras da casa
213
estando intimamente ligada ao desapossamento do sujeito de tudo aquilo que fazia
parte da sua experiência de vida, anterior ao momento de admissão na instituição.
Uma das primeiras barreiras constitutivas de um corte entre o passado e o
desenvolvimento do presente é a própria fronteira entre o que se designa como
interior e como exterior à instituição. Mas se esta separação entre dentro e fora é o
que caracteriza a vida do institucionalizado, o momento de passagem do fora para o
dentro exige-se como prática quase ritualizada:
“Taking a life history, photographing, weighing, fingerprinting, assigning
numbers, searching, listing personal possessions for storage, undressing, bathing,
desinfecting, haircutting, issuing institutional clothing, instructing as to rules, and
assigning to quarters” (Goffman, 1991: 26).
A fotografia servia a Casa Pia em dois campos específicos. Por um lado,
constituía os arquivos, marcava presença num pequeno rectângulo na parte superior
das fichas psico-pedagógicas dos processos individuais dos alunos. Sobre a criança
surda que se iria admitir na instituição, pretendia-se traçar uma radiografia de vida e
de carácter. Número de processo, data de admissão, data de nascimento, nome,
filiação, antecedentes, doenças familiares, ocupação dos pais, imagem da criança, se
apresentaria, ou não, traços profundos de anormalidade, delinquência ou de
imbecilidade, outras deficiências visíveis. Toda e qualquer anotação deveria ser
baseada em “dados tanto quanto possível objectivos e bem fundamentados”, só se
deveria inscrever o que fosse “possível investigar” e, as “estimativas deveriam ser
registadas a preto, as medidas a vermelho” (ficha individual de aluno da Casa Pia de
Lisboa). Há todo um código de inscrição da criança na instituição, um ritual de
iniciação de mortificação de um outro, que se traduziu em números, se comparou
com padrões mais vistos, se classificou. O internato acolheu a criança e na sua
entrada engoliu-a, capturou-a, em algumas linhas de escrita e numa imagem, às vezes
duas, de frente e de perfil, conseguiu mapear um indivíduo, representou-o. John Tagg
considera a fotografia inserida em contexto institucional a partir de finais da centúria
de novecentos, como um objecto aberto a uma ampla “variedad de aplicaciones
científicas y técnicas” e que “proporcionaba una instrumentación preparada para uns
serie de instituciones reformadoras o emergentes, de tipo médico, legal y municipal,
Prótese-ouvinte
214
en las cuales las fotografías funcionaban como medio de archivo y como fuente de
prueba” (2005: 81). Este movimento e papel da fotografia situa-se na continuidade
da sua importância noutro tipo de instituições disciplinares como a prisão ou as casas
para doentes de foro psiquiátrico. A fotografia serviu claramente como tecnologia
disciplinar no interior de instituições legais ou médicas, estando vinculada a um
conceito de arquivo baseado num mapeamento da realidade. Neste contexto, a
fotografia produzia um saber sobre os sujeitos que eram seu objecto. Fotografar era,
acima de tudo, produzir conhecimento com um objectivo utilitário. Não por acaso, a
polícia foi das primeiras instituições modernas a compreender o valor que a fotografia
traria ao exercício do poder, enquanto prática e discurso disciplinar, enquanto técnica
produtiva na construção de perfis sociais. O gesto arquivístico localiza-se no interior
de uma lógica de poder que, pretendendo controlar cada indivíduo, encontra na
homogeneização, isto é, na formação de um só corpo de múltiplas cabeças, a figura
ideal para uma homeóstase social. A configuração que a fotografia atinge no interior
deste sistema de registo sistemático é de inventariação e classificação da população.
Produzindo-se um saber sobre os sujeitos, ampliam-se as hipóteses de conceber
técnicas de governo ajustadas ao exercício do poder. Por outro lado, o mapeamento
do mundo responde à necessidade moderna de nomeação e classificação dos objectos
por metanarrativas compostas segundo linhas de divisão binárias e antagónicas. A
fotografia participou enquanto elemento estrutural do desenvolvimento de uma certa
normatividade do ver pela inventariação indexical que permitiu.
Havia, portanto este carácter de arquivo, de constituição de documentos
acedíveis apenas pelo pessoal especializado da instituição, todavia, um outro carácter
documental estava presente na fotografia como fonte de prova das práticas
institucionais. As primeiras imagens relativas à forma como aprendiam os meninos
surdos são, não apenas a imagem que o estabelecimento pretende lançar de si próprio,
mas essencialmente a prova de que estava a cumprir a sua função civilizadora de
meninos que antes eram selvagens. Este estado inicial, agora em recuperação, poder-
se-ia comprovar pela ficha psico-pedagógica do aluno. Numa ficha individual
podemos ler: “Deficiência – surdo-mudez”, às vezes, no momento de admissão
verificava-se também que o futuro educando no campo da linguagem, via-se
esboçado com “emite sons”. A sua representação não terminava por aqui. A
impressão geral com que ficava o observador neste contacto com a criança era
As regras da casa
215
também registada. “Atitude natural, certo à vontade e vivacidade”, a sua inteligência
dava para fazer “recados aos pais, ir buscar pão, fósforos, sabão, etc.” contudo, “não
interpreta gravuras, não compreende o que pretendemos, talvez por não estar
habituado a ver gravuras” (ficha individual de aluno surdo da Casa Pia de Lisboa).
Estas práticas inserem-se numa racionalidade governativa que as necessita
para uma produção de saber e, consequentemente, para um funcionamento efectivo
das diversas relações de poder distribuídas no espaço institucional. Proponho uma
leitura atenta das palavras de um ex-aluno surdo da Casa Pia de Lisboa, referindo-se
ao seu primeiro dia na instituição:
“O chefe Carvalho ordenou a um aluno falante que me cortasse o cabelo, melhor
... que me deixasse careca. Quanto eu me zanguei com aquele aluno falante,
armado em ‘fígaro’! Até parece que eu adivinhava quanto iria ficar mais feio. [...]
Fiquei mesmo muito feio, com as minhas grandes orelhas a tornarem-se ainda
maiores do que eram e os outros todos a rirem apontando para elas! Depois o Sr.
Carvalho forneceu-me a celebérrima blusa dos ‘chadrezinhos’, uma camisa de
pano crú, umas calças cinzentas que me ficavam largueironas e compridas (e eu
que tinha um lindo calção vestido), um lenço, pares de peúgas, um par de sapatos
nº 34, uma cama completa de ferro (colchão – bem duro por sinal) – dois lençóis,
um cobertor escuro e um outro branco, uma toalha grande e uma fronha para a
travesseira, também muito dura! Bacia não havia se não as dos lavabos comuns.
Pela minha cabeça demorou-se então a ideia de fugir de Lisboa [...] mas o 38 e o
44, também alunos surdos vieram buscar-me e levar-me à minha prisão”
(Carvalho, s/d: 31).
Ora, são vários os elementos presentes nesta escrita que nos permitem
identificar o sentimento de mortificação do eu a que se refere Erving Goffman. Quase
todos estes elementos se ligam num primeiro nível ao corpo do aluno. A primeira
alteração diz respeito à própria imagem do aluno, quase uma desfiguração de acordo
com um padrão regular comum a todos os institucionalizados. Numa Portaria
mandada observar em 1882, pode ler-se ao nº 28 que:
“Artigo 1º: No princípio de todos os meses cortar-se-á rente o cabelo da cabeça
dos asilados menores do sexo masculino” (Lima, 1882: s/p).
Prótese-ouvinte
216
Sem escolha, o sujeito é obrigado a largar a imagem que tem de si próprio,
perdendo referências que faziam parte da sua identidade. Para além da deformação
corporal, o corte abrupto do cabelo que salienta as grandes orelhas, o sujeito é ainda
simbolicamente violentado pela perda de mais objectos do seu “identity kit”. “The
individual is likely to be stripped of his usual appearance and of the equipment and
services by which he maintains it, thus suffering a personal defacement” (Goffman,
1991: 29). As roupas pessoais são substituídas pela farda institucional, igual para
todos, os objectos de higiene, as roupas de dormir, os espaços dos lavabos e os
dormitórios são comuns a toda a população de alunos. Esta relação totalmente nova
de inexistência de privacidade configura-se, também, como uma perda relativamente
a um tempo anterior. Mesmo nos casos dos alunos orfãos, indigentes ou
abandonados, esta espécie de hospitalidade não ultrapassa o nível condicional. Não
podemos, no entanto, deixar de considerar outros efeitos produtivos resultantes deste
tipo de práticas. Há, evidentemente, princípios higiénicos resultantes de um discurso
científico que vai ocupando progressivamente o espaço escolar, dando
fundamentação positiva às prescrições dos regulamentos.
Em 1881, Carlos Maria Eugénio de Almeida regulamentava acerca da higiene
dos alunos. “A roupa do corpo” deveria ser mudada “uma vez por semana, sendo o
sábado o dia marcado”. Já as meias o deveriam ser duas vezes por semana, “às
quartas-feiras e sábados”, sendo que poderia acontecer que “pelas condições especiais
de cada aluno”, mais trocas se tornassem necessárias. Que “no inverno, os lençóis”
fossem “mudados de mês a mês, e no verão de quinze em quinze dias; e as fronhas
dos travesseiros” o fossem “sempre quinzenalmente, bem como as toalhas do rosto”.
Em circunstância alguma, advertia o Administrador, se consentiria “que os alunos” se
servissem “de roupa ou fato” que não fosse seu. A mudança de fatos dos alunos mais
velhos e corpulentos estaria dependente de uma visita à inspecção sanitária que
verificaria da oportunidade ou inconveniente da passagem da roupa para os mais
novos ou franzinos. Cada fato seria numerado. Os alunos deveriam trazer “as unhas
cortadas, os cabelos curtos, os fatos abotoados e providos de todos os botões”
(Almeida, 1881: 12, 13). A vida numa comunidade escolar e habitacional rege-se por
princípios de arregimentação que quebram a singularidade de cada um, chegando
mesmo a interferir com o próprio nome, trocado por um número. A vida diária do
aluno passaria a contar sempre com a presença de outros, alunos surdos e ouvintes,
As regras da casa
217
professores, funcionários, médicos. A relação numa instituição de carácter total é
social, muito embora o fechamento da instituição, mas é uma relação imposta.
“Impressionaram-me muito aquelas cinco mesas tão compridas onde nos
sentámos todos, mudos e falantes. Pelos meus cálculos deveríamos ser para aí
cerca de 800 alunos. Às 20 horas, ainda a noite mal tinha começado, todos os
alunos se dirigiram para os dormitórios e camaratas separadas por grupos etários
dos 8 aos 12 e dos 13 aos 18 anos. Perto das camaratas, nas grandes divisões
góticas, ficava o quarto do chefe Carvalho. Em frente, do lado norte, ficava uma
fonte de água e dos lados ficavam salas de aulas e de desenhos” (Carvalho, s/d:
31).
A vida em grupo exige contacto entre os internados, o que no caso das
crianças surdas, assume um papel importante para o seu governo. A racionalidade
impera sobre os alunos nos exames, nas observações, nas medições, nas prescrições,
no desenho das práticas, dos horários, das presenças simultâneas entre grupos
diferentes. O contacto permanente com a comunidade ouvinte funcionaria
constantemente como um motor de produção da diferença. Claro que também para o
ouvinte, a presença de elementos representados como anormais faria a norma adquirir
maior visibilidade. Mas era também o contacto com outros elementos surdos que
possibilitava o desenvolvimento de um sentido de comunidade, de pertença, de uma
forma de experienciação possível apenas por quem pertence a um determinado
estado. A programação das actividades diárias era traçada por regulamentos. O tempo
e os espaços são organizados de modo a juntar ou isolar grupos determinados, a
permitir a execução de tarefas num tempo dado, a controlar e vigiar as presenças e as
ausências. Uma das características dos regulamentos de instituições de carácter total,
como já noutro espaço desta escrita se observou, é a prescrição de horários de
levantar, de tomar as refeições, de assistir a aulas, de ter tempo livre e de deitar.
Impõe-se uma rígida disciplina corporal que tendia a impregnar-se na pele dos
sujeitos pela força do hábito.
“Pelas 5 e meia da manhã levantámo-nos. O nosso despertar era feito com luzes
de ‘pisca-pisca’ da lanterna do chefe Carvalho. Vestimo-nos e, em grupos, fomos
para a casa de banho que era pequena para tantos jovens, a fim de lavarmos a cara
em água fria e fazermos as nossas necessidades. Uma vez vestido e lavado, o sr.
Prótese-ouvinte
218
Carvalho chamou-me para ver os outros jovens colegas a limpar com vassouras e
panos todos os pavimentos, soalhos e mármore e, por fim, alinharem as camas na
camarata” (Carvalho, s/d: 32).
A simples aceitação destas regras e tarefas, que se afigurava como necessária
ao aluno recentemente admitido na instituição, mais que não fosse pela aceitação
perante os pares, coloca-o em situação de total dependência face à instituição. Esta
vulnerabilidade é essencial e facilitadora da missão regeneradora prevista para o
aluno surdo. Um dos aspectos que se verifica neste período de adaptação do novo
aluno na Casa Pia de Lisboa, e que difere da admissão noutros espaços de carácter
correctivo, é a tentativa de integrar o aluno pela comunicação imediata com a
comunidade de que fará parte. A aprendizagem de muitas das regras da casa seria
feita pela visualização do que os outros faziam, o que não implicava uma imposição
coerciva das regras, mas uma identificação obrigatória do aluno recém-chegado com
os outros alunos e, portanto, com a instituição. A anuência em participar de
momentos tão simples quanto os de comer no refeitório com mais 800 alunos, em
partilhar o quarto, em levantar-se perante uma ordenação, em vestir a farda
institucional, em ser submetido a exames médicos, pressupõe uma aprovação das
regras institucionais. Esta seria condição essencial para uma economia de poder da
população escolar: os efeitos dos pequenos detalhes multiplicar-se-iam, fixavam cada
um ao seu lugar e o do aluno surdo era um lugar de normalização.
É claro que as técnicas de mortificação do eu, à semelhança do que acontecia
com os castigos, assumiam configurações mais sofisticadas. Os regimes coercivos
cederiam lugar a um desenho mais subtil, mas eficaz. Os castigos seriam cada vez
menos de carácter fisicamente violento, fixando-se a um nível simbólico. Num
Regulamento disciplinar da Casa Pia de Lisboa de 1890, prescrevia-se a detenção
como uma forma de castigo, consistindo em:
“Conservar os alunos em uma sala especial, a começar uma hora depois do toque
de levantar até à ceia, saindo dela para as aulas que os alunos frequentarem, para
as refeições do dia e para as tarefas que lhe forem impostas, ou por outro motivo
imperioso”. Todavia, “os alunos em detenção almoçam e jantam em separado no
refeitório, depois dos outros alunos saírem dele”. “A detenção é acompanhada de
tarefas escolares, ou de serviços de fascina ou de exercícios de ginástica”. Mas
As regras da casa
219
poderia também haver reclusão: “a reclusão consiste em encerrar e conservar
isolado o aluno em casa apropriada de modo que possa convenientemente ser
vigiado”. Em reclusão os alunos não frequentariam as aulas com os seus
companheiros, alimentar-se-iam depois deles, dormiriam na prisão. Haveria
também a expulsão e esta prática, não olhando à idade do aluno mas apenas à
gravidade da falta, adquiriria a forma de um ritual simbólico, devendo ser
assistida por todos os alunos, director, professores e empregados (Regulamento
Disciplinar da Real Casa Pia de Lisboa, 1890: 6-9).
A existência deste lado punitivo, caso as regras não fossem cumpridas,
deveria funcionar como elemento dissuasor. Seria, aliás, aconselhável que o castigo
físico não fosse uma prática comum numa instituição como a Casa Pia. Em 1894,
Margiochi determinava que daquele dia em diante cessasse “o uso da palmatória”,
que fossem “inutilizadas todas as palmatórias” e que se procedesse “no mais breve
prazo possível à elaboração de regulamentos de prémios e castigos”, esperando dessa
forma incentivar ao cumprimento da disciplina (Margiochi, 1894: 6). As disposições
fundamentais do Regulamento Geral de 1904, diziam que a instituição era um
“estabelecimento destinado a recolher, alimentar, educar e instruir menores do sexo
masculino, indigentes e desvalidos, e a tratá-los nas suas enfermidades, devolvendo-
os à sociedade depois de atenuados ou corrigidos por uma rigorosa educação física os
seus defeitos constitucionais; por uma cuidadosa, constante e solícita educação moral
e religiosa os defeitos do espírito; esclarecidos por uma instrução variada, sólida e
tanto quanto possível prática”. Finalmente, dizia o regulamento que era objectivo da
Casa Pia tornar os seus alunos “aptos para, segundo as suas tendências, inteligência e
aptidões, angariarem, em todos os ramos da actividade humana, os meios de
subsistência” (Regulamento Geral de 1904: 5). Ora, perante este cenário que assumia
atender às características de cada aluno, respeitando as suas tendências, inteligência e
aptidões, não se vislumbra como necessário o castigo. Michel Foucault fala de um
desaparecimento da punição como espectáculo. “A punição vai-se tornando, pois, a
parte mais velada do processo penal, provocando várias consequências: deixa o
campo da percepção quase diária e entra no da consciência abstracta”. A sua eficácia
passa a habitar uma zona mais de fatalidade do que de intensa visibilidade. “A certeza
de ser punido é que deve desviar o homem do crime e não mais o abominável teatro”.
Daí uma nova relação no entendimento da punição: “o essencial é procurar corrigir,
Prótese-ouvinte
220
reeducar, curar” (Foucault, 2004: 13). O castigo passa a existir em relação com os
seus efeitos. É interessante verificar que um direccionamento para a alma do sujeito
no acto correctivo ou punitivo, pode ter a sua genealogia nas punições e suplícios em
que a violência física garantia o ritual de castigar: “que não seja mais o corpo, com o
jogo ritual dos suplícios; que seja o espírito ou antes um jogo de representações e de
sinais que circulem discretamente mas com necessidade e evidência no espírito de
todos” (Foucault, 2004: 84). O efeito é de um constante exercício em que cada um é
posto à prova no que ao domínio das suas forças internas diz respeito.
Cada aluno seria incitado a desenvolver uma autonomia e responsabilidade
que mais do que o governo, permitiria o governo de si mesmo:
“A aprendizagem foi rápida e eu fiz logo a minha cama também. Depois o
funcionário da portaria que habitualmente estava no átrio chamou-me para que eu
levasse a minha mala de roupa para debaixo da minha cama. [...] Fomos depois
tomar banho no tanque de água quente que às quintas-feiras era ocupado pelos
mais novos e aos sábados pelos mais velhos. Às sete e meia fomos para o
refeitório tomar o pequeno-almoço. [...] Mostraram-me as cartas de menu ou
ementas, que estavam no refeitório. Desde logo fiquei a saber: que o pequeno-
almoço tinha como base uma tigela de café e pão, todos os dias da semana,
durante todo o ano. Que o segundo almoço” “era às 13 horas e que era constituído
por sopa e um prato. Que o jantar era às 19 horas e só com um prato” (Carvalho,
s/d :32).
Podemos então associar a governação dos indivíduos num local como um
internato, a partir não só dos quadros discursivos, mas também a partir das práticas
que são exercidas sobre os seus corpos. Estas práticas tornam-se eficazes no
momento em que o aluno se deixa envolver nelas. Há obviamente um carácter
disciplinar muito marcado, todavia, não podemos esquecer que o poder só se exerce
se contar com um saber em constante reformulação e este, tende a afinar-se de forma
a possibilitar técnicas de intervenção voltadas para a alma do aluno, cada vez menos
visíveis, tal é a rotina do seu uso. A expressividade destas técnicas é notável na
construção da identidade da criança surda. O mesmo aluno até agora citado, escrevia
mais à frente:
“Todos os alunos aprendiam um bom ofício para conquistarem a sua
As regras da casa
221
possibilidade de sobreviverem dignamente, atenuando na vida o estiarna da
deficiência. Mas para que tudo isso fosse possível, o Instituto de surdos-mudos da
Casa Pia tinha seis bons professores que aqui não posso deixar de os recordar
com muita saudade e carinho”(Carvalho, s/d: 36). Os seus nomes: José da Cruz
Filipe, D. Emília, D. Albertina e D. Amélia, Sousa Carvalho, Augusto Campos,
Chefe Carvalho.
A entrada da criança surda na Casa Pia de Lisboa estaria marcada também
pela possível devolução social da criança, já educada e preparada para viver em
sociedade. A devolução ao exterior é uma característica própria das instituições de
carácter total e, uma vez mais, não se pode fazer a sua leitura sem considerarmos o
elemento punitvo, correctivo ou regenerador associado à institucionalização daqueles
cujo corpo e alma se afastavam de um padrão normal. Novamente o sociólogo Erving
Goffman proporciona-nos uma imagem que permite visualizar o quadro de
transformação operante em locais como um internato ou um hospital psiquiátrico. Ao
referir-se a uma espécie de “ciclo metabólico” Goffman descreve “a entrada ou
recrutamento, a mastigação e o regurgitamento dos seres humanos” novamente para o
espaço social. Na verdade, se estas instituições modernas têm por função “recolher
pessoas que se comportam de maneira inaceitável no exterior” ou se os seus estados
são vistos como desviantes, perturbadores de uma ordem social, “entra, então, nas
funções da instituição, persuadir os reclusos que as pessoas no exterior não
conseguiram persuadir” (Goffman, 1999: 122). Cabem aqui todas as técnicas de
regeneração ou correcção com fins de normalização. A instituição seria um aparelho
de transformação, capaz de agir sobre a alma e o comportamento pela consideração
de uma nova política do corpo. Para serem efectivas, as impressões têm que ser feitas
na alma do institucionalizado. Estes são princípios elementares comuns à forma
prisional, já aqui referidos no último capítulo da primeira parte:
“Trabalho obrigatório em oficinas, ocupação constante dos detentos, custeio das
despesas da prisão com esse trabalho, mas também retribuição individual dos
prisioneiros para assegurar sua reinserção moral e material no mundo. [...] A vida
é então repartida de acordo com um horário absolutamente estrito, sob uma
vigilância ininterrupta: cada instante do dia é destinado a alguma coisa. [...] A
prisão, aparelho administrativo, será ao mesmo tempo uma máquina para
modificar os espíritos” (Foucault, 2004:102, 103).
Prótese-ouvinte
222
Cada instante era na Casa Pia de Lisboa destinado a alguma coisa. Tempos de
trabalho e tempos de repouso, bem como espaços, passaram a constituir o breviário
de conceitos da escola e, uns e outros, tinham como fim aumentar a produtividade do
aluno. Recorro agora ao psicólogo faria de Vasconcelos e ao que sobre os horários,
aulas e recreio escreveu em Problemas escolares. Dizia que a “confecção” dos
horários deveria “merecer uma atenção especial na organização escolar”, porque,
evidentemente, dessa boa organização derivaria o rendimento do aluno. Os horários
escolares não se compadeciam com uma elaboração “ao deus dará, ao sabor da
improvisação” já que os inconvenientes seriam mais do que muitos (Vasconcelos,
1935: 293). A distribuição das ocupações ao longo do dia e da semana deveria
articular-se por centros de interesse e potenciar as capacidades de concentração do
aluno em cada fase de desenvolvimento. Era evidente que a construção da
personalidade do aluno estaria conectada aos discursos e às práticas em torno de si
elaboradas. Os currículos, quer dizer, tudo o que em matéria de planos de estudo, de
horários, de regras, de relações que aconteciam no espaço escolar, estavam na base da
construção identitária dos alunos, transformando-os interiormente. O que, aliás,
haveria de se manifestar a um nível corporal de posturas, de hábitos, de mecânicas de
pensar e de fazer. Os horários bem elaborados, para lá do carácter estritamente
disciplinar de organização de dinâmicas internas da instituição que permitiam
localizar qualquer actor em qualquer momento, continuavam a desenvolver-se por um
mesmo fio condutor disciplinar e de subjectivação. “Em primeiro lugar”, escrevia o
psicólogo, “ o horário deve tomar em conta o valor educativo e pragmático dos
diferentes ramos” de ensino. Na escola primária, seriam as ciências naturais e os
trabalhos manuais a formar o núcleo orientador das aprendizagens, porque,
“educativamente, respondem a interesses profundos da criança que é um naturalista, e
um manipulador por excelência, e pragmaticamente conduzem à acção, têm
numerosas aplicações úteis e concretas” (Vasconcelos, 1935: 296). Ora, não é por
acaso que a todos os alunos surdos da Casa Pia era ministrado o ensino primário e,
após consulta à família do aluno, era-lhes destinada a frequência “das oficinas de
carpintaria, marcenaria, entalhador, latoaria, pintura, serralharia, canteiro e sapataria”,
recebendo também “lições de pintura artística e de dactilografia”, sendo para todos
obrigatória a participação nas aulas “de desenho industrial e artístico e da classe de
As regras da casa
223
trabalhos manuais” (Filipe, 1920: 20). As meninas surdas, em 1920 estavam já a
habitar não as instalações de Belém, mas as de Santa Isabel onde funcionava o
Instituto médico-pedagógico da Casa Pia. Teriam também um ensino primário pelo
método oral e as suas oficinas de trabalhos manuais, de corte e de costura. Dos 81
alunos em 1920, 60 rapazes e 21 meninas, que não frequentassem ainda as oficinas,
seriam direccionados para os trabalhos manuais ou para a ginástica. Indissociável
desta organização escolar era a ideia de preparação para a vida fora dos muros da
instituição. O ensino pelo método oral e o ensino oficinal tinham em vista tornar o
surdo apto “para a vida, indicando-lhe o lugar que socialmente deve ocupar”. Assim,
“após o terceiro ano de frequência de oficina com aproveitamento, os alunos”
passariam “a receber um salário dividido pela seguinte forma: 50% da féria semanal”
ficaria “no cofre da Casa Pia como compensação das despesas feitas com a educação
profissional do aluno; 40%” seriam “depositados, em conta corrente individual, numa
caixa económica, e os restantes 10%”ser-lhe-iam “directamente entregues” (Filipe,
1920: 21, 22).
Proponho agora que se faça um pequeno recuo à década de noventa do século
XIX, visitando através de um plano de estudos, uma secção de ensino de surdas
debaixo da vigilância de Maria Fusillier, que funcionava a nível particular em Lisboa.
Este elemento de análise permite-nos não só verificar a continuidade e o
desenvolvimento das práticas desta educação especial, como também verificar as
articulações e cadências que compunham horários e planos de estudo. Publicado na
Revista de Educação e Ensino em 1893, gostaria de propor a sua leitura à luz do
quadro de acção que tenho vindo a referir para a construção do aluno surdo, e não
num quadro de inculcação. Quer isto dizer que, apesar da vinculação, quase colagem
do plano de estudos ao aluno, este não é um efeito estagnante ou imobilizador. O
aluno é um actor que vai somando experiências no contexto escolar, nas vivências
que aí experiencia e que o transformam. E isto não é decerto um efeito escondido
pelo que constitui o currículo, mas antes algo que lhe é inerente e que pertence ao
quadro de governamentalidade que se tem referido. Os planos de estudo estavam
intimamente ligados às regras da casa e estas à produção dos escolares. Ditava assim
o dito plano que passo a transcrever na íntegra:
“Programa dos Estudos
Prótese-ouvinte
224
Articulação ou fala artificial
Utilização ou melhoração da audição por numerosos exercícios apropriados e
com a ajuda de unstrumentos acústicos e de música, principalmente do piano, nas
crianças que ouvem alguma coisa.
Leitura nos lábios
Língua portuguesa falada e escrita.
Aritmética e elementos de geometria: estas duas ciências são ensinadas debaixo
de um ponto de vista essencialmente prático.
História e geografia: uma rica colecção de gravuras, diferentes mapas, esferas,
etc., facilitam este estudo e tornam-no agradável.
Elementos de física e química: são apresentados nas formas mais simples e
aprazíveis pelo meio de demonstrações frequentemente repetidas e baseadas
sobre as observações da educanda.
História natural: cada aluna está exercitada em fazer colecções nos três reinos.
Reunidas estas no museu tem o professor preciosos elementos para todas as
matérias do ensino.
O ensino intelectual cujas matérias ficam expostas, é ministrado pelo director.
Todavia, em língua portuguesa, a exmª srª D. Maria Fusillier, concorre
poderosamente, pelas suas lições diárias, no adiantamento rápido das discípulas.
Instrução moral e religiosa: coadjuva-nos valiosamente nesta missão, o
reverendo de Benfica, cónego A. de Sousa Azevedo.
Desenho linear de ornato e de figura: professor ex.mº sr. J. A. César da Silva,
com o curso da Academia das Belas-Artes.
Modelação
Pintura: professor ex.mº sr. João Cabral.
Trabalhos manuais: costura à mão e à máquina; crochet, bordados, trabalhos em
flores, etc., etc.
Ensino complementar
Francês, falado e escrito, inglês, escrito.
Lições particulares: em casa das alunas e no colégio” (Fusillier, 1893a: 378,
379).
O que se pretende reflectir a partir deste programa é a organização dos saberes
escolares e da sua estreita ligação à organização do dia-a-dia das alunas e à produção
da sua subjectividade. Para além de um ensino pelo método oral, as diversas
disciplinas que constituem o corpo do programa, assumem um carácter
essencialmente prático, construído a partir de uma base visual. As colecções de
gravuras, os mapas, as esferas, as demonstrações repetidamente expostas dependendo
As regras da casa
225
da capacidade de observação das alunas. A autonomia do aluno através da construção
de colecções em torno de um núcleo temático e, claro está, prevendo a necessidade
própria da criança surda em ter como eixo orientador da aprendizagem os sentidos,
marcam também presença o desenho, a modelação e a pintura. Estas actividades
ocorreriam à vez, o que não significava decerto que entre elas não se comunicassem.
Contudo, a organização deste plano de estudos, embora não nos seja dito da sua
divisão ao longo do dia ou da semana e da sua duração, prevê já os ritmos
psicobiológicos da criança e as questões do interesse associadas à motivação. O
carácter eminentemente prático, envolvendo a aluna no processo de aprendizagem
prevenia os momentos de fadiga. Esta estruturação dos saberes aqui expostos, bem
como daqueles reservados aos alunos surdos da Casa Pia deixa perceber que nas
práticas que os discursos ditavam, os sujeitos estariam em transformação. Basta que
consideremos o carácter de individualização do aluno, centrando em si o processo de
aprendizagem, e logo se revelam as técnicas do eu. Aquelas que impelem o sujeito a
exercer sobre si mesmo um trabalho, sobre o seu corpo, a sua alma, o seu
pensamento, a sua conduta. Era assim descrita a entrada de uma criança surda na
Casa Pia, agora pela voz de uma professora:
“ A criança, ao entrar no nosso instituto especial, mostra-se tímida e receosa de
tudo e de todos. Não lhe passa pela ideia que possa vir a exprimir os seus
pensamentos como qualquer outra pessoa. Mas, decorridos alguns dias, vemo-la
brincar e rir com as suas condiscípulas e o professor pode então dar começo à sua
tarefa, que se torna mais fácil quando a criança está animada de uma vontade
firme de aprender e de reagir contra a fatalidade do seu destino” (Anuário 1917-
1918:303).
O que articula esse exercício sobre si mesmo com os discursos e com as
práticas é o próprio desejo que uma racionalidade governativa baseada num saber e
num poder, conseguiu fazer um querer. É a modificação constante no interior de um
espaço escolar, de um modo de ser sujeito através de indícios que incitam e que
retraem num único gesto.
Prótese-ouvinte
226
A comunicação entre os da comunidade surda
227
4.A COMUNICAÇÃO ENTRE OS DA COMUNIDADE SURDA: PODER
E RESISTÊNCIA
Um dos aspectos mais interessantes dos mecanismos de poder, com o qual o leitor ou
a leitora já estará familiarizado, é o de que o poder se exerce através de relações de
forças. Lembra-nos Gilles Deleuze que, “um diagrama de forças apresenta, ao lado
(ou melhor, ‘face-a-face’) das singularidades de poder que correspondem às suas
relações, singularidades de resistência, determinados ‘pontos, nós, centros’”(2005:
121). A questão de que se trata neste capítulo é então, a de observar, naquilo que os
documentos da Casa Pia nos permitem, alguns dos possíveis nós agrilhoados por
aqueles que, sendo alunos surdos de uma instituição de orientação oralista, teriam nos
colegas do grupo surdo, elementos de identificação. Trata-se de verificar quais as
estratégias que impulsionadas pelo sentimento de pertença a uma cultura – a surda,
puderam manifestar-se num espaço dominado por uma comunidade ouvinte.
Gostaria, no entanto, de iniciar esta análise a partir de um comentário de
Hannah Arendt, relativo ao papel desempenhado pela escola num contexto
americano. Arendt focaliza a natureza política da educação americana, justificando-se
tecnicamente pelo facto de “a América ter sido sempre uma terra de imigrantes.
Nestas circunstâncias, a educação e a americanização dos filhos dos imigrantes pôde
realizar essa tarefa imensamente difícil de fundir os mais variados grupos étnicos”,
quer dizer, fundi-los, homogeneizá-los, ainda que essa fusão seja “nunca
completamente bem sucedida”, mas “continuamente” realizada, quer dizer,
perseguida como miragem governativa. Hannah Arendt continua o seu pensamento
dizendo que “os imigrantes”, isto é, os estrangeiros, constituem para o país a garantia
de que ele representa de facto a nova ordem” e, “a magnificiência desta nova ordem
consiste no facto de, desde o princípio, ela não se ter desligado do mundo exterior
para o confrontar com um modelo perfeito” (2000: 23, 24). Ora, esta imagem
fornecida pela autora parece-me adequada para sublinhar o aspecto da
governamentalidade que será aqui identificado de um modo, agora, mais
pormenorizado. Refiro-me à existência de uma resistência própria daqueles que são
governados, mas que se enquadra, desde o início nos planos de governação. Nikolas
Rose enquadra os domínios que “não são ‘dominados’ pelo governo” numa outra
esfera: a do conhecimento, da compreensão e da abordagem. Significa isto que “os
saberes e formas de expertise concernentes às características internas” desses
Poder e resistência
228
domínios, cobrem essa suposta área ingovernável, tornando-a então governável
(2001: 40). Embora pareça contraditória, esta situação corresponde meramente a um
aperfeiçoamento constante de uma arte de governar. Os nódulos de resistência
funcionariam como sustentação da racionalidade governativa, em vez de lhe fazerem
oposição. E esta reacção por parte daqueles que são os Outros, os surdos, é uma acção
criativa, produtiva e que, no interior da perspectiva de governamentalidade,
direcciona essa acção a algo exterior a si próprio, ou seja, ao referente ouvinte. Já
“com o modo de avaliação aristocrático passa-se o contrário: age e cresce
espontaneamente e só procura o seu contrário para poder, com redobrada gratidão e
alegria, dizer ‘sim’ a si próprio. O seu conceito negativo – ‘baixo’, ‘vulgar’, ‘mau’ –
é apenas uma imagem tardia e pálida que serve de contraste ao conceito positivo, ao
conceito fundamental, todo ele impregnado de vida e de paixão: ‘Nós os nobres, nós,
os bons, nós, os belos, nós, os felizes! [nós os ouvintes!] Se este modo de avaliação se
engana e peca contra a realidade, tal acontece em relação a uma esfera que lhe não é
suficientemente conhecida, que despreza e que se recusa mesmo a conhecer em
pormenor” (Nietzsche, 2000:36). Neste capítulo tentarei problematizar uma imagem
que adquire contornos num cenário de resistência surda, mantendo-se o sujeito num
meio ambivalente, quer dizer, construindo-se enquanto sujeito cuja fabricação da
identidade passa pela pertença a uma comunidade Outra e, simultaneamente, ao
vislumbre das pequenas alegrias de que nos falou Nietzsche.
A fabricação da identidade surda na Casa Pia, aconteceu num processo de
internamento ou de hospitalidade, em que a criança surda não teve direito de
manifestar o seu consentimento. Todavia, isto não significa que o aluno surdo
estivesse inerte, recebendo apenas o que os ouvintes lhe davam. À sua disposição
tinha identidades que lhe aplicavam e lhe impunham, tinha práticas oralistas como
referente, a partir das quais, era convidado a narrar-se. No dizer de Bauman, estas
identidades permitidas “estereotipam, humilham, desumanizam, estigmatizam”
(Bauman, 2005: 44). Mas não é este lado que pretendemos, por agora, analisar. São,
isso sim, os efeitos vindos dos corpos que habitam esses territórios. Um ponto
essencial que teremos de considerar é de que as práticas educativas dirigidas aos
surdos na Casa Pia de Lisboa, tinham como centro de aplicação crianças em situação
de aprendizagem, quer dizer, alunos. Mas o que acontece no espaço são relações entre
as práticas e os discursos educativos e os sujeitos que o habitam. Falamos, portanto,
A comunicação entre os da comunidade surda
229
de relações entre uns e outros, de “‘interacção’ entre o eu e a sociedade”, fosse um
grande grupo, fosse aquele constituído pelos habitantes da instituição (Hall, 2005:11).
Zygmunt Bauman diz-nos que, “o que quer que ‘comunidade’ signifique, é
bom ‘ter uma comunidade, ‘estar numa comunidade’” (2003: 7). Ora, este prazer
sentido, identifica-se com o sentimento de pertença, de segurança, de familiaridade
com as pessoas e com os espaços. Quando, ao longo deste texto, falo da existência de
uma comunidade ouvinte e de uma comunidade surda, refiro-me, desde logo, a dois
grupos que se diferenciam pelo próprio elemento que levou um, a excluir o outro.
Muito embora a escola, tenha adoptado princípios de uma cada vez maior
individualização dos sujeitos, a verdade é que, o ensino se dirigia a classes de alunos,
vendo nos seus companheiros elementos de uma experiência partilhada. O ofício de
aluno, no sentido em que o define Perrenoud, compõe-se, também, do
“desenvolvimento de estratégias de protecção e de resistência” face “à imposição de
qualquer actividade escolar”e, inseparável desse ofício, parece estar o processo de
identificação com os pares, bem como a indução de respostas adaptadas às situações
escolares (1995: 78). A identidade, numa concepção sociológica definida por Stuart
Hall, constrói-se no hiato entre um interior e um exterior o que quer dizer que quando
um sujeito se ‘projecta a si próprio’ em tipos de “identidades culturais”, internaliza
“significados e valores”, tornando-os ‘parte de si’. É neste mecanismo, de assimilação
produtiva que se torna possível “alinhar” “sentimentos subjectivos com os lugares
objectivos” que ocupa “no mundo social e cultural” (2005: 12). “A identidade” que o
aluno surdo autoconstrói, tendo como ingredientes o que a instituição e as relações
lhe oferecem à experiência, “costura (ou, para usar uma metáfora médica, ‘sutura’) o
sujeito à estrutura”. Neste mesmo processo se identifica algo que Hall designa já
como sendo próprio de um sujeito pós-moderno, pelo menos ao nível de uma
dinâmica constitutiva da identidade. “Dentro de nós há identidades contraditórias,
empurrando em diferentes direcções, de tal modo que nossas identificações estão
sendo continuamente deslocadas” (Hall, 2005:13). A possibilidade de cambiantes e
de uma identidade em processo é o substrato fecundo de um processo de
subjectivação que tem o aluno como actor e a escola como palco.
Em face de um ensino distintivamente oralista é fácil aceitar que, no interior
do grupo dos surdos, houvesse alguma agitação mais em conformidade com a
natureza surda. É sabido por todos nós, que já frequentámos a escola e
Poder e resistência
230
experienciámos os seus diversos espaços que existem comportamentos específicos
que é suposto adoptar-se em cada um deles. As posturas corporais que a escola treina
para uma coerência do sujeito nas suas acções no espaço escolar e social são disso
exemplo. Há comportamentos que se exibem perante todos e comportamentos mais
secretos, facilitados por uma arquitectura mais fechada, há diferentes tons de voz a
usar e diferentes efeitos que se pretendem produzir, há as conversas em grupo e as
conversas restritas, há a dissimulação de mensagens dentro da aula, haveria, também,
a linguagem dos gestos entre os que dominassem o código. Padden e Humphries,
citados por Sacks dizem que:
“O aspecto mais significativo da vida no internato é o dormitório. Nos
dormitórios, longe do controle estruturado da sala de aula, as crianças surdas são
iniciadas na vida social dos surdos. No ambiente informal do dormitório, as
crianças não só aprendem a língua de sinais, mas também o conteúdo da cultura”
(Sacks, 2005: 149).
Mas todos estes aspectos encontram-se enunciados no interior de discursos
que permitem a sua existência. Eles são uma espécie de resistência consentida por
uma racionalidade governativa que, não encontraria sentido no exercício de um poder
se constantemente não se visse na necessidade de aperfeiçoar a arte de se exercer. O
que pretendo considerar neste momento é a existência da língua de sinais numa
escola que assumia a oralidade como eixo orientador das suas práticas. A proliferação
do gesto era um “efeito-instrumento” que não só tornava mais visível o poder como o
fazia crescer, na medida em que essa manifestação se constituía como “superfície de
intervenção” (Foucault, 1994a: 52).
David Wright, que ensurdeceu aos oito anos após, portanto, dominar já a
linguagem oral, citado por Oliver Sacks, descreve a sua primeira experiência visual,
ao contactar com a escola de surdos onde estudou:
“A confusão atordoa os olhos, braços giram quais moinhos de vento num furacão
[...] o enfático vocabulário silencioso do corpo – aparência, expressão, postura,
relance de olhos; mãos representam sua pantomima. Pandemónio absolutamente
arrebatador. [...] Começo a decifrar o que está acontecendo. A aparentemente
coribântica agitação de mãos e braços resume-se a uma convenção, um código
A comunicação entre os da comunidade surda
231
que até agora nada transmite. De facto, ela é uma espécie de vernáculo. A escola
desenvolveu sua própria língua ou jargão específico, embora não verbal. [...] A
regra era que todas as comunicações fossem orais. Nosso jargão de sinais,
obviamente, era proibido. [...] Mas aquela regra não podia ser imposta sem a
presença dos funcionários da escola. O que estou descrevendo não é o modo
como falávamos, e sim como conversávamos entre nós quando nenhuma pessoa
ouvinte estava presente. Nesses momentos, nosso comportamento e nossa
conversa eram muito diferentes. Relaxávamos as inibições, não usávamos
máscara” (Sacks, 2005: 26, 27).
Como se acaba de ler, nos momentos de vigilância inactiva, os alunos surdos
assumiam comportamentos ditados pela natureza surda. Falavam a sua língua visual.
E esta, se era proibida pela escola – para que os alunos não deixassem de sentir
necessidade da língua dos ouvintes – exigia, pelo menos uma vigilância visual
contínua. As possibilidades de uma conversa de carácter visual são enormes,
relativamente às de uma conversa oral. A proximidade física não é estritamente
necessária – os comunicantes podem estar separados por vários metros –, e a sua
existência não é notada senão pelo olhar que vê movimentos no espaço. A proibição
de uma língua gestual numa escola oralista assemelha-se ao combate a partir do
século XIX do “onanismo das crianças como uma epidemia que se pretenderia
extinguir”. Quero com isto explicar que o controlo de médicos e educadores
proibindo o gesto, dando a ver a sua periculosidade e incompatibilidade num sistema
social, toma, tal como o fizeram os adultos “em torno do sexo das crianças”, o seu
próprio “apoio nesses prazeres subtis”, constituindo-os “como segredos (isto é, de os
obrigar a esconderem-se para ser possível descobri-los), de os procurar, de os seguir
das origens aos efeitos”, instalando-se mecanismos de vigilância que se abriam a
essas mesmas práticas como forma de novamente alimentarem a produção de
discursos e o afinamento de técnicas correctivas (Foucault, 1994a: 45, 46).
Erving Goffman designa estas relações como paralelas, sendo comuns em
instituições de carácter total. “An ‘institutional lingo’ develops through which
inmates describe the events that are crucial in their particular world” (1991:55). É
comum que o “staff” tenha conhecimento destas práticas, podendo mesmo utilizá-las,
falar delas ou sobre elas, como forma de lhes dar uma visibilidade controlada.
Novamente se torna útil considerar o quadro da sexualidade infantil para percebermos
Poder e resistência
232
que contrariamente a uma atitude repressiva, de eliminação violenta, se instalam
silêncios que “fazem parte integrante das estratégias que subentendem e atravessam
os discursos” (Foucault, 1994a: 31). Escreve assim Michel Foucault:
“Vejamos os colégios de ensino do século XVIII. Globalmente, podemos ter a
impressão de que neles não se fala praticamente do sexo. Mas basta lançar um
olhar aos dispositivos arquitecturais, aos regulamentos da disciplina e a toda a
organização interna: o sexo está constantemente em jogo. Os construtores
pensaram nele, explicitamente. Os organizadores levam-no em conta
permanentemente. Todos os detentores de uma parte de autoridade são colocados
num estado de perpétuo alerta, que as organizações, as precauções tomadas, o
mecanismo dos castigos e das responsabilidades, relançam incessantemente. O
espaço da aula, a forma das mesas, a disposição dos pátios de recreio, a
distribuição dos dormitórios (com ou sem divisórias, com ou sem cortinados), os
regulamentos previstos para a vigilância do deitar e do sono, tudo isso remete de
um modo muito prolixo para a sexualidade das crianças” (1994 a: 31, 32).
António Aurélio da Costa Ferreira, apesar do pendor oralista da educação na
Casa Pia, admitia a existência da linguagem dos gestos entre os alunos surdos.
Escrevia assim: “ a criança, traz o cérebro nas mãos, fala principalmente com as
mãos; eduquemos-lhe, portanto, as mãos. Tão convencido estou da acção da educação
manual sobre o desenvolvimento da inteligência, que mesmo nos surdos-mudos a
quem se quer ensinar a falar eu acho ser um contra-senso pedagógico calar-lhe,
emudecer-lhe o gesto”. E esta opinião, dizia-o ainda, tinha tido oportunidade de a
partilhar, com professores de surdos do Instituto para o ensino dos surdos-mudos e
cegos de Belém (Ferreira, 1914: 306).
Mas é noutro local e, não exactamente sobre a linguagem gestual entre os
alunos surdos que, se pode encontrar um ponto de contacto com esta linguagem de
uma comunidade. É assim que, num artigo de 1914, o então director da Casa Pia, dá
conta de uma linguagem especial usada entre os alunos:
“Havia na Casa Pia, pelo menos uma linguagem especial, bastante antiga, como
pude verificar, porque empregados, antigos alunos, com cinquenta anos de casa, a
conheciam desde pequenos, linguagem especial ou calão que primeiro por
necessidade e depois por curiosidade me lembrei de estudar” (Ferreira, 1914 b:
A comunicação entre os da comunidade surda
233
326).
Cumpria ver como aparecera e se tinha estruturado tal linguagem. Dizia o
director que era “um calão”, composto, claro está, por palavras “criadas
intencionalmente com o fim de ocultar e servir de meio de defesa”, mas a sua origem
estava distante no tempo. “Remonta a um tempo em que a disciplina do internato se
mantinha quase exclusivamente à custa de um regime policial severo, com castigos
corporais e prisões e à custa de um apertado serviço de espionagem e delação”. O teor
do vocabulário referia-se a “castigos, designações e actos dos vigilantes, ludibrio,
pancadas, etc”. O calão era uma linguagem “intencionalmente secreta”, sempre por
perto quando a necessidade a reclamava, “porque o seu fim” consistia
“essencialmente na defesa do grupo que o emprega” (Ferreira, 1914 b: 326-328). À
semelhança da linguagem gestual dos surdos, também na comunidade ouvinte se
criara um código de comunicação entre os pares. Como bem sabia Costa Ferreira, não
seria proibindo que acabaria com o seu uso.
Já se sabe que, nem todos os alunos surdos aprendiam a comunicar pela língua
oral. Todavia, embora a documentação da instituição revele que aqueles que não se
adaptavam ao método oral, acabavam por ser direccionados para os trabalhos
exclusivamente manuais e oficinais, raramente foi referida a estratégia de
comunicação destes alunos. É pela autobiografia de um ex-aluno surdo da Casa Pia
que, ficamos a saber que para além do bom ofício, os surdos aprendiam com os
professores “o alfabeto manual dos surdos e os números” para “melhor” se
entenderem “ com os outros” surdos (Carvalho, s/d: 36). O estado surdo impunha
determinadas formas de intervenção para uma acção produtiva sobre os corpos. A
visualidade, o gesto, a exploração dos sentidos foram estratégias adoptadas, longe de
serem reprimidas, no ensino dos alunos surdos porque um saber sobre este grupo
desenhava nestes territórios uma eficácia governativa. Era importante que o aluno
surdo se fabricasse como sujeito com uma identidade própria, dono de si, porque “o
controlo”, sendo uma “prova de poder”, era também “de liberdade” e o sujeito surdo,
numa escola oralista deveria “aferir a relação entre si próprio e o que é representado,
a fim de só aceitar na relação consigo aquilo que” pudesse “depender” da sua
“escolha livre e razoável” (Foucault, 1994: 77). Ora, a comunicação entre os da
comunidade surda, mesmo desenvolvendo-se pela gestualidade, não era ameaça às
Poder e resistência
234
práticas oralistas, antes as justificava e lhes aumentava a intensificação de
intervenção. É caso para lançar a questão que já Rousseau colocou aos mestres, na
sua obra Emílio: “Possuir os instrumentos e saber utilizá-los correctamente não é ser
mestre da operação?” (1990: 179). Ou então, as palavras de António Aurélio quando
afirmava que “o problema do educador” seria o de “tornar o real aceitável, conforme
a natureza do indivíduo e pôr este em equilíbrio com a sociedade”. Para tal precisava
de dominar um saber que lhe permitisse descortinar o modo de dar “ao indivíduo a
noção de realidade mais conforme com a sua natureza e a do meio social. O problema
do educador é o problema da felicidade que, como diz Deschamps, se pode chamar
uma ‘harmonia psicosocial, uma adaptação completa dos desejos aos poderes, e dos
poderes aos meios’” (Ferreira, 1921: 391).
O método oral puro…
235
5.HOSPEDAR A PALAVRA NO CORPO DO HÓSPEDE
5.1.O MÉTODO ORAL PURO: COREOGRAFIA DE GESTOS, VIBRAÇÕES E
RESPIRAÇÕES
“Exmo. Senhor,
É com o máximo reconhecimento e gratidão que venho, por este meio, agradecer a Vª
Excª a assistência, ensino e educação que durante mais de 9 anos foi ministrada a
meu filho. [...] Nunca será esquecido, por mim nem por meu filho, tão grande
benefício que o habilitou, na medida do que foi possível fazer, a ganhar a sua vida
honestamente”.
(Carta de uma mãe de um aluno surdo ao Director da Casa Pia de Lisboa, primeira
metade do século XX)
(Coguillot, 1889)
Foi no quadro da governamentalidade, do governo e de um apelo a um autogoverno
que também os alunos surdos da Casa Pia construíram a sua identidade. No
dispositivo escolar cruzaram-se tecnologias disciplinares, biopolíticas e tecnologias
do eu do sujeito, relacionando os comportamentos de todos e de cada um. A escola
reúne em si mecanismos disciplinares de submissão do aluno que apenas resultam
pela utilização de mecanismos reguladores da conduta do aluno, estes, obrigando-o
docilmente, a operar em si uma transformação. As tecnologias do poder, diz-nos
Foucault, determinam a conduta dos sujeitos e submetem-nos a determinados fins de
Coreografia de gestos, vibrações e respirações
236
submissão, mas, sublinha-o o autor, são as tecnologias do eu, “which permit
individuals to effect by their own means or with the help of others a certain number
of operations on their own bodies and souls, thoughts, conduct, and way of being, so
as to transform themselves in order to attain a certain state-of happiness, purity,
wisdom, perfection, or immortality” (1988:18). É a batuta do poder que, no seu toque,
propaga os seus efeitos numa espécie de rede que atinge tudo e todos.
O aluno surdo era pensado como alguém que deveria desejar a língua oral. O
estado surdo do aluno era de carência e de total disponibilidade para uma conversão
que lhe pudesse dar um enquadramento social.
Na sua obra A apresentação do Eu na vida de todos os dias, Erving Goffman,
explora as diversas possibilidades de interacção e comportamentos do sujeito, nos
confrontos face a face, próprios do quotidiano. É aqui que refere que o indivíduo, nas
acções e atitudes que exibe perante os outros, pode ser “completamente tomado pela
sua própria acção”, estando “sinceramente convencido de que a impressão de
realidade que encena, é a realidade real” (1993: 29). Ora, neste sentido, identifica-se o
sujeito com o actor que veste de tal forma a pele da personagem a desempenhar que
acaba a confundi-la consigo, ou, pelo menos, apresenta um desempenho de tal ordem,
completamente inquestionável para a plateia que assiste. A colagem da língua oral ao
aluno surdo pode aproximar-se, em parte, desta situação. A criança surda, poderia
desejar, efectivamente, incorporar em si as ferramentas de comunicação com o
ouvinte, mas, – outra possibilidade –, a aprendizagem da língua oral, ao longo da
exposição do aluno às práticas educativas, idealizar-se-ia como escolha inevitável e
acertada. Dizia convictamente Cruz Filipe que:
“Todas as crianças, mesmo as surdas-mudas, têm tendência para querer falar.
Aproveite-se este esplêndido ensejo, cultive-se o mais possível e insista-se
sempre na repetição, para que alguma coisa fique deste natural desejo de falar”
(1920: 29).
O maior cultivo possível e a repetição a que Cruz Filipe aludia, eram, sem
dúvida, relativos a uma intensificação das técnicas aplicadas no acto educativo. O
corpo do aluno teria de se tornar o objecto por excelência de aplicação de tecnologias
transformadoras. Michel Foucault, em Vigiar e Punir, ensina-nos que “o momento
O método oral puro…
237
histórico das disciplinas” é aquele “em que nasce uma arte do corpo humano, que
visa não unicamente o aumento de suas habilidades”, nem sequer a sua simples
sujeição. Esta situação seria, como vimos, própria de um poder soberano. O
mecanismo que as disciplinas se esforçam a alcançar é o do seu próprio afinamento,
de tal modo que tornam aqueles a que se aplicam, tanto mais obedientes quanto mais
úteis. A “manipulação calculada” de “elementos”, de “gestos” e de
“comportamentos”, constitui uma “‘anatomia política’” e uma “‘mecânica do poder’”
que “define como se pode ter domínio sobre o corpo dos outros, não simplesmente
para que façam o que se quer, mas para que operem como se quer, com as técnicas,
segundo a rapidez e a eficácia que se determina. A disciplina fabrica, assim, corpos
submissos e exercitados, corpos “dóceis” (2004: 119). Eis então uma tradução do
quadro que se acabou de traçar, pelas palavras de um educador da Casa Pia:
“Fixai o olhar do vosso educando, aprendei a usar de gestos apropriados, a
traduzir pela expressão do olhar e pela maneira de gesticular a vossa intenção e
com facilidade podereis sossegar o agitado, disciplinar o indisciplinado, tornar
atento o distraído, despertar o apático, imobilizar quando quiserdes imobilizar,
agir quando quiserdes que se movam, castigar quando quiserdes castigar, premiar
quando quiserdes premiar, e por eles mais facilmente do que com os vossos
discursos podereis conseguir o que constitui, tanto no ensino de anormais como
de normais, o principal segredo da arte do educador: saber fazer do educando um
amigo, saber apossar-se do aluno. Educai não só com a alma; educai com alma”
(Ferreira, 1917: 538).
Estas palavras mostram bem o quanto o professor teria de saber sobre o seu
aluno, para poder agir sobre ele e mais, para o levar a agir sobre ele próprio. O
cuidado em relação a si mesmo, a disciplina corporal, nada teriam de repressivo ou de
renúncia, mas pelo contrário, marcariam o início da constituição de um novo tipo de
sujeito. É no interior desta rede de relações de mecanismos fortemente disciplinares e
de discursos pedagógicos sobre como agir com a criança surda, – entre, por um lado,
as regras, os exercícios, o trabalho minucioso sobre o corpo do educando e, por outro
lado, o intenso saber e investida sobre a sua alma, possível, aliás, por uma merecida
“confiança e estima”, pelas “maneiras afectuosas” do mestre e, por uma forma de
subjugar o aluno surdo “pela doçura e bondade” –, que a criança surda entra no
Coreografia de gestos, vibrações e respirações
238
mundo escolar e numa instituição governada por ouvintes (Filipe, 1907:2). Estas duas
tecnologias, as disciplinares, activamente implicadas no processo de dar hospitalidade
à criança surda, e as tecnologias do eu são ao mesmo tempo, passo e fim da
governamentalidade do aluno surdo.
Na verdade, dar ao surdo uma casa, uma escola e uma língua com que pensar,
seria a hipótese única de este vir a realizar, “o ideal e o sonho que fazem parte da
felicidade humana” e que a privação do som impedia, não podendo, a criança surda,
realizar nem exprimir “as suas ideias nem se aperceber das dos outros dentro das
virtualidades da palavra”. Ora, “a palavra” era tida como “fundamento da felicidade”,
enchendo e iluminando a vida, dando “paz e alegria ao coração”, “bem” que
injustamente não existia para a criança surda (Tavares, 1955: 11). Mas esta tarefa da
hospitalidade, era uma tarefa que estimulava “os melhores sentimentos” e cativava
“os mais exigentes” médicos e pedagogos, nunca se tornando excessiva a
“propaganda contínua, sobre a vantagem moral e social de se cuidar, a valer, de tanto
infeliz, a quem deficiências físicas ou mentais” inibiam “de usufruir as mesmas
regalias e o mesmo bem-estar moral, que a todos” era “dado conhecer e apreciar”
(Filipe, 1942:3). O desejo da língua, sendo algo que parecia referir-se a princípios
universais, seria um desejo a que também o surdo se submeteria.
Estudo de pronunciação pelo movimento dos lábios diante um espelho
(A Ilustração Portuguesa de 6 de Maio de 1907)
O método oral puro…
239
A imagem dá a ver sete crianças voltadas de costas para o observador,
sentadas num banco comprido, de frente para um espelho rectangular. Também um
adulto, de pé, um braço amigavelmente apoiado sobre o ombro de uma das crianças e
inclinado para ver o seu reflexo no espelho. Para além deste reflexo, mais seis, de seis
das crianças e uma parte, mínima, do reflexo da sétima criança, apertada contra a
extremidade direita do banco e em frente da moldura que determina o corte da
superfície reflectora. A fotografia é extremamente condensada, determinando uma
proximidade do observador situado mesmo por trás das crianças, até à parede. Mas o
espelho, reflecte um outro espaço, que é o que está por trás das crianças – aquele
portanto em que também o observador se situa – aparentemente uma sala de aula,
pelo quadro negro e pelas folhas que se vêem penduradas na parede lateral. Aqui, o
espelho, funciona como redobro das personagens representadas, mas diz, também,
algo de um espaço que sendo o do observador, e sendo também o das figuras, não
estava lá representado. A proximidade do enquadramento, não deixa ver o espaço da
acção. Todavia, o espelho, dá visibilidade ao espaço exterior à fotografia e mostra os
rostos daqueles de que se vêem as cabeças. Aqui o espelho é certamente o centro das
atenções. Das crianças e do adulto. Do próprio observador que procura compreender
a razão do interesse destas oito pessoas pela sua imagem no espelho. Posso esclarecer
o leitor ou a leitora, ainda que pouco, dizendo que a fotografia, da autoria de Joshua
Benoliel pertence aos inícios do século XX, especificamente a um dos anos entre
1905 e 1907, tendo como personagens Nicolau Pavão de Sousa, professor de ensino
primário dos alunos surdos da Casa Pia de Lisboa, e sete crianças surdas que recebem
uma lição de articulação oral em frente de um espelho. As atitudes rectas, imóveis,
verticais destes sete actores, mostram-nos que “um corpo disciplinado é a base de um
gesto eficiente” (Foucault, 2004: 130).
Há, pelo menos, duas coisas essenciais que não gostaria deixar de dizer sobre
esta imagem. Uma, diz respeito à subjectivação do aluno, ao processo de construção
da sua identidade em relação a uma imagem que lhe destinam. A outra, tem que ver
com a correlação entre corpo e gesto, disciplina e eficiência. Começarei pela
subjectividade.
As sete crianças representadas realizam, num mesmo tempo, exercícios de
vocalização. Estes exercícios, segmentados como de resto todos os saberes escolares,
Coreografia de gestos, vibrações e respirações
240
contribuiriam para o domínio dos sons e, por fim, das palavras. A imagem pode ser
uma encenação daquilo que habitualmente aconteceria numa aula. E, nesse caso,
coincidiria aqui, por um lado, a imagem que do interior da instituição se queria passar
para o lado de fora e, por outro, o comprometimento do aluno com uma pele que lhe
propunham vestir. “Quando o indivíduo se apresenta perante os outros”, escreve
Goffman em A apresentação do Eu na vida de todos os dias, “o seu desempenho
tenderá a integrar e a ilustrar os valores oficialmente reconhecidos pela sociedade”
(Goffman, 1993: 49, 50). Ora, é inquestionável que este grupo de alunos – sete alunos
e não apenas um – apresenta um desempenho condicente com a idealização
imaginada pela comunidade ouvinte. A fotografia que não captou som, levanta
alguma inquietação pois não permite afirmar a qualidade do desempenho dos alunos
surdos. Do domínio da visualidade é apenas o gesto e a atitude corporal. É aliás, este,
também o domínio a que os alunos representados são expostos e, portanto, será nesta
incorporação de práticas de rotina, de esquemas de acção, de avaliação, de
apresentação de desempenhos que se forma o habitus, determinante na construção
que o aluno empreende de uma imagem da realidade e de si próprio. É evidente o
carácter normalizador que esta prática de sala de aula ou encenação, criava nos alunos
envolvidos. Era aqui que se manifestava o grau de adaptação do aluno
comparativamente às expectativas de uma comunidade ouvinte. Governo do corpo e
governo da oralidade.
O ponto de partida para o segundo aspecto a referir, apresenta-se nas palavras
de Foucault:
“O corpo e o gesto postos em correlação: o controle disciplinar não consiste
simplesmente em ensinar ou impor uma série de gestos definidos; impõe a melhor
relação entre um gesto e a atitude global do corpo, que é sua condição de eficácia
e de rapidez. No bom emprego do corpo, que permite um bom emprego do
tempo, nada deve ficar ocioso ou inútil: tudo deve ser chamado a formar o
suporte do acto requerido. Um corpo bem disciplinado forma o contexto de
realização do mínimo gesto” (Foucault, 2004: 129).
Este, portanto, não era um mero exercício de aprendizagem de sons. Era uma
técnica que ocupava o aluno, obrigando-o a uma participação activa no processo de
aprendizagem. O aluno era chamado a ser autor da sua aprendizagem. O seu corpo
O método oral puro…
241
encerrava-se em gestos e ocupava um lugar específico no grupo. Cada aluno,
prestava provas do conhecimento que era suposto adquirir. Supomos que a cena real
que o fotógrafo captou fosse acompanhada de som e, no entanto, os alunos a quem
este se dirigia, eram surdos. “Que outros objectivos se encontram no silêncio dessa
prática?” (Lopes, 2002:121).
Os alunos surdos no processo de hospedagem de uma língua que não é a deles
mas do colono – o ouvinte-mestre – são organizados numa série de exercícios
disciplinadores sonoros e mímicos do corpo. Cada educando, é posto frente à sua
própria imagem no espelho e à imagem do professor. Observam o reflexo do mestre
de fala, desejando aproximar-se da performance desta imagem. A atenção do aluno é
totalmente centrada no movimento bocal de cada som que não ouve, mas do qual
conhece a vibração e a representação visual certas. Os exercícios de articulação de
cada aluno, individualmente, em frente a um espelho, objecto de observação
simultânea do professor e dos outros alunos surdos. Há uma avaliação constante de
desempenhos, do que se é capaz de falar, embora esta cerimónia oral da fala apenas
seja acessível ao professor, como único ouvinte que avalia o surdo a partir de uma
representação do seu corpo, enquanto corpo com falta, isto é, a partir da característica
que não está lá, o ouvir.
“Na medida em que a tendência expressiva dos desempenhos seja admitida como
realidade, então, aquilo que nesse momento é admitido como realidade assumirá
algumas das características de uma celebração” (Goffman, 1993: 50).
A frase de Goffman não poderia ser mais condicente com o que a imagem
revela do domínio oralista no ensino dos alunos surdos. Numa palavra, o aluno surdo
deveria transformar-se durante o processo de institucionalização. Para tanto exigia-
se-lhe um aperfeiçoamento constante, conseguido apenas pela incorporação de
práticas definidas em cada aula. “O ofício do aluno”, diz Perrenoud, “encontra-se
definido essencialmente pelo futuro que ele prepara e a escola faz como que se esse
futuro bastasse para conferir sentido ao trabalho de cada dia” (Perrenoud, 1995: 21).
Ora, o sentido de incorporação de uma língua oral, construía-se a partir de
representações do que deveria ser e saber o aluno surdo, e era nas interacções e nas
relações com o espaço escolar e com os seus diversos actores que esse sentido
Coreografia de gestos, vibrações e respirações
242
ganhava corpo.
“O professor não fica satisfeito com uma aproximação, exige constantemente
o som claro, bem timbrado e vai exercitando o mudozinho, emendando uma posição
falsa da língua, aumentando ou diminuindo a intensidade da voz até obter a pureza
perfeita e definitiva. Pronunciando bem o som o aluno continua a repeti-lo todos os
dias em frente do espelho, para evitar qualquer exagero na posição dos orgãos da fala,
conservando igualmente a mão aplicada à laringe para a melhor apreciação das
vibrações sonoras” (Fusillier, 1893: 394). Todo o treinamento apela a uma economia
e eficácia dos movimentos, garantindo-se pela repetição a correcção de cada
momento inadequado ou excessivo à produção da fala. Os ruídos serão anulados pela
persistência do treino. Os exercícios desmultiplicam-se. Cada som tem um gesto e
uma vibração próprias. A gramática da oralidade vai sendo incorporada nos corpos
surdos.
“Isso acontece, sem dúvida, porque os alunos interiorizaram a necessidade de
aprenderem e trabalham cada vez mais por vontade própria” (Perrenoud, 1995:
77).
É esse, aliás, o poder produtivo das disciplinas. Produzir corpos dóceis e úteis.
Só um método rigoroso, pensado em cada detalhe que o compõe, o permite.
“Começar pelos sons mais fáceis e acabar pelos mais difíceis, seguindo
escrupulosamente para os intermediários as leis de derivação fisiológica que não
admitem que se produza por exemplo o g antes do q ou o v antes do f. […] Quanto
maior for o número de sons conhecidos, tanto maior será o número de palavras que
com eles se pode pronunciar. Possuindo-os todos, com as suas numerosas
combinações, pode-se falar qualquer palavra, portando qualquer período e nessas
condições o surdo-mudo deixa de ser mudo” (Fusillier, 1893: 394, 395). Passa a ser
surdo-falante. Estamos diante de um acontecimento possível neste enquadramento
institucional dos surdos numa instituição como a Casa Pia. Goffman diz que as
instituições, nomeadamente estas de carácter total, “são as estufas para mudar
pessoas; cada uma é um experimento natural sobre o que se pode fazer ao eu” (2003:
22).
O exercício era para o surdo a única forma de se tornar um corpo competente
O método oral puro…
243
para hospedar a fala. Há uma seriação de exercícios, organizados em dificuldade
crescente, cujo domínio lhe vai possibilitando, primeiro, a pronúncia de sons e um
controlo e qualidade no domínio desses sons que serão, depois, palavras. A repetição
contínua conseguida pela adesão da criança ao ideal do educador, será garantia de
uma performance cada vez mais perfeita. O ponto em apreço é o “exercício”, a
técnica pela qual se impõem aos corpos tarefas ao mesmo tempo repetitivas e
diferentes, mas sempre graduadas. Dirigindo o comportamento para um estado
terminal, o exercício permite uma perpétua caracterização do indivíduo seja em
relação a esse termo, seja em relação aos outros indivíduos, seja em relação a um tipo
de percurso. Assim realiza na forma da continuidade e da coerção, um crescimento,
uma observação, uma qualificação” (Foucault, 2004: 136,137). Mas não é só a figura
do mestre de fala que impulsiona uma performance perfeita dos sons, é o espelho em
que o surdo vê a imagem da sua própria transformação, que não percebe abusiva do
seu estado surdo, porque, precisamente, persegue a libertação desse estado surdo
através da resolução pronta, dócil, laboriosa, atenta dos exercícios que o mestre
falante lhe propõe.
Há ainda que registar um outro aspecto que continuamente tem sido pano de
fundo desta escrita. A escola era um dispositivo de poder, e o poder não é um
“atributo”, “mas relação”. O poder “é operatório”. “A relação de poder é o conjunto
das relações de forças, que passa tanto pelas forças dominadas como pelas
dominantes, constituindo ambas singularidades”. Desde logo, a dominância oralista,
gera uma dinâmica de forças desiguais, contudo, a língua oral que se impõe ao aluno
surdo não é uma violência que se exerce sobre o corpo surdo, mas antes, “o efeito” de
uma força sobre o aluno surdo (Deleuze, 2005: 44). E esta força possui a
particularidade de normalizar. O surdo terá não só de adquirir a mimética de gestos
faciais do ouvinte como também de desempenhar o complemento sonoro de tais
gestos, muito embora, esta prática possa significar um abuso do seu estado original –
pois tem de dominar uma prática que não lhe pertence – a força que é dominante,
produz um real e uma verdade – a idealização da normalidade pelo acolhimento da
língua oral. Neste processo, apenas um elemento não é abusado – a especificidade da
experiência visual da surdez. E aqui reside também a força de poder do aluno surdo.
Desenha-se um conjunto de práticas, algumas violentadoras da condição
surda, mas que actuavam positivamente no sujeito que passava a desejá-las,
Coreografia de gestos, vibrações e respirações
244
estimulado pela valorização do seu sucesso, dos progressos na assimilação da língua
do mestre, que se queria que fosse um amigo. O surdo institucionalizado aprendeu a
representar-se a partir do ângulo do professor ou da instituição, desejando para si
aquilo que a instituição determinava que devia exactamente desejar.
“Na relação com o ouvinte, o surdo foi ensinado a olhar-se e a narrar-se como um
deficiente auditivo. A marca da deficiência determinou, durante a história dos
surdos e da surdez, a condição de submissão ao normal ouvinte. Dessa história de
submissão, criaram-se práticas correctivas derivadas de saberes que informam e
classificam os sujeitos dentro de fases de desenvolvimento linguístico,
cronológico e de perda auditiva” (Lopes, 2006: 4).
O surdo foi, portanto, participando na construção de uma imagem de surdo e
de surdez, como uma condição e um estado dos quais, não se podendo libertar, podia,
pelo menos disfarçar. Passou, claro está, a disciplinar-se no cumprimento de uma
conduta moral que mais do que por interdições, seria marcada pela relação que o
aluno surdo ia estabelecendo consigo próprio. O anormal, servindo sempre de objecto
métrico da normalidade, tinha, no normal, o equilíbrio a atingir e foi essa visão, quase
miragem, que determinou, no caso do aluno surdo, a sua viagem de transformação de
um estado para um outro estado. O processo de subjectivação do eu surdo, isto é, o
dispositivo de práticas e de técnicas que incidiram sobre o seu corpo, produziram a
experienciação da surdez enquanto deficiência.
Um dos primeiros artigos do século XX sobre o ensino dos surdos na Casa Pia
de Lisboa, estava recheado de um conjunto de imagens que constituem um objecto de
análise visual fundamental. Datado de 1908, relatava a experiência de uma visita à
Real Casa Pia de Lisboa, descrevendo os métodos de ensino, as actividades e os
exercícios que aí se praticavam, com o objectivo de dar uma língua falada, a quem
“não se tendo servido da boca senão para comer e para respirar”, não sabia “movê-la
como um falante”, não sabia “igualmente contrair e estender os lábios e recuar a
língua como nós” (Filipe, 1907: 12).
De entre as várias surpresas reservadas ao autor do artigo, a maior, não terá
sido a dos métodos de ensino, mas antes a de “uma realidade, tão real” quanto a de
“que nós ouvimos surdos-mudos falar, repetindo as palavras que percebiam pelos
movimentos da boca de quem as pronunciava, e ainda mais escrevendo-as
O método oral puro…
245
correctamente a giz no quadro preto da escola”. Estes “pobres abastardados”, a quem
a natureza privou do uso da palavra e que, sem ela, ficariam próximos de um estado
dito “selvagem”, não só pronunciavam a palavra que nunca poderiam ouvir, o que era
um bem enorme para a sua progressiva integração e socialização, como também se
haviam convertido em educandos, isto é, não eram já crianças ineducáveis, mas
ineducadas que, a pouco e pouco se iriam formatando ao padrão de criança-aluno,
habitando uma paisagem escolar e integrando a ordem física e funcional dessa
paisagem. “Um destes alunos” fez, até, “contas de quebrados à nossa vista, no mesmo
quadro”. Todavia, “o tempo e a paciência que se gasta” até fazer o surdo pronunciar
“a primeira letra do alfabeto, não é fácil de calcular” (Alberto, 1908: 139). Três anos
se empregariam em exercícios de educação dos sentidos e de respiração. Convido o
leitor ou a leitora a assistirem a este período preparatório para a hospedagem da
oralidade.
Coreografia de gestos, vibrações e respirações
246
O período preparatório e a educação dos sentidos
247
5.2. O PERÍODO PREPARATÓRIO E A EDUCAÇÃO DOS SENTIDOS:
A VISÃO E O TACTO
“É inteiramente necessário que o professor preludie ao ensino oral puro pelo período
preparatório se não se quiser ver parado, a todo o momento, pela necessidade de
corrigir os defeitos tanto mais rebeldes a desaparecer quanto mais tarde forem
corrigidos” (Filipe, 1907: 5). Eram estas as palavras de José da Cruz Filipe num
relatório já aqui mencionado, enviado a partir de Paris onde, no Instituto de surdos-
mudos dirigido por Coguillot, o professor da Casa Pia se especializava. O período
preparatório consistia num trabalho centrado sobre o corpo do aluno, fazendo-lhe
uma educação dos sentidos visual e táctil para que depois se pudesse complexificar a
aprendizagem, introduzindo o estudo dos sons, das articulações e da leitura labial.
Esta fase essencial do processo de aprendizagem do aluno surdo tinha por fim “obter
do aluno uma perfeita imitação”, conseguida apenas por adestramento da sua
capacidade de atenção (Filipe, 1907:6). Num período preparatório tornava-se
necessário incorporar no sujeito mecanismos de obediência e disciplina, que
permitissem uma rentabilidade máxima das suas respostas face a uma economia de
acções. Uma intensificação de cada detalhe, como se o fraccionamento dos sentidos
pudesse ampliar a consciência da realidade do corpo e depois, da realidade do som. O
aluno surdo é lentamente introduzido num sistema espesso de regras, de detalhes que
lhe são dados a ver no seu próprio corpo e que o fecham na relação consigo. O recorte
efectuado sobre o corpo do aluno, tornando-o consciente para ele próprio, é o início
de um processo de transformação de que o aluno deverá ser o actor principal. As
técnicas aplicadas visam um relacionamento do sujeito consigo mesmo, com base
numa imagem que lhe é projectada como algo que deverá desejar atingir.
A educação dos sentidos assumia no processo educativo das crianças surdas
um papel primordial enquanto tecnologia disciplinar e de subjectivação:
“Les sens sont des organes de ‘préhension’ des images du monde extérieur,
nécessaires à l'intelligence, comme la main est l'organe de préhension des choses
matérielles nécessaires au corps. Mais le sens et la main peuvent s'affiner au delà
de leur simple rôle, en devenant les serviteurs toujours plus dignes du grand
moteur intérieur qui les tient à son service” (Montessori, 1958: 85).
A visão e o tacto
248
A educação dos sentidos visual e táctil era igualmente necessária como base
para uma educação estética e moral. A afinação dos sentidos, disciplinando a criança
surda nas nuances visuais e tácteis, treinava a sua capacidade de se fixar nos
pormenores dos objectos, no movimento dos lábios, na vibração dos sons. As técnicas
utilizadas confluíam para um treino intenso da atenção, utilizável nos inúmeros
exercícios propostos na escola: de articulação, respiratórios, no desenho ou nos
exercícios físicos. Tratava-se de através dos sentidos integrar as qualidades dos
objectos no corpo do aluno surdo como se estes fossem o passaporte para uma
consciência da realidade. E mesmo nestes exercícios disciplinadores do corpo e do
espírito percebemos a mecânica produtiva que sempre se instala na relação de
governamentalidade. Partindo de algo que um saber sobre a criança, classificava
como inerente à sua natureza, exercer-se-ia um poder sobre ela, que a deixava livre na
experienciação individual e construção de um saber sobre os objectos e sobre si
própria. Aqui é preciso que se conte uma história, a da importância dos sentidos nos
métodos educativos que não negavam liberdade e disciplina e que consideravam a
criança como centro de toda a aprendizagem a propor. Dizia Jean Jacques Rousseau,
mais ou menos a meio do século XVIII, que os primeiros movimentos do homem
seriam de experienciação, “para se medir com tudo o que o rodeia, e experimentar,
em cada objecto que avista, todas as qualidades sensíveis que se podem relacionar
com ela”. Tudo o que entrava “no entendimento humano” lhe chegaria “pelos
sentidos”. O primeiro contacto com a realidade das coisas seria sensitivo e, na
verdade, serviria de base “à razão intelectual”. O aluno produziria sobre o espaço e
sobre a panóplia de objectos que o rodeavam um saber que lhe alargaria a experiência
a novos campos. “Para exercer uma arte, é necessário começar por adquirir os
instrumentos necessários para a praticar; e, para poder utilizar utilmente esses
instrumentos, é preciso fabricá-los bastante sólidos, para que resistam ao uso. Para
aprender a pensar, é, pois, necessário exercitar os nossos membros, os nossos
sentidos, os nossos orgãos, que são os instrumentos da nossa inteligência” (Rousseau,
1990: 124). Partindo do princípio que a criança surda estava naturalmente
vocacionada para uma fixação na experimentação visual, havia que utilizar este
sentido como técnica aproveitando o interesse que decerto o aluno manifestaria:
“O surdo-mudo tem olhos para ver os movimentos da boca, tão variados como os
O período preparatório e a educação dos sentidos
249
sons que saem dela; tem mãos para sentir o sopro que se escapa com o som, as
vibrações do peito, da laringe, do crânio, das asas do nariz, etc. que acompanham
toda a vibração vocal. Estas manifestações acessórias parecem ter nenhuma
importância para aquele que ouve: basta-lhe o som , apesar de ouvir melhor
quando olha para a pessoa que fala. Mas se se atrair a atenção do surdo-mudo
para estes fenómenos, se se habituar a sua vista e o seu tacto a apreendê-los tão
lestamente como eles se produzem, se se lhes ensina a interpretá-los, ele
conseguirá, ao fim de um determinado esforço, distinguir as vogais, as
consoantes, as sílabas, as palavras e, portanto, inicia-se na linguagem dos seus
semelhantes” (Ilustração Portuguesa, 1907: 546).
A assimilação das propriedades formais e materiais das coisas esboçava-se
como objectivo de disciplina e de normalização, pois não só os sentidos eram o meio
impulsionador para a aquisição da palavra como o seu treino obedecia a um percurso
disciplinador, ainda que este se justificasse por uma necessidade inerente à própria
condição surda. A visão e o tacto surgiam como as duas modalidades com propensões
fecundas de desenvolvimento naqueles que tinham a audição como falta. Como se
esta falta pudesse compensar-se na maximização de outros sentidos. A ausência do
som significaria um elemento perturbador a menos para a fixação da atenção num
outro ponto sensorial. Necessário seria trabalhar na criança a capacidade de se centrar
no objecto proposto: “ce sont les stimulants, et pas de encore les causes qui attirent
son attention; aussi, est-ce l'époque où l'on doit doser méthodiquement les stimulants
sensoriels, afin que les sensations se développent rationnellement; on prépare ainsi la
base sur laquelle se construira une mentalité positive” (Montessori, 1958: 82).
Em 1893, Anicet Fusillier, professor particular de surdos em Lisboa, lançava a
questão que ainda hoje, com outro aspecto formal, se prolonga na memória de
muitos: “Os surdos-mudos falam?”. E à pergunta respondia com nova interrogação:
“Então, porque razão os surdos-mudos não conseguiriam falar?” (1893: 393). Ora, a
mudez que se associava à surdez não era algo inerente a esse estado, justificando-se a
não articulação de palavras por uma espécie de cegueira sonora:
“A mudez, salvo excepções raríssimas, provém exclusivamente da surdez; uma
criança não pode reproduzir sons que não ouve, ainda menos palavras e frases;
não tem defeito orgânico que impossibilite a articulação. O ideal portanto, não se
prestando o ouvido, seria encontrar outro meio capaz de dar a sensação dos sons.
A visão e o tacto
250
Dois outros sentidos, a vista e o tacto, hão-de nos dar, em graus diferentes, esse
meio poderoso” (Fusillier, 1893: 393).
De facto, as técnicas pensadas para a educação das crianças surdas tomam a
interioridade e a subjectivação do sujeito como seu objecto. Normalização e
disciplina seriam apenas resultados alcançáveis se a criança participasse com
interesse nas actividades propostas. A arte de governar os alunos surdos via na
exploração da mais funda interioridade e sensibilidade, a única forma de afectação da
criança e da sua vinculação a sistemas que lhe poderiam ser demasiado abstractos não
fosse a particularidade de ela própria os sentir fisicamente. Havia que proporcionar ao
aluno surdo formas de racionalização da realidade e os instrumentos que serviam a
esta compreensão situavam-se no próprio corpo do educando. A educação dos
sentidos, mais não era do que a articulação, através de sensações corporais, entre
ideias e coisas. Não havia, aliás, forma mais objectiva de fazer a criança surda
perceber a sua falta senão demonstrando-lhe que um som tinha propriedades que ela
desconhecia, mas era tão verdadeiro quanto a vibração que poderia sentir na mão ou o
movimento que poderia ler nos lábios. O resgate de sentidos visuais e tácteis e a sua
educação era o ponto de ligação vital entre a interioridade do sujeito surdo e aquilo
que lhe era exterior mas deveria passar a fazer parte do seu querer. Seria absurdo
pensar em normalização, correcção ou disciplina sem se considerarem focos de
actuação adequados. O trabalho a partir das próprias sensações da criança,
individualizando-a e tornando-a o centro da prática educativa, era apresentado como
um processo quase espontâneo, quase natural, e que, afinal, era ditado pela própria
interioridade do aluno surdo. A identidade do surdo seria construida em cima deste
sentimento de falha de um sentido auditivo, mas para tal, esta falha assumia uma
verdade pela sua manifestação sob uma outra forma:
“Perdendo progressivamente os seus pontos de referência exteriores, a
consciência do corpo concentra-se nas impressões tácteis; desposa inteiramente
as sensações, mergulha nelas, afunda-se nelas com força; de súbito, ganha uma
nova clareza. Pouco a pouco, penetra num outro universo cujo espaço assimila
confundindo-se com ele. Eis que se expende agora, uma vez que o próprio corpo
se expande; eis que por seu turno se descobre enquanto universo e já não conhece
limites” (Gil, 2001: 172, 173).
O período preparatório e a educação dos sentidos
251
Uma espécie de som fantasma, um som ficção que o próprio surdo fabricava
em si dando-lhe uma forma ressonante e coreográfica.
O corpo, considerado nas suas capacidades de sentir, torna-se alvo de
mecanismos de poder, oferecendo-se também a novas formas de saber. Na execução
de cada tarefa, na participação em cada proposta, no envolvimento através do jogo, o
aluno expunha as suas próprias condições de funcionamento. O saber sobre este
grupo de escolares, nascido da observação, permitia actuar sobre ele a partir dos
pontos que eram a sua própria experienciação do mundo. Se os sentidos, visual e
táctil, eram senão os únicos, pelo menos os mais importantes instrumentos a que a
criança surda recorria para se inteirar do que a rodeava, dever-se-ia então aproveitar
este princípio na sua educação. Dizia assim Palyart Pinto Ferreira, glosando um outro
educador:
“‘Cativar as crianças, fazer-lhes primeiro tocar com o dedo um fim desejável, dar-
lhes os motivos de todos os esforços que se exigem da sua atenção. [...] Pedir-
lhes, em lugar de uma obediência passiva, absolutamente degradante, um élan
espontâneo, o desejo activo de saber; desenvolver nelas com discernimento o
desejo, natural em todas, de curiosidade e de actividade cerebral; iniciá-las no
divino prazer de compreender; eis o verdadeiro dever de um mestre, de um
educador digno do papel magnífico de tutor de almas’” (1930b:4).
Ora, esta perspectiva conflui nas ideias proclamadas pela pedagogia nova e
julgo que não as podemos considerar sem as articular com liberdade e disciplina.
Liberdade porque era reconhecida à criança a possibilidade de apreender a realidade
de uma forma que lhe era natural, quer dizer, através de jogos sensoriais, do ver e do
tactear os objectos. O carácter disciplinar suceder-se-ia a este interesse infantil,
educando os sentidos no momento em que já a criança estava envolvida na
experienciação dos objectos. Desenvolver a rapidez, o golpe de vista, a habilidade
manual, seriam resultados obtidos por um rigoroso trabalho disciplinar sobre o corpo
do educando. Mas esta era uma disciplina que se afigurava como proposta de
desenvolvimento e de domínio do aluno sobre si próprio e nunca como imposição
violenta do exterior. A dimensão sensorial apresenta-se como uma variante da
dimensão lúdica ou antes como uma especialização desta dimensão. Na execução de
A visão e o tacto
252
qualquer movimento participavam corpo e alma. Na atenção dedicada aos sentidos, o
aluno surdo conectaria o corporal e o espiritual, incorporando em si o mundo à sua
volta. Para tal lhe eram propostas as mais diversas actividades, contudo, não sem que
estas se estabelecessem num quadro científico. Não podemos ignorar o carácter de
utilidade para a produção de um saber cada vez mais técnico que a educação da visão
ou do tacto poderia representar. Estas eram áreas que quando direccionadas para
actividades do domínio do fazer manual, revelavam pelo registo o carácter daquele
que as produzia:
“pelo desenho de uma criança se aquilata do seu poder de observação e de
interpretação, dos seus interesses, não falando já no saber fazer que depende de
um adestramento especial de células motrizes, da aquisição de uma técnica. Pelo
desenho se pode ver como ela pensa” (Ferreira, 1930b: 6).
O estudo da alma da criança poderia fazer-se tendo apenas a observação como
instrumento. Actividades como o desenho e os trabalhos manuais seriam excelentes
para desenvolver a capacidade de atenção visual do aluno. Eram mesmo tecnologias
essenciais quando se pretendia uma hexis corporal, uma capacidade de concentração e
vinculação a uma tarefa durante um espaço de tempo estipulado. Na construção da
identidade da criança, a actividade artística ocupava um posicionamento privilegiado
porque sendo espaço aberto a uma liberdade interior, era também espaço de
regulação adestradora, fosse pelo domínio da realidade através do traço, fosse pela
organização do corpo no espaço, fosse pelo planeamento estratégico do tempo. Estas
eram coordenadas que envolviam a criança surda e exigiam dela uma resposta
pessoal, no recorte celular de si enquanto indivíduo.
“Por ser absolutamente necessário o professor ter de fixar a atenção do aluno num
dado ponto ou objecto, isto é, fazer-lhe a educação da vista, tem de recorrer a
exercícios de ginástica escolar, imitativa e progressiva; com estes exercícios a
vista do aluno começa a fixar-se e a educar-se, o espírito a observar, a aplicar-se e
a comparar e além disso, estes exercícios servem também para disciplinar o
aluno” (Filipe, 1907: 10, 11).
Fixar a atenção do aluno no corpo do professor agregaria às vantagens de
O período preparatório e a educação dos sentidos
253
duplicação do exercício, as vantagens da emulação relativa à figura do mestre. Entre
os exercícios possíveis figuravam o “fazer marchar o aluno imitando os passos do
professor”, fazê-lo “abrir e fechar a porta”, “levantar-se”, “sentar-se”, “saudar”,
“inclinar-se para a frente”, “para os lados”. Exercícios “tão úteis”, desenvolvendo o
“espírito de imitação” e envolvendo “todo o corpo” do aluno. Semelhante aos
exercícios militares. Todavia, também para as mãos e para os dedos se esboçavam
ginásticas especiais: “mostrar 1, 2, 3 dedos e depois fazê-los dobrar rapidamente”
(Filipe, 1907: 11). Era de todo conveniente que o aluno surdo entendesse estes
exercícios como jogos em que o prazer de participar, tão natural na criança, o faria
desenvolver sensações determinadas. Mais tarde, a imitação dos movimentos
necessários à fala, não seria de todo estranha a este mecânica activa da imitação, para
além de os movimentos labiais serem mais facilmente apreendidos por um
desenvolvimento e educação conveniente da atenção visual e táctil. O sentido da vista
desdobrava-se no sentido das formas, dos tamanhos, das cores, das distâncias, dos
movimentos, o sentido do tacto, nas temperaturas, nas formas, nos tamanhos, nas
texturas, nas vibrações.
“Antes de executar qualquer exercício para a educação táctil devem banhar-se as
polpas dos dedos em água tépida, enxugando-as e friccionando-as depois com
uma toalha felpuda afim de fazer afluir o sangue e dar aos dedos um maior poder
de sensibilidade” (Anuário 1916-1917: 346).
Exercício de treino táctil
(Ferreira, 1922 b)
A visão e o tacto
254
“Depois de muitos destes exercícios, e quando o sentido táctil tiver atingido
um certo grau de desenvolvimento, passa-se a outro exercício que é ao mesmo tempo
verificativo e ainda educativo e que é executado de olhos vendados” (Rosa y Alberty,
1917: 346). Estes eram receituários que o professor da Casa Pia Rosa y Alberty trazia
da sua presença num Curso de Maria Montessori realizado em Barcelona. Segundo a
pedagoga, cada criança teria a sua venda própria, guardada numa carteira com as suas
iniciais. A imagem fotográfica aqui reproduzida pertence ao arquivo de memórias do
que foi o processo educativo dos alunos surdos da Casa Pia, nos primeiros anos do
século XX. Na Casa Pia, os alunos surdos não tinham uma venda especial, mas
utilizavam o próprio lenço, dobrado, para tapar os olhos. Um aluno surdo de olhos
vendados: não ouve e não vê. Procuraria pelo tacto adivinhar o objecto que lhe
colocam nas mãos. Cinco alunos, de idades semelhantes, observam-no junto à mesa
dos professores. Três alunos, mais velhos, sentados, cada um atrás da sua carteira
escolar, dirigem o olhar para o acontecimento. Parecem atentos. Não fosse a barreira
visual que os cinco alunos de pé formam, dir-se-ia que observavam o desempenho do
colega de olhos vendados. A professora observa o tactear do aluno. O professor olha
de frente a câmara fotográfica. As paredes da sala são preenchidas com imagens. O
espaço é transbordante de detalhes visuais, neutro em som. A atenção fixa-se nos
sentidos: do tacto, da visão, da audição (por causa e pela sua ausência).
“O tacto é susceptível de adquirir uma delicadeza e uma habilidade especiais;
e já se conhece o grau que ele atinge no ensino dos cegos”. O trabalho a desenvolver
enquadrava-se no disciplinamento do sentido cutâneo elevado ao seu máximo grau de
percepção, por forma a reconhecer-se no objecto que não se via, a qualidade, a forma,
o tamanho. Privado do som, o surdo via-se também momentaneamente privado da
visão, para melhor isolar as suas capacidades estereognósticas tácteis. Um saber
geralmente extraído deste grupo de escolares mostrava que teriam “o tacto muito
menos desenvolvido que a maior parte das crianças que possuem todos os sentidos,
porque a sensibilidade nervosa é mais ou menos diminuída neles, segundo eles são
mais ou menos degenerados”. Era portanto útil treinar este sentido para que as
crianças surdas no processo de aprendizagem da língua estivessem capazes de
facilmente “distinguir as vibrações fortes, fracas, locais, etc” (Filipe, 1907: 16, 17).
Depois de colocado nas mãos “um objecto qualquer” para que a criança o
apalpasse, tirava-se-lhe o “ objecto das mãos e o lenço dos olhos” e o aluno deveria
O período preparatório e a educação dos sentidos
255
indicar qual era o objecto que tacteara, seleccionando de entre muitos que se
colocavam em cima da mesa. “Para este exercício” empregavam-se, primeiramente,
“objectos inteiramente diferentes entre si, tais como: uma caneta, um caderno, um
aparo, etc.”. Em seguida, o exercício tornava-se mais complexo pela utilização de
“objectos semelhantes na forma mas de qualidades diferentes, tais como: dois lápis da
mesma dimensão, mas sendo um de madeira ordinária e outro de madeira
envernizada; para se dar mais desenvolvimento ao tacto”, poder-se-iam “misturar 3,
4, 5 ou 6 canetas, mas com uma certa diferença entre si, assim como por exemplo:
uma caneta com aparo, outra sem ele, outra com uma extremidade partida, etc.”
(Filipe, 1907:17, 18). Do que aqui se fala é de um treino intensivo da atenção.
De modo gradual, o aluno seria levado a distinguir os diversos elementos do
mundo exterior fixando-os como objectos de observação. O treino dos sentidos
enquadra-se na cultura da atenção de que falou Gabriel Compayré no século XIX. Se
haveria primeiro que desenvolver na criança surda a consciência de si, quer dizer,
“aquela consciência que tem por objecto imediato o eu, e que é o princípio do
sentimento da personalidade”, a educação teria que exercer “uma acção para assim
fortalecer a reflexão psicológica e assegurar à pessoa humana a plena posse de si
mesma”. Todavia, a uma criança, ainda mais privada do sentido auditivo, a grande
questão seria “ensinar-lhe a estar atento” e o meio de o conseguir não era explicando-
lhe “teoricamente as condições da atenção”, mas fazê-la “conhecê-las pessoalmente”,
“apresentando-lhe objectos que estejam ao seu alcance, e excitem o seu interesse”
(Compayré, 1893: 315). Esta preparação haveria de fazer o aluno fixar-se em tudo o
que o rodeasse, mas também possibilitar-lhe a capacidade de concentração num
detalhe mínimo como um movimento de lábios. A educação dos sentidos organizava-
se a partir de uma selecção cuidada introduzindo de acordo com as capacidades
individuais de cada aluno, elementos novos com que a criança se fizesse “senhora do
mundo que a cerca”:
“Começa a distinguir as formas dos tamanhos, as cores das formas, as diferentes
graduações de cores e dentro da mesma cor os seus diferentes tons. [...] Distingue
o simples tacto da possibilidade de apreciar o peso ou reconhecer a forma e o
tamanho de qualquer objecto e, lentamente mas seguramente, se vai
estabelecendo a ordem em meio do caos” (Anuário 1916-1917: 351, 352).
A visão e o tacto
256
Terei de conduzir esta escrita novamente até Rousseau quando este se refere
às estimações auferidas através do tacto, como sendo “as mais seguras, precisamente
porque são as mais limitadas”. Não era um contrasenso o que motivava esta
afirmação “pois que, estendendo-se unicamente até onde as mãos podem alcançar”, o
sentido táctil corrigiria na proximidade com os objectos “as estimações precipitadas
dos outros sentidos”, principalmente quando estes não estavam devidamente
adestrados. “Tudo o que o tacto sente, sente-o bem”, para além de que acrescentando
“a força dos músculos à acção dos nervos, reunimos – através de uma sensação
simultânea – a avaliação da temperatura, das grandezas e dos aspectos, a avaliação do
peso e da solidez” dos objectos (1990: 140).
O isolamento de cada um dos sentidos em cada exercício educativo, por certo
ajudaria o aluno a dirigir e aplicar toda a força útil do seu corpo no objecto que o
mestre lhe determinava. Esta atitude, fruto de um longo processo de adestramento,
era “o espírito em liberdade”. O trabalho do mestre seria criar situações que
prendessem e captassem o seu pupilo. Uma atenção involuntária seria procedida por
uma atenção voluntária. “O melhor meio de chamar o espírito à liberdade é o de
submetê-lo primeiro a sensações contínuas e forçadas” (Compayré, 1893: 316, 319).
Michel Foucault, em Vigiar e Punir, demonstra que um corpo só se
transforma numa força útil se for simultaneamente produtivo e submisso. A
submissão de que fala não é obtida unicamente por intermédio de instrumentos de
violência. A sujeição daquele que é sujeito é fruto de um cálculo, de uma organização,
de técnicas pensadas por uma racionalidade governativa. As técnicas utilizadas na
educação das crianças surdas na Casa Pia de Lisboa, inscrevem-se ao nível de uma
“microfísica do poder posta em jogo pelos aparelhos e instituições”, mas no interior
de relações em que o poder não é “concebido como uma propriedade, mas como uma
estratégia”, os seus “efeitos de dominação” não são “atribuídos a uma ‘apropriação’,
mas a disposições, a manobras, a tácticas, a técnicas, a funcionamentos” (Foucault,
2004: 26). Neste quadro, é importante percebermos que o investimento sobre o corpo
da criança surda, numa atitude ortopédica, se direcciona para um campo em que não é
a submissão a regras, à oralidade, ao modelo ouvinte que assume preponderância,
mas antes uma evolução que se pretendia natural, que se deveria manifestar a partir
O período preparatório e a educação dos sentidos
257
do próprio interior do aluno surdo, de um desenvolvimento gradual da vontade a
penetrar os hábitos impostos. A vontade e o desejo caminham paralelamente. Em
1938, Serras e Silva escrevia que o “saber é negócio de inteligência, querer é negócio
de vontade. […] O saber é fácil de ministrar, o querer é mais difícil de instalar na
vontade. Requer tirocínio, exercício, prática e verificações” (Silva, 1938: 208).
Isso mesmo verificou João de Sousa Carvalho, professor da Secção de surdos
da Casa Pia, que em 1916 foi encarregado de uma classe de alunos quase todos com
“pouca disposição para o trabalho” e “extremamente desleixados, apresentando
sempre os seus cadernos muito enxovalhados e cheios de borrões; também muito
teimosos, chegando muitas vezes a não quererem fazer o que lhes ordenava, mas se
insistia, lá faziam alguma coisa, quase sempre de má vontade e com maus modos”.
Pois bem, numa situação destas se distinguiria o bom do mau pedagogo. Nesta
matéria, não era o conteúdo do que se ensinava que estava imediatamente em causa,
mas, isso sim, a capacidade do mestre para incentivar o aluno: “trabalho”, “paciência”
e “preserverança” eram três das qualidades necessárias às quais se somava o saber da
psicologia (Carvalho, 1918: 277, 278). A educação não poderia deixar “de tomar em
consideração os interesses e as aptidões da criança. A educação não cria capacidades;
vai somente desenvolver e aperfeiçoar aquelas que já existem” (Amaral, 1956: 49).
Logo, seria conveniente que o educador conhecesse o seu aluno de modo a não lhe
propor exercícios que muito o fatigassem. A este conhecimento juntava-se,
evidentemente, o da ciência pedagógica que propunha o respeito pela individualidade
de cada criança, a graduação dos exercícios, a sua variabilidade, a criação de
momentos de trabalho e de espaços de recreio. Livremente o aluno deveria ser
conduzido a executar as tarefas que lhe propunha o mestre. Em “lugar de usar de
autoridade ou modos bruscos”, seria pelos “meios brandos e suasórios” que o
professor haveria de conseguir o seu “desideratum”. A confirmação estava à vista de
todos e era com orgulho, que João de Sousa Carvalho, afirmava “ter conseguido”. De
início, impunha-se adaptar os alunos “ à vida escolar por uma variedade de
exercícios, de que eles gostavam imenso”, quer dizer, cativando o aluno de uma
forma apenas possível por um saber construído sobre a sua alma. Estava já em
execução o hábito da disciplina. Seguidamente, haveria que repetir sem cansaço “a
necessidade que tinham de adquirir a linguagem falada, fazendo-lhes ver que esta era
a melhor forma pela qual podiam trocar as suas impressões e exprimir os seus
A visão e o tacto
258
pensamentos para com os seus semelhantes” (Carvalho, 1918: 278). Era este o
balanço do esforço:
“Foi, pois, assim, não os deixando um só momento, que consegui fazer-lhes criar
hábitos de trabalho e asseio e hoje posso dizer afoitamente que consegui afinar a
minha classe, a ponto de me apresentarem sempre os seus trabalhos com
pontualidade e limpos e, o que é mais ainda, estarem bem dispostos sempre e
prestando a maior atenção às minhas explicações. Ora certamente que esta
transformação se não deu porque possua a qualidade de disciplinador emérito, ou
pelas minhas aptidões, mas sim porque os surdos-mudos, ao contrário do que
muitos supõem, são dóceis, meigos e obedientes quando a pessoa que lhes
ministra o ensino lhes faz sentir que tem por fim reabilitá-los para o convívio
social, fornecendo-lhes os conhecimentos que eles não puderam adquirir em
virtude da falta do ouvido” (Carvalho, 1918:279).
O período preparatório que tenho vindo a referir tinha por fim não só preparar
o aluno para articular a palavra mas também para o fazer desejá-la. O apetite da
palavra deveria partir da vontade do aluno surdo após um disciplinamento intenso do
seu corpo, dotando-o de um maior domínio de si e das suas sensações. Vale a pena
novamente ouvirmos o que dizia Serras e Silva acerca da instalação da vontade no
sujeito e da relação que esta tem com o domínio de si, mas também com a ligação
estreita à ideia de liberdade de acção e de escolha, neste caso, do educando: “O
domínio de nós mesmos é a segunda virtude a cultivar”. A primeira, dizia, era a
tenacidade, princípio em nada contrário à interrupção das tarefas “de tempos a
tempos”. Afirmava-se a pausa, de resto, “como necessidade nas crianças e em todos
os fatigados”, devendo ser respeitada e aproveitada pelo mestre como momento para
melhor conhecer o seu aluno, e planear acções mais eficazes. “O que” era “preciso”
era “voltar à tarefa, até que ela” estivesse “completa”. Havia, portanto, que fazer da
questão da vida escolar uma questão de domínio do educando sobre si mesmo,
exercitando-se o sentimento de vínculo a uma tarefa e o dever de a realizar. “O
esforço, agora”, exercia-se “sobre o próprio indivíduo. Com esforço e tenacidade
conquistam-se muitas coisas, mas a mais importante conquista a fazer é a conquista
de nós mesmos. A técnica, para se adquirir este elemento fundamental do carácter”,
não era complicada, mas era “longa – a posse de nós mesmos” seria “obra de longos
O período preparatório e a educação dos sentidos
259
meses e anos de trabalho, obra sempre incompleta, sempre a refazer, sobretudo com
as naturezas fracas, tímidas, nervosas e instáveis” (Silva, 1938: 222). O actor a quem
competia desenvolver estas virtudes no aluno, era o professor. Na relação com este, a
criança teria de descobrir um amigo no qual confiasse totalmente.
Os exercícios elaborados a pensar na implantação da língua oral em crianças
que não ouvem, são segmentados e divididos por níveis de dificuldade. Primeiro, a
educação do tacto e da vista, seguida da preparação do aparelho vocal, “que tem por
fim a educação da respiração”. Nunca, à criança surda, se deveria exigir uma palavra
sem que os fonemas que a compunham, os movimentos e as vibrações necessárias
para a dizer, tivessem sido minuciosamente exercitados e devidamente corrigidos os
defeitos. De hóspede, o aluno surdo transformava-se em hospedeiro da língua do
ouvinte. O processo de hospedagem da língua era celularmente dividido. Todavia, os
sentidos visual e táctil permaneceriam sempre acompanhando todos os outros.
Exercícios de vocalização
(Coguillot, 1889)
Da educação da vista porque é de observação e atenção que se fala, faziam
parte os exercícios de ginástica preparatória, subdividindo-se em exercícios de
ginástica bocal, labial e lingual. Era importante ensinar o aluno surdo a mover a boca
como um falante, a posicionar a língua e os lábios, a executar movimentos
conscientes. A ginástica bocal iniciava-se por um abrir “devidamente a boca do
aluno”, fazendo-o “tomar a posição dos diversos sons e articulações”, fazê-lo mover a
maxila inferior da direita para a esquerda e vice-versa” (Filipe, 1907:12). Os
exercícios de ginástica labial dividiam-se em sete partes. O primeiro passo a ser
A visão e o tacto
260
cumprido correspondia a um máximo afastamento, rápido, das comissuras, mas sem
afastar os lábios. As restantes seis etapas orquestravam-se quase todas em dois
tempos:
“2º De um movimento brusco levar as comissuras ao seu estado normal.
1º tempo- afastar as comissuras como para o sorriso.
2º tempo- levá-las depois ao seu estado normal.
3º 1º tempo - As comissuras afastam-se o mais possível, acompanhadas da
separação dos lábios que devem deixar ver os dentes que estão um pouco
afastados.
2º tempo - Os dentes e os lábios tomam rapidamente a sua posição normal.
4º 1º tempo - As comissuras afastam-se como para o sorriso acompanhadas da
separação dos lábios e dos dentes.
2º tempo - Voltar à posição normal.
5º 1º tempo - Avançar os lábios o mais possível e apertá-los.
2º tempo - Passar deste movimento ao grande afastamento das comissuras dos
lábios.
3º tempo - Voltar à posição normal.
6º 1º tempo - Combinar o avançamento dos lábios indicado no nº 5 com o
afastamento das comissuras e separação dos lábios e dos dentes.
2º tempo- Voltar à posição normal.
7º 1º tempo - Combinar o avançamento dos lábios indicado no nº 5 com o
alongamento e arredondamento dos lábios, isto é, os lábios tomarem a forma do
o.
2º tempo - Voltar à posição normal” (Filipe, 1907: 13, 14).
Uma militarização da face. O surdo falante é algo que se fabrica. Um corpo
inapto que se vai tornando apto pelos exercícios calculados que se apoderam dele.
Uma resposta rápida de movimentos, um automatismo que se incorpora no corpo
surdo e o transforma. O surdo é o aluno que está diante do professor e à sua total
disposição. É um corpo analisável e mais, manipulável. Mas não podemos esquecer
que este lado das prescrições rigorosas é a secção racional de uma possível ortopedia
daquele que é representado como anormal. Ele próprio se constitui sobre esta imagem
da falta e se recupera, se autoconstrói, na incorporação de cada pedaço de exercício.
Próximo tempo: ginástica lingual. “1º Deitar fora a língua e fazê-la recuar
rapidamente”. Quando recua, a língua deverá adoptar uma posição “estendida na
O período preparatório e a educação dos sentidos
261
cavidade bocal”, deixando a abertura da faringe visível. Todavia, se a língua for
demasiado mole, o que iria dificultar progressos futuros, novo trecho de exercícios
segundo a seguinte sequência: 1º” fazer alongar e recuar a língua o mais rapidamente
possível”, 2º “ levantar a parte dorsal da língua contra a abóbada palatina “, 3º “
levantar a ponta da língua contra a abóbada palatina ou contra a raiz dos dentes
superiores e depois deixá-la cair mas para diante”, 4º “levar a ponta da língua contra a
raiz dos incisivos inferiores, deitando ao mesmo tempo a parte dorsal para diante, de
maneira a arredondá-la”. Os movimentos da língua exigiam um trabalho profundo,
devendo executar-se bem combinados com os lábios e com a maxila inferior, de
modo a obter-se uma perfeita articulação dos sons. Mas o mestre deveria também
detectar se a língua não seria demasiado espessa, pouco habituada a movimentações.
Nesta situação, o remédio era desenvolver-lhe a actividade. Movê-la rapidamente em
todos os sentidos, começar “por deitar pouco a pouco a ponta de fora”, achatá-la à
medida que “se faz passá-la entre os lábios apertados” (Filipe, 1907:14, 15).
O corpo é sem dúvida considerado nesta categoria de exercícios tecidos numa
discursividade prolixa. O corpo total, sem qualquer possibilidade de fuga porque
precisamente é trabalhado no seu mínimo detalhe. Uma mecânica de gestos, de
movimentos, de atitudes, de rapidez, de eficácia. Um corpo codificado, mapeado,
técnico. Um corpo traduzido em sistemas de produtividade e de operatividade. O
aluno surdo, pela disciplina, passa a dominar o domínio sobre o seu próprio corpo:
fará “bom uso da voz”, “perfeita emissão dos sons da fala”, “correcta pronúncia das
palavras”, “ritmo aceitável” (Simões, 1961:8). Não é a sujeição nem tampouco a
habilidade, é o corpo tanto mais obediente, quanto mais útil.
Creio ter dado ao leitor ou à leitora uma imagem pormenorizada da presença
de uma relação de governamentalidade no ensino das crianças surdas na Casa Pia de
Lisboa. Parece-me que o cenário aqui desenvolvido de preparação do aluno para
receber a língua oral, através do desenvolvimento dos sentidos, é uma transcrição de
uma arte de governar que renuncia à tradicional violência de poder, de propriedade ou
apropriação de um corpo por um poder coercivo, que nega também um saber
interessado ou desinteressado de um sujeito particular. Foi uma arte de governar que
se fabricou na correlação de um poder e de um saber, de um investimento sobre o
corpo, mas igualmente sobre a alma levando o sujeito a incorporar hábitos e
certamente desejos.
A visão e o tacto
262
Exercícios de treino táctil
(Amaral, 1954)
Preparação do aparelho vocal
263
5.3.PREPARAÇÃO DO APARELHO VOCAL: EXERCÍCIOS RESPIRATÓRIOS
Darei agora conta dos exercícios que tinham por função trabalhar a respiração na
criança surda, por forma a fazê-la falar com os ritmos e timbres correctos. Estes
exercícios deveriam ocorrer paralelamente à educação sensorial da vista e do tacto e
era de todo conveniente que não tardassem face à ginástica bocal. Segundo Cruz
Filipe, considerava-se que cerca de “3/4 dos defeitos na articulação dos surdos-mudos
devem ser atribuídos a uma respiração defeituosa”. A explicação não era complexa.
Os pulmões que num falante desempenham não só a função de “introduzir oxigénio
no sangue e fornecer o sopro, a matéria da voz”, naquele que não fala porque não
ouve, cumprem apenas a primeira acção. “A respiração de um mudo é curta e
sufocada”, num minuto executaria cerca de dez respirações a mais do que um ouvinte
(1907: 19). Logo, haveria que trabalhar-lhe a respiração como preparação do aparelho
vocal. O que se propunha eram “exercícios de adestramento dos orgãos da fala, que
se” conseguiriam “sem esforço desde que o professor” soubesse “amenizá-los com as
brincadeiras actuais das crianças” (Filipe, 1942: 30). Já se vê que a questão do
interesse andava sempre ligada às técnicas de ensino:
“Toda a complexa tarefa de aprender teria de assentar na motivação do aluno e na
sua adesão livre à aquisição de conhecimentos”. Os incentivos nunca seriam de
mais na escola moderna: ‘adquire-se de modo mais completo e dura mais em
nosso espírito o que aprendemos interessadamente’” (Ó, 2003: 232).
Exercícios (Ferreira, 1924)
Exercícios respiratórios
264
Ora, o que se pretendia no caso das crianças surdas era uma total
interiorização dos mecanismos que lhes eram prescritos no processo educativo. O
jogo associava-se a um aumento da intensidade participativa do educando, sendo
meio de desenvolvimento da criança e apelo a uma consciência de si. Um exercício
que muito agradava ao aluno surdo era o do treino do sopro fazendo bolas de sabão. A
expiração deveria ser muito lenta e não interrompida abruptamente. Os exercícios
respiratórios exigiam uma articulação entre o corpo e o espírito, visando um domínio
do corpo por força de uma vontade interior. O aluno surdo tentaria respirar como um
ouvinte, uma espécie de faz-de-conta, de retenção de inspirações e de expirações. São
técnicas disciplinares que se evidenciam, mas também as técnicas do eu. São
propostas práticas através das quais os alunos tentariam melhorar as suas capacidades
de acordo com os modelos normativos ouvintes. Eis como se iniciava o processo:
pedir-se-ia ao aluno que expirasse a maior quantidade de ar possível e, para o fazer
notar do que “ele pode e deve fazer” “ o professor pode servir-se de uma bexiga de
porco e fazê-la encher completamente pelo aluno”. Nenhuma quantidade de ar, ainda
que mínima, deveria ser deixada escapar-se pelo nariz. Caso se produzisse este
defeito durante o processo, apertavam-se-lhe “as fossas nasais”, evitando então a
“saída de ar” (Filipe, 1907: 21).
Exercício de respiração no aparelho de compressão
(A Ilustração Portuguesa de 6 de Maio de 1907)
Preparação do aparelho vocal
265
Controlo, exercícios e transformação. Formação também de um saber sobre os
indivíduos: “será útil empregar um espirómetro para se constatarem os progressos
feitos por cada aluno a respeito da capacidade pulmonar e da duração da expulsão do
sopro. Somente para este fim são empregados os espirómetros” (Filipe, 1907: 21). A
sala de aula é o espaço da intervenção ortopédica, observatório permanente de
capacidades individuais, aparelhos de saber que inventarão técnicas de requalificação
dos sujeitos, espaços de objectivação, classificação de desempenhos e localização de
cada aluno:
“As fossas nasais estando fechadas, pode-se medir ou uma expiração máxima, ou
a quantidade de ar que passou num tempo dado, (cinco minutos por exemplo),
nos pulmões do aluno. Um sistema de rodas dentadas faz andar duas agulhas,
uma das quais marca os litros e a outra as divisões do litro. Pode-se portanto fazer
estudos comparativos e saber qual é a quantidade de gaz expirado, no mesmo
lapso de tempo, por muitos alunos” ( Filipe, 1907: 23).
Novo mapeamento, nova cartografia de cada escolar. São criadas condições
que servem, simultaneamente ao exercício e ao teste, envolvendo ainda outras
coordenadas específicas do modelo escolar: a observação, o tempo, a comparação,
individualização do aluno e homogeneização na classe. A informação recolhida,
mediada agora não apenas por técnicas de observação científicas, mas, também, por
objectos de mensuração, legitimava o treinamento contínuo do corpo. De facto,
pretendia-se com os exercícios respiratórios colocar em circulação no corpo do aluno,
a maior circulação de ar possível, modificar-lhe a cadência respiratória, regular-lhe a
pressão do sopro, treinar a sua interrupção e o seu gasto progressivo. Esta é uma
abordagem cuja escala é particular, é o movimento, o sopro, a pressão, o gesto, que se
articulam numa disciplina corporal de experienciação da surdez num contexto
correctivo. É toda uma mecânica corporal de manipulação calculada e de aptidões
aumentadas. Pela ligação entre um saber como actuar e um poder de actuar, o aluno
surdo converte-se em algo diferente do que era no momento de entrada na Casa Pia.
Zygmunt Bauman refere o processo da identidade como uma fabricação de bricoleur,
“guiada pela lógica da racionalidade do objectivo”, seria um constante acumular de
peças de experimentação (2005: 55). Ora, o que acontece com o aluno surdo
envolvido em processos correctivos, é uma somatização de experiências que ele
Exercícios respiratórios
266
próprio realiza, em viagem para uma imagem deslocada, desterritorializada do que
seria ser ouvinte. E cada experiência é um elemento mais de que o sujeito se apropria.
O sentido do tacto, antes treinado, seria agora mobilizado para regular a
respiração. O aluno deveria sentir na própria mão a diferença sensorial entre o ar
inspirado e o ar expirado. No corpo do professor e igualmente no seu, era convidado
a sentir o duplo movimento pulmonar:
“Le maitre, prenant la main de l'enfant, se appliquera sur le thorax pour lui faire
sentir les mouvements de la dilatation ou de la contraction de l'appareil
pulmonaire. Et l'élève, reportant son autre main sur son propre thorax, exécutera à
son tour les mêmes mouvements” (Coguillot, 1889: 121, 122).
Exercícios
(Coguillot, 1889)
Os exercícios seriam repetidos, mais tarde, envolvendo também a produção de
sons, pois estes provocariam estremecimentos sensíveis ao tacto. Este gesto de
verificar o real no corpo do outro e no seu próprio, complexificava-se por envolver
um sentimento de emulação da figura do mestre. Quando referi o poder pastoral, falei
na sua articulação com o desejo: trago-o agora para um cenário prático. Os exercícios
de implantação da língua oral fariam do hábito uma vontade, do professor um amigo
Preparação do aparelho vocal
267
e um guia. A relação estabelecida entre professor e aluno é algo que se localiza no
interior de um projecto tecnológico de efeitos que operam sobre outros efeitos, de um
poder que assenta na produção útil de um saber. Por outro lado, a realização pessoal
do self, tornou-se no motor da disciplina interna do aluno. A verdadeira emulação
seria “a emulação para consigo próprio - 'aperfeiçoa-te que aperfeiçoarás' - 'a mais
elevada, a que melhor faz brotar do estudo mananciais de estímulos generosos e belos
entusiasmos'” (Lima, 1932: 17).
Uma outra atitude respiratória muito comum na criança surda era a de entrada
e saída do ar simultaneamente pelo nariz e pela boca. A correcção também aqui
passaria pela pressão exercida sobre as fossas nasais, obstruindo assim a passagem de
ar, “après quoi, on l'exercera à respirer avec le nez seul, la bouche étant fermée”. Era
o momento de entrada em cena do sentido visual, chamando a atenção do aluno para
as asas do nariz “on lui fera remarquer que le souffle s'échappe par le nez et non par
la bouche” (Coguillot, 1889: 123). Diante do nariz poder-se-ia colocar um espelho
que ficaria embaciado pelo vapor provocado pela expiração. E decerto o aluno
manifestaria interesse por esta transformação visual do objecto, provocada por si.
Os discursos das imagens falam em espaços de fronteiras entre a
anormalidade do surdo e a possibilidade de uma normalidade. As pedagogias
correctivas, as técnicas, oferecem um possível lugar de ser operativamente como o
ouvinte. Neste processo de normalização, o aluno surdo deveria empenhar-se o mais
possível.
Exercício de sopro na régua graduada
(A Ilustração Portuguesa de 6 de Maio de 1907)
Exercícios respiratórios
268
Doze crianças surdas assistem a uma prova de sopro do colega. Uma barra
negra horizontal, graduada como uma régua e sustendo em dois pontos, a diferentes
distâncias do aluno em exame, dois castiçais com duas velas acesas. “Para variar os
exercícios de respiração pode-se fazer apagar, ao nosso aluno, uma vela a uma certa
distância, aproximadamente 45 a 60 centímetros, segundo o tamanho do aluno. Para
este exercício ainda se pode fazer pegar a vela ao aluno e estender o braço para
depois a apagar a esta distância” (Filipe, 1907:23). O momento captado fala, no
entanto, de uma tentativa de sopro com o queixo encostado a um suporte vertical,
agarrado com ambas as mãos pelo aluno. Todos ficamos expectantes face ao
desenrolar da acção. O professor inclina-se como que para medir o posicionamento, a
amplitude do sopro, os restantes alunos fixam diferentes objectos: o colega, o
professor, a luz das velas.
Provocação da voz e leitura da fala
269
5.4.PROVOCAÇÃO DA VOZ E LEITURA DA FALA
A provocação da voz seria precedida por uma ginástica vocal. Os exercícios
preparados para esta fase consistiam no ensino dos sons, das sílabas, das palavras,
podendo executar-se de modo sonoro ou não sonoro. As práticas não sonoras
utilizariam os movimentos da ginástica bocal e labial, adaptando-os à da ginástica
vocal: fazia-se o aluno “vibrar a língua, os lábios” e incentivava-se a produção de
“expirações explosivas”. As práticas sonoras acrescentariam a estas, “as vibrações da
laringe, dos lábios, da língua e do tórax” (Filipe, 1907: 27, 28). O aluno surdo deveria
dominar esta codificação de produção do som para passar à fase seguinte. O enfoque
de cada uma destas práticas vai para o corpo do aluno o que significaria, obviamente,
que a sua execução correcta era resultado de um perfeito domínio sobre si.
Laringe (orgão gerador do som vocal), pulmões, traqueia, faringe, boca e
fossas nasais são os orgãos envolvidos na produção da fala oral e aqueles que seriam
trabalhados no aluno com o objectivo de o levar a articular a palavra. Os exercícios
do período preparatório e os de respiração deveriam ter familiarizado o aluno com o
seu corpo, os diversos orgãos, sua localização, domínio, movimento e vibração. A
esta categoria de exercícios era atribuída a nomeação de ‘meios naturais de
provocação da voz’, dividindo-se em meios directos e meios indirectos. Os primeiros
teriam como finalidade preparar o espírito do aluno e os seus sentidos, devendo para
tal o professor:
Colocar “o aluno de pé, os braços pendendo normalmente e a cabeça bem
levantada”. Voltaria “de novo aos exercícios de respiração” e colocaria “ao
mesmo tempo os orgãos do aluno na posição do fonema mais simples, isto é, o
A”. Os segundos, servindo para provocar a voz de forma directa, exigiam que o
mestre colocasse “os orgãos do aluno na posição desejada”, fazendo-o “perceber
por meio do tacto as vibrações produzidas na laringe e no peito”, insistindo”com
o aluno para repetir as mesmas vibrações” (Filipe, 1907: 30).
Facilmente se percebe que estas prescrições permitem ir mapeando o conjunto
de práticas que deveria enformar a produção do aluno, num contexto de
aprendizagem oralista. A leitura deste pequeno fragmento projecta uma imagem de
um aluno ao dispor do professor, executando passo por passo o receituário de
provocação vocal. O eu do sujeito surdo ir-se-ia fabricando na intersecção de
Prótese-ouvinte
270
relações, de práticas, de experiências pessoais e experimentações que tinham o seu
corpo como objecto. Uma análise atenta e vigilante dos resultados fazia parte de um
aperfeiçoamento das técnicas e modos de fazer. Caso o aluno não correspondesse ao
resultado previsto para o exercício prescrito, o professor voltaria “à ginástica vocal e
quando o aluno” produzisse já “as vibrações labiais e linguais, então, o mestre,
“entreabrindo-lhe muito docemente os lábios”, obteria do educando “um som” que
seria “aproximadamente o som a” (Filipe, 1907: 30). Para os outros sons, o mesmo
exercício, proporcionando aos orgãos as posições adequadas.
Mas não se pense que seria fácil a arte de dar uma voz perfeita ao aluno surdo.
Não ouvindo, o surdo teria dificuldade em censurar a sua emissão oral e eram cinco
os principais problemas com que habitualmente o professor se confrontava no
processo de correcção: excesso ou falta de voz, voz de falsete também designada por
voz de cabeça, voz nasal e voz gutural. O excesso de voz, se não constituía
um”grande defeito” era, pelo menos, inconveniente e por isso se traçavam meios de o
eliminar. Bastaria fazer notar ao aluno que não seria necessário aplicar “muita força
para emitir o som”. Logo que o percebesse, o pupilo deixaria de contrair
desagradavelmente o rosto por um excesso de “energia do sopro” e então, “por meio
do tacto”, seria altura de demonstrar a “grande intensidade das vibrações produzidas
na laringe, ou ainda melhor, fazer-lhe conservar uma vogal durante um certo espaço
de tempo (20 segundos pouco mais ou menos) para o obrigar a dirigir bem o sopro e a
diminuir a intensidade da expiração”. Ora, se mesmo assim não se obtivesse o
“resultado desejado”, colocar-se-ia “o aluno à dieta da palavra”, quer dizer,
obrigando-o “a articular sem emitir o som” e, por último, voltar-se-ia “aos exercícios
de respiração afónica e sonora”. Para a falta de voz, ditavam as regras que para além
dos numerosos exercícios respiratórios, de ginástica vocal e bocal, o aluno seria
submetido a “um regimen confortativo”, composto de “bom alimento e ginástica”
(Filipe, 1907: 31-33).
Provocação da voz e leitura da fala
271
Exercício de provocação
da voz
(A Ilustração Portuguesa
de 6 de Maio de 1907)
A voz de falsete ou de cabeça, “pouco voluminosa, mas penetrante e aguda, com
ressonância na parte superior do tubo sonoro (faringe e fossas nasais) e com
vibrações em todas as partes da cabeça”, seria objecto de um trabalho propriamente
disciplinar (Filipe, 1907: 33). Primeiro, o aluno era colocado de pé e o professor dar-
lhe-ia a entender que era necessário produzir o som com uma economia de esforço.
Depois:
“com uma espátula abaixa-lhe a língua e com uma mão aperta-lhe a cartilagem
tiróide (situada debaixo do queixo) a fim de fazer descer a laringe; e por fim com
pequenas pancadas no peito do aluno experimenta produzir as vibrações toráxicas
que caracterizam a voz natural” (Filipe, 1907: 34).
A voz nasal, provocada por um uso intensivo de uma respiração nasal ou por
um abaixamento do véu palatino, era defeito difícil de corrigir. Para além de uma
dose de exercícios de respiração bocal e de vibrações toráxicas, só havia como
solução com a espátula tentar levantar o véu palatino de modo a evitar que o sopro se
escapasse pelas fossas nasais. A voz gutural, “rouca, mal timbrada e desagradável ao
ouvido”, vulgar no surdo de nascença, devia-se à “falta de elasticidade nas partes
constituintes da laringe” e “à maneira lenta como vibram as cordas vocais”. A solução
passava pelos exercícios “de respiração, de articulação e de silabação, com o fim de
Prótese-ouvinte
272
tornar flexível o orgão vocal e de emitir o sopro sonoro sem nenhuma violência”
(Filipe, 1907:35, 36).
Resulta deste quadro de práticas uma atenção que era dada às minúcias e aos
detalhes de cada parte do corpo, em especial aos orgãos ligados à fala, embora todo o
corpo fosse envolvido numa atitude postural própria do exercício de correcção. A
intervenção queria-se individualizada, distribuindo os alunos no espaço.
Exercício de articulação
(Amaral, 1954)
O professor trabalha com um aluno da primeira fila. O lugar do aluno está
vazio. À esquerda, a extremidade de um cotovelo deixa adivinhar a presença de um
outro aluno e mais dois sentados à direita do lugar daquele com quem o professor
realiza exercícios. Na segunda fila, mais dois alunos que parecem ocupados na
transcrição para o caderno diário do desenho e das palavras do quadro preto. Os dois
alunos sentados à frente observam o desempenho do colega. Os efeitos provocados
por esta situação, para os alunos, seriam semelhantes. O aluno em exercício,
encontrava-se numa situação de aprendizagem directa, mas também em avaliação de
capacidades. Os restantes observadores aguardariam o momento da sua chamada e
bebiam na performance do outro, os segredos a executar para uma boa actuação. E
estas são já formas de relação dos sujeitos consigo, treinando-se pela relação
pedagógica, organizando-se por comparação com os outros, transformando-se e
Provocação da voz e leitura da fala
273
corrigindo-se. Estes alunos vestem uma identidade criada para si, composta por
rótulos que um saber descobre no seu corpo e que um poder torna visíveis. Para o
funcionamento desta dinâmica é apenas necessário que o aluno surdo se deixe
introduzir nos processos escolares.
“O espaço escolar desdobra-se; a classe torna-se homogénea, ela agora só se
compõe de elementos individuais que vêm se colocar uns ao lado dos outros sob
os olhares do mestre. A ordenação de fileiras no século XVIII, começa a definir a
grande forma de repartição dos indivíduos na ordem escolar: filas de alunos na
sala, nos corredores, nos pátios; colocação atribuída a cada um em relação a cada
tarefa e cada prova; [...] sucessão dos assuntos ensinados, das questões tratadas
segundo uma ordem de dificuldade crescente. E nesse conjunto de alinhamentos
obrigatórios, cada aluno segundo sua idade, seus desempenhos, seu
comportamento, ocupa ora uma fila, ora outra; ele se desloca o tempo todo numa
série de casas; umas ideais, que marcam uma hierarquia do saber ou das
capacidades, outras devendo traduzir materialmente no espaço da classe ou do
colégio essa repartição [...] A organização de um espaço serial foi uma das
grandes modificações técnicas do ensino elementar. [...] Fez funcionar o espaço
escolar como uma máquina de ensinar, mas também de vigiar, de hierarquizar, de
recompensar” (Foucault, 2004:125, 126).
A intervenção ortopédica sobre os alunos surdos alimenta-se nesta disposição
espacial e disciplinar, nos elementos que lhe introduzem complexidades como o
exercício ou o exame. O segundo aponta sempre para a dimensão individual e
comparativa do que cada um é capaz de fazer em relação ao outro. Já o exercício,
“permite, sem dúvida, que o indivíduo se vá adequando desde o início da regra da
relação tanto com os outros como com um determinado tipo de percurso” (Ó, 2003:
48). O trabalho de diferenciação de uns relativamente aos outros é sustentado pela
própria intervenção clínica que pretende identificar e atingir os mínimos detalhes e
agir eficazmente sobre eles. Uma microfísica que toma o corpo como objecto de
intervenção. O professor procura em cada momento reconhecer as falhas do aluno,
sublinha-as e apaga-as. O apagamento é feito no processo correctivo, no interior de
uma sala que é também laboratório onde se detecta o desvio naqueles que já são casos
desviantes e onde se experimenta a correcção.
Prótese-ouvinte
274
“A professora preparou-nos para aprendermos as primeiras lições. Começámos
pela abertura da boca e pela aprendizagem dos diferentes sons [...], de leitura
labial com emprego de espelho, ou grande espelho, para educação dos sentidos,
seguindo-se exercícios respiratórios e de vocalização [...]. Aprendemos também
letras de pautas durante sete meses, mas eu ainda não falava o 'G' e o 'R' eram-se
bastante difíceis, principalmente quando punha na boca o lápis no fundo da
língua. O meu parceiro do lado, o nº 13, deu-me orientação para a maneira de
pronunciar mais facilmente o 'G' e o 'R'. Aprendi depressa e depois já falei
correctamente, facto que a Srª professora muito admirou” (Carvalho, s/d: 33).
A observação minuciosa dos mais minúsculos detalhes a corrigir permitia um
controlo dos alunos, desenhando um conjunto de regras, “um conjunto de técnicas”,
“um corpo de processos e de saber”, “de descrições”, “de receitas e dados” (Foucault,
2004: 121). Uma retórica corporal é então falada pelo corpo – de disciplina e de
correcção. Um corpo que está sob constante vigilância, aberto à produção de saber e
disponível para jogos de poder. A escola é um dispositivo disciplinar que se torna
num “aparelho de exame ininterrupto que acompanha em todo o seu comprimento a
operação do ensino” (Foucault, 2004:155). É sem dúvida o exame que inverte a
economia de visibilidade de uma relação de poder. O mestre não tem de tornar visível
o seu poder, ele manifesta-se inevitavelmente numa situação de observação sobre o
aluno. A prática do exame confere visibilidade àqueles sobre os quais incide.
Individualiza, regista os pontos a normalizar, faz do indivíduo sujeito de mecanismos
disciplinares. Também a segmentação, decomposição e recomposição das actividades
permite fixar o sujeito às práticas de carácter disciplinar, acentuando o seu
funcionamento enquanto parte operativa de um dispositivo escolar. No processo de
ensino do vocabulário, primeiro:
“O professor pronuncia uma palavra e o aluno lê-a sobre os lábios dele e repete-
a”. Depois, “o aluno repete a palavra e mostra ao mesmo tempo o objecto
correspondente”. Num terceiro momento, “o professor para fixar ao aluno o nome
do objecto, escreve-o”. De seguida, “o professor tendo na sua presença muitos
objectos diferentes e de que o aluno já conhece o nome, pronuncia o nome de um
qualquer e o aluno indica-o”. Atingindo esta fase, “o professor dita o nome de um
objecto qualquer que o aluno conheça, e o aluno escreve-o no quadro preto,
Provocação da voz e leitura da fala
275
articula-o e mostra ao mesmo tempo o objecto correspondente”. Por último, “ao
nome dos objectos que o aluno souber melhor juntar-se-á o artigo singular – o, a”
(Filipe, 1907: 37).
Há, portanto, toda uma encenação de práticas que encontra na seriação de
elementos muito simples, uma engenhosa forma de vinculação e operacionalização.
Cada fase nova é uma etapa a que só se acede depois de superar a anterior. Garantia
de esforços, de utilidade, de docilidade de que o sujeito se torna imagem porque ele
próprio participa na realização de si pelo exercício, treinamento e correcção. O
exercício é uma técnica disciplinar que amplifica o exercício do poder,
simultaneamente, fazendo “crescer a habilidade de cada um”, coordenando-a com a
de todos, acelerando movimentos, permitindo aumentar “capacidades de resistência”
(Foucault, 2004: 173). As disciplinas fabricam corpos úteis. Aproximam-se
intensamente da alma num jogo estratégico com o olhar que cada sujeito desenvolve
para dentro de si. Mais do que uma instância de julgamento onde se fixam punições,
o processo de correcção assume-se como um tipo de controlo do ouvinte sobre o
surdo e do surdo sobre si próprio e a falha, se existe e é marcada, é porque provoca
efeitos, reactiva a necessidade da correcção e legitima a sua aplicação:
“A falta não é reactivada pelo exame para fixar uma culpabilidade ou estimular
um sentimento de remorso, mas para reforçar, a partir da constatação lembrada e
reflectida de um fracasso, o apetrechamento racional que assegura uma conduta
sábia” (Foucault, 1994: 76).
Só faz sentido ser speculator sui, isto é, espectador de si próprio e autor de
uma história de vida se existem referentes que se fixam como espaços de desejo. Este
olhar que o surdo desenrola tende como objecto tem como referente a figura do
ouvinte. Ao nível das práticas não haveria talvez referência tão intensa quanto a de
fazer o surdo ler a oralidade do ouvinte.
A leitura da fala era, evidentemente, o treino que mais garantia o domínio da
língua dos ouvintes. Era aqui que a educação sensorial encontrava terreno de
aplicação prático. Se a leitura da fala era uma capacidade que o aluno surdo haveria
de adquirir por um treino intenso, a verdade é que a esta disciplina se somava uma
panóplia de microdetalhes que codificavam os corpos e a sua localização e relação no
Prótese-ouvinte
276
espaço. Para que o aluno surdo pudesse executar uma boa leitura da fala descrevia-se
uma série de regras que, independentemente de se tornarem possíveis num espaço
exterior à escola, deveriam ser no espaço escolar estritamente cumpridas:
“1º A face do educador deve estar bem iluminada. 2º A boca deve estar à altura da
criança. 3º A palavra ou as frases que pretende ensinar deve emiti-las no
momento psicológico. 4º Os olhos do educador devem ser expressivos para que
possa falar tanto com a boca como com os olhos. 5º A fala deve ser distinta e
emitida um bocadinho mais devagar do que se fala para a criança ouvinte, mas
sem exageros. 6º As primeiras palavras ensinadas devem ser simples e visíveis.
Se a palavra se encontrar numa frase deve-se-lhe dar maior ênfase. Não se devem
ensinar no mesmo dia pau, mau, pão, mão, etc. 7º as palavras devem ser sempre
escolhidas de acordo com os interesses da criança. 8º Tem de haver cooperação
entre o professor e o aluno. 9º A repetição deve fazer-se, mas sempre apresentada
de modo diferente. 10º Devem se utilizados os objectos correspondentes às
palavras a ensinar” (Simões, 1961: 10).
As lições de leitura da fala consistiam em treinar a compreensão visual do
movimento que a linguagem oral provocava nos lábios, rosto e garganta de quem a
utilizava. Era, portanto, algo mais do que uma leitura labial, embora fosse nos lábios
que se concentrava grande parte da percepção visual da palavra. Todavia, conseguir
que a criança surda olhasse sempre que necessário para o rosto do professor, era algo
que não se alcançava pelo chamamento. “A criança surda nem sempre olha quando se
deseja. Tem que haver cuidado para que não surja a possibilidade de um embate entre
os interesses da criança e o desejo em forçá-la a olhar” (Pereira, 1955: 6). Ora, uma
vez mais a questão do interesse aproxima-se das acções das práticas de governação
por meio de um conhecimento que calcula: “employing a variety os techniques and
forms of knowledge, that seeks to shape conduct by working through our desires,
aspirations, interests and beliefs” (Dean, 1999: 209). A concentração do olhar da
criança no rosto do mestre conseguir-se-ia por meio de técnicas que lhe despertassem
um desejo de participação. Teremos de considerar a prática da leitura da fala num
contexto de aula, organizada em torno de uma ideia ou centro de interesse. A
concentração seria conseguida através de metodologias activas que usavam objectos,
imagens ou o jogo como ferramentas da aprendizagem. Seria “indo do concreto para
Provocação da voz e leitura da fala
277
o abstracto, e acompanhando as regras com exemplos bem escolhidos” que não
haveria “dificuldade que se não” pudesse “vencer” (Fusillier, 1893: 397). Nas aulas,
para habituar os alunos a lerem na boca do mestre as palavras, as transmissões de
ordens seriam muito úteis, exigindo do aluno um estado de alerta permanente.
“O que é necessário é interessar o aluno: fazê-lo querer ver e fazer” (Ferreira, 1915 a:
536).
Para além da fala dirigida à classe, havia as lições individuais em que o aluno
era chamado para junto do professor, onde poderia sentir no corpo do mestre a
vibração táctil da sua fala. “Estas lições” requeriam do professor “muita paciência e
perseverança” e obrigatoriamente teriam de se ajustar aos “interesses ocasionais da
criança”. “Monotonia” era um estado a evitar porque inevitavelmente o
“aproveitamento” seria “nulo” (Amaral, 1954: 57). Também a fadiga do aluno era
elemento de preocupação e por isso, os tempos da lição teriam de se adequar aos
tempos de concentração da criança. Quinze minutos, pouco mais, pouco menos,
contabilizavam-se como espaço temporal adequado. Convinha fazer pausas
frequentes para renovar a capacidade de atenção e usar de métodos que estimulassem
a participação activa do educando. Uma classe com todos os alunos “ocupados” e
“interessados”, “é indispensável para que haja disciplina. Uma classe activa será
naturalmente ordenada. Cada uma das crianças concentra-se na tarefa a realizar. E,
assim, o tempo passa sem disso nos apercebermos” (Amaral, 1954: 56).
Prótese-ouvinte
278
Ginástica, ritmos e equilíbrios
279
5.5.GINÁSTICA, RITMOS E EQUILÍBRIOS
Exercícios
(Amaral, 1954)
Por certo já se terá percebido da importância do treino do corpo na aprendizagem dos
alunos surdos. “Na criança surda, devido à perda de audição, os movimentos são por
vezes arritmados”, há falta de equilíbrio no andar, falta de firmeza e de sentido de
orientação. Os causadores seriam o “caracol” e o “labirinto”, “orgãos do ouvido
interno” que no caso dos surdos não desempenham eficazmente a sua função no
sentido da orientação e do equilíbrio (Pereira, 1956: 181). Será este pequeno capítulo
dedicado a abordar a questão da ginástica e do treino rítmico como práticas que,
inserindo-se na educação sensorial, correspondem também a um adestramento do
corpo. Fala-se de uma economia de poder através destas tecnologias disciplinares que
encontram no lúdico um atalho para o governo dos escolares.
D. António da Costa via como “grande mal a carência da educação física” na
escola, comparável apenas à “carência da educação moral”. “Inteligência lúcida” e
“vontade firme” eram estados impossíveis de atingir sem uma “sanidade do corpo”.
Ora, a base da educação física encontrar-se-ia na ginástica praticada “principalmente
na infância e juventude, em todas as escolas, especialmente na primária, e em ambos
os sexos”. As vantagens apontadas pelo primeiro Ministro da Instrução Pública em
Portugal eram evidentes: a ginástica como “principal sustentador do carácter”, a
ginástica como “o grande modificador dos temperamentos débeis”, a ginástica como
“base do desenvolvimento intelectual” e a ginástica como “chave da riqueza
individual e nacional” (1870: 155, 156, 158). Desde 1838 que a Casa Pia de Lisboa
Prótese-ouvinte
280
organizava nos planos de estudos o ensino da ginástica, mas foi por altura das
Reformas de José Maria Eugénio de Almeida que esta prática adquiriu forte
expressividade e a verdade é que, “‘em lugar das crianças pálidas, debilitadas e
melancólicas’” dos anos anteriores a 1860, o Provisor de estudos da instituição falava
em “‘crianças coradas, fortes e buliçosas de alegria’” (Costa, 1870: 163). Numa
entrevista publicada na Instrução Nacional, Simões Raposo traçava a imagem do
início deste ensino. Eugénio de Almeida terá começado por visitar os
estabelecimentos de ensino, a nível europeu, “mais célebres desta especialidade”,
convencendo-se que eram a “falta de higiene, alimentação e ginástica” os vírus mais
nefastos à educação dos alunos casapianos. Contratou-se então um professor, Mr.
Delaunay, que prestava também serviços no Colégio militar e na escola normal,
substituindo-o pouco tempo depois por Roger Jean, “mandado vir expressamente de
França de um dos melhores estabelecimentos de ginástica” (Costa, 1870: 262-270). O
horário prescrito era rígido:
Ginástica “‘logo depois do levantar, durante meia hora ou três quartos, isto é, até
ao almoço, o que lhes desperta o apetite. Depois têm mais ginástica desde as onze
horas e meia até às doze, o que lhes abre a vontade de jantar. De tarde têm meia
hora de recreio à saída das aulas e ginástica a valer das cinco às seis horas, depois
recreio, e finalmente ginástica desde as seis e três quartos até às sete horas e
meia, isto é, até à ceia, depois recreio (que é um outro exercício à larga) até às
nove horas. Por fim o deitar’” (Costa, 1870: 262-266).
A organização do tempo dos alunos era comandada pela introdução desta
nova disciplina que tantas vantagens trazia ao corpo do aluno sim, mas também ao
seu governo. A ginástica enquadrava-se como preceito de um regime de vida físico,
rigoroso e higiénico. Era prescrita como elemento regulador e inibidor de
comportamentos desadequados dos educandos. O psicólogo Faria de Vasconcelos
discorreu sobre o assunto: “uma boa alimentação não excitante, um vestuário amplo,
racional e limpo; o número de horas do sono e as condições em que dorme (evitando
que a criança durma acompanhada de outras numa cama fofa e mole, numa habitação
quente e debaixo de mantas pesadas, (o calor é um estímulo sexual poderoso); o
asseio e a higiene do corpo e dos seus orgãos (evitando todas as causas de irritação),
constituem, com uma vigorosa actividade física, condições essenciais de uma boa
Ginástica, ritmos e equilíbrios
281
educação sexual” (1925a: 235). Já se vê que a ginástica foi descoberta como fonte de
dispêndio de energias e como meio de “sublimação das tendências sexuais, para uma
derivação e satisfação ideal”. Era evidentemente concebida como um meio de
regeneração dos internos, “fez e faz maravilhas na transformação, na regeneração
física das crianças que para a Casa Pia vieram e vêm, faz maravilhas não menos
grandes na sua formação intelectual e moral” (Ferreira, 1922 a:284). Esta teoria ía de
encontro às bases em que Simões Raposo, já na década de sessenta do século XIX,
dizia assentar a educação física na Casa Pia:
“Ar puro e luz abundante,
Limpeza e asseio obrigatórios,
Alimento sadio e nutriente,
Medicina preventiva e aplicada,
Movimento regular e conformemente sistematizado,
Ginástica racionalmente concebida e metodicamente aplicada” (1869: 11).
Na educação das crianças surdas a ginástica cumpriu o seu papel regulador do
corpo e comportamentos, todavia, quase sempre se baseou no desenvolvimento das
capacidades sensoriais do aluno. Técnica simultaneamente incitadora e retraidora de
impulsos. A execução de um qualquer movimento envolveria a participação completa
do corpo. No espaço poder-se-iam construir sentimentos por um despojamento total
do eu do sujeito. Claro que este esvaziamento do interior para o exterior, expondo-se
ao olhar de quem lê esses gestos, adquire uma significação que num contexto de
intervenção correctiva, despoleta inúmeras ortopedias. No ensino das crianças surdas,
a organicidade do seu corpo era visualizada numa articulação com o seu psiquismo:
“O ritmo exterior é sempre resultado do ritmo interior” (Pereira, 1956: 181).
Sendo o ritmo exterior desordenado, tornava-se imperioso corrigi-lo,
atingindo-se por certo a interioridade da criança e regulando-a também por dentro.
Um dos primeiros aspectos a considerar seria a fixação da atenção do aluno no seu
próprio corpo e nas suas acções. A indisciplina do movimento, “a confusão do andar,
o passo irregular e a falta de equilíbrio” poderiam ser eliminados pelo recurso aos
exercícios de ginástica e de marcha (Vaz, 1956: 188). A ginástica proporcionava a
Prótese-ouvinte
282
aquisição de conceitos como o tempo, dificilmente explicáveis ao aluno surdo.
Através dos ritmos, dos movimentos acelerados ou lentos, dos vazios de gesto,
desenhava-se a compreensão de uma forma temporal. Quando trabalhados
repetitivamente os elementos de uma série, a acção mecânica da repetição
incorporava-se no corpo do aluno, tornando-o apto para representar diferentes
cadências temporais tendo-se a si próprio como meio de expressão. A educação do
“instinto do movimento”, aplicada a crianças surdas consistiria “em elas aprenderem
a dominar, e a controlar-se harmonizando-lhes o ser”, de modo a que a sua fala fosse
“igualmente controlada, harmónica, fluente, ritmada”, condições imprescindíveis para
a sua “inteligibilidade” (Vaz, 1956: 188). O treinamento do corpo do aluno era
marcado por uma perspectiva oralista, a aprendizagem dos ritmos, o controlo dos
movimentos, os pontos de equilíbrio, como de resto acontecia com o apuramento da
visão ou do tacto enquadravam-se nas técnicas que visavam hospedar no aluno a
língua oral. A ginástica aparecia como complemento essencial de uma educação
integral do indivíduo, acrescentando-se no caso do surdo a sua vertente terapêutica.
Unia-se à medicina por preceitos higiénicos e correctivos. Na Casa Pia de Lisboa, um
pouco antes de 1920, Ary dos Santos, no seu papel de médico, enviava aos directores
dos principais institutos de surdos da Europa uma carta perguntando-lhes sobre o
plano de estudos seguido nos seus estabelecimentos na instrução dos alunos surdos.
De Asnières, vinha a resposta em forma de relatório pormenorizado do ensino nas
suas classes:
“De 4 à 7 ans, section maternelle-Exercices d'attention, d'imitation, attitudes;
gymnastique respiratoire, formation des rangs, des sections; marches cadencées.
Jeux. De 7 a 13 ans - Gymnastique sans appareils. Mouvements d'ensemble
d'apres la méthode française et la méthode suédoise; marches et promenades
prolongées suivant le développement des éleves. Exercices d'assouplissement,
échelles jumelles. De 13 à 18 ans-Reprise des exercices précédents. Études par
séries. Saut en longueur. Barres paralleles. Pour les garçons, grimper à la perche,
à la corde à neuds, à la corde lisse. 'Anneaux, barre fixe, trapeze ; mouvements
élémentaires de boxe’” (Santos, 1920 : 13).
De Bruxelas, do Institut Provincial des sourds-muets et d’aveugles, vinha dito
que todos os alunos surdos e cegos eram sujeitos a uma hora diária de ginástica,
Ginástica, ritmos e equilíbrios
283
“pendant la matinée” e “pendant la récréation, ils se livrent à des exercices libres de
gymnastique ou à des jeux enseignés pendant les leçons”. As lições de ginástica
seriam leccionadas por um professor especial e entre os exercícios contavam-se os de
ginástica sueca, especialmente para os mais jovens. Os exercícios de ginástica
dividiam-se nos propriamente educativos e nos fundamentais. Do primeiro grupo
faziam parte: “l° Exercices lents des jambes; 2° Exercices de la tête; 3° Exercices des
bras ; 4º Exercices de flexion et de rotation du tronc; 5° Exercices rapides de jambes”.
O segundo grupo era mais extenso, envolvendo coordenações mais complexas,
códigos adestrantes mais específicos: “1º Les exercices combinés des jambes et des
bras; 2° Lés extensions dorsales; 3° Les exercices de suspension; 4º Les exercices
d’équilibre; 5° Les exercices de marche et de course; 6° Les exercices dorsaux; 7°
Les exercices abdominaux; 8º Les exercices latéraux; 9° Les exercises de saut; 10º
Les exercices respiratoires”. Estes exercícios ginásticos espalhavam-se por inúmeras
modalidades : marcha, natação, foot-ball, saltos, etc. No relatório de 1907 que Cruz
Filipe escrevia em Paris, pode ler-se que “são também exercícios importantes, a
ginástica sueca, a marcha, correr, que desenvolvem muito os pulmões” (1907: 23). A
ginástica respiratória fazia parte do núcleo de práticas que coadjuvavam a
aprendizagem da língua e as restantes actividades desempenhavam papel importante
na coordenação mental e física do aluno, bem como na sua adaptação interior
orgânica, preparando-lhe os orgãos para a actividade oral. A actividade física era
também “o melhor meio de corrigir as atitudes viciosas” do corpo, de desenvolver
“flexibilidade e resistência à fadiga”, influindo directamente no âmago das qualidades
psíquicas. “Decisão, vontade, confiança em si próprio, desembaraço, destreza,
prudência e atenção”, ingredientes com que a ginástica insuflava o aluno (Vaz, 1956:
189). Por certo já se terá percebido o carácter ortopédico que esta área visava, o
quanto de posse de si, de domínio e vontade própria, de disciplina interior e de
regulação do corpo aqui habitam.
Aquilo que à partida pareceria um contrasenso, a utilização do som na
educação sensorial dos alunos surdos, constituía de facto, uma das fatias curriculares
do ensino na Casa Pia de Lisboa. Partia-se do princípio de que os “sons podem ser
percebidos sob a forma de sensação vibratória e sob a forma de ressonância” (Vaz,
1961:3). No fundo, outra coisa não era do que o treino de um desempenho semelhante
às vibrações sentidas pelo tactear do aluno no seu corpo ou no do mestre. As
Prótese-ouvinte
284
ressonâncias provocadas por tons mais altos ou mais baixos, teriam diferentes
resultados no aluno. Os tons mais baixos sentiam-se a um nível corporal, enquanto
que os mais altos ressoariam até aos ouvidos. Havia regras para direccionar a atenção
da criança para o sentir do seu corpo:
“Com o fim de fazer com que a criança só tenha atenção dirigida para a
percepção sonora no peito, garganta, estômago e cabeça, deve-se colocar debaixo
dos pés um isolador, como por exemplo um tapete de borracha, para não sentir as
vibrações do solo” (Vaz, 1961: 4).
As crianças treinadas através deste processo circulariam livremente pela sala
na execução dos movimentos rítmicos. Apesar de nestes exercícios se utilizar uma
base capaz de filtrar a vibração do som junto ao solo, a afinação sensorial nos pés e
nas mãos continuar-se-ia a fazer noutros momentos. Rousseau já havia lançado a
questão: “Como o tacto exercitado supre a vista, porque não haveria de também
suprir o ouvido”? No seu entender, os corpos sonoros emitiam vibrações,
estremecimentos que se sentiriam pelo toque. A experiência era fácil. Pousasse-se
“uma mão sobre o corpo de um violoncelo” e, “sem o auxílio dos olhos ou dos
ouvidos” distinguir-se-ia “unicamente pelo modo como a madeira vibra e freme, se o
som que emite é grave ou agudo, se é emitido pela prima ou pelo bordão”. O processo
proposto era o de ensinar a criança partindo das diferenças, habituando-a com o
tempo a perscrutar os sentidos, até ao ponto em que se tornasse possível “escutar uma
música inteira através dos dedos”. A sensibilidade de Rousseau permitia-lhe afirmar
que “facilmente se poderia falar aos surdos através da música”. Tons e tempos,
alturas, intensidades trariam combinações regulares que o surdo aprendia a interpretar
sensorialmente através do corpo. Para adquirir esta capacidade Rousseau acreditava
que apenas um tipo de exercícios seria útil. Os exercícios que necessitassem de muita
força ou que se baseassem num contacto contínuo com corpos de uma natureza dura,
fariam o tacto “obtuso”. Pelo contrário, os que variassem as sensações naturais,
alternando experiências através “de um tactear ligeiro e frequente” fariam um espírito
atento “a impressões incessantemente repetidas”, adquirindo “a facilidade de avaliar
todas as suas modificações”. Esta diferença de resto era evidente “na utilização dos
instrumentos de música: o toque duro e carregado do violoncelo, do contrabaixo, do
Ginástica, ritmos e equilíbrios
285
próprio violino, torna os dedos mais flexíveis e sensíveis. Portanto, o cravo é
preferível para esses exercícios” (1990: 140, 141).
O treino do movimento rítmico era outra possibilidade oferecida na
exploração do som. Após a fase de materialização do som no corpo do aluno, chegava
o momento de o fazer utilizar o corpo em articulação com as sensações sonoras.
Geometrização do corpo e da alma. O método de Dalcroze fundamentava-se na
capacidade que a música teria para desenvolver as capacidades física e mental, pela
“utilização dos seus valores rítmicos”. Partindo da ideia de que todo o movimento
tem a sua raiz numa expressão rítmica do corpo, adestrando-se essa “capacidade
rítmica do indivíduo”, educar-se-ia “todo o ser, pois o sentido cinestésico constitui a
nossa experiência mais íntima” (Vasconcelos, 1935: 426). Ora, para este processo
existia a ginástica executada por meio do ritmo, dando à criança a noção de padrões
sonoros, uma consciência corpórea do som e levando-a a regularizar os seus
movimentos em ordem às cadências vibratórias. Decerto que a partir do momento em
que o aluno sentisse que por meio da vibração sonora se expressavam sentimentos ou
ideias, uma realidade nova se abria na aprendizagem da língua oral. Retomaria os
exercícios vezes sem conta pois o que estava um jogo era a sua vida, a sua liberdade.
Por meio do movimento do corpo domaria o movimento da alma. Os ritmos corporais
contaminariam os ritmos da fala: um corpo com gestos ordenados, controlados,
equilibrados, seria um corpo com uma articulação oral insuflada pelas mesmas
características.
“Educar o ritmo da criança é ordenar o seu ‘Eu’. Para se fazer esta educação
existe uma grande variedade de exercícios de ordem e de concentração da
atenção. Usam-se também as pautas rítmicas, as dramatizações, a música e as
danças rítmicas” (Amaral, 1956: 51).
As danças continham um grande potencial para a coordenação de movimentos
fazendo intervir partes ou a totalidade do corpo. Em causa estava também o interesse
da criança. A ginástica deveria ser percepcionada como “uma brincadeira”. Um saber
sobre a infância permitia descortinar técnicas de intervenção: “gosta de imitar este ou
aquele animal, planta ou objecto, de realizar um passeio, de executar um salto, de
transpor um obstáculo, onde julgue ver uma ponte ou um ribeiro, de fingir que
Prótese-ouvinte
286
rema”? Pois bem, seria esse o palco para o seu governo. A criança tomaria gosto pela
execução de exercícios baseados nestes interesses e, não só ela, mas a classe, tornar-
se-ia “alegre, disciplinada, atenta, obtendo-se por conseguinte a execução correcta
dos movimentos” (Vaz, 1956: 190, 191). Na ginástica por meio de ritmos era
fundamental que tanto o professor quanto os alunos marcassem as cadências pelo
batimento de palmas ou pelo batimento com as mãos no solo ou nas pernas.
Educando-se o sentido temporal interno do aluno surdo, poder-se-ia passar à
fase da ginástica pelo método sueco de Ling. Distinguiam-se aqui três tipos de
exercícios, os de movimentos preparatórios trabalhando à voz de uma ordem braços,
pernas, etc., os movimentos fundamentais, treinando-se capacidades de flexão, torção
ou equilíbrio, e por último, os movimentos finais, fazendo o aluno regressar do tempo
de esforço a um tempo mais lento, por meio de movimentos “calmantes” e “suaves”.
Estas práticas físicas faziam-se, à semelhança dos exercícios militares, à “voz de
comando” do mestre, podendo esta ser “voz de advertência”, de “pausa” ou “voz de
execução”. Na verdade, as técnicas utilizadas no governo dos alunos passam de uma
instância disciplinar sobre o corpo para uma aproximação à alma, num tempo muito
curto e, às vezes, sobrepõem-se. Sobre a utilização de voz de comando na prática da
ginástica, António Aurélio da Costa Ferreira, mostrava a sua importância tanto no
apuramento dos sentidos quanto na educação da atenção: “os alunos que na sua lição
de ginástica têm que executar os movimentos, mais ou menos difíceis, a vozes de
comando”, “regulam a vontade, exercitam a inteligência porque têm de interpretar”
essas vozes, “tornam-se decididos, precisos e prontos em suas respostas e reacções”.
Corpos eficientes num cenário que apresenta uma economia de meios para obter a sua
ordenação. Este método de domínio sobre o corpo do aluno fabrica-o como corpo
submisso, dócil, exercitado, todavia, um corpo que acumula capacidades: “disciplina,
atenção, vontade, método, ordem”, qualidades, vantagens e virtudes comandadas a
partir do interior do próprio sujeito (1922 a: 284, 285). A voz de advertência
explicaria ao aluno, “usando frases o mais curtas e claras possíveis”, substituindo
vocabulário técnico e rigoroso por expressões familiares ao surdo, o treino que se iria
seguir. O professor exemplificaria e, depois, seria um trabalho de imitação da figura
do mestre. As pausas justificavam-se por uma economia na eficiência da execução: se
havia pausa, esse vazio de ordem, era aviso de preparação para a série seguinte. A
voz de execução significava o assentimento do mestre para a realização do
Ginástica, ritmos e equilíbrios
287
movimento ordenado, todavia, poderia ser traduzida não pela fala, mas por “sinais
luminosos” ou “batimento de palmas”, “dando deste modo aspecto recreativo ao
comando” (Vaz, 1956: 191).
A ginástica prestava-se a inúmeras explorações. Uma lição poder-se-ia basear
em contos, em gravuras ou em jogos. A vertente lúdica assumia a sua presença,
pedindo-se ao professor uma aproximação àquele que se sabia ser o mundo infantil.
Os corpos dos alunos surdos atingiam um estado máximo de utilidade. Exemplo de
um jogo na aula de ginástica, treinando fundamentalmente salto, marcha e equilíbrio:
primeiro, o professor desenharia no chão “um círculo com cerca de cinco metros de
diâmetro”, colocando os alunos no seu interior. Apontando para o quadro onde
previamente desenhara figuras, diria: “‘o soldado…’ eles diriam ‘marcha’… – e
marchavam. Depois, ‘o cavalo…’, diriam: ‘corre’… e corriam. O ‘coelho’…
‘salta’… e saltavam, etc.” (Vaz, 1956: 193). Ora, servindo-se de um elemento capaz
de estruturar uma aproximação ao aluno, o professor esculpia-o de modo a criar nele
uma vontade de execução da ordem. Michel Foucault explica esta transformação em
poucas palavras:
“As disciplinas são o conjunto das minúsculas invenções técnicas que permitiram
fazer crescer a extensão útil das multiplicidades fazendo diminuir os
inconvenientes do poder que, justamente para torná-las úteis, deve regê-las. Uma
multiplicidade, seja uma oficina ou uma nação, um exército ou uma escola, atinge
o limiar da disciplina quando a relação de uma para com a outra se torna
favorável” (2004: 181).
Acontecia isto na educação das crianças surdas. A base de resposta eficiente à
ordem possuía a plasticidade bastante para se traduzir numa disciplina interior, num
autogoverno assente numa relação de governamentalidade.
Prótese-ouvinte
288
Um manual com 600 imagens
289
UM MANUAL COM 600 IMAGENS
“Comecei a aprender no livro do 1º grau ou 1ª
classe, chamado 'O Português pela Imagem'
que era um 'Manual Prático' ilustrado com
600 gravuras para o primeiro ensino de
linguagem oral e escrita nas escolas de
surdos-mudos” (Carvalho,s/d: 38).
O Português pela Imagem
290
Páginas de O Português pela Imagem
(Trindade, 1906 a)
Um manual com 600 imagens
291
Neste capítulo o convite dirige-se no sentido de percorrer algumas páginas dos
manuais utilizados no ensino dos alunos surdos da Casa Pia de Lisboa. Do ponto
de vista teórico, será este o momento em que de mais perto falarei dos conteúdos
curriculares, como tecnologia de formatação do educando a um modelo para ele
pensado. Claro está que o manual escolar não é o único objecto em que o
currículo se manifesta, mas era – e ainda o é sem dúvida –, um utensílio
privilegiado que tanto se usava nas aulas como estaria acessível ao aluno fora do
tempo das lições. No manual escolar figurava uma “‘selecção de conhecimento’”
que implicava obviamente “‘regras e padrões’” que guiariam o aluno na produção
de “‘conhecimento sobre o mundo’”. Popkewitz, citado por Correia, relembra-nos
que “‘o processo de escolarização incorpora estratégias e tecnologias que dirigem
a forma como os estudantes pensam sobre o mundo em geral e sobre o seu eu
nesse mundo’”(2000 :8). Na análise que faço tomando o manual escolar como
objecto pertencente a um currículo, analisarei a rede discursiva das relações de
poder/ saber, na produção da subjectividade do aluno.
“O saber da teoria do currículo torna calculável o próprio nexo entre saber e
subjectividade. A teoria do currículo tenta responder à pergunta: dado o
objectivo da produção de uma subjectividade determinada, quais saberes –
conhecimentos, atitudes, valores – são adequados para obtê-las? A teoria do
currículo é, assim, um saber especializado sobre os nexos entre o próprio
saber e a subjectividade. O currículo está envolvido na produção de sujeitos
particulares. A teoria do currículo está envolvida na busca da melhor forma
de produzi-los” (Silva, 1995: 192).
É como se pudéssemos conceber para o currículo uma arte de criação. A
perspectiva de governamentalidade que tenho vindo a considerar, baseia-se numa
racionalidade governativa e numa arte de governo e, a teoria do currículo,
aproxima-se desta arte de governo pelas relações que o saber sobre os sujeitos
trazem ao palco do poder.
Foram O Português pela Imagem, álbum com seis centos de ilustrações
legendadas e o livro de Exercícios de Observação e Linguagem conforme as
seiscentas gravuras do álbum, os manuais utilizados logo ao abrir do século XX,
no ensino dos alunos surdos da Casa Pia. Não é a documentação da instituição que
o afirma, mas a escrita autobiográfica de um ex-aluno casapiano da Secção de
surdos.
O Português pela Imagem
292
Ao contrário do que o título deixa supor, a origem destes dois manuais
para uso dos alunos dos dois sexos, não é realmente portuguesa. Já se vê, que num
país em que o ensino dos surdos marcava presença pontual no Porto e em Lisboa,
não haveria decerto quem concebesse de raiz um tal projecto nem editor algum
que se abalançasse em tal empresa. Faltava-nos “um álbum de figuras
apropriadas, como Le Français par l'image”, que valia certamente pelo melhor
museu escolar que então se pudesse organizar com proveito na sala de aula. As
palavras eram de Joaquim José da Trindade, que o verteu para a língua portuguesa
no ano de 1906 – à data sub-inspector do ensino primário e professor-director do
Instituto de Surdos-mudos Araújo Porto –, juntando então ao compêndio ilustrado
o complementar livro de Exercícios de Observação e de Linguagem, cada um
deles numerado e direccionando constantemente o aluno para os desenhos do
álbum (Trindade, 1906: VI). E foi, de resto, também um professor do Porto,
Nicolau Pavão de Sousa que ao mudar-se do Instituto desta cidade para a Secção
de surdos da Casa Pia de Lisboa, trouxe consigo os dois manuais para ajudar no
ensino que então se reinaugurava. Parece certa a utilidade de tais compêndios,
visto que o par original seria merecedor de bravos elogios. Um dos seus autores,
Auguste Boyer, foi também copiado por Cruz Filipe que reconhecia nos cursos
deste mestre na arte de ensinar surdos, objecto “instrutivo” que “mais tarde” –
aquando do seu regresso à Casa Pia – o guiaria no ensino dos seus pupilos (1907:
4).
A utilidade da estampa, num ensino que se afirmava essencialmente por
um treino da atenção visual, era grande. Figuras e cores atraíam a atenção das
crianças e, portanto, teria a sua utilidade o mestre valer-se do conhecimento da
psicologia visual infantil nos métodos de ensino. Pela imagem, o aluno teria
acesso a uma panóplia de situações, juntando-se num nível representativo objectos
ou situações que não seria fácil reunir ou proporcionar numa sala de aula. As
imagens apresentadas ao educando obedeciam a uma selecção por parte do mestre
que haveria de determinar os elementos que lhe interessava trabalhar no aluno:
“Estampas há que sobretudo provocam a enumeração, outras a descrição e
outras a interpretação. [...] É necessário fixar, adoptar um determinado
material, estampas já ensaiadas, aferidas, e seguir uma técnica precisa”.
“Além disso” “o ensino deve ser feito sobre ou por medida, talhado em
atenção às possibilidades da criança, aos seus recursos naturais”, logo, o
melhor meio “para servir isso”, para “ver como a criança adquire
Um manual com 600 imagens
293
conhecimentos, os revela e os utiliza”, tem na estampa o seu objecto,
interrogando-se a partir delas “metodicamente” a criança. A estampa é um
objecto “que tanto a interessa, lhe agrada, lhe prende a atenção” (Ferreira,
1922: 16, 18).
A utilização de gravuras nos processos educativos com crianças surdas
possuía, além do mais, a vantagem de poder ser usada desde muito cedo,
familiarizando-a com sistemas de representação e interpretação da realidade. A
possibilidade de exploração deste meio visual estendia-se numa multiplicidade de
exercícios:
“No outro dia, com um chapéu de três bicos, imitará os soldados marchando;
com um bico de papel fará de pato, andando com as mãozitas na anca; com
uma canastra ou cesto à cabeça imitará a peixeira ou a vendedeira, andando
devagar. Há também para este exercício gravuras representativas do que a
criança terá de imitar. Segue a orientação do anterior e será para desenvolver
também o sentido do equilíbrio e ritmo” (Simões, 1961: 9).
Se havia material que se encaixava de modo perfeito neste princípio era
evidentemente o Manual das 600 gravuras e o seu auxiliar livro de perguntas
sobre as imagens. No prefácio do livro de Exercícios de Observação e de
Linguagem, esclarecia-se de imediato o leitor: este “livrinho de exercícios de
linguagem”, complementar ao álbum ilustrado, não constituía, “propriamente
falando, um curso de língua, mas antes uma colecção de exercícios
essencialmente práticos e intuitivos” que teriam como objectivo principal “pôr a
criança na posse do primeiro vocabulário e da linguagem elementar”. Seria então
uma espécie de dispositivo capaz de conduzir a uma assimilação quase
inconsciente dos saberes que expunha. Quando me refiro a dispositivo, falo de um
terreno em que se jogam forças e tal como Deleuze escreve relativamente ao
pensamento de Foucault, “o poder é uma relação de forças, ou melhor, qualquer
relação de forças é ‘uma relação de poder’”. Não concebo o currículo como um
objecto de dominação do aluno, a força joga-se com outras forças. No caso
presente, de um lado havia uma comunidade ouvinte feita de professores,
médicos, família e sociedade, do outro, crianças surdas que se tornaram alunos
tendo essa comunidade como referente.
“Um exercício de poder surge como uma afectação, porque a própria força
O Português pela Imagem
294
se define pelo seu poder de afectar outras forças (com as quais está em
relação) e de ser afectada por outras forças” (Deleuze, 2005: 97, 98, 99).
O currículo, manifestando-se num objecto como o manual escolar é uma
tecnologia de regulação e de autoregulação do aluno surdo. Nos compêndios de
apoio às lições, compaginava-se uma tecnologia complexa que se libertava
directamente em direcção ao educando, activando-lhe pontos específicos que
definiriam a sua forma de participação e acção na sociedade. O objectivo da
educação da criança surda era a sua normalização, realizável num processo que
implicasse um sentimento de liberdade, autonomia e inclusão. O papel dos
conteúdos curriculares num cenário como o que se expõe, figurava-se como
facilitador do encaixe do aluno no seu lugar da relação, para que se pudesse
pensar a si próprio a partir da relação activa que o currículo como dispositivo
despoletava. É claro que o currículo escolar enquanto tecnologia, opera
transformações nos sujeitos, mas estas são efeitos de um poder não soberano. A
governamentalidade que se joga na modernidade não deve ser entendida de um
ponto de vista repressivo. Popkewitz relembra-nos que a noção de “effects of
power” “concerns the productive actions for our participation” (1998: 5). A
questão aqui presente relacionava-se com o facto de a população surda fazer parte
das margens de uma estatística da população escolar e, sem se misturar com os
corpos produtivos e saudáveis dos ouvintes, desejaria caminhar para o núcleo
deste padrão de normalidade. A alteridade deficiente, considerada pela sua
contagem numérica como minoria, foi “produto de um processo histórico de
alterização que acaba por confundir o outro com a invenção que de esse outro foi
feita” (Skliar, 2003: 164).
O manual escolar – objecto da lição, de estudo e de consulta – exibia um
núcleo de saber fundamental para a construção da identidade do aluno. De facto,
este conjunto de livros – quase caixa mágica de comunicação – declarava a
ambição de fornecer à criança surda “sobre os seres e as coisas mais familiares” –
ou seja, sobre aquelas coisas que a visão lhe permitia conhecer e que os desenhos
do álbum recordavam –, “os termos indispensáveis para compreender as pessoas”
que se lhe dirigiam e para que ela exprimisse “também as suas sensações, as suas
necessidades, os seus desejos, os seus pensamentos” (Trindade, 1906: IX). Cabe
aqui dizer-se que o primeiro vocabulário e, aquele que permitiria ao aluno
expressar o seu íntimo, era objecto escolhido e planejado por uma comunidade
Um manual com 600 imagens
295
educativa de tipo ouvinte. A oralidade, associada ao conjunto de conhecimentos
que interessava inscrever no aluno, patenteia a ideia de colonização do surdo pelo
ouvinte. Todavia, conforme antes se disse, este poder de colonizar o outro só se
efectua porque este ser outro é um ente activo da relação.
Não é tanto o conteúdo explícito descrito nos textos ou nas imagens que
compõem os manuais, mas o que deles emana e atinge a condução que cada um
realiza do seu comportamento, que mais gostaria de trazer até aos dias de hoje.
Um dos primeiros objectivos do programa enunciado seria, exactamente, trabalhar
as faculdades da alma da criança surda – sensibilidade, vontade e inteligência. Das
diferentes explorações que o professor decidisse empreender em cada domínio, o
tecido espiritual do aluno havia de ser meticulosamente cerzido, digamos,
afectado. Na longa panóplia de exercícios, o aluno haveria de incorporar as
práticas socializadoras. Certamente que o processo seria graduado numa escala de
progressiva complexidade, iniciando-se pelas coisas mais familiares, inteligíveis,
portanto, para os alunos. Esta é, manifestamente, uma das ideias que iria
caracterizar a escola por todo o século XX e sem a qual, a tarefa de
individualização da criança e o seu governo na homogeneidade do grupo, não
teria resultado.
Gostaria de fazer uma aproximação ao manual escolar como objecto que
exibe uma teoria do currículo, ela mesma essencial para a relação de poder/ saber
na educação dos alunos surdos. Já aqui se disse que este binómio conceitual de
Foucault é um dos pilares por excelência em que se apoia a prática da
governamentalidade. Ora, em contexto escolar, é cada vez menos pela coerção e
mais pela sugestão, que um poder de normalização atinge aqueles a quem se
dirige. É por demais evidente nos exercícios que compõem o livro de apoio ao
manual ilustrado, mecanismos de colonização da criança surda pelo ouvinte,
contudo, é a racionalidade inerente à construção dos conteúdos que permite, a
partir da própria escola criar os espaços de sucesso ou insucesso, de inclusão ou
de exclusão social. O que daqui resulta é a produção de um aluno surdo à imagem
daquele que se imaginou. Diríamos que na escola, cada criança surda teria de se
alicerçar no terreno de anormalidade reservado à surdez – não abandonando,
portanto o grupo estatístico e populacional a que pertencia –, mas subjectivando-
se sempre por comparação a um grupo de escolares ouvintes que vestia a farda da
norma.
O Português pela Imagem
296
“ Poder e saber são mutuamente dependentes. Não existe saber que não seja a
expressão de uma vontade de poder”. Do mesmo modo, “não existe poder
que não se utilize do saber, sobretudo de um saber que se expressa como
conhecimento das populações e dos indivíduos submetidos ao poder”. A
transferência dessa lógica para o ensino das crianças surdas, conduz-nos a
uma consideração do tipo: os alunos surdos “recebem sua identidade a partir
dos aparatos discursivos e institucionais”, - entre os quais o currículo e, por
agora, o manual escolar -, “que os definem como tais”. Dir-se-ia que “o
sujeito é o resultado dos dispositivos que o constroem como tal” (Silva, 2000:
97).
Na educação do aluno surdo seria bastante, mas não suficiente, a prática da
oralidade. O aluno surdo seria construído na escola como aluno autónomo e livre,
– se aprendesse a comunicar pela fala oral –, todavia, revelava-se necessária e até
incontornável, a exposição a discursos de domínio oralista. São os próprios textos
e exercícios destes manuais que diferenciam e distinguem os alunos a quem se
dirigem. Torna-se evidente a necessidade que havia de inventar a surdez como
anormalidade para que estes alunos pudessem fazer parte de uma paisagem
escolar que já existia. Os conteúdos curriculares e as práticas na sala de aula que
O Português pela Imagem permitia, configuravam um campo no qual o aluno
surdo era convidado a construir a sua subjectividade através de uma intensificação
das relações a si, incorporando a imagem da falta, e a necessidade de recuperação
para que fosse parte da sociedade. O professor, ouvinte, ocupava na relação
pedagógica o lugar de exemplo, guia, amigo, terapeuta, confessor, enfim, aquele
que possibilitaria que o educando adquirisse autonomia e liberdade. São estes os
dois elementos característicos da modernidade que, também no ensino da criança
surda, pré-figuram como objectivos nos discursos e nas práticas educativas. Não
fosse pela perspectiva de autonomia e liberdade enquanto cidadão incluído, nunca
o aluno surdo inscreveria em si a necessidade da oralidade.
“The object of pedagogical reflection and action in modernity is an
individuality that is systematically calculated and rationalized in the name of
freedom”. Interessava ao Estado administrar o seu corpo de cidadãos através
de práticas de liberdade, fazendo de cada um, elemento activo e participante
no progresso da Nação. “The cultural representations and knowledge of the
child, teacher and teacher education fabricate, in the double sense of a fiction
and making, a `nation-ness’ that joins the many as one”. “Modern schooling
historically embodies the joining of the registers of social administration with
Um manual com 600 imagens
297
those freedoms” (Popkewitz, 2001: 180).
A racionalidade política da modernidade foi trazida até à pedagogia
moderna, logo, a escola, naturalizada como espaço que de direito pertencia à
criança, teria de governar os seus alunos de tal modo que todos eles, apesar de
diferentes, tivessem como referente identitário, uma mesma comunidade. O
cidadão livre que a escola deveria formar teria de incorporar em si que o princípio
da sua liberdade residia nas capacidades e responsabilidade individuais. No olhar
que lançou ao aluno surdo, a escola precisou de constantemente o lembrar da sua
surdez enquanto deficiência que poderia ser colmatada com a assimilação da
língua dos ouvintes.
Os assuntos que compunham a verdadeira enciclopédia de sobrevivência
comunicativa eram dezassete, distribuídos pelas diversas áreas do saber, que se
julgavam de maior importância para o aluno surdo. Estes assuntos representavam ,
evidentemente, o conhecimento oficial que se oferecia e autorizava na educação
das crianças surdas:
“Por isso, é importante ver o currículo não apenas como sendo constituído de
‘fazer coisas’ como vê-lo como ‘fazendo coisas às pessoas’. O currículo é
aquilo que nós, professores/as e estudantes, fazemos com as coisas, mas é
também aquilo que as coisas que fazemos fazem a nós. O currículo tem de
ser visto em suas acções (aquilo que fazemos) e em seus efeitos ( o que ele
nos faz). Nós fazemos o currículo e ele nos faz. O currículo é, pois, uma
actividade produtiva nesses dois sentidos” (Silva, 1995: 194).
O currículo está envolvido na produção de sujeitos de um certo tipo. As
relações estabelecidas entre o saber e a subjectividade dos alunos facilitam as
relações de poder. Também o estímulo lançado a partir de práticas que apelam a
um auto-conhecimento, a uma auto-reflexão, direccionam a construção de
identidades para um campo calculável.
No capítulo da Saúde e da doença, o aluno iria aprender que “ao médico
também se chama doutor”, “que medicamentos é sinónimo de remédios” e que
“os medicamentos servem para curar”. Também, que o doente que “não é
obediente”, que “não é dócil”, “não se curará depressa”, “que é preciso tomar os
remédios, que é preciso ser dócil, que é preciso ser paciente para se curar
depressa”. E os exercícios de linguagem chegavam mesmo a penetrar o âmago das
O Português pela Imagem
298
práticas do aluno levando-o a esparzi-las em discurso. Da boca do professor para
os olhos do aluno, dirigia-se a pergunta: “Tu vais ao lavatório de manhã ou à
noite?”, “Tu foste ao lavatório esta manhã?”, “Vais lá todos os dias?”, “O que é
que tu fazes todas as manhãs no lavatório?”. Os princípios de higiene e asseio lá
estavam. Era o aluno incitado a repetir ao colega “que é preciso todas as manhãs
lavarmo-nos, limparmo-nos e pentearmo-nos com o maior cuidado, a fim de
andarmos limpos e de evitarmos as doenças”. Quase confessionalmente, o aluno
ou a aluna, haveria de contar se gostava ou não de se “ver ao espelho”. Logo de
seguida, lhe seria dito “que não é bonito ver-se muitas vezes ao espelho” e mais,
“que se chamam paralvilhos e também vaidosos” aos que “se vêm muitas vezes ao
espelho”. Ser paralvilho “é um defeito”, bloqueado certamente, pela conjugação
dos verbos “não dever ver-se muitas vezes ao espelho, não ser paralvilho, no
imperativo e no presente do indicativo” (Trindade, 1906: 33, 35, 38, 40).
Nos excertos seleccionados, não ao acaso claro está, sobressai um
conjunto de saberes estritamente ligado ao quotidiano íntimo do aluno. As
definições e as questões apresentadas implicam uma interiorização daquilo que é
suposto fazer ou aceitar. O campo da medicina é abordado na relação de confiança
do doente relativamente à palavra do médico pois este detém o conhecimento que
cura. O mecanismo que faz funcionar a relação é pacífico, porque se o médico
detém o saber sobre a patologia de que o doente padece, tem, igualmente, o poder
de lhe prescrever uma terapêutica eficaz. Não parece subsistir qualquer dúvida
quanto à aceitação passiva da receita. Na própria sala de aula, a criança surda
aprende a posicionar-se na relação terapêutica em que a inseriram. Uns saberes
cruzam-se com os outros e a docilidade implicada na relação descrita, facilmente
atinge outras relações: professor/aluno; ouvinte/ surdo, havendo uma primazia do
primeiro sobre o segundo termo.
E não avanço mais sem antes trazer à superfície as palavras que se podem
ler no prefácio do livro de Exercícios:
“Falando inteiramente aos sentidos e à inteligência das nossas crianças, nós
nos dirigimos igualmente ao seu coração. Em toda a ocasião propicia
procurámos fazer nascer neles bons sentimentos, esforçando-nos por destacar
de cada lição a ideia moral que ela comporta. Além disso julgámos
conveniente espalhar pelos exercícios noções essenciais de civilidade e de
higiene. A extrema simplicidade da fraseologia empregada neste livro não
surpreenderá ninguém, se se atender a que ele é destinado a crianças que
Um manual com 600 imagens
299
ignoram mesmo os primeiros balbuciamentos da nossa língua e às quais
convém ensinar, primeiro que tudo, o que se poderia chamar a linguagem das
necessidades quotidianas” (Trindade, 1906 : XIII).
Ora, é o próprio discurso da pedagogia que revela as estratégias para
alcançar os objectivos. O professor deveria saber reconhecer o momento propício
para imbuir o aluno de bons sentimentos e destacar sobre tudo o resto, a ideia
moral de cada lição. Isto, claro está, sem esquecer os princípios de civilidade e de
higiene, indispensáveis a qualquer sujeito. Tendo em conta estes objectivos, ao
aluno deveriam ser apresentados referentes evidentes, suficientemente presentes
na sua vivência visual e capazes, portanto, de estimular as suas faculdades e de o
fazer participar de forma activa no processo de aprendizagem da língua.
O ensino é direccionado para o que de mais interior há na criança surda,
governando a sua sensibilidade, pensamento e vontade, impulsionando nesta
acção de governar o desenvolvimento de uma consciência de si, ponto central e
indispensável na construção de um aluno autónomo, livre e responsável, capaz de
se conduzir a si próprio. Foucault lembra que o poder assenta menos na
dominação e mais nas relações que o sujeito estabelece consigo próprio. Longe de
serem as proibições a determinar as condutas, o autor da História da Sexualidade
mostra-nos que “é a insistência sobre a atenção que é conveniente dedicar a si
próprio”, “a modalidade, a amplitude, a permanência, a exactidão da vigilância
que é solicitada” e “a inquietação a propósito de todas as perturbações do corpo e
da alma que é necessário evitar através de um regime austero” (Foucault, 1994:
51). O domínio que o aluno surdo teria de ter sobre si próprio, implicava um labor
estritamente relacionado com a terapêutica em que estava envolvido. Mas para
que este domínio se transformasse em verdadeira soberania de si próprio, era
necessário considerar que o aluno deveria ser localizado num campo de patologia,
quer dizer, da surdez como deficiência. A prática de si implica, como já vimos,
que o sujeito tenha de si a imagem de um ser imperfeito e que numa situação de
institucionalizado se construa como membro de uma relação com um outro,
médico ou professor, capaz de lhe prestar auxílio. A escola seria uma espécie de
dispensário da alma.
A importância que o manual adquiria no contexto escolar era enorme. No
ensino da língua ao surdo era provavelmente o recurso didáctico mais prático e
acessível ao aluno. Livro único, perfeito, portanto, para definir os limites e a
amplitude dos saberes educativos, controlando, mais a mais, num regime de
O Português pela Imagem
300
internato, a fabricação da realidade e identidade da criança de acordo com o
figurino previsto. Popkewitz afirma que “the formal texts of school subjects”
combinados com outras “discursive practices” concorrem para o processo de
normalização e regulação da produtividade e competências do aluno (1988:
99,100).
“The teaching of grammar, spelling, and mathematics, for example, can be
understood as inscribing certain norms about individual responsability
through the distinctions applied”. A criança era caracterizada como estando
em falta, necessitada de um núcleo de saberes que a escola identifica
perfeitamente. O currículo era elaborado, ainda segundo Thomas Popkewitz,
segundo pequenas parcelas que seriam transmitidas linearmente ao aluno. O
propósito parece óbvio: “When knowledge is considered to be stable and
hierarchical, the purpose of schooling becomes to orde and re-order how
children think and reason” (Popkewitz, 1988: 99,100).
Cada capítulo deveria ser entendido como “um centro de associação
analógica” em volta do qual se distribuíam “os principais termos e expressões que
se referem a uma ideia-mãe” (Trindade, 1906: 205). A observação dos conteúdos
permite verificar que a criança era educada no sentido de organizar
comportamentos, posturas, respostas e ideias. A rede de analogias possíveis a
partir da ideia central determinava exactamente o que o aluno deveria saber, o
que, afinal, o aproximaria da ideia de incluído na comunidade ouvinte.
Julgo que seria interessante analisar cada secção referenciada neste livro e
ilustrada no Português pela Imagem pois do que estamos a falar é de um currículo
de estudos pensado para a construção da subjectividade do aluno surdo. Este é
talvez um dos primeiros registos – embora apropriado de um contexto francês –
de um programa de ensino especial existente em Portugal. Parece-me evidente que
sendo o objectivo maior da educação da criança surda o seu resgate para a
sociedade, fornecendo-lhe a oralidade como ferramenta de comunicação, estaria
implícita a inculcação de princípios de ordem moral e ética – com que a criança
passaria a construir a sua subjectividade – que sobressaem deste programa e
destes exercícios. O princípio da disciplina e normalização do aluno surdo que
temos vindo a mostrar, evidencia-se de forma exemplar nestes exercícios. Aos
poucos o aluno deveria ir incorporando princípios normativos que num processo
de transformação, influenciariam de modo directo o seu comportamento. Logo, o
currículo de estudos seria uma área privilegiada e uma das tecnologias utilizadas
Um manual com 600 imagens
301
na transformação e construção dos educandos, regulando o seu comportamento, e,
simultaneamente, accionando mecanismos morais de condução da sua própria
conduta.
O que pretendo mostrar é que o plano de estudos foi – e continua a sê-lo
hoje – uma técnica de normalização destinada a formatar as ideias do educando e
regular o seu comportamento. Diz assim Popkewitz:
“The alchemy of school subjects fixed the content of school subjects and thus
enables the fabrication of the soul who operates through the fixed rules of
reason. The struggle for the soul was a disciplining practice through an
inscription of the rules of reason that was to master uncertainty in the name
of democracy, liberty and the actor who has agency as the modern citizen.
Reason disciplines the future through its rules that discipline the individuality
of the present” (Popkewitz, 2001: 202).
Um aspecto que importa compreender é o dos conteúdos curriculares, que
embora se dirigissem ao aluno, lhe escapavam totalmente no que às suas
finalidades dizia respeito. Popkewitz refere-se aos objectos que são feitos matéria
de ensino como resultando de uma alquimia curricular. Pois bem, o que
interessaria era um núcleo de saber capaz de modelar a criança ao arquétipo
previamente desenhado para si.
O que se passou no ensino do aluno surdo não foi certamente diferente –
podendo até ter atingido um alcance maior – pois toda a matéria a ensinar era
simultaneamente a palavra e o objecto, até então fora do campo de nomeação do
aluno. Portanto, como se pela primeira vez fosse mostrada a imagem e a sua
significação. A aprendizagem da língua acontecia desembaraçada de significados
paralelos, da imagem à nomenclatura o caminho era directo. A legenda faria
corresponder o mundo das coisas ao mundo das ideias. O processo, esse, era de
acrescento constante e quase inconsciente para o aluno, que assimilaria o miolo
das coisas pela forma de ensino activa em que se via envolvido. Este princípio não
é alheio aos discursos proferidos pelos educadores modernos, que, então iam
ganhando projecção em Portugal e na Europa. O interessante é que no domínio da
educação especial não é necessário caminharmos até aos finais de oitocentos para
ouvir os testemunhos de médicos ou pedagogos, já empenhados na tarefa de
individualização da criança.
Os ano de 1801 e de 1806 são, respectivamente, os anos em que Itard
O Português pela Imagem
302
escreve dos mais circunstanciados testemunhos do que viria a ser o núcleo de
preocupações do ensino especial. O modo como descreveu os métodos utilizados
com Victor para lhe ensinar a usar a palavra, são semelhantes aos que cerca de
cem anos adiante, foram utilizados na grande maioria das Instituições para surdos.
A sua herança vinha, aliás, do mestre Sicard e do trabalho por ele desenvolvido no
Instituto de surdos de Paris. O método de fazer compreender as palavras pelo
recurso à sua representação visual descreve o caminho de correspondência entre
ideia e objecto:
“ Je commençai donc par les premiers procédés usités dans cette célèbre
école, et dessinai sur une planche noire la figure linéaire de quelques objets
dont un simple dessin pouvait le mieux représenter la forme ; tels qu’une clef,
des ciseaux et un marteau”.Este, reconhecia-o o autor, decerto seria um
método particularmente útil na educação de crianças surdas. De todas as
crianças, “ les plus attentifs et les plus observateurs”, eram as surdas,
habituadas que estavam “ à parler par les yeux” e a ter uma experiência visual
dos acontecimentos (Itard, 2003: 38, 39).
Resta-nos agora cruzar a existência e utilização do manual escolar e dos
seus conteúdos com a prática na sala de aula. O ensino, muito embora se dirigisse
a alunos surdos, processava-se – como anteriormente se fez referência – pelo
método oral. Mostrarei agora fragmentos significativos do texto que prefacia o
livro de Exercícios de Observação e de Linguagem, e no que nele se espelha da
pedagogia moderna e da crescente importância concedida à criança. O mestre
deveria descer do pedestal e tratar a classe como um composto de seres
individuais. Claro está que o elemento de comunicação então usado era mais a
fala oral do que a gestual, mas porque se acreditava que a língua dos ouvintes
daria ao surdo a hipótese de inclusão social, era neste movimento a um tempo
disciplinador e regulado que o aluno surdo se concebia como ser autónomo e
livre.
O método aqui preconizado não era o “expositivo”, no qual só o professor
“operava”, reduzindo-se o aluno a “receptor passivo”. Até porque, diziam os
autores, a lição oral do professor iria contra a “natureza” – surda, digo eu – do
aluno (Trindade, 1906: IX, X). A aula deveria ser um palco em movimento em
que se o aluno surdo não poderia ouvir, pelo menos, não estava impedido de falar.
Ora, o que se experimentava nos exercícios que compunham o livro era
Um manual com 600 imagens
303
precisamente blocos de fala que poderiam acontecer num espaço ouvinte. As 600
imagens do manual mimetizavam cenas e objectos comuns no dia-a-dia e os
exercícios do livro criavam uma mancha de interpretação em redor da cena
observada. Os conteúdos abordados eram assimilados pelo aluno, passando a
compor a sua visão da realidade, criando um manto de interpretação colado à
elaboração da sua individualidade. Para melhor o ilustrar, apresentarei agora ao
leitor um exercício completo. Trata-se de um razoável número de perguntas que
têm como mote a imagem abaixo representada. Desta lição o aluno ficaria a saber
o que era uma sala de aula, o que aí se fazia e quais eram os seus actores. Que
cada um deles teria um nome e lembrar-se-ia também, que ele próprio teria um
nome que se dizia com os lábios. Que há comportamentos específicos para cada
lugar, a sala de aula não seria, decerto, espaço para distracções e desatenções. Que
o seu papel ali, naquele momento em que estava a ser questionado, era o de um
aluno que precisava de aprender a falar, a ler sobre os lábios, a ler, escrever e
contar. Nunca seria demais lembrar o pequeno pupilo do seu estado de ignorância
antes de frequentar as aulas. Também, evidentemente, da persistência e amor ao
trabalho para que se alcançassem progressos.
Gravura de O Português pela Imagem
(Trindade, 1906 a)
“1. O que representa o nº 403? - 2. Nesta sala de aula há um professor? - 3.
Esse professor está sentado? - 4. Sabes como se chama o professor? - 5.
Sabes como se chama o professor, sabes o nome do professor? - 5. Como se
chama o teu professor? - 6. No nº 403, há alunos na sala de aula, há uma
O Português pela Imagem
304
classe na sala de aula? - 7. São rapazes ou raparigas? - 8. Conheces o nome
desses alunos? - 9. Qual é o teu nome? Qual é o teu sobrenome? Como te
chamas tu? - 10. No nº 403, sobre o que estão sentados os alunos? - 11. Eles
estão agora a escrever? - 12. O que tem cada um na mão? - 13. Tu crês que
estejam ocupados a ler ou a ver estampas? - 14. Esses alunos parecem estar
atentos ou têm ar de distraídos, desatentos? - 15. Quantos alunos tem a tua
classe? - 16. Mostra-me a tua carteira. - 17. Mostra-me o lugar do/da X. - 18.
Gostas do teu lugar? - 19. A tua carteira tem divisões como a do nº 410? - 20.
O que é que tu pões dentro da tua carteira? - 21. Os teus livros e utensílios
estão bem arrumados dentro da tua carteira? - 22. Na sala de aula deve-se
brincar, rir e tagarelar? - 23. Em que lugar se pode brincar, rir e tagarelar,
palrar livremente? - 24. Diz ao/ à X que vós vindes à aula para aprender a
falar, a ler sobre os lábios, a escrever, a ler e a contar, - que vós vindes à aula
para vos instruires. - 25. Diz-lhe que os vossos pais desejam que faleis bem,
que escrevais bem, que estudeis bem as vossas lições e que façais bem os
vossos exercícios e as vossas obrigações. - 26. Quando eras pequeno/a eras
ignorante ou era instruído/a? - 27. Agora, presentemente estás já um pouco
instruído/a? - 29. Diz ao/à X que é preciso ter amor ao estudo para vir a ser
instruído/a, para fazer progressos” (Trindade, 1906: 147, 148).
As perguntas 24, 25, 26, 27, 28 e 29 interiorizavam no aluno surdo a
representação da surdez como deficiência que exigia a aprendizagem da língua
para que o aluno pudesse participar das relações sociais. O professor deveria
tornar consciente ao educando essa sua falta, apontando-lhe que o único caminho
para a corrigir seria a disciplina da vontade, fazendo todos os exercícios e
obrigações, amando o trabalho o que, mutatis mutandis, o faria ser amado pelos
pais e sair do lugar de excluído. Neste ponto, gostaria de tornar clara a ideia de
que o poder de normalização da criança na escola deixa de lado o corpo e centra-
se na alma. É certo que aos alunos são prescritos exercícios disciplinadores do
corpo. A fala inibe o desenvolvimento da linguagem dos gestos, própria do surdo,
contudo, estes exercícios de articulação inscrevem-se no aluno como necessários
para uma conquista de autonomia e liberdade individuais. Seria o domínio da
língua dos ouvintes, lida e falada, que determinaria a imagem que a criança e os
outros construiriam sobre si.
Um outro exercício ainda contido neste livro, evidencia de forma atroz a
focalização do ensino da criança surda de acordo com um modelo ouvinte, tendo
por base aquele que é o elemento inexistente no estado surdo. Perguntava-se ao
Um manual com 600 imagens
305
aluno:
“1. O que representa o nº 6? - 2. Quantas orelhas tens tu?-3. Mostra a tua
orelha esquerda.-4. Qual é o aluno/a aluna que tem orelhas pequenas?-5.
Observa no número 253 se as orelhas do burro são curtas ou compridas.- 6.
As tuas são tão compridas como as do burro?- 7. Manda o /a X puxar
brandamente as orelhas ao /à X.- 8. Diz ao/à X que as orelhas e os ouvidos
servem para ouvirmos.-9. Tu ouves? - 10. Diz, ao /à X que, quando o
professor fala, é preciso olhar para a sua boca, é preciso ouvir.- 11. Diz ao/à
X que olhar para a boca do professor é sinónimo de escutar, ouvir o
professor.- 12. Quando o professor fala, tu ouve-lo com os teus ouvidos ou
com os teus olhos?- 13. Diz ao/à X que é preciso escutar bem o que diz o
professor, que é preciso estar atento.- 14. Conjuga os verbos escutar as lições,
estar atento, no presente, na forma afirmativa” (Trindade, 1906: 19, 20).
Não há forma mais explícita para fazer entender ao aluno surdo a
supremacia da língua dos ouvintes. A opressão ao estado surdo evidencia-se pela
obsessão do ouvir que era, afinal, a falta que se diagnosticava ao aluno surdo. Era
na dinâmica do ensino na sala de aula que a criança surda se via obrigada a olhar-
se e a narrar-se como se fosse ouvinte. Primeiro, havia que fazê-la apontar as
orelhas e os ouvidos. Depois, fazê-la observar que, no seu corpo, esses elementos
estavam inoperantes. Mesmo assim, era necessário ouvir o professor, “escutar
bem”, sinónimo de “estar atento” aos seus movimentos labiais. A repetição –
tantas vezes utilizada no ensino do aluno ouvinte através da escrita – desenvolvia-
se oralmente com o aluno surdo repetindo, neste caso, algo que lhe era
organicamente impossível: eu escuto, tu escutas, ele escuta, nós escutamos, vós
escutais, eles escutam. Uma lição que daqui se extrai é que só se pode normalizar,
se se introduzir estruturalmente uma carência.
“Produzida por autores com autoridade para escrever, fixada e codificada
pelos gramáticos e pelos professores, encarregados, também, de inculcar o seu
domínio, a língua é um código, no sentido do algarismo que permite estabelecer
equivalências entre sons e sentidos, mas também no sentido de sistema de normas
reguladoras das práticas linguísticas” (Bourdieu, 1998: 24). Colonizar o surdo
com a oralidade e com uma oralidade especialmente concebida para si,
condicionava, por um lado, os sentidos do som que o surdo produzia porque
nunca os havia ouvido nem nunca os iria ouvir e, por outro, interferia com a
possibilidade de desenvolver a sua língua de natureza visual. A imposição da
O Português pela Imagem
306
oralidade tinha, certamente, o poder de inibição da gestualidade, pois a língua oral
impunha-se como a língua da lei. E situar o início das práticas oralistas no ensino
das crianças surdas, no Congresso de Milão, realizado em 1880, não é senão,
encontrar-lhe uma “legitimação oficial”. O método oralista permitia enquadrar a
criança surda na paisagem escolar dos ouvintes. Nesse espaço, o surdo seria
sempre um hóspede ao qual se oferecia a possibilidade de se aproximar da
normalidade e, para tal, contou-se com “o consentimento e a cumplicidade da
medicina, dos profissionais da área de saúde, dos pais e familiares dos surdos” e
dos “professores” (Skliar, 2001: 16).
Pierre Bourdieu admite a existência de uma língua oficial que “ tem parte
com o Estado”, “tanto na sua génese como nos seus usos sociais”. A dominância e
unificação dessa língua acontece na obrigatoriedade do seu uso em “espaços
oficiais”, como a escola, transformando-a em “ norma teórica pela qual todas as
práticas linguísticas são objectivamente medidas” (1998:24). É neste campo que
considero que a imposição do método oral puro no ensino da criança surda, ocupa
o lugar de excelência quando se pensa que poderia ter existido outra possibilidade
para o ensino destas crianças. Todavia, esta possibilidade exigia um olhar outro
para a surdez que, ainda hoje está ausente da escola.
“Ninguém pode ignorar”, escreve Bourdieu, que “a lei linguística que tem
o seu corpo de juristas, os gramáticos, e os seus agentes de imposição e de
controlo, os mestres do ensino, investidos do poder de submeter universalmente
ao exame e à sanção jurídica do título escolar, a performance linguística dos
sujeitos falantes”. Vemos, então, os sujeitos surdos a serem representados a partir
de uma característica específica do seu estado surdo - enquanto característica
negativa - e a serem medidos, avaliados, classificados pela sua capacidade
performativa na hospedagem de uma língua que não é a sua. A integração social
do surdo representa-se como “ a integração numa mesma ‘comunidade
linguística’, que é um produto do domínio político reproduzido incessantemente
por instituições capazes de impor o reconhecimento universal da língua
dominante”, e é, simultaneamente, “a condição da instauração de relações de
domínio linguístico” (1998: 24, 25).
Pois bem, no caso específico do ensino dos surdos funcionou “um sistema
ouvintista de valores” (Skliar, 2001: 20). Procuravam os autores explicar – ainda
no prefácio ao livro de exercícios que nos tem acompanhado – quais as palavras
que interessariam o aluno surdo.
Um manual com 600 imagens
307
“Em presença de cada gravura do álbum, simplesmente perguntámos, por
um lado, o que na vida familiar poderia ser dito à criança, e, por outro, o que a
criança poderia ter necessidade de dizer por sua vez” (Trindade, 1906: X). Tendo
à sua frente uma representação de uma língua, um dos exercícios propunha que se
perguntasse ao aluno se sem língua, poderia falar. Qual era o aluno da classe que
melhor falava e primeiro realizava os exercícios de composição de palavras e,
inquiria-se ainda o aluno relativamente ao gosto pessoal de “fazer uso da palavra”.
E os que dela não se serviam, eram os mudos (Trindade, 1906: 22).
O Português pela Imagem
308
Objectos, jogos e lições de coisas
309
7.A SALA DE AULA COMO LABORATÓRIO…:
7.1. OBJECTOS, JOGOS E LIÇÕES DE COISAS
Fragmentos de gravuras de O Português pela Imagem
(Trindade, 1906 a)
Ainda não chegara a década de quarenta do século XIX e já Crispim da Cunha
afirmava que não seria pela pronúncia dos vocábulos que o entendimento do “surdo-
mudo” haveria de atingir o “grau de desenvolvimento” de que era susceptível e
“absolutamente necessário para se tornar útil a si e à sociedade” (1835: 8, 9).
Porquanto o surdo pronunciasse um elevado número de palavras, se não lhes
conhecesse o significado, de pouca valia elas lhe seriam nas relações sociais. O que
este professor de alunos surdos queria dizer era que a tarefa de ensinar a língua oral
ao surdo, se mostrava possível, mas vazia de significado caso acontecesse em
abstracto. Não abordou directamente, todavia, deixou transparecer que no ensino das
crianças surdas a especificidade da sua experimentação visual da realidade, teria de
ser considerada. Por isso mesmo, resgata a figura do Abade de l'Epée que, no século
XVIII, utilizava a língua de sinais como primeiro idioma da criança surda, através da
qual lhe seria ensinada a língua oral. De uma forma ainda muito subtil, começava a
desenhar-se uma metodologia que articulava o desenvolvimento da criança numa
simbiose entre vida prática e aprendizagem escolar.
Já aqui foi dito que a educação sensorial, pensada como forma de preparação
do aluno para receber a língua oral, articulava o corpo à realidade como meio de
ancorar ao primeiro o espírito. Seria no contacto directo com os objectos,
observando-os, explorando-os, que o surdo construiria sobre eles um conhecimento.
Ao aluno teria de ser dado a ver e perceber a materialidade dos objectos. De forma
evidente, este período preparatório partindo de um saber sobre uma intrínseca
natureza da criança em se relacionar experimentalmente com as coisas, vendo e
A sala de aula como laboratório…
310
tocando, teria por fim proporcionar-lhe a realidade do som. Gostaria de deixar clara a
ideia de que estas práticas orientavam-se discursivamente para a actividade
construtora da subjectividade do aluno. A presença das actividades sensoriais,
artísticas ou dos trabalhos manuais no espaço escolar, encontram justificativa racional
na possibilidade que oferecem de libertar o aluno para uma relação directa com o seu
eu, tornando-o autor de um projecto pessoal de construção da sua identidade. O aluno
haveria de ser capaz de atingir um estado de autonomia tal que se governasse a si
mesmo. Todavia, este autogoverno enquadrava-se na perspectiva de
governamentalidade aqui referida e seria tão mais realizado quanto a arte de governar
se cobrisse com um manto de invisibilidade. Esta arte de governo dos escolares
estaria presente nas técnicas e nas práticas que vinculavam o aluno à escola e estas,
eram disciplinadoras e reguladoras do eu do sujeito. A questão do interesse, do jogo,
da ligação permanente à vida, assume uma importância capilar neste projecto de
articulação dócil ao dispositivo escolar. No caso específico das crianças surdas, a
geografia já efectuada dos males e características do seu estado, antevia que,
obviamente, seria a naturalidade própria do seu corpo a ditar as regras de vinculação
ao processo de aprendizagem. Os discursos que fixaram os seus planos de estudos
construíam-se progressivamente sobre bases científicas em torno da natureza
biológica do aluno, agilmente se percebendo que o domínio da visualidade e da
apalpação seriam filões a escavar.
A resposta ao problema que Crispim da Cunha expunha em 1835, vamos
encontrá-la em Simões Raposo duas décadas adiante, ainda que não relacionada com
o ensino da língua às crianças surdas. Todavia, no discurso do Provisor de Estudos da
Casa Pia anunciava-se já o que viria a ser âncora na educação desses alunos. Pois
bem, “a fim de que aprendendo a leitura e a pronunciação duma palavra”, as crianças
“ficassem logo senhores da ideia” aí representada, havia o autor organizado “umas
tabelas de leitura” com palavras escolhidas a dedo e que representassem ideias
“intuitiva ou analogicamente” fáceis de fazer compreender à criança. A definição
rigorosa da palavra seguir-se-ia ao conhecimento objectivo do objecto ou da acção
que a palavra representasse. Era, portanto, esta proposta de Raposo, totalmente
contrária a um ensino livresco. Que o mestre transmitisse o saber aos discípulos, mas
que o fizesse servindo-se “da análise directa, figurativa ou analógica”. “Isto é”,
continuava Raposo, “mostrando, desenhando ou descrevendo o objecto”. E eis que,
Objectos, jogos e lições de coisas
311
para além de um aluno sabedor do sentido da palavra, ter-se-ia um aluno empenhado
para achar por ele “a verdade”. Naturalmente que só se conseguiria vincular o
educando a uma tarefa escolar, se o professor dominasse a técnica de conduzir o seu
pupilo a assuntos do seu interesse. Ensaiava-se o fim do “professor dogmático e
casuísta” e da escola entediante e aborrecida que tinha por função “a inacção das
faculdades do espírito”. O autor do Relatório dirigido à Administração da Casa Pia
em 1869, sistematizava aquilo que seria a humanidade da escola moderna. Qualquer
que fosse a prática amovida destes princípios seria tudo, menos aquilo que deveria ser
“a escola do século XIX – a escola do futuro” (Raposo, 1869: 17, 18, 19).
“A escola moderna é família – é sociedade, – é jardim, – é oficina, – é campo, – é
cidade, – é finalmente uma sociedade democrática popular em miniatura, onde o
aluno pratica em especimen, e para assim o dizer, a retalho, tudo quanto a família,
a pátria e a sociedade tem de lhe fazer praticar depois por atacado” (Raposo,
1869: 19).
O que Simões Raposo antecipava, era um regime semelhante ao que Dewey
viria a propor de uma escola análoga a uma sociedade em miniatura. A escola, dizia o
autor de A Escola e a Sociedade no ano de 1900, deveria relacionar-se “com a vida de
forma a que a experiência que a criança” adquiria “de uma maneira familiar e
natural” fosse para aí “transportada e utilizada”. Do mesmo modo, fosse qual fosse o
saber que o aluno aprendesse na escola, deveria “ser devolvido e aplicado na vida
quotidiana”. Além disso, se “a escola como um todo” estivesse relacionada “com a
vida como um todo”, os diversos “domínios de estudo” ficariam decerto
“correlacionados”. A experiência, afirmava o autor, compunha-se de elementos
vários, desde os geográficos a artísticos e literários, científicos e históricos e, todos
eles estavam “inexoravelmente relacionados”. A criança deveria, pois, viver numa
relação “variada”, “mas concreta e activa” com este mundo (Dewey, 2002: 78, 79).
“Não me tenho cansado de expor livremente e em toda a parte a minha crença
e a minha esperança de que a nossa instrução há-de um dia tornar-se prática, real, e de
uma constante aplicação imediata e útil”. Poderia ser ainda de Dewey esta frase, mas,
na verdade, saiu da pena de Simões Raposo. E continuava, o então Provisor da Casa
Pia, dizendo que todas as faculdades da alma – que se manifestavam nos modos de
A sala de aula como laboratório…
312
ser “sensível”, “inteligente” e “livre”-, mereciam “igual cuidado”. A cargo do
professor postava a empreitada de, mantendo-se “a par com os progressos da ciência
pedagógica”, guiar os pupilos em ensinamentos com “aplicação imediata nos usos da
vida e de reconhecida utilidade”( Raposo, 1869: 12, 13 ).
Esta ideia estava, de resto, ligada à necessidade que havia de motivar o aluno
e de o manter mentalmente receptivo durante toda a lição. Em 1907, José da Cruz
Filipe aconselhava para um primeiro ano de aprendizagem oral nas classes de surdos,
um vocabulário de aproximadamente cem palavras, “curtas e fáceis” que deveriam
corresponder a “nomes de objectos existentes na classe e os mais usados” (1907: 36).
O interesse da criança iria condicionar o grau de motivação para aprender e o ensino
centrado no aluno era uma linguagem que ia marcando presença nos modernos
discursos da pedagogia. No ano de 1915, Palyart Pinto Ferreira, questionava-se
acerca das diferenças entre “os métodos e processos empregues com as crianças
anormais dos empregues com as normais”. No seu entender, “a diferença deveria ser
nula”. Se não o era, devia-se a que “na maioria das classes de normais, como a
criança é dócil, maleável, moldando-se perfeitamente ao ensino livresco, fastidioso,
mas cómodo para o professor, os métodos e processos da moderna pedogogia” não
eram postos em uso. “Mas não suportando o anormal o mesmo ensino”, necessário se
tornava “ a aplicação dos modernos princípios” (Ferreira, 1915 a: 536, 537).
Palyart desenhava aquilo que seria a sua actuação:
“Dar-lhes-ei jogos e exercícios apropriados para educação dos sentidos, e
principalmente modelação segundo tema ou livre, e desenho empregando lápis de
cores, aguarelas, e já livre, já de memória, de ilustração, etc.; ministrarei noções
de cálculo prático, e por meio de brinquedos e jogos ; iniciarei o estudo da língua,
a escrita e a leitura, e os exercícios de linguagem, tendendo a corrigi-la, aumentar
o vocabulário, etc.; pô-las-ei, sempre que possa, em contacto com a natureza, e
dar-lhes-ei plantas e animais a tratar. Isto com os mais atrasados, aos de
mentalidade mais inferior, com menos soma de conhecimentos; que com os
restantes, que já sofreram a iniciação, só parte deste programa será aplicado, e a
outra substituída pelo que mais e como melhor convier, segundo as suas
características, segundo as suas exigências mentais”. O ensino da aritmética seria
tanto quanto possível “prático”, com “jogos”, um pequeno balcão até, em que a
“criança” faria “de caixeiro e de comprador, recebendo e pagando com moeda
Objectos, jogos e lições de coisas
313
bem imitada, alguns exemplos falsos de 50 ctvs, 20ctvs, e 100 reis e 500 reis”
(Ferreira, 1915 a: 537, 538).
A aprendizagem deveria estar intimamente ligada à vida prática. Jogos e
exercícios que estimulassem o desenvolvimento dos sentidos, trabalhos manuais e
desenho como actividades orientadas por um tema ou totalmente livres, deixando o
aluno expressar-se. Brinquedos e jogos que permitissem a articulação à realidade,
respeitando o tempo e o intelecto de cada aluno. “O sujeito seria assim conduzido
pela prática lúdica à interiorização do sentido da substância ontológica, da reflexão e
do julgamento e sempre de uma forma progressiva” (Ó, 2003: 143). O que se situava
no núcleo desta abordagem era a questão do interesse e, aqui, a criança adquiria uma
importância máxima. O educador, munido dos conhecimentos da psicologia e
pedagogia modernas, saberia exactamente o que o seu pupilo desejava. Nas suas
Lições de Pedologia, António Aurélio da Costa Ferreira (1920 a: 31), procurava
mostrar aos professores em formação, o alargado leque de vantagens que a Pedologia
lhes traria. Para além de “servir excelentemente para fazer a sua educação científica”,
era instrumento que os ensinava a “observar”, “descrever”, “medir”, “experimentar”,
“analisar” e “criticar”, “para aperfeiçoar o bom senso, que é a mesma coisa que o
espírito científico, que permite sentir e descobrir a realidade e medir a possibilidade”.
A preparação do mestre e a transformação da escola, deveriam ocorrer em
simultâneo. Um eixo fundamental da pedagogia científica, afirmavam pedagogos
como Maria Montessori, residia na existência de uma escola que permitisse o
desenvolvimento de todas as manifestações espontâneas e da vivacidade individual da
criança. O que então se delineava era o estudo individual do aluno, para que este se
pudesse construir como ser autónomo e livre. Pelo programa anunciado por Palyart,
especificamente concebido para o ensino daqueles que se afastavam dos padrões
normativos, percebe-se que os princípios de autonomia e liberdade da escola
moderna, contaminavam todos os que eram trazidos até à arena educativa. Os
anormais eram objecto de salvação de uma pedagogia que se concebia como especial,
porque cada vez mais detinha sobre aqueles a que se aplicava um saber, possibilitador
de poder. Nos discursos até aqui trazidos lêem-se conceitos fulcrais, – activo,
espontâneo, livre –, que haveriam de marcar a pedagogia ao longo do século XX e, de
A sala de aula como laboratório…
314
forma muito acentuada o perfil das actividades artísticas a dois níveis: um que
justifica a sua presença por uma natureza específica da criança que era necessário que
se desenvolvesse naturalmente, que desenhasse, pintasse, modelasse, corresse, que se
movimentasse e nesse processo, jogar-se-ia o outro trunfo. Para além do saber que se
ia constituindo na observação do desenvolvimento infantil, a criança aprenderia a
ganhar sobre si uma consciência racional, desenvolveria um domínio sobre o seu
corpo, sobre o seu espírito e, logo, sobre a sua vontade. A natureza do aluno segurava
a tessitura dos programas que lhe iam sendo propostos. Herbert Spencer, no século
XIX, dizia-o assim:
“The truths of number, of form, of relationship in position, were all originally
drawn from objects; and to present these truths to the child in the concrete is to let
him learn them as the race learnt them. By and by, perhaps, it will be seen that he
cannot possibly learn them in any other way; for that if he is made to repeat them
as abstractions, the abstractions can have no meaning for him, until he finds that
they are simply statements of what he intuitively discerns.[...] The system of
object-lessons shows this. The teaching of the rudiments of science in the
concrete instead of the abstract, shows this. And above all, this tendency is shown
in the variously-directed efforts to present knowledge in attractive forms, and so
to make the acquirement of it pleasurable. For, as it is the order of Nature in all
creatures that the gratification accompanying the fulfillment of needful functions
serves as a stimulus to their fulfillment—as, during the self-education of the
young child, the delight taken in the biting of corals and the pulling to pieces of
toys, becomes the prompter to actions which teach it the properties of matter; it
follows that, in choosing the succession of subjects and the modes of instruction
which most interest the pupil, we are fulfilling Nature's behests, and adjusting our
proceedings to the laws of life” (Spencer, 2005: s/p).
A apologia estava lançada. Era o contacto directo com a realidade que faria a
criança apossar-se de um conhecimento efectivo. Adolfo Lima considerava as
“faculdades activas” como as “primeiras” a serem proporcionadas à criança. “Os
estudos que” contivessem “um elemento de actividade” deveriam “vir antes”, em
tempo de ensino, dos que o não tivessem. Colocava a interrogação que tanto
preocupava psicólogos e educadores: “Qual a época em que a criança está apta a
ocupar-se de cada um” dos “estudos, sem esforço demasiado para a sua idade?”
Objectos, jogos e lições de coisas
315
(1927: 249, 250). O problema da ordem didáctica estaria directamente articulado com
a formulação dos programas aplicados ao estado físico e mental do aluno.
Lições de coisas…
(Amaral, 1954)
Por oposição a um ensino dito tradicional, que parecia considerar, nas palavras de
Binet, a criança como um homem em miniatura, um homunculus, os discursos da
pedagogia nova apelavam à centração do ensino na criança e nos seus interesses. Vale
a pena ouvir as palavras de Adolfo Lima que, entre nós, terá sido um dos pedagogos
com mais impacto no movimento da escola moderna:
“‘Não basta conhecer um bom método, possuir excelentes processos de ensino; é
indispensável, é condição prévia, - como dissemos algures - que estabeleçamos e
fixemos o princípio de que ‘só deve ensinar-se às crianças o que elas podem
compreender, ver’”. O ensino não poderia ser mais “um chapéu de igual
dimensão que numas crianças entrava pela cabeça abaixo, tapando-lhes os olhos,
os ouvidos, o nariz, a boca, e mal deixando-as respirar, ouvir, ver e cheirar, e que,
noutras, por inadaptação, ficava no alto da cabeça e só à força e dolorosamente,
qual coroa de espinho, se enterrava no crânio da martirizada criança” (1927: 251,
268).
A sala de aula como laboratório…
316
Continuarei a seguir de perto a escrita de Adolfo Lima. Este educador era
totalmente favorável ao ensino da criança através da intuição sensível ou sensorial.
Recuava até Coménio para relembrar que o ensino se deveria dirigir totalmente às
capacidades sensoriais da criança pois conhecimento algum, ideia ou objecto,
passaria para um domínio do consciente se não fosse gerado na sensação e, citava o
autor do século XVII: “‘não devemos contentar-nos com descrever os objectos aos
alunos, mas é preciso também mostrá-los; não deve fazer-se aprender definições e
regras abstractas, mas fazê-las praticar por exemplos’”. Nenhum processo substituiria
o contacto directo com “ a própria realidade das coisas, dos fenómenos, cujo
conhecimento é necessário, e fá-la entrar na inteligência pelos sentidos, sob a forma
de factos ou de exemplos rigorosos” (Lima, 1927: 446).
É evidente que a escola trabalharia a realidade a oferecer ao aluno. Outra
coisa não são, de resto, os programas curriculares. Todavia, estruturam-se sobre uma
necessidade de articulação prática. Spencer refere o sistema das object-lessons. As
lições de coisas teriam a sua génese nos princípios da educação intuitiva, mas
distinguiam-se desta. Poderiam existir ou não num processo de educação intuitivo,
muito embora a sua presença fosse exemplo prático de aplicação dos métodos
intuitivos na prática de ensino. Seriam um método especial de ensino. Sobre as lições
de coisas, dizia que eliminavam as inconvenientes abstracções, substituindo-as pelas
palavras e realidades objectivas, num primeiro exercício do pensamento. A lição de
coisas consistiria “em tirar todos os ensinamentos possíveis da observação directa de
um objecto ou fenómeno” (Lima, 1927: 458). Sobre a coisa poder-se-ia traçar uma
história, decalcar características, treinar a capacidade de atenção e observação do
aluno. Os objectos e ideias mais facilmente assimiláveis pela criança e aqueles que
mais entusiasmo despoletariam, eram com toda a certeza os objectos mais familiares,
aqueles que incorporavam já a experiência de vida do aluno. Mas sobre estes o
educando era convidado na lição a descobrir qualidades que antes não via. Poder-se-
ia transportar o próprio objecto para a sala de aula ou então, referenciá-lo pelo recurso
às imagens.
“As lições de coisas carecem de um plano previamente traçado em que os
assuntos se escalonem, e se liguem numa natural e biológica associação de ideias
e factos. As ideias, as noções de coisas devem girar em volta dos centros de
Objectos, jogos e lições de coisas
317
interesses, formando ‘um todo complexo’ concentrado e convergente” (Lima,
1932: 104).
De facto, um ensino centrado sobre os próprios objectos a conhecer, para além
de possibilitar uma construção própria de cada aluno, tinha ainda a importante função
de treino da atenção. Um exercício de treino da atenção e simultaneamente de
desenvolvimento do sentido cromático, utilizado por Montessori, era “o processo das
lãs de Holmgren”. Consistia este exercício em dar “uma amostra de lã ou de retrós” à
criança, “de uma certa cor e tom” e pedir-lhe que procurasse uma igual, “entre muitas
outras de diversas cores e tons”. Mostrava-se “duas ou três cores” e mandava-se,
depois, que a criança as procurasse, “de cor, de memória”. Ensinava-se, por fim, o
nome de cada cor, mostrando e nomeando, dizendo “os nomes por forma a atrair a
sua atenção, usando de tom e maneiras que” seduzissem o aluno (Ferreira, 1920a:
83). Mas era essencialmente em Decroly que principalmente se inspiravam os
processos e os métodos utilizados com as classes de alunos anormais da Casa Pia de
Lisboa. Decroly procurava organizar o princípio de associação de ideias através da
própria acção da criança com o material, fosse nos jogos, trabalhos manuais ou
procura de novos objectos. As lições de coisas enquadravam-se neste modelo e nos
materiais criados pelo pedagogo. As paredes da sala de aula teriam pendurados
inúmeros sobrescritos com a respectiva legenda correspondendo a um centro de
associação de ideias como os que aqui referimos existirem no Português pela
Imagem. “Este ‘material’ é constituído não só por produtos, amostras, exemplares,
mas também por estampas que se encontram à venda no mercado, e ainda por bilhetes
postais, bonecos de caixas de fósforos, de tampas, de invólucros de chocolate, de
jornais ilustrados, de anúncios, de catálogos industriais, agrícolas, comerciais,
artísticos, bibliográficos” (Lima, 1932: 70). Deste modo organizava-se um museu
escolar.
Em As novas concepções educativas e sua verificação pela experiência,
Édouard Claparède definia as novas concepções da educação, focalizadas
essencialmente em três pontos. Em torno da criança, substituindo a “obediência
passiva” pela sua “actividade e iniciativa”, quer dizer, em lugar de “reprimir
sistematicamente os instintos e os gostos naturais da criança”, neles o educador
encontraria a matéria que daria origem ao “ensino”. Ao nível da instrução, Claparède
A sala de aula como laboratório…
318
falava em substituir “os métodos baseados na lógica do adulto, pelos métodos
fundados na psicologia da criança” e, por último, no campo da educação, o caminho
apontado preconizava mais a implementação de um trabalho colectivo do que
individual, uma “organização das escolas segundo o tipo de instituições democráticas,
pondo em jogo os instintos sociais: self-government, substituição da doutrina exterior
pela interior”. Em poucas palavras, diria o educador que “em vez de ser educada, a
criança” estaria “colocada em condições tais que” se educasse, “ela mesma, o mais
possível” (1959 a: 165). Seria o mestre um estimulador de interesses. Não viria ao
mundo mal algum por a criança fazer tudo quanto desejasse:
“não há mal em deixar a criança fazer tudo o que quer, se tudo o que quiser
estiver certo! A questão é dispor as coisas de modo tal que a criança seja atraída
pelas ocupações (jogos ou trabalhos, pouco importa como se lhes chame,
contanto que suscitem esforço e sejam educativos), que estimulem seu
desenvolvimento intelectual, moral e social; - enfim, que tudo o que queira lhe
seja ocasião de progresso. Prefiro, porém, inventar uma fórmula, e dizer que, na
Casa dos Pequeninos, deseja-se que as crianças queiram tudo o que fazem.
Deseja-se que elas actuem e não que sejam actuadas” (Claparède, 1959 a: 168,
169).
Como mostrarei no próximo capítulo, Claparède reconhecia nos trabalhos
manuais uma capacidade de socialização da criança pela preparação para uma futura
integração na sociedade. Os trabalhos manuais ocupavam, também, lugar de destaque
quando se pensava numa educação vocacionada para a individualidade de cada
escolar e para a sua autonomia. Quando John Dewey lhes consagra no campo teórico
um lugar fundamental na paisagem educativa, afastava-se do trabalho manual
enquanto actividade ocupacional e defendia princípios educativos que o professor
saberia alcançar. Os impulsos naturais da criança, bem como os seus instintos eram
reconhecidos pelo educador que, deveria, no entanto, saber conduzi-los “para um
plano mais elevado de percepção e raciocínio”. E como exemplo, Dewey apontava os
trabalhos de “construção” em oficinas escolares. Estes, dever-se-iam iniciar “com o
impulso” do aluno, todavia, “o professor atento” saberia ler e descodificar no seu
pupilo quais “os seus instintos e qual o seu significado”, podendo dessa forma sugerir
e estimular o desenvolvimento da actividade em consonância com os “desejos e
Objectos, jogos e lições de coisas
319
ideias” do aluno (2002: 110, 111, 112).
A ocupação dada à criança na escola, não será demais insistir, não teria como
primeiro objectivo mantê-la simplesmente ocupada para a afastar da indisciplina ou
da preguiça. As actividades que o professor propunha eram o trampolim para o
alcance da autonomia e liberdade. Uma e outra conquistavam-se por um hábito
quotidiano de trabalho que haveria de inscrever na alma do aluno um autodomínio
sobre o seu corpo e sobre a sua vontade, quer dizer, o aluno passaria a jogar consigo
mesmo o exercício da disciplina.
Através do jogo relacionado com as actividades manuais, o educando adquiria
o hábito do trabalho, uma disciplina interior ao mesmo tempo que lhe iam sendo
incutidos conhecimentos ou ideias morais.
“On comprend ainsi que la plupart des écoles actives aient mis à l’horaire,
comme une de leurs branches importantes, les travaux manuels récréatifs, c’ est-
à-dire ceux ou l’ enfant confectionne des objets intéressants en réduction et
d’autres qu’il peut utiliser dans la vie pratique. Il satisfait ainsi au goût du jeu
grâce à la fantaisie qu’il peut y manifester et à la marge de liberté et de possibilité
de création qu’on lui laisse; il subit d’ailleurs l’influence de ses camarades, et
apprend à travailler en collaboration pour un but commun. Mais le jeu peut
intervenir d’une manière plus directe encore dans les exercices scolaires
proprement dits, comme moyen de faciliter l’acquisition et la répétition de
certaines connaissances indispensables, grâce à des procédés d’autoéducation et
d’individualisation” (Decroly et Monchamp, 1937 : 20, 21).
Num capítulo do livro L’initiation a l’activité intellectuelle et motrice par les
jeux éducatifs, Decroly et Monchamp propunham para os “petits” e para os
“arrièrres”, jogos educativos com as seguintes características:
“Les jeux éducatifs répondent aux caractéristiques suivantes : Les jeux éducatifs
ne constituent qu’une des multiples formes que peut prendre le matériel des jeux,
mais ils ont pour but dominant de fournir à l’enfant des objets susceptibles de
favoriser le développement de certaines fonctions mentales, l’initiation à
certaines connaissances et aussi de permettre des répétitions fréquentes en rapport
avec les capacités attentives, rétentives et intellectuelles de l’ enfant, grâce aux
A sala de aula como laboratório…
320
facteurs stimulants empruntés à la psychologie du jeu. Le plus souvent ils
s’exécutent individuellement, mais il en est qui servent à de petits et de grands
groupes” (1937 : 39, 40) .
Quanto aos jogos de tipo individual, os autores explicam os objectivos
principais: “l’intérêt est soutenu souvent par le fait que l’enfant peut vérifier lui-
même son résultat, faire son exercice en même temps que d’autres enfants et être
influencé jusqu’à un certain point par l’émulation, qu’il peut tirer au sort l’ exercice à
effectuer, etc”(Decroly et Monchamp, 1937: 42). Traduzindo as suas palavras, a
criança seria confrontada com a tarefa a realizar – sozinha -, ao mesmo tempo,
contudo, que todos os outros companheiros da classe o que obviamente permitiria ao
educador uma avaliação individual de cada educando, comparando cada um, com
todos os outros. Facto relevante, a emulação não manifestaria grandemente a sua
presença, na medida em que o que era pedido ao aluno era a realização por si, a partir
dos seus conhecimentos e do seu interior, da tarefa proposta.
Para os jogos de natureza sensorial, insistiam:
“encore sur le fait que nous ne voulons pas, par les exercices sensoriels, arriver à
ce que l’enfant devienne un virtuose dans la distinction des différences infinies de
qualités diverses, telle, 'par exemple', la couleur. Notre but est de préparer
l’attention volontaire en nous servant de l’attention spontanée; dans les exercices,
nous nous sommes efforcés d’en graduer la dose” (Decroly et Monchamp, 1937:
56).
Haveria diversos jogos de treino da atenção voluntária do aluno relativamente
às qualidades cromáticas dos objectos. A notícia de um dos que, inspirado nos jogos
de Decroly, era utilizado na Casa Pia de Lisboa chega-nos pela voz do seu director:
“um dominó curioso que muito interessa os pequeninos [...], um jogo de dominó
constituído por uma série de pequenos cartões, aproximadamente do tamanho das
pedras do dominó vulgar, cartões a cada um dos quais estão, num dos lados, colados,
lado a lado, dois papéis, cada um de sua cor. Joga-se como se joga o dominó. O
aspecto, que a série dos cartões toma no fim do jogo, interessa muito as crianças”
(Ferreira, 1920a: 85).
Entre nós, Alves dos Santos, criador do Laboratório de Psicologia
Objectos, jogos e lições de coisas
321
Experimental da Universidade de Coimbra, foi um dos autores que também dedicou
parte dos seus escritos à importância do jogo na educação. Afirmava que “os jogos
são agentes naturais e instintivos do crescimento físico e do desenvolvimento mental,
sendo por virtude da sua eficiência que a hipertrofia do organismo se realiza com
eficiência e eficácia”. Sem querer arriscar qualquer conceito definitivo em torno da
natureza da actividade lúdica, considerava a hipótese de o jogo ser “um efeito natural
das leis biológicas, a que todos os organismos se submetem, nas suas relações com o
meio, em que carecem de subsistir”. Decerto seria uma actividade que permitia a
adaptação da criança à realidade, uma espécie de “pré-exercício” ou “ensaio” para a
vida. Eram cinco as funções primordiais que Alves dos Santos atribuía ao jogo: o
desenvolvimento de “actividades novamente adquiridas”, a estimulação do
“‘crescimento’”, a sua influência para a redução e canalização de “tendências
nocivas”, a criação e manutenção de “hábitos sociais” e, finalmente, o contributo
“para corrigir a fadiga e regenerar energias, gastas pelo trabalho orgânico”
(Santos,1919: 120,121). Alves dos Santos distinguiu seis tipos de jogos, “motores”,
“sensoriais”, “experimentais”, “afectivos”, “inibitórios” e “estéticos”. A cada um dos
tipos, sua definição: motores, “porque desenvolvem o organismo”, sensoriais “porque
educam os sentidos e promovem a destreza e precisão dos movimentos”,
experimentais “porque aperfeiçoam a inteligência e satisfazem o instinto de
curiosidade das crianças”, afectivos “ porque fomentam a cultura da sensibilidade”,
inibitórios “porque despertam a atenção e educam a vontade”, estéticos “ porque
estimulam os sentimentos desinteressados da criança” (1919: 122). Em suma, o jogo
potenciava uma aprendizagem empírica. Respeitava a natureza da criança e ajudava o
educador a melhor a conhecer, bem como aos seus interesses e aptidões.
“O jogo [...] oferece ocasião para cada um mostrar o que é. Diz-se que, à mesa e
ao jogo, as pessoas mostram a educação que têm. O jogo é revelador da posse dos
nervos e domínio das impulsões. Não é o jogo que faz a educação, é o jogo que a
revela e, porventura, consolida, porque fornece mais uma ocasião de cada um se
exercitar no domínio de si mesmo e é, neste sentido, que se pode chamar ao jogo
educativo” (Silva, 1938: 373, 374).
Uma escola por medida, como a propunha Claparède, era uma escola
“adaptada à mentalidade de cada um, uma escola que se” acomodava “tão
A sala de aula como laboratório…
322
perfeitamente aos espíritos, quanto uma roupa ou um calçado sob medida o fazem
para o corpo ou para o pé” (Claparède, 1959: 157). O importante era diferenciar as
crianças. Na Portaria nº 14 de 1894, sendo Provedor José Simões Margiochi pode ler-
se que “um dos cuidados que deve preocupar seriamente” em matéria de educação,
“deve ser a pesquisa cuidada e solícita, das aptidões que possam manifestar-se nas
crianças educandas, acabando com a rotina tão inexplicável quanto absurda, de
distribuir alunos pelo aprendizado de diferentes ofícios e artes liberais, sem uma
indagação sistemática das suas aptidões” (1894a: 24). Detectar em cada uma
interesses e aptidões. Seria “preciso levar em conta as diferenças de aptidões, porque
ir contra o tipo individual é ir contra a natureza. E ir contra a natureza tem duplo
inconveniente: em primeiro lugar, como já vimos, não há rendimento, ou só um
rendimento não proporcional ao esforço despendido. E, em seguida – é preciso
insistir – repugnância. Este fenómeno da repugnância, muito descuidado pela
pedagogia corrente, tem imensa importância moral e social. Importa, com efeito, que
a ideia do trabalho não esteja associada à da repugnância, mas, ao contrário, à da
satisfação” (Claparède, 1959: 149). Condição sine qua non, dizia-o Claparède, “é
preciso obedecer à natureza da criança, se dela queremos fazer alguma coisa” (1959:
147). Trabalhos manuais e desenho enquadravam-se no tronco das necessidades
individuais e centros de interesse dos alunos e por isso, para além das suas múltiplas
vantagens para o funcionamento do governo dos alunos, integraram as práticas
curriculares na paisagem educativa casapiana. E à dúvida, “muitas vezes formulada”
de que partindo-se “das ideias, impulsos e interesses da criança, sendo estes tão
incipientes, tão aleatórios e dispersos, tão pouco refinados ou espiritualizados”, como
é que se levaria a criança a adquirir a “necessária disciplina, cultura e informação”,
pedagogos como John Dewey responderiam que: possuindo “equipamentos e
materiais devidamente organizados, passamos a dispor duma terceira alternativa” que
não o ignorar ou reprimir essas tendências. “Podemos dirigir as actividades da
criança, exercitando-a de acordo com determinados vectores, e conduzindo-a assim a
objectivos que são o corolário lógico da via escolhida” (Dewey, 2002: 42). Na
verdade, a Casa Pia funcionou como laboratório em que se realizaram as mais
modernas experiências pedagógicas. E disso havia clara consciência:
“Tem sido a Casa Pia vasto campo experimental onde se tem ensaiado muito
Objectos, jogos e lições de coisas
323
método e onde se tem praticado muita acção cuja larga influencia no meio
pedagógico do país ninguém pode contestar. Na Casa Pia se iniciou a pratica da
vacina nas escolas, na Casa Pia se montou a principal aula de ensino mútuo, na
Casa Pia fez a sua melhor época a instrução militar preparatória, no tempo dos
batalhões escolares, da Casa Pia saiu o primeiro ‘team’ escolar de ‘foot-ball’ e foi
a Casa Pia uma das instituições em cuja instrução primária mais cedo se
introduziu o trabalho manual” (Ferreira, 1914: 304, 305).
Ora, bastaria a análise deste pequeno fragmento para reportar as inúmeras
presenças no laboratório educativo casapiano que dizem das transformações e
desenvolvimentos da pedagogia na transição do século XIX para o século XX. Desde
princípios de uma medicina, antropometria ou psicologia incorporadas no tecido
escolar, a práticas administrativas, de organização ou de contabilização dos escolares,
à disciplina dos batalhões, à educação física, aos regimes associativos ou à presença
da educação artística para todos os alunos.
Como forma de sintetizar algumas das ideias que têm sido escritas quando se
fala nos princípios preconizados pela escola nova, primeiro há que dizer que as
propostas dos pedagogos deste movimento não são mais do que actualizações ou
desenvolvimentos de muitas das ideias de uma escola que era dita tradicional. Os
princípios de disciplina, fortemente associados a um ensino tradicional que têm na
figura do professor uma imagem de poder, começam a ser princípios que, ao
contrário de um apagamento, se inscrevem nos discursos como exercícios que se
dirigem ao corpo e à alma da criança, levando-a a adquirir uma autonomia no
governo de si mesma. A liberdade, a espontaneidade, a natureza da criança são,
portanto, elementos que emergem para a construção de uma identidade que não deixa
de ser regulada. É que essa mesma liberdade e espontaneidade são agora peças de
análise dos mestres que dominam um saber psi que lhes permite interpretar os gestos,
comportamentos, performances dos seus alunos. “O professor que se queixa do seu
aluno”, escrevia um dos principais representantes da escola nova, Adolphe Ferrière,
“acusa-se a si próprio”. Não era a criança que teria de acusar. “Observai-a. Apalpai o
terreno. Quase fatalmente, acabareis por descobrir-lhe ao menos um ponto em que
coordena as suas forças para agir espontaneamente, em que um interesse bem vivo a
impulsiona”. Chegado este momento, estava encontrada “a força motriz que fará
mover o moinho”. Não se poderia exigir do aluno mais do que ele poderia fornecer.
A sala de aula como laboratório…
324
“Assim, partir das actividades espontâneas das crianças, partir das suas actividades
manuais e construtivas, partir das suas actividades mentais, das suas afeições, dos
seus interesses, dos seus gostos dominantes, partir das suas manifestações morais ou
sociais, tal como se apresentam na vida livre e natural de todos os dias, segundo as
circunstâncias, os acontecimentos previstos ou imprevistos - eis o ponto de partida da
educação” (Ferrière, 1965: 76,77). No meio deste cenário, quem era o professor? Era
aquele que tinha por fim conduzir o seu aluno para o que era o melhor caminho. E
este governo da criança não era mais do que o exercício de um poder pastoral que não
pretendia simplesmente produzir bons trabalhadores ou alunos dóceis, mas antes,
indivíduos que por um trabalho exercido sobre a sua alma, se tornassem auto-
regulados. Nas palavras de Hunter: “it was to form the capacities required for
individuals to comport themselves as self-reflective and self-governing persons” (Ó,
2003: 110).
Ora, é inserida nesta perspectiva que consideramos o desenvolvimento da
educação artística dos alunos surdos da Casa Pia de Lisboa. As expressões artísticas,
fossem elas numa área mais escolar e rigorosa de trabalhos manuais ou de desenho,
fosse numa área de livre expressão, a verdade é que, num e noutro caso, eram
entendidas como um movimento interior do indivíduo, projectando-se para o exterior.
Seriam um meio de expressão do self do aluno que simultaneamente se oferecia como
objecto de leitura aos olhos do mestre. O processo artístico, em si mesmo, no sentido
de uma auto-expressão, estaria conectado à ideia de expressão do eu, o que
implicaria, evidentemente, a análise dessa expressão. “A arte”, qualquer que fosse a
manifestação adoptada, “é uma necessidade, mas uma grande necessidade, absoluta,
para o bom, para o harmonioso desenvolvimento da alma infantil, alguma coisa de
que carece o intelecto do pequenino ser para a sua completa e mais rápida evolução”.
Útil para o espírito e para a educação porque era conforme às leis da psicologia. A
arte em muitos aspectos se assemelhava ao jogo e o “prazer estético”repousava
“numa espécie de imitação interior que não é senão um jogo” (Ferreira, 1920 a: 333).
Seria esta uma ideia já partilhada por Almeida Garrett quando nas suas Cartas
dirigidas a uma senhora ilustre encarregada da ilustração de uma jovem princesa,
enquadrava no elenco de objectivos de uma educação global, as artes como “gentil
ornato” ou “elemento necessário” “de toda a educação”. Sendo inseparáveis a
educação física, a moral e a intelectual, em nenhum período da vida do aluno uma
Objectos, jogos e lições de coisas
325
seria excluída pela outra, “mas cada qual por sua vez obtém a precedência segundo o
estado do educando na respectiva época” (1829: 15, 16). Garrett introduz aqui uma
tópica essencial para a produção da subjectividade dos sujeitos e à qual os discursos e
as práticas pedagógicas estiveram atentas: a questão do tempo. Novamente se poderia
falar na questão da individualização da criança e da sua natureza específica, todavia,
gostava de marcar mais profundamente a estreita ligação que as tecnologias artísticas,
especificamente desenho e trabalhos manuais, definiram nas relações entre sujeito e
objectos. É no envolvimento com o fazer, nos tempos disponíveis para as tarefas, nas
prescrições para a execução ou nas regras de liberdade que a subjectividade dos
alunos se vai construindo num complexo processo de transformações. Evidentemente
que os discursos disciplinares de cada área do saber se foram adaptando ao
conhecimento físico e psíquico do aluno, garantindo uma relação de
governamentalidade. Nos tipos de propostas dirigidas aos educandos, ora se
trabalhavam questões estritamente disciplinares de adestramento da mão, da vista, do
corpo, ora questões de autogoverno, que não eram aliás substancialmente diferentes
das disciplinares. O domínio da criança sobre si mesma, implicava o domínio da
vontade e um poder sobre o seu corpo.
A sala de aula como laboratório…
326
Os trabalhos manuais
327
7.2.O CORPO, A ALMA E O OFÍCIO: OS TRABALHOS MANUAIS
Aulas nas oficinas Aulas nas oficinas
(Arquivo Fotográfico de Lisboa) (A Ilustração Portuguesa de 8 de Abril de 1907)
Deixando de lado muitas das actividades que a escola explorou como forma de se
conectar directamente à alma do aluno, irei analisar de que modo, os trabalhos
propostos aos educandos no campo dos trabalhos manuais, constituíam das
tecnologias mais poderosas na produção de sujeitos alinhados com o modelo
desejado. Aquilo que por meio dos exercícios ou dos trabalhos manuais, procurava
responder à exigência de manter o aluno permanentemente ocupado, não foi tarefa
unicamente dirigida aos alunos da Secção de surdos da Casa Pia. Neste capítulo,
mostrarei que embora o programa para ensino dos alunos surdos contemplasse várias
áreas do saber e a aprendizagem da língua oral e leitura labial ocupassem um espaço
privilegiado para a colonização ouvinte e normalização do surdo, a verdade é que a
educação sensorial, os trabalhos manuais e o desenho tinham uma posição central na
educação destes escolares. Certamente que estas áreas canalizariam o surdo para a
acção e para uma autoconstrução, tornando-o agente activo no processo de
aprendizagem. Deverei desde já advertir os leitores relativamente ao carácter
abrangente em que aqui se considera a área de trabalhos manuais. Não é somente
recorte e colagem, mas toda a panóplia de actividades que exigiam uma participação
activa do fazer pela manualidade. Significa, portanto, que as tarefas propriamente
oficinais (marcenaria, carpintaria, gravura, encadernação, etc.) podem entroncar neste
campo, mas também os trabalhos femininos de corte e de costura e, igualmente, os
O corpo, a alma e o ofício
328
exercícios de recorte e de colagem, de pequenas construções na sala de aula.
Tenho como ideia organizadora da minha visão sobre o ensino dos surdos –
ocorrido no tempo e no espaço aqui traçados – que, as áreas curriculares do desenho e
dos trabalhos manuais foram verdadeiras tecnologias no processo de normalização do
aluno surdo. Tecnologias produtivas porque potenciaram e implicaram um
envolvimento activo do aluno, no processo de transformação em que estava inserido.
Eram, aliás, constituintes na construção da sua identidade. Permitiam o exercício de
um poder que se fundamentava num saber específico sobre a surdez – consagrando a
experienciação visual do mundo – de um poder que se multiplicava, através de
práticas discursivas, em efeitos sobre as pessoas e as relações entre as pessoas. Os
discursos sobre os trabalhos manuais e a sua integração nos planos curriculares da
escola filiam-se nos princípios da Educação Nova, nos seus ideais de diferenciação de
cada criança, de liberdade e respeito pela sua natureza intrínseca. Já se sabe que as
práticas discursivas ao invés de descreverem, agem sobre a realidade e sobre os
sujeitos a que se dirigem. Ao querer diferenciar, a escola moderna encontrou as
aptidões de cada criança, de que nos falou Claparède, serviu-se dos tests que
identificavam anormais nas salas de aula, para determinar vocações e para apontar
possíveis cenários de adaptação dos indivíduos ao meio. Foram tecnologias que se
construíram como autênticos dispositivos de poder. Segundo as ciências psicológicas,
qualquer manifestação da criança seria passível de ser interpretada, quer dizer, vertida
em discurso. A acção do aluno era reflexo visível, exteriorizado da sua vida interior.
Logo, seria de todo aceitável abordar as produções gráficas, construções, modelações,
enfim, objectos produzidos pelo aluno como expressão directa do seu eu. Agora,
chegar-se-ia à alma pelos caminhos da aptidão. “Depois do desenho”, observava
Palyart Pinto Ferreira, “vem o trabalho manual como melhor elemento de
contribuição ao estudo de conhecimento do psiquismo infantil” (1930b:9, 10). O
professor de trabalhos manuais apresentava exemplos da sua prática enquanto
educador na Casa Pia de Lisboa:
“Todos nós os que temos ensinado trabalho manual, temos notado quão diferente
é de aluno para aluno o segurar na tesoura, o recorte a colagem, o segurar no
canivete, a disposição da mão no corte da madeira, etc. [...] Nós professores
podemos determinar, ou antes distinguir, de um modo rápido, o normal e o
Os trabalhos manuais
329
anormal” (Ferreira, 1930b: 9,10).
A produção deste saber estava à distância de um olhar enformado por teorias
psicológicas. Era possível antecipar um retrato da criança e da sua conduta, do que
esta teria de imprevisível ou desadequado face à norma, mesmo antes de lhe dar
tempo para se manifestar. Bastava, para tal, uma observação atenta dos seus mínimos
gestos. Mas era também possível um movimento num outro sentido, confirmar a
rotulagem que se fixava ao indivíduo partindo dos seus desempenhos: a partir do
recorte, por exemplo, que era uma actividade vulgar nos trabalhos manuais,
Claparède havia organizado um test, aproveitando o contexto de desenvolvimento da
aprendizagem para confirmar cientificamente a classificação dos escolares. O aluno
estaria permanentemente debaixo de um olho observador e tradutor das suas
capacidades e comportamentos numa linguagem científica e verdadeira. “Fazer seguir
um contorno, ou dentro de uma zona para tal fim traçada ou junto de uma linha ou
figura dada, e observar as mordeduras no traço, na figura, ou saídas da zona; observar
atentamente a maneira por que a tesoura é tomada e se o recorte se faz com a
extremidade das folhas desta, com a parte mediana ou com a mais interna; notar o
esforço para a execução, e os trejeitos da face, da boca, etc., que acompanham, por
vezes, o movimento dos dedos: são curiosíssimas e importantíssimas observações,
atinentes a uma determinação não só das aptidões motrizes mas ainda das
mentalidades que submetemos a este interessante exame” (Ferreira, 1930b: 10). A
avaliação do desempenho seria condicionada pelo tempo e pelas falhas cometidas
pelo educando. “Afinal”, concluía Palyart, “a alma da criança” “estuda-se com a
maior simplicidade e facilidade, devendo acentuar-se que ‘não há questão psicológica
que não possa abordar-se nem estudar-se experimentalmente usando apenas os meios
de que toda a gente dispõe’ como disse Larguier de Bancels e Costa Ferreira
corroborou” (Ferreira, 1930b:9, 10, 11). O professor dominava uma gramática que
lhe proporcionava um saber sobre o aluno que tinha à sua frente. E mais, sobre a
interioridade e a alma do seu educando. Os discursos que tinham o aluno como
objecto, centravam-se e orientavam-se segundo aquilo que se queria que fossem os
seus desejos e necessidades. Neste sentido, ter-se-ia de respeitar a natureza da
criança, não impondo ou inibindo gestos, o que não significava obviamente que não
se criassem as situações em que convinha colocar o aluno em acção. Porque, a partir
O corpo, a alma e o ofício
330
deste momento, a participação do aluno passa a ser condição necessária ao processo
de construção do saber. Era aliás a linguagem da psicologia, já instalada na escola,
que ditava regras de contacto, o engendramento de formas de aproximação ou de
técnicas de trabalho sobre o sujeito. Se o jogo assumia uma centralidade nova no
dispositivo escolar, já vimos também que as actividades de carácter manual vinham
sendo associadas de forma sistemática, pelo menos desde Froebel, aos impulsos vitais
da criança. Dependendo, portanto, da sua performance gráfica ou construtiva, o
educando via-se colocado numa grelha que lhe associava competências, ausências ou
excessos. O cenário é, evidentemente, propício ao binómio saber-poder, mas também
a um querer pois que, os trabalhos manuais e o desenho surgiam como actividades
que qualquer criança desejava. Desenhava-se então uma topografia apta à inscrição
de coordenadas de disciplina e de liberdade. À produção de uma subjectividade do
aluno surdo, numa dinâmica de representações.
“O trabalho manual escolar entrou, por aqui e por ali, a ser considerado um meio
de representação dos apetites e das actividades interessadas da criança, bem como
um óptimo auxiliar do ensino prático e utilitário. Na escola infantil iniciou-se o
reinado do boneco livre e nas suas superiores o do pequeno instrumento
experimental” (Soares, 1937: 27).
Uma primeira abordagem do trabalho manual de carácter educativo seria
condicente com formas particulares de actividade que tinham como elemento central
o desenvolvimento natural da criança e os seus focos de interesse. A regra interviria
“quando o desenvolvimento da aptidão manual” o solicitasse, mas, sobretudo, no
exacto momento em que “a capacidade psíquica, espiritual da criança” chamasse por
ela (Soares, 1937: 28). Se possível, a regra deveria ser descoberta ou criada pela
própria criança no relacionamento empírico com as matérias. Diz Lígia Penim, na sua
obra sobre as disciplinas de Desenho e Trabalhos Manuais, que os trabalhos manuais
surgiam nos discursos republicanos da educação, transportando um “projecto de
recuperação da escola”. Seriam “‘o instrumento dos instrumentos’ para a educação de
crianças muito jovens”. Como ponto de apoio na defesa da presença dos trabalhos
manuais nos currículos escolares surgia o “prazer lúdico, pois ‘brincando, a criança se
irá educando e instruindo’. Os trabalhos manuais adequar-se-iam às necessidades de
Os trabalhos manuais
331
construção da criança, na condição de esta ‘ter sempre a impressão da mais inteira
liberdade’, lançando ‘mão de objectos materiais’ para estimular a observação. A
educação ‘disciplina os seus instintos, disciplina todos os seus actos, mas
suavemente, insensível mas despreocupadamente’”(2003: 95).
Era esta a imagem quanto à aula de trabalho manual, publicada em 1908 em O
Occidente, a propósito de uma visita à Real Casa Pia de Lisboa:
“A aula de ensino manual foi a primeira que visitámos. É dela professor o sr.
Tiago Nazareth que todo se tem dedicado ao ensino dos rapazinhos, que
principiam com um simples círculo de papel a formar, por meio de dobras, várias
figuras geométricas, que depois se desenvolvem em motivos decorativos simples
até à formação de sólidos, com prismas, pirâmides, cones, cilindros, etc. Nesta
aula se aplicam ainda os rapazes a produzirem artefactos de arame e de madeira,
com fins já utilitários e em que revelam suas aptidões. De madeira vimos ali feito
um tearzinho completo, invenção de um aluno, e que tecia uma fitinha de
algodão” (Alberto, 1908: 139).
O momento de entrada no internato significa uma transformação completa do
indivíduo. De uma vida desprovida de utilidade e de uma ausência de competências,
estas crianças são conduzidas, passo por passo, a um nível cada vez mais elevado de
utilidade, começando nos recortes e chegando a uma invenção, quanto mais dóceis os
seus corpos se tornam e menos visível é a manifestação do poder disciplinar. Foucault
escreveu que “o poder disciplinar é com efeito um poder que, em vez de se apropriar
e retirar, tem como função maior ‘adestrar’; ou sem dúvida adestrar para retirar e se
apropriar ainda mais e melhor. Ele não amarra as forças para reduzi-las; procura ligá-
las para multiplicá-las e utilizá-las num todo” (Foucault, 2004: 143). Por isso mesmo
o poder disciplinar é um poder positivo porque produtivo. Os trabalhos manuais, pela
temporalidade e destinação do aluno a uma tarefa com códigos específicos e
repetitivos, engendram um mecanismo de relação do aluno consigo próprio, uma
espécie de entrega de si a si, mergulho na intimidade pessoal do indivíduo que se
sente tanto mais confortável com essa intimidade tão nova para o seu pensamento
quanto mais perfeição, isto é, conformidade aos códigos técnicos, conseguir alcançar.
O resultado é a produção de corpos dóceis, treinados, adestrados, modelados a um
ideal de aluno previamente sabido. A disciplina viveu sempre por baixo, nos
O corpo, a alma e o ofício
332
interstícios dos discursos e das práticas que se diziam, cada vez mais, à medida de
cada aluno. E disciplina foi sempre qualidade ou estado associado à liberdade. Os
discursos da Educação Nova clamavam pela liberdade de expressão, possível pelas
experiências artísticas, pelos trabalhos manuais, por uma aprendizagem ligada à
realidade e em consonância com a natureza física e psicológica da criança. Estes
discursos, longe de romperem com discursos pedagógicos que se diziam tradicionais,
situaram-se na sua continuidade, constituindo um dispositivo de autogoverno dos
alunos. “Afirma-se, e com razão, que a educação não é um adestramento. Mas se é
verdade que a autonomia pessoal é o objectivo final que o educador visa, não é menos
verdade que o condicionamento puro e simples da conduta não pode ser
absolutamente banido. Ele não será um fim, mas um meio” (Planchard, 1982: 130).
Fixando a criança a um estado que lhe era próprio, regulava-se a construção da sua
subjectividade, preparando-a para uma futura inserção no mundo social.
Pois bem, questionava-se Claparède, qual seria o tipo de actividade que
melhor se adequaria ao trabalho em comum, quer dizer, não só à vida em internato,
na classe, mas, igualmente à futura vida em sociedade? A resposta encontrava-a em
Dewey. Afinal, a mesma de tantos outros pedagogos da escola nova:
“C'est évidemment le travail manuel; c'est lui que Dewey voudrait placer au
centre de la vie scolaire, et la plupart des autres enseignements, en endevenant les
auxiliaires, tireraient de cette situation un grand profit pour eux-mêmes, car cela
leur conférerait de ce fait cette valeur fonctionnelle, cette valeur instrumentale
propre à leur donner une signification aux yeux des enfants” (Claparède, 1931 a:
29).A atmosfera da vida em sociedade impregnaria a escola por intermédio dos
trabalhos manuais, permitindo uma “collaboration active des éleves comme sur
un des moyens les plus propres à leur apprendre leur futur rôle
d'hommes”(Claparède, 1931 a: 31).
Adolfo Lima defendia a incorporação dos trabalhos manuais no sistema
educativo, tendo por objectivo “transformar o pensamento em acção”, “desenvolver o
poder da imaginação criadora”, “inventiva e reconstrutiva” (1932: 356). Os trabalhos
manuais surgiam como a disciplina capaz de exprimir de forma concreta as ideias,
conhecimentos e até sentimentos dos alunos. E Faria de Vasconcelos batia-se pela
presença dos trabalhos manuais na escola, adaptados ao crescimento físico e
Os trabalhos manuais
333
mentalidade dos educandos, criando uma oportunidade que fornecia “ às forças
interiores a ocasião e o meio de realizar-se” (1935: 108). Claro que funcionavam em
redor do interesse do aluno, disciplinando-o na viagem até à conquista dos seus
objectivos. Os trabalhos manuais orquestrados como base de todos os outros saberes
escolares davam corpo à ideia de uma educação integral. Tudo isto construído sobre
uma ideia basilar de autoeducação, ou seja, o educando seria o principal colaborador
na sua educação:
“O educador não deve fazer o que o educando pode fazer. [...] O educador deve
provocar no educando o interesse, despertar-lhe a iniciativa, inspirar-lhe a
confiança de si próprio, impulsioná-lo a experimentar e avaliar as suas forças,
habilidades, de modo que crie em cada educando a necessidade de ser activo, de
ser trabalhador, de ser perito. ‘A grande tarefa do mestre consiste, não em falar,
mas em fazer falar’ e em observar, julgar, discorrer, pensar, em fazer trabalhar”
(Lima, 1932: 19, 20).
Ensino centrado na criança, na sua liberdade e iniciativa, mas no qual
interesse e esforço não se excluíam. A lição que Rousseau já havia deixado no ar: sob
a aparência da liberdade, até a vontade se submeteria. Nada mais simples e eficaz do
que partir dos impulsos naturais do aluno, das suas tendências para se expressar e
construir a partir da experiência vivida. Os trabalhos manuais surgiam num
continuum de aprendizagens fundadas no interesse. Em 1912 o jornal A Pátria
publicava um artigo que traçava o perfil do ensino seguido na Casa Pia:
“Desde as aulas infantis, especialmente nas classes de desenho, modelação e
trabalhos manuais, dá-se à fantasia da pequenada e à sua observação a mais
completa liberdade. O sr. Alfredo Soares, ilustre sub-director da Casa Pia, que
amavelmente nos acompanhou na nossa visita, mostrou-nos curiosos exemplares
de modelação em barro e desenhos do natural em que se revelam interessantes
qualidades de imaginação e pitorescos modos de ver. Depois de concluída a
instrução primária, os alunos são distribuídos pelos diversos cursos profissionais
ou vão para o curso comercial, conforme as aptidões que desde as primeiras
classes vêm demonstrando” (Anuário 1913: 143).
Todavia, Palyart Pinto Ferreira, contratado como regente de uma classe de
O corpo, a alma e o ofício
334
trabalhos manuais na Casa Pia pela mesma altura, dizia ter-se deparado com um
método pouco de acordo com os princípios preconizados pela escola nova. Era o
sistema Dela-Voss na sua apropriação francesa. A individualidade da criança e a sua
autonomia – um dos princípios mais marcantes da modernidade – encontravam-se
abafados por um servilismo apoiado apenas na técnica. O ensino dos trabalhos
manuais só se tornaria proveitoso se, baseando-se na vida prática e experiências do
aluno, as pudesse incorporar e aplicar-se numa espécie de circularidade produtiva,
novamente à vida da criança – escolar, familiar, social. Era assim que Palyart traçava
a imagem do que na sua opinião deveria enquadrar a prática dos trabalhos manuais na
escola e, essencialmente, da sua extrema importância na educação dos anormais:
“O trabalho manual, como pelo menos deve ser hoje compreendido, tende ao
desenvolvimento das operações psíquicas, por meio dos exercícios sensoriais. Ele
não é, actualmente, só para educar a vista, a mão, etc., mas o excitante por
excelência das faculdades intelectuais, e tanto assim que na educação dos
anormais desempenha um papel importantíssimo” (Ferreira, 1915: 526).
Esta é, aliás, uma ideia muito comum nesta tribo de autores que defendem
uma escola activa. O método de Maria Montessori, tal como as ideias de Dewey ou
de Ferrière, encontram na Casa Pia um reconhecido acolhimento, pelo menos, ao
nível da prática dos trabalhos manuais e do desenho. É certo que, em Portugal, não
existiu nenhuma escola-modelo que seguisse inteiramente a forma de praticar o
ensino e a aprendizagem, tal qual Adolphe Ferrière prescrevia nos trinta pontos que
caracterizavam a Escola Nova. Contudo, em 1927, discursando no Congresso de
Locarno da Liga Internacional Pró-Educação Nova, Álvaro Viana de Lemos,
apontava 13 instituições portuguesas próximas das ideias da Educação Nova. Entre
elas tem lugar a Casa Pia de Lisboa (Nóvoa, 1995: 34, 35).
Palyart defendia que tal como “papel e lápis” não bastariam “para o desenho”,
também não eram “madeira, papel, cartão, tesoura” que bastariam aos trabalhos
manuais. É a eterna questão de que não é a cola que faz a colagem. Reclamava pela
moderna pedagogia aplicada aos trabalhos manuais, aquela que repousando sobre o
“princípio froebeliano”, da educação pela acção, possuía um modelo capaz de
“despertar um interesse máximo no aluno, originando o esforço voluntário, e pondo
Os trabalhos manuais
335
em trabalho todas as suas faculdades”. Ora, o método que mais se adequaria a estes
princípios era o método sueco, o slojd. Esta prática que quer dizer trabalho manual
caseiro, teve as suas origens nas ocupações que reuniam as famílias nas grandes
noites de Inverno dos países do Norte. Inicialmente os trabalhos “eram muito
simplesmente a decoração dos móveis, a prática da planiscultura” (1914 a: 312). Terá
sido modificado por Otto Salomão que o aplicou na escola de Naas e o transformou
num sistema definido capaz de despertar o interesse do aluno. Investia-se na
estimulação da criança, na expressão do seu eu interior, numa acção educativa
voltada para a orientação individual. Os benefícios do método seriam inúmeros, para
lá da destreza manual ou da autonomia do aluno. O slojd permitia uma total emersão
do consciente no inconsciente do aluno através da acção, desenvolvia “o espírito de
observação e precisão, criando os chamados reflexos inconscientes”, contribuía para a
cultura estética do educando porque “os acabamentos” “têm uma grande importância
no sistema”. Dizia Palyart que “‘o nosso prazer provém de que constatamos no
objecto uma qualidade, isto é, um certo grau de perfeição’” (Ferreira, 1914 a: 313,
314). O segredo estava, como se vê, em saber encontrar o que decerto iria de encontro
ao interesse do aluno, despoletando um esforço voluntário. Pelo discurso de Pinto
Ferreira facilmente se percebe um conjunto de características que, na prática,
constituíam matéria para a construção da subjectividade do aluno. A liberdade
resultante do respeito pelo interesse da criança era bem regulada o que não
significava, obviamente, uma neutralização de forças, mas antes uma activação. Os
movimentos concentravam-se em torno de um autogoverno, estabeleciam-se como
quase sinónimos uma perfeição e domínio técnicos com um aperfeiçoamento do self
por um domínio de si. Quantos aos princípios do método, sintetizava-os da seguinte
forma o professor da Casa Pia:
“O trabalho manual deve ser ministrado por um professor, e nunca por um
operário. O ensino deve ser sistematicamente progressivo, por meio de
exercícios, indo dos mais fáceis para os mais difíceis, e tanto quanto possível
individual. - Os exercícios devem ser objectos simples, mas atraentes, cuja
aplicação e utilidade sejam facilmente compreendidas pelo aluno. - Qualquer
trabalho concluído deve ser resultante do esforço do aluno e só dele” (Ferreira
1914 a: 315).
O corpo, a alma e o ofício
336
Palyart falava a linguagem da pedagogia nova: individualidade da criança,
respeito pelas suas características, conhecimento profundo de cada fase de
desenvolvimento, premonição dos seus interesses. O espaço em que decorriam as
lições deveria ser apropriado e agradável aos que aí se movimentavam. A sala onde
este educador da Casa Pia regia a sua classe de anormais tinha mesas e bancos, sendo
cada uma das mesas para “quatro ou cinco bancos e cada banco para um aluno”.
Numa das paredes, um grande armário “onde os próprios alunos guardam o material
escolar dos jogos, trabalhos manuais, etc.”. À volta, inúmeras prateleiras “sobre as
quais aparecem objectos de uso comum, todos com o seu rótulo móvel, que servem
para as lições de coisas, para o desenho, para a leitura”. Junto à janela, “um piano
harmonium, floreiras com vasos em vários pontos, e jarras com flores nas mesas e nas
prateleiras”. As paredes, que de início estavam nuas, a pouco e pouco foram sendo
ornamentadas “pelos trabalhos dos próprios alunos, com pequenos motivos
decorativos em cartão ou em papel recortado”. Era esta uma sala em que tanto o
professor quanto o aluno se sentiam “bem” (Ferreira, 1917: 292,293). A sala de aula
começava a tornar-se um verdadeiro laboratório de experimentação. A orientação do
ensino defendida por Palyart encontrava nos trabalhos manuais ponto de apoio. O
trabalho manual para a educação dos sentidos, no ensino da leitura e da escrita, nas
lições de coisas, nos exercícios de observação, no desenvolvimento da atenção, da
imaginação e como meio para disciplinar a criança. Todos estes exercícios seriam
agradáveis à criança se executados com os tempos e intensidades adaptadas.
No prefácio à obra de Faria de Vasconcelos, Une école nouvelle en Bélgique
(1915), Adolphe Ferrière, publicou os 30 princípios que deveriam caracterizar uma
escola nova. A análise destes princípios, permite retirar o modelo de aluno que a
modernidade pretende construir: autónomo e responsável. Estes 30 princípios são
também a ilustração do que deveria acontecer para se passar das teorias pedagógicas à
prática.
Nos dois primeiros pontos dizia-se que, a escola nova seria uma espécie de
“laboratório de pedagogia prática”. O seu papel era de explorar e manter-se atenta à
“corrente da psicologia moderna”. Só desta forma, se poderia conhecer em
profundidade a criança e ajudá-la no desenvolvimento das suas aptidões. O melhor
modelo para a construção de um saber sobre o aluno, não é novidade, seria o de
“internato”. Apesar da influência da família ser dita como “sã”, a verdade é que,
Os trabalhos manuais
337
vivendo e crescendo num mesmo local, a criança estaria permanentemente sob a
vigilância de experts, ávidos por conhecer as suas inclinações naturais e, a salvo,
também, de influências nefastas ao seu pleno desenvolvimento (Gomes, 1996: 201).
O sexto e sétimo princípios da proposta de Ferrière eram exclusivamente
dedicados aos trabalhos manuais. No ponto seis, informava o pedagogo que, na
escola nova, os trabalhos manuais eram para “todos os alunos”, durante, pelo menos,
“ hora e meia por dia, em geral das 2 às 4 horas”. No núcleo destas actividades,
obrigatórias, deveria contemplar-se “um objectivo profissional” com o fim de “
utilidade individual ou colectiva”. Afinal, a ideia de aluno autónomo e livre, não se
desligava do princípio da disciplina e responsabilidade individuais, entrando em
consonância com aquilo que os discursos do século XIX, vinham propondo da
educação ao serviço da formação do cidadão útil à nação. E, entre todas as
possibilidades de desenvolvimento manual, “a marcenaria” - praticada na Casa Pia –
era aquela que merecia figurar no topo da lista, pois desenvolvia não só a “ habilidade
e a firmeza manuais”, como, também, potenciava um “sentido da observação exacta”.
Todavia, este ofício parecia oferecer muito mais à criança: a “ sinceridade e o
domínio de si” (Gomes, 1996: 201-204).
Os trabalhos manuais, no caso das crianças surdas, eram uma tecnologia que
potenciava o saber que o professor poderia construir sobre o aluno. Se a
aprendizagem da técnica assumia a sua importância na disciplinarização dos corpos, o
trabalho de temas livres era uma porta de acesso à alma do educando. Por isso,
reclamava igualmente este pedagogo que, lado a lado com os trabalhos
regulamentados, haveria cabimento para os trabalhos ditos “livres” que,
desenvolviam “os gostos da criança”, despertavam “o seu espírito inventivo e o seu
engenho” (Gomes, 1996: 201-204). Temas e técnicas, eram traçados num currículo
cuja função principal seria a construção moral e subjectiva do aluno, de acordo com
um modelo que o mestre (pré-) sabia. A autonomia e a responsabilidade do aluno
jogavam-se de forma perfeita nos trabalhos manuais, desenhando-se em pequena
escala, um laboratório do que poderia acontecer fora da instituição, de modo que,
quando o aluno surdo fosse devolvido à sociedade, a pudesse servir, a bem da nação.
Os trabalhos manuais deveriam detectar as aptidões e vocações dos alunos, trabalhá-
las, no caso dos alunos surdos, num sentido de dotar o aluno de um ofício. A esta
vertente se dava o nome de trabalhos manuais aplicados porque consistiam,
O corpo, a alma e o ofício
338
precisamente, na “aplicação dos conhecimentos adquiridos e do desenvolvimento
sensorial”, conseguidos numa fase anterior mais metódica. “Os trabalhos de
aplicação” seriam “a transição do trabalho de classe para o trabalho caseiro, para as
necessidades da vida, inclusivamente para a oficina”. Seria o início, nas palavras de
Pinto Ferreira, de uma “valorização do braço e do cérebro” (Ferreira, 1914a: 530). No
interior desta vertente, desenvolveu-se na Casa Pia a técnica fotográfica e a
encadernação.
Eram inúmeras as vantagens apontadas para a presença dos trabalhos manuais
no elenco das outras disciplinas. A este propósito vale a pena ouvir o que tinha a
dizer Adolfo Lima:
“Criam hábitos de asseio, de limpeza das mãos, do fato, do mobiliário.
Educam a mão, tornando-a hábil ferramenta de imaginação criadora da
criança. Educam todos os orgãos das sensações, tornando-os afinados,
apurados, de grande susceptibilidade e fieis criadores de percepções
verdadeiras. Criam e desenvolvem a imaginação criadora, inventiva e
construtora pela grande variedade de actividades que estimulam e de
obras que podem ser realizadas, como, por exemplo com os trabalhos de
papel e cartonagem. Educam o gosto artístico ou o senso estético, ‘pelas
formas belas e perfeitas, pela decoração e pelo bem matizado e harmonia
das cores, das linhas, das figuras, etc.’. Criam e educam o gosto pela
perfeição, pela precisão e bom acabamento na execução dos trabalhos.
‘Satisfazem e cultivam a tendência da criança para a acção: alimentam
esta tendência e orientam-no para o que é belo e útil’(Roberto Seidel).
‘Despertam um interesse vivíssimo, assim como o prazer pelo trabalho e
pelos frutos do trabalho; levam deste modo a criança a satisfazer, pelo seu
esforço próprio, esse interesse e esse prazer’ [...] Moralizam, porquanto
evitam todos os vícios que nascem da ociosidade ou desocupação” (1932:
357, 358).
Ora, face a estas palavras só nos cabe afirmar o papel que os trabalhos
manuais teriam no governo dos alunos. Seriam uma técnica que permitia à escola ir
de encontro aos desejos do aluno, à sua interioridade, calculando de antemão a
produção de subjectividades. Ao educador competia dar, promover ou sugerir ao
Os trabalhos manuais
339
aluno uma proposta de trabalho que considerasse corresponder à individualidade do
mesmo. O professor reconheceria o aluno antes mesmo de este se conhecer a si
próprio e por isso se poderia exercer um poder que teria em conta os elementos que
preexistem no íntimo do educando. O verdadeiro trabalho projectava-se de dentro
para fora, dando oportunidade à livre expressão criadora do aluno. Todavia, cabia ao
professor garantir aprendizagens, controlar o grau de dificuldade dos exercícios, indo
do simples para o mais complexo, usar de uma certa disciplina na organização das
actividades. “Umas vezes” seria dado o “tema” e a forma seria livre, “de modo que”
havia “um princípio determinado a observar”. A criança não se afastaria do elemento
prescrito, mas não se deveria também esquecer de uma “parte secundária”, “não de
menos importância”, que trataria “consoante a sua vontade”. Outras vezes seriam
fornecidos ambos os elementos, de forma a exigir-se “precisão na execução”. Uma
terceira variação consistia em tema e forma livres “dependendo exclusivamente do
aluno” (Ferreira, 1915: 527). Há, portanto, elementos que indiciam uma forte
presença disciplinar sob a forma de princípios adestrantes da mão e do pensamento,
do corpo e dos sentidos. Mas também de uma liberdade obrigatória, levando a criança
a exprimir-se, a falar de si, a produzir sobre si um discurso, uma confissão contínua
que parte do interior e se manifesta na realização de objectos, de construções, etc. A
desenvolver um sentido de autogoverno.
O governo dos alunos no espaço das disciplinas manuais viveu da prescrição
de um vasto conjunto de regulações (observar, comparar, ser exacto e rigoroso),
balanceado por uma outra série não menos reguladora (imaginar, expressar-se
livremente, ser criativo). O governo dos alunos filiava-se por completo na
necessidade de um autogoverno:
“A criança precisa, quer, exige, por lhe ser indispensável à sua compreensão,
mexer nas coisas, modificá-las, alterar-lhes a forma, desviar-lhes a finalidade,
fazer, fabricar coisas, criar coisas!” (Lima, 1932: 95). Era nesta dinâmica de uma
compreensão tendo por base o aluno como autor e receptáculo do conhecimento,
que se fundamentava a base de uma autoeducação.
As práticas encontravam justificação nas necessidades internas do sujeito que,
no caso dos alunos surdos, seriam igualmente necessidades de futura integração
O corpo, a alma e o ofício
340
social. Nesta fase, parece-me consensual afirmar que só se poderia exigir dos alunos
uma conduta autoregulada, de acordo com comportamentos padrão, se se pudesse
influenciar essa conduta. Agir sobre o educando revelava-se produtivo e eficaz
apenas e só se se considerasse a natureza da criança, os seus desejos que, não por
acaso seriam coincidentes com os que a instituição previra. Acções sobre acções de
que as actividades propostas, como os trabalhos manuais, não se ausentam. Tomaz
Tadeu da Silva defende a ideia de que “o currículo” não é apenas constituído de
“‘fazer coisas’”, ele também se instala nas práticas, “‘fazendo coisas às pessoas’”. “O
currículo tem de ser visto em suas acções (aquilo que fazemos) e em seus efeitos (o
que ele nos faz). Nós fazemos o currículo e ele nos faz. O currículo é, pois, uma
actividade produtiva nesses dois sentidos” (Silva, 1995: 194). No processo de
transformação das coisas, também o aluno estaria sendo transformado.
O desenho
341
7.3.O DESENHO
Exercício de desenho – Inícios do século XX
(Arquivo Fotográfico de Lisboa)
“ Que os alunos contornem um objecto, e saibam
manejar uma régua, um esquadro, um compasso e
um lápis, riscando mapas, contas correntes, etc.,
etc.; que saibam praticar os mais elementares
problemas de desenho linear, sobre ângulos, linhas,
polígonos, etc., é a quanto se reduz na escola
primária o desenho linear ”
(Raposo, 1869: 166).
Mas a ligação das disciplinas à vida não se esgotava nos trabalhos manuais. O
desenho desempenhou desde os inícios da Casa Pia um elemento fundamental. Em
1818 era criada uma aula de Desenho e Arquitectura e antes, se havia já iniciado uma
outra aula de desenho que “passou a ser denominada academia do nu”. Como o
próprio nome indica, nessa aula exercitava-se a mão com base em “modelos vivos”
A sala de aula como laboratório…
342
e, o que a partir de finais de novecentos, se tornou prática corrente nas Escolas de
Belas-Artes, à época terá constituído “uma inovação de tal modo arrojada” que era
aventurança apenas para Pina Manique. A esta lição de observação e de prática
acorriam – como, de resto, foi comum até à década de 60 do século XIX – muitos
estudantes exteriores ao internato. Ter-se-á por esta altura iniciado um estudo mais
“racional do desenho e da pintura” (Silva, 1896: 19, 20). Joaquim Machado de
Castro, no seu Discurso sobre as utilidades do desenho, dava conta da necessidade
que em Portugal se fazia sentir da prática do ensino do desenho e, louvando a figura
de Pina Manique, anunciava a criação da dita aula a partir do natural:
“Conhecendo os proveitos deste exercício, seguiu-se afeiçoar-se dele; e sabendo
que Portugal, entre as potências civilizadas era a que unicamente carecia de uma
aula onde se desenhasse pela natureza nua, se deliberou a fundar uma sociedade
para este fim; e teve o zelo de ir pessoalmente buscar os artistas que julgou
poderiam regular estes estudos, e convidá-los para directores. Não parou aqui o
seu desvelo: enquanto se preparava casa para este congresso, sacrificou a sua
própria residência a ser o primeiro seminário deste estudo. [...] Enquanto na sua
casa se fizeram estes exercícios, ele mesmo assistiu todas as noites, tratando, e
brindando os aplicados com afabilidade, e familiaridade não vulgar em pessoas
de seu carácter” (1787: 9, 10).
Neste mesmo discurso, lido a 24 de Dezembro de 1787, na Casa Pia do
Castelo de S. Jorge, Machado de Castro apontava as inúmeras virtudes do desenho e
das possibilidades desta arte no estudo das outras ciências. Fundava-se uma
justificativa para a presença do desenho em qualquer tipo de ensino ou ramo
científico. O escultor da Casa Real esboçava uma imagem:
“A experiência tem mostrado, a meditação tem desenvolvido as utilidades que
destes estudos resultam ao civil, até mesmo no económico. Para mostrar pois com
individuação estas utilidades, permita-se-me uma paridade, que verse em geral
neste discurso, comparando o desenho a uma frondosa árvore, cujos vigorosos
ramos, viçosas folhas, e falutiferos frutos, se espalham em benefício de todas as
ciências, e artes”. “Das instruções desta faculdade, absolutamente depende o
conhecer da configuração, e beleza de todos os corpos; e ainda de muitas coisas
puramente espirituais, ou intelectuais, quando estas se querem expor aos sentidos
em imagens sensíveis”. “Na matemática estende o desenho um dos seus ramos,
O desenho
343
onde tem não pequena parte; pois que a geometria, a óptica, a perspectiva, e
outras com figuras delineadas se aprendem e se praticam. E se com esta ciência
sublime tem tanta união, quem lhe poderá negar com a física, e história natural?
Considerando a individual aplicação que fazem tão formosas irmãs, sobre
objectos, que a imitação do desenho mais facilmente familiariza; e sem cujo
socorro se não poderiam conhecer, nem estudar-lhes os seus predicados sem um
descómodo inexplicável?” (Castro, 1787: 25, 26).
E o seu discurso continuava pelas outras ciências: medicina, geografia e até
jurisprudência. Estavam ditas as palavras que mais de um século depois seriam
repetidas sob outras formas, para explicar a importância do desenho numa educação
integral do indivíduo. Na década de vinte do século XX, Pedro Guedes, professor de
desenho na Casa Pia, citando outro autor dizia que “‘il y a des gens qui écrivent bien
et d'autres qui écrivent mal, mais il faut que tout le monde écrive. En bien il faut aussi
que toute le monde dessine’”(1921: 393). O mesmo Pedro Guedes afirmava com
convicção que “o desenho, “é a escrita da forma”, “meio de expressão por excelência,
útil em todas as artes e profissões” (1928:6). À discussão sobre a importância do
desenho juntou-se também outro professor da Casa Pia, Palyart Pinto Ferreira. A voz
deste era de lamento face ao lugar que o desenho ia ocupando em pleno século XX,
nos currículos escolares. Surgia “considerado como mero acidente”, como “disciplina
secundária, quando muito mediocremente subsidiária”. Era portanto muito frequente
encontrar quem saísse “das universidades não sabendo pegar num lápis”. Haveria até,
“mercê do mau ensino, uma certa vaidade em não saber desenhar, um certo snobismo
da incompetência neste ramo” (Ferreira, 1920: 341).
No ano de 1885, o Director de estudos da Casa Pia de Lisboa, Simões Raposo,
dirigia ao Provedor um relatório dando conta do desenvolvimento das práticas de
ensino na Instituição. Um dos pontos que considerou interessante chamar a atenção
foi precisamente relativo ao ensino do desenho. Dizia assim:
“‘Noto apenas, que logo na 1ª cadeira não se comecem a ensinar às crianças os
primeiros e rudimentares elementos do desenho, que nos países mais adiantados e
cultos se aprendem conjuntamente com o abecedário’” (Almeida, 1886: 49).
Para colmatar esta grave falta propunha “que o estudo do desenho” fosse
A sala de aula como laboratório…
344
“dividido em 3 grupos: preparativo, industrial elementar e aplicado”. O primeiro
estudar-se-ia na 1ª e 2ª cadeiras, o segundo na 3ª, 4ª e 5ª cadeiras e o terceiro na 6ª
cadeira. Desta nova organização do plano de estudos resultariam pelos menos duas
vantagens. Quando os alunos passassem a frequentar a aula de desenho elementar, já
teriam pelo menos dois anos de “alguma firmeza de vista e de mão”, sendo por isso
“notável o seu adiantamento”. A segunda vantagem era que de “futuro nenhum
aluno” sairia da Casa Pia “inteiramente estranho a esta disciplina, que lhes é tão útil
nas artes e ofícios a que se destinem” (Almeida, 1886: 68, 70).
Todavia, sempre os alunos surdos tiveram nos seus currículos na Casa Pia de
Lisboa, a disciplina de desenho. Num quadro de distribuição dos alunos pelas
diferentes aulas e oficinas referente a 1839, encontra-se em frequência de aulas de
desenho, dezasseis alunos internos da Casa Pia e 15 alunas orfãs. No primeiro grupo,
dos dezasseis, cinco seriam surdos. No segundo, eram quatro as meninas surdas
entregues à prática de desenhar. O desenho era “um dos ramos profissionais a que de
preferência se dedicavam os surdos-mudos na Casa Pia” (Silva, 1896: 119, 123). Esta
era, aliás, uma imagem padrão das ocupações para que tendia o aluno surdo. Num
compêndio para o ensino dos surdos-mudos, dado à estampa em 1881 no Rio de
Janeiro, pode ler-se que uma disposição particular que notabilizava o surdo era a sua
inclinação “em imitar tudo” o que visse “fazer”. Além da emulação, os surdos
distinguiam-se mais do que os ouvintes “nos trabalhos” que dependessem “da vista”.
Era assim, por exemplo, que aprendiam “com facilidade a traçar todas as espécies de
caracteres e a desenhar” (Leite, 1881: 6).
O saber que se ia constituindo sobre o aluno surdo espelhava-se nos discursos
da pedagogia, considerando-se então que estes alunos, estando privados do ouvir e
vivendo essencialmente pela visão, seriam mais facilmente governados a partir de um
treino intenso do sentido visual. A utilização do desenho permitiria ao aluno
evidenciar um sentido das coisas a partir do reconhecimento sensível que delas teria.
Desenhava o que compreendia pela observação atenta de objectos. O desenho como
forma de apreensão da realidade e compreensão dos objectos ou fenómenos não era,
obviamente, uma novidade. Antes do aparecimento da fotografia, já Leonardo da
Vinci demonstrava a importância da fabricação da imagem para o desenvolvimento
do pensamento: para saber era preciso ver, sendo que desenhar sem saber ou saber
sem ver eram estados infrutíferos. Aprender a observar para captar a verdade dos
O desenho
345
objectos continha em si múltiplas potencialidades disciplinares. Os discursos de
governo dos indivíduos encontraram, no elenco de disciplinas de carácter manual e
artístico, um vasto conjunto de possibilidades de regulação adestrante, mas
simultaneamente a possibilidade de um campo de liberdade também ela regulada. Tal
como o campo dos trabalhos manuais, também o de desenho se constituía como
instrumento de um poder que antecipava a autoconstrução do aluno. Para além de que
o desenho funcionava como instrumento de interpretação da criança. Palyart
afirmava veementemente que “o desenho” era, “sem dúvida”, “a forma mais simples
e talvez mais segura de investigar a mentalidade infantil”. E não só “a forma de o
fazer”, mas “a maneira de segurar no lápis, o desenvolvimento do traço, o
acabamento do próprio desenho”. Era evidente que nem todas as crianças segurariam
no lápis de igual modo. “Umas tomam-no muito levemente, com as extremidades dos
dedos; outras seguram-no simplesmente entre o meio do indicador todo dobrado e a
parte mais interna do polegar, apertando-o violentamente; algumas entre o médio e o
indicador, repousando a parte superior do lápis na ligação do indicador com o
polegar”. Ora, havia que interpretar estas formas divergentes de relação do eu da
criança com o material riscador. O lápis não era um qualquer objecto, com o qual a
forma de pegar não tivesse qualquer influência: um lápis produz um efeito sobre a
superfície em que desliza, logo, apercebendo-se da intervenção provocada sobre uma
superfície, a criança decerto insuflaria de vontades o seu gesto. “O traço seguido, o
traço falhado, o traço tremido são indícios de normalidade ou anormalidade, são
seguras determinantes de mentalidades e aptidões”. O desenho assumia portanto um
papel importante como fonte de investigação para o médico e educador. Não seria,
então, também o desenho “um meio de avaliar” a “vontade” do aluno, fosse normal
ou anormal, “o seu poder de querer, de volição? ‘Querer é escolher para agir’, como
diz Ribot: quando a impulsão falta (caso dos apáticos) nenhuma tendência a agir se
produz; quando a impulsão é muito rápida ou intensa (caso dos instáveis, dos
excitados), a escolha, por impedimento, não se realiza: - e em qualquer dos casos é o
desenho incompleto, com os elementos mal dispostos, braços mal implantados, pés
virados para o mesmo lado com o boneco de frente, falta de boca, nariz, braços, etc.”.
(Ferreira, 1930b:8, 9). O desenho livre deveria ser cultivado principalmente junto dos
mais novos, desenvolvendo as faculdades de imaginação e sendo material útil de
observação do professor.
A sala de aula como laboratório…
346
Por certo o desenho se enquadrava no princípio que Maria Montessori
defendia de um sistema educativo “filosófico-físico-psíquico, tendo por objecto o
corpo, o espírito e o coração da criança, a quem se pretende preparar para uma
autoeducação que vise o quádruplo ponto de vista físico, intelectual, social e moral”
(Rosa y Alberty, 1917: 313). E a disciplina de desenho caminharia próximo do
interesse do aluno surdo, configurando-se como uma tecnologia útil do ponto de vista
da vinculação e adesão voluntária da criança à actividade escolar, como também
enquanto estratégia utilizada pelo professor noutros domínios:
“Os alunos mostram logo grande interesse por um desenho bem acabado e não só
procuram reproduzi-lo, mas ainda se exercitam a fazer outros”. Como elementos
bem programados de uma máquina de fazer. Aproveitasse-se este ensejo natural
do aluno como auxiliar na sua educação. O recurso ao desenho era prática
constante entre os professores de surdos “não só para lembrar um objecto ou
facto ausentes do alcance da vista, mas ainda para dar noção exacta de uma acção
ou de uma série de acções, de cenas complicadas” (Fusillier, 1893 397).
Se o aluno se esquecesse do significado de ilha, paisagem, ou qualquer outro
conceito, em vez de “longos períodos explicativos” o professor executaria “a traços
largos na pedra ou no caderno” o desenho respectivo. Progredindo cada vez mais na
assimilação da realidade, o próprio aluno poderia “recapitular sumariamente pelo
desenho um facto, ou uma série de factos estudados na aula”. Além do auxílio no
estudo, “o desenho tem ainda para o surdo-mudo uma importância não menor”:
“proporciona-lhe distracções muito agradáveis e assegura-lhe um futuro certo
preparando-o vantajosamente para a pintura, a escultura e a gravura”, artes que de
resto “os surdos-mudos ilustraram e ilustram brilhantemente” (Fusillier, 1893: 398).
As vantagens da cadeira de desenho eram evidentes do ponto de vista
profissional e, claro está, contribuiriam para o desenvolvimento da sensibilidade e do
intelecto do educando. No cerne dos objectivos da disciplina, marcaria sempre
presença o desenvolvimento de um habitus de observação, de vinculação a uma tarefa
e de superação constante das dificuldades de representação por um empenhamento
ainda maior do aluno. De facto, não se pode negar o proveito que o restante elenco de
disciplinas poderia grangear com o trabalho que o educando dispendia na cadeira de
desenho. No artigo número nove das Instruções Escolares da Real Casa Pia de
O desenho
347
Lisboa, de 1869, aparece de forma explícita que “ os Srs. Professores ” desta Casa
deveriam “ compenetrar-se bem de que os alunos ”, “ destinados pela maior parte às
artes e ofícios ”, precisavam “ duma instrução real e não aparatosa ”. Mais se dizia:
“ que o fim exclusivo do ensino neste estabelecimento ” deveria ser “ mais praticar
que definir – mais compreender que decorar ” (Raposo, 1869: 28, 29). Poucos anos
antes, o grande reformador da Casa Pia, José Maria Eugénio de Almeida,
compreendia o desenho num contexto prático “‘mas congruente com as aplicações
que deve ter nas futuras aplicações dos alunos’”. A educação literária, defendia-a
“‘tão extensa e perfeita’”, quanto fosse possível. Uma educação primária seria o
“‘melhor meio de educar’” “‘mancebos, que tenham aptidão e préstimo para todas as
carreiras laboriosas e modestas, que possam aceitar sem desdém, logo que” da Casa
Pia saíssem. Deveriam ser “cidadãos prestantes nas artes, ofícios e indústria,
regenerando pelo seu exemplo a sociedade, engrandecendo-se a si, e dando honrosa
memória à casa, que lhes servira de amparo” (Almeida, 1886: 54). Desviar o ensino
da Casa Pia de uma vertente prática e que possibilitava aos alunos uma preparação de
base para diversas artes e indústrias, “pretender engendrar doutores […] em lugar de
operários distintos e famosos”, gastar somas avultadas para o proveito de muito
poucos, seria “falsear a natureza desta benéfica instituição, e preparar um futuro
infeliz àqueles, a quem na melhor intenção se desejava proteger” (Almeida, 1886:
62).
Na Casa Pia de Lisboa podemos perceber diferentes posicionamentos
relativamente à prática do desenho durante o século XIX e primeira metade do século
XX. Todavia, não me parece que existam grandes rupturas, apenas transformações
que no seu âmago transportam as mesmas tópicas: o governo e o autogoverno dos
alunos, um adestramento da mão e do olho por um domínio de uma vontade interior,
uma autoconstrução do conhecimento. Visitaremos de seguida alguns processos de
fazer o gesto de debuxar.
O professor começaria por traçar “ linhas rectas no quadro preto ” e a classe
teria de lhe copiar o gesto nas ardósias pessoais. Este exercício seria reproduzido até
que nos traços dos meninos não se notasse hesitação alguma. A assertividade da linha
e a execução “ regular ” ditariam a passagem à aplicação prática. Já se vê, que o que
estava em causa era a incorporação inconsciente de uma vontade de superação
individual. A tarefa mimética do aluno em relação ao mestre fazia o pequeno pupilo
A sala de aula como laboratório…
348
aplicar-se afincadamente, pois os resultados obtidos, mais do que fruto do génio
artístico, eram-no do trabalho de concentração em face do modelo. Todavia, não
julgue o leitor ou a leitora, que o aluno concentrado na matéria de observação,
haveria desde cedo conseguir desenhar qualquer objecto. A graduação e
complexidade dos exercícios, de acordo com o que as ciências psicológicas viriam a
afirmar veementemente em inícios de 1900, teria de se adaptar ao desenvolvimento
mental dos educandos. Da classe, é claro, mas também de cada um, individualmente.
A jornada iniciava-se do fácil para o difícil, do mais simples para o mais complexo,
das formas conhecidas para formas novas. Era evidente que se “ todos os caminhos ”
iriam “ dar a Roma ”, o mais curto, porém, era só um: “do fácil para o difícil ”
(Raposo, 1869: 165). Anunciava-se aqui uma preocupação crescente com um ensino
individualizado, que tomava a criança na sua identidade individual, com
características, desenvolvimento e capacidades diferentes das restantes crianças da
classe.
O pedagogo José Miguel de Abreu, no manual de Exercícios de desenho
segundo os programas de 18 de Outubro de 1902, propunha para o 1º grau e 1ª classe
um programa da seguinte forma organizado: “cópia nas ardósias, quadriculadas ou
ponteadas, ou em papel a lápis comum, dos exemplares formados por linhas rectas
em diferentes posições, horizontais, verticais, oblíquas, cruzadas em diagonal, etc.
Exercícios caligráficos”. Igualmente para o 1º grau, mas agora para a 2ª classe
desenvolvia-se assim o programa: “Os mesmos exercícios da 1ª classe, com relação a
desenhos formados pela combinação de linhas rectas e curvas ou só de linhas curvas.
Cópia de estampas representando objectos de uso comum. Exercícios de caligrafia”
(1903:4).
Em 1873, o ensino do Desenho industrial na Casa Pia de Lisboa organizava-se
em três anos. O programa do 1º ano compreendia “ problemas geométricos e de
curvas ” e a sua exploração na aplicação prática. Estas construções poderiam originar
“ balaustres, balaustradas, mosaicos, molduras simples ” ou “ compostas ”,
representações enquadradas na “ ordem toscana ”, projectos para o espaço “ entre
colunas ”, “ pórticos, ornatos ” ou “ contornos ”. O 2º ano deveria acontecer como
aprofundamento do primeiro. Desenhos de elementos de acordo com a “ ordem
dórica ”, espaços “ entre colunas ”, “ pórticos, projecções, intersecções, perspectiva,
hélice ”, “ portas interiores ” e porta Batarda ”, “ janela de volta ”, “ madeiramentos
O desenho
349
de diferentes géneros ” e aguadas quer nas “ molduras compostas ”, quer nos
“ entablamentos da ordem Toscana ”. No último ano, exigia-se que o aluno aplicasse
o desenho industrial à “ cinemática ” e que se dedicasse ao estudo das engrenagens
com “ haste dentada ”, “ de duas rodas ”, “ interior ”, “ cónica ” e às “ engrenagens de
uma roda e de um parafuso sem fim ”. O conteúdo curricular abrangia ainda o saber
dos “ orgãos principais de uma máquina de vapor ”, a observação e representação
gráfica de elementos diversos: “ roldana, cone de transmissão, manivelas, excêntrico,
biellas, pendulo, junção das chapas de ferro (tole), cavilhas de diferentes tipos ” e
“ chumaceiras ”. A representação de sombras produzidas por diversos sólidos, era um
exercício comum e que ajudaria o aluno no momento de observação de outros
modelos. Do terceiro ano, o educando não deveria sair sem experimentar a realização
de uma “ aguada sobre um parafuso de rosca quadrada ” e sobre “ uma roldana com
moufle ”, sem perceber o que era uma “ bomba de esgoto ”, “ uma máquina
locomotiva ” ou a “ junção de um locomóvel com um moinho portátil ”. As lições
incorporavam, portanto, uma componente prática de aplicação directa em futuros
ofícios. A verdade é que, um programa com a especificidade do que era apresentado,
contava com arranjos temporais e físicos devidamente organizados. De outra forma,
não seria possível formar os “ hábeis desenhadores ” que saíam da instituição (Neves,
1873: 10, 11, 12, 17).
O programa de ensino de desenho industrial da Casa Pia de Lisboa de 1886
compreendia, para o primeiro ano, desenho à vista e conhecimento geral das figuras e
sólidos geométricos. No desenho à vista era considerada a representação “a simples
contorno” de “sólidos geométricos pelo gesso”. Também a partir de modelos de
gesso, o “ornato” com “indicação de sombra” e “objectos de uso comum”. O segundo
ponto do programa desenvolvia-se tendo por base “lições orais e desenho gráfico
sobre linhas, ângulos, triângulos, quadriláteros, polígonos, círculo e circunferência,
óvulo espiral, prismas, pirâmides, cilindros e esfera”. Após um treino intensivo desta
panóplia de formas o aluno estaria apto a ingressar no segundo ano e a estudar
problemas geométricos mais complexos. O discurso curricular entrelaçava-se por
entre traçados rigorosos de “linhas perpendiculares e paralelas”, “ângulos” e “divisão
de rectas”, “divisão dos ângulos e divisão da circunferência”, “tangentes”, “polígonos
regulares inscritos e circunscritos”, “planificações”, etc. As projecções entravam
também no plano de estudos e lá se via o educando a braços com a imaginação para
A sala de aula como laboratório…
350
determinar “o ponto no espaço”, para visualizar as projecções da recta e a sua posição
relativamente aos planos de projecção, o mesmo para figuras e para sólidos, bem
como para as “secções e penetrações dos sólidos”. Do primeiro para o segundo ano
de desenho industrial os objectivos tornavam-se mais rigorosos, exigindo do
educando uma aplicação profunda. O seu pensamento era direccionado para a
tradução da realidade por meio dos sistemas rigorosos de representação geométrica.
Contava ainda com a perspectiva cavaleira, linear rigorosa e decerto o seu intelecto
começaria a estar preparado para receber mais “noções”: “quadro, ponto de vista,
raios visuais, plano geometral, linha de terra, linha do horizonte, pontos de distância,
ponto principal, plano perspectivo e escala de fuga”. Os exercícios tornavam-se
essenciais no treino desta nova linguagem gráfica com tantas vantagens para a futura
profissão do aluno. Contudo, não se reduzia a preparação no desenho industrial a uma
monocromia de intersecção de linhas e de pontos sobre o papel nem a um repetitivo
abrir de compasso e ajustes na marcação de ângulos. As “aguadas, tons, cores e tintas
convencionais” lá estavam sob a forma de “regras”, de “estudos” e de “exercícios”,
“conhecimento das cores e suas combinações”, “representações de diversos
materiais” pelo recurso exclusivo à cor. O ornato prescrevia-se “pelo relevo”,
devendo resultar pelo desenho à vista em composições de “claro-escuro, empregando
o lápis conté branco e preto” e igualmente “por meio de aguadas”. O terceiro ano
completava-se com elementos de arquitectura, de máquinas, novamente estudo de
ornato devendo agora o mestre proporcionar a representação de “folhas, flores e
frutos empregados na ornamentação”, treinando estilizações, reproduzindo os temas
mais usados na arquitectura e sugerindo novas combinações “de linhas e
interpretação de esbocetos”. De novidade, o programa apresentava ao aluno a
topografia e a agrimensura. A tudo isto o quarto ano acrescentava a modelação,
“exercícios com modelo à vista, exercícios de invenção” (Almeida, 1886: 92-94).
Tantas vezes o aluno se teria treinado na reprodução que, ao saber fazer igual, se
pedia o saber fazer diferente, quer dizer, por si, sem muletas auxiliares de cópia.
O desenho
351
Uma classe de desenho elementar
(A Ilustração Portuguesa de 8 de Abril de 1907)
Nenhuma aula nos devolve uma imagem de participação activa da criança na
elaboração dos seus próprios conhecimentos como a de desenho. No ensino especial,
“o desenho” teria a “maior importância” e deveria ser “praticado em larga escala e
com particular atenção”. Seria, evidentemente, um precioso auxiliar do professor no
processo de interpretação e constituição de um saber sobre o aluno e, para as crianças,
“um meio favorável à exteriorização dos seus pensamentos e dos seus
conhecimentos”. Sendo reduzido o vocabulário inicial de um aluno surdo, a
expressão gráfica e simbólica de ideias através de figuras esboçadas constituía-se
como uma forma universal de comunicação. O desenho constituía mesmo “uma
necessidade na vida das crianças surdas. Todas” desenhavam “muito” e sentiam
“prazer nessa actividade”. À escola exigia-se, portanto, que estimulasse
“constantemente esse interesse levando estas crianças a desenharem em todas as
oportunidades” (Amaral, 1954: 56).
Todavia, será também difícil achar códigos disciplinares tão incrustados na
pele dos alunos como os que são necessários para a participação nestas lições. A
imagem acima apresentada, de uma classe da Casa Pia num exercício de desenho à
vista, é reveladora de corpos e espíritos disciplinados. Na postura e na atenção. O
grupo é composto por alunos de idades semelhantes, uma classe, portanto. Cada
criança ocupa disciplinadamente um espaço e um tempo que lhe destinaram.
Materiais necessários seriam, segundo Abreu e para a 1ª classe e 1º grau, “caderno de
desenho”, “lápis comum, que deve ser o de nº 2”, devidamente afiado, “canivete, que
A sala de aula como laboratório…
352
basta ter uma folha, devendo esta estar bem afiada” e “goma elástica (borracha), que
deve ser macia”. “Os exercícios” poderiam “ser feitos primeiramente nas ardósias,
que” deveriam “ser quadriculadas como o caderno de desenho. Para a execução dos
exercícios na ardósia” deveria “empregar-se o giz, ou a pena de ardósia artificial. A
pena de ardósia natural é imprópria para exercícios de desenho” (1903: 5, 6). Na
imagem acima, a tarefa seria desenhar um conjunto de sólidos devendo a
representação estar concluída no final da lição. O espaço em que ocorre a aula, na
qual se mostra a ausência do mestre, é semelhante a um laboratório ou a uma oficina,
com uma grande mesa de trabalho que homogeneiza o espaço. A não presença do
professor sublinha a disciplina e autonomia dos alunos casapianos que, sozinhos,
manifestavam a capacidade de cumprir os exercícios propostos. Parece ser essa a
aparência de verdade a que a imagem dá acesso.
Vale a pena aclarar a experiência iniciática de um aluno da Casa Pia com a
disciplina de desenho elementar, durante a segunda metade do século XIX. Os
primeiros dias seriam atribuídos às “ noções gerais de desenho ”, à técnica de
observar os corpos, de lhes medir as distâncias, as grandezas, o aspecto, a forma e a
posição. Estes princípios iriam reger qualquer esboço, tornando-se tão presentes e tão
familiares, que se diria quase colados à visão do aluno. Contudo, esta racionalização
demorava o seu tempo. Havia a fase da ardósia quadriculada, destinada a “ fazer a
mão ” do educando, que não poderia ser de longa duração não fosse este habituar-se a
“ ter a mão pesada ”. Era este, também, o momento do professor desenhar na ardósia
grande e preta, as linhas ou os desenhos mais fáceis, analisando-os e descrevendo-os
para que o aluno fosse incorporando e fixando as regras. De seguida, era o momento
do “ papel mui delgado ”, que impedia o pupilo “ de apagar por muitas vezes, com a
borracha ”. Nem tudo, no entanto, se poderia exigir a um novo praticante da arte de
desenhar e, era assim que se facultava aos alunos “ umas pautas quadriculadas em
proporção com os modelos ”, com a finalidade de as colocarem sob a folha de
trabalho ” (Neves, 1873: 9). Havia uma série de preceitos que o aluno aprenderia a
aos poucos dominar:
“Posição do caderno de desenho. - O caderno de desenho deve ficar com os lados
mais pequenos voltados para o aluno. Esses lados deverão ficar na direcção das
bordas da mesa, como se mostra na fig. 2ª. O caderno de desenho (C, na fig.)
O desenho
353
nunca deve deixar de ocupar a posição indicada. O aluno observará que a posição
do caderno de desenho é diferente da do caderno de escrita” (Abreu, 1903: 6).
A posição do caderno Modo de afiar o lápis
(Abreu, 1903) (Abreu, 1903)
Já Palyart, no século XX, esboçava o seu método introdutório com crianças
anormais. Começaria o ensino do desenho pelo “calque e contorno de figuras
geométricas simples”, a primeira de entre elas seria o círculo pela sua facilidade. Por
último viriam as figuras não geométricas como a “representação de figuras de
animais, plantas, etc.”. A estes exercícios haveria que juntar outras actividades que
não eram estanque dos trabalhos manuais, ou seja, o recorte e a colagem. O aluno
recebia do professor “desenhos simples, bonecos semelhantes aos que a criança
normal executa livremente” e que deveria observar e copiar (Ferreira, 1917: 294).
Estes elementos seriam referência para aqueles a quem faltava a capacidade de à
primeira, fazer igual aos outros. A cópia “que muitos desdenham mas ninguém
substitui”, tinha o seu fundamento “no alto princípio da imitação, a grande, e talvez
única, alavanca de toda a educação”. O esforço do aluno na execução do projecto
seria reclamado como um “apelo ao seu amor próprio, à sua combatividade”
(Ferreira, 1917: 296).
A necessidade do desenho quase me apetece dizer que era universal. Todos,
“homens e mulheres, têm necessidade do Desenho, todos dele se utilizam”. A ligação
A sala de aula como laboratório…
354
desta disciplina aos restantes saberes tornava-se evidente e só não a via, quem não
queria. “O carpinteiro”, “o pedreiro”, “o alfaiate”, “o negociante”, “o proprietário”,
“o matemático”, “o sábio de toda a espécie” teria no desenho uma ferramenta
essencial. Impunha-se mostrar ao aluno o alcance da prática de debuxar e, para isto,
nada mais eficaz do que colocar à sua vista as imagens.
“Desenhos simplicíssimos deverão estar na aula, tais como: modelos de objectos
artísticos, janelas, portas, bancos, mesas, e muitos outros objectos em que
somente se empreguem as linhas rectas, e todos do conhecimento das crianças.
Linhas curvas. Imitação de pequenos desenhos que podem ser feitos, ao princípio
como exercício de calcar” (Raposo, 1869: 165, 166, 167).
A propósito de um conjunto de desenhos de alunos da Casa Pia enviados em
1873 a uma Exposição em Viena de Áustria, a Administração fez acompanhar os
trabalhos, de esclarecimentos sobre a natureza do ensino do desenho na instituição.
Embora se verificasse uma preocupação com o fazer da mão e com a representação
realista de objectos, a verdade é que, se falava já em adestrar a mão e afinar o olho,
“sem fadiga demasiada” e com “modelos bem graduados”, num trabalho progressivo
de conquista das formas que haveria de resultar exactamente nas “dimensões dos
objectos que os modelos” representavam. E quanto a estes modelos que serviriam à
aprendizagem do desenho na instrução primária, logo no 1º grau, eram
propositadamente concebidos para serem observados e esboçados pelos alunos. Nesta
medida, ajuizava-se a importância de exercícios graduados de acordo com o grau da
classe e da vocação eminentemente prática do ensino desta cadeira. Os modelos, que
se contabilizavam em 89, compunham-se de “diferentes linhas e figuras geométricas,
de objectos de uso geral, de ferramentas de diversos ofícios”, entre os quais os de
“carpinteiro, marceneiro, canteiro, serralheiro” ou “hortelão” (Neves, 1873: 6, 7).
As lições de desenho, e isto passava-o para a escrita já na década de vinte do
século XX, o professor Pedro Guedes da Casa Pia de Lisboa, estavam longe de
representar um “fardo” para professores ou alunos se, – e aqui viria a fórmula mágica
do pensamento da escola moderna –, constituíssem “ um agradável exercício ” no
menu de disciplinas apresentado ao educando. Quanto a métodos de ensino da
disciplina, não adiantava este autor, nenhum que fosse ideal. O importante é que fosse
O desenho
355
“ pedagogicamente orientado ” e “ baseado nas tendências naturais da criança ”. Na
escola primária o desenho seria “ a vida do ensino ” (Guedes, 1928: 3, 8).
Apresentado nesta perspectiva, pode dizer-se que o desenho, tal como vimos com os
trabalhos manuais, chegou à escola e bateu-se sempre pelas suas vantagens
educativas no desenvolvimento de cada aluno e, também, pela sua particular
maleabilidade interdisciplinar. Para as lições de coisas, a sua utilidade era imensa,
suprindo as insuficiências de uma explicação verbal ou, no caso das crianças surdas,
conectando directamente ao mundo de outras imagens que constituíam a sua
experienciação visual do mundo.
“ É por isso que o bom professor apresenta primeiro o objecto que representa a
ideia, que deseja transmitir aos seus discípulos, se isto não é possível mostra-lhes
em relevo em estampa, ou desenhada no quadro preto a sua imagem; se ainda isto
lhe não é possível recorre à analogia que esse ser tem com outros, e faz nestes
notar quanto há de semelhante, e, substitui, se lhe é possível, o que é
dissemelhante; e só quando nenhuma destas intuições pode empregar é que
recorre à descrição; a qual ainda assim faz com que seja revestida de mil imagens
vivas, de mil comparações apropriadas. Eis aqui a utilidade do desenho para os
alunos, e como nas mãos do professor se torna um instrumento poderoso da arte
espinhosa e difícil de ensino ” (Raposo, 1869: 165).
Em 1920, o ensino do desenho continuava a ser obrigatório no percurso
escolar das crianças surdas da Casa Pia. A relação desta disciplina com a vida prática
desenvolvia-se agora de forma mais acentuada. Os alunos deveriam frequentar não
apenas as aulas de desenho elementar mas, também, as de desenho industrial. Estas
duas vertentes da cadeira de desenho estavam já traçadas em pleno século XIX. O
nosso olhar será agora direccionado para os primeiros trinta anos do século XX e
conduzido pelos discursos sobre o desenho de dois professores da Casa Pia de Lisboa.
Tanto Pedro Guedes quanto Palyart Pinto Ferreira lutaram pela presença do desenho
nos currículos escolares, desde a entrada da criança em qualquer instituição de
ensino. Discorreram sobre vantagens e métodos a empregar, por vezes manifestaram-
se contra processos de ensino anteriores e mesmo os do seu tempo que, ao invés de
aproximarem o aluno desta prática, o afastavam pelo desinteresse que gravavam nas
suas metodologias. Era assim que o passava para o plano da escrita Palyart:
A sala de aula como laboratório…
356
“São as consequências do emprego da quadrícula e do papel estigmografado, há
muito imperando entre nós, o uso da estampa de traços incompreensíveis,
representando objectos que a criança não pode ver. É o desinteresse, o
aborrecimento natural e, daí, a convicção de que o desenho necessita um esforço
enorme que não merece, e é falho de utilidade” (1920: 341).
No seu tempo, reflectia o professor, ensinava-se o desenho “como nos meados
do século passado”, isto quando não se ensinava muito pior. Os traços originais de
Ravaisson ou de Dupuis apagavam-se e davam origem a sucedâneos de má qualidade
e “deficientes”. Tal como nas restantes áreas do saber, também no desenho a “base
fundamental” “deveria encontrar-se no estudo completo da psicologia infantil”
(Ferreira, 1920: 341, 342). Só mapeando o interior do aluno, o mestre saberia
exactamente o que lhe propor e o que esperar do seu desempenho. A autoconstrução
do educando estruturava-se a partir do seu núcleo de interesses, mas também das
disposições naturais, mentais ou físicas, para a execução de tarefas num determinado
período do seu crescimento. As palavras deste autor acabam por confluir na mesma
temática disciplinar daqueles que tinham na rede stigmográfica a orientação das suas
práticas, o que era sujeito a um zoom, era a figura do aluno, por dentro e por fora,
dividindo-o agora entre o seu nível e capacidade de acção espontânea e as práticas
adestrantes. Trata-se, obviamente, de produzir sobre o aluno um saber que permita o
seu governo e o seu autogoverno.
Quanto a metodologias a adoptar, os dois professores da Casa Pia não se
centravam em nenhuma em particular, antes viam na sua utilização simultânea um
caminho a explorar. Cópia pelo natural, desenho geométrico ou desenho a partir da
estampa não seriam necessariamente excludentes uns dos outros. O bom senso ditava
que a melhor opção era a que retirava de cada um, os aspectos mais positivos e mais
de acordo com o espírito da criança e com a sua formação para o futuro. Palyart
considerava a geometria, “só por si”, “insuficiente, fatigante, desinteressante”, mas “a
cópia excessiva da estampa” seria de “um servilismo baixo e sem valor de maior” e
quanto à cópia do natural, “simplesmente, não basta”. Ligadas as três formas atingir-
se-ia um ponto de equilíbrio, “um conjunto harmonioso e de perfeito acordo com a
curiosidade e actividade infantil” (1920:342). O que interessava afinal no desenho?
O desenho
357
Ora, segundo Pinto Ferreira era “o adestramento das células motrizes, e a educação da
emotividade que as sensações estéticas originam” (1920: 345). A satisfação completa
destes dois pontos não seria nunca obtida pela consideração mónada de cada uma das
perspectivas. O segredo estava na sua união perfeita. O aluno seria levado, sem
coacções, a produzir tal como se pretendia que produzisse:
“É preciso adestrar a célula, levá-la a produzir como é necessário que produza,
quando excitada convenientemente, fazê-la trabalhar de uma forma determinada,
consoante o seu estado de desenvolvimento ou atraso, e em harmonia com o
funcionamento da célula sensível respectiva” (Ferreira, 1920: 345).
Visitaremos agora um Relatório de 1921 dirigido por Pedro Guedes à
administração da Casa Pia, que funcionava como um “esboço de revisão dos
programas do ensino de desenho geral e profissional”. O professor de desenho falava
em atingir “resultados mais práticos e menos fictícios”. Ao distribuir os programas
pelas diferentes classes não era sua intenção adoptar um método único. Quanto ao
método geométrico, Pedro Guedes não se manifestava contra, dizia aliás que, quando
os elementos da geometria fossem “estudados pela forma atraente e verdadeiramente
intuitiva que nos apresenta Mme L. Artus Perrelet no seu livrinho ‘Le dessin au
service de l'éducation’”, poderiam e deveriam “constituir um dos primeiros
componentes de um bom programa do ensino de desenho, mormente quando esse
ensino tende a seguir uma orientação acentuadamente profissional”. Corroborando a
sua ideia, colocava uma citação de um outro autor que dizia: “‘Il semble tout d'abord
nécessaire de discipliner l'imagination de l'enfant, en lui donnant les premières
notions de la géometrie tout en lui laissant la faculté de reproduire des choses et
objets trés simples”, em cujas faces o aluno deveria inscrever uma figura geométrica
igualmente simples: “‘triangles, carrés, circonferences, etc.’” (1921:391-393).
Também Palyart juntava argumentos defendendo a presença do método geométrico
entre as crianças. Tudo o que haveria a fazer era animar “convenientemente” a figura
geométrica de modo a esta agradar ao aluno. Um aluno motivado seria absorvido no
trabalho, autodisciplinando-se na execução gradual de tarefas, e encontrando no seu
aperfeiçoamento e domínio técnicos o motor de conexão ao desenho. Para mostrar o
quanto o método geométrico estaria de acordo com a natureza infantil, Palyart
A sala de aula como laboratório…
358
lembrava os “primeiros desenhos”, os “primeiros bonecos” da criança que tanto
possuíam de geométrico (1920: 342, 343).
E do ponto de vista profissional, também o desenho cotado merecia especial
atenção e cuidado:
“Ao ‘desenho cotado’, que é o desenho industrial por excelência, deve dar-se o
máximo desenvolvimento e aplicação, iniciando-se nas classes elementares,
porque, diz Réné Leblanc: ‘savoir exécuter un dessin industriel et le livre
intelligemment, constitue une des parties fondamentales du bagage technique du
bon ouvrier, l'ouvrier d'élite moderne’”(Guedes, 1921:393).
Porém, nada substituiria o desenho de imitação ou desenho à vista ou ainda os
desenhos de memória, “esboçados rapidamente”, de grande alcance em termos
educativos, “porque assim” os alunos se iriam “habituando ao traçado de ‘croquis’,
tão necessários em todas as profissões” (Guedes, 1921: 393). Ir-se-iam habituando
igualmente a prestar atenção aos diversos pormenores dos objectos, educavam a vista
e desenvolviam as suas capacidades intelectuais, de análise e de síntese. Já se vê que
o desenho enquadra por completo na perspectiva de governamentalidade. O método
stimográfico como um treino intensivo e rigoroso, implicando por parte do aluno
grande aplicação ao trabalho em execução, começava agora a ser posto em causa, mas
mesmo esta rede, composta por linhas traçadas horizontal e verticalmente nos
cadernos de desenho ou nas ardósias, “sustentava” já “o desejo de criar um ensino de
tipo intuitivo”. É como se uns métodos apontassem circularmente para outros em
termos disciplinares. Libertava-se agora o aluno da quadrícula do papel e pedia-se-lhe
que a incorporasse na visão, quando se lhe dava a rede era para que fizesse tantas
“vezes igual até começar a fazer diferente” (Ó, 2003: 249). Os desenhos de memória
ou os esboços rápidos conduziam a um cenário de autogoverno do aluno,
manifestando o educando nos poucos minutos que lhe eram cedidos para a realização
de croquis todas as suas virtualidades manuais. A mão haveria de obedecer à vontade.
Neste Relatório, Pedro Guedes expressava ainda a impossibilidade de uma
boa aula de desenho sem o recurso a bons modelos. As inúmeras deficiências “quanto
a exemplares de flora e de fauna”, poder-se-iam remediar “ criando um jardim (ou
viveiro?) especialmente destinada a fornecer elementos para os exercícios de desenho
O desenho
359
e modelação, e organizando-se um pequeno ‘museu de história natural’, anexo à aula
de desenho, para onde passariam desde já alguns exemplares, devidamente escolhidos
do ‘Museu escolar’ deste estabelecimento” (1921: 393). Outros modelos poderiam ser
obtidos pela Casa Pia, por oferta ou por requisição, junto de outras instituições como
o Museu da Antiga Escola Politécnica ou o Museu de Etnologia. O que estava então
em causa era o desenho pelo natural. Nesta área, encontramos um forte apologista do
método, em Rousseau. Como ensinar a uma criança o modo de “bem avaliar o
comprimento e a grandeza dos corpos”, se não se lhe ensinasse “a conhecer as figuras
destes e mesmo a desenhá-las”? Não era decerto a aparência dos objectos que
proporcionava ao aluno as faculdades de o conhecer. “Porque, no fundo, esse desenho
só pode ser feito segundo as leis das perspectivas; e não se pode avaliar o
comprimento pelas aparências se não se tiverem algumas ideias sobre essas leis”.
Como “grandes imitadoras”, “todas as crianças” gostariam “de desenhar”, mas esta
era uma arte que o perceptor de Emílio não haveria de deixar que se desenvolvesse
“em si”. Alguns fundamentos deveriam construir o desenvolvimento da técnica de
representação, a “vista” tornar-se-ia “justa” e a “mão flexível”. Não era tanto a
execução de tal ou de tal exercício que contava, mas a aquisição da “agudeza do
sentido e o bom hábito do corpo que se consegue através deste exercício” (Rousseau,
1990: 148). Por único mestre Emílio haveria de ter a natureza e por modelos os
objectos que esta lhe oferecesse à vista:
“Quero que tenha, sob os olhos, o próprio original e não o papel que o
representa; que esboce uma casa vendo uma casa, que esboce uma árvore vendo
uma árvore, que esboce um homem vendo um homem, a fim de que se acostume
a bem observar os corpos e as suas aparências, e não a considerar como
verdadeiras imitações aquelas que são falsas e convencionais. Na ausência dos
objectos, impedi-lo-ei, mesmo, de desenhar de memória, até ao momento em que,
através de frequentes observações, as suas figuras exactas se imprimam bem na
sua imaginação. [...] Adquirirá, certamente, um golpe de vista mais justo, uma
mão mais segura, o conhecimento das verdadeiras relações de grandeza e de
aspecto, que existem entre os animais, as plantas, os corpos naturais, e uma
experiência mais rápida do jogo da perspectiva” (Rousseau, 1990: 148).
Jean Jacques era, portanto, adepto do desenho pelo natural mas antagonista
A sala de aula como laboratório…
360
completo do desenho pela estampa. A isto diria Palyart, como mais à frente terei
oportunidade de pormenorizar, que era impossível “contradizer a necessidade da
estampa […] e do desenho geométrico ao lado da cópia do natural”. A razão
apresentada era simples: “só faz quem sabe ver, e ‘só vê’, empregando uma frase de
Ernest Legouvé, ‘quem aprende a ver’. Mas para aprender a ver é necessário aprender
com quem sabe ver… e aprender fazendo – learning by doing”. Novamente insistia
de que a cópia do natural sem mais nada, dificilmente surtiria resultados dignos de
registo. Sem a “acção benéfica” da estampa “nunca, ou só tardíssimo e muito
imperfeitamente, qualquer criança poderia adquirir as mais rudimentares noções
sobre arte” (1920: 344). Era pela conjugação da estampa com a geometria e com a
cópia pelo natural que o ensino do desenho deveria evoluir. À criação dos museus de
objectos propostos por Pedro Guedes para uso nas lições de desenho, Palyart também
dava a sua sugestão. O seu kit, que servindo para a cópia pelo natural, deveria estar
intimamente ligado à realidade do espaço geográfico. O ritmo que imprime ao seu
discurso revela magicamente o conteúdo da sua colecção:
“Colecções de penas de várias formas, de várias dimensões, de diferentes
coloridos, procedentes, consequentemente, de vários géneros, de várias espécies,
de vários indivíduos; colecções de conchas, terrestres ou marítimas, variando
também na grandeza, no feitio e na sua decoração; folhas de vários exemplares,
folhas grandes e folhas pequenas, folhas inteiras e também de recortes mais ou
menos profundos, e simples e compostas, etc.; insectos ou seus fragmentos, como
asas de borboletas (cores, formas e grandezas), de besouros, escaravelhos,
gafanhotos, libélulas, etc,; cristais de quartzo (tão abundante em certas regiões do
nosso país), de calcite, etc.; objectos usuais na localidade, de emprego doméstico
ou na escola, utilizados na lavoura, etc., etc.: eis o importante material para o
ensino do desenho: eis o grande compêndio, o mais sublime de todos, o livro da
Natureza” (Ferreira, 1920: 354).
O professor que preparasse a série, que ordenasse elementos tão dispersos e
que os usasse como motivo de desenhos.
Num outro documento, O Desenho primário Racional. Elucidário para o
professor, Pedro Guedes falava das vantagens educativas da disciplina de desenho na
escola, desde as primeiras classes. O seu fim seria “desenvolver na criança as suas
qualidades naturais do gosto, da invenção e da observação”. Deveria ser “evolutivo,
O desenho
361
como adaptação; realista, como inspiração; geral, como aplicação; espontâneo, como
execução e estético, como educação” (Guedes, 1928: 4). Ora, esta perspectiva conflui
nas ideias da escola moderna, pela graduação do ensino, adaptado a cada criança,
pelos métodos naturais, pela aplicação prática do saber, pela espontaneidade e pelos
valores estéticos aprendidos pelo aluno no acto de ver e de fazer. Com a presença do
professor, mas tanto quanto possível com um trabalho intenso do próprio aluno,
definia-se um caminho de autonomia, de autoconstrução, de autocorrecção pelo
acumular da experiência e do hábito de muito fazer. Nas instruções pedagógicas,
Guedes, considerando que seria necessário “levar todos os alunos a conhecer
intuitivamente as propriedades elementares das figuras geométricas e a praticar com a
possível correcção as diferentes modalidades do desenho”. Observava porém que,
seria “indispensável estudar atentamente as tendências de cada um e delas tirar o
melhor partido para a orientação do respectivo ensino”. Era certo que nem todos os
alunos teriam “aptidão natural bastante para que” pudessem “vir a ser pintores de arte
ou escultores”, todavia, era tarefa da escola provar, “realizando”, que todos os
indivíduos “trabalhando” poderiam “desenhar e modelar em barro com suficiente
correcção”. Quanto aos materiais necessários prescrevia “papel liso, muito limpo e
bem conservado”, sem o qual não se poderia exigir do aluno “a boa apresentação do
trabalho”, “desgostando-se” então os educandos “por culpas que não são suas”. O
papel quadriculado, aquele que constituía a base do método stimográfico,
desaconselhava-o o autor, “excepto para a realização de certos exercícios de
geometria e a execução de projectos de decoração” (1928: 12-15).
Também o Programa de desenho de 1928, apresentava diferenças
relativamente ao de 1902 há pouco referido. Pedro Guedes traduzi-as naquilo que de
essencial nos interessa trazer até esta escrita. “O desenho é um factor cultural e actua
como estimulante no desenvolvimento normal da imaginação e da sensibilidade”,
contribuindo, portanto, “para os fins gerais da educação”. De ora em diante a lição de
desenho haveria de dividir-se em duas partes:”1ª de observação; 2ª de execução”
(1928: 29). Estipulavam-se os tempos e os ritmos, prescreviam-se as tarefas.
Primeiramente, a criança era convidada a olhar, a analisar e a medir. Depois, teria de
executar, passar ao papel o que lhe ditava a razão. Para tal:
“A criança deve ter diante de si o objecto, que nunca se desenhará
A sala de aula como laboratório…
362
antecipadamente no quadro preto, porque, então seria um modelo a copiar”
(Guedes, 1928: 29).
Seria igualmente um modelo a copiar, mas a partir de um original
tridimensional e não a partir da sua simplificação num plano bidimensional. A
escolha dos objectos teria “em conta a conveniência”, e embora estes fossem “usuais”
ao imaginário do aluno, deveriam apresentar “um valor estético, ainda que pequeno”
(Guedes, 1928: 29). As questões levantadas em relação ao desenho geométrico, ao
desenho pelo natural e à estampa, nunca se resolveram por completo. Os métodos
defendidos por uns educadores tendiam a privilegiar umas áreas em detrimento de
outras. No entanto, a sensibilidade de Palyart levava-o a defender os três métodos em
simultâneo. A presença da estampa junto da existência da cópia do natural era uma
“necessidade”. “E tanto assim que, embora a sua exclusão da sala da classe, embora a
guerra que certos lhe movem, ela desempenha o seu papel a ocultas” (1920: 343). Na
verdade, o que adiantaria proibir o uso da estampa quando o aluno a ela tinha acesso
e lhe dava uso nos seus desenhos fora da classe? A imagem começava em inícios do
século XX, em Portugal, a cumprir o fado de que falou Walter Benjamin: “o
processo de reprodução de imagens foi tão extraordinariamente acelerado” que pôde
“colocar-se a par da fala” e à mão de qualquer um(1992: 76). “A criança lança-lhe a
mão onde a encontra, e sobre ela se exercita, copiando-a, apropriando-a, utilizando-a
por completo ou parcialmente” (Ferreira, 1920: 343). Não só fotografias, como
postais, gravuras, jornais humorísticos, tudo isto andava “nas mãos de todos os
alunos, principalmente dos melhores desenhadores”. Verdadeiramente sensato e
produtivo era, conhecendo esta predilecção pela estampa, fazer dela um centro de
interesse e oferecê-la nas propostas escolares ao aluno. Procurar, todavia, “estampas
boas, artísticas, que as crianças compreendam e sintam” (Ferreira, 1920: 344).
Para representar um qualquer objecto por meio de traços era condição
essencial exercitar o aluno a desenvolver uma aptidão, a habituar o corpo a uma
postura e a uma atenção, a fixar demoradamente a atenção no todo e nas partes do
objecto, a compará-las entre si e face a outros objectos. Assim se deveria começar por
encarar o ensino do desenho. O desenvolvimento desta diciplina viajaria em
companhia dos gostos da criança e do seu sentir. A tão discutida estampa seria dada
ao aluno, adaptada a si, mas de acordo com o que o saber psicológico sobre a infância
O desenho
363
ditava:
“A criança prefere a estampa. Dêmos-lhe a estampa, mas que represente bonecos
como os seus, e cada vez mais perfeitos, bonecos em que ela viva e se exercite,
onde trabalhem simultaneamente mãos e cérebro. E dêmos-lhe como primeiro
modelo o homem. Na escola foge-se ordinariamente à figura humana. Mas é ela
que a criança primeiro tenta representar: sobre o homem recaem os seus
primeiros trabalhos gráficos. É difícil desenhar a figura, é certo: mas eu não
penso também em levar a criança a fazê-lo com correcção. Pretendo,
simplesmente, leves esquiços, pretextos para exercitar o aluno a entrar noutros
trabalhos” (Ferreira, 1920: 348, 349).
A modelagem do corpo do aluno seguiria um desenvolvimento gradual e
contínuo. A par do adestramento, um conhecimento sobre o indivíduo adquiria
contornos fiáveis e que permitia induzir a modos de comportamento e à aquisição de
técnicas de fazer. “A actividade gráfica”, afirmaria já na década de cinquenta o
educador João dos Santos, “faz parte das funções sociais do homem, isto é, das
funções que lhe permitem relacionar-se com os outros”, para além de que “tomando
consciência do gesto que define o corpo próprio ou um outro corpo, a criança pode-o
prolongar pelo traço desenhando e este pode conduzir ao sinal, que se transforma em
símbolo” (Santos, 1966: 51, 52). A um poder sobre o corpo juntava-se a
produtividade desse mesmo poder. O aluno desenvolvia aptidões, habilidades que lhe
permitiam, mais a mais sendo surdo, habitar terrenos onde encontrasse uma porta
para a sua integração na sociedade. O desenho, tal como os trabalhos manuais,
convertia-se num grande dispositivo disciplinar: um campo onde se cruzavam
práticas discursivas e relações entre actores, um campo de sujeição do corpo e
conhecimento da alma. Por isso as estampas entregues às mãos das crianças deveriam
“ser em harmonia com a evolução dos seus interesses, constatados já presentemente,
e muitíssimo bem, pelos estudos sobre a psicologia do desenho” e assim
progressivamente pela segunda e terceira classes. Primeiro, “umas escalas de
bonecos, desde a simples rodela com dois traços paralelos daí saindo, até ao homem
de braços abertos, mãos espalmadas e dedos desmedidamente grandes; do boneco nu
ao boneco vestido; do esquema inferior do homem, às distinções dos sexos pelas suas
A sala de aula como laboratório…
364
características mais aparentes, etc.”, até estampas”de diferentes animais, mas animais
que a criança conheça, e objectos de uso comum e, se não minuciosamente tratados
ou por maneira larga que a criança não compreenda, representados a tintas lisas,
devidamente contornados”. Sempre estampa boa, aliciando visualmente o aluno. Nas
classes seguintes, “as formas anteriores devidamente ampliadas, e os traçados
geométricos de aplicação. Nas terceiras classes ainda o desenho sem instrumentos, à
mão livre; na quarta mais técnica, e introdução de instrumentos como o compasso e a
régua” (Ferreira, 1920: 349). A estampa prestava-se a três tipos de utilização: para
cópia, como auxiliar da cópia pelo natural ou como base para composições
inventadas pelo educando. Este último fim, para além dos objectivos marcadamente
disciplinares, faria a criança desenvolver “o gosto artístico, induzindo a concepções
mais levantadas, criando a personalidade” (Ferreira, 1920: 350). Sem dúvida que foi
na área da invenção que a escola encontrou acessos directos à alma dos educandos. O
governo dos alunos está em actuação constante servido por um poder-saber ágil a
engendrar técnicas de comunicação com o interior dos pupilos: “a estampa” “para
este último caso” seria “a própria caricatura, essa deliciosa arte cómica, que a criança
adora e com tanto gosto cultiva” (Ferreira, 1920: 350). Alunos cada vez mais donos
de si mesmos, mais hábeis. Eis como o desenho se tornaria muito mais do que uma
obrigação, um elemento de desejo, proporcionador de uma disciplina interior, de um
domínio sobre o real e de uma vinculação necessária.
Havia mais um elemento que foi trabalhado pela escola e que tem que ver
com a exposição do aluno, através do trabalho. Embora a finalidade última da
produção na disciplina de desenho não fosse a organização de exposições escolares, a
verdade é que, quando estas se realizassem deveriam apresentar “devidamente
seriados, todos os trabalhos de cada aluno”, o que permitiria “avaliar a acção da
escola no seu desenvolvimento”. Mais do que os trabalhos de um único ano, os
trabalhos de todos os anos escolares ficariam conservados em arquivo, esboçando-se
então, para lá das fichas biográficas, um novo núcleo de saber sobre os alunos.”Um
trabalho isolado, por muito perfeito que seja, não tem significado; só uma série
extensa permite a formação legítima de uma opinião” (Guedes, 1928: 15, 16).
Será agora o momento de fazer um pequeno desvio, muito breve,
apresentando o cenário em que se desenvolvia a disciplina de Desenho. Pretendo
neste ponto, mostrar aos leitores que todos os elementos, desde os conteúdos
O desenho
365
programáticos, aos horários ou os espaços em que decorriam as acções eram
fortemente prescritivos de determinados comportamentos. Inconscientemente o aluno
haveria de adquirir hábitos de vinculação às tarefas exercendo-as livremente, de
forma disciplinada e responsável. O regime disciplinar do internato, era pensado em
diversas frentes e a ligação entre elas, concorrendo para a formação de sujeitos auto-
regulados, fazia-se pela articulação de elementos que eram constantes em diversos
campos. Ao espaço, bem como ao tempo, foram associados princípios de saúde física
e higiénicos que, claro está, teriam a sua influência na formação do carácter dos
educandos.
Em 1873, era assim: a sala de desenho, atendendo às condições de higiene,
tinha “ luz suficiente e bem distribuída ”, capacidade para 66 alunos e para cada um
“ quase 12 metros cúbicos de ar , com a circunstância favorável de que o ar ” era
“ renovado constantemente, por meios apropriados ”. Os alunos trabalhavam “ sobre
carteiras ”, “ sentados em bancos fixados nas carteiras ”, dezasseis das quais tinham
lugar para quatro alunos e uma, para dois. O espaço era suficiente para que cada um
estivesse bem “ à sua vontade ”. Cada aluno da classe de Desenho industrial tinha
ainda direito a uma gaveta onde deveria guardar a sua “ prancha de madeira ”, “ o
estojo de compassos ”, “ dois esquadros ”, “ uma régua ”, “ duas tijelinhas ”, “ uma
esponja ”, “ um canivete ”, “ dois pincéis ”, “ um pão de tinta da China ” e “ sete pães
de cores ”. Os alunos de Desenho elementar não tinham gaveta e todo o material
necessário lhes era distribuído pelo professor ou monitores (Neves, 1873: 14, 15, 16).
Cada um em seu lugar, a cada um seus materiais, condições neutras que não
interferissem com a fixação da atenção no objecto a debuxar.
A sala de aula como laboratório…
366
Sala de desenho da Casa Pia de Lisboa
Inícios do século XX
(Arquivo Fotográfico de Lisboa)
Sala de desenho da Casa Pia de Lisboa. A perspectiva central da fotografia
acentua a presença de imagens nas três paredes. Duas bandas horizontais acima do
olhar dos alunos constituem frisos de estampas, talvez trabalhos dos próprios
educandos. Mesas com amplos tampos de trabalho, bancos diferentes. Grandes rasgos
de luz em ambas as paredes. A sala de aula assume um carácter laboratorial, não no
sentido de uma assepsia, mas no de uma experimentação. A sala encontra-se vazia de
personagens, à excepção do fotógrafo que a captou. Todavia, constitui-se como uma
paisagem por onde já passaram e irão passar mais pessoas. Os bancos, alinhados,
sublinham essa necessidade de alunos para que o cenário ganhe um sentido. Pelas
paredes, poder-se-ia dizer dos métodos seguidos pelos habitantes deste espaço.
A arte da escrita: caligrafia
367
7.4.A ARTE DA ESCRITA: CALIGRAFIA
Lições
(Amaral, 1954)
“‘Escritura; dibujo. De nuevo tengo dudas
acerca de la diferencia entre las dos cosas. En la
antiguedad, las letras estaban muy próximas a las
pinturas. Eran casi indistintas’”.
Takiguchi, 1942
(Molina, 2003:355)
Uma das tarefas mais importantes destinada ao professor de surdos seria ensinar ao
aluno a língua escrita. “É preciso ensinar-lhe tudo, absolutamente tudo” e a ordem a
seguir, na opinião de Fusillier “era completamente diferente da do ensino primário”.
Ao “surdo-mudo principiante”, nenhuma “gramática serve nem pode servir”. O
começo do ensino não poderia ser outro que não o “estudo de palavras soltas, nomes
concretos que se explicam imediatamente pela apresentação do objecto que
designam”. Só deste modo se evitaria “a confusão e a falsidade num cérebro tenro,
mas quase vazio de ideias claras e exactas” (1893: 396). Depois viriam então os
adjectivos ligados aos substantivos, os artigos, os primeiros nomes de números, os
principais tempos verbais, etc. Todavia, esta era uma fase posterior a um domínio
manual da arte da escrita. O ensino das crianças surdas contemplava diversas áreas
A sala de aula como laboratório…
368
que se queriam interligadas, trabalhando-se e desenvolvendo-se numas, aspectos úteis
às outras. Seria o caso da caligrafia e do desenho para a apropriação de uma mecânica
de escrita. “A síntese da escrita implica a utilização de gestos, palavras verbalizadas e
desenho” (Santos, 1966: 52). Para João dos Santos, “ensinar a escrever, antes de
permitir que a criança” experimentasse “os materiais e as superfícies plásticas, antes
de desenhar e pintar”, seria “tão absurdo como ensinar uma criança a ler antes que
ela” falasse (1966: 67).
No sistema educativo Montessoriano, o desenho surgia como exercício com o
fim principal de preparar os movimentos da criança para a escrita. Haveria que treinar
essencialmente dois gestos: “um que consiste no pegar do instrumento da escrita ou
seja o domínio do lápis ou da pena”, outro “que consiste no desenho ou contorno da
letra”. Os primeiros movimentos deveriam respeitar a individualidade de cada
criança, a sua forma de se relacionar com os objectos, todavia, os segundos, seriam
“comuns a todos os que escrevem porque todos” teriam “de contornar as mesmas
letras”. Individualização, mas simultaneamente alargamento a toda a classe. Ora,
estes exercícios estavam dependentes de um kit de materiais, muito simples,
constituído apenas por quadrados de metal, cada um deles com um espaço em aberto
onde se poderiam encaixar diferentes figuras geométricas. A atitude exigida perante
estas figuras metálicas não era muito diferente daquela que no século XIX se
propunha frente às pautas caligráficas. O aluno percorreria com os dedos os
contornos dessas figuras e, só depois de as sentir, as colocaria sobre uma folha de
papel para lhes traçar o contorno. “Ficando assim debuxada a forma geométrica de
cada uma dessas figuras”, seria altura de “preencher esse debuxo ou contorno com
lápis de outra cor, tendo em mira que os traços” feitos seriam limites da forma, a
respeitar. Com estes exercícios que decerto agradariam às crianças, a sua mão
aprenderia “a mover-se dentro de limites certos, segundo um molde, firmando-se,
educando-se, ajustando os seus movimentos desordenados, e preparando-se para
escrever” (Rosa Y Alberty, 1917: 355). Esta seria uma forma de preparação para a
prática manual da escrita em que se treinava o corpo e o espírito: a mão, a vista pelo
domínio progressivo de diversas formas, pelo apurar das diferenças entre umas e
outras, entre tamanhos e cores. Pela combinação de modelos diversos e de cores
diferentes, o gosto artístico da criança também se iria formando e uma outra
preparação se encontrava em estado de gestação, a da cópia fiel pelo natural. Os
A arte da escrita: caligrafia
369
exercícios do desenho prolongavam-se para os da escrita até que chegasse o momento
de substituir por “hastes e curvas”, os preenchimentos a cor e os contornos das
formas das figuras geométricas. “A princípio”, os traços com que os alunos passavam
a “encher os debuxos” seriam “grossos, desiguais, desordenados no seu comprimento,
saindo para fora das respectivas linhas limitatórias”, mas depressa os traços se
tornariam “mais finos e paralelos”. A mão do aluno, “educada a executar livremente
movimentos, amplos ou curtos”, pela “diversidade de moldes com que trabalhou”,
estaria apta “ a fazer todas as categorias de letras firmes e segundo o papel e os
modelos” que lhe apresentassem. Viriam então as lições sobre letras, com uma
panóplia de materiais tão vulgar quanto uns cartões soltos, “em papel de lixa”, com
uma letra em cada um, “cujo corpo” mediria 8 centímetros de altura, com hastes ou
traços de 6 milímetros. À observação da criança colocar-se-iam duas letras diferentes
e pronunciar-se-iam clara e pausadamente os seus nomes. Depois, o mestre propunha
ao seu pupilo que seguisse os contornos das letras “segundo a direcção usual da
escrita”, repetindo o movimento por “duas ou três vezes seguidas”, “apalpando-os
levemente com as polpas dos dedos indicador e médio” e assim se conseguiriam
associar diferentes sensações corporais. A fase seguinte, de reconhecimento, baseava-
se numa prática muito próxima do jogo: “’Dá-me o i’. ‘Dá-me o a’, tornando a
criança a apalpá-las de olhos abertos ou de olhos fechados”. Por último, a reprodução
ou a nomenclatura: “’Qual é esta?’ ‘E esta?’”. “E com uma rapidez pasmosa aprende
todas as letras, desenhando-as, surgindo nela, como por milagre, a escrita
espontânea” (Rosa y Alberty, 1917: 358). A metodologia aqui descrita, utilizada por
Montessori nas suas Case dei Bambini, era conhecida na Casa Pia de Lisboa, pelo
menos a partir de 1916, todavia Fernando Palyart, que se serviria do método das
“letras móveis recortadas” para o ensino da escrita e da leitura nas suas classes de
anormais, juntamente com o método das lições de coisas, diz ser este um processo
que Montessori pretenderia “dar como seu”, quando na verdade seria “de antiga data”
(1917: 294).
A articulação do desenho e da escrita era evidente independentemente dos
métodos utilizados pelo professor. Freinet, que defende o Método Natural para a
aprendizagem da escrita, diria que a preocupação essencial não era em “saber quais
são as palavras ou letras que a criança vai aprender a desenhar em primeiro lugar”. O
texto escrito seria tradução directa do pensamento infantil, pelo que havia de
A sala de aula como laboratório…
370
considerar a forma como a “criança desenha esse texto tal como desenha as
personagens com as quais, daí a pouco, vai ornamentar as páginas” (Freinet, 1977:
104).
E é pelo mesmo tipo de lógica que apresento a caligrafia como uma variante
da arte de desenhar. Era assim que era vista na Casa Pia de Lisboa e certamente se
adivinham as riquezas que daí poderiam ser extraídas na produção de alunos
disciplinados e autoregulados. No Livro de Exercícios de Observação e de
Linguagem – utilizado no ensino dos surdos – os assuntos da escrita não deixaram de
marcar presença:
“Manda-lhe escrever o seu nome na capa do seu caderno”. “Manda-lhe segurar
bem a pena e escrever bem, fazer boa letra”. “Diz-lhe que escreve muito fino, que
escreve muito grosso, que escreve muito miudo”. “Tu escreves bem ou escreves
mal?” (Trindade, 1906: 152).
Desde logo, é sublinhado um processo de auto-identificação do aluno com o
registo escrito, sendo que os códigos de escrita deveriam ser seguidos. Em simultâneo
com o desenvolvimento do sentido da vista, comparando comprimentos, alturas,
larguras e posições relativas de objectos, era proposto agora ao aluno que se
concentrasse no caderno diário e o fosse construindo ao longo das lições com um
desenho de escrita. A imitação de exemplares de caligrafia era um exercício proposto
pelo mestre. E aqui, a escrita tomava duas direcções. Uma, em que o professor
distribuía pela classe “quartos de papel” com palavras escritas por si e que o pupilo
teria de “calcar”. Depois de apreender o movimento da palavra escrita pelo mestre,
deveria treiná-la na ardósia pessoal. Só depois, as palavras figurariam no caderno
diário (Raposo, 1869: 95). A ardósia ilustra bem o princípio de exercitação do aluno
pela repetição da tarefa, até a dominar tão bem que pudesse passar a um suporte onde
a eliminação do erro não seria fácil de apagar. É que nas pedras pretas os exercícios
repetem-se, os gestos treinam-se e com um movimento de limpeza, elimina-se o rasto
do que se fez. Espaço de ensaio útil até à assimilação da coreografia. A outra forma
de exercitar a mão seria calcando e imitando as “pautas de caligrafia elementar”.
Reza assim o sumário de um exercício da 3ª classe, do dia 16 de Março de 1867,
segunda-feira da parte da manhã: “Calcar e imitar as pautas de caligrafia elementar de
A arte da escrita: caligrafia
371
José Joaquim Serra (nºs 12 -13) e cópia de dez linhas do Ramalhetinho da puerícia de
Luiz Filipe Leite a páginas 49. Preceitos higiénicos” (Raposo, 1869: 97). E vemos
juntar-se aqui a escrita desenhada da arte caligráfica com a cópia de um texto para o
caderno diário. Era esta a segunda direcção que tomava a escrita na sala de aula.
Pauta caligráfica
(Abreu, 1903)
Os exemplares de caligrafia continuariam, todavia, a marcar presença na sala
de aula. Como exercício mais do que como aprendizagem da escrita. O
desenvolvimento da prática de escrita correspondia, claramente, a uma tecnologia que
a escola soube aproveitar. Nas aulas de caligrafia, à semelhança das de desenho, –
contudo, num movimento de introspecção próprio dos monges na execução de
iluminuras –, o aluno debatia-se com a superação das barreiras que o impediam de
apresentar um exemplar de caligrafia semelhante ao que lhe servia de modelo. No
exercício de caligrafia o corpo total era solicitado para a execução da tarefa. Um
corpo disciplinado, económico, autoregulado, eficiente.
A sala de aula como laboratório…
372
“Uma boa caligrafia, por exemplo, supõe uma ginástica – uma rotina cujo
rigoroso código abrange o corpo por inteiro, da ponta do pé à extremidade do
indicador. […] Um corpo bem disciplinado é a base de um gesto eficiente. […] A
disciplina define cada uma das relações que o corpo deve manter com o objecto
que manipula. Ela estabelece cuidadosa engrenagem entre um e outro. […]
Temos aí um exemplo do que se poderia chamar a codificação instrumental do
corpo” (Foucault, 2004: 130).
O corpo tomado como objecto e alvo de poder. Todavia, um corpo produtivo,
disciplinado, com domínio sobre si. Nas regras de Caligrafia para se aprender a
escrever com método, composto por Luiz Gonçalves Coutinho em 1817, propunha-se
que se pegasse “na pena com os três dedos da mão esquerda, a saber: o polegar,
indico, e o maior debaixo dela, ficando o lombo para cima” (Lima, 1932:253). E o
saber fazer era resultado de um trabalho disciplinar: “o papel só exige
concomitantemente tinteiro, aparo e caneta, quando o aluno já está bem adestrado na
escrita, quando já sabe escrever”. E quem já sabia escrever não sujaria “de tinta o
papel, os dedos e o fato”. Enquanto tal não sucedesse usar-se-ia “o lápis que não tem
os perigos da tinta” (Lima, 1932: 258). Tratava-se, em boa verdade, de um domínio
de si – do corpo e do espírito – entregando-se o aluno àquela tarefa como a qualquer
outra rotina que lhe fosse prescrita pela instituição. Havia obviamente o outro lado da
questão. Todos os professores deveriam pedir a apresentação de “uma prova
caligráfica no 1º domingo de cada mês”, a qual, “depois de vista pelo Director”, seria
devolvida ao aluno para se gloriar perante a família (Raposo, 1869: 29). Esta era,
portanto, uma tarefa que ultrapassava os muros da escola e entrava directamente na
casa da família, que nestas coisas de letras desenhadas havia de depositar as maiores
crenças no futuro do seu educando.
Capturando de novo a ideia de que o exercício de caligrafia posicionava o
aluno numa batalha contra os seus próprios limites, situando num mesmo plano
características individuais do educando e o seu aproveitamento produtivo na obtenção
de uma hexis corporal e espiritual, poder-se-iam propor inúmeros exercícios:
“L'oeil apprend à reconnaitre ces mots par l'image labiale qu'ils présentent sans
les décomposer en leurs parties. Enfin, nous inculquons à ces petits, dont l'esprit
A arte da escrita: caligrafia
373
s'est entr'ouvert, des principes de calligraphie”. “Nous a demandé d'apprendre aux
enfants à écrire des deux mains. Tous ces exercices améliorent l'élève
physiquement et moralement en l'habituant à l'obéissance at à la discipline, en
ouvrant son intelligence à l'esprit d'attention, d'ordre et d'observation. C'est là tout
ce qu'on peut arriver à faire dans une classe préparatoire” (Weindel, 1907: 10).
As crianças surdas reconheceriam nos lábios do mestre a palavra falada e
fariam dela o retrato gráfico. A escrita com ambas as mãos seria uma prática com
vantagens disciplinares evidentes sobre o corpo da criança, mas simultaneamente
uma vitória do pupilo sobre si mesmo conseguindo, com uma e com outra mão,
performance semelhante. Todavia, outras práticas de escrita estavam disponíveis para
exercitar a disciplina e treinar a atenção. O ditado oral:
“A présent, à voix haute, le professeur déclare:
- Nous allons faire une dictée.
Tous les enfants se saisissent de leur plume. Le professeur commence à dicter:
'Le cheval...'
Et les plumes, quand les yeux ont 'entendu' la phrase, se mettent à courir sur le
papier.
- Voyez, me dit le professeur, en me tendant un cahier au hasard, quand le dictée
est finie.
Rien n'est omis. Et c'est presque sans fautes” (Weindel, 1907: 14).
A uma só voz, vista, as crianças surdas executariam a tarefa. Corpos
disciplinados, treinados, corpos úteis que iam dominando na execução e vinculação a
uma tarefa de escrita a língua oral. Gostaria agora de fazer um breve apontamento
sobre a importância do caderno diário e da ritualização da escrita na sala de aula.
Qualquer que seja a técnica, só pode ser dominada pelo indivíduo se for treinada por
exercícios contínuos. A escrita, particularmente a escrita na sala de aula, envolve o
aluno num movimento circular. “ A meditação que precede as notas, que permitem a
releitura, que, por sua vez, revigora a meditação ” (Foucault, 2004d: 147). Mas este
elemento que serve de suporte à cópia das notas que o professor vai tomando no
quadro ou aos exercícios individuais que o aluno vai concretizando, é conector e
impulsionador de uma pose activa na aprendizagem da lição. No mesmo dia 16 de
Março de 1867, a 2ª classe via-se a mãos com uma cópia para os cadernos “ das
A sala de aula como laboratório…
374
seguintes frases explicadas na lição educativa antecedente e escritas pelo professor no
quadro preto: o pombo tem asas, o pombo tem penas, o pombo tem rabo, o pombo
tem cabeça, o pombo tem bico, o pombo tem olhos, o pombo tem pernas ” e o pombo
teria também “ unhas ”, seria “ bonito ”, “ manso ” e “ voador ”. Copiar-se-ia ainda
com todo o cuidado que “ o pombo nasce , cresce, vive, sente, voa, arrulha, envelhece
e morre ” (Raposo, 1869: 96).
Todavia, nem só de cópias viveria a escrita no caderno do aluno. Na 5ª cadeira
e no mesmo dia 16 de Março, as classes anteriormente referidas, fariam uma redacção
sobre a fábula de Bocage Os dois gatos. Depois de lido e explicado este texto, “que
prende e convence ao menos versado em argumentações silogísticas”, escritos que
estavam no quadro preto “ os pontos capitais”, chegara a altura de propor ao aluno a
escrita de um texto “segundo as impressões que a leitura e as explicações lhe haviam
deixado no espírito” (Raposo, 1869: 103). Ora, tratava-se já de um exercício de
meditação, que exigia do aluno fixar em si sentimentos e ideias vindos de um texto
escolhido pelo mestre, mas tendo uma margem de liberdade, própria do exercício
individual.
A escrita no caderno diário constituía-se como um documento daquilo que
seria a lição dada pelo mestre, um discurso auxiliar que mantinha o aluno em
actividade durante a aula. Um work in progress que convinha manter organizado,
com caligrafia exemplar, pronto a ser consultado pelo aluno, pela família ou avaliado
pelo professor. O importante é que este objecto e o acto de o preencher se
encaixavam eficazmente na arte de governar os escolares. Não só era o educando
obrigado a desenvolver métodos de trabalho sistemáticos na aula, como acabava por
se envolver nos conteúdos curriculares. Da mesma forma, também o professor se via
envolvido na prática do registo. Primeiro, porque o que constasse no caderno do
aluno, correspondia à matéria leccionada na aula, depois, porque também ele - como
de resto tivemos oportunidade de ler nos sumários - teria de registar todos as
actividades da lição. No cruzamento do caderno diário com o livro de ponto, ter-se-ia
o movimento da classe com a letra de dois actores. O livro de ponto é, também, uma
das tecnologias da pedagogia moderna no sentido de normalização e vigilância das
práticas do professor. Atempadamente, o mestre preparava o plano da lição, de
acordo com o programa previsto para os alunos, e este deveria ser cumprido na aula.
O registo do sumário mais não era do que a prova do acontecimento de uma aula
A arte da escrita: caligrafia
375
marcada.
A escola moderna pretendia fazer do caderno do aluno um elemento com
vida. O caderno seria um elemento mais na produção de saber sobre o educando, pois
como “obra” sua, deveria “revelar” o seu “psiquismo”. “O aluno é solicitado a ilustrar
todos os seus cadernos, a enchê-los profusamente de desenhos, de bonecos, de
apropriadas alegorias”. Dar “largas à sua imaginação imitadora e criadora”. O
caderno diário viria substituir o tradicional compêndio, nele, o aluno iria acumulando
registos, organizando as lições, estudando fora do tempo destas. Se o melhor processo
“de aprender uma língua é escrevendo, redigindo, compondo”, pois este objecto
“obriga o aluno a escrever, a redigir, a compor, a toda a hora, em todas as aulas”
(Lima, 1932: 275). Pela escrita se criariam hábitos de reflexão. O aluno estaria
entregue a si mesmo na elaboração do seu caderno e todo o tempo lectivo se
encontrava orquestrado em torno deste elemento.
A sala de aula como laboratório…
376
Algumas palavras finais…
377
ALGUMAS PALAVRAS FINAIS…
Chegou o momento de encerrar esta escrita. Todavia, mais do que repetir o que ao
longo dos capítulos foi sendo dito, parece-me pertinente reconstruir um percurso,
articulando-o com as minhas motivações pessoais na abordagem dos momentos que
se sucedem.
Esta escrita surgiu com uma orientação que era a de mostrar a construção do
surdo enquanto aluno, num arco temporal estabelecido e tentar traçar, nessa viagem,
uma possível história do aluno surdo na Casa Pia de Lisboa. Ora, desde logo se
impunha a necessidade de explicar, primeiro, a questão da surdez como uma
construção, derivando o surdo dessa formação discursiva que se ia instalando como
anormalidade do corpo. Tornava-se necessário abordar os objectos a partir de uma
posição flexível, de modo a poder questioná-los naquilo que parece ser a sua pele
natural. Esta atitude, que se baseou sempre que pude na abordagem das práticas e dos
discursos dos sujeitos envolvidos nos processos educativos, quer com surdos, quer
com outras tipologias de escolares, permitiu-me desocultar num cenário como a Casa
Pia de Lisboa, princípios de uma modernidade educativa que se estendem até aos dias
de hoje e que, por isso, nos dá ver processos históricos da nossa própria constituição
enquanto sujeitos.
Os objectos, sejam eles disciplinas, sejam indivíduos, adquirem os seus
contornos nas formações discursivas que os enlaçam como conteúdo. Foi-nos
possível ao longo deste trabalho detectar a presença de um modelo e de uma
gramática escolares que se têm mantido relativamente estáveis desde, pelo menos, os
últimos anos do século XIX. Falo, evidentemente, do tempo e do espaço trabalhados
na arena educativa, mas igualmente dos sujeitos que aí dão corpo às diversas
relações. A centralidade do sujeito criança no processo educativo vem marcar as
práticas e as técnicas que regem o governo dos escolares.
A modernidade educativa tem também de ser abordada num olhar que abarque
o conjunto de especialistas que se instalam em torno da criança e que tecem os
discursos que vão constituindo a infância como um tempo e um espaço no contexto
populacional. A produção de um saber sobre a criança permite a operacionalidade de
um poder, voltado para o desejo de governo de um grupo que está em fase de
aquisição de uma nova identidade. A infância que é objecto deste estudo é uma
infância anormal, portadora de surdez, que é acolhida numa instituição que promete
Prótese-ouvinte
378
transformá-la, por meio de técnicas normalizadoras que encontram na incorporação
da oralidade a justificativa necessária à intervenção ortopédica que propõem. Foi
importante perceber através da escrita de Michel Foucault, Erving Goffman, Jacques
Derrida e Zygmunt Bauman conceitos que, aplicados como instrumentos sobre aquilo
que era o objecto desta escrita, permitiram estabelecer redes de articulações,
arbitrárias porque tantas outras seriam possíveis, no interior de relações naturais num
determinado processo de acolhimento e educação.
No projecto e na construção deste percurso, o conceito de governamentalidade
funciona como eixo orientador de um olhar. O governo dos indivíduos vê-se apoiado
em tecnologias biopolíticas que sublinham o corpo do sujeito como objecto
individualizado, recortado de um corpo maior, o corpo de múltiplas cabeças que é a
população, e trabalhado de acordo com princípios reguladores que têm na norma o
elemento orientador que se deverá alastrar ao homem-espécie. O movimento de
institucionalização de uma infância anormal, é precedido pelo olhar médico que
detecta as falhas do corpo, o que justifica a presença desse grupo de especialistas na
paisagem educativa que então passará a detectar mais falhas, elaborando-se um jogo
de verdades entre o que é visto e o que é dito. O poder de governar, quer na escola,
quer noutros cenários sociais passa a estar dependente de um saber sobre os sujeitos.
Este movimento traz em si os elementos para a construção de um corpo,
necessariamente social, mas inscrevendo-se numa esfera privada que conduz para um
plano principal a relação que o sujeito passa a estabelecer consigo mesmo.
A hospitalidade concedida ao surdo retira-o de uma posição inventada nas
margens da sociedade e promete-lhe uma inclusão através de práticas e técnicas de
regeneração. Ao longo deste trabalho procurei mostrar que estas práticas e estas
técnicas, fixadas numa perspectiva de governo do aluno surdo, são direccionadas para
a alma da criança, incitando-a a uma transformação de si mesma. Foi possível
verificarmos que, as técnicas adoptadas nos espaços escolares, se afastam de regimes
coercivos e adquirem visibilidade pelos mecanismos de governo que despoletam no
próprio sujeito. Se por um lado identifiquei o processo de acolhimento do aluno numa
instituição de carácter total, com uma hospitalidade condicional, foi no sentido de
trazer à superfície a impossível incondicionalidade na relação com o Outro, no
interior de uma racionalidade governativa moderna. Não será demais lembrar que ao
produzir a diferença do Outro, a modernidade constrói a identidade do Mesmo, num
Algumas palavras finais…
379
terreno preparado para nivelar e anular esse estado-Outro.
Neste sentido, foram observadas as técnicas disciplinares presentes na
paisagem educativa, como sejam os horários, os prémios, os castigos, os exercícios,
mas a sua abordagem foi, sempre que possível, considerada num quadro que não é
feito de meras oposições mas antes no interior de uma complexidade em que
disciplina se articula com liberdade e autonomia da criança. É assim que os discursos
modernos de controlo disciplinar se constroem sob um outro grupo de tecnologias,
aquelas que, noutro contexto, Michel Foucault designou por tecnologias do eu, que
atingem o sujeito em pontos estratégicos que despoletam em si ímpetos para a acção
de transformação de si próprio, da sua alma, da sua conduta, activando princípios de
inspecção e reflexão pessoais, numa tentativa de adequação constante aos princípios
morais que estruturam o pensamento da época. A apropriação e instrumentalização
deste conceito, manifesta-se no acto de observar a presença destas técnicas no interior
das propostas e das práticas actuantes no tecido escolar: o modelo de oralidade como
lugar de normalidade, as técnicas confessionais, os conteúdos explorados no manual
escolar, etc.
Um outro aspecto que me parece pertinente considerar nesta fase conclusiva
tem que ver com o tipo de actividades de que a escola fez uso para trabalhar a criança
a partir da sua especificidade e natureza próprias. Refiro-me, claro está, às actividades
de carácter manual e artístico que, no caso do surdo, facilitaram a sua transformação
em aluno pela não violentação do seu estado surdo, naquilo que foi a sua participação
consentida nas actividades que a escola lhe propunha. O desenho, os trabalhos
manuais, as actividades de carácter lúdico, a aprendizagem assente sobre dinâmicas
de visualidade ou de exploração sensorial, vincularam o surdo às tarefas que
estruturam o sistema escolar, transformando-o, progressivamente num indivíduo útil
e dócil à instituição. Lembremos as palavras de Dewey no início do século XX
dizendo que “ao analisarmos a escola, verificamos que uma das tendências mais
marcantes do presente é a introdução do chamado treino manual, dos trabalhos
oficinais e das artes domésticas” e isto, “depois de várias experiências terem revelado
que esse tipo de ensino cativa imenso os alunos e dá-lhes algo que não poderiam
obter de nenhuma outra forma” (2002: 22). Este tipo de propostas foi trabalhado em
dois domínios: um que fazia apelo a uma auto-expressão da criança, levando-a a
registar os movimentos da sua alma nos objectos que produzia e que, depois, eram
Prótese-ouvinte
380
lidos por um olhar enformado por teorias psicológicas, outro, que acontecia
simultaneamente, apontando para o domínio de si mesmo, pela incorporação de
práticas adestrantes que estruturavam as relações do corpo no espaço, no tempo e no
contacto com os outros, surdos ou ouvintes.
Quanto à organização desta escrita, cumpre-me explicar a sua divisão binária
e o transporte recorrente de temas e conceitos entre capítulos e entre a primeira e a
segunda parte. A agenda proposta na primeira parte pretende contextualizar os
leitores com uma série de conceitos, essencialmente filiados em Michel Foucault,
mas trabalhados por um núcleo de autores já apresentados na introdução e que
necessitavam, sob o meu ponto de vista e por uma questão de construção do meu
próprio pensamento, de uma primeira abordagem, ainda que composta por imagens
não muito detalhadas. A principal diferença entre este primeiro momento da escrita e
o segundo, é o alcance da visão que, na segunda parte, se focaliza sobre cenários mais
empíricos onde se dá corpo, através das práticas, a princípios enunciados e
contextualizados na primeira parte do texto. Por outro lado, esta recorrência de
conceitos justifica-se pela necessidade de construir uma narrativa que está assente
numa perspectiva de governamentalidade, que funciona como um núcleo que se
estende como uma rede que é interface entre o olhar e os espaços, as práticas e os
actores. Uns conceitos articulam-se com os outros e não existem isoladamente.
Gostaria novamente de assumir a minha relação com a escrita destes autores
que foram marcando a produção da minha própria escrita, para dizer que a sua
presença aqui ultrapassa o âmbito autoral, para habitar um domínio em que os autores
são os sujeitos da escrita e esta existe pelos jogos, pelas articulações e viagens por
entre outras escritas, por aquilo que pode significar noutros espaços. Em suma, cada
texto é já uma multiplicação de outros textos e assim deverá continuar o processo,
para lá da mais recente escrita. Cumpre-se a ideia de Derrida de dar a ler como quem
deixa desejar, no sentido de oferecer a escrita à (re)construção pelo Outro.
Para o fim deixo uma análise daqueles que enunciei como sendo os riscos
desta dissertação. Um deles, o da ambivalência desta escrita, creio que não se
dissipou, antes adquiriu corpo ao longo dos capítulos da tese. Foram essas matizes
que conferiram interesse às paisagens construídas, resultando de um olhar que não
pretende circunscrever-se num ponto fixo em que se adopta uma única forma de
abordar os objectos. Aquilo que desde o início marcou um certo afastamento
Algumas palavras finais…
381
relativamente às práticas educativas de carácter oralista, que me levou a falar da
existência dos estranhos, da hospitalidade condicional, foi também o que alimentou a
produção do surdo enquanto aluno e do surdo enquanto autor da sua identidade. A
violentação pela não consideração do estado surdo a não ser num campo da patologia,
foi acompanhada de uma produtividade própria das relações de poder e constitutiva
dos sujeitos, sejam eles sujeitados ou não. Relembro que o conceito de poder que se
desenvolve nesta escrita, derivado dos escritos de Michel Foucault, não é mais um
poder linear, executado verticalmente, mas, isso sim, um poder que opera de baixo
para cima, que se reparte socialmente, um poder produtivo que na sua acção não visa
já o espectáculo da punição, antes se preocupa com os efeitos de transformação que
provoca naqueles que envolve.
Outro risco assumido logo de início era o de mostrar o quanto as práticas de
inclusão teriam de exclusão. Parece-me que esta problemática terá ficado clara ao
longo de todo o trabalho, mas essencialmente nos momentos em que se fala da
produção do Outro, da sua construção e domesticação no interior de um quadro de
racionalidade governativa. Julgo que a abordagem realizada em torno da nomeação e
classificação terá tornado explícita a acção de circunscrever os espaços reservados
aos estranhos, mantendo-os sob um olhar vigilante e de controlo permanente quer
pelo esboço de todas as actividades a realizar ao longo dos dias, quer pela própria
aprendizagem do ser e do estar numa instituição de carácter total. Falava de
considerar um quadro de acção e não um quadro de inculcação e, na verdade, penso
ter mostrado que um dos princípios da modernidade educativa se fixou no
incitamento do sujeito para uma autoeducação, para uma autoconstrução, um
autogoverno de si mesmo conseguido por uma soberania da vontade do sujeito, de um
triunfo de um querer e de um domínio da sua interioridade. Não é outro o cenário em
que me parece possível ler-se a aceitação de práticas oralistas e a participação do
aluno surdo na sua narração enquanto deficiente auditivo.
A terminar, sublinharei o título desta dissertação, expressando uma vez mais
aquilo que foi minha intenção e aquilo que, deliberadamente não o foi. Prótese-
ouvinte, pretende ser uma visão possível, mas não a única, do que terá sido e
possibilitado a construção do aluno surdo na Casa Pia de Lisboa. Embora toda esta
narração se inscreva num contexto e num momento histórico precisos, a verdade é
que não é o elemento temporal de sequencialidade de acções que organiza e encaixa
Prótese-ouvinte
382
os capítulos. É antes o que se quer contar que captura os cenários e traz os discursos e
as práticas de uma história para a superfície destas páginas. Da produção desta escrita
ficou-me o agrado de habitar fronteiras, aproximando espaços tantas vezes mantidos
em isolamento.
Como última imagem apresento uma fotografia. A sua presença aqui é decisão
dos últimos dias quando, ao ver a História da Imagem Fotográfica em Portugal, de
António Sena, reconheci uma imagem que nunca tinha visto. Como qualquer outra
fotografia dos espaços escolares, também esta se abre a uma leitura e construção de
sentidos.
A vida, 1922
(Sena, 1998)
O título da fotografia é A vida, sabe-se que a imagem foi captada em 1922, em
Lisboa, sendo de autor desconhecido. O espaço parece semelhante ao cenário em que
Teixeira Gomes assistiu à exibição performativa de um surdo da Casa Pia de Lisboa,
pela mesma altura. De resto, são surdos os alunos representados. Fixam pelo olhar o
professor que aponta algo com o lápis ao aluno que, em pé, está junto de si. No
quadro negro, cinzento pelos múltiplos registos que vai recebendo, numa caligrafia
escolar de letras minúsculas de grandes dimensões, a vida, talvez título da lição. No
lado esquerdo do quadro, alguém desenhou frutos. A imagem era o recurso utilizado
nos processos de aprendizagem dos alunos surdos. Ainda no quadro, mas por
sobreposição, a colocação de uma gravura, enquadrada numa superfície branca,
Algumas palavras finais…
383
levanta alguma curiosidade. Poderia tratar-se da ilustração de uma cena relacionada
com a lição. Todavia, é Jacob Rodrigues Pereira que aí figura, no seu laborioso
trabalho de ensinar a palavra a uma menina surda. A síntese desta fotografia está
contida neste pequeno elemento, um pouco à direita do seu centro. Está aqui figurado,
também, o sentido de prótese-ouvinte de que esta escrita foi falando e, se prótese
aponta para um suplemento que supera uma falta, – a do aluno surdo –, pretendeu
sempre sublinhar a sua própria ipseidade: “o poder de um ‘eu posso’, mais originário
do que o ‘eu’, numa cadeia em que o ‘pse’ de ipse não se deixa mais dissociar do
poder, do domínio ou da soberania do hospes”. O hospes, aquele que é plasticamente
trabalhado na “cadeia semântica que trabalha no corpo a hospitalidade tanto quanto a
hostilidade” (Derrida, 2001: 27).
Prótese-ouvinte
384
Índice de imagens
387
ÍNDICE DE IMAGENS
………….. pág. 1 (fragmento de A vida)
……… pág. 383 (fragmento de A vida)
pág. 381….. A Vida, 1922 ……. (Sena, 1998)
…. pág. 28 (fragmento de Aulas nas oficinas) …pág. 275 Aulas nas oficinas (Arquivo Fotográfico de Lisboa)
…… pág. 31
Observação psicológica pela prova de Rey
(Amaral, 1954)
Prótese-ouvinte
388
…. pág. 47 (fragmento de 1ª cadeira de instrução
primária da Casa Pia de Lisboa)
(Arquivo Fotográfico de Lisboa)
pág. 49 …. Aula da 4ª cadeira da Casa Pia de Lisboa
(Arquivo Fotográfico de Lisboa)
pág. 73 e pág. 191 ………… Ficha individual do aluno (Arquivo da Casa Pia de Lisboa)
…. pág. 72 (fragmento de O recreio) (Amaral, 1954)
pág. 89… O professor Pavão ensinando a um surdo-mudo as letras pela ‘vibração no alto da cabeça’ (A Ilustração Portuguesa de 6 de Maio de 1907)
Índice de imagens
389
pág.105…………. …. Exercícios de vocalização ao espelho …….(Ferreira, 1922 b)
pág. 123 (fragmento) e pág. 272 Exercícios de articulação (Amaral, 1954) pág. 135 ………… ….. Refeitório da Casa Pia de Lisboa (Arquivo Fotográfico de Lisboa) pág. 148 …………………………………………….. (fragmento de gravura) ……………………………... (Coguillot, 1889) …………………………………………..
…..pág. 151 (fragmento de Aula na Casa Pia de Lisboa) (A Ilustração Portuguesa de 8 de Abril de 1907)
Prótese-ouvinte
390
pág. 169…………………………………… Aula de treino auditivo e rítmico (Amaral, 1954)
pág. 175…………………. O Sr. Presidente da República assistindo a um
dos exercícios no Instituto de Surdos-mudos
(Anuário, 1924)
……………………………………… pág. 189 (fragmento de aula de trabalhos manuais na secção de surdos da Casa Pia) (Amaral, 1954)
pág. 191 Correcção da respiração (Amaral, 1954) pág. 191 ………………. Observação audiométrica (Amaral, 1954)
Índice de imagens
391
pág. 201…………………… Observação psicológica pela Escala de Weschler
(Amaral, 1954)
pág. 211……………………………. Alunos vestindo-se depois do banho
(A ilustração Portuguesa de 8 de Abril de 1907)
pág. 235 (fragmentos de gravuras)
……… (Coguillot, 1889)
pág. 238 …………………………………………………….
Estudo de pronunciação pelo movimento dos lábios diante
de um espelho ……………………
(A Ilustração Portuguesa de 6 de Maio de 1907)
pág. 253
Exercício de treino táctil
(Ferreira, 1922 b)
Prótese-ouvinte
392
pág. 259 ………………………………………………… (fragmentos de gravuras) (Coguillot, 1889)
pág.262……………………… (fragmento de aula de
treino sensorial)
(Amaral,1954)
pág. 263 ……. Exercícios ………….(Ferreira, 1924)
pág. 264………………… Exercício de respiração no aparelho de compressão
(A Ilustração Portuguesa de 6 de Maio de 1907)
Índice de imagens
393
pág. 266 (Coguillot, 1889)
pág. 267
Exercício de sopro na régua graduada
(A Ilustração Portuguesa de 6 de Maio de 1907)
pág. 271 ……………………..
Exercício de provocação da voz (A Ilustração Portuguesa de 6 de
Maio de 1907)
pág.279
Exercícios de equilíbrio e exercícios de ritmo (Amaral, 1954)
Prótese-ouvinte
394
pág. 289 e 290
Páginas de O Português pela Imagem
pág. 303…………. gravura de O Português pela Imagem
Índice de imagens
395
pág. 308 (fragmento de gravura de O Português pela Imagem)
pág. 309…………………….(fragmentos de
gravuras de O Português pela Imagem)
pág. 315
Lições de coisas… (Amaral, 1954)
pág. 327……. Aulas nas Oficinas (A Ilustração
Portuguesa de 8 de Abril de 1907)
pág. 341……………………….
Exercício de desenho
(Arquivo Fotográfico de Lisboa)
pág. 351
Uma classe de desenho elementar
(A Ilustração Portuguesa de 8 de Abril de 1907)
Prótese-ouvinte
396
pág. 353
A posição do caderno
Modo de afiar o lápis ……………………. (Abreu, 1903)
pág. 366 ….. ………………………Sala de desenho da Casa Pia de Lisboa
(Arquivo Fotográfico de Lisboa)
pág.367 ……… (fragmento de aula na secção de surdos da Casa Pia)
(Amaral, 1954)
pág. 371 pág. 376
Pauta caligráfica (Abreu, 1903) (fragmentos de gravuras de O Português pela Imagem)
Índice de imagens
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