Post on 28-Jun-2020
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IMAGENS, ARTEFATOS VISUAIS E TECNOLOGIAS:
UM OLHAR A PARTIR DA CULTURA VISUAL
Fernando Miranda
Tradução: Danilo de Assis Clímaco
Quando a reflexão nos conduz a considerar as artes visuais, o lugar das imagens na
condição contemporânea e suas possibilidades pedagógicas surge de forma imediata a
precaução e a necessidade de se caracterizarem os limites do território no qual nos
moveremos. O debate é interminável, volta uma e outra vez tanto à academia como ao campo
das práticas de criação e conclui sempre na impossibilidade de acordos para além do
provisório.
Educadores, professores e mestres que trabalham na educação das artes visuais devem
assumir que se desempenham em um campo cujo chão é movediço, seus limites difusos e que
as seguranças conceituais e disciplinares que obtiveram em sua formação de base dificilmente
pode ajudá-los em todas as ocasiões. Por outra parte, o uso atual das tecnologias e artefatos
visuais de diferentes ordens não faz mais do que complicar as coisas, já que a diversidade de
meios pelos quais se produzem, distribuem-se, acessa-se e se consumem as imagens se
multiplicaram. E isto vale para analisar a produção visual das artes, mas também das
corporações, das redes sociais, da comunicação e do mercado.
Tal conjunto de repertórios de imagens vem a dar o enquadramento no qual se
estabelecem as relações e construções de identidade dos sujeitos tanto como as referências
para a produção de visualidades diferentes. No entanto, não há lugar para o desconsolo e a
impotência, uma vez que devemos transformar esta realidade em uma possibilidade, em um
desafio de ação que nos permita exercer nossa tarefa educativa de maneira renovada e sempre
criativa, com respeito às exigências, demandas e desafios de nossos estudantes e de nós
mesmos. Seria a questão de assumir que esta situação de aparente penumbra se encontra
marcada pelo que Giorgio Agamben define como a obscuridade da contemporaneidade:
“Todos os tempos são, para quem experimenta sua contemporaneidade, obscuros”. (2001, p.
21)
Mas, pela mesma razão, esta obscuridade implica uma atitude ativa do educador, a
qual “equivale a neutralizar as luzes provenientes da época para descobrir suas trevas, sua
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especial obscuridade, que não é, no entanto, separável das luzes”. (AGAMBEN, 2011, p. 21)
De tal modo que, como primeiro acordo com o leitor, coincidiremos com Imanol Aguirre
(2010, p. 64) com respeito ao que determina o artístico:
O que chamamos artes é o resultado dos consensos que sobre algumas formas de
simbolização adotam uma série de instituições culturalmente constituídas, que vão
se transformando ao longo da história e dos contextos culturais. Estas instituições
são as que vão definindo em cada momento o quê é e o quê não é arte, qual
daquelas atividades de simbolização que ocorrem em um determinado grupo
humano merece ou não merecem ser chamada assim.
Avançamos um pouco mais e faremos uma síntese como premissa de trabalho deste
texto. Na atualidade de nossa época, as referências se tornam ainda mais complexas para os
educadores, pelo menos por três condições que se acrescentam à delimitação do artístico: a
imaterialidade das imagens visuais predominantes e, em alguns casos, da obra de arte; a
hibridação de diferentes linguagens e meios nas práticas artísticas; e a distância na formação
docente e as consequências das práticas pedagógicas da modernidade, a todas as luzes
inadequadas para abordar a situação contemporânea. Sobre estes temas discutiremos a
continuação, a partir da perspectiva da cultura visual, como forma de contribuir à reflexão e
às práticas educativas.
Imagens imateriais e artes visuais
A procura de realização imaterial das artes visuais não é exclusiva dos
desenvolvimentos digitais ou do trabalho na rede. Os artistas conceituais já tinham sido um
exemplo de pretensão de desmaterialização da arte. A intenção de conseguir uma oposição às
lógicas de distribuição do mercado da arte, a fantasia de ir contra o sistema de propriedade da
obra, a ansiada democratização e acesso à obra artística como legado ideológico das
vanguardas de inícios do século XX, foram todos rasgos significativos de grande parte dos
movimentos artísticos dos anos cinqüenta e sessenta em diante.
A ruptura de categorias e hierarquias estabelecidas de maneira dominante foram,
posteriormente, também algumas das motivações dos primeiros artistas digitais, como o
indica Prada (2012, p. 9):
Os primeiros artistas em trabalhar no contexto específico da Internet o consideraram
como um autêntico espaço alternativo, autônomo, com uma extraordinária
capacidade para se contrapor às lógicas das instituições gestoras do mundo da arte e
como um campo ideal para o desenvolvimento de uma prática artística radicalmente
imaterial, processual, colaborativa, mais vinculada à produção de situações e
processos comunicativos particulares que à geração concreta de obras.
O começo destas novas realizações artísticas, com grande penetração visual e tecnológica,
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parece estar emparentada com formatos relacionais que, para além da produção de obra
acabada, procuram aquele desenvolvimento do ideal da vanguarda das primeiras décadas do
século passado ou da “escultura social” de Joseph Beuys da segunda metade do século XX.
Tudo o que vai no sentido de transcender a individualidade pela consideração do coletivo, do
corpo social, da massa ou da operação política sobre o comum através das artes.
Historicamente, os movimentos que expressaram alternativas à condição dominante
do sentido mercantil no artístico tiveram que lidar indefectivelmente com os instáveis
mecanismos de mercado para se apropriarem de novas manifestações (da arte conceitual, do
grafite ou da obra digital). Mas ainda assim não nos surpreende tampouco notícias como a
apropriação de uma obra do britânico e enigmático Banksy, em fevereiro de 2013. Um grafite
literalmente desmontado da parede na qual tinha sido pintado em Londres para ser leiloada
em uma casa de remates em Miami. (Figuras 1, 2 e 3)
Figura 1
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Figura 2
Figura 3
Fig. 1, 2 e 3 - Fotografias de imprensa s/d.
Grafite de Banksy em sua localização original, antes e depois de ser “roubado” e a expressão
pública da vizinhança pedindo sua devolução.
O mercado não parece ter limites para as manifestações materiais ou imateriais de
toda índole, tampouco para as práticas digitais.
Já em meados dos noventa, era muito evidente que as lógicas comerciais da arte
podiam operar para além da ausência do objeto, que o enorme poder do mercado da
arte para ‘monetizar idéias’ seria sempre capaz de extrair valor comercial inclusive
dos atos e gestos artísticos mais imateriais”. (PRADA, 2012, p. 21)
Em todo caso, o certo é que a convivência de diferentes meios, artísticos ou não, pelos
quais se produzem e se reproduzem as imagens visuais se dá em um campo em continua
expansão de possibilidades. Tais meios, em relação,
veiculam imagens de informação, de arte, ciência, ficção, publicidade, cultura
popular, enfatizando o papel e a importância das visualidades e dos meios visuais
em nosso cotidiano e na disseminação de idéias nas esferas pública e privada.
(TOURINHO & MARTINS, 2011, p. 52-53)
As consequências para a educação das artes visuais, a partir da perspectiva da cultura
visual, são evidentemente favoráveis no ponto em que os mestres e professores podem
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contribuir como possibilidades efetivas às novas realidades.
Com referencia à condição das imagens e das artes visuais, a tarefa é mais do que
demandante, mas, ao mesmo tempo, apaixona. As implicâncias são múltiplas e permitem,
justamente, incorporar o olhar dos estudantes e colocá-lo em relação com o dos professores
sem prescrições estéticas e sem construções a priori.
Para um educador (...) explorar as questões referidas ao por que esse fenômeno se
converteu em algo artístico, significa explorar na possibilidade coletiva, na
imaginação, nas categorias estéticas que estão sendo utilizadas a cada momento, no
sistema de valores implicados em cada fato artístico e na sua identificação como tal.
(AGUIRRE, 2012, p. 67)
Podemos seguir considerando imagens que percorrem as mídias e se reproduzem
indefinidamente. O premio de fotografia do ano da World Press Photo foi outorgado ao sueco
Paul Hansen. A fotografia mostra uma procissão por uma rua da Faixa de Gaza em caminho
ao funeral de um homem e de seus dois filhos pequenos, mortos por um bombardeio em sua
casa. Os corpos do pai e das crianças são levados nos ombros pelo grupo de homens que a
imagem mostra. A crueza da fotografia é por momentos, terrível e permite múltiplas entradas
de discussão e reflexão sobre a condição humana. Mas também permite outros olhares
contraditórios e complexos com respeito à construção das identidades e à circulação global
das visualidades.
Se repararmos nas vestimentas dos homens no primeiro plano, vemos que levam
elementos que identificam equipes de futebol em princípio longínquas à condição original da
imagem: a seleção argentina e o Futebol Club Barcelona. (Figura 4)
Figura 4. Paul Hansen.
World Press Photo Prize, Fotografia do Ano (2012), detalhe.
Então, as perguntas que devemos nos fazer não são já sobre a intenção autoral – que
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consideremos mais adiante – ou do contexto da imagem, mas fundamentalmente as seguintes:
o que diz a imagem de mim? O que diz de minha condição humana, profissional e pessoal?
No que me interroga como homem e como pai de três filhos esta procissão fúnebre composta
unicamente por homens? O que me questiona como torcedor consequente de futebol? Como
reconhecer as relações que produzo com respeito a minha condição de espectador e minhas
formas de relação com as imagens visuais?
Podemos encontrar exemplos incipientes da condição pedagógica das imagens visuais
em múltiplas expressões, em particular, no território das artes visuais. É, em todo caso, tarefa
e desafio do educador utilizar essas possibilidades para tornar complexo o olhar acostumado
e evidente do visual.
Fig. 5 Luis Camnitzer (1967), detalhe.
Em tal caso, obras de artistas como Luis Camnitzer abrem a possibilidade educativa
de refletir sobre o fato de que a mesma figura possa ser a representação de um túnel ou de um
envelope, tal como o referem as imagens da figura 5, mas também uma habitação, uma caixa,
etc. Ou seja, a construção e a completitude da imagem não está em si mesma ou na intenção
do criador, mas em que o espectador – para o caso, os estudantes – devem ser, eles mesmos,
criadores de significados e de sentidos, autores de suas próprias representações.
Neste jogo de relações que produzimos com Imanol Agirre, em que o cultural define o
artístico, estabelece-se também a condição autoral no sentido expresso. Por isso, na condição
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virtual, na denominada rede 2.0, ou seja, naqueles formatos da condição do digital em que a
participação, interatividade e atuação dos usuários são promovidas e privilegiadas – e para o
caso, dá igual que nos refiramos a professores, criadores, estudantes, etc. – as possibilidades
de autoria e relação são múltiplas em entradas e diversas em bifurcações de saída.
A condição profissional de quem estava reconhecidamente autorizado a produzir
imagens, relações e produtos criativos – individual ou coletivamente – fica, pelo menos,
suspendida nas novas coordenadas que marcam o campo. Por tanto, uma das principais
consequências será que o criador amador do séc. XX, considerado por sua falta de
profissionalismo, seu saber menor ou sua incapacidade de se fazer ver e ouvir socialmente,
será modificado pelo amador da rede 2.0 aquela caracterização “já não será válida para
definir o criador amador no contexto da web 2.0. Pelo contrário, é ele agora que mais difusão
vai dar a suas produções, uma vez que não espera um benefício econômico em troca delas”.
(PRADA, 2012, p. 40)
O criador amador utilizará livremente todos os meios de produção e difusão digitais,
uma vez que não considera, como na lógica do mercado da arte, que tal distribuição – nos
dizeres de Prada (2012) “massiva e gratuita” – atente contra seus interesses criativos por
serem amplos e livres. No entanto, na verdade, trata-se também de um modelo empresarial e
de obtenção de ganâncias no qual, como sustenta o próprio Prada (2012, p. 27),
a produção afetiva e as interações vitais se convertem na base essencial da nova
produção econômica mediante o desenvolvimento de redes sociais e de plataformas
colaborativas que canalizam, em entornos fortemente submetidos às lógicas
empresariais, o desejo coletivo de expansão e de contato.
As consequências para a educação, especialmente para a educação das artes visuais,
não são abarcáveis ainda. Na medida em que convivemos com o fenômeno, a distância é
ainda estreita para uma cabal compreensão, uma vez que é certo também que as
possibilidades alternativas de gerar ações através da rede estão ainda inexploradas em sua
totalidade. Mesmo assim, isto não deixa de constituir uma oportunidade. Como sustenta
Prada (2012, p. 27),
(...) devemos reconhecer as imensas possibilidades emancipatórias que, em todas
direções, se abriram nesta tremenda intensificação das interações comunicativas e
afetivas através das redes. É evidente que temos que celebrar a amplitude das
possibilidades sociais e de ação política oferecidas pela expansão da conectividade
digital (...)
Em tal contexto, a pesquisa de Alfred Porres, de cujo trabalho principal tomamos
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somente alguns conceitos breves aqui, é um insumo fundamental para analisar as
consequências deste modelo nas aulas e para não desestimar as consequências sociais,
cognitivas e emocionais que implica. Porres, observando o trabalho na sala de informática,
verifica a diferença entre o uso das tecnologias quando se dirigem às tarefas escolares e
quando os alunos fazem seus próprios usos sociais e relacionais.
Um sinal Elementar, mas, muito forte, é a constatação seguinte:
A cadência de escritura mudava. O ritmo lerdo com o qual escreviam as tarefas
propostas na aula dava espaço para uma digitação compassada e fluída, quase
musical. Internet para essas crianças era – e é – fundamentalmente uma maneira de
estar com outros. (PORRES, 2012, p. 135)
Desta forma, estamos convencidos de que não podemos depreciar estes espaços de
convergência entre a condição do uso das imagens e das artes visuais, das tecnologias e a
condição relacional das práticas em entornos de virtualidade. Em todo caso, a tarefa
educativa deveria se orientar a construir alternativas que permitam dar conta destes
processos, não para os pedagogizar e institucionalizar, mas para promover experiências
educativas que os considerem.
As práticas indisciplináveis
Se fechamos o apartado anterior mostrando a necessidade de mudanças para a
educação das artes visuais que sejam relevantes e interessantes para os envolvidos em tais
experiências, é porque não devemos evadir a nova situação como se nada tivesse passado e a
atualidade fosse a de cem ou mais anos atrás, ou como se esperássemos um novo impulso de
vanguardas salvadoras.
Acreditamos, com Rancière (2010), que o “trabalho da arte, em suas formas novas,
superou a antiga produção de objetos para ver” (2010, p. 73). De tal forma, a produção de
experiências, a geração de espaços de relação, a promoção de diversas formas de participação
criativa, são novas maneiras que não sempre remetem ao objeto material visível, aquele que
parece articular a tradição educativa neste campo. Entre outras coisas, porque as práticas
artísticas – aquelas que têm a ver com a realização digital ou outras de caráter efêmero ou
experiencial – contradizem os princípios de estabilidade e permanência que formavam parte
da articulação básica do mundo da arte.
Essas mesmas práticas e produções subvertem, ao menos temporariamente, as
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qualidades de possessão e propriedade do objeto artístico material (PRADA, 2013) e,
também, geram novos mecanismos de conservação, registro, arquivo e exposição com
respeito à arte e às imagens visuais. Os novos meios disponíveis e as novas tecnologias
cobram, então, relevância na possibilidade da memória e da experiência e produzem
condições de transcendência com respeito ao tempo e ao espaço de sua produção, habilitando
experiências novas. Neste sentido, expressa-se Bourriaud (2009, p. 96):
Uma performance de Vito Aconcci feita em 1970, da que somente subsistiria uma
documentação fotográfica e testemunhos, representa potencialmente o mesmo valor
que uma escultura exposta na sala de um museu (neste caso, o valor de uma
partitura que pode ser novamente tocada, mas também a de um acontecimento
artístico cuja onda expansiva não se reduz para nada à sua duração física.
Esta condição da experiência não somente guarda o documento histórico, mas a possibilidade
de, como vimos, transcender as fronteiras com respeito à circulação das visualidades, dos
relatos e das ações.
Um bom exemplo disto é a difundida ação do grupo ativista FEMEN, na igreja de
Notre Dame, na ocasião da renúncia do Papa Bento XVI, em fevereiro de 2013. Naquela
oportunidade, o grupo levou adiante uma ação nessa igreja, com legendas pintadas sobre o
corpo das mulheres que a realizavam, fazendo soar os sinos interiores do edifício, batendo
neles e gritando consignas a favor da renúncia do Papa e contra a homofobia.
Como poderíamos qualificar uma ação que é ao mesmo tempo política, social,
pública, mas que toma recursos da criação artística contemporânea? Tratar-se-á de uma
performance artística com conteúdos políticos e sociais? Ou é uma ação política que serve
como formas de produção da arte?
Qualquer resposta que escolhamos para entrar no assunto tem mais aristas relevantes,
as quais surgem de sua condição fundamental: a possibilidade de transcendência de uma
experiência efêmera e localizada, eminentemente visual, pelo uso programado das
tecnologias para seu registro, arquivo, reutilização e distribuição. Tudo isso é clave para que
um usuário da rede em Montevidéu possa ver, quase em tempo real, a ação de um grupo
ativista de mulheres ucranianas operando na capital da Franca, o que será logo citado em uma
publicação no Brasil.
A educação das artes visuais não pode permanecer ignorante destas realidades e tratá-
las como se nada acontecesse ou como se não fosse de sua competência.
A permeabilidade da arte para com outros sistemas simbólicos é bidirecional, por
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isso dizemos que é um sistema cultural. Do mesmo modo que a arte toma elementos
da religião, da filosofia, da vida cotidiana e do esporte e os incorpora em seu
discurso, acontece ao revés, também a arte proporciona elementos de contexto
cultural a outros sistemas simbólicos para transformá-los (AGUIRRE, 2011, p. 65).
Acrescentado a tudo isto, o trabalho de pós-produção permite circular de maneira
ilimitada um material de pouco menos de quatro minutos em que se narra a preparação dos
corpos, a espera do momento de atuar na igreja, o centro da ação em seu desenvolvimento, as
formas de repressão da mesma e seu registro por dezenas de fotógrafos que produzirão
posteriormente centenas de imagens do ato, até a declaração final das participantes.
Portanto, a complexidade e a hibridação das linguagens nos levam a pensar que o
ponto a atender não é a determinação do pertencimento disciplinar da ação, mas a
possibilidade de utilização das imagens de maneira a produzir experiências que coloquem os
estudantes em sua condição de criação. Este não é um perigo que exceda à perspectiva da
cultura visual no sentido de que, como sustentamos em outro lugar deste texto, não se trata de
uma maior acumulação de imagens, mas de refundar a relação do sujeito com essas imagens.
(...) ao reduzir o território da cultura visual a manifestações culturais das Belas
Artes ou dos meios de comunicação de massas, todos esses exemplos, na minha
opinião, induzem a que os estudantes – tanto se considerados ativos como se
passivos – sejam vistos mais como espectadores que como produtores culturais
(PORRES, 2012, p. 155).
De tal forma, insistimos também neste texto em que as categorias analíticas da
estética formalista não nos conduzem à solução dos problemas propostos com respeito à
condição visual atual em relação ao tema educativo. No entanto, as instituições parecem
empenhadas em descartar possibilidades novas e a sobreposição de olhares sobre a educação
das artes visuais continua conduzindo aqueles elementos formais na análise de práticas para
as quais tais conceitos são menores, irrelevantes ou inadequados. Situação especialmente
evidente quando os conteúdos se articulam em pontos programáticos ressaltados, por
exemplo, no Programa de Educación Inicial y Primaria en Uruguay: “a arte contemporânea
no Uruguai. A linha e a cor em artistas contemporâneos” (ANEP, 2008, p. 293)
Tais categorias não dão conta dos assuntos de interesse que relacionam os estudantes
com as imagens cotidianamente. Tal como ressalta Imanol Aguirre (2009, p. 47):
O elevado grau de iconicidade das imagens vem a constituir um rasgo substitutório
do mais netamente moderno de beleza, que não é uma categoria estética relevante
no imaginário visual dos jovens. Nas imagens de sua preferência, mostram mais
inclinação pelo pitoresco, pelo grotesco, pelo humorístico ou pelo horrível, ou seja,
por sentimentos ou sensações de grande intensidade emotiva, próprias da cultura do
espetáculo, que por outras mais sutis ou delicadas.
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Baseando-nos nestas condições, postulamos que a formação de educadores,
professoras e mestres deve considerar novos elementos para gerar com interesse experiências
e conteúdos para a educação das artes visuais.
A formação dos educadores
A construção da tradição na educação artística e particularmente na educação das artes
visuais teve, em nossos países, muito arraigo nas figuras que foram consagradas como
representantes do patrimônio artístico das nações. Esta representação quase heróica, que
termina produzindo próceres da arte e cânones aceitados de beleza, marca a formação
disciplinar e educativa de base com a qual, posteriormente, deverá se enfrentar
profissionalmente a ação educativa.
A consequência é que surge então um patrimônio limitado esteticamente, respaldado
institucionalmente em museus e escolas como (o único) valioso, além de ser segmentado em
seu acesso com respeito a alguns setores da sociedade. Obviamente, este conjunto de artistas
e obras se nutre, além do mais, daqueles referenciados internacionalmente nas histórias da
arte correntes, multiplicadas em textos e manuais.
No entanto, não são finalmente este conjunto de artistas e obras os que constituem as
fontes principais de referencialidade estética dos estudantes, tampouco, em definitiva, das
novas gerações de professores, mestras e educadores.
Por isso é que coincidimos em que deveríamos
(...) desmistificar os artefatos artísticos e convertê-los simplesmente em
materializações da experiência (...) porque hoje, o que constitui o universo estético
de nossos jovens estudantes, não são precisamente as obras que as instituições
artísticas determinaram como arte, mas aquilo que tem a ver com a cultura visual, a
cultura popular e tudo o mais (AGUIRRE, 2010, p. 73).
Porque o concreto é que, para além dos esforços por promover a aproximação à arte,
“o acesso que temos às imagens cotidianas é muito superior ao que temos às produções
artísticas. (...) na maioria das vezes estas imagens tem uma atração sedutora muito grande e
vem ao encontro de nossos sonhos adocicados” (RANGELl, 2012, p. 104). As mudanças
sofridas em nossas sociedades contemporâneas, ainda com suas particularidades de centros e
periferias que fazem particulares as assunções locais dos fenômenos, não podem deixar de ser
consideradas para a formação dos educadores.
É inegável, como mostramos, que tais transformações modificam as condições
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econômicas e sociais dos coletivos, mas também afetam as relações e formas de vinculação
identitária, afetiva e sensível com as imagens e as pessoas. Por tanto, também o que deve
mudar são as maneiras de aprender e ensinar, pois as informações, recursos, tecnologias e
vínculos que se estabelecem entre os sujeitos e com o mundo estão demandando formas
inovadoras e criativas do educativo.
Tal como sustentam Irene Tourinho e Raimundo Martins (2011, p. 57):
O propósito da educação da cultura visual não é substituir conceitos, abordagens
curriculares ou práticas de ensino da arte, mas introduzir e incorporar no fazer
artístico a discussão do lugar/espaço das imagens – qualquer imagem ou artefato
artístico – e seu potencial educativo na experiência humana.
Mas se novamente chamamos a atenção a estas análises é para localizar nossa idéia de
educação artística como pós-produção, em sua possibilidade de reutilizar o conjunto profuso
de imagens visuais, especialmente aqueles de particulares significações para a produção da
experiência estética.
Neste marco, a formação de educadores tem que possibilitar os recursos para criar
situações e promover experiências que produzam e transformem conteúdos educativos a
partir dos repertórios da cultura visual e das artes visuais, recontextualizando as imagens,
criando possibilidades de produção pelos alunos, introduzindo temas e relações possíveis,
alterando criticamente os sentidos originais a favor da interpretação e da ação dos estudantes.
Isto é especialmente importante, como ressalta Mitchell (2009), se damos atenção à
pergunta sobre como se vive em uma comunidade em que não há nenhuma imagem pública
utópica, assim como nenhum monumento com o qual simbolizar as aspirações coletivas. Ou
seja, onde a identidade pessoal se constrói pelo fetichismo das mercadorias ou onde não
existem possibilidades que deem apoio aos educadores, mestres e professoras quando o
debate público sobre imagens, obras e produções visuais parecem comover, ao menos
temporariamente, os imaginários coletivos.
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Fig. 6 Yoo Young-Ho (2012), “Greeting man”, Montevidéu
É ocioso insistir em que a introdução da tecnologia, exclusivamente, não soluciona os
assuntos conceituais com respeito às transformações possíveis. Sobre isto e sobre a
dificuldade de encontrar elementos possíveis que deem conta de nossa relação com as
imagens visuais construtoras de utopias públicas, basta nos referirmos à superficialidade com
a qual se celebrou a instalação do “Greeting Man” do artista coreano Yoo Young-Ho em
Montevidéu em 2012 (Figura 6). Para além das brincadeiras e mostras protocolares ou da
incredulidade e assombro causados pelo gigante celeste, o certo é que ninguém incorporou
seriamente ao debate da educação das artes visuais o que fazer para considerar a produção, a
distribuição e o uso de imagens públicas que impactam coletivamente, ainda que não sempre
tenha que se vincular a artefatos visuais de seis metros de altura.
Como mostramos em outros escritos (MIRANDA, 2012), devemos formar mestres e
professores para a pós-produção educativa das imagens visuais e das artes, para que estas
sejam conceitualmente transformadas, deslocadas e novamente localizadas, roteirizadas em
novas narrativas, relatadas em histórias que permitam a ação. Por isso, tomamos para o
educativo o conceito de pós-produção.
‘Pós-produção’ é um termo técnico utilizado no mundo da televisão, do cinema e do
vídeo. Designa o conjunto de processos efetuados sobre um material gravado: a
montagem, a inclusão de outras fonte visuais ou sonoras, o legendar, as vozes em
off, os efeitos especiais (BOURRIAUD, 2007, p. 7).
Aconteceu que os objetivos da educação artística foram sempre os de tentar provocar
um ajuste entre o público (determinado público) e a arte (determinada arte). Os esforços se
encaminharam em como fazer que as pessoas apreciassem corretamente a obra artística,
compreendendo seus aspectos formais, sua materialidade e desentranhando a mensagem que
a mesma conteria. O fenômeno da percepção do continuum entre intenção autoral, obra e
espectador, ressaltado Jacques Rancière (2010), que já referenciamos neste texto.
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Por sua parte, a possibilidade de formar educadores para a pós-produção educativa
deve por a disposição os conteúdos da cultura visual e das artes não para provocar aquele
ajuste, mas pelo contrário para ampliar os sentidos possíveis e enriquecer a experiência
estética a partir dos diversos repertórios visuais e do que acontece ao reder destes. Assim,
como na idéia de pós-produção, acrescenta-se a possibilidade de que “não se trata mais de
elaborar uma forma a partir de um material bruto, mas de trabalhar com objetos que já estão
circulando no mercado cultural, ou seja, já informados por outros” (BOURRIAUD, 2007, p.
7-8).
As novas tecnologias aplicadas à produção artística, assim como o lugar do virtual,
acrescentam complexidade à análise necessária sobre as artes visuais e sobre as tensões entre
materialidade e imagem; criação e distribuição; produção e utilização. Tudo isso não pode ser
obviado em um novo programa para a educação das artes visuais.
O usuário de internet cria sua própria homepage; conduzindo incessantemente a
recortar as informações obtidas, inventa percursos que poderá consignar em seus
bookmarks e reproduzir à vontade. (...) O internauta imagina vínculos, relações
justas entre lugares dispares (BOURRIAUD, 2007, p. 15).
Finalmente, uma chamada de atenção iniludível para a formação de educadores passa
pela consciência dos supostos e fundamentos que sustentam as práticas em educação artística,
mais concretamente nas artes visuais. A educação das artes visuais não pode obviar desvelar
os elementos constitutivos, históricos, ideológicos, pedagógicos e estéticos que sustentam
diferentes formas de atuação.
A associação da educação artística – e das artes visuais em particular – a uma suposta
abertura expressiva da subjetividade infantil ou juvenil deu uma idéia predominante de
ausência de interesses políticos e pedagógicos de tal educação em geral. Numerosas ações se
sustentam, mesmo que o desconheçam, em equivocados supostos de naturalidade,
ingenuidade e livre expressão carente de condicionamentos.
A educação dos educadores, no entanto, deve preparar estes para assumir
conscientemente os fundamentos de sua ação e que, em todo caso e para além de qual seja o
caminho a ser percorrido, este sempre deve estar sustentado em visões informadas em
diversos sentidos.
Tal como expressa Belidson Dias (2012, p. 72):
(...) ainda sem ser prescritivo com relação a qual seria a melhor pedagogia a ser
utilizada, é fundamental que, sobre tudo os educadores em arte, possam desenvolver
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a compreensão crítica de que as imagens que vivem em nossa vida, inclusive as
visualidades da escola, não são expressões de um mundo puro, infantil e sem
problemas, mas construções sociais evadidas de estruturas e sistemas de poder que,
ao se constituírem, também nos constroem como sujeitos.
A partir daqui, deveríamos considerar que nossa própria construção como educadores,
particularmente no campo da educação das artes visuais, não pode ignorar suas próprias
formas de reconhecimento. Ou seja, o passo que nos permite ser conscientes de nosso ser
docente e estabelecer nossa narrativa pessoal – e autobiográfica – sobre como produzimos
nossas práticas e como somos produzidos por elas.
Em conclusão
Deixamos propostas aqui algumas reflexões ao redor da construção cultural que
delimita o campo das artes visuais provisoriamente em cada época e contexto. Se as práticas
artísticas se modificam, se mudam as condições de produção, se a consideração da criação
não mais corresponde exclusivamente ao autor, então não podemos continuar ensinando
como se não houvesse transcorrido cem anos desde a revolução que causou Marcel Duchamp
com seu urinário transformado em fonte.
De tal forma, acreditamos como também particularmente relevante a perspectiva da
cultura visual na educação artística, na medida em que devemos considerar o acervo das
imagens da arte, mas também o conjunto de representações visuais, meios, tecnologias e
artefatos que fazem a construção de significados e sentidos. Que produzem identidade,
adesões e recusas.
Não se trata de incorporar mais e mais imagens, mas de compreender e atuar sobre as
formas em que nos relacionamos com elas, como as utilizamos para representar e construir o
mundo, mas, por sua vez, como somos construídos pelas imagens e o quanto mostram elas de
nós.
Referencias
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Grupo de trabajo sobre educación y práctica artística. Sesiones comentadas. Valladolid:
Museo Patio Herreriano – Departamento de Investigación y Educación, 2010, p. 63-80.
AGUIRRE, I. Culturas juveniles y ambientes escolares. En JIMÉNEZ, L.; AGUIRRE, I.;
PIMENTEL, L. G. (Eds.) Educación artística, cultura y ciudadanía. Madrid: OEI –
Santillana, 2009, p. 45-57.
16
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