Post on 10-Feb-2018
Histria, Memria e Cultura Material: poltica e estratgias de preservao do
patrimnio edificado durante os governos militares no Brasil (1964-1985)
ANA PAULA DA SILVA*
Introduo
A noo de patrimnio cultural vem ampliando-se nas ltimas dcadas, tornando-se
mais abrangente em relao no apenas aos conceitos, mas s categorias de bens materiais e
imateriais que compem o que chamado patrimnio cultural e o patrimnio arquitetnico.
Este ltimo concebia uma espcie de coleo de objetos identificados e catalogados
como representantes da arquitetura do passado, dignos de preservao especialmente por sua
idade de edificao. Desta forma, tais bens ficavam presos noo de monumento nico,
muitas vezes desvinculado de seu significado histrico para os diversos grupos sociais.
Somente a partir da segunda metade do sculo XX essa ideia passou a ser ampliada, e os
critrios estilsticos e histricos foram se juntando, bem como a preocupao com o entorno, a
ambincia e os significados simblicos.
J a noo de patrimnio cultural sofreu uma ampliao especialmente a partir da
contribuio da Antropologia, passando ento a englobar grupos e segmentos sociais que
ficavam margeados da histria e da cultura dominante. Assim, ao lado dos bens mveis e
imveis, tiveram espao tambm as manifestaes artsticas, com toda a sua indumentria, e
os utenslios do chamado fazer popular.
A partir desta breve reflexo abre-se um novo espao para os estudos acerca do
patrimnio cultural edificado, ou seja, bens materiais imveis valorados esttica,
arquitetnica, histrica e simbolicamente, aos quais se aplicou a medida jurdica
administrativa do tombamento como forma de proteo legal.
Entretanto, importante destacar que mesmo aps o incio destes questionamentos
conceituais, a definio daquilo que deveria ou no receber a categoria de patrimnio cultural
* Universidade Estadual Paulista Jlio de Mesquita Filho - Faculdade de Cincias Humanas e Sociais (UNESP-FCHS). Graduada, Mestre e Doutoranda em Histria. E-mail: anapaulahistoria@yahoo.com.br
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edificado, digno de ser protegido, restaurado e exibido como representantes da histria-
memria de um pas e/ou estado continuou nas mos de um grupo restrito de profissionais,
sob tutela do estado.
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pensando nisso que este trabalho se prope a discutir algumas questes acerca dos
papis e parmetros utilizados durante o regime militar brasileiro (1964-1985), na
(re)construo da identidade e da memria nacional a partir do campo do patrimnio cultural
edificado e em que medida este foi utilizado nos projetos poltico-sociais militares. Da mesma
forma, analisa as polticas culturais do perodo, relacionadas ao patrimnio, por meio da
atuao do rgo federal SPHAN/DPHAN/IPHAN1 e rgos estaduais CONDEPHAAT/SP2 e
IEPHA/MG3, identificando as suas implantaes, formas de atuao e possveis interaes
entre si, assim como a maneira como dialogaram e/ou tiveram suas aes direcionadas ou
cerceadas pelo pensamento autoritrio naquele momento da poltica brasileira.
A criao do SPHAN e as primeiras dcadas de trabalho voltado para a preservao do
patrimnio cultural edificado brasileiro
No Brasil a primeira ao normativa em favor da preservao do patrimnio cultural
ocorreu em 1937 pelo Decreto-lei n 25, atravs do qual se definiu como patrimnio cultural a
ser preservado legalmente (...) o conjunto de bem imveis existentes no pas e cuja
conservao seja de interesse pblico, quer por sua vinculao a fatos memorveis da histria
do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueolgico, bibliogrfico ou artstico.4
Como mecanismo de proteo aos bens materiais edificados foi institudo o
tombamento, voluntrio ou compulsrio, cabendo ao Estado a responsabilidade de determinar
quais os valores culturais inerentes ao bem que o tornava significativo para o grupo social ao
qual ele reporta-se, limitando seu uso e/ou destinao, uma vez que tais bens no poderiam ser
destrudos, demolidos ou mutilados sem autorizao do rgo competente do tombamento,
sob pena de multa em caso de infrao. O estabelecimento desta ferramenta jurdica
possibilitou, em larga escala, a proteo legal de exemplares arquitetnicos representativos da
1 O Servio de Patrimnio Histrico e Artstico Nacional (SPHAN) foi originalmente organizado pelo Decreto n. 25 de 30/11/1937; em 1946 foi transformado em Diretoria (DPHAN); em 1970 passou a ser Instituto (IPHAN); em 1979 foi transformado em Secretaria (SPHAN); em 1981 transformou-se em Subsecretaria; em 1990 passou a denominar-se Instituto Brasileiro de Patrimnio Cultural (UBPC); em 1994 voltou a denominar-se Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional (IPHAN). 2 O Conselho de Defesa do Patrimnio Histrico, Artstico e Turstico do estado de So Paulo (CONDEPHAT) foi originalmente criado na Constituio do Estado de So Paulo de 1967 e organizado pela Lei n. 10.247, atravs da qual alcanou a guarda tambm do patrimnio arqueolgico, razo do acrscimo de mais uma vogal em sua sigla - CONDEPHAAT. 3 O Instituto Estadual do Patrimnio Histrico e Artstico de Minas Gerais (IEPHA/MG) foi criado pela Lei n. 5.775 de 30/09/1971. 4 Artigo 1 do Decreto-lei n. 25 de 30/11/1937.
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arquitetura civil e religiosa do perodo colonial brasileiro, atravs da ao do SPHAN,
tambm criado pelo Decreto-lei n. 25.
At a dcada de 1960 as questes relacionadas ao patrimnio cultural edificado foram
de atribuio exclusiva do poder federal. No caso de So Paulo foram reconhecidas como
patrimnio, como representaes do passado paulista, especialmente as edificaes
remanescentes do povoamento do litoral, as casas rurais bandeiristas, sedes de antigas
fazendas de caf, capelas e igrejas do sculo XVI (RODRIGUES, 2000).
No caso de Minas Gerais, a atuao do SPHAN recaiu sobre os exemplares da cultura
barroca, especialmente as igrejas, capelas e conjuntos arquitetnicos, bens localizados,
sobretudo, em Ouro Preto, Mariana, Diamantina, Sabar e So Joo Del Rey. A justificativa
para o expressivo nmero de tombamentos no estado em relao a todo o pas era a de que em
Minas Gerais localizavam-se os bens representantes de maior expresso artstica nacional e
tambm em virtude de marcos da Inconfidncia Mineira que, embora tenha fracassado,
significava um smbolo oficial dos ideais nacionalistas de autonomia poltica (GONALVES,
1966:72).
A atuao do rgo federal nas suas quatro primeiras dcadas teve uma importncia
inegvel na preservao do patrimnio cultural edificado dos estados de Minas Gerais e So
Paulo, entretanto, estabeleceu o reconhecimento de uma arquitetura regional que somente era
discutida por especialistas acadmicos, distante do cotidiano da maioria da populao para a
qual os bens eram apresentados como portadores de importncia para a histrica da nao e da
arquitetura brasileira. Assim, embora estes bens fossem integrantes da paisagem cotidiana,
tendiam a representar um universo distante, alheio ao cidado comum, resgatados do
esquecimento unicamente atravs da atuao do SPHAN (FONSECA, 1997:284).
Os governos militares e as aes relacionadas ao patrimnio cultural edificado
Levando-se em conta que as representaes culturais so oriundas das relaes sociais,
notvel o fato de que o patrimnio cultural edificado um importante cone da memria,
revelando e permitindo a anlise da trajetria humana em mltiplas temporalidades,
configurando-se num peculiar objeto de estudos para os historiadores. Enquanto smbolos da
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memria coletiva, protegidos legalmente pelo Estado atravs do tombamento, esto marcados
por conflitos, esquecimentos, silncios, disputas de poder e subordinados s vicissitudes e aos
interesses dos sujeitos individuais e coletivos que atuam nas diversas conjunturas. Assim,
constituem-se em um campo frtil para a anlise das disputas polticas, sociais e, sobretudo,
das prticas de exerccio do poder. Tal fecundidade temtica desperta a ateno e suscita
indagaes acerca das articulaes, estratgias, aes e polticas culturais relacionadas ao
patrimnio cultural edificado brasileiro, durante a atuao dos governos militares de 1964 a
1985, por tratar-se este de um peculiar momento poltico da histria recente do pas.
Sabe-se que em 1964 ocorreu mais uma interveno militar na vida poltica nacional,
num momento visto como de crise geral da sociedade brasileira, impondo-se ento uma nova
ordem sob o lema da Doutrina de Segurana Nacional com a finalidade de promover uma
renovao conservadora para assegurar a estabilidade econmica, social e poltica em nome
da restaurao da ordem e do equilbrio social.
A partir de ento, ressalvadas algumas diferenas em relao s diretrizes e, sobretudo,
aos meios polticos e medidas econmicas utilizadas para o alcance dos fins almejados,
iniciou-se um ciclo de governos em que os principais propsitos foram reconstituir o pas sob
o ponto de vista poltico e econmico e firmar um novo modelo institucional e financeiro
capaz de assegurar a estabilidade poltica e o crescimento econmico.
A interveno dos militares na cultura tornou-se incisiva e alcanou o patrimnio
edificado do ponto de vista de sua valorizao econmica. Buscando obter vantagens
financeiras, foi estabelecida no Brasil, em junho daquele ano, a primeira Representao da
UNESCO, possibilitando a cooperao tcnica na rea patrimon