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1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
GRISALHAS: UM ESTUDO SOBRE CABELO, LIBERDADE FEMININA E
“POLÍTICA-VIDA”
Tatiana Miranda1
Carlos Eduardo Fialho2
Resumo: Esse estudo tem como objetivo analisar as motivações de mulheres que assumem os
cabelos grisalhos. Nas dezenas de entrevistas que realizamos, com mulheres dos 20 aos 80 anos,
percebemos que existe uma forte atitude política ao deixar de pintar o fios brancos. Entretanto, é
uma política que se aproxima da ideia de “política- vida”, (Guiddens; 2002): “a política-vida refere-
se a questões políticas que fluem a partir dos processos de auto-realização em contextos pós-
tradicionais, onde influências globalizantes penetram no projeto reflexivo do eu e virse-versa”.
Percebemos que assumir os cabelos brancos é, para muitas mulheres, tanto uma forma de liberdade
quanto de reivindicação do direito das mulheres sobre sua aparência física e sobre as formas de lidar
com seu envelhecimento.
Palavras-chave: mulheres grisalhas, envelhecimento feminino, política-vida.
Introdução
A aceitação do embranquecimento dos cabelos, fator natural no processo do envelhecimento
do ser humano, sempre foi uma prática quase que exclusivamente masculina. Especialmente na
meia idade, época em que o processo de embranquecimento dos fios se intensifica. Para as mulheres,
principalmente aquelas que ainda não chegaram à terceira idade, o uso dos cabelos naturalmente
grisalhos ainda é um tabu.
Visto como sinal de desleixo e fator de “denuncia” o envelhecimento (fator que, ainda hoje é
como um crime para as mulheres, que devem manter uma aparência eternamente jovem), os cabelos
grisalhos não são bem-aceitos entre as mulheres. Nos homens, ao contrário, o cabelo grisalho evoca
um tipo de charme ligado à maturidade e experiência.
Entretanto, na esteira dos discursos contemporâneos que questionam o padrão de beleza no
qual só cabem mulheres altas, magras (ou com músculos perfeitamente torneados), brancas, com
cabelos lisos, com corpos desprovidos de “imperfeições” tipicamente femininas (celulites, estrias,
cicatrizes de cesariana) e, logicamente, com aparência jovial, observamos um aumento de mulheres
que assumem os cabelos grisalhos.
Entre as mulheres públicas, que se tornam modelos de inspiração para as mulheres (WOLF,
1992) podemos citar algumas que usam seus cabelos naturalmente grisalhos e brancos: Sarah Harris
1 Doutora em Ciências Sociais. Analista do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística- Rio de Janeiro- Brasil. 2 Doutor em Comunicação Social. Professor Associado do Departamento de Sociologia da Universidade Federal
Fluminense- Niterói- Brasil.
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(editora de moda da Vogue inglesa), Christine Lagarde (diretora do FMI), e, no Brasil, as atrizes
Cássia Kiss e Vera Holtz são outros exemplos.
Para nós, pesquisadores, o tema do cabelo grisalho nas mulheres nos interessou pois o
vemos como uma transgressão e um enfrentamento aos modelos de ideal físico que são esperados
com relação ao corpo das mulheres. Em uma primeira observação, uma mulher que se recusa a
tingir seus cabelos brancos, nos fala de diversos conteúdos: aceitação do envelhecimento,
questionamento de padrões engessados de beleza (e da própria beleza como atributo obrigatório em
uma mulher), poder feminino de decisão sobre seu próprio corpo e diversos outros. Com isso
elaboramos uma pesquisa de campo para investigar as motivações para assumir os cabelos grisalhos
e as consequências do ato no cotidiano das mulheres entrevistadas.
Realizamos 55 entrevistas abertas com mulheres, de idades entre 20 e 80 anos, que possuem
cabelos naturalmente brancos ou grisalhos e que não utilizam, atualmente, tinturas para escondê-los.
As perguntas abordaram os seguintes temas gerais: o uso de tinturas no passado, o apoio de amigos,
companheiros ou familiares para o uso do cabelo branco, os motivos para assumir os fios grisalhos,
os sentimentos que afloraram após deixar de pintar os fios, a admiração ou discriminação das
demais pessoas e as formas como o cabelo grisalho afeta a autoimagem dessas mulheres.
Corpo, cabelo e subjetividade
Marcel Mauss, no seu estudo intitulado “As técnicas corporais” (1934), nos relata que o
corpo repleto de símbolos é o instrumento técnico primordial em que se inscrevem as tradições,
cultura e aprendizados de uma determinada sociedade. Dessa maneira, o corpo e a aparência física
de uma pessoa são carregados de simbologias e informações que fazem sua mediação com o mundo.
Determinados itens de nossa aparência podem trazer importantes dados sobre nossa personalidade a
serem exibidos para o mundo externo. Louro, 2001, reafirma que nosso corpo é uma construção
cultural: “através de processos culturais, definimos o que é- ou não- natural: produzimos e
transformamos e natureza e a biologia e, consequentemente, as tornamos históricas. Os corpos
ganham sentidos socialmente” (LOURO, 2001, p 11).
Na contemporaneidade, observamos o enorme destaque que é conferido ao corpo.
Os imperativos pelo corpo forte, belo, jovem e saudável, ocupam a pauta de preocupações
das pessoas. Outro ponto importante são os discursos que responsabilizam os atores pela
magreza e juventude de seu corpo, delegando aos que não conseguem se encaixar nesse
padrão o estigma de preguiçosos e desleixados. O corpo forte, magro e jovem é o único
aceitável, de acordo com os discursos mais massificados (geralmente veiculados pelas
grandes mídias). Visto como objeto a ser exposto, objeto de consumo, a manipulação
corporal, hoje, alcança um nível de banalização jamais visto anteriormente nas sociedades,
apesar do tema da transformação corporal ser milenar na história da humanidade. “O corpo
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é muitas vezes considerado pela tecnologia como um rascunho a ser retificado, senão no
nível da espécie, pelo menos no nível do indivíduo, uma matéria-prima a ser arranjada de
outra forma” (LE BRETON, 2009, p 22).
Entre as alterações em diversas partes do corpo, é dado um destaque especial aos cabelos.
Mauss, no estudo acima citado, ressaltou a importância do cabelo na vida social de um indivíduo
quando afirma que os cabelos passam por diferentes fases ao longo da vida de uma pessoa, podendo
variar de acordo com o papel desempenhado pelo indivíduo em determinado grupo. O cabelo, pelo
seu lugar de evidência no corpo, funcionando como uma moldura para o rosto, e pela relativa
facilidade de manipulá-lo, é um importante fator na criação e reforço de identidades. De acordo
com Queiroz e Otta (2000), a simbologia das partes do corpo pode ser associada às suas metades
superior e inferior. Sendo que a parte superior se destaca pela sua relação com as funções mais
importantes.
Segmentado, dividido à luz de critérios simbólicos ou classificatórios, as suas diferentes
partes dão margens a representações variadas. A porção superior é associada as suas
funções mais relevantes.
Na cabeça, encontra-se a face e nesta a boca e os olhos, os órgãos mais expressivos para a
comunicação humana, marca de identidade da pessoa, e o crânio, sede do cérebro e da
razão, justamente a faculdade que mais nos distinguiria dos animais. A porção inferior do
corpo reúne os órgãos considerados mais animalescos e “indignos”, reprodutivos,
digestores e excretores (…). (QUEIROZ; OTTA, 2000: 23)
Os cabelos funcionam como um importante veículo de comunicação e troca com o mundo.
Através do significado da cor, corte, textura ou comprimento, cria-se imagens de si a serem
veiculadas no meio social. Dessa maneira, o cabelo pode ser visto como uma das partes do corpo
que estabelece uma relação subjetiva com o mundo. Patrícia Bouzón nos informa que “o cabelo
classifica e hierarquiza, qualifica e desqualifica, exclui e inclui, aproxima e distancia, deixando
pouco espaço para indefinições” (BOUZÓN, 2010, ps 278-279), sendo um dos elementos de
representação dos indivíduos no cenário social. O grande objetivo da modificação corporal, de uma
maneira geral, está pouco ligado à satisfação com a modificação física. O que se deseja, com a
manipulação da aparência física, são os ganhos simbólicos ali embutidos.
Dessa maneira, ao observarmos sobre o destacado aspecto subjetivo embutido nos cabelos, é
interessante pensar que a atitude ir contra um tabu (mulheres que, especialmente as jovens e de
meia-idade, não tingem os cabelos brancos) pode nos informar sobre conteúdos ligados aos
processos de empoderamento feminino. Bem como a inauguração de novas imagens sobre a mulher
madura. Ao lado da imagem da mulher mais velha que procura esconder os sinais da idade (sendo o
4 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
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cabelo, inclusive pela já citada facilidade de manipulação, o adereço corporal que é o primeiro alvo
do camuflamento da velhice), surge a imagem de uma mulher que não procura esconder esses sinais.
A juventude e beleza como deveres femininos
Podemos dizer que, na contemporaneidade, destacando o caso brasileiro, os discursos sobre
a mulher bela a atraente aceitam apenas um tipo de aparência física: jovem, magra (ou a variação
“sarada”) e de traços harmônicos. A velhice feminina, ainda está afastada do que se pode considerar
como uma mulher bonita e sexualmente interessante.
Na contemporaneidade, a imposição de um físico atlético, forte, jovem e saudável, tornam a
ideia de envelhecer um tabu. “Sinais de uma derrota na luta pela permanência do aspecto juvenil, as
rugas são moralmente condenáveis devido à sua indecência: a velhice é um direito negado ou algo
que deveria permanecer oculto, longe ambicionar a tão cotada visibilidade” (SIBILIA, 2011, p 83).
A velhice feminina parece requerer um novo status, mais positivo e desvinculado da
obsessão por imagens padronizadas de beleza ligadas, exclusivamente à jovialidade. Naomi Wolf
(1992), ressalta que, após a primeira e segunda ondas feministas, nas quais as mulheres lutaram para
conquistar diversos direitos, se fortaleceu uma nova, e poderosa, forma de opressão feminina: O
mito da beleza.
Um maior número de mulheres dispõe de mais dinheiro, poder, maior campo
de ação e reconhecimento legal do que antes. No entanto, em termos de como nos
sentimos do ponto de vista físico, podemos realmente estar em pior situação que
nossas avós não liberadas. Pesquisas recentes revelam com uniformidade que em
meio à maioria das mulheres que trabalham, têm sucesso, são atraentes e controladas
no mundo ocidental, existe uma subvida secreta que envenena nossa liberdade:
imersa em conceitos de beleza, ela é um escuro vilão de ódio a nós mesmas,
obsessões com o físico, pânico de envelhecer e pavor de perder o controle.
(…) Estamos em meio a uma violenta reação contra o feminismo que
emprega imagens da beleza feminina como uma arma política contra a evolução da
mulher: o mito da beleza (Wolf, 1992, p12).
Entretanto, se existe uma neurose feminina generalizada com relação a beleza e
aparência física existe, também, um movimento contrário. O questionamento dos padrões de beleza
e o avanço de ações que os contrariam são constantes na contemporaneidade. Mulheres de cabelos
crespos e cacheados que deixam de alisar os cabelos, mulheres gordas que desistem de serem
magras e se sentem confortáveis com seus corpos, mulheres que fotografam suas marcas físicas
(cicatrizes, celulites e estrias) e compartilham em redes sociais como forma de naturalizar o que o
mito da beleza chama de “imperfeições”, mulheres que deixam de pintar os fios brancos e
estabelecem uma relação mais saudável com os processos de envelhecimento.
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Muitas das grisalhas que entrevistamos, a maioria, disse que a palavra que mais se adéqua ao
ato de deixar de pintar os cabelos brancos é liberdade. Libertar-se de uma obrigação desconfortável
(pintar os cabelos a cada quinzena) para corresponder a um padrão de beleza imposto. As
entrevistadas passaram a não ver mais sentido em sacrificar-se para atender às demandas externas.
Pelo contrário, buscam por um bem-estar também ligado a aceitação e admiração de sua aparência
física e de seus cabelos brancos.
Do tingido ao grisalho- o processo de transição
Entre as mulheres que entrevistamos a grande maioria disse que sempre haviam tingido os
cabelos brancos. As cores escolhidas variavam do tom natural do cabelo, a uma variação de tons de
tempos em tempos. Outro ponto interessante é que grande parte das entrevistadas relatou que o ato
de tingir os fios brancos era automático. Nunca haviam se questionado sobre a necessidade ou
desejo de pintar os cabelos grisalhos. Era como se não existisse a opção de não pintar, a opção de
ser uma mulher grisalha. Essa ausência de opção também está ligada ao julgamento que sofrem,
ainda hoje, as mulheres (como já citado, especialmente as jovens e de meia idade que assumem os
cabelos brancos e grisalhos).
Além do ato automático de pintar os cabelos brancos, muitas das entrevistadas relataram que
esse ato estava diretamente ligado à manutenção da aparência jovial. Pintar os cabelos para parecer
mais jovem. A escrita norte americana Anne Kraemer, relatou sua experiência ao assumir seus
cabelos brancos no livro “Meus cabelos estão ficando brancos mas eu me sinto cada vez mais
poderosa” (2007). A escritora relata que tingia os cabelos para ter a falsa ideia de que poderia
permanentemente se sentir com 34 anos. Ela não estava preparada para ter a aparência de sua idade
cronológica. “Embora nunca tivesse enganado a idade, simplesmente não estava preparada para
parecer minha idade. E achei que, se ficasse com minha cor natural de cabelo, seja ela qual fosse,
instantaneamente pareceria mais velha. Qual era o problema em parecer minha idade? (KRAEMER,
2007,p 17).
Esse tipo de questionamento, atrelado à exaustão de se submeter a um dispendioso e
demorado processo químico-cosmético a cada semana, quinzena ou mês, foram os disparadores
para Anne, e grande parte de nossas entrevistadas, iniciarem o processo de transição do cabelo
tingido para o cabelo grisalho ou branco. “Ao chegar perto dos cinquenta, dei-me conta de que
estava exausta da manutenção tirânica, do enorme investimento de tempo e dinheiro apenas para
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parecer mais jovem- ou, pelo menos, não mais velha. (…) Então, quão horrorosa poderia ser minha
cor natural- qualquer que fosse, comparada à libertação?” (KRAEMER, ibid, p 18)
Muitas entrevistadas relataram que o processo de transição do cabelo tingido para o cabelo
branco é uma das partes mais difíceis do projeto de tornarem-se assumidamente grisalhas.
Permanecer durante meses ou anos com os cabelos com cor indefinida, raízes brancas e pontas dos
cabelos pintadas, foi visto como algo penoso para as mulheres que entrevistamos.
Na contemporaneidade, com relação à estética feminina, observamos alguns movimentos de
resgate da forma natural da aparência física de cada mulher. Existe uma vertente dos discursos
femininos, e feministas, que se propõe a valorizar a individualidade estética de cada mulher
rejeitando, dessa maneira, padrões massificados de beleza. Um bom exemplo é o de mulheres que
estão deixando de alisar seus cabelos. A moda dos alisamentos no Brasil impôs, durante muito
tempo, um padrão de cabelos lisos que forma uma antítese com os cabelos naturalmente crespos e
cacheados da brasileira média. Usar os cabelos naturalmente enrolados ou afro, estava fora de
questão. Porém, com esse novo movimento pela naturalização da aparência feminina, vemos muitas
cacheadas e crespas em processo de transição para os cabelos naturais. Algumas dessas mulheres,
com o intuito de acelerar o processo, cortam todo o cabelo alisado deixando somente a parte natural,
elas nomeiam esse ato como BC (Big Chop), o que é por si só mais um ato de enfrentamento de
padrões estéticos massificados, já que vivemos em um país no qual os cabelos femininos longos são
altamente valorizados.
De acordo com os discursos que recolhemos nas entrevistas, pudemos perceber que as
motivações para usar os cabelos grisalhos se conectam com uma vontade de livrar-se dos
incômodos que as tinturas de cabelo causavam a essas mulheres: uso do tempo, dinheiro, danos à
saúde dos cabelos e outros. A percepção de que as tinturas não são uma obrigação, mas uma
alternativa, possibilitou, para as mulheres que entrevistamos, uma forma mais livre de lidar com sua
aparência física e o questionamento de padrões massificados de beleza.
Cabelos grisalhos, liberdade e “política-vida”
Um ponto em comum nos discursos todas as mulheres que entrevistamos, foi a ideia de que
o cabelo grisalho aumentou sua autoestima. A atitude de assumir os cabelos naturalmente brancos e
grisalhos trouxe poder para essas mulheres, de acordo com seus relatos. A coragem de quebrar um
tabu: o da suposta disparidade entre beleza feminina e envelhecimento, trouxe uma nova visão
sobre estar bem com sua aparência física e uma ampliação da ideia de beleza para nossas
entrevistadas.
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Para além dos modelos padronizados de beleza, essas mulheres disseram sentirem-se muito
bem com seus cabelos grisalhos, se sentirem mais bonitas e até com uma aparência mais coerente
com sua real idade. A palavra-chave é liberdade. Os relatos destacaram uma liberdade tão grande
que trouxe um novo olhar sobre si mesmas e um gostar de si muito maior.
“5- Como se sente com os cabelos brancos? Gosto muito, acho bonito, natural, libertador… sou
feliz com a minha decisão.
6- Ser grisalha aumentou ou diminuiu sua segurança com relação à sua aparência? Aumentou.
7- Você se sente mais autêntica com os cabelos brancos? Por que? SIM, esta sou EU. não mais a
loira, ruiva, noiada, velha. A maturidade faz com q você assuma sua idade, seu corpo (não sou gorda)
mas não tenho mais o corpinho de 30 anos.” (Entrevistada 34, 52 anos, fisioterapeuta, Nürnberg,
Alemanha)
Ao pensar sobre a sensação de liberdade que nossas entrevistadas disseram experimentar ao
poderem decidir sobre tingir ou não os cabelos brancos, podemos fazer uma ligação com o tema da
disciplina imposta ao corpo das mulheres. Foucault (1987) nos informa sobre as sociedades
disciplinares (implantadas por volta dos séculos XVII e XVIII) e as formas como agiam sobre os
corpos dos indivíduos.
O momento histórico das disciplinas é o momento em que nasce uma arte do corpo
humano, que visa não unicamente o aumento de suas habilidades, nem tampouco aproveitar
sua sujeição, mas a formação de uma relação que no mesmo mecanismo o torna mais
obediente quanto é mais útil, e inversamente. Forma-se então uma política das coerções que
são um trabalho sobre o corpo, uma manipulação calculada, de seus elementos, de seus
gestos, de seus comportamentos. O corpo humano entre numa maquinaria de poder que o
esquadrinha, o desarticula e o recompõe (FOUCAULT, 1987, p 119).
Historicamente os imperativos da disciplina sobre os corpos recaem de maneira mais forte
sobre as mulheres. A mulher deve estar sempre limpa, perfumada, sem pelos, elegante e fisicamente
bem cuidada. Com relação ao gestual deve ser contida, sentar-se de pernas cruzadas, rir e falar
baixo. Inclusive sobre a liberdade de decidir sobre seu corpo existe uma forte disciplina que vai
desde a proibição do aborto em nações ocidentais desenvolvidas até a mutilação genital feminina
comum em algumas sociedades tribais. Por mais que exista, simbolicamente, a liberdade e poder da
mulher sobre seu corpo, concretamente, por influência da forte cultura de dominação masculina
sobre as mulheres, o corpo feminino deve responder ao forte poder disciplinar que lhe é imposto.
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Ao observar a atitude de nossas entrevistadas de quebrarem o tabu do envelhecimento
feminino através do ato de assumir seus fios brancos, pensamos no quanto esse atitude pode ser
vista como política. Não a política emancipatória, que procura libertar a todos das amarras da
tradição e dos costumes, mas uma política mais individualizada, política que confere às pessoas o
poder de tomar decisões sobre a forma como ela pretende viver a sua vida. Esse tipo de política foi
nomeada por Anthony Giddens (2002) como “política- vida”. Giddens diferencia a política
emancipatória da política-vida:
Defino a política emancipatória como uma visão genérica interessada, acima de tudo,
em libertar os indivíduos e grupos das limitações que afetam negativamente suas
oportunidades de vida. Ela envolve dois elementos principais: o esforço por romper as
algemas do passado, permitindo assim uma atitude transformadora em relação ao futuro; e
o objetivo de superar a dominação ilegítima de alguns indivíduos e grupos por outros.
(…) Para dar uma definição formal: a política-vida refere-se a questões políticas que
fluem a partir dos processos de autorrealização em contextos pós-tradicionais, onde
influências globalizantes penetram profundamente no projeto reflexivo do eu e,
inversamente, onde os processos de autorrealização influenciam as estratégias globais
(GIDDENS, 2002, ps 194 e 197).
Dessa maneira podemos compreender a política-vida como uma política de decisões de vida,
de estilos de vida. Uma política que se conecta com as escolhas individuais das pessoas. Uma
liberdade de escolha que não se limita a padrões de comportamento e formas de vida tradicionais
disseminados na esfera cultural. Ao contrário, a política-vida é um existir político pautado na
liberdade individual, independente do status quo.
No caso das mulheres grisalhas que entrevistamos, a busca pela liberdade e a coragem de
quebrar um tabu (mulheres, especialmente as jovens e de meia-idade com cabelos grisalhos) se
conectam com o tema da política-vida pois é uma atuação no campo individual, mas que, ao mesmo
tempo, contesta toda uma tradição sobre o que se espera de uma mulher: que tenha sempre um
aspecto jovem.
Ao falar da política-vida como uma política de decisões de vida, Giddens nos informa que
essas decisões são, primordialmente, aquelas que afetam a própria identidade (pensando na auto-
identidade como uma realização reflexiva). “ A narrativa da auto-identidade deve ser formada,
alterada e reflexivamente sustentada em relação a circunstâncias da vida social que mudam
rapidamente, numa escala local e global” (GIDDENS, Ibid, 198). Dessa maneira, frente a
diversidade e fluidez de eventos da vida contemporânea, uma pessoa será capaz de conectar
acontecimentos passados com projetos para o futuro, criando um caminho para um modo de vida
razoavelmente coerente, se for capaz de “desenvolver uma autenticidade interior- um referencial de
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confiança básica por meio do qual a vida pode ser entendida como uma unidade contra o pano de
fundo de eventos sociais em mudança” (GIDDENS, Ibid, 198).
Algumas das perguntas do nosso questionário tinham como tema a questão da identidade. As
respostas das entrevistadas nos fazem pensar em uma busca desse grupo de mulheres por uma
identidade que seja condizente com suas opiniões sobre envelhecimento feminino e aparência física.
Não se trata de supor que somente as mulheres que não pintam os fios grisalhos são capazes de
elaborar uma identidade que a faça sentir mais confortável com a questão do envelhecimento. Mas
sim que, é possível escolher e decidir sobre pintar, ou não, os fios brancos. O imperativo da tintura é
quebrado pela liberdade de escolha da mulher que opta por ser grisalha. Sim, existem mulheres que
se sentem mais confortáveis e empoderadas ao assumir um dos mais aparentes aspectos do
envelhecimento (os fios brancos) e, dessa forma, se sentem capazes de elaborar uma autenticidade
interior sobre esse tema.
“11- O que você acha que seu cabelo branco comunica às pessoas? Que eu faço minhas regras,
não me submeto.
17- Com os cabelos grisalhos você se sente mais próxima de sua real identidade? Eu me sinto
mais próxima de mim, mais dona de mim, menos sujeita a regras e convenções. É libertador! Assim
como raspar a cabeça, acho que as mulheres deviam raspar seus cabelos ao menos uma vez na
vida!” (Entrevistada 5, 53 anos, Psicóloga Clínica, São José dos Campos)
“9- Você se reconheceu uma nova pessoa quando se tornou grisalha? Totalmente. Me sinto
muito mais EU. E acho interessante colocar que no desenrolar dessa trajetória, da descoberta do
meu EU, resolvi também assumir meu cabelo crespo. Esse processo de autoaceitação é algo muito
mais profundo do que um simples modismo. É autoconhecimento.” (Entrevistada 10, 48 anos,
professora, Maceió)
As entrevistas acima citadas destacam bastante o peso da opinião e da vontade pessoal
dessas mulheres na escolha por assumir os fios grisalhos. A ideia de fazer a próprias regras, de não
se submeter a um padrão, nos revelam um tipo de ação que também se baseia na resistência ao que
se espera de uma mulher idosa ou de meia-idade (que procure amenizar os efeitos físicos do
envelhecimento). Chama a atenção a ideia de reencontro com sua identidade mais íntima e autêntica
desencadeada pela atitude de não pintar os cabelos brancos.
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Podemos pensar que, assim como o ato de não pintar os fios grisalhos, demais atitudes de
não aceitação de padrões estéticos massificados, compõem a agenda do debate feminista
contemporâneo. Como já citado, Naomi Wolf (1992) destaca que a grande opressão sobre as
mulheres na contemporaneidade se refere ao “mito da beleza”, ou seja, a obrigatoriedade da beleza
que recai sobre cada mulher.
Ainda sobre o tema das relações entre feminismo e política-vida, Giddens afirma que o
feminismo, ao levar à agenda da luta pela emanciapção feminina a ideia de que “o pessoal é
político”, inaugurou a esfera da política-vida.
O feminismo pode ser visto de maneira mais aprorpiada como inaugurando a
esfera da política-vida (…). O feminismo, pelo menos em sua forma contemporânea,
foi mais ou menos forçado a dar prioridade à questão da auto-identidade. (…) À
medida que as mulheres dão cada vez mais “dão o passo” para fora [do lar],
contribuem para processos de emancipação. Mas as feministas logo viram que, para
a mulher emancipada, questões de identidade tornavam-se de importância primordial.
Pois ao se libertarem do lar, e da vida doméstica, as mulheres enfrentavam um
ambiente social fechado. As identidades das mulheres eram definidas tão
estritamente em termos do lar e da família que “davam o passo” e entravam em
ambientes sociais em que as únicas identidades disponíveis eram aquelas oferecidas
pelos estereótipos masculinos (GIDDENS Ibid, 199).
Dessa forma, por mais emancipadas do lar e economicamente independentes que fossem, as
mulheres tinham que lidar com a visão social massificada sobre a identidade feminina. Criar uma
identidade forte e que representasse uma mulher autônoma e confiante em suas escolhas, era algo
que ficaria a cargo das próprias mulheres. Por isso a questão de identidade pessoal é tão forte para o
feminismo.
Outra questão interessante das grisalhas que entrevistamos, que também remete a uma
questão política, é o encorajamento e solidariedade que elas encontram nas redes sociais da internet.
Diversas páginas do Facebook são voltadas para que mulheres grisalhas, ou em transição para o
branco, postem fotos e relatos sobre sua atitude de assumir os fios brancos: “Tenho cabelos brancos,
e daí?” “Grisalhando com alegria” e “Branco e prata” são alguns exemplos de comunidades virtuais
que servem como motivação e apoio para muitas mulheres que, com isso, podem ver uma nova
forma de lidar com o envelhecimento feminino.
Finalmente, algumas mulheres que entrevistamos reconhecem que está surgindo um
movimento para que as mulheres, que assim desejarem, possam assumir os cabelos brancos.
Atrelado a isso, algumas entrevistadas também concordam que assumir o cabelo branco é um ato
político (pensando na ideia de política-vida).
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15- Você sente que existe um movimento para que as mulheres assumam seus cabelos
grisalhos? Sim, e em forte movimento ascendente. A mulher quer ser livre. É isso que está forçando
passagem. Queremos ser nós mesmas. A palavra “autenticidade” ressoa fortemente no discurso
dessas mulheres.
16- Você acha que ser grisalha é um ato político / uma forma de aceitação social? Sim. Sempre
que a gente assume algo que não está dentro do padrão, é um ato político. Ter cabelo curto, por
exemplo, que um monte de gente associa à lesbiandade. Ter cabelo afro, pra quem é negro. Acho
que assumir os cabelos brancos entra na mesma categoria da identidade, de se amar como você é, de
ter orgulho de ser quem você é, mesmo que isso vá contra as convenções.
(Entrevistada 22, 49 anos, professora Universitária, Fortaleza)
Conclusão
Os cabelos brancos, nas mulheres, há pouco tempo significavam o abandono com a imagem, deixar
de lado os cuidados com a beleza e, acima de tudo, o abandono do corpo à inexorável marca do tempo.
Mulheres com os cabelos grisalhos não eram sedutoras, tampouco atraentes, no máximo uma senhora
simpática, com a “cabeça branquinha”. O cabelo, mais do que as rugas que se instalam pelo rosto, mãos e,
com o passar dos anos por todo o corpo – salvo quem se esticava desesperadamente em intermináveis
cirurgias plásticas, mas a marca do tempo é mais rápida do que o desejo - era a imagem da escolha de
algumas mulheres por ocupar o lugar dos idosos, daqueles que teoricamente precisam de ajuda para viver,
dos que perderam a saúde e a vontade de ser sujeito da própria vida. Os cabelos brancos, para as mulheres,
até bem pouco tempo atrás, era o fim ou o começo do fim.
Entretanto, vemos surgir um movimento de reconhecimento do lugar do envelhecimento como uma
nova fase da vida. E assumir a identidade da mulher madura, em processo de envelhecimento, inclusive
através dos cabelos grisalhos, marca um novo lugar para o envelhecimento feminino. Em vez de ser um lugar
da neurose pela juventude (por não corresponder mais aos imperativos da aparência jovial) ou o lugar do
início do final da vida, as mulheres que entrevistamos nos mostram uma nova cara do envelhecimento
feminino. Diferentes papéis.
A ideia de uma mulher de meia-idade que assuma os cabelos brancos e ainda se sinta uma
mulher saudável, ativa, dinâmica e sexualmente ativa, vai contra a visão fornecida pelos
estereótipos masculinos sobre a mulher que envelhece. Pensamos que essas mulheres, decidindo
individualmente por exibir uma nova concepção de envelhecimento feminino, tornam o pessoal
político na medida que não se submetem a um padrão opressor que endossa o discurso de que a
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mulher que envelhece tem duas opções: ou lutar brutalmente contra todos os aspectos físicos e
simbólicos do envelhecimento e exibir uma aparência falseada de juventude ou assumir os sinais da
idade e abrir mão de sua sexualidade e vaidade. As grisalhas enfrentam esses padrões.
Referências Bibliográficas
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Women with gray hair: a study on hair, women's freedom and "politics-life"
Abstract: This study aims to find the motivations of women who assume gray hair. In the dozens
of interviews we conducted with women in their 20s and 80s, we perceive that there is a strong
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political attitude when failing to paint the white wires. However, it is a politics that approaches the
idea of "life-politics", Guiddens (2002) - "life politics refers to political issues that flow from the
processes of self-realization in post-traditional contexts, where Globalizing influences permeate the
reflexive design of self and vice versa. " We realize that assuming white hair is, for many women,
both a form of freedom and a claim to women's right to their physical appearance and ways of
dealing with their aging.
Key-words: women with gray hair, female aging, life-politics.