Post on 03-Jan-2021
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
Instituto De Geociências
Giovanna Ermani
DISPUTAS EM TORNO DO SENTIDO DE QUALIDADE EDUCACIONAL
NO CURRÍCULO DO ESTADO DE SÃO PAULO: OS CADERNOS DE GEOGRAFIA
E AS PRÁTICAS DOCENTES
Campinas
2019
Giovanna Ermani
DISPUTAS EM TORNO DO SENTIDO DE QUALIDADE
EDUCACIONAL NO CURRÍCULO DO ESTADO DE SÃO PAULO: OS
CADERNOS DE GEOGRAFIA E AS PRÁTICAS DOCENTES
DISSERTAÇÃO APRESENTADA AO
INSTITUTO DE GEOCIÊNCIAS DA
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE
CAMPINAS PARA A OBTENÇÃO DO
TÍTULO DE MESTRA EM GEOGRAFIA,
NA ÁREA DE ANÁLISE AMBIENTAL E
DINÂMICA TERRITORIAL
ORIENTADOR: PROF. DR. RAFAEL STRAFORINI
ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO FINAL
DA DISSERTAÇÃO DEFENDIDA PELA ALUNA
GIOVANNA ERMANI, E ORIENTADA PELO PROF.
DR. RAFAEL STRAFORINI
Campinas
2019
Ficha catalográficaUniversidade Estadual de CampinasBiblioteca do Instituto de Geociências
Marta dos Santos - CRB 8/5892
Ermani, Giovanna, 1991- Er55d ErmDisputas em torno do sentido de qualidade educacional no currículo do
estado de São Paulo : os cadernos de geografia e as práticas docentes /Giovanna Ermani. – Campinas, SP : [s.n.], 2019.
ErmOrientador: Rafael Straforini. ErmDissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de
Geociências.
Erm1. Curriculos - Planejamento - São Paulo (Estado). 2. Ensino -
Metodologia. 3. Geografia - Estudo e ensino. 4. Autonomia didático-pedagógica. I. Straforini, Rafael, 1973-. II. Universidade Estadual de Campinas.Instituto de Geociências. III. Título.
Informações para Biblioteca Digital
Título em outro idioma: Disputes over the meaning of educational quality in the curriculumof the state of São Paulo : the notebooks of geography and teching praticesPalavras-chave em inglês:Curriculum - Planning - São Paulo (State)Teaching - MethodologyGeography - Study and TeachingDidactic-pedagogical autonomyÁrea de concentração: Análise Ambiental e Dinâmica TerritorialTitulação: Mestra em GeografiaBanca examinadora:Rafael Straforini [Orientador]Luana Costa AlmeidaAna Angelita Costa Neves da RochaEvaldo PiolliData de defesa: 19-09-2019Programa de Pós-Graduação: Geografia
Identificação e informações acadêmicas do(a) aluno(a)- ORCID do autor: 0000-0003-3161-6193- Currículo Lattes do autor: http://lattes.cnpq.br/5510788282068518
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
INSTITUTO DE GEOCIÊNCIAS
AUTORA: Giovanna Ermani
DISPUTAS EM TORNO DO SENTIDO DE QUALIDADE EDUCACIONAL NO CURRÍCULO DO
ESTADO DE SÃO PAULO: OS CADERNOS DE GEOGRAFIA E AS PRÁTICAS DOCENTES
ORIENTADOR: Prof. Dr. Rafael Straforini
Aprovado em: 19 / 09 / 2019
EXAMINADORES:
Prof. Dr. Rafael Straforini - Presidente
Profa. Dra. Luana Costa Almeida
Profa. Dra. Ana Angelita Costa Neves da Rocha
Prof. Dr. Evaldo Piolli
A Ata de defesa com as respectivas assinaturas dos membros, encontra-se disponível no
SIGA - Sistema de Fluxo de Dissertação e na Secretaria de Pós-graduação do IG.
Campinas, 19 de setembro de 2019.
O que tem no chão da escola que tanto atrai (no desejo de
controle) como incomoda? (MACEDO, 2015, p. 903)
AGRADECIMENTOS
Essa dissertação foi o resultado de um processo que vem sendo construído
desde a educação básica, quando optei pela geografia, quando optei pela universidade pública
e, mais tarde, quando optei pelo ensino de geografia, pela educação. De forma que pensar nos
agradecimentos e sistematiza-los, se torna uma difícil tarefa, por isso, decidi pontuar e
agradecer algumas das grandes influências durante esse processo.
Inicio pensando nos meus professores da educação básica: à Mariana, que
lecionava geografia no meu Ensino Médio, que me fez pensar sobre a forma com que o
mundo está organizado e a desigualdade social quando trabalhou uma música do Seu Jorge,
“se eu pudesse eu não seria um problema social”, ou quando ela falava sobre o Milton Santos,
que eu nem sabia quem era, mas achava que ele tinha muitas ideias legais. Depois veio o
Rafael, meu professor de geografia do cursinho, que me mostrou que a geografia servia como
um instrumento para ler o mundo. E que por meio da geografia eu seria capaz de compreender
e transformar o mundo, o que me fez ter certeza que era isso que eu queria para a minha vida
naquele momento. Agradeço a esses dois professores em especial, mas também a todos
aqueles que passaram pela minha vida escolar e deixaram marcas teóricas e afetivas,
possibilitando o meu crescimento e minha transformação.
Agradeço aos professores da UNICAMP que me ajudaram a compreender os
métodos da geografia, que para mim foi mais importante do que qualquer conteúdo, e que os
utilizo cotidianamente em minhas aulas na educação básica, a fim de possibilitar aos meus
alunos a leitura e a intervenção no mundo em que vivem. Agradeço à professora Tereza Paes,
que me ensinou sobre metodologia da geografia enquanto ciência, o que me possibilitou
pensar em como fazer a transposição disso para o ensino da geografia escolar. O professor
Vicente Eudes, que me ensinou sobre a indignação perante as injustiças da organização
espacial da América Latina. E também me ensinou na prática o que é uma aula dialógica e
qual a importância de ouvir seu aluno. O Ricardo Castillo, que não só me ensinou sobre redes
e fluxos e sobre a geografia agrária de uma maneira brilhante, mas, principalmente, me
ensinou que uma boa aula deve ser construída de forma organizada e sistematizada; com ele
aprendi que deve-se pensar onde se quer chegar em uma aula e traçar as estratégias para
alcançar seu objetivo, sempre utilizando a didática como instrumento. À professora Adriana
Bernardes, que me ensinou sobre a geografia urbana e me trouxe uma pesada discussão sobre
Milton Santos, me ensinando que é preciso um rigor teórico e seriedade quando trabalhamos
com a construção do conhecimento. Além deles, contribuíram de forma significativa para meu
processo de construção do conhecimento, os professores Archimedes Perez, o professor
Francisco Ladeira, o professor Márcio Cataia e à professora Regina Célia.
Finalizando as influências dos docentes em minha acadêmica, trazendo os
professores Rafael e Angelita, que representam grande parte da reflexão construída nessa
dissertação, de um jeito leve e prazeroso que em muitos momentos nem parecia que
estávamos em um ambiente acadêmico. O professor Rafael Straforini, que foi muito além do
que um orientador, foi ele quem me motivou a desenvolver minha pesquisa na área do ensino
de geografia, e que me possibilitou olhar a sala de aula como um ambiente de potencialidades
infinitas, onde tudo pode virar um instrumento para a construção do conhecimento em sala de
aula, como ele diz. A forma com que ele fala sobre a educação básica me fez querer estar lá,
me fez compreender que a escola é um ambiente onde se exige uma boa formação, onde o
professor pesquisador seja capaz de refletir sobre suas práticas e atuar enquanto um
intelectual, construindo e repensando o processo de ensino-aprendizagem. A professora
Angelita me inspira, me faz querer ser melhor e me faz querer ser uma professora que permite
que meus alunos pensem e construam o conhecimento de forma compartilhada e ao mesmo
tempo autônoma, livre.
Agradeço a todos do grupo de pesquisa APEGEO, que passaram em algum
momento por mim, produzindo reflexões, orientações e relações afetivas muito intensas.
Agradeço à Anni e à Jé pela amizade e pelas conversas que sempre me moviam a pensar os
meus incômodos, saindo com novas ideias e outras tantas questões. E à Gabi e à Teté, que
estiveram comigo durante toda a graduação e no mestrado, e que compartilharam comigo não
só a técnica e teórica, mas a emoção e a afetividade, as quais levarei comigo para o resto da
vida.
Agradeço a todos os amigos que estiveram por perto nesse tempo e que
entenderam algumas de minhas ausências, e me incentivaram a continuar caminhando, tendo
forças para finalizar essa fase da minha vida; muitas vezes sendo a fonte de energia que me
faltava. Agradeço aos velhos e aos novos amigos que vão surgindo de forma espontânea e
criando suas marcas. Também agradeço à minha família, que sempre olha para minhas
escolhas com admiração, e isso me faz querer ser melhor para que eles fiquem satisfeitos.
O presente trabalho foi realizado com o apoio da Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) – Código de Financiamento 001.
Agradeço à CAPES pelo financiamento da pesquisa, à UNICAMP e à UERJ
por toda que encontrei nessas universidades e por me ensinarem a dimensão do conhecimento
enquanto algo público e que deve ser compartilhado.
RESUMO
O presente texto apresenta a reflexão desenvolvida durante minha pesquisa de mestrado, acerca das
políticas curriculares brasileiras. Concentrando essa análise no Programa São Paulo Faz Escola,
identifico os discursos que permeiam a construção dessa política, bem como, aqueles que são
produzidos a partir da instituição de instrumentos de currículo, tais como os “caderninhos”, que visam
controlar a forma com que o currículo é desenvolvido em sala de aula. Concentrando-me na relação
entre o universal e o particular, utilizo a Teoria do Discurso de Ernesto Laclau, a fim de compreender
a forma com que os professores de geografia encaram a política curricular, identificando os sentidos
de escola produzidos a partir dessas políticas curriculares, que visam estabilizar um discurso
hegemônico a partir da instituição de recursos pedagógicos que utilizam a didática enquanto
instrumento para alcançar a qualidade da educação, acabando por limitar a autonomia docente.
Palavras-chave: Políticas curriculares, Programa São Paulo Faz Escola, Didática da Geografia e
Autonomia Docente.
ABSTRACT
The following text shows a a reflexion developed inside the time of my master research, about the
Brazilian curriculum policies. Focusing this analisys in the "São Paulo Make School" (In translation to
"São Paulo faz Escola"), I identify the speechs that permeate this policities stuctures, as well as, those
that are produced by the curriculum instruments institution, such like the "Little notebooks", that aim
to control the way the curriculum is developed inside each classroom. Focusing my attention in the
relationship between universal and particular, I apply the Ernesto Laclau's Speech Theory, to
comprehend the method as the geography teachers see the actual policity, diagnosing the school's
sense produced from those curriculum policies, that aim to establish a hegemonic discourse from the
pedagogical resources instituition that applies the didatics as a tool to achieve the education's quality,
this way, limitating teacher's autonomy.
Keywords: Curriculum Policies. São Paulo Make School Program, Geography Didatics and Teacher's
Authonomy
LISTA DE FIGURAS
Imagem 1: Ilustração de um rizoma, proposta de leitura para as políticas curriculares.
Imagem 2: Currículo do Estado de São Paulo.
Imagem 3: Apresentação dos “Caderninhos”.
Imagem 4: Fragmento de uma das metodologias de ensino apresentadas no Caderno do
Professor.
Imagem 5: Fragmento de uma das metodologias de ensino apresentadas no Caderno do
Professor.
Imagem 6: Fragmento de uma das metodologias de ensino apresentadas no Caderno do
Professor.
Imagem 7: Fragmento de uma das metodologias de ensino apresentadas no Caderno do
Professor.
LISTAS DE QUADROS
Quadro 1: Teoria do discurso e seus instrumentalizadores teórico-metodológicos.
Quadro 2: Linha do tempo das teorias de currículo.
Quadro 3: Comparação entre o curso Normal e o curso de Pedagogia com relação à
concepção de teoria e prática, segundo as entrevistas de Cruz (2008).
Quadro 4: Síntese das distintas abordagens didáticas, suas concepções teóricas e seus
objetivos, segundo Candau (2008).
Quadro 5: Marcos epistemológicos da geografia acadêmica e suas reflexões na geografia
escolar.
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
AAP – Avaliação de Aprendizagem em Processo
APEGEO - Ateliê de Pesquisas e Práticas em Ensino de Geografia
ATPC – Aula de Trabalho Pedagógico Coletivo
BNCC – Base Nacional Curricular Comum
CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
CENP – Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagógicas
DE – Diretoria de Ensino
ENPEG - Encontro Nacional de Práticas de Ensino de Geografia
IDESP – Índice de Desenvolvimento da Educação de São Paulo
IGE – Instituto de Geociências
PAD – Programa de Apoio Didático
PCN – Parâmetros Curriculares Nacionais
PROPED/UERJ – Programa de Pós-Graduação e Educação/ Universidade Estadual do Rio
de Janeiro
PSDB – Partido da Social Democracia Brasileira
SARESP - Sistema de Avaliação do Rendimento Escolar do Estado de São Paulo
SEE/SP – Secretaria da Educação do Estado de São Paulo
UERJ – Universidade Estadual do Rio de Janeiro
UNICAMP – Universidade Estadual de Campinas
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.......................................................................................................................15
CAPÍTULO 1: QUESTÕES TEÓRICO METODOLÓGICAS – APRESENTANDO OS
CAMINHOS TRILHADOS DURANTE TODA A CAMINHADA DA PESQUISA ......22
1.1. A Teoria do Discurso ...................................................................................................22
1.2. Universalismo e Universalismo como categorias instrumentalizadoras na análise do
objeto de estudo .......................................................................................................................32
1.3. O discurso da “qualidade da educação” e seu corte antagônico: a qualidade da
formação docente .....................................................................................................................36
1.4. Significante Vazio como instrumentalizador teórico que auxilia na compreensão da
busca pela “qualidade da educação” ........................................................................................39
CAPÍTULO 2: O PROGRAMA SÃO PAULO FAZ ESCOLA E O CONTEXTO DA
ESCOLA: QUEM LIMITA QUEM? ...................................................................................41
2.1. A criação do Programa São Paulo Faz Escola enquanto um momento na política de
currículo do Estado de São Paulo ............................................................................................49
2.2. A política de integração curricular ................................................................................... 51
2.3. A qualidade da educação enquanto Significante Vazio ................................................... 55
2.4. Instrumentos de currículo e a busca pela utilização dos materiais prescritivos ...............60
2.4.1. Os “caderninhos” ..................................................................................................60
2.4.2. A avaliação externa ..............................................................................................71
CAPÍTULO 3: A DIDÁTICA E A METODOLOGIA DE ENSINO DE GEOGRAFIA.76
3.1. Diferentes momentos da didática enquanto campo epistemológico .................................76
3.2. Qual o lugar da didática específica associada a disciplina geografia? ..............................90
CAPÍTULO 4: ESCUTANDO AS PROFESSORAS E IDENTIFICANDO
ESCUTANDO ÀS PROFESSORAS E IDENTIFICANDO COMO OS DISCURSOS
PRODUZIDOS PELAS POLÍTICAS CURRICULARES CHEGAM ÀS ESCOLAS
.................................................................................................................................................106
4.1. As impressões sobre os “caderninhos” de quem o usa cotidianamente .........................108
4.2. A perda do intelectualismo docente em sala de aula ......................................................117
4.3. Qual a escola pública você gostaria de trabalhar? ..........................................................122
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..............................................................................................127
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...............................................................................131
ANEXOS................................................................................................................................135
15
INTRODUÇÃO
Ao olhar para trás e tentar repensar os caminhos trilhados para a construção dessa
pesquisa sinto que as indagações iniciais foram surgindo de acordo com a minha trajetória
enquanto participante do grupo de pesquisa APEGEO (Ateliê de Pesquisas e Práticas em
Ensino de Geografia), bem como enquanto professora da educação básica. Em um momento
me vi mergulhada no conceito de “recontextualização por hibridismo” (LOPES, 2005),
conceito teórico no qual baseou-se a minha pesquisa de Iniciação Científica (IC)1, ainda em
um estágio de maturação da pesquisa de IC, deparei-me com um dos encontros mais
prazerosos que a vida me proporcionou: a sala de aula. A escola passou a ocupar uma parte
significativa de minha energia física e mental, não porque eu estivesse dando muitas aulas,
mas a inicial carga de 12 horas/aulas para uma pessoa que viveu seus últimos anos
mergulhada em bibliotecas e na bolha da universidade pública, acabou pesando nessa nova
realidade.
A experiência na escola pode ser dividida em dois eixos: a sala de aula e a
relação com os colegas de trabalho; ambas permeadas de significados e adjetivos diversos.
Imagino que no decorrer deste texto algumas situações possam surgir que demonstrem, de
forma mais clara, o primeiro eixo apresentado (a sala de aula), cujos descobrimentos foram
muito prazerosos e os desafios bastante motivadores, resultando em um saldo muito positivo.
Nesse sentido, uma questão que sempre me intrigou diz respeito a metodologia de
ensino de geografia. Ao preparar as minhas aulas, muito do tempo utilizado destinava-se a
pensar na forma com que eu iria abordar os temas, quais seriam os recursos utilizados, bem
como os instrumentos que seriam aplicados a fim de facilitar o processo de
ensino/aprendizagem. Outra questão que me intrigou durante o momento em que estive
inserida de forma inicial no contexto escolar, era a grande preocupação, principalmente por
parte da coordenação, com a utilização da matriz de referência do Enem, pautada nas
competências e habilidades de cada área. O colégio possuía um sistema apostilado que havia
1 Pesquisa, sob orientação do prof. Dr. Rafael Straforini, na qual realizei uma análise comparativa de dois
documentos curriculares do estado de São Paulo, o documento da CENP (1988) e o currículo do estado de São Paulo (2010). Para refletir sobre a análise, utilizei o conceito de permanências e mudanças de Goodson (1997), na qual concluí que embora os enunciados textuais sejam distintos, os sentidos de geografia dos currículos possuem mais permanências do que mudanças. Os dois grandes discursos que encontrei no currículo atual e que não estavam presentes no currículo da CENP, portanto as mudanças, foram as tecnologias da informação, muito concentrada na obra do geógrafo Milton Santos, e o discurso ambientalista, como forma de conscientização do aluno durante a educação básica.
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elaborado a sua própria matriz de referência – que de certa maneira dialogava com a do Enem
-, para todo o Ensino Fundamental II e o Ensino Médio. Dessa maneira, durante as reuniões
pedagógica muitas vezes nos eram apresentados gráficos que demonstravam o desempenho
dos alunos de cada série em cada uma das competências e habilidades. Após isso, nós
professores, éramos convidados a uma reflexão acerca de como desenvolver tais
“habilidades” nos alunos por meio de cada disciplina durante nossas aulas.
Por outro lado, o segundo eixo me trouxe algumas surpresas. Talvez por nunca ter
trabalhado formalmente, ou por estar a muito tempo envolvida com um grupo de pessoas que
se conhecia a muito tempo, ou que pensava de forma similar, a chegada à escola me fez
construir uma percepção de que o ambiente de trabalho e, principalmente, o convívio com os
colegas de trabalho nem sempre era uma atividade que acontecia com naturalidade, como era
com os colegas de curso da geografia da UNICAMP (Universidade Estadual de Campinas).
No entanto, sem me delongar acerca dessa questão, penso que há uma grande potência à
quebra da inércia quando nos deparamos com algo distinto de nós; quando vemos e ouvimos
algo novo, somos movidos a pensar sobre aquilo, a construir visões, opiniões e conhecimento
sobre o novo. E é nesse cenário que os primeiros traços desse projeto de pesquisa começam a
ser desenhados.
Inserida nesse contexto, em uma reunião semanal da área de Ciências
Humanas, uma dos professoras comentou que na outra escola que trabalhava, uma escola
pública da rede estadual de São Paulo, já havia acabado o conteúdo bimestral, mas que estava
ajudando o professor de matemática com o conteúdo dele, auxiliando os alunos a lerem
tabelas e gráficos, que era um conteúdo importante para a prova do SARESP (Sistema de
Avaliação do Rendimento Escolar do Estado de São Paulo), que se aproximava. Inicialmente
essa frase passou por mim despercebida, como parte de uma conversa informal, mas com o
passar das semanas, as leituras que estávamos realizando no grupo de pesquisa APEGEO
(Ateliê de Pesquisa e Práticas em Ensino de Geografia), bem como meus próprios
questionamentos daquele momento, me fizeram voltar àquela frase e pensar sobre como as
avaliações externas à escola influenciavam no desenvolvimento do conteúdo das disciplinas
escolares. A partir daquele momento passei a refletir e a questionar de que forma isso
acontecia e quais eram os impactos para a geografia escolar, construindo os primeiros
pressupostos do projeto a seguir.
17
O grupo de pesquisa foi fundamental para a delimitação do método,
representado na forma pela qual o objeto seria investigado, bem como inserindo diversos
questionamentos que foram desenhando a pesquisa que apresento a seguir.
DESENHANDO A TRAJETÓRIA DO PROJETO DE PESQUISA: O INÍCIO E OS
RETOQUES QUE FORAM SENDO DADOS
Uma vez que ao longo do processo da pesquisa o próprio objeto ao qual me
debrucei foi ganhando novos recortes e novos olhares, entendo a importância de desenhar a
trajetória percorrida desde o momento em que construí o projeto como parte do processo
seletivo da pós-graduação do Instituto de Geociências (IGE) até o dia de hoje, pontuando as
diferenças no olhar para o objeto de estudo, bem como as mudanças nos questionamentos e o
surgimento de novos sujeitos.
Os incômodos iniciais, assim como mencionado acima, as falas daquela
professora mencionada acima, e meus pensamentos insistentes sobre como a geografia
poderia estar perdendo seu espaço nas escolas públicas. Ao voltar para projeto de pesquisa
elaborado para o processo de seleção da pós-graduação, os primeiros questionamentos que
apareciam eram esses:
Como a instrumentalização das metodologias de ensino presentes em
documentos curriculares tem influenciado os materiais didáticos produzidos?
Em que medida essas metodologias influenciam a forma com que o professor
planeja sua aula?
Existe uma relação direta entre as metodologias de ensino e as provas oficiais
designadas aos alunos da educação básica?
As metodologias de ensino são consideradas pelos professores como uma
parte fundamental no processo de ensino/aprendizagem na educação básica?
Percebe-se que o objeto da pesquisa, desde o início, concentrou-se na análise das
metodologias de ensino presentes nesses documentos. Naquele momento meu principal
objetivo concentrava-se em olhar as políticas curriculares como universais, como forças
maiores, cuja potência provavelmente apagariam as ações do cotidiano escolar. Em minhas
ideias iniciais o SARESP possuía uma força única nas escolas, sendo responsável por
promover sentidos de geografia com base nas questões que apareciam nas avaliações
externas; entendia que o SARESP se comportava como um norteador de currículo na
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delimitação do que deveria ser ensinado, pensando no que seria cobrado nas avaliações
externas.
A disciplina sobre avaliação externa que cursei na Faculdade de Educação da
UNICAMP, de certa forma, reforçou esse posicionamento. Durante a disciplina li e discuti
textos que trabalhavam com a avaliação externa como perversidade (FREITAS, 2005; LEITE,
2005; SORDI E SOUSA, 2009; DIAS SOBRINHO, 2010; SORDI, 2012; AFONSO, 2012),
enfatizando os aspectos negativos de sua utilização e construindo um caminho para pensá-la
de forma mais potente, como uma avaliação participativa. Ao refletir sobre o modelo que não
tem conseguido atingir o objetivo de avaliar para produzir melhorias na educação, meu
pensamento anterior era reforçado. Ao olhar para o SARESP, percebia o quanto essa prova
determinava o conhecimento escolar por meio dos conteúdos que eram legitimados por ela. A
geografia, como disciplina escolar, vem perdendo espaço por meio da construção de um
sentido distante da funcionalidade da disciplina.
Um segundo momento na construção do projeto dessa pesquisa foi durante a
realização da disciplina de seminários2, ao apresentar meu projeto para a turma, algumas
alunas da disciplina levantaram a seguinte questão: “Giovanna, quem te disse que isso ocorre
realmente assim na escola? Você precisa ouvir os professores, na escola em que eu trabalho,
porque lá ninguém liga para o SARESP, ninguém é cobrado por isso, e, embora não tendo
esse objetivo, a escola apresenta uma boa nota na avaliação”.
Confesso que isso me causou um grande desconforto, pois a forma com que havia
pensando até então não fazia sentido? A geografia desenvolvida pela professora Nathália3 em
auxílio aos professores de Língua Portuguesa e Matemática não aconteciam em outras
escolas? Por alguns dias tentei ignorar o comentário e seguir com a pesquisa. Mas, com o
passar dos dias parecia que não conseguia pensar como antes, a fala da
professora/pesquisadora, aluna da disciplina, me incomodou tanto, a ponto de ser potente para
uma outra forma de pensar. Em orientação, Rafael e eu decidimos que as entrevistas entrariam
2 A disciplina Seminários (GG013), obrigatória para os alunos de pós-graduação do Instituto de Geociências da
Unicamp, concentra-se na orientação dos projetos de pesquisa apresentados pelos alunos de mestrado e doutorado. Os alunos matriculados na disciplina apresentam os projetos divididos em subáreas temáticas da geografia e são orientados por professores convidados externos que trabalham com essa temática ou próximo a ela. 3 A professora que trabalhava comigo no colégio e que me trouxe a reflexão inspiradora para desenvolver a
minha pesquisa de mestrado.
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como metodologia da minha pesquisa. Foi, então, que montamos a entrevista e fui ouvir as
professoras4.
Ao ouvi-las5, outras questões foram surgindo. Havia a professora que era nova na
escola – e também nova na docência -, e não entendia muito bem a lógica da avaliação
externa, não incorporava questões envolvendo preparações para o SARESP à sua prática, mas
tinha momentos em que cedia às pressões da gestão escolar e trabalhava os pontos que os
alunos tinham mais dificuldade, evidenciados pelas respostas na prova. Outra professora
seguia os materiais elaborados pelo estado, os achava importante e preparava seus alunos para
o SARESP, que além de medir a qualidade da escola, recompensava os professores e gestores
com bônus. E, por fim, havia a professora que resistia a qualquer tentativa de pensar o
SARESP, o ignorava e o negava em suas aulas.
Junto da análise das entrevistas, participava do grupo de pesquisa da professora
Alice Casimiro Lopes (PROPED/UERJ)6, e, ao ler algumas questões sobre método – o
método que eu utilizo nessa pesquisa -, a professora falava sobre como algumas pessoas que,
mesmo falando e tentando encaixar em sua pesquisa o método pós-estruturalista, a exemplo
da Teoria do Discurso, ainda continuavam a fazer pesquisa de uma forma estruturalista;
fazendo perguntas e encontrando respostas que já constavam em suas hipóteses iniciais,
deixando suas pesquisas fechadas e pouco potentes às descobertas e às vozes dos sujeitos. Ao
ouvir isso, eu pensei na hora: “Essa sou eu! Desenhei o meu método na Teoria do Discurso;
forjei algumas categorias analíticas em Laclau com o objetivo de analisar meu objeto de
pesquisa; ouvi as professoras, mas mesmo assim continuo querendo pensar sobre o poder
universal do SARESP”.
Pensei sobre isso por algumas semanas, se por um lado queria repensar essas
questões e reformular o meu olhar para a pesquisa, viver o meu método, que na vida acho que
conseguia fazer de maneira mais eficiente do que na pesquisa, por outro eu pensava que essa
mudança de olhar seria impossível, seria como reestruturar (ainda posso pensar nessa
estrutura?) toda a pesquisa, tendo poucos meses para a qualificação. Encontrei o meu
4 É por esse motivo que o projeto foi submetido à Plataforma Brasil e analisado pelo Comitê de Ética, sendo
aprovado no dia 23 de junho de 2017, sob o seguinte número do parecer 2.134.477. 5 Foram entrevistadas três professoras, as quais apresentarei no capítulo 4, bem como desenvolverei quais
foram as justificativas na escolha das mesmas. 6 Durante o segundo semestre de 2017, estive em intercâmbio com a Universidade Estadual do Rio de Janeiro
(UERJ), onde tive contato direto com o grupo de pesquisa em currículo, orientado pela professora Alice Casimiro Lopes, com reuniões semanais com discussões de textos.
20
orientador na defesa de mestrado da Stéphanie, uma amiga que também faz parte do
APEGEO e disse a ele: “Strafo, nada mais faz sentido”, e ele respondeu: “que bom, isso é
ótimo. Vamos conversar...”.
Algumas semanas depois conseguimos marcar uma orientação. Durante esse
período participei do ENPEG (Encontro Nacional de Práticas de Ensino de Geografia), e
novas questões foram surgindo, ao mesmo tempo em que a angústia foi dando lugar a uma
aceitação. Essa aceitação vinha do fato de que passei a pensar que talvez fosse essa a potência
da pesquisa.
Assim, a partir dessas considerações sobre a trajetória de minha pesquisa, tive
coragem de assumir algumas “brigas”, de revirar alguns incômodos e incorporar outros.
Acredito que de todas as questões apresentadas nessa pequena trajetória, o que fica mais
latente é a mudança de olhar. A partir da compreensão mais madura dos instrumentalizadores
teóricos, por meio das leituras realizadas tanto no APEGEO como no grupo de pesquisa da
professora Alice, passei a entender que o universalismo existe em relação com diversos
particularismos, não os olhando como noções opostas, mas como posições distintas que, por
meio de conflitos, negociações e articulações, vão construindo uma hegemonia provisória,
precária e contingencial.7
Assim, entendo que
O universal é parte de minha identidade na medida em que sou
penetrado por uma falta constitutiva, isto é, na medida em que minha
identidade diferencial fracassou no processo de sua constituição. O
universal surge a partir do particular não como um princípio
subjacente a este e que o explica, mas como um horizonte incompleto,
que sutura uma identidade específica deslocada (LACLAU, 2011, p.
57).
A partir disso, a pesquisa passou a ter como objetivo a compreensão da relação
entre políticas curriculares, entendidas enquanto universais e a forma com que elas são lidas
nas escolas, considerando essa releitura enquanto os particularismos, que disputam sentidos
entre o que é hegemônico. Passei a me questionar quais são os discursos que permeiam a
construção do Programa São Paulo Faz Escola enquanto política curricular, bem como a
forma com que essas políticas são encaradas nas escolas, e essa foi a reformulação da
problemática da minha pesquisa.
7
Universalismo e particularismos são categorias instrumentalizadoras para a análise da Teoria do Discurso elaborada por Ernesto Laclau, que nessa pesquisa, constituem-se como o método pelo qual esforço-me em olhar para meu objeto de pesquisa.
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Por fim, entendo que a mudança de visão do objeto da pesquisa acabou me
levando a pesquisar os sentidos das políticas curriculares estabelecidas nas escolas pelo
Estado por meio do Programa São Paulo Faz Escola, produzindo sentidos e discursos que
alteram a dinâmica da escola e reduzem a autonomia docente.
Assim, organizei este texto a fim de possibilitar a construção de uma discussão
teórica envolvendo elementos observados na prática cotidiana da sala de aula. No primeiro
capítulo elaborei uma discussão a respeito do significado do método para a pesquisa,
elucidando a Teoria do Discurso, bem como qual sua relação com o objeto da pesquisa, e seus
instrumentalizadores teóricos utilizados nessa pesquisa. No segundo capítulo construí uma
apresentação do Programa São Paulo Faz Escola, seu contexto de criação, bem como as
principais políticas curriculares que se desenvolvem a partir dele. Ainda mais, busquei
caracterizar o documento curricular para a disciplina de geografia, analisando como os
“caderninhos” de geografia e a forma com que a utilização do mesmo acaba por influenciar na
autonomia docente. O terceiro capítulo foi escrito a partir das leituras que necessitei realizar
para compreensão da didática e das metodologias de ensino. Ao analisar os documentos
curriculares percebi que a didática é o principal instrumento utilizado nos “caderninhos”, e
que por isso é necessário refletir a respeito desse campo de conhecimento da ciência, essa
reflexão é desenvolvida no terceiro capítulo. Por fim, o quarto capítulo apresenta as
entrevistas realizadas com as professoras que atuam na rede básica de ensino paulista.
Apresento a forma com que elas se apropriam das políticas curriculares produzindo e
ressignificando sentidos, e a forma com que suas falas demonstram as intencionalidades da
aplicação do Programa São Paulo Faz Escola na rede de básica de ensino.
22
CAPÍTULO 1: QUESTÕES TEÓRICO E METODOLÓGICAS - APRESENTANDO
OS CAMINHOS TRILHADOS DURANTE TODA A CAMINHADA DA PESQUISA
Certa vez, Rafael, orientador dessa pesquisa, em uma de nossas reuniões
semanais enquanto grupo de pesquisa (APEGEO), mencionou que ao olhar para trás e
revisitar suas pesquisas anteriores, ele concluiu que as suas temáticas de pesquisa ficaram
ultrapassadas, porém, o que ficou mesmo foi o aprendizado do método da pesquisa, a forma
com que olhamos para nosso objeto. Assim, o capítulo inicial dessa dissertação concentra-se
em explicitar algo que é essencial em uma pesquisa, a visão de mundo na qual se busca olhar
o objeto de pesquisa e todas as outras questões que vão surgindo ao longo desses percursos.
Ao elaborar este capítulo, apresento um pouco da trajetória que desenvolvemos enquanto
grupo de pesquisa, onde construímos, no passar de alguns anos juntos, a compreensão e o
caminho para uma visão de mundo provisória e em constante (re) construção.
Assim, trago ao texto a Teoria do Discurso e argumento o motivo da escolha
dessa concepção teórica, uma vez que ela foi desenvolvida por cientistas políticos, Ernesto
Laclau e Chantau Mouffe, e apresenta um arcabouço teórico associado a esta ciência.
Inicialmente, desenvolvo uma linha de pensamento sobre os instrumentos teóricos que serão
utilizados na análise dos objetos da pesquisa.
1.1. A Teoria do Discurso
Pero en este movimiento general de muerte de los dioses, de las
ideologías de salvación y de los grandes sacerdotes del intelecto,
¿no estamos haciendo posible que cada hombre y cada mujer asuman plenamente la responsabilidad de su propia contingencia
y de su propio destino? (LACLAU, 2000, p. 206).
A apresentação da Teoria do Discurso enquanto método orientador dessa
pesquisa, como já mencionado, faz parte do contexto dos caminhos teóricos desenvolvidos
pelo grupo de pesquisa APEGEO ao longo dos últimos seis anos.
No início da constituição do grupo de pesquisa na UNICAMP, no ano de 2013,
concentramo-nos em leituras envolvendo o currículo, as políticas curriculares e o ensino de
geografia. As escolhas dos debates teóricos foram variadas, uma vez que o orientador do
grupo de pesquisa, Rafael, acreditava que tínhamos de compreender as diversas contribuições
teóricas no estudo do currículo, para depois escolhermos uma linha que dialogasse com a
maneira que desejássemos olhar para nosso objeto. Assim, nesse período lemos as seguintes
obras: A construção social do currículo (1997), de Yvor Goodson; Ideologia e Currículo
23
(1999), de Michael W. Apple; e, Teorias de Currículo (2011), de Alice Casimiro Lopes e
Elizabeth Macedo.
Todos esses autores contribuíram de alguma maneira na construção de nosso
entendimento sobre o currículo e aparecem ao longo de nossa trajetória como pesquisadores
na área do currículo8ao longo de nossas publicações e em nossas pesquisas sobre o tema. No
entanto, na análise de todas essas linhas teóricas sobre o currículo, o livro Teorias de
Currículo nos chamou muita atenção como grupo, não só pela complexidade do que ali era
apresentado, mas também pela referência ao olhar o currículo a partir da Teoria do Discurso,
de Ernesto Laclau e Chantau Mouffe.
O contato com a teoria, a partir da apresentação e da interpretação que as
autoras trouxeram em seu livro, fez com que Rafael sugerisse a leitura do Laclau em nosso
grupo de pesquisa. A decisão foi inicialmente ler Laclau “in natura”, mesmo que isso
significasse entender ou compreender “pouca coisa”, do que nos era apresentado enquanto
teoria. Foram meses difíceis, pois a efetiva apreensão da teoria foi lenta e demandou um
esforço para além do que estávamos acostumados. Apesar disso, foram meses importantes de
crescimento e aprendizado e o desenvolvimento de um grupo de pesquisa mais maduro. E no
final, sempre ficam “algumas coisas, mesmo que sejam mais dúvidas...”
Posteriormente, no semestre seguinte, Rafael sugeriu a leitura de autores que
trouxessem a discussão da Teoria do Discurso, como uma forma de melhorar a compreensão
de algumas questões que permeavam nossas práticas de pesquisa. Nesse momento, lemos Pós-
estruturalismo e a Teoria do Discurso: em torno de Ernesto Laclau (2014), um livro
organizado por Daniel Mendonça e Leo Rodrigues e que traz a contribuição de diversos
autores que apresentam a Teoria do Discurso, a contextualizam teórica e historicamente, e
trabalham alguns dos conceitos centrais na discussão da teoria.
A partir desse momento, passamos a compreender, enquanto grupo de
pesquisa, algumas discussões apresentadas na teoria, e fizemos o exercício de dialogar nossas
8 Como é possível notar, por exemplo, nos seguintes trabalhos:
1) ERMANI, G.; JORDAO, G. F. . Formação cidadã: prática educacional para a transformação social. In: III Encontro Regional de Ensino de Geografia, 2013, Campinas. Anais do III Encontro Regional de Ensino de Geografia: Práticas Educativas em Ensino de Geografia (re) criando os documentos curriculares. Campinas: Associação dos Geógrafos Brasileiros - Seção Campinas, 2013. v. 1. p. 113-119. 2) ERMANI, G.; JORDAO, G. F. O processo de recontextualização por hibridismo da Proposta Curricular de Geografia da CENP (1988) na atual Proposta Curricular do Estado de São Paulo para o ensino de geografia do ensino fundamental. In: Congresso Brasileiro de Geográfos, 2014, Vitória/ES. Anais Eletrônicos do VII CBG, 2014. 3) ERMANI, G.; PANUTTO, S. R. . Atuação do professor-pesquisador e a valorização do cotidiano do aluno: medidas práticas na busca de um ensino significativo. In: V Congresso Brasileiro de Educação, 2015, Bauru. Anais V Congresso Brasileiro de Educação, 2015.. 4) ERMANI, G.. A proposta curricular para o ensino de geografia - 1ºgrau da CENP/SP (1988): um momento na política de currículo brasileira. In: V Encontro Regional de Ensino de Geografia, 2016, Campinas/SP. Anais do 5º Encontro Regional de Ensino de Geografia: As políticas curriculares e o ensino de Geografia, 2016. p. 363-373.
24
pesquisas com o método da Teoria do Discurso, enxergando um sentido nas leituras, e mais,
percebendo a Teoria do Discurso enquanto o método que no momento, fazia sentido para a
leitura de nossos objetos.
Após isso, ainda lemos alguns textos onde autores e autoras que utilizavam a
teoria em suas pesquisas e em suas obras para compreender a forma com que faziam isso. Por
fim, durante o segundo semestre de 2017, em que participei do grupo de pesquisa da
professora Alice Casimiro Lopes, na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), tive
uma contribuição significativa para que esse olhar da pesquisa, a partir da Teoria do Discurso,
ocorresse de forma um pouco mais leve.
É com base nessa trajetória que apresento um pouco de como a Teoria do
Discurso é utilizada em minha pesquisa.
A Teoria do Discurso é pensada por Ernesto Laclau e Chantal Mouffe nas
últimas décadas do século XX, na obra “Hegemony and socialist strategy: towards a radical
democratic politics” (1985), a partir da “crise do Estado de Bem-estar social, a emergência de
novos movimentos sociais, o declínio da classe operária tradicional, o fim do sistema fordista
de produção e o surgimento do capitalismo pós-industrial” (GIACAGLIA, 2014, p. 94).
Laclau e Mouffe entendem que a complexidade da sociedade contemporânea
não consegue ser explicada apenas pelo marxismo, ou por qualquer teoria desenvolvida até
aquele momento. A emergência de novos movimentos sociais e o declínio da classe operária
tradicional, fez com que o marxismo ficasse
adstrito a uma concepção essencialista de sociedade, calcada,
sobretudo na lógica reducionista das relações sociais restritas ao
antagonismo capital versus trabalho. Em oposição, Laclau argumenta
que o que existe efetivamente é um complexo espectro social formado
por um sem número de identidades, constituídas a partir de relações
discursivas antagônicas distintas do antagonismo de classe que,
segundo a sua análise, tem locus particular e não a priori universal
neste intrincado jogo. Essa complexidade do social não é percebida
e/ou alcançada pelo marxismo, o que retira dessa corrente teórica a
capacidade de análise mais refinada e pertinente dos múltiplos
antagonismos sociais possíveis (MENDONÇA E RODRIGUES, 2014,
p. 48).
A teoria é elaborada a partir da observação de uma crise política generalizada,
tanto do capitalismo como do socialismo, “provocando a queda das hegemonias tradicionais e
a constituição de uma nova ordem social” (GIACAGLIA, 2014, p. 94).
Dessa maneira, entendo que Laclau observa que há a necessidade de uma
quebra de paradigma da interpretação da política e a urgência da reformulação do pensamento
25
teórico capaz de lê-la em um novo contexto, dialogando com outros autores que também
faziam o mesmo movimento.
A explosão de identidades étnicas e nacionais na Europa oriental e nos
territórios da antiga União Soviética, lutas de grupos imigrantes na
Europa ocidental, novas formas de protestos multicultural e
autoafirmação nos Estados Unidos, a que temos de acrescentar uma
gama de formas de contestação associadas aos novos movimentos
sociais (LACLAU, 2011, p. 49).
E,
A coexistência paradoxal da homogeneização e fragmentação, unidade
e diversidade, caracteriza o mundo atual. A tensão entre um processo
de globalização, que borra diferenças e institui um mercado global, e a
emergência, ao mesmo tempo, de particularismos e de
fundamentalismos de diferentes tipos, provoca, por vezes, fusões,
contaminações, mesclas, diferenças, marginalização, lutas e acirradas
guerras. Neste particular processo social atual de mundialização e
irrupção da diversidade cultural que atravessa o conjunto de nossas
práticas e funda um novo modo de ser, a integração ao sistema-
mundo de grandes massas populacionais realiza-se através da
exclusão, instaurando-se assim um sistema perverso e selvagem,
gerando profunda segmentação social (GIACAGLIA, 2014, p. 93).
A teoria do discurso ancora-se nos pressupostos teóricos do marxismo, na
filosofia desconstrutivista de Derrida, na psicanálise lacaniana, na linguística, no
estruturalismo e no pós-estruturalismo. A partir da contribuição desses pressupostos, Laclau
elabora uma teoria amparada na contingência, na precariedade, na indeterminação e na
incompletude do social (MENDONÇA E RODRIGUES, 2014).
Marchart (2014) apresenta o Peronismo na Argentina como pano de fundo no
qual Laclau elaborou inicialmente sua Teria da Hegemonia9, utilizando os pressupostos
teóricos pós-estruturalistas10
como uma ferramenta para o entendimento da política nesse
novo contexto global, desconstruindo noções clássicas do pensamento social e político e
apresentando novos sentidos a essas noções. Marchart (2014) mapeia as influências peronistas
de Laclau para a elaboração da teoria, identificando quatro desses contextos de influência que
9 A Teoria da Hegemonia, desenvolvida por Laclau é construída a partir de uma releitura do conceito de
hegemonia de Gramsci, onde este pensa a hegemonia a partir da vitória do fascismo e da impossibilidade da revolução no estilo bolchevique. E Laclau passa a apresentar um entendimento de hegemonia em termos de discursividade, a partir da impossibilidade da completude e da apresentação de um “conjunto fechado”. 10
Para esse texto, decidi não elaborar uma discussão entre fundacionismo e pós-fundacionismo, ou entre estruturalismo e pós-estruturalismo, uma vez que entendo que são questões teóricas bastante apresentadas em trabalhos recentes. Apresentadas, por exemplo, de forma esclarecedora nos primeiros capítulos da obra de Mendonça e Rodrigues (2014).
26
foram fundamentais para o desenvolvimento da Teoria do Discurso em meio a um cenário
político específico: i. Ativista do Partido Socialista Argentino; ii. Membro do Movimento
Estudantil Peronista. iii. Liderança política do Partido Socialista da Esquerda; iv. Editor do
jornal.
O entendimento das novas concepções do político é a questão de maior
importância na teoria, inserindo uma análise do contexto político a partir da percepção do
social e da lógica do discurso.
Discurso, por sua vez, não deve aqui ser entendido como um simples
reflexo de conjuntos de textos. Discurso é uma categoria que une
palavras e ações, que tem natureza material e não material e/ou ideal.
Discurso é prática, daí a noção de prática discursiva – uma vez que
quaisquer ações empreendidas por sujeitos, identidades, grupos sociais
são ações significativas (MENDONÇA E RODRIGUES, 2014, p. 49).
Nessa teoria, ao constituir o discurso enquanto categoria central de seu
desenvolvimento teórico, é aumentada a complexidade do entendimento de discurso para
além de “conjuntos de textos”. Ao considerar o discurso para além da “união entre o que se
fala e o que se escreve, mas também a forma como se age” (MENDONÇA, 2012, p. 206),
insere-se a dimensão da prática social enquanto discurso. Discursos estes que estão em
constante luta e disputam sentidos, por isso estão constantemente em articulações provisórias
e formando discursos antagônicos, cuja compreensão é necessária para o entendimento das
políticas contemporâneas, para esta pesquisa em especial, para a compreensão das políticas
curriculares do Estado de São Paulo.
O entendimento de discurso enquanto prática discursiva nos permite compreender
as diversas possibilidades de significação do social e do político, marcadas pela precariedade
e contingencialidade. Assim, a teoria de Laclau nos capacita intelectualmente para olhar a
realidade a partir do processo de significação de diferentes discursos, entendendo que não há
um projeto político fechado ou definido, apenas um conjunto de infinitas disputas de sentidos
que competem para a fixação desses sentidos.
A citação de Laclau colocada no início desse tópico demonstra um pouco do
significado de se adotar uma visão de mundo considerando o social enquanto prática
discursiva, elaborando o seguinte questionamento: ¿no estamos haciendo posible que cada
hombre y cada mujer asuman plenamente la responsabilidad de su propia contingencia y de su
propio destino? (LACLAU, 2000, p. 206). Essa responsabilidade em torno de suas decisões,
entendendo-as como contingentes e não como previamente determinadas e inclusas em um
sistema fechado, é central dentro da Teoria do Discurso e é fundamental para a interpretação
27
de políticas educacionais, em especial as políticas curriculares, além de trazer a esperança de
acreditar que as políticas não são definitivas e totalizantes, mas que estão sujeitas a conflitos
e negociações, indicando a possibilidade de outras articulações, levando-as a outros rumos.
Laclau elabora sua teoria a partir de um conjunto instrumentalizador de
conceitos que permitem o entendimento de um sistema de significação aberto, dependente de
decisões e articulações precárias e contingenciais. O quadro apresentado abaixo constitui-se
como um mapa conceitual apresentando alguns dos instrumentalizadores teóricos que
auxiliam na construção da teoria do discurso. Esses “conceitos” não apresentam o
significado/sentido associado ao senso comum, cada um deles foi ressignificado pelo autor e
apresenta um sentido dentro da teoria.
28
QUADRO 1: TEORIA DO DISCURSO E SEUS INSTRUMENTALIZADORES TEÓRICO-
METODOLÓGICOS
Fonte: Memória das leituras sobre Laclau e autores que comentam a sua obra, expostos de forma livre.
Elaboração própria
TEORIA DO DISCURSO
DISCURSO
PONTO NODAL
HEGEMONIA
ANTAGONISMO
CADEIA DE EQUIVALÊNCIA
CADEIA DE DIFERENÇA
SIGNIFICANTE VAZIO
SIGNIFICANTE FLUTUANTE
UNIVERSALISMO
PARTICULARISMO
ARTICULAÇÕES
EMANCIPAÇÃO
DEMOCRACIA
29
A Teoria do Discurso aparece no centro do quadro, comportando-se como o
eixo central, como a própria teoria, a qual os demais instrumentalizadores teórico-
metodológicos estão vinculados. Esses instrumentalizadores não podem ser analisados de
forma isolada, visto que cada um deles tem uma contribuição interpretativa na Teoria do
Discurso. A posição dos demais11
são aleatórias, com exceção da “hegemonia” que aparece
acima dos demais, uma vez que, como mencionado acima, o conceito de hegemonia, é
inerente a Teoria da Hegemonia, elaborada a partir das influências do Peronismo argentino,
onde Laclau elabora uma ressignificação do conceito de hegemonia de Gramsci e passa a
entender a hegemonia a partir do arcabouço teórico associado a essa nova forma de olhar a
sociedade, a partir dos pressupostos pós-estruturalistas; e que posteriormente, instrumentaliza
teoricamente a construção da Teoria do Discurso.
Para o autor, a hegemonia é entendida como sendo a “relação em que uma
determinada identidade, em determinado contexto histórico, de forma precária e contingente,
passa a representar, a partir de uma reação equivalencial, múltiplos elementos”
(MENDONÇA E RODRIGUES, 2014, p. 53). O sentido de hegemonia desenhado pelo autor,
relaciona-se a um conteúdo particular assumindo a função de uma plenitude ausente. Isso
acontece quando um discurso particular passa a representar discursos ou identidades que
anteriormente encontravam-se dispersas, representando uma fixação de sentidos, ainda que
provisórios, precária e contingencial. Uma vez fixado como um discurso hegemônico,
imediatamente institui-se um corte antagônico entre ele e o que ficou de fora, ou seja, com
inúmeros outros discursos na disputa por uma nova significação da hegemonia.
Utilizando a Teoria do discurso, entendo, assim como Matheus (2013, p. 40),
que
A produção curricular, nessa perspectiva, é entendida como um
processo político marcado por articulações que criam cadeias de
equivalência dentro das quais certos sentidos curriculares são
hegemonizados. A produção curricular é permeada pela tensão ente a
lógica da equivalência e a lógica da diferença.
Nesse sentido, a produção curricular, assim como qualquer outra construção
política, é resultado do conflito e da negociação de demandas ligadas a diversos agentes
envolvidos na educação, que conseguem estabelecer um conjunto de “necessidades”, e
11
Para a elaboração desse quadro teórico sobre a Teoria do Discurso utilizei apenas alguns dos instrumentalizadores teóricos que dialogam com a pesquisa. Deixo registrado que outros instrumentalizadores foram propositalmente escapados desse quadro.
30
acabam deixando de lado outras demandas que lhes eram necessárias anteriormente a
negociação. “Isto quer dizer que o universal é parte de minha identidade na medida em que
sou penetrado por uma falta constitutiva, isto é, na medida em que minha identidade
diferencial fracassou no processo de constituição” (LACLAU, 2011, p. 57).
Para tanto, as lógicas de equivalência e diferença são fundamentais para a
compreensão da constituição de políticas de currículo. No caso do objeto de estudo dessa
pesquisa, entendo que o Programa São Paulo Faz Escola12
é constituído a partir do jogo de
negociações de diferentes demandas associadas a um discurso fundamentado na defesa de
uma educação de “qualidade”. Para tanto, diversos grupos sociais entram em um campo
equivalencial de que a educação básica e pública do Estado precisa passar por profundas
mudanças em prol da qualidade da educação. Dessa maneira, uma parte da comunidade
(famílias e os próprios alunos), dos professores e demais sujeitos escolares, da comunidade
disciplinar, de instituições governamentais e do próprio Estado se unem em torno do
significante “qualidade” e fixam um sentido discursivo para ele, tornando-o universal de
modo que passe suturar as ações das políticas educacionais do São Paulo Faz Escola, a
exemplo da produção, distribuição e implementação dos cadernos de atividades e do professor
que devem ser utilizados por todos, também chamados pela comunidade escolar de
“caderninhos”13
. A outra parte, que ficou de fora dessa articulação equivalencial continuará
defendendo um ou vários outros sentidos para o significante qualidade a partir de outras
demandas, que nesse momento tornam discursos particulares ou o exterior constitutivo do
próprio discurso universal.
Considerando que essa relação construída em torno da lógica equivalencial
constitui-se enquanto contingencial e provisória, sujeita a reformulações a depender das
demandas de cada um desses grupos, compreendemos que junto a essa constituição, as
demandas não associadas ao processo de negociação, representadas pela lógica da diferença,
rapidamente aparecerão na disputa pela significação das políticas de currículo. Por exemplo,
se existe um consenso entre os diferentes grupos de que o que se espera alcançar é a qualidade
da educação, internamente a esses grupos, há também opiniões divergentes a respeito da
12
No segundo capítulo apresentarei o Programa São Paulo Faz Escola com maior detalhamento. 13
Utilizaremos o termo “caderninhos” para designar esse material apostilado construído pelo Programa São Paulo Faz Escola em forma de Caderno do Professor e Caderno do Aluno, mas que no cotidiano escolar acabou se tornando os “caderninhos”.
31
definição do sentido de qualidade, ou qual a ação política a ser utilizada para que se alcance
essa qualidade.
O fechamento de uma cadeia de equivalência é garantido por uma
diferença que foi expulsa, um antagonismo que ameaça e ao mesmo
tempo constitui a própria cadeia. A defesa de determinada proposta
curricular, nesses tempos, acontece por oposição a uma diferença, um
discurso curricular que ameaça a sua constituição, que justifica a
articulação e atua como um exterior constitutivo da cadeia
significativa (MATHEUS, 2013, p. 41).
As demandas se articulam e se posicionam à medida que se sentem ameaçadas
por outras demandas, e tornam-se temporariamente equivalentes. Nesse momento, não há a
eliminação da diferença, mas sim a equivalência temporária.
Com isso mente, para desenvolver o arcabouço teórico utilizado para a leitura
do objeto de pesquisa, apresentarei nos subtítulos abaixo três discussões teóricas: i. A
definição conceitual de universalismo e particularismo dentro da Teoria do Discurso,
identificando como os leio dentro da minha pesquisa; ii. A qualidade da educação enquanto
discurso antagônico ao projeto do estado de São Paulo; iii. Os professores e a formação
docente enquanto corte antagônico ao discurso da qualidade da educação.
32
1.2. Universalismo e Particularismo como categorias instrumentalizadoras na análise do
objeto de estudo
A caracterização do contexto histórico em que Laclau elabora a teoria
apresentada acima, permite concluir que o autor visualiza o surgimento de demandas
particulares, que não dialogam totalmente com as demandas representadas pela maior parte da
sociedade. A crise apontada nas discussões acima demonstra, para o autor, uma crise das
perspectivas universalistas, e, em contraposição, o aparecimento de múltiplas identidades
étnicas, sociais e políticas, concluindo-se que
a ideia de valores universais, sustentada pelo ocidente, encontra-se,
hoje, fortemente atacada. O pós-modernismo, ao afirmar a queda das
certezas impostas pela racionalidade ocidental moderna, significou
uma abertura voltada à ideia de pluralismo cultural e respeito às
diferenças. Dentro desse cenário, as ideias de tolerância e
multiculturalismo buscam dar algumas respostas às tensões surgidas
entre universalismo e particularismo (GIACAGLIA, 2014, p. 94).
Assim, “a queda da ideia do sujeito universal e absoluto permite pensar o
surgimento e proliferação de subjetividades e a ideia de identidades múltiplas não apenas no
âmbito social, mas também na esfera individual” (GIACAGLIA, 2014, p. 96). Para a autora, a
partir da análise da teoria de Laclau, o que se inicia é um interesse sobre subjetividades.
Laclau (2011, p. 50), elabora um resgate de como a questão da universalidade e
da particularidade vem sendo apresentada ao longo da história. Na filosofia antiga clássica, o
autor apresenta o universal como transparente à razão e o particular como corrupção. O
universal é apresentado contendo um conteúdo próprio e o particular apresenta conteúdo
apenas quando é colocado em relação com o universal. Para o cristianismo, o universal é
apresentado enquanto divino, sendo acessado apenas por meio de uma revelação, e o
particular é visto como uma encarnação. Ambos são constituídos como identidades plenas,
mas não ocorre uma relação entre eles, apenas quando há intervenção divina. Por fim, na
modernidade, a razão comporta-se como o universal e o particular encontra-se no sujeito
moderno, no burguês contaminado pela cultura europeia que disputa pela universalização de
seu particularismo por meio da expansão colonial em outros espaços (GIACAGLIA, 2014, p.
96).
No entanto, Laclau entende que essas três concepções de universalismo e
particularismos não conseguem dar conta de responder às questões sociais contemporâneas.
O espetáculo das lutas políticas e sociais dos anos 1990 parece nos
confrontar, como foi dito, com uma proliferação de particularismos,
enquanto o ponto de vista da universalidade vai cada vez mais sendo
posto de lado como um sonho totalitário e ultrapassado (LACLAU,
2011, p. 54).
33
Nas palavras acima, o autor apresenta o olhar do universalismo e
particularismo enquanto método de análise das demandas sociais contemporâneas. Após isso,
ele apresenta uma ideia fundamental para entender a relação entre esses dois
instrumentalizadores teóricos. O universalismo constitui-se como tal a partir de várias
demandas particulares que, por meio de negociações vão construindo articulações e
representam, em determinado momento, um conjunto de demandas unificadas e
provisoriamente estáveis dominando a relação de poder que há entre o universalismo e
particularismo.
Para Laclau (2011), a relação entre universalismo e particularismo vai além de
uma relação de poder, eles dependem um do outro para existir. Para compreendermos as
posições entre universal e particular, precisamos reconhecer a necessidade desses dois
instrumentalizadores serem analisados em relação um com o outro. Laclau elenca dois
motivos pelos quais o universalismo e o particularismo são dependentes um do outro para
existir. O primeiro argumento utilizado pelo autor é o de que, ao afirmarmos um
particularismo puro, independente do conteúdo de universalidade, teríamos que aceitar que
qualquer demanda particular teria o direito à autodeterminação, inclusive demandas
associadas a práticas antissociais. Assim, grupos que buscam alcançar demandas muito
distintas, ao certificarem-se da impossibilidade de atingir todas as demandas, terão que
recorrer a demandas mais gerais, cedendo e negociando a sua própria demanda particular
àquelas que no momento se apresentam como universais.
Uma segunda razão para a impossibilidade do particularismo puro, segundo
Laclau (2011) é que, supondo que exista uma possibilidade da coexistência de todas as
demandas particulares (o que o autor nega ser possível no primeiro argumento sobre a
impossibilidade do particularismo puro, mencionado acima), essas demandas não estariam em
uma relação antagônica entre si, mas existiriam de forma harmônica e coerente. Para o autor,
Essa hipótese mostra claramente porque a defesa do puro
particularismo é, em última análise, inconsistente. Pois, se cada
identidade estiver numa relação diferencial, não antagonística com
todas as outras, então a identidade em questão será puramente
diferencial e relacional; assim, pressuporá não só a presença de todas
as outras identidades, mas também o fundamento total que constitui as
diferenças enquanto diferenças (LACLAU, 2011, p. 55).
Essa relação puramente diferencial, para Laclau, garantiria a manutenção do
status quo, uma vez que essa relação diferencial não pressupõe o antagonismo, nem as
34
relações do poder entre os grupos, logo, inviabilizaria o conflito como a dimensão da
democracia radical.
Após a análise dessas questões, Laclau (2011) propõem a existência de um
universal como parte de uma falta constitutiva em si, surgindo a partir de um particular
incompleto, uma identidade específica que na luta das disputas por significação universal,
consegue uma representatividade significativa. Definindo, dessa forma, a relação entre o
universal e o particular: “o universal é o símbolo de uma plenitude ausente, e o particular
existe apenas no movimento contraditório da afirmação simultânea de uma identidade
diferencial e seu cancelamento por meio de sua inclusão num meio não diferencial”
(LACLAU, 2011, p. 57).
Utilizo as concepções teórico-metodológicas apresentadas por Laclau, com o
objetivo de ler ou encontrar o meu próprio objeto de pesquisa. Entendo que o “universal”,
nesta pesquisa, se relaciona a política curricular instituída pelo Estado de São Paulo,
representada pelo Programa São Paulo Faz Escola. Esse universal foi se constituindo por meio
de demandas sociais particulares em diferentes âmbitos que se articularam em torno de uma
cadeia de equivalência: a busca pela qualidade da educação na rede de ensino básica paulista.
Assim, o universal é entendido como a política curricular hegemônica, que provisoriamente
assume certa função universal (LACLAU, 2006).
Por outro lado, os diversos particularismos podem ser entendidos por qualquer
outra demanda que após a visualização dos documentos curriculares produzidos pelo
Programa São Paulo Faz Escola, não se sentem representados e entram em uma cadeia de
diferença com as medidas propostas pelo Programa, novamente buscando articular-se em
torno de suas demandas particulares, e, posteriormente, negociando com outras demandas,
formando cadeias de equivalência e buscando instituir um outro universal a partir dessas
demandas. Para esta pesquisa, os particularismos a serem considerados estão associados aos
discursos que os professores de geografia da rede pública de ensino paulista carregam e
defendem em oposição às ações da política educacional do Estado, os quais serão
apresentados e darei voz no último capítulo desta dissertação. Esses professores, entram em
conflito com a proposta dos “caderninhos” apresentados como material didático para as
disciplinas, mas não fazem isso em sua totalidade. Alguns deles o negam totalmente; outros o
utilizam em algumas de suas propostas; e ainda existe um grupo de professores que acredita
que os documentos didáticos são de qualidades, mas o negam enquanto política curricular,
alegando que a utilização completa desses documentos, assim como pretendido pelo Estado,
acabaria por negar a autonomia docente e impossibilitando seu trabalho enquanto intelectual.
35
Dessa maneira, é possível entender que universalismo (políticas curriculares do
Estado de São Paulo), e particularismos (discursos dos professores da rede pública de ensino),
estão em uma relação estreita, uma relação que como afirma Laclau (2011), necessitam da
dependência mutua para existirem. Nesse sentido, os caderninhos materializam um sentido de
qualidade de educação baseado na prescrição curricular e padronização didático-pedagógica
das ações e da rotina da sala de aula, uma vez que todos os professores da rede deveriam
aplicar o mesmo plano de aula para cada um dos conteúdos do material.
Por sua vez, para a maioria dos professores, se faz necessário algum material
didático para que os alunos possam aplicar os conhecimentos desenvolvidos em sala de aula.
Com isso em mente, inicialmente pensei: se os professores desejam um material didático para
apoiar as aulas, por que não utilizam os “caderninhos” mesmo que apenas em momentos que
lhes são necessários? Qual o objetivo do Estado ao fornecer esse material didático em que são
apresentados aos alunos da rede apenas atividades práticas, sem apresentação de qualquer
conceito teórico associado à disciplina? Para responder essas inquietações, inicialmente
apresento algumas outras reflexões sobre a Teoria do Discurso, pensando em como fazer a
leitura dos documentos curriculares instituídos enquanto política curricular do Estado de São
Paulo.
36
1.3. O discurso da “qualidade da educação” e seu corte antagônico: a qualidade da
formação docente
Inicialmente proponho dois questionamentos relacionados às políticas
curriculares do Estado de São Paulo. A primeira delas é: qual a relação entre o objetivo
instituído pelo Estado – a busca pela qualidade da educação -, e a construção dos materiais
didáticos representados pelos “caderninhos”? Também questiono por que os investimentos do
Estado se concentraram em materiais didáticos, ao invés de qualquer outro quesito de
organização do espaço escolar, da qualificação docente e de um plano de carreira vantajoso
para o professor?
Durante a análise do contexto de elaboração e dos discursos expostos nos
documentos curriculares, é perceptível que o governo estadual paulista, na busca pela
qualidade da educação, enxerga que existe uma barreira a ser vencida para que seu
planejamento estratégico alcance o objetivo final. Essa barreira, segundo ele, não se baseia
nas políticas estabelecidas pelo Estado, uma vez que a elaboração desse documento dialogou
com campo teórico científico, bem como com as experiências cotidianas das escolas, “partiu
da recuperação, da revisão e da sistematização de documentos, publicações e diagnósticos já
existentes e do levantamento e análise dos resultados de projetos ou iniciativas realizados”
(SÃO PAULO, 2010, p. 7), construindo um documento, segundo ele, de excelência.
Utilizando o discurso de modernas e renovadoras, prometendo promover a qualidade da
educação, o documento define que o Estado pretende reformular a cultura escolar, criando
“uma escola à altura de seu tempo” (SÃO PAULO, 2010, p. 11), em que “o currículo se
compromete em formar crianças e jovens para que se tornem adultos preparados para exercer
suas responsabilidades (trabalho, família, autonomia etc.) e para atuar em uma sociedade que
depende deles” (SÃO PAULO, 2010, p. 12).
Com esses discursos textuais marcados no documento curricular, entendo que
fica subentendido que o “planejamento eficaz” proposto pelo governo em forma de uma
reforma curricular, pode ser lido enquanto um discurso marcado pela oposição às políticas
curriculares anteriores, onde a escola não se apresentava enquanto contextualizada ao atual
momento de desenvolvimento da sociedade e que agora, a partir da execução dessas novas
37
políticas, com materiais adequados, e a renovação da escola, não há motivos para que a
qualidade da educação não seja alcançada14
.
Discursivamente, vai sendo produzido um sentido de que a reforma curricular é
capaz de salvar as escolas paulistas e resgatar a qualidade da educação. Caso isso não
aconteça, o motivo não pode estar associado aos documentos curriculares, mas sim a outras
questões, tais como a atuação e o trabalho docente. Nesse sentido, as políticas educacionais do
São Paulo Faz Escola e do documento curricular ao se instituírem como discursos
hegemônicos criam seu corte antagônico: a oposição dos professores ao seu projeto.
Embora não explicitado de forma clara, o Estado de São Paulo elabora o
Programa São Paulo Faz Escola para atender a demanda dos professores da rede pública que,
segundo ele, apresenta um trabalho duvidoso em sala de aula, e que possivelmente é o
responsável por limitar os objetivos das políticas curriculares estaduais e condicionar o a tão
sonhada qualidade da educação a um fracasso total.
Isso pode ser notado nas palavras a seguir, extraídas dos documentos
curriculares produzidos pelo Programa São Paulo Faz Escola, onde é previsto o
monitoramento do trabalho docente a fim de garantir que as reformas pretendidas pelo Estado
sejam plenamente executadas:
essa ação, efetivada por meio do programa Educação — Compromisso
de São Paulo, é de fundamental importância para a Pasta, que
despende, neste programa, seus maiores esforços ao intensificar ações
de avaliação e monitoramento da utilização dos diferentes
materiais de apoio à implementação do currículo e ao empregar o
Caderno nas ações de formação de professores e gestores da rede de
ensino (CADERNO DO PROFESSOR, 2014-2017, p. 2, grifo meu).
Ao analisar esses discursos, entendo, a partir da teoria do discurso, que a
qualidade e a autonomia do trabalho docente é apresentada enquanto uma ameaça à política e
ao projeto de qualidade da educação almejado pelo Estado de São Paulo. Neste momento, a
lógica antagônica, construída a partir da relação entre docente e projeto de educação desejado
pelo Estado, passa a atuar na cadeia de diferença recém surgida. Assim, entendo que essa
lógica antagônica não opera a partir das identidades prontas, ou “pré-constituídas, mas
daquelas que têm suas próprias constituições negadas [a autonomia docente], tendo em vista
14
Vale reforçar que embora haja esse discurso, as políticas curriculares estaduais reproduzem uma visão de mundo semelhante desde 1994, quando Mário Covas assume o governo enquanto membro do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), partido esse que tem se mantido no governo do estado nos últimos 25 anos.
38
que a presença do outro é identificada como a condição da impossibilidade da plena
constituição” (MENDONÇA, 2012, p. 208).
Essa impossibilidade da plena constituição, marca dois sistemas de
equivalências opostos, demarcados pela linha de oposição entre eles, definida como sendo o
corte antagônico; uma linha que aparece mais como um tracejado, do que uma linha
propriamente dita, isso porque esses dois sistemas de equivalências opostos (políticas
educacionais e autonomia docente), estão em relação e dependem um do outro para existir,
como tratarei mais à frente.
A ameaça antagônica é a condição de possibilidade discursiva para a
construção de cadeias de diferenças distintas. Assim, a partir do antagonismo é que o corte
antagônico, ou seja, o limite representado enquanto um impedimento para que a qualidade da
educação seja alcançada se constitui. Mendonça e Rodrigues (2014, p. 52), demonstram a
forma com que apresento as políticas curriculares enquanto um corte antagônico da realização
de uma educação de qualidade.
Enfatizamos, portanto, que o ponto fundamental para o entendimento
da relação antagônica é que essa ocorre entre um “exterior
constitutivo” que ameaça a existência de um “interior”. Em outras
palavras: um discurso tem bloqueado sua expansão de sentidos pela
presença de seu corte antagônico.
O exterior constitutivo apresentado pelos autores é representado pelo trabalho
docente em sala de aula, sua autonomia profissional, considerado insuficiente para atender as
demandas do interior, representado pelo Estado de São Paulo e seu desejo pela qualidade da
educação. O corte antagônico, a atuação docente, ameaça a existência de uma educação de
qualidade na perspectiva discursiva do Estado de São Paulo.
Na relação entre “interior” e “exterior”, onde o corte antagônico é apresentado
enquanto limite entre esses dois polos, ainda é preciso considerar que,
paradoxalmente, segundo Laclau (1996), ao mesmo tempo em que o
exterior constitutivo (discurso antagônico) ameaça a constituição do
interior (discurso antagonizado), ele é também a própria condição da
existência do interior, na medida em que esse último se constitui sob a
ameaça da presença do primeiro (MENDONÇA E RODRIGUES,
2014, p. 52).
Os autores chamam atenção a uma questão central para uma análise pós-
estruturalista que é a visão dos objetos de estudo para além de um único centro, responsável
pela construção de verdades associadas a uma posição determinada e fixa dos sujeitos. O corte
39
antagônico, ao operar na separação entre o que tende a se universal e o que é particular
(PANUTTO, 2017), marcando, dessa maneira as políticas curriculares do Estado de São
Paulo, e o que limita a sua instituição, o particular, a atuação do trabalho e a autonomia
docente.
1.4. Significante Vazio como instrumentalizador teórico que auxilia na compreensão da
busca pela “qualidade da educação”
Durante o período em que estudamos a Teoria do Discurso enquanto grupo de
pesquisa, nos deparamos com a ideia de significante vazio, apresentada por Laclau (2011),
exemplificada com o contexto político de reivindicações construídas pela classe operária em
contestação ao modelo de desenvolvimento socioeconômico estabelecido. O autor menciona
que os operários apresentavam múltiplas demandas particulares, relacionadas a vivências e
experiências mais restritas em seus cotidianos, no entanto, eles entenderam que para disputar
pela significação do modelo de desenvolvimento a ser adotado, era necessário que as
demandas individuais fossem colocadas em segundo plano, e que houvesse uma unificação
entre o objetivo geral dos operários, que envolvia a oposição ao sistema operante.
O autor menciona, dessa maneira, que a união entre os operários era feita não a
partir de algo positivo, mas a partir do seu comum desejo de negação do sistema vigente,
construindo uma série de significados para a luta operária, mas que apareciam como uma
significação geral de negação do sistema daquele momento, apresentado como um inimigo
comum. Com a construção da possibilidade de que um único significante poder apresentar
diversos significados, com base nas possibilidades de significação não estabelecidas, é que o
significante vazio começa a fazer sentido para essa pesquisa.
Laclau (2011, p. 68), afirma que
um significante vazio só pode surgir se há uma impossibilidade
estrutural da significação e apenas se essa impossibilidade puder
significar uma interrupção (subversão, distorção etc.) da estrutura
do signo. Ou seja, os limites da significação só podem anunciar a si
mesmos como impossibilidade de realizar aquilo que está no
interior desses limites -se estes pudessem significar-se de modo
direto, seriam internos à significação; logo, não seriam limites em
absoluto (LACLAU, 2011, p. 68).
40
A partir disso, compartilho da angústia apresentada pelo autor ao se perguntar “o
que, neste caso, determina que um significante, em vez de outro, assuma, em diferentes
circunstâncias, essa função significativa?” (LACLAU, 2011, p. 73). Entendo que esse
questionamento é fundamental para a compreensão do meu objeto de pesquisa e da condição
política que a escolha de alguns significados para o significante qualidade da educação, me
revela.
Essa questão será trabalhada ao longo de todo o texto, uma vez que no próximo
capítulo construirei uma reflexão sobre o Programa São Paulo Faz Escola, destacando alguns
dos sentidos para qualidade da educação que tentam ser fixados pela política curricular.
Ademais, no capítulo 4, demonstrarei, por meio da análise das entrevistas, outros discursos
que também entram na disputa pela significação do sentido para qualidade da educação,
ocasionando uma relação provisória e instável, baseada na força que cada um dos sentidos
possui em determinado momento.
41
CAPÍTULO 2: O PROGRAMA SÃO PAULO FAZ ESCOLA E O CONTEXTO DA
ESCOLA: QUEM LIMITA QUEM?
Inicialmente apresento uma breve contextualização sobre as diferentes teorias
de currículo, com o objetivo de compreender teoricamente o objeto de estudo dessa pesquisa.
Panutto (2017), elabora um levantamento histórico envolvendo as diferentes
concepções teóricas acerca do currículo, baseando-se em Lopes e Macedo (2011), Silva
(2002) e Pacheco (2012), retomo a sua construção, adicionando algumas questões teóricas
originadas das minhas leituras de Lopes e Macedo (2011), e trago ao meu texto uma
contextualização dos diferentes momentos na teoria curricular a fim de posicionar a
concepção de currículo adotada nessa pesquisa, bem como subsidiar a reflexão sobre as
negociações, os conflitos, as permanências e as mudanças na teoria curricular.
Ressalto que a luz da teoria do currículo, entendo que as concepções teóricas
apresentadas abaixo são apenas discursos hegemonizados que no jogo de negociações ganham
força junto as demais para representar o campo do currículo em determinado momento. Mas
por que essa ficção nos ajuda a compreender o campo curricular? Porque elas nos permitem
entender quais as relações de poder operam para a constituição de determinadas formas de
pensar, “sufocando outras possibilidades sequer passíveis de serem mencionadas por nós”
(LOPES E MACEDO, 2011, p. 10).
Com base em suas leituras, Panutto (2017) elenca cinco grandes formas de se
pensar o currículo escolar apresentadas em forma de correntes da teoria curricular: i.
Eficientismo social; ii. Progressivismo; iii. Ecletismo; iv. Teorias críticas de currículo; v.
Associadas a concepções teóricas pós-estruturalistas
A primeira delas surge a partir da necessidade do momento histórico associado à
inserção das indústrias na técnica de produção, dentro desse contexto, o currículo servia
enquanto um instrumento para formar mão de obra para as fábricas, incutir sentidos
nacionais-patrióticos (em algumas nações recém-formadas), e ensinar o controle social ao
futuro cidadão. O objetivo era que “a industrialização da sociedade deve se dar sem rupturas
e em clima de cooperação” (LOPES E MACEDO, 2011, p. 22), definindo esse caráter de forte
controle social. Nesse contexto, o currículo baseava-se em concepções científicas e se
comportava como uma espécie de manual indicativo de objetivos, procedimentos e métodos
que possam ser mensurados. Além de preocupar-se com o que ensinar, um dos objetivos era a
42
racionalização dos resultados educacionais, que deveriam ser especificados e medidos,
assemelhando-se a um modelo econômico empresarial.
Uma segunda teoria de currículo é chamada pelos autores de referência de
progressivismo, associado ao entendimento de que o currículo capacitaria a escola para
resolução de problemas sociais. Assim, segundo Lopes e Macedo (2011), os mecanismos de
controle social eram menos coercivos do que no momento anterior. O currículo era tido como
o meio para resolver as desigualdades sociais geradas, principalmente, a partir da vida urbana
e do maior desenvolvimento do capitalismo, e seu objetivo central era “formar indivíduos
capazes de atuar na busca dessas mudanças” (LOPES E MACEDO, 2011, p. 23). Como um
dos representantes dessa teoria a autora lista o filósofo e pedagogo, John Dewey e suas ideias
que se propagaram no Brasil por meio da Escola Nova, a qual apresentarei durante as
discussões sobre diferentes concepções teóricas do campo da didática.
A terceira teoria é entendida como eclética, uma vez que mistura diferentes
concepções envolvendo a teoria eficientista e progressivista, embora as autoras (Lopes e
Macedo), apontem que essa concepção se aproxima muito mais da concepção teórica
eficientista do que da progressivista. Um de seus representantes é Ralfh Tayler, um educador
também norte-americano que apostava na “seleção e organização das experiências de
aprendizagem e na definição dos objetivos de ensino” (PANUTTO, 2017, p. 29). Para este
autor, a eficiência do ensino continua a ser medida a partir dos resultados da avaliação e do
rendimento dos alunos, construindo um currículo semelhante a uma técnica para alcançar os
resultados almejados. Para ele e os que o seguem, a estrutura escolar é baseada na seguinte
abordagem linear: “definição de objetos de ensino; seleção e criação de experiências de
aprendizagem apropriadas; organização dessas experiências de modo a garantir maior
eficiência ao processo de ensino; e avaliação do currículo” (LOPES E MACEDO, 2011, p.
25). Segundo as autoras, nesse momento o autor cria uma agenda para a teoria curricular,
considerando o currículo enquanto um dos meios para a obtenção de bons resultados em
avaliações.
A quarta teoria de currículo é representada por ideias críticas associadas às
transformações político-sociais: protestos estudantis de 1968 na França, Movimento
Contracultura – Hippy, Movimentos Feministas, Movimento Negro e de Libertação Sexual.
Esses movimentos criam demandas por mudanças, buscando uma alternativa a
universalização da forma de se pensar e construir o mundo, iniciando mais uma crítica aos
ditos modelos tradicionais de currículos. São alguns dos autores associados a esse movimento
43
em que se pretende renovar o currículo ao olhá-lo criticamente: Bourdieu e Passeron; Browles
e Gintis; Althusser; Apple; Giroux; Paulo Freire; Saviani; Young; Goodson, entre outros.
Lopes e Macedo (2011) apontam que há ainda outro movimento teórico pensando
sobre o currículo. Iniciado nas últimas décadas do século XX e chegando ao Brasil na década
de 90, as ideias pós-estruturalistas embora sendo variadas, questionam os aspectos da
modernidade e ressaltam o lugar da linguagem na constituição do social. Vão além da ideia
(estruturalista) de que a linguagem tem a capacidade de representar o mundo, para os pós-
estruturalistas, a linguagem cria o mundo, por meio do que se fala.
Considerando o currículo a partir dessa perspectiva, como uma prática discursiva,
entendo que
A capacidade de unificar um discurso é em si um ato de poder, de
modo que as metanarrativas modernas precisam ser vistas como tal e
não como expressão da realidade. De forma semelhante, pode-se
entender os discursos pedagógicos e curriculares como atos de poder,
o poder de significação, de criar sentidos e hegemonizá-los (LOPES E
MACEDO, 2011, p. 40).
Portanto, cada uma das tradições curriculares acima é um discurso que se
hegemonizou nas disputas por significações. Panutto (2017), apresenta uma linha do tempo
das teorias de currículo trabalhadas por ela, baseadas nos autores mencionados acima.
44
QUADRO 2: LINHA DO TEMPO DAS TEORIAS DE CURRÍCULO
Fonte: PANUTTO, 2017
Elaboração própria
BRA (Escola Nova)
Principais autores: Dewey
EUA (Eficientísmo e Progressivísmo)
Principais autores: Bobbit e Dewey
BRA (Módulo linear administrativo entre currículo e avaliação).
Principais autores: Tyler
BRA Pedagogia crítica
Principais autores: Freire
BRA Estudos pós-críticos
Principais autores: Silva
EUA (Modelo linear administrativo
entre currículo e avaliação) Principais autores: Tyler
EUA (Teorias da Correspondência
ou Reprodução) Principais autores:
Bowles e Gintis
(Teoria Reconceptualista) Principais autores:
Pinar
ING (Nova Sociologia da Educação)
Principais autores: Young, Goodson
FRA (Teorias da Reprodução).
Principais autores: Bourdieu & Passeron
EUA (Pedagogia crítica) Principais autores:
Apple e Giroux
FRA (Estudos Pós Críticos).
Principais autores: Derrida, Deleuze e Bathers
1920 1950 1960 - 1970 1970 - 1980 1990
45
Dialogo com a autora e penso que
que todas essas teorias e correntes tem suas limitações e grandes
contribuições para o pensamento curricular, sendo necessário buscar
na história de cada teoria os pontos fortes que sejam úteis a (re)
interpretação de questões que se mantém atuais, mas que
constantemente precisam ser revistas e questionadas sob novas óticas
de leitura, por conta de novas demandas e práticas discursivas da
sociedade (PANUTTO, 2017, p. 45).
No entanto, acredito que uma “linha” do tempo não dialogue diretamente com
a intensão de demonstrar que as diversas teorias de currículo coexistem na produção
curricular atual. Embora eu entenda o currículo enquanto prática discursiva, de significação e
atribuição de sentidos (LOPES E MACEDO, 2011), ao analisar os documentos curriculares
contemporâneos nota-se a apresentação de posturas, visões de mundo, de currículo e de
educação, associadas a todos esses diferentes momentos apresentados acima. Assim, acredito
que para a representação diacrônica das teorias de currículo uma circunferência, representada
como setas apostadas para os dois lados, indicando o diacronismo, poderia apresentar-se com
uma potencialidade de entendimento muito maior. Nesse sentido, apresento o quadro abaixo
como proposta que me permite pensar a forma com que essas políticas vem sendo utilizadas
nos documentos curriculares.
46
IMAGEM 1: REPRESENTAÇÃO DE UM RIZOMA, UMA PROPOSTA DE LEITURA DAS
POLÍTICAS CURRICULARES
47
48
As imagens acima representam uma proposta de leitura para o currículo,
baseada nas teorias desenvolvidas por Deleuze e Guattari (1980), a ideia é transposta por
alguns autores para a leitura do currículo, onde se busca romper com a ideia de que se deve
construir alguns conhecimentos para depois, em outra etapa, o aluno encontrar-se capacitado
para a construção de novos saberes. Assim, utilizo a filosofia do rizoma para compreender a
forma com que os diferentes momentos da Teoria de Currículo são lidos nos documentos
curriculares. A Teoria Curricular, não se apresenta de forma linear, representada enquanto
uma superação, acompanhando apenas a concepção teórica em alta naquele momento, antes
disso, as diferentes concepções muitas vezes são utilizadas juntas nos documentos
curriculares contemporâneos de forma a expressar, a depender do momento da escrita e da
intencionalidade do documento, um conjunto de pensamentos distintos.
Assim, as políticas curriculares
são resultado da interconexão dos significados que são produzidos em
múltiplos contextos, dentre os quais podemos citar as escolas, o poder
público, por meio de suas secretarias/ministérios de educação, as
universidades, agências multilaterais, comunidades epistêmicas,
comunidades disciplinares, dentre outros (MATHEUS, 2013, p. 36).
Com essa breve retomada sobre as teorias de currículo, pretendo pontuar
alguns pressupostos teóricos que foram identificados na leitura do Currículo do Estado de São
Paulo. Mas, reafirmo que acredito que “qualquer manifestação de currículo, qualquer episódio
curricular, é a mesma coisa: a produção de sentidos. Seja escrito, falado, velado, o currículo é
um texto que tenta direcionar o “leitor”, mas que faz apenas parcialmente” (LOPES E
MACEDO, 2011, p. 42).
A produção de sentidos curriculares é uma produção de políticas curriculares.
E por essa razão é que a compreensão do currículo baseada em concepções teóricas pós-
estruturalistas é potente para minha pesquisa, uma vez que busco compreender qual o sentido
e os discursos que o Programa São Paulo Faz Escola pretende criar.
Nas próximas linhas, contextualizo o momento histórico da criação do
Programa São Paulo Faz Escola, apresentando alguns de seus materiais parceiros: os
caderninhos e o Saresp; cujo objetivo pauta-se na compreensão dessa política curricular
enquanto uma medida prescritiva e com alto controle de sua atuação no ambiente escolar.
49
2.1. A criação do Programa São Paulo Faz Escola enquanto um momento na política de
currículo do Estado de São Paulo
A fim de dialogar com o Currículo do Estado de São Paulo, inicialmente
construirei uma apresentação do Programa São Paulo Faz Escola dialogando com alguns
trabalhos já desenvolvidos sobre a temática (CAÇÃO, 2010, 2011; ROSSI, 2011;
CATANZARO, 2012; MELONI, 2013; FERIN, 2015; entre outros). Compreendo que o
programa se enquadra em um conjunto de políticas cuja finalidade determinada pela
Secretaria da Educação do Estado de São Paulo (SEE/SP) consiste na transformação de seu
sistema educacional desenvolvido até o momento da instituição do programa, em busca da
almejada qualidade da educação na rede pública do Estado de São Paulo.
A pretendida transformação no sistema educacional paulista pautava-se no
conjunto de reformas aplicadas ao Estado de São Paulo a partir do ano de 1995, quando o
Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) assume o governo estadual e se sucessede
ininterruptamente até os dias atuais, seguindo e aplicando os pressupostos neoliberais
apresentados ao mundo no Consenso de Washington, realizado no ano de 1989.
A partir disso, o Estado de São Paulo, liderando a economia do país, torna-se
pioneiro nas reformas liberais em diversas frentes; no caso da educação, isso acontece com o
objetivo de alcançar uma educação funcional a esse projeto de nação15
. Durante as gestões
“PSDBistas” que o estado vivenciou - Mário Covas (1995-2009); Geraldo Alckmin (2001-
2006); José Serra (2007-2010); Alberto Goldman (2010-2011); Geraldo Alckmin (2015-
2018); Márcio França (2018-2019), a pequena brecha ao governo PSDB, visto que este
pertencia ao PSB; João Dória (2019 – até o presente momento) -, grandes reformas foram
implementadas na educação básica paulista com o objetivo de atingir uma maior eficiência e
eficácia na gestão do dinheiro público, deslocando o foco de ação do eixo pedagógico para o
eixo administrativo (CAÇÃO, 2011). Dentre essas reformas inclui-se o fechamento das salas
de aulas, a reorganização das escolas em escolas do Ensino fundamental I, Fundamental II e
Ensino Médio, a municipalização do Ensino Fundamental I, a adoção da progressão
continuada, bem como a instauração do sistema apostilado, apresentado em forma de Caderno
15
“Projeto de nação” no seu sentido mais direto, uma vez que as reformas curriculares adotadas inicialmente no Estado de São Paulo, passam a esfera federativa em um nível nacional, representado pela recente construção da Base Nacional Curricular comum (BNCC), com pressupostos teóricos e visões de currículo atrelados às políticas curriculares praticadas a algum tempo na educação paulista, sendo, até mesmo desenvolvidas pelos mesmos profissionais que aqui atuaram.
50
do Aluno e tendo como garantia de sua utilização o Sistema de Avaliação do Rendimento
Escolar do Estado de São Paulo – SARESP. Segundo Cação (2011), a partir dessas reformas
Desencadeia-se nova etapa da educação pública paulista marcada pelo
agravamento de problemas: aumento de número de alunos por sala de
aula; baixos salários; falta de professores; sucateamento de
infraestrutura e um novo problema, até então desconhecido, a
aprovação em massa de alunos, resultante da aplicação da progressão
continuada, rapidamente conhecida como “promoção automática” (p.
6).
Durante o governo de José Serra (2007-2010) foi lançado um amplo plano para
a educação paulista, pontuando dez metas para a melhoria da qualidade da educação, sendo
elas:
Todos os alunos de 8 anos plenamente alfabetizados; 2) Redução de
50% das taxas de reprovação da 8ª série; 3) Redução de 50% das taxas
de reprovação do Ensino Médio; 4) Implantação de programas de
recuperação de aprendizagem nas séries finais de todos os ciclos de
aprendizagem [...]; 5) Aumento de 10% nos índices de desempenho do
Ensino Fundamental e Médio nas avaliações nacionais e estaduais; 6);.
Atendimento de 100% da demanda de jovens e adultos de Ensino
Médio com currículo profissionalizante diversificado; 7) Implantação
do Ensino Fundamental de nove anos, com prioridade à
municipalização das séries iniciais (1ª a 4ª séries); 8) Programas de
formação continuada e capacitação da equipe; 9) Descentralização
e/ou municipalização do programa de alimentação escolar nos 30
municípios ainda centralizados e; 10) Programa de obras e melhorias
de infraestrutura das escolas (CAÇÃO, 2011, p. 7).
Nesse contexto é criado o Programa São Paulo Faz Escola, em que o governo
paulista volta a pensar ações que “valorizem” a dimensão pedagógica, a fim de buscar a
“educação de qualidade” propagada em suas metas.
Sob discurso de garantir uma base comum a todos os alunos da rede pública de
ensino do Estado de São Paulo o programa tem servido, por meio da elaboração de materiais
didáticos, para a busca da prática do Currículo do Estado de São Paulo16
, como é possível
notar nas palavras abaixo, inseridas na plataforma online destinada ao programa e
disponibilizada no site da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo17
.
O São Paulo Faz Escola tem como foco unificar o currículo escolar
para todas as mais de cinco mil escolas estaduais. O programa é
16
Até o presente momento foram publicadas três versões do Currículo do Estado de São Paulo. A primeira, em 2008, quando era chamado de Proposta Curricular para o Estado de São Paulo. A segunda, com algumas revisões, foi publicada em 2010, sendo o Currículo Oficial do Estado de São Paulo. Enquanto que a última versão, publicada em 2012, é chamada de Currículo do Estado de São Paulo. 17
Disponível em < http://www.educacao.sp.gov.br/sao-paulo-faz-escola>
51
responsável pela implantação do Currículo Oficial do Estado de São
Paulo, formatado em documentos que constituem orientações para o
trabalho do professor em sala de aula e visa garantir uma base comum
de conhecimento e competências para todos os professores e alunos.
(Site Programa São Paulo Faz Escola - grifo meu).
O programa apresenta-se enquanto articulador de políticas curriculares, que,
buscando lidar com o problema do baixo rendimento escolar, identificado por avaliações
externas, conduz, de forma centralizadora, a construção de um material didático
homogeneizador e disciplinador em que conteúdos e metodologias de ensino são prescritas ao
professor em forma de exercícios, chamados pelo material didático de Situações de
Aprendizagem.
No site da SEE/SP, na página destinada ao Programa São Paulo Faz Escola é
possível identificar dois grandes eixos em que o programa se propõe a atuar: i) na unificação
do currículo escolar; e ii) na qualidade de ensino. A partir deles, elaborarei uma análise desses
documentos curriculares (o site do Programa São Paulo Faz Escola, o Currículo do Estado de
São Paulo e os “caderninhos” de geografia), concentrada nos dois eixos discursivos
mencionados acima como orientadores dessa leitura.
Para tanto, trago novamente ao texto que minha compreensão do sentido de
discurso é construída a partir da Teoria do Discurso de Ernesto Laclau (2011), na qual, por
meio de uma construção teórica que envolve múltiplos conceitos analíticos, entendidos
enquanto instrumentalizadores teóricos, apresentados acima. Para o autor, discurso consiste na
união de “palavras e ações, que tem natureza material e não mental e/ou ideal. Discurso é
prática - daí a noção de prática discursiva - uma vez que quaisquer ações empreendidas por
sujeitos, identidades, grupos sociais são ações significativas” (MENDONÇA e RODRIGUES,
2014, p. 49).
2.2. A política de integração curricular
Ao analisar o Currículo do Estado de São Paulo, percebe-se que o discurso da
integração curricular é construído ao longo do documento e elucida algumas concepções que
não aparecem de forma explicita. Após apresentar os cadernos dos gestores, dos professores e
dos alunos, pontuando a função de cada um deles, é apresentada a seguinte questão,
Além desse documento básico curricular, há um segundo conjunto de
documentos, com orientações para a gestão do Currículo na escola.
Intitulado Caderno do Gestor, dirige-se especialmente às unidades
escolares e aos professores coordenadores, diretores, professores
coordenadores das oficinas pedagógicas e supervisores. Esse material
não trata da gestão curricular em geral, mas tem a finalidade
52
específica de apoiar o gestor para que ele seja um líder capaz de
estimular e orientar a implementação do Currículo nas escolas
públicas estaduais de São Paulo (SÃO PAULO, 2010, p. 7).
O Caderno do Gestor tem a função de instrumentalizar o gestor teoricamente para
que ele esteja capacitado para estimular ações pedagógicas que garantam a utilização do
Currículo do Estado de São Paulo, em especial dos materiais didáticos baseados nesse
currículo. Para tanto, percebe-se que o desejo de centralizar e prescrever os materiais
didáticos perpassam por vigilância e cobrança por parte da equipe gestora.
A política de homogeneização curricular é lida a partir da concepção teórica
adorada nessa pesquisa por meio do instrumentalizador teórico “universalismo”. Entendo que
a educação paulista pretende se universalizar em toda a rede de ensino, trabalhando a partir de
uma lógica controlada, massificada e restrita ao que se é determinado apenas pelo Estado de
São Paulo, enquanto política curricular. Embora haja conflitos entre vários particularismos
que não estão representados por essa política universal, e que buscam alcançar forças para
serem ouvidos e controlarem a atual política curricular, o universalismo, com uma força de
negociação maior, acaba tornando-se a política temporariamente hegemônica.
A imagem abaixo é vinculada ao site do Currículo do Estado de São Paulo e
apresenta alguns discursos indicando a pretendida integração curricular, tais como: O
Currículo do Estado de São Paulo é a “base para cinco mil escolas”; ou quando associam o
currículo como a “orientação básica para o trabalho do professor em sala de aula”, estando
subentendido a utilização dos “caderninhos” que acabam conduzindo a aplicação do currículo
como um todo.
Imagem 2: Currículo do Estado de São Paulo
Fonte: http://www.educacao.sp.gov.br/curriculo
53
Na busca dos resultados unitários, uma armadilha que aparece ao currículo é a de
que, na tentativa de distribuir conhecimentos comuns a todos, esse conhecimento pode passar
a ser entendido enquanto um objeto pronto, desconsiderando o fato deste ser fruto de uma
construção social e que por isso é traduzido de diversas maneiras, a depender do sujeito, é
negociado e produzido no contexto de cada realidade (LOPES, 2015).
Segundo Lopes (2015),
Na medida em que se opta por atuar de forma centralizada na política
de currículo, há uma redução das políticas à tentativa de controlar as
leituras das bases/padrões/propostas curriculares visando alcançar
(supostamente) a qualidade da educação. A política de currículo passa
a ser uma estratégia calculada para determinado fim preestabelecido
(p. 456).
No decorrer do texto, a autora pontua que, a fim de garantir que essas políticas
curriculares centralizadoras sejam cumpridas, são elaborados exames, distribuídos livros
didáticos, além do controle dos projetos; tudo objetivando que as políticas curriculares sejam
plenamente executadas nas escolas. É o que acontece com as políticas curriculares do Estado
de São Paulo, materializadas pelo próprio currículo, pelos “caderninhos” (do gestor, do aluno
e do professor) e pelas avaliações externas, no caso o SARESP – Sistema de Avaliação de
Rendimento Escolar do Estado de São Paulo.
Dentro desse contexto de controle e visando o comprimento de políticas
curriculares, há medidas mais subjetivas, que só aparecem no contexto escolar, ou seja, não
são esclarecidas ou relatadas, ou mesmo consideradas enquanto possibilidade, em nenhum
documento ou material fornecido por essas políticas. Em uma entrevista que realizei com uma
professora da rede estadual de ensino foi possível notar a partir de sua resposta quando
indagada sobre como eram os momentos de discussões teóricas e diálogos entre professores
desenvolvidos no ATPC – Aula de Trabalho Pedagógico Coletivo. De acordo com a
professora,
a discussão oficial na escola é o ATPC. Eu já trabalhei em
escolas que tinha um corpo docente que não debatia nada.
Mas essa escola que eu estou agora tem um corpo docente
bem firme, que pensa e que debate. É claro que alguns
apresentam ideias que eu não concordo, mas é isso aí né?
A gente trabalha no âmbito da diversidade. Mas só tem o
ATPC mesmo como espaço de debate. Nele são discutidos
temas do dia a dia na sala de aula, mas é sempre tudo
mandado pela diretoria de ensino...”
[...]
54
“A todo tempo a coordenação, a gestão, a PCNP
(Professor Coordenador do Núcleo Pedagógico) e a
supervisão, porque elas frequentam essas reuniões, elas
estão sempre preocupas em “espezinhar” o professor. É
isso que eu sinto, entendeu?
O que fica evidente é que os particularismos, trabalhados no capítulo anterior
como sendo inerentes ao universalismo, uma vez que os dois estão em constante relação, é
negado pelo Estado, que sob um discurso ocultado nos documentos curriculares, mas que
entendo que esteja relacionado ao corte antagônico do projeto que busca a qualidade da
educação, a formação docente. Assim, para contornar essa situação, o Estado apresenta as
medidas centralizadoras que tem como objetivo o apagamento das medidas particulares
associadas a prática docente individual, construída a partir de um processo de significação de
experiências distintas tanto no processo de formação da carreira docente, quanto na
experimentação de caminhos e decisões cotidianas. Acredito que essa diferenciação da
formação docente pode ser usada para enriquecer o processo de ensino e aprendizagem nas
escolas, e acaba sendo desconsiderada devido a visão de mundo que vem sendo implementada
nas políticas curriculares do Estado de São Paulo.
A Diretoria de Ensino, representada pelo professor coordenador, cuja função é o
monitoramento da execução das políticas curriculares adotadas em âmbito estadual, acaba
atuando no conjunto de medidas que visam garantir o estabelecimento das políticas
curriculares para o Estado de São Paulo.
O principal argumento levantado pela Comunidade Disciplinar18
(GOODSON,
1997) envolvida na elaboração do Currículo de São Paulo, concentra-se no fato de que a
integração curricular e suas medidas que visam garantir esse objetivo, permitem que os alunos
de baixa renda, que tem tido acesso à escola apenas em períodos mais recentes, tenham a
mesma formação que os alunos que historicamente sempre frequentaram as escolas no Brasil.
No entanto, entendo que esse argumento é facilmente refutado, basta olhar comparativamente
para a configuração das escolas públicas e privadas, especificamente no Estado de São Paulo,
é possível perceber que há uma grande distinção entre a funcionalidade de cada uma delas. A
maioria das escolas privadas do estado configuram-se e reconfiguram-se com o objetivo
central de obterem um resultado positivo de seus alunos em exames de vestibulares. Esse tipo
18
Goodson entende por comunidade disciplinar todos os agentes institucionais envolvidos na elaboração de documentos curriculares.
55
de escola considera o currículo como secundário, uma vez que o documento orientador de
políticas curriculares são os próprios exames de vestibulares que têm potência para
reconstruir, ou atualizar, os materiais didáticos utilizados por essas instituições19
.
2.3. A qualidade da educação enquanto significante vazio
O que venho desenvolvendo neste texto é um posicionamento crítico com relação
a uma política curricular centralizadora que com o objetivo de afirmar-se, assim como toda
proposta curricular, apresenta-se como antagônica a proposta anterior, como proporcionadora
de um certo salvacionismo à educação que vinha sendo desenvolvida antes de sua produção20
.
Esse discurso acaba por construir, mesmo que apenas no imaginário dos agentes envolvidos
com o documento, a ideia de que a almejada qualidade da educação está sendo construída.
São tantas as demandas sociais em relação ao que vem a ser
qualidade da educação, desde aquelas sintonizadas com as
condições socioeconômicas de vida até as relações interpessoais
nos lugares de trabalho, que a qualidade se esvazia de
significado. É por meio desse vazio, nunca completo, sempre
tendencialmente vazio, que a expressão qualidade da educação
se torna capaz de aglutinar diferentes demandas e constituir
diferentes sujeitos que atuam em seu nome, contrapondo-se a
uma ideia de escola sem qualidade. Não se atribui aqui um
sentido de negatividade ao esvaziamento. Defendemos ser desse
modo político que se opera e se produz hegemonia (MATHEUS
E LOPES, 2014, p. 340).
Os múltiplos sentidos atribuídos a qualidade da educação em diferentes
documentos curriculares não são fixos, e, como nos apresenta as autoras acima, estão sujeitos
a diferentes demandas existentes no momento de sua construção e em sua constante
reconstrução. A partir da Teoria do Discurso, as autoras entendem que o sentido de qualidade
da educação apresenta-se enquanto múltiplos sentidos e não fixados. Assim, apesar de
elaborar uma reflexão acerca do sentido de qualidade de educação apresentado nos
documentos, o principal foco dessa análise concentra-se em entendê-lo enquanto medida
19
A afirmação que faço aqui, sobre da situação das escolas particulares, é feita a partir de minhas próprias observações s por estar inserida nesse contexto, como professora de geografia de um colégio particular, bem como a partir de diálogos e entrevistas informais realizadas com colegas de trabalho que também atuam em escolas particulares. O enquadramento específico com o Estado de São Paulo acontece devido à experiência restringir-se nesse contexto, bem como devido ao recorte deste trabalho. 20
Realizamos algumas investigações que demonstraram que o pensamento inovador de cada documento curricular, que se denomina como repleto de mudanças, quando paramos para examiná-los notamos que são muito mais comuns as permanências do que mudanças (ERMANI e STRAFORINI, 2015).
56
política, compreendendo quais as intencionalidades que o discurso pela busca da qualidade da
educação tem sido construído enquanto política curricular, bem como quais tem sido as
consequências para os principais envolvidos nesse assunto, marcando o significante qualidade
da educação com múltiplos significados que estão sempre em disputas pela fixação de
sentidos, o Programa São Paulo Faz Escola é apenas um deles.
Ao analisar o Currículo do Estado de São Paulo é claro que o significante
associado ao conceito de qualidade de educação não aparece claramente definido, no entanto,
é possível notá-lo em dois trechos específicos. O primeiro deles considera a qualidade de
educação como sendo necessária no contexto atual de massificação da educação brasileira:
Nesse contexto, ganha a importância redobrada a qualidade da
educação oferecida nas escolas públicas, que vêm recebendo, em
número cada vez mais expressivo, as camadas pobres da sociedade
brasileira, que até bem pouco tempo não tinham efetivo acesso à
escola. A relevância e a pertinência das aprendizagens escolares
construídas nessas instituições são decisivas para que o acesso a elas
proporcione uma real oportunidade de inserção produtiva e solidária
no mundo (SÃO PAULO, 2012, p. 9 – grifo meu).
O fragmento do texto acima diz respeito à qualidade da educação das escolas
públicas, elucidando que a entrada da população mais pobre à escola acaba gerando uma
demanda de uma qualidade específica, voltada para atender as necessidades desses alunos. A
qualidade específica é significada no trecho acima por proporcionar o “acesso” e
“oportunidade de inserção produtiva e solidária no mundo”, um objetivo que pode ser
entendido de diversas maneiras, tendo em vista as inúmeras formas de interpretações dessas
questões. Conduzindo a leitura do que se entende por acesso e inserção produtiva o
documento segue pontuando que
à medida que a tecnologia vai substituindo os trabalhadores por
autômatos na linha de montagem e nas tarefas de rotina, as
competências para trabalhar em ilhas de produção, associar concepção
e execução, resolver problemas e tomar decisões tornam-se mais
importantes do que conhecimentos e habilidades voltados para postos
específicos de trabalho (SÃO PAULO, 2012, p. 23).
Inicia-se a partir desse trecho o discurso que permeia todo o documento curricular,
de que a qualidade de ensino do Currículo do Estado de São Paulo é associada às
competências modernas voltadas para o mundo do trabalho. Percebe-se que a formação
voltada para o mercado de trabalho tem sido a preocupação da Cadeia Disciplinar de
elaboração do documento, que busca integrar as camadas mais pobres da sociedade brasileira
por meio de competências relacionadas ao mercado de trabalho, não mais em um modelo
fordista - de linha de produção, mas agora busca a formação de um trabalhador flexível,
57
“visando ‘ajustar’ a escola à nova conjuntura do processo de acumulação capitalista; às novas
demandas da economia, da cultura, da sociedade cada vez mais midiática, hedonista e
imediatista” (CAÇÃO, 2010, p. 383).
Baseado na Teoria do Discurso (LACLAU, 2011), entendo que o conceito de
qualidade da educação aparece enquanto um significante vazio, como apresentado
teoricamente no primeiro capítulo, caracterizado pelo “esvaziamento de sentidos do
significante qualidade da educação como um dos mecanismos de constituição da hegemonia
da política de currículo centralizada” (MATHEUS E LOPES, 2014, p. 340).
Dentro do significante vazio que é a qualidade da educação entende-se que a visão
hegemônica que consegue perpetuar-se de forma mais visível nas articulações de saberes é a
de uma escola que serve a esse modelo de acumulação capitalista, proposta a formar agentes
funcionais a esse sistema, no entanto ela não é única, apenas comporta-se como hegemônica
por alguns instantes, pois junto a ela diversas outras concepções disputam sentidos no sentido
de qualidade da educação.
Dialogando com esse sistema organizado por políticas curriculares encontram-se
as políticas de bonificação inserida na rede pública de ensino do Estado de São Paulo que tem
como objetivo a premiação, por meio de bônus, das escolas que alcançarem nas avaliações
externas – no caso o SARESP21
- metas previamente estipuladas. Takahashi (2008 - apud
CAÇÃO, 2010) comenta que a SEE-SP entende que a política de premiar, em dinheiro,
professores e funcionários de escolas que atingem metas de qualidade apesar de ter sido alvo
de polêmica, é a medida entendida como adequada para valorização de bons profissionais,
uma vez que quanto mais a escola se esforçar, mais a equipe se beneficiará. O mesmo
discurso também aparece no próprio site da SEE-SP na página destinada a explicar sobre o
IDESP: “Ao alcançar pelo menos parte da meta definida pelo IDESP, a escola conquista
também o pagamento do bônus por desempenho, que é proporcional ao resultado da unidade,
ponderando a frequência do servidor e o índice socioeconômico da escola”22
.
Por outro lado, compreendo essa questão como sendo uma transformação da
educação em mercadoria que, ao ser consumida pela população, há uma legitimação de
21 O resultado do SARESP serve de base para o cálculo do índice de Desenvolvimento da Educação do Estado de São Paulo (IDESP), utilizado como base de comparação entre as escolas públicas. 22
Disponível em < http://www.educacao.sp.gov.br/idesp> visualizado em 07/06/2017.
58
valores, classificando e adjetivando as escolas mais valorizadas, em detrimento as escolas
com desempenhos menores.
Dentre os pressupostos norteadores comuns a essas reformas,
destacamos: adoção de currículos nacionais, cujos parâmetros
direcionam os critérios avaliativos; introdução de mecanismos de
mercado, como premiação das escolas por “produtividade” e o
estabelecimento da competitividade entre as organizações escolares e
entre os docentes, uma vez que critérios de promoção na carreira e de
aumentos salariais baseiam-se em metas predeterminadas, gerando a
pulverização e fragilização da representatividade da categoria
docente... (CAÇÃO, 2010, p. 383).
A partir desta breve análise dos documentos associados a políticas curriculares
do Estado de São Paulo é possível estabelecer quais tem sido os discursos e as finalidades
discursivas atribuídas a educação paulistana. É perceptível a intensão de controle e vigilância
do trabalho docente, representados por avaliações externas e a indução a utilização do
currículo da forma mais próxima possível do sentido homogeneizador com que foi construído.
Dentre os componentes que buscam significar a avaliação externa encontra-se,
disputando esse cenário a questão da qualidade da educação. Em âmbitos políticos,
econômicos e sociais há consenso de que é necessário caminharmos para uma educação de
qualidade, no entanto, não existe uma reflexão acerca do que está envolvido na chamada
qualidade para a Educação Básica.
Essa questão pode ser lida a partir da discussão do que Laclau (2011), chama
de significantes vazios, uma vez que na palavra qualidade “não enfrentamos excesso ou
deficiência de significações, mas a exata possibilidade teórica de algo que aponte, do interior
do processo de significação, a presença discursiva de seus próprios limites” (LACLAU, 2011,
p. 68). No contexto da educação brasileira contemporânea, percebe-se que há uma
impossibilidade de significação fixa, o significado de qualidade fica como que flutuando entre
signos que compõem diferentes demandas sociais e visões de mundo, uma vez que a
qualidade não é algo dado, nem tampouco neutro, mas ao contrário, algo construído a partir
de intencionalidades, valores e interesses específicos. Passa a ser utilizada enquanto a
qualidade desejada por uma visão de educação mercadológica, por outro lado, passa a ser
almejada uma qualidade para uma educação cidadã. Essas duas concepções apresentam
limites de significações a depender do contexto em que estão inseridas, não são neutras, mas
sim pressupõem exclusão.
59
Esse cenário é de especial interesse quando pensamos nas questões políticas que
envolvem diferentes interesses em torno de um único objeto que no caso é a educação. A
dificuldade em se estabelecer o que se entende por qualidade de educação acaba sendo uma
estratégia para que diversos discursos, projetos e programas que estão associados a qualidade
mercadológica acabem tomando conta do cenário da Educação Básica, uma vez que esse
significante acaba tendo mais potência a tornar-se hegemônico devido a sua maior
visibilidade no cenário político, muito associado a sua força econômica, potente a grandes
investimentos.
Essa reflexão me leva a compreender que o início dessa discussão deve-se pautar
no estabelecimento do tipo de qualidade pretendemos. Para isso é interessante pontuar qual o
tipo de formação que queremos, qual o objetivo da escola eque tipo de alunos queremos
formar.
Machado e Alavarse apud Gusmão (2013) pontuam duas visões antagônicas de
qualidade de educação. A primeira delas está associada ao aumento do desempenho dos
estudantes em avaliações de larga escala. A segunda delas envolve uma qualidade associada a
diversas condições de ensino que conduza a uma formação ampla, abrangendo desde
conteúdos curriculares a cidadania e questões éticas.
Essas duas visões de qualidade demonstram visões antagônicas de qual deve ser a
funcionalidade da Educação Básica. O que vai tornando-se visível é a importância da
definição de qual dessas qualidades cada escola está buscando, isso porque uma escola de
qualidade me parecer ser aquela que é coerente com o que se propõem a fazer.
Após essa análise, recoloco Matheus (2013), onde, ao descrever o seu objeto de
estudo relacionado a qualidade da educação, reflete que
os significados de qualidade dependem dos jogos de linguagem
estabelecidos no bojo do discurso político, o qual, nesta pesquisa,
pode ser acessado por meio da produção textual do MEC e entendido
à medida que identificamos as demandas que mobilizam os atores
sociais a se articularem nessa política... Compreender as demandas
postas no jogo político e compreender as articulações que são levadas
a cabo no sentido de sustentar tais demandas (MATHEUS, 2013, p.
71).
Compartilho da visão da autora de que os significados atribuídos a qualidade de
educação dependem dos jogos de linguagens associados ao discurso político construído a
partir de conflitos e negociações entre diversas demandas. E que uma das formas de o acessar
é por meio da leitura das produções textuais, no caso dessa pesquisa, o Currículo do Estado de
60
São Paulo, do Programa São Paulo Faz Escola e dos “caderninhos”, como foi feito acima, e
como continuarei fazendo no restante desse capítulo.
Apesar disso, acredito que a própria criação do Programa São Paulo Faz Escola,
“por si só”23
já se comporta enquanto um discurso a respeito do tipo de qualidade de educação
que estamos falando, bem como indica, mesmo que de maneira não revelada (oculta), que um
dos fatores limitantes para alcançar a qualidade da educação é o próprio trabalho docente, que
se mostra como insuficiente, sendo necessário a criação de um manual sobre como executar
uma aula, feito passo a passo, para que o professor consiga atingir os objetivos da educação
de qualidade almejados pelo Estado.
2.4. Instrumentos de currículo e a busca pela utilização dos materiais prescritivos
2.4.1. Os “caderninhos”
O Currículo do Estado de São Paulo é construído por conteúdos e metodologias
de ensino para os Anos Finais do Ensino Fundamental e Ensino Médio, dividido em áreas do
conhecimento: Ciências da Natureza e suas Tecnologias; Linguagens, Códigos e suas
Tecnologias; Ciências Humanas e suas tecnologias e Matemática. No entanto, no próprio
documento há a divisão disciplinar para representar os conteúdos a serem desenvolvidos nas
escolas. Da mesma maneira é organizado o material didático, popularmente chamado de
“caderninhos”, divididos por ano e semestre, abarcando, cada um dos cadernos, as seguintes
disciplinas: Língua Portuguesa, Matemática, História, Filosofia, Química, Física Biologia,
Inglês, Geografia, Sociologia, Arte e Educação Física. Os cadernos de cada uma das
disciplinas são apresentados com capas de cores distintas, o que faz com que popularmente os
cadernos sejam identificados pela sua cor, por exemplo, a capa do caderno de geografia é de
cor laranja, como é possível observar na imagem 2. Os professores e os alunos recebem
materiais diferentes, porém com o mesmo conteúdo de ensino. Na versão do professor o
material apresenta textos de apoio, indicações de leitura e, sobretudo, Situações de
23
Vale ressaltar que o Programa São Paulo Faz Escola, ao elaborar materiais didáticos baseados no Currículo do Estado de São Paulo, enquadra-se como uma política curricular, no entanto, é vendido, sob o discurso do Estado de São Paulo, enquanto uma política educacional, o que é bem mais complexo e envolve outras questões. Isso acaba por “superdimensionar” as ações do governo e cria um discurso de que se com toda essa “reforma” na educação paulista, a qualidade da educação ainda não chegou às escolas, o problema passa a ser inteiramente do docente, que não tem as competências e as habilidades que lhes são necessárias.
61
Aprendizagem24
, que nada mais são do que um plano de aula pronto para o professor
desenvolver com a turma, contendo os exercícios, atividades que devem ser aplicadas e
propostas de avaliação e recuperação de conteúdo. E que segundo o próprio documento,
“oferecem também sugestões de métodos e estratégias de trabalho para as aulas,
experimentações, projetos coletivos, atividades extraclasse e estudos interdisciplinares (SÃO
PAULO, 2010, p. 8).
Segundo Cação (2011),
ao direcionar o teor e a organização do trabalho docente e do currículo
no interior das escolas, a SEE/SP obrigou-as a abandonar seus
objetivos, metas e estratégias. Cada escola trabalhou com o material
didático elaborado pela SEE, nos meses de fevereiro e março, visando
recuperar conteúdos, sobretudo de Língua Portuguesa e Matemática e
sanar defasagens. Ao final do bimestre, a SEE realizou avaliação
centralizada. Após esse período introdutório, a cada bimestre o
professor recebeu (e continua recebendo até o momento) material
didático denominado Caderno do Professor, que detalha, para cada
disciplina, os conteúdos tidos como necessários e a metodologia a ser
utilizada. Posteriormente, esses conhecimentos são “cobrados” em
avaliação realizada pela SEE/SP, assim como por avaliações externas:
SAEB; SARESP e ENEM (Exame Nacional de Ensino Médio) (p. 11).
Imagem 3: Apresentação dos “caderninhos”
Fonte: site Programa São Paulo Faz Escola
24
As Situações de Aprendizagens são sequências didáticas relacionadas a determinado conjunto de conteúdos associados a uma temática. No Caderno do Professor são apresentadas as sequências didáticas acrescidas de manuais de “sugestões” para serem seguidas ao trabalhar os exercícios com os alunos, A palavra “sugestão” aparece entre aspas, uma vez que o material foi elaborado de uma forma que essas “sugestões”, quando não seguidas, impossibilitam a utilização do material didático, como abordarei mais à frente. As Situações de Aprendizagens do Caderno do Aluno apresentam somente sequências didáticas, ou seja, os exercícios.
62
Os “caderninhos” laranjas analisados nessa pesquisa foram as correspondentes
aos 7º e 9º anos do Ensino Fundamental - uma vez que inicialmente os questionamentos me
levaram a propor uma análise da relação entre os “caderninhos” e as questões apresentadas na
prova do Saresp -, fundamentados em exercícios cujos conteúdos são delimitados pelo
Currículo do Estado de São Paulo, que são distribuídos em forma de atividades, chamadas de
"Situações de Aprendizagens", propondo uma série de sequências metodológicas abordando
os conteúdos propostos no currículo de maneira diversa.
Destaco abaixo os instrumentos metodológicos representados no Caderno do
Professor de geografia (os “caderninhos” utilizados como base da análise foram os de
geografia para os 7º e 9º anos, volume 1 e 2 (2014-2017)).
Verificação de conhecimentos prévios
Leitura e análise de mapas
Debates
Trechos de documentários
Roteiro de questões
Pesquisas em sites da internet
Pesquisa em materiais impressos
Consulta em Atlas escolar
Análise de imagem de satélite (Google Earth)
Análise de esquemas gráficos
Elaboração de mapas, tabelas, gráficos e relatórios
Entrevista com familiares
Leitura de textos
Aula expositiva
Apresentação de filmes
Elaboração de atas sobre discussões
Em cada Situação de Aprendizagem é apresentado, detalhadamente, caminhos
metodológicos a serem seguidos, de forma tão fechada que para a realização de apenas uma
das atividades, o professor depende da realização de todas as demais.
Apresento abaixo alguns fragmentos de textos retirados do Caderno do Professor,
onde é possível compreender essa relação de dependência e de “amarração” ao documento
curricular. Para isso, enfatizo que a reflexão que desenvolvo nesta parte do texto, não se
63
pretende ser, como a maioria das pesquisas que utilizam materiais didáticos, cujo objetivo
principal centra-se na análise do conteúdo ou da didática dos documentos curriculares,
visando o entendimento do objeto dessa pesquisa. Antes disso, buscando compreender a
política curricular, elaboro esta análise a fim de identificar as situações em que os
“caderninhos” utilizam a didática enquanto instrumento político para alcançar o objetivo
almejado pelo Estado.
As sequências didáticas propostas apresentam mapas e exercícios específicos que
dependem quase que exclusivamente da execução de cada passo ou ação didática já
previamente planejada no manual do professor, pois os exercícios que aparecem no Caderno
do Aluno, são baseados nessas sequências de atividades já prontas no Caderno do Professor.
Por mais que o professor tente subverter o material ou recontextualizá-lo à sua realidade, o
espaço de manobra para tanto é bastante reduzido, dada a capacidade de controle,
representada por uma sequência de exercícios amarrada, no sentido que para resolver um dos
exercícios, o aluno necessita ter realizado todos os outros, bem como analisado os mapas, as
imagens, as pesquisas e quaisquer outras metodologias de ensino que aparecerem nesses
materiais didáticos.
64
IMAGEM 4: FRAGMENTO DE UMA DAS METODOLOGIAS DE ENSINO
APRESENTADAS NO CADERNO DO PROFESSOR
Caderno do Professor – 7º ano Ensino Fundamental II, v. 1, p. 16.
Mesmo com a utilização do verbo “poderá”, indicando uma sugestão/opção, as
instruções metodológicas utilizadas no Caderno do Professor conduzem a uma prática
pedagógica e curricular única e padronizada em toda a rede pública de ensino paulista,
limitando os professores até mesmo na escolha da referência que eles pretendem utilizar em
suas aulas. Penso que a estrutura dos “caderninhos” revela o discurso por parte do Estado de
65
que os seus professores não possuem boa qualificação profissional para implementar aulas
com aprendizagem significativa, pois são incampazes de planejar uma aula.
No segundo trecho destacado na figura acima, o material didático novamente
propõe uma atividade em que o professor já está condicionado a seguir o próximo passo que
aparece no Caderno do Aluno como um exercício, baseado na análise de um mapa. O Atlas
sugerido como consulta não está disponível na maioria das escolas públicas. Essa minha
afirmação resulta da minha própria experiência como professora, pois na escola onde leciono
é considerada uma das melhores em condições administrativas, financeiras e em relação ao
próprio rendimento escolar, e, ainda assim, não possui nem cinco exemplares de Atlas escolar
para serem consultados pelos alunos.
IMAGEM 5: FRAGMENTO DE UMA DAS METODOLOGIAS DE ENSINO
APRESENTADAS NO CADERNO DO PROFESSOR
Caderno do Professor – 7º ano Ensino Fundamental II, v. 1, p. 18.
Na imagem acima, novamente aparece um exemplo a ser usado pelo professor
previamente estabelecido como “sugestão” no Caderno do Professor, mas apresentado no
66
“Caderno do Aluno” enquanto proposta de exercício. Isso faz com que o professor, ao
trabalhar o conteúdo “cidade gêmeas”, que faz parte do conteúdo maior fronteira e limite
territorial, seja obrigado a utilizar como exemplo principal aquele previamente decidido pelo
documento curricular.
Não estou afirmando que não devam existir exemplos em materiais didáticos,
até porque esses exemplos são responsáveis por complementarem o entendimento dos alunos.
O que estou questionando é o fato de um material didático utilizar este ÚNICO exemplo, onde
eu, enquanto professora, não consigo trabalhar mais profundamente com algum outro
exemplo que faça mais sentido no contexto das minhas aulas, porque todos os exercícios
propostos no Caderno do Aluno seguem este ÚNICO exemplo delimitado pelo material
didático. Ainda mais, ao entregar o Caderno do Professor enquanto um material didático
pronto, onde as próprias atividades são nomeadas como “sequências didáticas”, estipuladas
passo a passo como devem ser seguidas, o Estado acaba por limitar a ação docente a um estilo
de aula e a um conteúdo que siga de uma forma determinada, permitindo que o aluno
responda as questões propostas no Caderno do Aluno. Dito de outra forma, caso eu não
trabalhe com o estudo de caso das cidades-gêmeas específicas, tal como representado na
imagem 6, trabalhadas nos “caderninhos”, meus alunos terão dificuldades em responder as
questões propostas, mesmo tendo construído o conceito da geografia urbana associada a essa
situação.
67
IMAGEM 6: FRAGMENTO DE UMA DAS METODOLOGIAS DE ENSINO
APRESENTADAS NO CADERNO DO PROFESSOR
Caderno do Professor – 7º ano Ensino Fundamental II, v. 1, p. 20.
Na etapa 3, encontramos outra exemplificação utilizada para responder uma
série de exercícios no Caderno do Aluno, limitando o professor a reprodução daquele
exemplo. A imagem 5a, citada no texto, é uma imagem de satélite das fronteiras territoriais
entre Letícia e Tabatinga e a imagem 5b apresenta um esquema sobre o circuito de circulação
de mercadoria envolvendo essas cidades, seus estados e outros países, apresentada abaixo.
68
IMAGEM 7: ESQUEMA DIDÁTICO APRESENTADO NO CADERNO DO
PROFESSOR E CADERNO DO ALUNO
Fonte: Caderno do Professor – 7º ano Ensino Fundamental II, v. 1, p. 21.
Qualquer professor de geografia, ao analisar o esquema acima, o considerará
como didático e útil no processo de ensino. Ao trabalhar com esse esquema em sala de aula, a
maioria dos alunos rapidamente compreende a relação entre Letícia e Tabatinga e destas com
o mundo. No entanto, o que acaba se perdendo é o contexto da sala de aula, as questões que
surgem e os exemplos utilizados pelos alunos. Por exemplo, na minha sala do 7º ano D, tenho
uma aluna Colombiana, que pode trazer um relato sobre como esse comércio acontece na
Colômbia, mas fiquei me perguntando: isso aconteceu na minha aula, como seriam nas outras
turmas que não existe a Joana para relatar um pouco das relações comerciais entre Colômbia e
o Brasil aos olhos de uma menina do 7º ano? Ou ainda, como usar o exemplo da Joana caso
ela fosse uruguaia, por exemplo? Eu poderia até pedir para que ela se manifestasse e contasse
um pouco de seu conhecimento sobre o comércio e a origem dos produtos encontrados em seu
país, mas logo após essa empolgante atividade, muitas vezes envolvendo a sala toda,
concentrada em escutar a colega, nós voltaríamos a fazer os exercícios sobre Letícia e
Tabatinga.
69
IMAGEM 8: FRAGMENTO DE UMA DAS METODOLOGIAS DE ENSINO
APRESENTADAS NO CADERNO DO PROFESSOR
Caderno do Professor – 7º ano Ensino Fundamental II, v. 1, p. 20.
Por fim, a última imagem selecionada da Situação de Aprendizagem 2,
novamente “sugere” uma metodologia de ensino, totalmente formatada e conduzida para
atingir determinado objetivo.
Com base na apresentação da didática específica associada à disciplina escolar
geografia, retomo a citação de Veiga (1994, p. 60), com o objetivo de tencionar o tipo de
didática utilizada em alguns momentos nas propostas metodológicas apresentadas nos
“caderninhos”:
Os conteúdos dos cursos de didática concentram-se na organização
racional do processo de ensino, isto é, no planejamento didático
formal, na elaboração de materiais institucionais, nos livros didáticos
descartáveis. Sua preocupação básica é a descrição e especificação
comportamental e operacional dos objetivos, o desenvolvimento dos
componentes da instrução, a análise das condições ambientais, a
avaliação somativa, a implementação e o controle, enfim, a
mecanização do processo de ensino e a supervalorização dos meios
sofisticados (grifo meu).
A partir da análise apresentada acima pelo autor, é visível que os caminhos
metodológicos presentes nos “caderninhos” em que os professores de geografia “poderão”
seguir, são contaminados exatamente por essa preocupação, do controle, da mecanização do
70
processo de ensino-aprendizagem e da supervalorização dos meios e recursos didáticos
sofisticados, que, na maioria das vezes, são impossíveis de serem utilizados devido a estrutura
(ou a falta dela) material das escolas
A elaboração e implementação de um material contendo o planejamento prévio de
cada aula e um passo-a-passo de cada momento da aula atua diretamente na interdição da
autonomia docente, impedindo que o professor construa caminhos teórico-metodológicos
considerando a sua própria trajetória formativa, o contexto da sua sala de aula, da sua escola e
da comunidade a qual está inserida. Ainda que algumas atividades propostas nas sequências
de aprendizagem sejam interessantes do ponto de vista pedagógico e que o professor decida
por sua implementação, acredito que muitas delas são quase impossíveis de serem colocadas
em prática devido a própria política de precarização da infraestrutura escolar proporcionada
pelo Estado de São Paulo. Em muitas atividades pede-se que os alunos façam pesquisas na
internet, no entanto, quase nenhuma escola paulista possui laboratórios de informática com
máquinas em quantidade e em bom estado de uso e conectados à internet, além dos
laboratórios e das bibliotecas estarem sucateadas ou terem se transformado em depósito de
qualquer coisa.
O discurso oficial por parte do Estado para justificar a produção, bem como
todos os mecanismos de controle empregados para a utilização dos “caderninhos” é o de
garantir qualidade educacional em seu sistema de ensino. Mas porque tanto investimento de
recursos nessas apostilas? Ao padronizar a prática pedagógica e curricular dos docentes, o
Estado está assumindo o discurso de que seus professores não estão aparelhados
intelectualmente para planejarem suas próprias aulas e tampouco são capazes de garantir bons
resultados nas avaliações externas realizadas nas escolas, como o SARESP e Prova Brasil.
Trata-se, assim, de uma operação discursiva em que se suturada o discurso de qualidade
educacional à perda da autonomia docente.
Assim, buscando atingir as metas de rendimento e a fim de alcançar a almejada
qualidade da educação, a Secretaria de Educação do Estado de São Paulo utiliza-se do
discurso da didática nos "caderninhos" como instrumento para alcançar o padrão ideal de
qualidade no ensino. Os resultados negativos obtidos pelas escolas, não atingindo as metas de
avaliação só podem, então, ter um único culpado: os professores que não seguem os
“caderninhos”. Assim, esse material tem um duplo sentido: o de controle a partir da perda da
autonomia docente e o de culpabilização.
71
2.4.2. A Avaliação Externa
Uma segunda maneira que o Estado de São Paulo utiliza para que as escolas
apliquem o currículo integrador elaborado para o Estado é o sistema de avaliação externa,
representado pelo SARESP (Sistema de Avaliação do Rendimento Escolar do Estado de São
Paulo)25
, e pelas AAPs (Avaliação de Aprendizagem em Processo)26
.
Para compreender a forma com que as avaliações externas, em especial o
SARESP, no caso do Programa São Paulo Faz Escola, tem influenciado a construção dos
currículos e a forma com que o conhecimento escolar tem sido construído, elaborarei uma
breve problematização
Não é de hoje que existe o desejo pela mensuração de como caminha a Educação
Básica. Gatti (2009), pontua que, no Brasil, a década de 1960 foi bastante significativa
devido a grande preocupação existente em elaborar processos avaliativos que eram
construídos “baseados em critérios mais claramente enunciados e instrumentos que poderiam
garantir, até certo ponto, que a avaliação do nível de realização obtido estivesse mais
objetivamente garantida”. (GATTI, 2009, p. 8). Para isso, foram elaborados questionários
socioeconômicos buscando compreender a situação dos alunos, bem como quais eram as suas
aspirações. Posteriormente, na década de 1970 novos questionários socioeconômicos foram
aplicados aos alunos visando compreender qual a relação entre o contexto dos alunos, sua
situação socioeconômica e a forma com que eles compreendiam as leituras e as ciências que
eram trabalhadas com eles durante as aulas.
Bonamino (2012), divide as políticas de avaliações do Brasil em três gerações,
sendo a primeira delas marcada pelo caráter diagnóstico da educação, e as outras duas
gerações associadas a um caráter de culpabilização pela situação em que se encontra a
educação brasileira.
Quero caminhar na construção de uma reflexão sobre a compreensão de que as
avaliações de rendimento, assim como são desenvolvidas atualmente, não foram pensadas e
25
O SARESP é alicado uma vez ao ano para os alunos do 3º, 5º, 7º e 9º anos do Ensino Fundamental e da 3ª série do Ensino Médio. Apesar de no site do programa < http://www.educacao.sp.gov.br/saresp> aparecer uma apresentadção da prova como sendo de Língua Portuguesa, Matemática, Ciências Humanas, Ciências da Natureza e Redação, apenas as duas primeiras disciplinas são avaliadas diretamente. Após a correção da prova, as escolas, e toda a sociedade, tem acesso ao IDESP (Índice de Desenvolvimento da Educação do Estado de São Paulo), classificando o rendimento da escola e apresentando, posteriormente, um sistema de bonificação às escolas que alcançaram as metas estabelecidas. 26
As AAPs são provas enviadas pela SEE-SP referentes a disciplina Língua Portuguesa e Matemática, para serem aplicadas bimestralmente, como uma forma de treinar para a prova do Saresp.
72
elaboradas para compreender a complexidade das condições no contexto das escolas
brasileiras. Lendo sobre alguns resgates temporais a respeito do processo avaliativo do Brasil
(BONAMINO, 2012; GATTI, 2009; ZÁKIA & SOUSA, 2003) é possível perceber que a
avaliação externa tem um histórico associado a verificação da qualidade do ensino voltada aos
testes de rendimento escolar. Embora admita-se que em alguns momentos houve negociações
que trouxeram possibilidades de avaliações mais complexas, o que se nota é que a avaliação
externa no Brasil sempre esteve distante de uma avaliação complexa e próxima da realidade
das escolas brasileiras. Entendo que durante as disputas e negociações, algumas forças com
maiores influências a levaram por esse caminho. Essas forças estão, na atualidade, associadas
às políticas neoliberais adotadas no Brasil principalmente na década de 1990. Longe de
restringir-se a Educação, essas políticas fazem parte de um conjunto de ideologias associadas
a um projeto de nação, onde há uma propaganda de um Estado falido e as funções que
deveriam ser asseguradas por esse Estado acabam sendo privatizadas, ou seja, fornecidas por
empresas a um custo específico. É dentro desse pacote que as políticas neoliberais afetam a
Educação, sendo considerada como uma mercadoria, a ser ofertada por uma empresa, a
educação passa a ser reformulada, tem seus padrões de qualidade e excelência visando
garantir a competitividade, como acontece nas políticas de mercado.
As avaliações externas27
pautadas em ideologias neoliberais, como é o caso do
Saresp, adotado pelo Estado de São Paulo, passaram a repercutir aos professores, alunos e na
sociedade como um todo. Zákia (2003) chama atenção para a redefinição do papel do Estado,
em que produzido pela visão neoliberal como um todo e afeta o cenário educacional,
transformando o Estado executor em Estado avaliador. Com isso, o objetivo deixa de se
alcançar uma educação pública e um padrão de qualidade que atenda às necessidades da
sociedade brasileira e passa a buscar atender a padrões estabelecidos pelas grandes empresas
neoliberais.
A partir desse período crescem a parceria entre Estado e empresas privadas na
gestão e no financiamento do ensino, necessitando, cada vez mais, da implantação de sistemas
de avaliação para que a qualidade desse serviço seja assegurada. Assim, essas políticas de
avaliação passam a mensurar a eficácia escolar associada ao padrão atual de educação.
27 Ao colocar o termo avaliação externa estou embasada em nas concepções teóricas de Machado e Alavarse (2014), que a entendem como sendo a realização de provas padronizadas em larga escala, contemplando amplo contingente de participantes e resultando em um conjunto de informações que pode orientar ações das mais variadas ordens nas políticas educacionais para todos os níveis da federação.
73
Imbuídas desse sentido, as políticas de avaliação valem de sua força indutora para
movimentar o projeto pedagógico das escolas dos diferentes níveis de ensino nesta direção.
Índices devem ser alcançados em intervalos de tempos definidos, revelando as performances
das escolas na frenética corrida rumo aos melhores lugares no ranking educacional. (SORDI,
2012, p. 160)
Percebe-se que as avaliações passam a nortear políticas curriculares uma vez
que, buscando o sucesso nas avaliações, os currículos passam a ser reformulados ou
ressignificados pelos próprios professores a fim de que os alunos compreendam de forma
mais complexa, apenas determinadas áreas e determinados conteúdos que são legitimados
pelas avaliações.
Assim,
As matrizes que referenciam os exames nacionais e internacionais têm
se transformado nos definidores das políticas curriculares e funcionam
como importantes fronteiras indicando o que deve ser ensinado
(conhecimento que se torna oficial e útil pelo simples fato de cair nas
provas). Igualmente essas matrizes ganham o estatuto de dizer o que
deve ser considerado conhecimento redundante, descartável e,
portanto, excluído das aprendizagens a serem garantidas pela escola
pública. (SORDI, 2012, p. 161).
Ao delimitar o que se torna importante ser ensinado, a partir da seleção de
alguns conhecimentos, as políticas de avaliação acabam determinando quais saberes e práticas
pedagógicas serão considerados úteis e aqueles sem utilidade e pouco a pouco vão
desaparecendo do currículo escolar. As avaliações externas passam a ter o papel de redefinir o
currículo, tendo mais potência do que ele próprio; quando na verdade deveriam servir apenas
como orientadora de como o currículo está sendo encaminhado nas escolas.
Outra situação preocupante está associada ao fato de que não só determinados
conhecimentos são legitimados e renegados dentro de uma disciplina, mas isso também
acontece entre as próprias disciplinas escolares, quando observamos a quantidade de aulas
destinadas a cada área do conhecimento percebemos uma discrepância bastante significativa
entre Língua Portuguesa e Matemática do restante das disciplinas escolares, que aparecem em
um cenário secundário com tempos de aula bem menor. Algumas avaliações externas
concentram todas as provas nessas duas áreas de conhecimento Língua Portuguesa e
Matemática, o que acaba por legitimar o discurso da tradição das disciplinas, trabalhado por
Goodson (1997), demonstrando que desde o início da história das disciplinas escolares,
74
algumas delas possuíam mais destaque que outras, sendo legitimadas pela intencionalidade de
cada um dos países.
A avaliação de rendimento acaba por reforçar esse processo,
observa-se que este modelo avaliativo acaba produzindo
intencionalmente um jogo de luz e sombra sobre a realidade
educacional das redes de ensino, descartando dados que julga, a seu
critério, “redundantes” e desmerecedores de consideração. Ao serem
desprezados, simplificam a complexidade do contexto que afetam os
resultados dos estudantes. Pior do que isso, orientam o processo
decisório das políticas educacionais com base em dados diagnósticos
equivocados, mas poderosos com base na crença cega naquilo que
dizem os números, fruto da herança positivista que herdamos (SORDI,
2012, p. 161).
Essa situação é ainda mais grave quando consideramos que são inseridas
políticas de premiação financeira das equipes escolares, feitas a partir da bonificação das
escolas que atingem determinada meta previamente estipulada, demonstrando-se como
eficazes e possuidoras de qualidade excelente. Juntamente ao sistema de avaliação externa,
essas políticas de premiação financeira acabam por iniciar outro movimento preocupante,
relacionado a discursos de prestação de contas e responsabilização. O modelo homogêneo de
avaliação aplicado em âmbito internacional, nacional, estadual ou mesmo municipal muitas
vezes permite comparações entre as escolas, medindo o rendimento delas de acordo com o
resultado em um exame, desconsiderando todo o contexto da escola.
A partir da responsabilização centrada na culpabilização, as escolas passam por
um processo onde a gestão é “direcionada para impor determinados procedimentos e práticas
que visam resultados visíveis e mensuráveis, sem preocupação com a politicidade dos
objetivos, a complexidade dos processos organizacionais e subjetividade dos atores”
(AFONSO, 2012, p. 480).
Com isso, me pergunto,
O que dizer de um processo de produção de qualidade que
desconsidera a voz dos profissionais da educação? Considerados
“redundantes” neste processo, seus saberes profissionais e
experiências tem sido sumariamente considerados lixos, fora das
especificações. Carecem assim de algo que externamente determinem
como devem agir. Necessitam de padrões a seguir rigidamente para
que determinados resultados sejam alcançados em linhas de tempo (ou
montagem?) previamente definidas e sobre as quais não lhes cabe
opinar. Aliás, insiste-se na apresentação destes padrões como algo
consensual e isento de contradições. Algo a que as escolas devem se
ajustar prontamente e para tal o controle externo é requerido de modo
a regular a qualidade dos estabelecimentos de ensino (SORDI, 2012,
p. 159).
75
Penso aqui em duas questões fundamentais que se relacionam a discussão em
torno do que consiste a qualidade da educação, intensamente buscada por meio da aplicação
de avaliações externas e por instrumentos reguladores da aplicação do currículo, tais como os
“caderninhos”, e a forma com que os professores tem seu trabalho afetado por esses
instrumentos de controle. Mais adiante, no último capítulo dessa dissertação retomarei essa
questão, trazendo a voz dos professores, dialogando seus sentimentos em relação às políticas
curriculares do Estado de São Paulo quando as aplicam em sua escola e na sua sala de aula.
No próximo capítulo, busco entender um pouco mais sobre a forma com que os
“caderninhos” foram construídos. Para isso, antes da análise dos exercícios, retomo uma
reflexão teórica a respeito das diferentes metodologias de ensino, voltando a uma análise
epistemológica dos diferentes momentos da didática brasileira, pensando em como eles
influenciam na construção do material didático proposto, apresentado apenas por exercícios,
no caso do Caderno do Aluno. Ao fazer isso, pretendo dialogar os diferentes momentos da
didática brasileira com a análise dos exercícios, trazendo alguns exemplos retirados do
material didático colocados em dialogia com a teoria.
76
CAPÍTULO 3: A DIDÁTICA E A METODOLOGIA DE ENSINO DE GEOGRAFIA
3.1. Diferentes momentos da didática enquanto campo epistemológico
A necessidade de se pensar o campo epistemológico da didática foi-se construindo
durante as primeiras análises dos documentos curriculares. Ao ler “os caderninhos”28
buscando elencar as metodologias de ensino de geografia, surgiu a dúvida sobre o que
exatamente seriam essas metodologias de ensino, como selecionar algo que não se é capaz de
significar? Assim, iniciei minhas primeiras leituras sobre didática e junto a isso alguns textos
com reflexões sobre didática da geografia (ela existe?) e metodologias de ensino da geografia.
Para essa reflexão, utilizo os termos didática e metodologia da geografia em
diversos mementos, para isso, esclareço que esses termos são tidos como uma figura de
linguagem representada pela metonímia, uma vez que compreendo a didática enquanto campo
epistemológico, e as metodologias de ensino enquanto o produto das discussões teóricas da
didática. No entanto, para essa análise, após a elaboração da discussão teórica do campo
epistemológico da didática, muitas vezes os termos são usados como metonímia, atendendo a
demanda pela relação entre o campo epistemológico e as medidas instrumentalizadas nos
materiais didáticos.
Após compreender o campo teórico da didática e a didática da geografia, junto
com o avanço no entendimento do campo teórico da Teria do Discurso, compreendi que a
didática foi utilizada pelo Programa São Paulo Faz Escola como um instrumento discursivo
em defesa da qualidade da educação, e a partir disso, entende-la tornou- se fundamental para
essa pesquisa.
Os diversos momentos do campo epistemológico da didática me possibilitaram
olhar para a didática dos “caderninhos” e compreender quais influências estavam sendo
marcadas naquele texto e, mais do que isso, como essas influências também são elementos
discursivos fortes que tentam fixar um sentido de currículo no Programa São Paulo Faz
Escola. De alguma forma, estamos defendendo que currículo e didática não são estradas
diferentes que nos levam para lugares distintos, mas sim para um único lugar: o sentido
hegemônico/universal que se tenta fixar para escola e de Educação Pública no Estado de São
Paulo: a negação da autonomia docente. Dito de outra forma, a Didática não pode ser pensada
28
Os “caderninhos” são os materiais didáticos elaborados pelo Programa São Paulo Faz Escola, tendo três
versões adaptadas ao público alvo, o Caderno do Aluno, o Caderno do Professor e o Caderno do Gestor,
posteriormente os explicarei com mais detalhes.
77
sem um de seus elementos fundantes: a própria política. Também possibilitaram-me
compreender que as concepções teóricas não são superadas, mesmo quando novos
“paradigmas” aparecem, pois ainda continuam a existir permanências29
de momentos outros.
É esse o caminho que pretendo trilhar neste capítulo, buscando refletir quais as relações entre
a didática e a didática específica da geografia.
Embora sejam pontuados momentos históricos a fim de compreender como o
sentido de Didática foi sendo construído em diferentes momentos históricos. A pretensão
central não consiste na produção de uma linha do tempo diacrônica ou de um resgate histórico
objetivo deste campo de estudo, uma vez que compreendemos que, apesar de marcados por
momentos em que foram sendo construídos, os sentidos de Didática são sempre contingentes,
precários e provisórios, sujeitos a novas negociações e formadores de novos sentidos a cada
tempo, podendo conviver simultaneamente diferentes correntes da Didática. Em nosso grupo
(APEGEO), tempo trazido da geografia o conceito de rugosidade espacial, para pensarmos a
própria Didática, ou seja, defendemos que uma corrente não supera a outra, mas convivem
simultaneamente, num movimento que chamamos de rugosidades didático-pedagógicas.
Dialogando com os pressupostos pós-estruturalista, admito que “entender historicamente algo
significa reconducirlo a las condiciones contingentes de su emergencia. Lejos de buscar un
sentido objetivo a la historia, de lo que se trata es de desconstruir todo sentido remitiéndolo a
su facticidad originaria” (LACLAU, 2000, p. 52).
Uma vez que a didática é considerada um ramo do conhecimento pedagógico
(LIBÂNEO, 2000), pretendo, inicialmente, realizar um levantamento acerca de alguns autores
que pesquisam o campo da didática associada aos cursos de formação de professores. A
didática enquanto campo de conhecimento é marcada pelas correntes teóricas que envolveram
a própria ciência, bem como pela construção de momentos históricos e pequenas decisões
tomadas no campo epistêmico. Para esse texto, apesar de elaborar um resgate do campo
epistêmico da didática, o que me permitiu compreender as formas com que as atividades são
propostas nos “caderninhos”, o que pretendo compreender são essas didáticas adotadas no
documento didático enquanto políticas curriculares.
29
Ao trabalhar com o conceito de permanências, trazida por Goordo (1997), fazemos um empréstimo do termo, associando-o ao sentido de “Rugosidade” trazido por Santos (1982, p. 42), à leitura geográfica, entendendo-o como “formas antigas permanecem como a herança das divisões do trabalho no passado e as formas novas surgem como exigência funcional da divisão do trabalho atual ou recente”. Essa perspectiva de leitura geográfica de herança de momentos outros vem sendo utilizada pelo grupo de pesquisa Ateliê de Pesquisas e Práticas no Ensino de Geografia (APEGEO).
78
Não pretendo aqui estabelecer um significado fechado em torno do que é
didática e de como ela se comporta enquanto um campo epistemológico, tão pouco em como
seu conhecimento é chamado à sala de aula da educação básica todos os dias. Ainda assim,
para que se tenha base ao entendimento de como se traduz a palavra didática para mim,
apresento a colocação de Libâneo (2000) que constrói uma reflexão, deixando sentidos em
abertos ao que ele entende por didática.
A didática tem como objeto de estudo o processo de ensino na sua
globalidade, isto é, suas finalidades sociopedagógicas, princípios,
condições e meios de direção e organização do ensino e da
aprendizagem, pelos quais se assegura a mediação docente de
objetivos, conteúdos, métodos, em vista da efetivação da assimilação
consciente de conhecimentos. Nesse sentido, define-se como direção
do processo de ensinar, no qual estão envolvidos articuladamente, fins
imediatos (instrutivos) e mediatos (formativos) e procedimentos
adequados ao ensino e à aprendizagem (p. 117).
A partir da revisão bibliográfica no campo da didática realizada durante a
trajetória da pesquisa (OLIVEIRA, 1992; VEIGA, 1994; PIMENTA, 2000; LIBÂNEO, 2002;
CRUZ, 2008; CANDAU, 2008, 2009; VEIGA E SILVA, 2010, entre outros), é possível
mapear algumas fases em que o campo epistemológico da didática se comportou de maneiras
distintas, influenciado pelo próprio movimento da ciência30
. A fim de pensar os diferentes
momentos da didática, embora eu reconheça que a atividade de ensinar é inerente ao ser
humano, e esteve institucionalizada no Brasil ainda com os jesuítas, estabeleço como marco
inicial para essa análise o início da disciplina de didática nos cursos de formação de
professores, pontuando um primeiro olhar para o campo, concentrado em como a didática tem
aparecido nos cursos de formação de professores.
Cruz (2008) ao refletir a respeito do início dos cursos de formação de professores,
entre as décadas de 1940 e 1950, encontra grande influência tanto do Curso Normal31
, quanto
do Curso de Pedagogia32
em seus momentos formativos. Ao entrevistar os sujeitos que ela
chama de “pedagogos primordiais”, a autora constata que a grande maioria deles obteve a
formação para tornar-se professor no Curso Normal, chamando sua atenção para os diferentes
30
Pontuo que ao se definir distintas fases da didática enquanto campo epistemológico, como já dito, não se pretende expor conhecimentos superados e/ou ultrapassados em espaços-tempos anteriores. O que se pretende é a compreensão de como o campo da didática foi contaminando-se com o que era produzido enquanto ciência, bem como visualizar como a didática contemporânea carrega permanências (GOODSON, 1997) de outras didáticas e que não há um marco temporal rígido e acabado. 31
Formação de professores em nível médio para atuar nos anos iniciais do ensino fundamental. 32
Formação de professores em nível superior para atuar nos anos iniciais do ensino fundamental, nos cursos de formação de professores em nível médio (magistério / normal), gestão e coordenação pedagógica.
79
modos com que esses dois cursos trabalham com a teoria e a prática, como é possível observar
no quadro abaixo que traz a percepção dos entrevistados sobre esse assunto.
QUADRO 3: COMPARAÇÃO ENTRE O CURSO NORMAL E
O CURSO DE PEDAGOGIA COM RELAÇÃO À CONCEPÇÃO DE
TEORIA E PRÁTICA, SEGUNDO AS ENTREVISTAS DE CRUZ (2008)
Sobre o Curso Normal Sobre o Curso de Pedagogia
Na minha época a Escola Normal era muito
forte. Aprendia-se sobre a educação e sobre
ser professor. Tão logo concluí o curso,
ingressei no seu corpo docente como
professora de português, sabendo o que
tinha que fazer. (Entrevistada B-40).
O Curso de Pedagogia era
desmembrado em dois (Pedagogia e
Didática). Pedagogia formava o
bacharel e Didática formava o
professor. Tanto no bacharel quanto na
licenciatura, eu observava
características da Escola Normal. As
disciplinas eram praticamente as
mesmas, mas muito mais teóricas e
menos práticas. Era um curso que tinha
profundidade. Lembro-me de um
módulo do curso sobre história da
filosofia, que foi tão bom e consistente
quanto o que fiz posteriormente na
graduação em filosofia. (Entrevistado
B-40).
A base de criação da minha cultura
pedagógica se deu no Curso Normal. Do
ponto de vista estruturalmente pedagógico,
as questões de sala de aula, prática de
ensino, didática foram trabalhadas no
Normal. No Curso de Pedagogia não houve
nenhuma referência significativa a esse
respeito. (Entrevistado D-50).
O curso de pedagogia acrescentou uma
perspectiva diferente. Tive um
aprofundamento em filosofia, que até
hoje me ajuda. A mesma coisa em
matemática e estatística. (Entrevistado
D-50).
Fonte: Cruz (2008, p. 82)
Elaboração própria
De acordo com a análise das falas dos entrevistados expostas acima, a autora
chama atenção a diferente relação entre teoria e prática nos dois cursos. Ela concluiu que o
curso normal apresenta fundamentos da educação, acrescido de metodologias de ensino,
portanto, abarca questões teóricas e práticas. Por outro lado, o curso de pedagogia é
apresentado pelos entrevistados como o momento de “estudar com profundidade” disciplinas
teóricas, concentrando-se na dimensão teórica. Apesar de o curso de bacharelado formar o
80
profissional técnico da educação, e a licenciatura formar o professor para atuar na Escola
Normal, o que se verificou pela autora, foi que “o propósito de formar um pensador em
educação, capaz de teorizar sobre ela e propor ações referentes aos processos por ela
desencadeados, não se manifestou com muita clareza no contexto da lei, mas parece ter
encontrado alcance no contexto do curso” (CRUZ, 2008, p. 86). Segundo os entrevistados, os
professores do curso de pedagogia eram grandes nomes que conheciam pouco do cotidiano da
escola e possuíam formação em direito, sociologia, teologia, filosofia, entre outras áreas, cujo
conhecimento direto, distanciava-se da pedagogia.
Junto as contribuições para a compreensão do processo de constituição dos cursos
de formação de professores no Brasil, um dos motivos que me levou a trazer a reflexão de
Cruz (2008) para esse texto, foi o questionamento que ficou em minha mente logo após a
leitura do capítulo quatro de sua tese, cujo título é “Das trajetórias e memórias de pedagogos
primordiais: os primórdios do Curso de Pedagogia no Brasil”. Passei a pensar se essa
concentração de professores oriundos de outras áreas, nos cursos de formação de professores,
não seria o marco inicial para a construção de cursos de pedagogia e de licenciatura que
apresentam, em especial com relação à disciplina de didática, objeto de estudo desse capítulo,
uma grande demarcação, em alguns casos representada por um distanciamento, entre o que se
pensa na academia e o que se pratica, ou vivencia-se nas escolas básicas. Deixo essa reflexão
inicial.
Analisando as disciplinas de didáticas oferecidas em cursos de pedagogia e
licenciaturas, alguns autores elaboraram reflexões sobre a primeira fase do campo da didática
considerada enquanto técnica. Influenciada pela ciência positivista, apresenta-se enquanto
uma “prática pedagógica repetitiva, acrítica e mecânica, quando assume uma característica
eminentemente prescritiva, normativa, fundamentando-se em modelos pré-estabelecidos”
(VEIGA, 1994, p. 19)33
. A didática apresentada nesse momento é definida pela autora como
prática pedagógica repetitiva, apresentada como um campo teórico neutro e distante da
vivência dos alunos, sem qualquer preocupação com um compromisso social. Sua
funcionalidade pauta-se na instrumentalização técnica do ensino, limitando-se a apreensão e
transmissão de conhecimentos didáticos.
33
O posicionamento da pesquisadora, assim como de tantos outros que apareceram e aparecerão neste texto, é feito tendo como base uma concepção teórica crítica, e, a partir dela é que olham para a didática anterior e a classificam da maneira citada.
81
A autora estabelece uma periodização acerca de distintas concepções de didáticas
na formação de professores. Para minha reflexão, não utilizarei a periodização de forma
rígida, uma vez que não considero que as datas sejam relevantes para pensar sobre os
momentos da didática e compreender meu objeto de pesquisa, no entanto, utilizarei os
momentos desenhados por ela, marcando os tempos apenas quando houver necessidade.
O primeiro deles é chamado de renovação da didática tradicional, iniciado na
década de 1930, cujo quadro de disputas pautava-se entre as ideias tradicionais, associadas à
doutrinação católica e as ideias novas, representadas pela cientifização do campo da didática,
acompanhado de uma reflexão sobre a responsabilidade pública da educação e de sua
laicidade, e a busca pela negação do que havia sido desenvolvido até aquele momento.
Durante esse período, a didática aparece como disciplina para o magistério34
e vem ganhando
espaço enquanto metodologia do ensino secundário. O curso de didática ganha força a partir
da instituição dos cursos de licenciatura no modelo 3+1, onde três anos eram destinados ao
estudo da ciência de referência, enquanto um ano concentrava-se às disciplinas do curso de
pedagogia: Didática Geral, Didática Especial, Psicologia Educacional, Administração Escolar,
Fundamentos Biológicos da Educação e Fundamentos Sociológicos da Educação.
André (2000) ao pensar a respeito das tendências no ensino de didática no Brasil,
pontua a influência da perspectiva instrumental e tecnicista e do método experimental de
pesquisa durante a década de 1970. Ao analisar as duas disciplinas de didáticas oferecidas no
curso de formação de professores da PUC/Rio, onde concentrou-se o primeiro programa de
pós-graduação do Brasil, a autora encontra os seguintes objetivos elucidados no programa da
disciplina de Metodologia da Didática I: “Construir um modelo de planejamento de um curso,
elaborar um módulo de ensino, caracterizar os elementos básicos de um planejamento didático
a partir da abordagem sistêmica”. Os temas destinados à disciplina eram “módulo de ensino,
micro-ensino, ensino por competência, aprendizagem para o domínio, abordagem sistêmica e
planejamento didático, entre outros” (ANDRÉ, 2000, p. 193). Enquanto que a disciplina de
Metodologia de Didática II concentrava-se em trabalhar uma didática experimental, na qual
34
Acredito que aqui a autora estava tratando dos Institutos de Educação, que tinham por função a formação de professores para atuarem nos anos iniciais, a exemplo do Instituto de Educação do Rio de Janeiro, o Caetano de Campos, em São Paulo e o próprio Carlos Gomes, em Campinas.
82
eram realizadas discussões sobre possibilidades de aplicação o método científico na didática e
a análise de trabalhos experimentais35
.
Candau (2009)36
ao pensar sobre os dois grandes momentos da didática –
enquanto técnica e enquanto política -, menciona que a dimensão técnica, quando dissociada
das demais dimensões (política e social), torna-se uma didática tecnicista. Segunda a autora,
“a questão do “fazer” da prática pedagógica é dissociada das perguntas sobre o “por que” e o
“para que fazer” e analisada de forma, muitas vezes, abstrata e não contextualizada”
(CANDAU, 2009, p. 15). É sobre essa forma de didática que as críticas à didática tradicional
são elaboradas.
Participando da disputa pelo sentido de didática naquele momento, representando
as ideias novas, estavam os adeptos do movimento conhecido de escolanovismo, cuja visão de
educação concentrava-se nos métodos de ensino, em detrimento aos objetivos e conteúdos.
Segundo Libâneo (2000, p. 91) “as bases teóricas do escolanovismo europeu e norte-
americano têm como suporte uma concepção científica da educação, no sentido de que os
princípios e leis do processo educativo devem subordinar-se às exigências da verificação
experimental dos fatos”. O que se buscava era combater os pressupostos metafísicos das
pedagogias apresentadas naquele momento. Veiga (2008), pontua que a grande contribuição
do escolanovismo pautou-se na iniciativa em colocar o aluno como protagonista no cenário da
aprendizagem. A autora ainda acrescenta que “os ativistas, em coro unânime, reivindicaram o
valor predominante da espontaneidade da ação do aluno e atribuíram a máxima, senão
exclusiva, importância da atividade do aluno como estruturante do método didático” (VEIGA,
2008, p. 34).
Candau (2009) ainda apresenta este movimento como uma tentativa de superação
da escola tradicional e a busca pela reforma interna da escola. Concentrando-se nos interesses
espontâneos e naturais das crianças, o discurso escolanovista utilizava-se da teoria sociológica
de Durkheim, bem como dos pressupostos teóricos da psicologia experimental, buscando
alcançar a racionalidade e a objetividade nas práticas pedagógicas.
35
A ideia de trabalhos experimentais vincula-se a busca de tornar a didática, e mesmo todo o campo pedagógico, uma ciência positivista, possibilitando a construção de modelos de ensino a serem aplicados na prática. 36
A obra de referência é o livro “A Didática em Questão”, publicado no ano de 1983, em forma de uma coletânea de textos reunindo as falas dos palestrantes do seminário “A Didática em Questão”, realizado na PUC-Rio no ano de 1982. O livro consultado é a 29ª edição, publicada no ano de 2009.
83
Trata-se de uma didática de base psicológica; afirma-se a necessidade
de “aprender fazendo” e de “aprender a aprender”; enfatiza-se a
atenção às diferenças individuais; estudam-se métodos e técnicas
como: “centros de interesse”, estudo dirigido, unidades didáticas,
método de projetos, a técnica de fichas didáticas, o contrato de ensino
etc. (CANDAU, 2009, p. 17).
Dialogando com Saviani (1980), a autora entende que o movimento
escolanovista baseia-se na tendência do humanismo moderno, assumindo uma perspectiva
idealista, uma vez que se concentra no desenvolvimento técnico e deixa de lado uma análise
prática pedagógica concreta de como essa concepção teórica acontece nas escolas.
No período que se inicia com o golpe da ditadura militar no Brasil (a partir de
1964), a visão industrial penetra no campo educacional e caracteriza-se por uma educação que
reflete e serve ao projeto desenvolvimentista do país. O campo da didática é contaminado pelo
desenvolvimento da tecnologia educacional e o ensino programado, privilegiando o enfoque
sistêmico e “baseando-se em conhecimentos científicos e visando a sua produtividade, isto é,
o alcance dos objetivos propostos de forma eficiente e eficaz” (CANDAU, 2009, p. 19).
A disputa nesse momento passa a concentrar-se em uma didática de enfoque
sistêmico e uma didática de enfoque não sistêmico:
Se um enfatiza objetivos gerais, formulados de forma vaga, o outro
enfatiza objetivos específicos e operacionais. Se um enfatiza o
processo, o outro o produto. Se uma parte de um enfoque da
avaliação baseada na “norma”, o outro enfatiza a avaliação baseada
em “critérios”. Se no primeiro o tempo é fixo, o segundo tende a
trabalhar a variável tempo. Se um enfatiza a utilização dos mesmos
procedimentos e materiais, o outro faz variar os procedimentos e
materiais segundo os indivíduos. E assim por diante... (CANDAU,
2009, p. 19).
No jogo das disputas por significações, a didática tecnicista ganha ainda mais
força do que no movimento escolanovismo e a neutralidade científica, inspirada nos
princípios de racionalidade, eficiência e produtividade contaminam o campo da didática,
buscando, com uma pedagogia tecnicista, reafirmar a escola enquanto um ambiente de
organização racional para fortalecer os sujeitos a ocuparem seus lugares dentro do modelo
desenvolvimentista.
Os conteúdos dos cursos de didática concentram-se na organização
racional do processo de ensino, isto é, no planejamento didático
formal, na elaboração de materiais institucionais, nos livros
didáticos descartáveis. Sua preocupação básica é a descrição e
especificação comportamental e operacional dos objetivos, o
desenvolvimento dos componentes da instrução, a análise das
condições ambientais, a avaliação somativa, a implementação e o
controle, enfim, a mecanização do processo de ensino e a
supervalorização dos meios sofisticados (VEIGA, 1994, p. 60).
84
A didática tecnicista inclui modelos sistemáticos, treinamento de habilidades,
modelos de ensino. Libâneo (2000), ao pensar sobre as influências na construção da
pedagogia no Brasil, pontua que “as teorias pedagógicas que dão suporte à reforma do ensino
paulista baseiam-se no modelo de educação norte-americana, por sua vez inspirada na
pedagogia europeia de cunho naturalista-cientificista” (p. 89). Percebe-se que o campo da
didática recebeu uma grande influência do campo pedagógico, e que este, por sua vez, seguia
com a influência dos conhecimentos científico, por isso da didática tradicional enquanto
concepção positivista.
Como a didática não fornece elementos significativos para a
análise da prática pedagógica real e o que ela propõe não tem nada
a ver com a experiência do professor, este tende a considerá-la um
ritual vazio que, quando muito, pertence ao mundo dos “sonhos”,
das idealizações que não contribuem se não para reforçar uma
atitude de negação da prática real que não oferece as condições que
tornariam possível a perspectiva didática proposta (CANDAU,
2009, p. 21).
A grande crítica da didática enquanto técnica, se dá no campo do tecnicismo,
quando a didática técnica se colocar de forma individualizada, abandonando as demais
fronteiras, como a social e política. Brandão (2009), refletindo sua pesquisa sobre evasão e
repetência no 1º Grau, da voz aos professores por meio de entrevistas onde muitas vezes a
dimensão técnica da didática é trazida pelos professores demonstrando uma falta de ligação
do que é produzido pela escola e de como o conhecimento teórico é ressignificado nela,
tornando distante e sem sentido aos professores.
No cenário das disputas pelos sentidos de didática, aparece querendo significá-la a
proposta da didática crítica, apresentada a partir da noção de didática fundamental. Esta, por
sua vez, parte da noção de educação enquanto prática social e por isso deve vincular-se ao
contexto ao qual se insere. Candau (2008) menciona alguns pressupostos teóricos pretendidos
pela didática fundamental, entre eles a clareza teórica de diferentes metodologias de ensino; a
superação da visão dicotômica entre teoria e prática, e um empenho para uma nova visão
pautada na unidade. A eficiência é ressignificada, aparecendo não mais em uma visão
produtivista, mas relacionada ao comprometimento com a transformação social, usadas para
pensar práticas pedagógicas adequadas à maioria da população do país, buscando alcançar o
acesso à escola.
Candau (2009), apresenta a Didática Fundamental, como uma concepção que
envolve mais do que a oposição entre didática técnica e didática crítica, mas uma reflexão
pautada em pressupostos técnicos, humanos e políticas; compreende que essa concepção
85
“assume a multidimensionalidade do processo de ensino-aprendizagem e coloca a articulação
das três dimensões, técnica, humana e política, no centro configurador de sua temática”
(CANDAU, 2009, p. 23).
Assim, no final de 1980, em que na tentativa de contrapor-se à didática
“tradicional”, buscava a práxis e a superação do tratamento fragmentado e
descontextualizados do ensino, típico de uma perspectiva positivista da ciência, dando ênfase
a dimensão técnica e pretensamente neutra do ensino (OLIVEIRA, 1992). A didática crítica,
sob grande influência marxista, passa a olhar a Didática, na condição de um objeto de estudo,
como uma prática social, em que o professor está inserido no mundo e isso influencia a sua
forma de ensinar e a intencionalidade pela qual se ensina.
Oliveira (1988b, apud OLIVEIRA, 1992, p. 30) pontua quais são os quatro
conteúdos principais a serem discutidos pela Nova Didática, representada pela corrente
teórica crítica:
1. Dimensão histórica – natureza, objeto e conteúdo da Didática em seu processo
de construção histórica;
2. Dimensão antropológica – o trabalho docente e sua organização na sociedade
brasileira;
3. Dimensão ideológica – o papel do ensino tendo-se em vista as relações entre
fins pedagógicos e fins sociais;
4. Dimensão epistemológica – conteúdo e forma; as relações entre método de
ensino, método de aprender e método de organização da matéria;
Para a autora, dentro de cada um desses quatro pontos seriam abordados todos os
elementos de ensino, tais como objetivos, conteúdo, planejamento, avaliação, etc.
Um trabalho que se tornou referência no processo de renovação da didática foi
a obra de Candau (1984, 1984a), cujo objetivo principal consiste na sustentação do conceito
de Didática Fundamental como objeto da didática, uma prática pedagógica enquanto um
fenômeno concreto, um processo multideterminado.
A proposta tem, como características essenciais: o reconhecimento
da multidimensionalidade do ensino, visto de forma
contextualizada, e a consideração da articulação entre as
dimensões técnicas, humana e política do ensino-aprendizagem
como o centro de sua temática ; a elaboração de reflexão a partir
do estudo de experiências concretas, no contexto da relação
dialética entre teoria e prática; a análise de metodologias,
explicando-se as concepções de homem, sociedade, conhecimento
e contexto em que foram geradas (OLIVEIRA, 1992, p. 82).
86
A autora, elabora uma crítica a diversas correntes teóricas que compreendem a
didática enquanto uma questão sumariamente técnica. Para a autora, é preciso estar atento a
questão da forma/conteúdo da didática, isso significa dar atenção aos “diferentes
estruturantes” que devem ser analisados pelo campo da didática, principalmente associados a
superação do formalismo e do reducionismo e a ênfase na articulação desses estruturantes.
Nesse momento, a nova didática, influenciada pelo materialismo-dialético,
originada na corrente marxista tencionava seus próprios adeptos, uma vez que havia uma
preocupação com relação à busca pela dialética entre teoria e prática acabar por perder-se no
caminho e na exagerada valorização da prática, uma vez que muitos professores passaram a
uma supervalorização da prática em detrimento da teoria.
Libâneo (2014, p. 88), ao analisar uma série de definições sobre didáticas que
autores de referência elaboraram ao longo dos anos, concluiu que o campo epistemológico
possui significativas antinomias que acabam sendo reforçadas pela dinâmica das mudanças no
campo social, político, científico e cultural.
São pontuadas as seis contradições a seguir:
1. Fragmentação entre ensino e aprendizagem;
2. Centralização nos interesses e necessidades individuais e sociais do aluno em
contraposição à ênfase no conhecimento e na aprendizagem;
3. Separação entre conteúdo/método da ciência/metodologia de ensino;
4. Fragmentação entre o conhecimento e o conteúdo (conhecimento disciplinar) e
o conhecimento pedagógico do conteúdo (didática e didáticas disciplinares);
5. Desconexão entre a didática básica (também chamada de “geral”) e as didáticas
específicas;
6. Desconexão entre aspectos social-político-culturais e aspectos pedagógico
didáticos implicados no ensino e aprendizagem;
Entendo que é possível compreender que alguns desses apontamentos são reflexos
das distintas abordagens teóricas da didática, bem como em suas ideias centrais e em seu
objeto de estudo, conforme refletido nesse capítulo. Para a discussão que vem sendo
construída é de especial interesse os pontos 3, 4 e 5.
Nesses pontos, onde são abordadas questões envolvendo a separação entre ciência
e metodologia de ensino, o autor reflete no campo da formação de professores, chamando
87
atenção aos cursos de licenciatura, principalmente aqueles que ainda mantém o tradicional
modelo 3+1, onde o conteúdo ou a metodologia de ensino são ensinados de forma totalmente
separada dos métodos da ciência. Nestes cursos “verifica-se que a dissociação entre aspectos
indissociáveis na formação docente, ou seja, entre o conhecimento do conteúdo (conteúdo) e o
conhecimento pedagógico do conteúdo (formal)” (LIBÂNEO, 2014, p. 91). Assim, há uma
valorização maior dos métodos da ciência em detrimento das metodologias de ensino dos
conteúdos, trazendo, como consequência, alguns problemas para o licenciando quando se
depara com a atuação profissional na educação básica.
Pensando sobre as causas dos principais desafios da didática, Libâneo (2000)
pontua que apesar das renovações desenvolvidas no campo da pedagogia crítica, elas sofrem
um revés, e ele se dá pela aproximação de investigações de cunho macrossocial, emprestada
das ciências sociais, e de um esvaziamento da teoria pedagógica. As produções de pesquisas
no campo pedagógico nesse período, segundo o autor, concentram-se em questões meramente
metodológicas ou então, questão discutidas pelas ciências sociais, esvaziando a produção de
conhecimento sobre a pedagogia enquanto campo científico.
Ainda nesse sentido, e buscando sistematizar as informações que foram sendo
trabalhadas até o momento neste capítulo, trago a reflexão de Candau (2008) sobre o
formalismo didático nas diferentes concepções de didática. Segundo a autora, nenhuma das
didáticas conseguiu romper com uma visão unidimensional na construção de uma corrente
teórica, ou um método capaz de dialogar com diferentes influencias para a didática. Assim, no
quadro 2 abaixo, busquei sistematizar as distintas abordagens da didática, pensando em suas
funcionalidades e em seus principais desafios, conforme aparece no texto da autora.
Ao analisar o quadro é possível compreender que se trata de uma sistematização à
respeito das distintas concepções de didática, o qual pontuo que embora apareçam
sistematizados de forma bastante fragmentadas, cada uma das abordagens aparecendo em uma
das linhas do quadro, entendo que na aplicação, a didática aparece de forma tendencialmente
híbrida, misturando concepções em torno das disputas entre as permanências e as mudanças.
Para isso, é interessante pensar que, embora exposto em forma de quadro, a fim de
sistematizar informações, as diferentes abordagens de didáticas dialogam com a filosofia do
rizoma, apresentada no primeiro capítulo, onde a ideia de permanência e hibridização é mais
significativa. No final a autora traz a reflexão sobre qual o caminho que ela acredita que a
didática do momento em que ela escreve deve seguir, afim de superar algumas dificuldades
históricas.
88
QUADRO 4: SÍNTESE DAS DISTINTAS ABORDAGENS
DIDÁTICAS, SUAS CONCEPÇÕES TEÓRICAS E SEUS OBJETIVOS,
SEGUNDO CANDAU (2008)
ABORDAGENS DA
DIDÁTICA NO QUE SE CONCENTRA DESAFIOS
PEDAGOGIA
TRADICIONAL
Formalismo lógico.
- Didática é tida enquanto
um instrumento, a “Teoria
do modelo único), capaz de
ensinar tudo a todos.
Deixar de lado os
sujeitos da
aprendizagem e os
conteúdos específicos,
tão pouco
considerando o
contexto onde a prática
pedagógica acontece.
PEDAGOGIA
ESCOLANOVISTA
Formalismo subjetivista
(psicológico).
- A grande contribuição é a
entrada da atividade do
sujeito no ato de conhecer, a
subjetividade humana.
Deixa de lado o
formalismo lógico, os
conteúdos específicos
e o contexto em que
está inserida a prática
pedagógica.
PEDAGOGIA DA
TECNOLOGIA
EDUCACIONAL
Formalismo técnico
Dialogar com os
sujeitos da
aprendizagem e o
contexto em que a
prática está inserida
PEDAGOGIA HISTÓRICO-
CRÍTICA SOCIAL DE
CONTEÚDOS
Formalismo didático
- A busca por um modelo
único.
- Visão reducionista, pautada
apenas em um dos elementos
da didática.
Deixa de lado a ênfase
nas articulações
Fonte: Candau (2008)
Elaboração própria
Para a autora,
Devemos superar a discussão extremamente dicotômica e dualista,
que muitas vezes é feita entre processo e produto na atividade de
ensino-aprendizagem; dimensão intelectual e dimensão afetiva do
processo de ensino-aprendizagem; dimensão objetiva e dimensão
subjetiva; transmissão e assimilação de patrimônio cultural e
desenvolvimento do espírito criativo; compromisso com o saber e a
89
questão do poder na escola; aspectos gerais da aprendizagem e
aspectos específicos da aprendizagem; dimensão lógica e dimensão
psicológica do processo de ensino-aprendizagem; dimensão política e
dimensão técnica da prática pedagógica; fins da educação, meio e
estratégias; função de ensino e função de socialização da escola
(CANDAU, 2008, p. 35).
Dialogo com a autora em sua proposta de romper com o reducionismo da didática
e de promover a conversa entre concepções aparentemente opostas entre si, sobressaltando a
potência das articulações entre as diversas concepções de didática. No entanto, acredito que
essa articulação não ocorra de maneira fluida, dependendo apenas do desejo da comunidade
epistemológica da didática, mas sim no campo de disputas e negociações políticas, que
demandam tempo e possuem a provisoriedade enquanto características marcantes, uma vez
que as diferentes concepções sempre estarão buscando alcançar um papel hegemônico na
concepção de didática, que em última instância imprime um sentido para o próprio currículo
escolar.
Buscando compreender os encaminhamentos contemporâneos do campo da
didática, trago algumas percepções de Candau (2014) desenvolvidas em sua pesquisa
“Ressignificando a didática numa perspectiva multi/intercultural” (2003-2006), onde a autora
pesquisou quais os rumos da didática nas duas últimas décadas. Por meio de sua análise ela
concluiu que “embora possamos dizer que há uma continuidade das reflexões em torno da
perspectiva crítica, naquele momento essa abordagem se faz presente de modo mais frágil”
(CANDAU, 2014, p. 119).
Classificando essa nova concepção de didática como um universo plural e
diversificado, a autora identifica novos temas que vão ganhando força, tais como o
multiculturalismo que vem aparecendo aos poucos. A autora enxerga a potência no momento
atual em que
é possível interpretar essa realidade como um momento de
desestabilização e diversificação, em que emerge uma pluralidade de
enfoques, temáticas e problemáticas. O desafio atual da didática, na
perspectiva que privilegio, pode ser sistematizado em como trabalhar
com a diferença, ou melhor, com as diferenças entre seus próprios
atores e protagonistas, favorecendo espaços de interlocução e diálogo
entre, principalmente, os grupos de pesquisa presentes neste campo
(CANDAU, 2014, p. 120).
Tendo em vista essa nova configuração mundial, representado pelo que a
autora chama de mundo pós-moderno, ela sugere o diálogo entre a didática sociocrítica, que
vem sido desenvolvida há alguns anos, e a concepção intercultural, recentemente desenhada
pela autora e seu grupo de pesquisa.
90
Baseando-se na igualdade e no reconhecimento das diferenças culturais, a
autora desenvolve uma linha de pensamento teórico na busca de alternativas para romper com
o monoculturalismo e os movimentos ocidentalizantes. Como metodologia, o grupo utiliza o
desenho de um mapa conceitual respondendo a seguinte pergunta: Em que consiste a
educação intercultural? Após reuniões e discussões sobre a temática, elencaram quatro
categorias necessárias para se falar em educação intercultural: 1. Sujeitos e atores; 2. Saberes
e conhecimentos; 3. Práticas socioeducativas; 4. Políticas públicas.
Com relação às práticas educativas a autora evidencia que elas devem partir
“do reconhecimento das diferenças presentes na escola e na sala de aula, o que exige
questionar os processos de homogeneização, que inviabilizam e ocultam as diferenças,
reforçando o caráter monocultural das culturas escolares” (CANDAU, 2014, p. 122). Assim, a
partir do reconhecimento da diferença a autora busca reinventar a escola e favorecer
dinâmicas participativas por meio da diferenciação pedagógica e utilização de múltiplas
linguagens e mídia.
Acredito que essa concepção de educação, de escola e, principalmente de
didática carrega uma potência bastante significativa...
3.2. Qual o lugar da didática específica associada a disciplina geografia?
A construção dessa reflexão parece ter sido o momento mais delicado da trajetória
dessa investigação. Primeiro, porque esta parece ser a questão central da minha pesquisa, uma
vez que o objetivo ainda se concentra na análise e reflexão sobre as metodologias de ensino
de geografia que aparecem nos documentos curriculares para esse campo de conhecimento.
Segundo, porque sempre tive muito interesse por discussões envolvendo método e
metodologia. Durante a graduação tive o prazer de ser monitora do Programa de Apoio
Didático (PAD)37
da disciplina de Metodologia de Ensino da Geografia, ministrada pela
professora Tereza Paes - uma das docentes mais queridas da minha trajetória na graduação -,
onde consegui refletir um pouco mais sobre questões teórico-metodológicas no campo
científico da geografia. E, em terceiro lugar, porque ao olhar para a minha formação, sinto
37
O Programa de Apoio Didático (PAD), instituído pela Resolução GR-49/2007, é um programa de bolsas destinado exclusivamente a alunos de graduação regularmente matriculados na Unicamp. Suas atividades visam o aprimoramento do ensino de graduação através de monitoria exercida por estudantes e deverão ter a supervisão do professor responsável pela disciplina. Informações retiradas do site da instituição. <https://www.prg.unicamp.br/index.php/o-que-e-pad>
91
uma fragilidade nas discussões sobre metodologia de ensino de geografia38
, o que me instigou
a refletir sobre isso, mas, ao mesmo tempo, me deixou/deixa bastante insegura ao me
apropriar de algumas linhas teóricas e alguns questionamentos.
Dito isso, e enfrentando as angústias e os estranhamentos, ao iniciar as primeiras
leituras sobre metodologia de ensino de geografia, buscando compreender a construção da
didática da geografia, lembrei-me de uma situação vivida há dois anos atrás, quando ainda
ministrava aulas de geografia na educação básica. Certa vez, ao apresentar o planejamento
anual para o coordenador pedagógico da escola em que trabalhei, lembro-me que ele fez o
seguinte comentário: “Giovanna, você não está aqui para formar mini geógrafos, você
precisa ensinar aos alunos a geografia escolar, não precisa trazer todos os autores de sua
formação”. Dona da verdade que sou, e professora no início de atuação, possuindo uma
formação extremamente acadêmica e bacharelesca, senti um grande incômodo com tal
questionamento, a ponto de negá-lo e continuar com aquilo que eu estava desenvolvendo. No
entanto, eis que nesse momento surgem em mim questionamentos que me acompanham e
causam-me incômodos até os dias de hoje: que geografia escolar é essa? Como transformar as
linhas teóricas que pensei durante os anos de graduação em uma geografia escolar? E mais,
como fazer com que isso se torne interessante aos alunos? Como legitimar essa geografia? O
que venho pensando nesta sessão, traz um pouco da minha própria história de formação
docente, são algumas reflexões que venho carregando comigo há algum tempo.
Ao pensar sobre a geografia escolar, percebo que há um aglomerado de disputas
vindas do campo da geografia acadêmica ao longo de seu desenvolvimento, junto disso, há
demandas sociais de leitura de espaços - vividos e não vividos -, que fazem com que
determinados conteúdos e metodologias de ensino permaneçam no currículo escolar.
Os teóricos no campo da investigação do surgimento da geografia escolar têm
associado o histórico da geografia enquanto disciplina escolar em um momento anterior a
consolidação da geografia acadêmica, de seu campo científico. Alguns autores chamam
atenção ao fato de que a disciplina geográfica supriu a necessidade de incutir o sentimento de
38
A licenciatura em geografia da Unicamp possui uma marca muito forte do bacharelado em geografia, como é possível observar nas dissertações de mestrado de Carvalho (2015): "Licenciatura, bacharelado e geografia: resistir ou reexistir, eis a questão?” e Freitas (2016): “Formar professores-pesquisadores numa escola de bacharéis: a cultura do Pibid de Geografia da Unicamp”. Nesse sentido, as disciplinas oferecidas em minha formação, que elaboraram uma reflexão sobre o ensino de geografia, foram apenas Estágio Supervisionado em Geografia I e II, ainda assim, a temática foi pouco abordada dentro do grande universo e do pequeno tempo para apreender diversas questões.
92
pertencimento ao novo território que se vinha construindo ainda as primeiras décadas do
século XX, chamado de Brasil. Rocha (1998), no entanto, contrapondo essa ideia, acredita
que para além desse pensamento, o principal objetivo consistia na criação de um instrumento
de divulgação de uma cultura universal, a qual os filhos da elite brasileira deveriam ter acesso
para dialogarem com o mundo dos brancos europeus. Acredito que esse segundo motivo,
apresentado por Rocha (1998) é bastante coerente, uma vez que grande parte dos alunos que
frequentavam a escola, em seu período inicial, pertenciam a elite brasileira. Na prática, penso
que as duas hipóteses acabaram coexistindo em alguns momentos, disputando sentidos na
recente geografia escolar.
A disciplina de geografia em seu período inicial39
apresentava grande influência
da geografia francesa, baseando-se nos conteúdos e livros franceses, que apenas em alguns
momentos eram traduzidos para o português. Essa geografia apresentava-se como descritiva e
mnemônica, buscando a descrição das paisagens e a classificação de nomenclaturas
geográficas. A metodologia de ensino concentrava-se em
transmitir conhecimentos, geralmente estruturados em livros. Nessa
direção, educar significou proporcionar a maior quantidade possível
de dados geográficos aos educandos, com as atividades didáticas do
ditado facilitadas pelos educadores, para dar a conhecer conteúdos
livrescos que os estudantes deveriam adquirir, primeiramente copiar
no caderno e logo memorizar o transmitido como evidência de
aprendizagem (RIVERA, 2012, p. 31).
Com uma concepção de escola baseada nas escolas europeias, surgidas no
contexto de revolução industrial e início da ciência do século XIX, o processo de ensino-
aprendizagem era visto como possível de se existir de forma neutra, buscando extinguir toda
subjetividade, tanto do professor, quanto do aluno.
Nesse sentido, Díaz (1996 apud Rivera, 2012, p. 32), fala sobre a relação entre o
culto à inteligência e às práticas pedagógicas de repetição e memorização, ocasionando uma
escola descontextualizada e distante da realidade dos alunos. No caso da disciplina de
geografia, essa relação com o positivismo científico é perceptível ao analisarmos a história
dessa disciplina escolar ou mesmo livros didáticos de pouco tempo atrás. Práticas de ensino
da disciplina geográfica, com frequência estimulam o ensino enciclopedista, memorístico e
distante de análises das realidades geográficas.
39
Instituída no ano de 1837 no Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro (ROCHA, 1998).
93
Entendo que a busca pela objetividade e neutralidade é ressignificada nos dias de
hoje, vivemos em tempos de Escola sem Partido40
, ao mesmo tempo vivemos em tempo de
permissão/incentivo do ensino religioso nas escolas. Essa ressignificação da neutralidade
acontece à medida que a discussão sobre neutralidade no ensino já é superada, a comunidade
produtora de conhecimento, seja na academia ou nas escolas, entendem, em sua grande
maioria, que o conhecimento não consegue ser neutro. Os dirigentes políticos, responsáveis
por desenhar e aprovar leis e decretos que orientam a educação básica, tem um
conhecimento ainda maior dessa questão, no entanto, sabem que isso é um ponto estratégico
da escola, isso é o que a torna um campo de disputa e por isso é que passam a ideia de uma
neutralidade, quando na verdade o que pretendem é demarcar uma ÚNICA visão, uma
ÚNICA ideologia e uma ÚNICA formação escolar que atenda aos seus interesses.
Ao pensar sobre isso, não acredito que “tudo está perdido”, como dizem alguns,
ou ainda, “que para baixo não há limites”, embora reconheça que realmente não há! No
entanto, penso que, na disputa pela significação de que tipo de escola queremos e que tipo de
conhecimentos iremos construir nas nossas escolas, ainda há brechas, ainda há espaços de
resistência e ainda há (e são muitos) os que disputam significações e sentidos e desestabilizam
uma forma de conceber a escola hoje universalizada. É sobre essa escola, é sobre essa
geografia escolar que busco pensar nesse texto. Como transformar a geografia de herança
francesa, descritiva em uma disciplina de interesse aos alunos?
Rivera (2012) propõe uma renovação epistemológica qualitativa, em que
aposta na subjetividade para desenvolver uma geografia escolar significativa aos alunos.
“Essa explicação considera que a realidade geográfica é um constructo humano e pode ser
interpretada ao recorrer as pessoas que a habitam e constroem, pois de uma forma ou de outra
tem opinião empírica a respeito” (RIVERA, 2012, p. 36). Isso possibilita a visualização de
qual a visão de mundo dos alunos, sua realidade e sua vida, questionando a ciência tradicional
Moreira (2000 apud Gonçalves 2012, p. 6) dialogando com Goodson, comenta
que “uma disciplina surge no currículo, muitas vezes, para responder a uma necessidade
imediata e, para que ela ganhe prestígio, vai buscando um caminho mais acadêmico, abstrato,
40
O Programa Escola sem Partido é uma proposta de lei que torna obrigatória a afixação em todas as salas de aula do ensino fundamental ao médio de um cartaz ditando os deveres do professor associadas a não identificação de opiniões, convicções políticas, ideológicas, morais, religiosas. Informações retiradas do site do programa <https://www.programaescolasempartido.org/>. Entendo que essa proposta além de restringir a liberdade de diálogo em sala de aula, torna praticamente impossível que as aulas de ciências humanas sejam construídas de acordo com o objetivo e a intencionalidade as quais foram desenvolvidas.
94
mais distanciado do cotidiano, da realidade”. E não é isso o que aconteceu com a geografia?
Inicialmente atendendo às demandas sociais, posteriormente, ao se aproximar da ciência
geográfica, muitas correntes teórico-metodológicas perpassaram a geografia acadêmica. Mas
seria esse o objetivo da geografia escolar, formar “mini-geógrafos”?
Batista (2017), em sua tese de doutorado, ao realizar um levantamento de artigos
sobre ensino/método da geografia publicados no Boletim Geográfico, classifica as prescrições
didáticas e técnicas no que chama de quatro famílias argumentativas que faziam o discurso
geográfico funcionar: 1. Método moderno de ensino; 2. Estudo do meio; 3. Psicologia escolar
e 4. Recursos didáticos.
Segundo o autor, o método de ensino tradicional da geografia, representado pela
descrição e práticas de memorização “não dava mais conta das características sócio históricas
encontradas tanto nas salas de aula quanto nos avanços científicos do pensamento geográfico”
(BATISTA, 2017, p. 84). A geografia moderna e seu método pautado na observação,
descrição e explicação, acrescenta a neutralidade e a passividade como um instrumento de
ação.
Existe algo por detrás da paisagem geográfica, não-perceptível à
primeira vista; por isso, deve ser analisado de modo semiótico. É
numa atividade investigativa como essa que se valoriza a atuação
do professor de Geografia, pois ele pode orientar seus alunos a
encontrar a chave que explica o mapa, a paisagem, o objeto
geográfico (BATISTA, 2017, p. 85).
A geografia pautada na explicação do mapa, da paisagem ou do objeto geográfico,
segundo o autor, deve estar centrada na unidade entre homem e natureza, deve-se enfatizar as
interdependências que constituem o espaço geográfico, bem como a negação do determinismo
geográfico. Para tanto, o autor propõe que a abordagem metodológica da geografia escolar se
concentre na resolução de problemas na sala de aula, concentrando em “problemas da vida
humana” (CARVALHO, 1952d). Essa metodologia ativa, onde o aluno é o sujeito de sua
aprendizagem ao resolver os problemas que tocam sua vida, é baseada no tripé metodológico
ver, pesquisar e fazer, superando a observação e descrição da geografia tradicional.
O mesmo autor, ao comparar a geografia tradicional e a geografia moderna
compartilha as ideias de Pinto (1964a, 1964b), onde a autora menciona que a primeira, a
geografia tradicional, tem como alicerce a memorização e a descrição, instrumentos presentes
nas viagens dos primeiros geógrafos, enquanto a segunda fundamenta-se pelo acoplamento
entre observação e explicação científica. Com isso, fica a seguinte questão: em que medida a
geografia escolar é unicamente tradicional ou moderna? Quantas vezes nós, professores,
95
utilizamos de métodos e metodologias que concentram diversas correntes teórico
metodológicas da geografia?
Lestegás (2012) ao diferenciar a geografia acadêmica e a geografia escolar pontua
que a última reúne saberes já existentes e que em algum momento e lugar são considerados
úteis para a formação dos cidadãos. No caso da geografia escolar, a ciência de referência – a
geografia – não se apresenta aos professores como um referencial teórico-metodológico único
e coerente internamente. Para o autor, “o progresso científico não vem determinado, neste
caso, por uma sucessão de “revoluções” ou substituições de um paradigma por outro, senão
pela tensão entre as diversas correntes de pensamento vigentes” (LESTEGÁS, 2012, p. 17).
Assim, as diferentes correntes teórico-metodológicas desenvolvidas pela geografia
acadêmica e trabalhadas durante o processo de formação do licenciando em geografia
aparecem acumuladas e efetivadas na prática docente.
De acordo com as concepções a respeito da disciplina que ensina e de
seu próprio oficio, o professor pode-se inclinar para uma ou outra
corrente, ainda que na maior parte dos casos utilize um pouco de tudo,
confusão paradigmática a que conduzem as próprias diretrizes oficiais
e, certamente, os livros didáticos (LESTEGÁS, 2012, p. 17).
Com isso, acredito que as discussões sobre a supremacia de uma corrente teórico-
metodológica da geografia, em detrimento de outra, devem ser questões superadas. Straforini
(2008, p. 68), refletindo sobre essa questão realiza a seguinte afirmação: “a Educação
comprometida com a transformação deve estar alicerçada no método dialético”. Acredito que
essa afirmação se encontra datada, marcada por um conjunto de referenciais teóricos
utilizados pelo autor no momento da escrita desse livro, que se diferenciam das reflexões
teóricas que o autor tem apresentado recentemente.
Desenvolvendo ainda mais essa questão, outra discussão que se encontra superada
diz respeito a articulação única entre concepções teóricas da Geografia e da Educação, como
salvação de todos os problemas da Educação brasileira, como é mostrado nas seguintes
palavras,
A crise da Geografia é, enfim, a materialização da não-coerência dos
pressupostos teórico-metodológicos da própria disciplina geográfica
com os da Educação, uma vez que na prática educativa elas caminham
em sentido oposto, ou seja, quando os professores primários dominam
os avanços teóricos-metodológicos da Educação, não os dominam da
Geografia e vice-versa. Essa crise continua a reproduzir em sala de
aula a noção de espaço absoluto, fragmentado e congelado
temporalmente (STRAFORINI, 2008, p. 72).
96
O próprio autor acima citado, refletido sobre seus escritos e parafraseando um
livro (MARTINS; TONINI; GOULART, 2014) faz a autocrítica a essa afirmação acima. Para
ele:
Fazer tal afirmação me é muito caro, pois não mais do que dez anos
defendia em meu livro “Ensinar Geografia: o desafio da totalidade
mundo a séries iniciais” que “a filosofia da Geografia Escolar não
poderia continuar sendo uma colcha de retalhos”, e que “a crise do
ensino de Geografia é, enfim, a materialização da não coerência dos
pressupostos teórico-metodológicos da própria disciplina com os da
Educação (STRAFORINI, 2014, p.8).
Dialogando com os pressupostos da corrente cotidianista da Educação, Straforini
(2014, p. 8) afirma que que “não se trata de pré-definir esse ou aquele referencial teórico e
pedagógico para falar, dialogar, ouvir o “o quê” e o “como” se ensina-aprende geografia, mas
deixar que essa(s) geografia(s) fale(m) e se revele(m).” Para o autor, os(as) pesquisadores(as)
da área do Ensino de Geografia nas últimas duas décadas, ao se apropriarem mais dos
fundamentos das pesquisas educacionais, passaram a falar mais “com”, “na” e “da” escola do
que “sobre” a escola, mudando a própria escala de análise: ao invés de se fixarem na análise
da macro-estrutura educacional, passaram a incorporar a micro escala, ou seja, o chão da
escola e o seu cotidiano. Para Straforini (2014, p. 9) essa mudança escalar possibilitou um
olhar mais híbrido.
Não se trata de “ecletismo” ou de “colcha de retalhos”, mas de
sombreamentos, ou como nos ensina Nestor Garcia Canclini de
“hibridismos”. Aprendemos e identificamos na escola não somente a
cultura da reprodução do sistema capitalista, de um colonialismo
didático-pedagógico; de um professor fixado apenas no “triplo d”:
desqualificado, desmotivado e desmoralizado, mas desse mesmo
professor que também se revela insurgente, subversivo, criativo; que
as mesmas mãos invisíveis que operam os desejos de um Estado
opressor, também operam a liberdade, mesmo que instantaneamente
(STRAFORINI, 2014, p. 9).
Com essas referências o que pretendo esclarecer é que acredito que a geografia
escolar pode/deve pautar-se nas diferentes correntes teórico-metodológicas da geografia
acadêmica, dialogando com diferentes concepções de Ensino, Educação e Didática. O
professor, enquanto intelectual licenciado, possui formação suficiente para executar suas
escolhas e determinar em que momento de sua aula, cada uma dessas correntes da Geografia e
da Educação apresentam-se como potentes.
Rocha (2008) ao pensar os documentos curriculares que apresentam potência para
o ensino de geografia nos dias atuais, menciona que “a leitura atenta do trecho extraído do
97
PCNs de Geografia permite evidenciar que o movimento de hibridização entre as perspectivas
teóricas do campo geográfico estabelecem articulações discursivas com outros campos de
saber” (p. 21).
Com base nessas constatações, bem como na vivência de diferentes documentos
curriculares entendo que a geografia escolar não é uma cópia da geografia acadêmica, tão
pouco apenas uma “transposição”41
do que é desenvolvido na ciência geográfica. A geografia
escolar tem um objetivo, um projeto e uma flexibilidade que vem do cotidiano e da
necessidade de cada sala de aula a fim de que se delimite os conteúdos e a forma com que
esses conteúdos serão trabalhados. No entanto, acredito que a geografia acadêmica acaba
ecoando na geografia escolar com relação ao método, o que chamamos de visão de mundo - a
forma com que olhamos para o espaço geográfico a partir de referenciais teóricos que nos
ajudam a pensar o objeto de estudo da geografia. As diferentes correntes teórico-
metodológicas, tais como geografia positivista, geografia teorética-quantitativa, geografia
crítica e geografia humanística acabam influenciando a geografia escolar e formando o que
Rocha (2008) chama de “hibridização entre as perspectivas teóricas do campo geográfico”.
O quadro abaixo é um esboço elaborado de forma livre, sem recorrer a autores
específicos, pautado em minha própria percepção das correntes teórico metodológicas da
geografia acadêmica e na forma com que elas influenciam na construção de uma geografia
escolar hibrida. Uma vez que a construção é feita a partir do meu entendimento sobre as
geografias, entende-se que há um recorte e uma seleção de correntes epistemológicas, bem
como conteúdos geográficos que me despertam a atenção. É importante salientar que, ao
desenvolver esse quadro, não pretendo legitimar ideias que afirmam a dependência entre a
geografia escolar e acadêmica, ao contrário disso, o que pretendo é demonstrar que, embora
haja uma relação teórica associada ao método da geografia em ambas as instituições
(academia e escola), os instrumentos metodológicos são apresentados de forma distinta,
adaptando-se a realidade de cada um deles.
41
Em referência ao conceito de Transposição Didática de Chevallard.
98
QUADRO 5: MARCOS EPISTEMOLÓGICOS DA
GEOGRAFIA ACADÊMICA E SUAS REFLEXÕES NA GEOGRAFIA
ESCOLAR
AS GEOGRAFIAS ACADÊMICA ESCOLAR
GEOGRAFIA TRADICIONAL Descrição e classificação
da paisagem
Classificação de aspectos
naturais ao estudar os
espaços geográficos
GEOGRAFIA TEORÉTICA
QUANTITATIVA
Quantificação com
objetivo de aproximar a
geografia da ciência que
vinha sendo
desenvolvida
Gráficos, tabelas, mapas
quantitativos, dados
estatísticos
GEOGRAFIA CRÍTICA
Explicação de
fenômenos geográficos a
partir da crítica a
sociedade capitalista
Discursos associados a
formação do cidadão
GEOGRAFIA HUMANÍSTICA
Sob influência da
fenomenologia, busca
alcançar diferentes tipos
de percepção, valores e
atitudes frente ao espaço
geográfico
Lugar e espaço vivido
enquanto categorias de
análise
Fonte: Minhas memórias e concepções construídas em um curso de graduação em geografia
Elaboração própria
Com base nessas considerações pergunto-me: Qual o papel da geografia escolar
atualmente? Quais as metodologias de ensino dessa disciplina? Existe uma didática da
geografia enquanto corrente epistemológica?
Callai, Cavalcanti e Castellar (2012), entendem que os pilares para a
interpretação, tanto da ciência geográfica como da geografia escolar, pautam-se nos conceitos
de espaço, lugar, paisagem e território. Para essas autoras, a geografia escolar deve empenhar-
se em “articular os conteúdos com a vida social cotidiana e a escola, e as práticas de ensino de
Geografia tem, assim, o papel de promover a formação geral e a construção de interpretações
de mundo” (p. 87). As autoras afirmam que as crianças e jovens devem estar conscientes das
características de tempo e espaço que estão inseridas, bem como da relação entre global e
local, a fim de interpretarem os acontecimentos em uma escala social de análise, buscando
99
compreender o mundo em que vivem. Para isso, as autoras entendem que o objetivo da
geografia escolar é o desenvolvimento de “capacidades de pensar e atuar de modo autônomo,
de resolver problemas, estabelecendo suas próprias metas, definindo suas próprias estratégias,
trabalhando as informações e construindo recursos técnicos para atender às suas
necessidades” (p. 87).
Callai (2012) entende que o ensino de geografia, ao se preocupar com a
explicação e compreensão do mundo, a contextualização espacial e social no mundo em que
se vive, bem como pela construção de um mundo mais justo, apresenta uma potência, uma
vez que pode ser compreendido enquanto educação geográfica, cujos objetivos são maiores.
Para a autora, a educação geográfica compreende a análise da sociedade e do mundo a partir
da espacialidade dos fenômenos, valorizando o lugar como categoria/conceito de análise
potente para que a educação geográfica seja significativa ao aluno.
A geografia pode ser um instrumento para compreender o mundo e a
sociedade – como esta se organiza para produzir a vida das pessoas,
como são as relações entre as pessoas e como é esta relação com a
natureza e a partir daí como se concretizam no espaço essas vivências.
O ensino de Geografia caracteriza-se, então, como a possibilidade de
desenvolver raciocínios geográficos por meio de um olhar espacial
que permita compreender a sociedade (CALLAI, 2012, p. 79).
Segundo a autora, o raciocínio geográfico é desenvolvido a partir do “olhar
espacial”, onde são trabalhados os conceitos e as categorias geográficas a fim de que se
desenvolva uma análise geográfica da sociedade. Esses conteúdos são divididos de três
maneiras:
Conteúdos procedimentais: desenvolvimento da capacidade de fazer e de saber
o que fazer. Isso acontece por meio da adoção de procedimentos adequados na realização de
determinada tarefa.
No trabalho com mapas, gráficos, tabelas, trabalhos de campo,
fazendo observações, entrevistas, trabalhando com a orientação
espacial, pode-se verificar a capacidade do aluno de se utilizar de
variadas fontes e conseguir os instrumentos para fazer seu
aprendizado” (CALLAI, 2012, p. 82).
Conteúdos atitudinais: responsáveis pelo desenvolvimento de valores, atitudes
e comportamento.
São assentados fortemente nas relações entre os grupos e pessoas da
escola e, dessa maneira, envolvem o aspecto aferivo e emocional e
100
dizem respeito a conhecimentos e crenças (valores éticos),
sentimentos e preferências (atitudes) e ações e declarações (normas ou
regras de convivência social) (CALLAI, 2012, p. 82).
Conteúdos conceituais: aqueles relacionados a definição de um conceito.
O estudante pode, além de reproduzir e repetir sua definição, usar
como instrumento para interpretar, para avançar na compreensão da
realidade em que vive. A ideia de construção de conceitos supõe que
seja cada vez maior a complexidade do/no tratamento dos conceitos
no decorrer das aprendizagens (CALLAI, 2012, p. 82).
Para Callai, esses três tipos de conteúdos devem ser problematizados com os
alunos, pois eles definem o objetivo do ensino da geografia escolar, e sedimentam o
raciocínio geográfico.
A autora segue desenvolvendo o que entende como sendo a metodologia de
ensino da geografia escolar pautada em questionar/problematizar/contextualizar. Segundo
ela, o ensino de geografia deve romper com a visão dicotômica entre homem e natureza, bem
como proporcionar mais do que uma leitura de uma realidade geográfica, mas sim uma
interpretação baseada no questionamento na problematização e na contextualização.
A seguir a autora apresenta um esquema representando a origem dos conteúdos
da geografia escolar e a forma com que ela sugere que os conteúdos sejam trabalhados.
Fonte: Callai (2002)
Elaboração própria
Nesta leitura, a construção do conhecimento é a última fase em que o conteúdo de
geografia é apresentado. Os dados, muitas vezes representados como centrais nas aulas de
geografia, não possuem grande potencialidade se não forem trabalhados, ou seja,
transformados em informações. As informações transformam os dados para explicar algo a
respeito de determinado objetivo, e estas, por sua vez, quando contextualizadas, transformam-
se em conhecimentos. Para a autora, essa metodologia aproxima a geografia escolar do
Conteúdo de Geografia
Dados Conhecimentos Informações
101
contexto dos alunos, tornando-a mais significativa e interessante a eles, uma vez que os
coloca como produtores do próprio conhecimento geográfico.
Pensando a respeito dos saberes ensinados na pela geografia escolar, Lestegás
(2012) acredita que a escola não ensina os conhecimentos científicos, mas sim os saberes
“escolarizáveis” aqueles necessários à cultura escolar, derivados de quatro elementos:
1. Uma “Vulgata”: diz respeito a um conjunto de conhecimentos ou conteúdos
compartilhados pelos professores de geografia e considerados próprios da disciplina.
Entre as vulgatas da geografia incluem-se os exercícios de localização, por
exemplo: “A Ásia é o continente em que vivem mais pessoas e o de maior densidade”.
Também são vulgatas as relações, tais como “o cultivo de arroz em regime de inundação
explica o povoamento nos países do Extremo Oriente”.
Esses dois exemplos representam o conteúdo principal da vulgata:
conhecimentos fatídicos, nomenclaturas e vocabulários específicos, desenvolvidos enquanto
conceitos da geografia escolar.
2. Exercícios-tipo: são fundamentais para a definição e delimitação de conteúdos.
Para a geografia os exercícios-tipo podem ser associados a documentos cartográficos, quando
são utilizados como instrumentos de informação no auxílio da vulgata, mencionada acima.
O autor elabora uma crítica aos exercícios-tipo da geografia que muitas vezes
funcionam como fonte de informações ou comprovação de dados, exigindo pouca reflexão e
análise dos alunos.
3. Procedimentos de motivação e incitação ao estudo: refere-se aos meios de
legitimar a disciplina escolar. Serve para pensar na postura do professor frente aos alunos,
buscando despertar o interesse destes para a geografia escolar, bem como a construção global
da disciplina e às lutas perante a comunidade escolar e a própria sociedade pela sobrevivência
da geografia escolar.
Nesse sentido, o autor trabalha com a ideia de que a geografia utiliza como
procedimento de motivação aos alunos as questões de atualidades e problemas
contemporâneos, que acabam ressaltando a importância da aprendizagem de certas questões
geográficas.
102
4. Um conjunto de práticas de avaliação: esse elemento permite que o professor
credite os aprendizados realizados, por meio de elementos quantificáveis de medida de
aprendizagem de seus alunos. Para tanto, alguns tipos de exercícios, como elaboração de
mapas, análise de mapas, construção e interpretação de gráfico, tem bastante tradição nas
avaliações de geografia.
[...] determinados exercícios adquirem a função específica de provas
de valoração. Este elemento exerce peso considerável sobre o
desenvolvimento da classe de da matéria, de maneira que professores
e alunos mostram uma preocupação especial pelo que costuma “cair”
no exame (LESTEGÁS, 2012, p. 24).
Dessa maneira o autor constrói uma reflexão a respeito do ensino de geografia e
seus principais instrumentos metodológicos utilizados na construção do conhecimento.
Contribuindo com esse diálogo, Cavalcanti (2017) acrescenta que o ensino de
geografia se baseia na construção de conteúdos geográficos entendidos como instrumentos
simbólicos potentes a análise da realidade sob determinada perspectiva. Os conteúdos
geográficos são conjunto de categorias, conceitos, teorias, dados e informações. A construção
de conteúdos geográficos é feita a partir dos conceitos analíticos da geografia, os quais a
autora chama de conceitos mais abrangentes: lugar, território, paisagem, região, natureza,
ambiente, entre outros. Esses conceitos são a base do trabalho de mediação didática do
professor, uma vez que são ferramentas simbólicas que permitirão aos alunos a compreensão
dos conteúdos escolares, das informações vinculadas a escola e a vida.
Em outras palavras, a mediação didática, intencionalmente organizada
pelo professor no ensino de Geografia, colabora para os processos de
desenvolvimento intelectual, cognitivo, emocional, intervindo na
construção de uma rede de conceitos geográficos dos alunos, ou seja,
em sua rede de significações que irá orientar seu pensamento e suas
práticas cotidianas (CAVALCANTI, 2017).
103
Fonte: Cavalcanti, 2017, p. 114
Elaboração própria
A autora trabalha sob a perspectiva de que os conceitos científicos não devem ser
apresentados de forma isolada, mas sim unidos em um sistema de conceitos maior. Para a
geografia, esse sistema de conceitos tem como base o espaço geográfico, por meio dele
diversos outros conceitos vão surgir a depender do assunto abordado em aula. Dessa maneira,
a autora sugere que o professor, ao preparar a aula, defina quais os conceitos são necessários
abordar para o entendimento de determinado assunto, isso seria o que aparece no esquema
acima como “sistematizar”.
A problematização inicial funciona como uma medida de interesse dos alunos
com relação ao tema, bem como na forma como o professor relaciona o assunto tornando-o
potente aos interesses dos alunos a partir da aproximação com o cotidiano dos mesmos.
Duarte (2016), em sua tese de doutorado elabora uma reflexão sobre a cartografia
escolar e destina um de seus capítulos para a reflexão sobre o conhecimento geográfico.
Considerando as distintas correntes teórico-metodológicas do campo epistemológico da
geografia, o autor assume que “a despeito das muitas e recorrentes questões epistemológicas
da Geografia, sempre esteve presente, de alguma maneira, nessa disciplina a ideia de que
existe um pensar que é característico desse ramo do conhecimento”: o pensamento espacial
(DUARTE, 2016, p. 77).
Duarte (2017), elabora uma caracterização do que pensam as autoras de referência
em pesquisas sobre a geografia escolar (CAVALCANTI, CASTELLAR, ALMEIDA). Nessa
análise, o autor destaca o posicionamento das autoras entendendo que a educação geográfica é
responsável pela formação de pensamentos ou raciocínios geográficos. Assim, nossas
Demarcação do foco central da abordagem, dos principais conceitos geográficos e habilidades a serem trabalhadas com os
alunos
Experimentar
Conteúdo Geográfico (teorias, temas, dados, tópicos de conteúdos)
Problematizar Sistematizar Sistematizar
Conceitos Científicos (uma compreensão mais abrangente do tema)
104
metodologias de ensino devem estar pautadas na compreensão de operações cognitivas que
envolvam o entendimento dos fenômenos socioespaciais como fonte do conteúdo geográfico.
Para o autor, os fenômenos socioespaciais são parte fundamental do conhecimento
geográfico e podem ser adquiridos a partir do Pensamento Espacial (Spatial Thinking),
conceito este desenvolvido por geógrafos anglo-saxões a partir de 1990, e sistematizado no
relatório produzido pelo Conselho Nacional de Pesquisa Estadunidense (National Research
Council – NRC), publicado no ano de 2006, que caracteriza o pensamento espacial baseado
em três elementos: conceitos espaciais, instrumentos de representação e processo de
raciocínio. Esses conceitos são definidos por diversos pesquisadores que atuam no processo
de construção desse referencial teórico.
Os “Conceitos Espaciais” são como blocos estruturadores do pensamento
espacial. São exemplos: localização, densidade, região, hierarquia, fronteira, perfil, gradiente
e redes; as “Formas de Representação” assemelham-se a ferramentas cognitivas que podem
ampliar a aprendizagem e o pensamento, estão associadas a duas formas: internas e externas.
A facilidade é não memorizar as questões trabalhadas, mas sim utilizarmos os recursos
cartográficos; e, o “Processo de Raciocínio” é o elemento do pensamento espacial responsável
por definir a cognição envolvida ao mobilizarmos conceitos e representações espaciais. É
nesse momento que aluno consegue avançar para além da informação espacial e adquire o
conhecimento espacial (DUARTE, 2017).
Acredito que o pensamento espacial se mostra potente enquanto um dos métodos
de ensino da geografia escolar, uma vez que envolve diversas áreas, como a psicologia
cognitiva, matemática e, principalmente, a geografia.
Recentemente, assisti uma aula introdutória de geografia no Colégio Técnico de
Campinas (COTUCA), onde estou atuando como monitora em um projeto do professor de
geografia do colégio em que o professor trabalhava a importância da geografia no cotidiano
dos alunos. Para isso, ao valorizar a noção espacial em nossas vidas, o professor apresentou a
seguinte frase de Aristóteles: “O que está em nenhum lugar, não existe”.
Essa frase simples e objetiva me fez pensar sobre a importância do papel da
geografia enquanto a principal, se não a única, disciplina escolar responsável pela construção
do pensar espacialmente. Assim, desenvolver métodos que nos possibilitem desenvolver
metodologias de ensino acerca de como trabalhar esse pensamento espacial nos dias de hoje é
um dos grandes desafios ao ensino de geografia que nos é colocado.
105
Duarte (2016) defende que não se deve criar uma disciplina escolar para que seja
trabalhado o pensamento espacial, mas sim que ele deve ser apresentado enquanto um eixo
horizontal do currículo. Ressaltando que o pensamento espacial aborda o espaço geométrico
ou euclidiano e não o espaço geográfico, acredito que ele seja um dos métodos apresentados
ao ensino de geografia escolar, uma vez que como discutimos acima, a espacialização dos
fenômenos é a base da geografia escolar, no entanto, outros raciocínios também são
desenvolvidos por essa disciplina e acredito que o desenvolvimento apenas do pensamento
espacial não conseguiria dar conta da complexidade da disciplina.
Assim, a pergunta que fica é: como utilizar o pensamento espacial para
desenvolver o raciocínio geográfico?
As breves revisões bibliográficas de autores de referência do ensino de geografia
trazidas a esse texto permitem enumerar algumas questões sobre a didática específica da
geografia:
1. É consenso entre os autores que existem alguns conceitos básicos que devem
permear o ensino de geografia. Eles variam na quantidade desses conceitos, bem como na
forma com que eles devem ser trabalhados, mas todos pensam que a geografia escolar
subsidia a leitura do espaço geográfico por meio da análise desses conceitos.
2. A geografia escolar é responsável por espacializar os fenômenos geográficos,
por isso a questão escalar entre local e global é de fundamental importância.
3. Os autores apresentam a importância da superação entre geografia física e
geografia humana. A relação homem/meio deve ser apresentada de forma unificada para que
os alunos possam compreender a construção do espaço geográfico.
4. O raciocínio espacial aparece com bastante potência para legitimar as disputas
em torno da disciplina geografia. Isso acontece porque desenvolver o raciocínio espacial é de
fundamental importância na formação do aluno e essa tarefa é função primariamente da
geografia escolar.
Portanto, o que se discute nesse capítulo não nos permite condenar o
desenvolvimento dos “caderninhos” como material didático. Pelo contrário, o material
apresenta o que há de mais moderno no campo da didática, combinando vários momentos
históricos e apresentando vários tipos de didáticas distintas a fim de alcançar diferentes
intencionalidades. No entanto, o que se pretende questionar é a forma com que esse
documento é utilizado, como ele apresenta-se enquanto política eficientista, instrumentalista,
para atender a demanda do Estado em encontrar uma educação de qualidade aos seus moldes.
106
CAPÍTULO 4: ESCUTANDO ÀS PROFESSORAS E IDENTIFICANDO COMO OS
DISCURSOS PRODUZIDOS PELAS POLÍTICAS CURRICULARES CHEGAM ÀS
ESCOLAS
O capítulo de fechamento dessa dissertação tem como objetivo ampliar a
discussão sobre o sentido das políticas curriculares aplicadas pelo Estado de São Paulo no
cotidiano dos professores da rede pública de ensino. A necessidade de ouvir os professores foi
se construindo e se solidificando ao longo da execução da pesquisa, uma vez que inicialmente
pretendíamos investigar apenas os documentos curriculares. No entanto, com os
direcionamentos que a pesquisa foi tomando e a readequação dos objetivos específicos
pautados no entendimento dos sentidos discursivos que estão por trás da criação do Programa
São Paulo Faz Escola, se fez necessário ouvir alguns professores da rede estadual de
educação, a fim de compreender como essas políticas curriculares chegam às escolas, são
interpretadas, ressiginifcadas ou, simplemente, ignoradas, por parte dos sujeitos escolares.
Assim, esse capítulo é construído a partir do que foi sendo apresentado pelas professoras
durante as entrevistas, alinhavando suas falas com reflexões teóricas.
A Secretaria Estadual de Educação reconhecendo que quaisquer políticas
perpassam pelos sujeitos escolares e que as condições materiais do seu sistema se encontra
completamente precarizada, o almejado discurso “qualidade educacional” encontra no seio de
seu próprio sistema, comporta-se enquanto corte antagônico para que tal discurso de
qualidade se hegemonize (JORDÃO, 2016).
As entrevistas foram realizadas com o objetivo de compreender como essa
política curricular é instituída nas escolas, quais são as formas de controle institucionais para
que ela seja executada, bem como as formas de resistência por parte dos professores.
Retomando as discussões desenvolvidas nos capítulos 2 e 3, o posicionamento dos
professores marca uma disputa de sentidos para significar o termo qualidade da educação.
Assim, ela foi criada de forma a compreender diversos aspectos, contando com a seguinte
estrutura: i. contextualização das professoras; ii. como o Currículo do Estado de São Paulo
apareceu durante a construção de sua carreira docente; iii. suas práticas e as metodologias de
ensino utilizadas; iv. suas opiniões a respeito do material didático fornecido pelo Programa a
partir das suas aproximações cotidianas; v. algumas outras questões que relevassem aspectos
107
do cotidiano escolar vivenciado por elas42
. Foram realizadas três entrevistas, cada uma com
uma professora diferente, feita em momentos distintos e individualmente.
A primeira professora entrevistada foi a Bia43
, que trabalha na rede estadual de
educação de São Paulo desde julho de 2014, completando três anos como professora efetiva
no período da entrevista (2017), tendo saído do estágio probatório a pouco tempo. A
professora trabalha com todos os anos, do Fundamental II ao Ensino Médio, mas no ano de
2017 ela não tinha turmas de 2ºEM e nem com os 8ºEF. Ela trabalha em duas escolas
estaduais que se localizam na periferia de Campinas. A professora Bia tem uma forte ligação
com a Universidade Estadual de Campinas, tendo finalizado seu mestrado recentemente e,
agora, iniciado seu doutorado no Instituto de Geociências, na área de climatologia.
Nathália foi a segunda professora a ser entrevistada. Sua entrevista foi
realizada no ambiente escolar, enquanto imprimia simulados para seus alunos. Ela trabalhava
com os dois 6º anos, e um 1º EM, mas no período em que realizei a entrevista, a professora
estava afastada do cargo de geografia pois havia assumido a vice direção da escola. Ela
trabalhou como professora na rede estadual de São Paulo nos anos 2006 e 2007, ainda sem ser
efetivada, e se efetivou no concurso realizado em 2014, atuando no município de Jundiaí.
A professora Gabi começou a trabalhar na rede estadual de São Paulo em maio
de 2014, entrando como Professora de Apoio a Aprendizagem (PAA), não possuindo turmas
sob sua responsabilidade. O principal objetivo da professora de apoio era de acompanhar os
alunos com dificuldade, mas a professora mencionou que na prática seu trabalho era cobrir a
ausência dos professores. No ano de 2015 ela passou a fazer parte do corpo de docente da
escola como professora de geografia, contratada pela categoria O44
e não como concursada,
trabalhando inicialmente com as turmas do Ensino Médio e, hoje, com as turmas do Ensino
Fundamental II. Ela trabalha no município de Paulínia, em uma escola localizada na área rural
do município, sendo uma das escolas com as melhores notas nas avaliações externas do
município.
Por se tratar de uma pesquisa qualitativa, as entrevistas não visam produzir
generalizações, no entanto, embora pontuais, revelam sentidos que circulam pelas escolas.
Inicialmente pensei em entrevistar professoras que estivessem próximas do meu cotidiano,
42
A estrutura utilizada nas entrevistas está inserida como anexo no final deste texto. 43
Os nomes das professoras foram mantidos, uma vez que as professoras optaram por isso. 44
Relação de trabalho precarizada, feita como regime de contratação. A oferta depende das aulas que sobram após a escolha dos professores concursados.
108
buscando não estabelecer qualquer linha de pensamento intencional. A professora Bia eu
conheci na disciplina de seminários, onde trocamos algumas ideias sobre escola, ensino de
geografia e como isso aparece na minha pesquisa de mestrado. A professora Nathália
trabalhou comigo em uma escola particular do município de Jundiaí, e ela foi uma das
motivações para o incômodo que se tornou o objeto de pesquisa dessa dissertação. É provável
que essa informação faça sentido quando eu trouxer a voz dessa professora durante esse
capítulo. E a professora Gabi conheci durante a graduação e cursei algumas disciplinas com
ela.
No momento em que realizei as entrevistas essas eram as únicas informações que
eu tinha a respeito do cotidiano das políticas curriculares nas escolas públicas paulistas. Já no
início do ano de 2018 assumi aulas de geografia em uma escola estadual do município de
Jundiaí como professora efetiva, o que fez com que eu mergulhasse, de certa forma, em minha
própria pesquisa, que já estava bem consolidada naquele momento, por isso, acredito que este
capítulo seja onde eu consiga trazer de maneira mais clara um pouco da minha própria visão
de professora de geografia na escola pública estadual.
4.1. As impressões sobre os “caderninhos” de quem o usa cotidianamente
A pretensão de se trabalhar com as impressões que as professoras tinham ao
vivenciar a utilização cotidiana do material didático fornecido pelo Programa não foi para
apenas concluir que materiais didáticos engessam e limitam a autonomia dos docentes, uma
vez que isso é uma opinião compartilhada entre a maioria dos docentes. O que pretendo
analisar nesta parte do texto identificar é compreender no cotidiano escolar os sentidos
discursivos que estão em disputas sobre “qualidade educacional”; pelo lado do Estado, uma
qualidade baseada na padronização das práticas docentes por meio dos Cadernos de Geografia
dos docentes e dos alunos (“caderninhos”) e, por parte dos docentes, uma qualidade baseada
na autonomia docente.
Analisando as falas das três professoras, identifico que todas elas entendem os
“caderninhos” enquanto instrumento de currículo, como forma de se organizar os conteúdos
da disciplina, e a tentativa de impor uma rotina e uma didática única nas escolas de todo o
sistema educacional do Estado de São Paulo, limitando radicalmente a autonomia docente. Os
trechos que se seguem abaixo representam essa preocupação.
Eu uso o “caderninho” como um meio que me norteia. Como uma
forma de lembrar que eu tenho que ensinar esse conteúdo este ano,
109
porque ano que vem eles vão aprender outras coisas, e eles têm que
ter esse conteúdo como base. Eu sempre penso isso porque a gente
nunca sabe qual professor vai pegar a turma. Assim, não dá pra eu
dar uma coisa que não tenha nada a ver do “caderninho” porque
pode ser que o ano que vem eles vejam a mesma coisa, e isso vai
prejudicá-los (Professora Gabi).
A ordem eu sempre sigo, porque a cobrança que aparece no SARESP
e nas provas é naquela ordem [dos caderninhos]. Como agora, na
aplicação dessa AAP45
que veio, o conteúdo foi início do ano. Então,
se o professor em algum momento mudou a ordem e não deu aquele
conteúdo, o aluno não vai conseguir fazer a prova. Esse é um
problema, tem que seguir a ordem (Professora Nathália).
As falas das duas professoras demostram que a forma que utilizam os
caderninhos é a de orientação curricular acerca dos conteúdos a serem desenvolvidos em sala
de aula. No entanto, uma forte questão a ser considerada é a forma como a avaliação externa é
concebida para servir como um instrumento de verificação da utilização dos “caderninhos”,
uma vez que os próprios conteúdos que são apresentados bimestralmente nesse material são
cobrados nas avaliações. Assim, apesar de o currículo ser utilizado como um instrumento
didático, há uma forte intencionalidade em constituir uma política de currículo conservadora e
tecnicista, em que se sutura discursivamente o problema da falta de qualidade da educação
paulista e os baixos resultados nas avaliações externas à qualidade das aulas dos professores.
Logo, os caderninhos são apresentados como uma resposta e alternativa aos problemas
educacionais, uma vez que neles se apresentam o conteúdo a ser trabalhado, os planos de aula
prontos, com todas as sequências de aprendizagem já definidas, item por item, ponto por
ponto; bem como as atividades que os alunos devem executar nos “caderninhos” dos alunos.
Para além disso, também é possível compreender os discursos envolvendo a
intencionalidade de se usar o material didático. A professora Nathália é sempre mais enfática
sobre o resultado das avaliações externas, enquanto que a professora Bia, opõem-se a
qualquer tentativa de enquadrar-se no modelo sugerido pelo Estado, apontando que “a
utilização completa dos caderninhos reduz a autonomia e precariza a aula, que é o que o
Estado quer. Essa é minha visão! Ele quer uma aula medíocre, porque ele não quer
pensadores críticos no futuro. Ele [o Estado] quer uma massa trabalhadora. Essa é a minha
visão” (Professora Bia). Assim, isso me revela que a forma com que os professores reagirão
45
Avaliação de Aprendizagem em Processo (AAP), consiste em uma avaliação externa anterior ao Saresp, ocorrem nos meses de fevereiro e agosto e o objetivo é que os alunos testem habilidades desenvolvidas no currículo e que serão cobradas no Saresp.
110
às políticas curriculares vai varia a depender de sua formação e do ambiente escolar ao qual
estão inseridos.
Outro ponto relatado pelas professoras é que o material didático apresenta
apenas uma lista de exercícios prontas e descoladas da realidade do aluno ou mesmo de uma
reflexão teórica desenvolvida anteriormente.
eu o acho ruim os “caderninhos”, mas eu acho que ele é
condizente com o que o Estado entende que é a realidade desse público, porque é um material fraco, uma vez que não aprofunda
muito os conteúdos. Por exemplo, o aluno abre o “caderninho” e
já tem lá um exercício. O que você supõe? Que você tem que problematizar essa temática antes do exercício. Mas o próprio
“caderninho” do aluno não traz nenhum texto, nada para você escrever na lousa, ler ou falar com os alunos. Até certo tempo eu
não via problema nisso, eu mesmo contextualizava o tema com as
minhas coisas, passava na lousa, e depois eu partia para os “caderninhos” porque ele vem muito pobre de informações antes
das atividades. Só que eu comecei a achar ele muito sem base,
muito sem aprofundamento, muito pobre, muito medíocre. É como se ele não forçasse o aluno a ter um pensamento crítico sobre
qualquer assunto (Professora Bia).
... as vezes começa de um jeito sem relações com conteúdos
anteriores, não tem uma introdução e começa a atividade do nada! Como se fosse uma mágica! E então, tem que voltar um pouco...
Não é nem voltar! Tem que apresentar mesmo os conteúdos: “Oh,
vocês vão estudar a distribuição populacional por conta disso e
disso, e ela funciona assim, assim, assim... Não tem uma teoria ou
um texto para os alunos acompanharem a discussão. No caderno do professor até tem. O caderno do professor até informa que você
pode começar com a pergunta tal e escrever na lousa assim,
assado e fazer não sei o que... Isso eu nem olho! Aliás, eu nem tenho o caderno do professor. Eu tenho um caderno do aluno que
eu respondi, que é o que eu acho importante eles responderem. E eu vejo por ali, sabe... então a Situação de Aprendizagem 1 é tal...
a 2 é tal... a 3 é tal... então, esse bimestre eu tenho que ensinar
isso e isso. Aí eu monto o meu currículo. E na hora que vai ter exercício sobre a situação de aprendizagem 2, eu falo pra eles, faz
o exercício tal... (Professora Gabi).
O caderno do aluno, na verdade a gente olha como uma lista de
exercícios. Ele não tem conceitos, ele não traz os conteúdos, ele só
traz os exercícios. Então o professor, no caso desse material, ele precisa preparar muito bem a aula dele pra que ele possa passar
para o aluno o conceito (Professora Nathália).
As falas das professoras revelam a necessidade de se construir com os alunos
toda a discussão teórica e as dificuldades de se fazer isso sem qualquer base anterior ou textos
introdutórios e de apoio. Como professora da rede paulista também percebo isso, pois antes de
aplicar as atividades dos “caderninhos” tenho de elaborar uma sequência de aprendizagem
111
que atenda os conteúdos que se pretendem trabalhar, para que os alunos entendam o contexto
daqueles exercícios e consigam ir construindo uma ligação lógica entre os conteúdos
trabalhados e os exercícios propostos nos “caderninhos”. O problema é que ao apresentar
exercícios específicos, nós enquanto professores, precisamos elaborar essa sequência de aulas
voltada para que os alunos consigam não só compreender o conteúdo, mas também responder
precisamente as questões propostas nos “caderninhos”.
Pensando nos exemplos trabalhados no capítulo 2, quando trouxe os exercícios
relacionados às cidades-gêmeas, bem como a forma com que o Livro do Professor conduz a
orientação didática a ser trabalhada, é perceptível que os exercícios são colocados no Caderno
do Aluno a fim de que o professor siga um padrão de aula, em que certos conceitos sejam
trabalhados para que os alunos consigam responder os exercícios propostos nos
“caderninhos”. Assim, percebe-se novamente a redução da autonomia docente e a condução
de seu trabalho de forma a atender as necessidades imaginadas pela comunidade disciplinar
que o elabora e, sobretudo, aos sentidos discursivos sobre conhecimento escolar, sobre escola
e sobre conhecimento geográfico que se intenta hegemonizar, produzindo uma política de
currículo conservadora e tecnicista.
O livro didático poderia ser um material que conduzisse a essa introdução de
conceitos ou reflexões teóricas antes da entrada nos exercícios propostos pelo “caderninho”,
porém nos deparamos com outro problema indicado pelas professoras de que
... “o caderninho nem sempre casa com o livro didático
adotado pela escola e também com o Plano Curricular do
professor. É muito estranho! Às vezes, acontece de
encontrarmos no planejamento e no livro didático uma
lista de conteúdos a ser trabalhada no primeiro bimestre
do 9º ano e no “caderninho” esses mesmos conteúdos
aparecem no 4º bimestre. Isso tudo costurado com as
avaliações externas que são aplicadas, às quais nós
docentes temos que nos atentar.” (Professora Bia).
Isso acaba por alterar toda a dinâmica e a rotina pedagógica da escola e conduz
algumas escolhas com base nessa “problemática”.
um dos grandes problemas é que não existe um livro didático que segue o caderno do aluno. Então, por mais que a gente escolha
uma coleção de livros didáticos, sempre tem problemas em
correlacioná-los com os caderninhos. Na escolha da coleção que fizemos no ano passado para ser utilizado nesse ano, a gente nem
viu muito a qualidade do livro, mas a gente viu assim “ah, nessa
coleção tem o conteúdo que tem no caderno do aluno, então, vamos indicá-lo porque pelo menos tem o conceito que está no
caderninho”. Que nem no caso do meu livro que eu escolhi para o
112
6º ano, ele quase não tem exercícios, porque a gente priorizou os conteúdos já que o exercício tem no caderno do aluno. Imagem a
gente prioriza bastante, porque como a gente não tem material
eles têm que ter a imagem (Professora Nathália).
A fala da professora Nathália me apresentou uma dimensão ainda maior do
problema enfrentado nas escolas com relação aos “caderninhos”, onde a preocupação em
atender a demanda teórica por conteúdos específicos trabalhados nos “caderninhos” é tão
grande que ela passa a ser o principal critério para se decidir qual o livro didático mais
adequado para a sua turma, mais importante até que a qualidade do livro. Essa situação é
agravada quando se considera que a maioria das escolas não recebe livros suficientes para
seus alunos, o que faz com que se tome a decisão de deixar os livros na escola, apenas para
serem utilizados durante as aulas, de maneira compartilhada entre todas as turmas de
determinada série. No entanto, como temos esse problema de descompasso de conteúdos entre
o livro didático e as atividades propostas nos “caderninhos”, os conteúdos que estão no livro
do 8º ano, as vezes precisam ser usados para trabalhar com os alunos do 9º ano, por exemplo.
Isso acaba gerando um transtorno enorme na organização e rotina cotidiana na utilização dos
materiais que, em geral, são de baixa qualidade e quantidade e não atendem a necessidade dos
alunos e professores.
Por fim, as professoras associam a forma com que são cobradas para que
utilizem os instrumentos didáticos. Quando questionadas sobre a cobrança para que certas
proposições vindas de fora da escola fossem seguidas elas responderam da seguinte maneira...
o Saresp sim, a avaliação diagnóstica muito e tudo o que vem da
Diretoria de Ensino (DE). Então, agora eles estão lá com a gestão
democrática, a gente agora é obrigada a receber os alunos, já era
obrigada receber os alunos no conselho de sala, agora os pais dos
alunos. Só que aí, por exemplo, esse conselho foi o primeiro...
ninguém foi. Foi um pouco de aluno, e nenhum pai. Então, tudo o que
vem de ordem lá da supervisão, da DE, elas ficam em cima para a
gente acatar. Fazer projeto, tem lá o projeto de leitura, que na
minha opinião tem muitas coisas legais, mas o modo como vem
instaurado... já vem pronto, entendeu? Não vem assim, vocês vão
montar... vem pronto e você tem que seguir (Professora Bia –
destaque meu).
“Ah, vai vir alguém da DE aqui, então vocês têm que usar o
“caderninho” no dia tal”. Sabe, assim, para mostrar..., mas na
verdade acho que meio que... é mais uma preocupação pra fora, de
cobrança que vem para a escola, sabe? E não da direção em si, isso
não tem..., mas, por exemplo, no bimestre passado eu não usei nada
do 8º ano, ninguém falou nada para mim... nada! (Professora Gabi).
113
(eu uso) só o caderno do aluno. O que tem que ser dado tá ali. É
porque as provas que são SARESP, AAPs são todas com base no
caderno do aluno. Essa elaboração de um provão na própria escola é
para que eles não percam esse ritmo que eles tão tendo, que a gente
está ditando para eles. Para quando eles chegarem no 9º ano eles
façam a prova. E não é só porque a escola vai ganhar mais bônus, ou
porque o professor vai ser elogiado por isso. Pelo contrário, é para
que o aluno tenha sanado os problemas dele. Todo começo de ano, no
planejamento, a gente faz uma análise dos dados do Saresp. Tem uma
plataforma na Secretaria Digital o SED, que a gente fala, que ele traz
todos os gráficos de sala por sala, defasagem e tal. Um exemplo, o
nosso 3º ano que saiu o ano passado, saiu com nível de matemática
do 9º, três anos de atraso. E aí o que que a gente tenta fazer dentro do
nosso planejamento? Exatamente isso, sempre pensando em sanar o
problema. E esses problemas são identificados com essas provas, não
tem o que fazer. Precisa que exista para que a gente saiba que um
aluno não sabe fazer as quatro operações básicas da matemática, não
consegue (Professora Nathália).
Nos trechos destacados acima, é perceptível que há uma cobrança que vem de
fora da escola, da Diretoria de Ensino, por exemplo, para que as unidades escolares sigam o
currículo do Estado, materializado nas escolas pelos “caderninhos”. A professora Bia aborda a
dimensão do controle para além da necessidade de seguir os “caderninhos”, mas sob a
perspectiva da falta de liberdade para a realização de projetos pautados na necessidade da
escola. A escola, em especial a pública, carece de projetos que envolvam os alunos e
recuperem déficits de aprendizagem, bem como renovem o sentido da escola para os alunos.
Todavia, projetos prontos, sem quaisquer participações prévias feitas por professores e alunos
podem ter pouco efeito e apresentarem-se enquanto externalidade aos alunos, o que faz com
que a ideia de projeto perca o sentido. Além disso, as professoras Bia e Gabi trazem a
dimensão da cobrança feita pela Diretoria de Ensino frente ao que é “sugerido” por eles.
Contreras (2012, p. 41) nos chama atenção para a dimensão dessas
delimitações e “sugestões” por parte de órgãos institucionais que orientam as escolas.
A determinação cada vez mais detalhada do currículo a ser adotado
nas escolas, a extensão de todo tipo de técnicas de diagnóstico e
avaliação dos alunos, a transformação dos processos de ensino em
microtécnicas dirigidas à consecução de aprendizagens concretas
perfeitamente estipuladas e definidas de antemão, as técnicas de
114
modificação de comportamento, dirigidas fundamentalmente ao
controle disciplinar dos alunos, toda tecnologia de determinação de
objetivos operativos ou finais, projetos curriculares nos quais se
estipula perfeitamente tudo o que deve fazer o professor passo a passo
ou, em sua carência, os textos e manuais didáticos que enumeram o
repertório de atividades que os professores e alunos devem fazer.
Estando todos os passos pedagógicos e os repertórios conceituais já
delimitados para professores e alunos seguirem, o que resta a se fazer? A escola como espaço
de criação, de invenção e produção de conhecimentos no contexto da sala de aula é
impossibilitado, restringindo-a a uma tecnologia limitada a tarefas e adestramentos
previamente desenhada.
Ainda mais,
ao aumentar os controles e a burocratização, ao não ser um trabalho
autogovernado, mas planejado externamente, o ensino resulta ser cada
vez mais um trabalho completamente regulado e cheio de tarefas. Isto
provoca diversos efeitos nos professores. De um lado, favorece a
rotinização do trabalho, já que impede o exercício reflexivo,
empurrado pela pressão do tempo. De outro, facilita o isolamento de
colegas, privados de tempo para encontros em que se discutem e se
trocam experiências profissionais, fomentando-se dessa forma o
individualismo (Torres, 1991, p. 199). A intensificação coloca-se
assim em relação com o processo de desqualificação intelectual, de
degradação das habilidades e competências profissionais dos docentes,
reduzindo seu trabalho à diária sobrevivência de dar conta de todas as
tarefas que deverão realizar (CONTRERAS, 2012, p. 42).
Esse processo de desqualificação intelectual é observado na rede estadual de
educação do Estado de São Paulo, que, ao impor uma aula previamente concebida e
elaborada, acaba produzindo um padrão educacional extremamente reprodutivista, descolado
da dimensão política e social.
O modelo de gestão das escolas tem se aproximado cada vez mais ao
gerencialismo empresarial,
na medida em que aumenta as tarefas burocráticas do professor pelo
uso da tecnologia, além do físico pertencente ao cotidiano escolar
(diário de classe), resulta-se num amplo ciclo de intensificação e
autonomia controlada desses docentes somada à falta de estrutura e de
equipamentos adequados nas escolas (internet, computadores) (PIOLI,
MESKO E SILVA, 2016, p. 163)
No entanto, o modelo gerencial de educação que vem sendo adotado se mostra
ineficaz inicialmente devido a impossibilidade de “gerir” uma escola aos moldes de uma
empresa, pois tanto os objetivos como os caminhos para alcança-los são muito distintos
quando comparamos uma empresa a uma escola. Posteriormente, a infraestrutura e a
115
organização da escola, refletida na forma com que o governo estadual paulista tem conduzido
a anos as políticas educacionais, conforme apresentado no capítulo 2. Assim, “essa nova
escola, de caráter gerencialista, performático e neoliberal, estaria modificando
substancialmente o ofício do professor, transformando profundamente sua formação e sua
carreira” (PIOLI, MESKO E SILVA, 2016, p. 168).
Por outro lado, a professora Nathália, por sua vez, demonstra uma postura
totalmente vinculada a aceitação da estrutura organizada pelo Programa São Paulo Faz
Escola, bem como de seus instrumentos de avaliação. Como dito anteriormente, no momento
da entrevista, a professora Nathália estava afastada de suas aulas e seguia com o cargo de
vice-diretora, o que pode ser uma das razões dessa visão que mais dialoga com personagens
da gestão do que com os docentes. Em seu discurso é perceptível a forma com que a gestão
escolar, e até mesmo os professores de sua escola, encaram as avaliações externas,
demonstrando como os posicionamentos das inúmeras comunidades escolares são diversos.
No início do capítulo mencionei que a professora Nathália havia sido a
inspiração para essa pesquisa. E a narrativa desse fato envolve uma conversa que tivemos no
ano de 2015 em uma reunião pedagógica do colégio particular que trabalhávamos juntas. Ela
comentou que na escola estadual em que trabalhava ela já havia terminado o conteúdo e que
estava tão tranquila com relação ao tempo que estava ajudando o professor de matemática
com algumas habilidades do Saresp. Essa fala me incomodou tanto que pensei nela por
semanas, elaborei o projeto e a pesquisa foi tomando sua própria forma de acordo com as
demandas de leitura e investigação durante o cotidiano da pesquisa, e o questionamento sobre
se faria sentido que a professora Nathália utilizasse a sua aula de geografia para trabalhar
habilidades da matemática, foi aos poucos perdendo sentido. Mas quando trago as falas dela
para este capítulo, consigo compreender o porquê de a professora dizer aquilo, e do porquê de
pensar daquela maneira. Entendi, durante o desenvolvimento dessa pesquisa, que muito do
que somos enquanto docentes está associado ao ambiente no qual nos formamos enquanto
professores, mas também, e talvez até de uma maneira mais significativa, do ambiente de
nosso fazer docente, de nossa formação continuada, da escola em que estamos cotidianamente
atuando enquanto professores.
Durante a entrevista com a professora Nathália esse aspecto mencionado
acima, sobre a influência da instituição escolar em que o docente se encontra inserido, foi
bastante significativa. Ela mencionou que a comunidade escolar, principalmente os docentes e
a gestão, construíram um projeto para melhorar os índices da escola no Saresp.
116
Na verdade, é assim... a gente tem muita falta de professor. E não é
porque faltam muitas vezes, mas é porque a escola é muito grande,
tem muitas salas. E por isso, criamos o Projeto de Efetivo trabalho,
então, o que acontece? Toda vez que falta um professor, a gente passa
uma atividade. Nem sempre da matéria que o professor dá... aí o
Augusto começou, que é o coordenador, começou a pegar atividades
de matemática, de língua portuguesa, assim, gerais, coisas que eles
têm realmente dificuldade. Por exemplo, cálculos básicos de
matemática, de português, a questão da interpretação de texto, e aí a
gente vai na sala, aplica para eles. E agora teve a AAP e estamos
vendo resultado, pelo que o Augusto comentou que os professores
corrigiram e sentiram, é que já teve uma melhora... (PROFESSORA
NATHÁLIA)
Quando questionada se essas medidas adotadas pelo Programa São Paulo Faz
Escola reduziam a autonomia docente a professora respondeu da seguinte maneira:
Não, como é com base no currículo, eu não vejo perder
autonomia, porque professor tem o currículo para seguir que é o Caderno do Aluno, o SARESP só vai cobrar o que está no Caderno
do Aluno. Então, quer dizer, mesmo que o professor fale assim:
“ah, mas eu queria dar tal coisa...”. O que acaba engessando? O próprio Caderno do Aluno, mas isso é como eu disse, é qualquer
material didático, que aí precisa ter essa organização pra seguir a Base Nacional (Professora Nathália).
A ideia de trazer a discussão a fala da professora Nathália não tem o intuito de
julgar a sua visão sobre educação, a escola ou metodologia de ensino. Expor os pensamentos
da professora tem como objetivo demonstrar que as escolas públicas são complexas e diversas
e que por mais que se tente homogeneizá-las ou padroniza-las, como mencionei no segundo
capítulo, por meio de políticas curriculares, não é isso que acontece na prática. As escolas
comportam-se enquanto os particularismos abordados no primeiro capítulo, disputando
sentidos a serem significados e recontextualizando as políticas curriculares.
As vozes das professoras me proporcionaram a reflexão sobre a necessidade de
existirem políticas curriculares na orientação dos conteúdos a serem trabalhados, para que o
trabalho seja contínuo em qualquer escola, tanto para o professor quanto para o aluno. No
entanto, essas políticas não podem ser construídas de forma a buscar o controle de todo o
processo de construção do conhecimento, até porque o conhecimento só é construído a partir
da interação social, algo que vai ser pontual em cada sala de aula. A política educacional do
Estado de São Paulo pautada pela retirada da autonomia docente retira do professor e do aluno
a parcela mais bela de sua relação: a criatividade e a liberdade do pensar e de construir
conhecimento a partir da relação com o outro.
117
O relato das professoras sobre a didática utilizada nos caderninhos, me faz
retomar algumas discussões desenvolvidas no capítulo 3. Ao comparar os diversos momentos
da didática, uma das correntes teórico-metodológicas apresentadas relaciona-se a didática
enquanto técnica, que, influenciada pela ciência positivista, utiliza-se de práticas repetitivas,
acríticas e mecânicas, prescritivas e normativas, apoiando-se em métodos pré-estabelecidos e
apresentando certa individualização, uma vez que aparece descolada da dimensão político e
social. Nota-se que a política curricular, apesar de pretender ser transformadora da realidade
apresentada, na realidade acaba por tornar-se uma política tecnicista, conservadora e
prescritiva.
4.2. A PERDA DO INTELECTUALISMO DOCENTE EM SALA DE AULA
A centralidade colocada nos professores traduziu-se na valorização do
seu pensar, do seu sentir, de suas crenças e seus valores como aspectos
importantes para se compreender o seu fazer, não apenas de sala de
aula, pois os professores não se limitam a executar currículos, senão
também os elaboram, os definem, os reinterpretam (CONTRERAS,
2012, p. 15).
As vozes das professoras entrevistadas me permitiram elaborar uma reflexão
sobre a forma com que os docentes vêm perdendo sua autonomia e o seu trabalho enquanto
intelectual a partir de uma série de medidas burocráticas e controladoras adotadas para
conduzir e avaliar o seu trabalho em sala de aula. Tais como aquelas que foram
exemplificadas no capítulo 2 e que demonstram a forma com que as sequências didáticas
acabam por limitar a criação e a autonomia docente, tanto durante o processo de planejamento
como nas próprias aulas. Inicio essa parte do texto com a citação de Contretas (2012) exposta
acima como o estabelecimento de algo que perdemos a muito tempo... se não temos a
autonomia do fazer docente, que dirá do pensar, sentir, das crenças e valores. E, ao mesmo,
tempo a coloco aqui como forma de luta, como busca por cadeias de semelhanças que nos
movam a lutar pelo retorno da imagem de valorização do docente.
O questionário semiestruturado preparado para a entrevista não previa uma análise
da organização da escola pública paulista, apenas continha perguntas que investigavam o
contato que os professores da rede pública tinham com o Currículo do Estado de São Paulo.
No entanto, ao mencionar os momentos de ATPC (Aula de Trabalho Pedagógico Coletivo),
como possíveis diálogos sobre o currículo, muitas das professoras revelaram que a reunião era
118
utilizada para fins burocráticos, que atendiam mais a demanda de fiscalização do que de
construção e formação continuada dos professores.
Ao ser indagada sobre a forma com que o currículo era apresentado em momento
de formação continuada para os professores, a professora Bia respondeu da seguinte maneira:
“Isso nunca é discutido. O currículo em si, o que o professor vai
trabalhar na aula, em nenhuma escola que eu trabalhei eu vi essa
discussão. O ATPC, que é uma reunião que a gente tem, é
completamente pautada em questões burocráticas, sempre voltando
para compreensão e aceitação desse sistema. Então, não tem
nenhuma abertura, em nenhuma escola que eu trabalhei, para um
diálogo sobre questões que eu julgo mais importantes e profundas em
relação ao ensino básico do Estado de São Paulo” (PROFESSORA
BIA).
Quando perguntei sobre quais seriam essas questões mais importantes, a
professora respondeu da seguinte maneira:
“Ah, seria, por exemplo, Reforma do Ensino Médio; esses conteúdos
dessas provas, tipo SARESP, avaliação diagnóstica, pra diagnosticar
o que? Isso nunca é discutido. Apenas chega lá, você tem que
aplicar... então nunca me perguntaram o que eu trabalho na sala de
aula, em nenhuma escola. São discutidos temas do dia a dia na sala
de aula, mas é sempre tudo mandado pela diretoria de ensino”
(PROFESSORA BIA).
E ainda que,
“A todo tempo a coordenação, a gestão a PCNP, a supervisão,
porque elas frequentam essas reuniões, elas estão sempre preocupas
em “espizinhar” o professor. É isso que eu sinto, entendeu? O que
você acha que é o conselho de sala?” (PROFESSORA BIA).
É importante ressaltar que esse não foi o projeto inicial para o ATPC. O
documento norteador desse projeto organizado pela Coordenação de Gestão da Educação
Básica, comenta que a antiga CENP (Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagógicas), ao
instituir 2h de trabalho coletivo na escola, orientou que o planejamento e a organização do
ATPC deveriam perpassar pelos seguintes pontos:
Considerar as demandas dos professores frente às metas e prioridades
da escola; Elaborar previamente a pauta de cada reunião, definida a
partir das contribuições dos participantes; Dividir entre os
participantes as tarefas inerentes às reuniões (registro, escolha de
textos, organização dos estudos); Planejar formas de avaliação das
reuniões pelo coletivo dos participantes; Prever formas de registro
(ata, caderno, diário de bordo, e outras) das discussões, avanços,
dificuldades detectadas, ações e intervenções propostas e decisões
tomadas; Organizar as ações de formação continuada com conteúdos
voltados às metas da escola e à melhoria do desempenho dos alunos,
com apoio da equipe de supervisão e oficina pedagógica da DE (SÃO
PAULO, 2014, nº 10, p. 7 – grifo meu).
119
A análise do texto nos permite compreender que o ATPC foi formulado como
um espaço-tempo de construção coletiva do/para o professor. Segundo essas diretrizes, a
demanda do que será trabalhado tem que vir do professor, e o objetivo é que se discuta acerca
de avanços, dificuldades e propostas a serem desenvolvidas, tendo os funcionários da
Diretoria de Ensino apenas como supervisores, e não como propositores de pauta e vigias do
que vem sendo desenvolvido no espaço coletivo dos professores.
Nesse sentido, é possível perceber as disputas pela significação desse espaço,
criado para atender a demanda de formação continuada e organização do cotidiano escolar, e
que hoje aparece como um momento de resolução de questões burocráticas, a fim de atender o
modelo hegemônico de gestão escolar adotado pelo Estado de São Paulo. E como é possível
notar na fala da professora Bia, com uma grande preocupação em controlar o docente e o
encaixá-lo na forma em que a educação pública paulista está se construindo.
A professora Gabi também chama atenção ao problema que existe com relação ao
planejamento.
“Então, esse negócio de planejamento, para ser bem sincera eu nunca
fiz. Porque como eu entrei depois, geralmente a professora que entra
primeiro, em janeiro ou fevereiro, elas já faziam, eu não tenho
planejamento nenhum. Até falaram: Ah, precisa fazer... mas aí pega
as Situações de Aprendizagem, monta, cópia e cola e pronto, só pra
jogar pra DE46
, mas nunca foi pedido isso da parte da coordenação
assim: Ah, eu preciso de um planejamento certinho, bonitinho... nunca
me pediram isso!” (PROFESSORA GABI).
O que aconteceu com a professora Gabi é bem comum de acontecer com outros
professores, a forma de inserção de professores por meio da Categoria O, como já
mencionada neste texto, é uma forma precária de vincular o professor ao quadro docente por
meio de um contrato de trabalho. Esse contrato acaba tendo o seu processo inicial durante
todo o ano letivo, assim, alguns professores conseguem aulas apenas no meio do período, o
que faz com que ele entre após a atividade de planejamento, que é imprescindível a qualquer
professor em qualquer escola.
A partir do que foi colocado pelas professoras percebo que a estrutura
organizacional da escola pública paulista contribui de forma significativa para o cenário de
precarização do trabalho docente. Junto a isso, há uma série de burocracias administrativas
46
Diretoria de Ensino
120
que visam regular e controlar o trabalho docente. Assim, entendo que “o que está em jogo na
perda de autonomia dos professores é tanto o controle técnico ao qual possam estar
submetidos como a desorientação ideológica à qual possam se ver mergulhados”
(CONTRERAS, 2012, p. 37).
Contreras (2012) trabalha com duas formas de redução da autonomia docente
que aparecem na fala das duas professoras mencionadas acima. A primeira delas é o controle
técnico, a forma com que o ATPC é utilizado para cumprir questões burocráticas, ou seja,
nada mais é do que uma pequena amostra da forma com que o Estado pretende controlar a
atuação docente e a sua prática pedagógica por meio dos materiais didáticos. Por outro lado, o
autor menciona a desorientação ideológica, e notamos exatamente essa queixa na fala da
professora Bia quando ela diz sentir falta de discussões que ela julga serem importantes, tais
como questões envolvendo políticas educacionais e curriculares. É interessante se pensar
nisso porque para além da escola, qual seria o lugar de discussões sobre políticas curriculares
e intencionalidades dessas políticas? A maioria dos professores da rede pública paulista não
frequenta um ambiente “acadêmico”, o ambiente escolar seria o mais próximo disso, visto que
é um ambiente onde estão reunidos vários intelectuais. Em algumas situações, percebe-se que
a ausência de diálogo acaba por criar um docente alienado e reprodutor do que lhe é imposto.
Esse cenário entre o que é proposto pelo sistema por meio da burocratização e
o posicionamento das professoras frente a realidade que lhes é imposta, buscando dialogar e
questionar o que é estabelecido, pode ser lido por meio das disputas entre o universal, a
política oficialmente estabelecida pelo Programa São Paulos Faz Escola e as demais
características da educação pública brasileira, e os particulares, representados pela unidade
escolar, ou mesmo os próprio docentes, que buscam aliar-se aos que pensam de forma
semelhante a eles, refletindo e questionando as políticas curriculares.
Com o objetivo de hegemonizar um currículo e um sentido de escola e de
conhecimento escolar, o Estado sutura os “caderninhos” e o currículo aos instrumentos de
verificação e controle, tais como as avaliações externas. Como mencionado acima, o Estado
de São Paulo utiliza o Sistema de Avaliação do Rendimento Escolar do Estado de São Paulo
(SARESP).
Essa foi uma das questões que incluí na entrevista, buscando entender qual a
relação dos professores com essa avaliação, como preparam os alunos e como utilizam o
resultado; o objetivo final era compreender como a prova interfere na rotina da escola e
delimita (ou não) conteúdos e metodologias de ensino a serem trabalhados em sala de aula.
121
A professora Bia classificou a prova como “medíocre”, exigindo pouca reflexão
dos alunos e disse que não existe uma análise crítica por parte do corpo docente e da
coordenação da escola, eles apenas aplicam a prova enviada sem qualquer análise ou
preparação dos alunos.
Nem elas sabem, você entende que não existe um estudo, ninguém
nunca pega a prova e fala, vamos estudar essa prova, vamos ver o
que os nossos alunos vão absorver dessa prova... não existe isso.
Existe a parte burocrática, tem SARESP, tem o índice, tem o bônus,
entendeu? (PROFESSORA BIA).
Por outro lado, a professora Gabi dimensiona o que acontece em sua unidade
escolar após a correção das Avaliações de Aprendizagem em Processo (AAP)47
, indicando a
forma com que elas acabam interferindo no trabalho docente.
quando vem o resultado da AAP a gente vê onde que os alunos estão
com mais dificuldade em português e matemática, onde eles estão
com mais problemas. E a gente escolhe entre as competências e
habilidades que eles estejam com problemas, uma para trabalhar
dentro da nossa matéria. Aí por exemplo, eu estou trabalhando
energia, aí vi lá que eles estão com problemas de gráfico e tabela em
matemática, então eu tenho que preparar uma aula com gráfico e
tabela direcionado ao meu conteúdo, para trabalhar matemática ou
português. E isso está acontecendo, inclusive agora na sexta-feira eu
vou ter que fazer isso. Eu ainda não peguei, então não sei sobre o que
é, mas eu sei que o ano passado eu usei construção de gráfico e
tabela com os alunos. E esse geralmente é o que eu mais uso, porque
para geografia é o que é mais fácil de trabalhar (PROFESSORA
GABI).
É percebível a forma com que os professores são conduzidos a mobilizarem-se
para incluir as competências e habilidades das disciplinas Língua Portuguesa e Matemática
em suas aulas de geografia, por exemplo. Acredito que o problema não está em o professor
trabalhar gráficos e tabelas em sua aula de geografia. Isso de certa forma já faz parte do
currículo e está inserido em alguns conteúdos específicos, mas sim na forma com que essas
provas legitimam certos conhecimentos em detrimento de outros, e ainda afetam a autonomia
do professor, que se vê pressionado a abandonar seu planejamento para trabalhar certas
habilidades associadas instrumentos didáticos específicos.
A professora Gabi ainda chama atenção para a forma com que essas provas são
inseridas na escola,
Sempre tem reclamação. Tipo, “ah, que bosta vai ter” ... até a
coordenação e até a direção, sabe? É como se fosse um dia morto
aqui. Porque é muito trabalho, é trabalho pra aplicar, os alunos
47
As Avaliações de Aprendizagem em Processo (AAP), são realizadas bimestralmente e tem como objetivo a preparação para o SARESP, com um mesmo formato, apenas incluem as disciplinas de Língua Portuguesa e Matemática.
122
perdem aula. Por exemplo, biologia, geografia, história são duas
aulas no Ensino Médio, então você perde duas aulas aplicando uma
prova que não vai servir de nada, e realmente não serve de nada. A
gente que corrige, a gente se divide, todo mundo, pra corrigir aquelas
provas pra não pesar para o professor de português e matemática.
Nesse sentido não funciona de nada, mas quando vem os resultados
acontece aquilo que eu falei... ai vê a sala tal está com mais
problema, está com mais dificuldade. Mas é muita coisa burocrática,
e aí não dá tempo (PROFESSORA GABI).
A alteração no cotidiano escolar também chama atenção. A fala da professora nos
faz refletir sobre a forma com que essas provas anulam o que o professor planejou para a sua
aula e insere a aplicação da avaliação externa, entendendo-a como mais urgente do que o
planejado pelo professor.
Contreras (2012) trabalha com as consequências dessa forma de organização
escolar, onde o trabalho do professor é controlado e em alguns casos planejados
externamente. O autor traz para seu trabalho a Teoria da Proletarização docente, onde entende
que “o trabalho docente sofreu uma subtração progressiva de uma série de qualidades que
conduziram os professores à perda do controle e sentido sobre o próprio trabalho, ou seja, à
perda da autonomia” (p. 37). A teoria da Proletarização docente trabalha com a ideia de que
os professores têm, enquanto categoria, sofrido mudanças nas atividades que desempenham, e
essas mudanças tem transformado o trabalho docente a condições semelhantes a classe
operária. Essas condições estão associadas a racionalização do trabalho apresentadas nas
empresas e na produção em geral: alienação do trabalhador, taylorização do trabalho e
fragmentação das tarefas que, sendo isoladas e rotineiras, perde o sentido para o trabalhador,
que não compreende o significado do processo que envolve seu trabalho, perdendo
habilidades que anteriormente possui.
E não são exatamente essas as nossas características enquanto docentes? A
fragmentação do ensinar da disciplina, buscando atender as demandas de avaliações e
currículos, não acabam por fragmentar de tal forma o trabalho docente que não conseguimos
mais enxergar a educação como um todo, apenas nossas áreas disciplinares?
4.3. Qual a escola pública você gostaria de trabalhar?
Por fim, a última pergunta que fiz para as três professoras era qual a escola
pública que elas gostariam de trabalhar.
Deixo as três respostas completas aqui.
123
PROFESSORA BIA
“Nenhuma! Se for pública não quero mais. Rsrs. Eu estou desiludida, não sei... eu não sou a
professora mais indicada para tentar... entendeu? Eu já tive muito essa coisa de... vamos fazer alguma coisa
para mudar. Eu estava assim até pouco tempo atrás. Eu montei grupo de estudo com alunos do terceiro ano,
eles começaram a faltar, eles começaram a falar que eles não conseguem entender. Mas eu entendo que a
culpa não é deles, mas enquanto profissional isso vai frustrando né? E aí a coordenação me chama para
falar que a minha aula está com um nível muito elevado, que eu preciso baixar, que eu não posso deixar
ninguém com vermelha, isso frustra também. O sistema é frustrante com um todo. Então eu estou em
busca de sair desse meio, entendeu? Eu queria muito continuar sendo professora da educação básica,
mas eu cheguei num ponto que eu nem sei mais se eu quero ser professora universitária, sabe? Eu
gosto muito de dar aula para criança e adolescente mesmo, gosto muito da devolutiva que eles dão,
mas eu estou em crise com o sistema educacional do estado de São Paulo, tanto que o que me segura
lá, além de eu não ter outro trabalho e eu precisar dele para viver, são os alunos que me dão prazer
em estar naquele espaço, entendeu? Quando eu entro na sala de aula os problemas acabam, mas
quando eu saio eu tenho que lidar com a coordenação, com a gestão, com a Diretoria de Ensino, com
a supervisão, e a minha vida vira o inferno. Porque eles não gostam de professores contestadores e
que cobram, né? Porque a gente é cobrada a todo momento, mas quando você cobra de volta, eles
começam a arrumar problemas para você. O que eu já ouvi: “há você é muito jovem, é por isso que
você é contestadora. Mas isso vai passar, espera que...” E infelizmente eu estou caindo nessa, isso está
passando...
Eu não estou falando que eu vou sair amanhã, pode ser que o ano que vem eu estarei lá, pode
ser que eu fique lá o meu doutorado inteiro, entendeu? Agora a vida inteira eu não vou conseguir falar, vou
fazer outra coisa... nem que eu não possa mais ser professora, não vou ficar. Mas eu não queria, entendeu?
Eu queria ficar! Eu queria que eles pagassem um salário que proporcionasse uma vida digna para o
professor. Porque é isso né, eu não sou casada, não tenho filho... dá pra viver. Você tem que se privar de
algumas coisas, mas você vive até que bem. Da para viajar as vezes, dá pra compar... agora, imagina gente
que está lá na mesma situação que eu e que tem filho... eu não sei como faz. Porque vamos ser sincero, a
gente está numa situação de elite, dentro da universidade pública, a gente sabe que outras coisas vão acabar
aparecendo. Tá difícil para todo mundo agora, procurar emprego... A maioria das pessoas tem um respaldo
familiar. Então, esse mês apertou, eu vou ter que pedir ajuda para o meu pai... eu sei que tem uma galera
que consegue, que tem essa ajuda. Mas tem gente que não tem. E aí como é que fica ganhando esse salário
o resto da vida e nessas condições? Então o que eu vejo lá... todas as professoras que eu converso tem
depressão, tomam antidepressivo. Tomar antidepressivo lá pra elas é um status, todo mundo fica
falando do seu antidepressivo. E isso vai me deixando extremamente preocupa e eu fico achando
assim... O fim é você ganhando pouco e tomando antidepressivo ainda por cima, e ficando feliz com o
seu bônus anual do SARESP. Essa é a vida delas, não estou querendo ser pejorativa, mas a gente fica
124
lá a gente faz análise né? Elas devem fazer de mim também. Eu devo ser a louca do doutorado, a louca
que fica perdendo tempo brigando com a coordenação. A retardada que tá achando que vai mudar alguma
coisa, mas eu ainda prefiro ficar assim do que cair. Eu prefiro sair antes e abandonar o barco do que chegar
nesse ponto de ter que tomar antidepressivo com 40 anos. Por que a coordenação me odeia? Porque a
coordenação vem, justamente com o sistema, e eu não acredito em nada que ela fala. Uma vez ela falou
para mim que ela sentia que eu desmerecia o trabalho dela. E eu fiquei pensando na minha casa, “puta, que
foda! Eu não queria fazer isso com a mulher, não queria que ela achasse que eu faço descaso com o
trabalho dela, mas eu não acredito em nada do que ela está falando, ela vem com texto de Carnal pra mim?”
Eu já li esses caras quando eu fiz licenciatura, eu sei quem eles são, eu sei o que eles pregam. E eu não
acredito, eu não acredito mais. E eu não acho que se eu for trabalhar em uma escola de elite, de gente rica,
eu não vou ter um monte de problemas tão grandes quanto este, mas eu acho que é outra estrutura, vão ser
outros problemas, e eu acho que eu estou querendo, eu estou cansada desse! É o que a gente estava
conversando, além de tudo um salário ridículo, a gente ganha o que? Mais ou menos uns 12,60 por aula.
Ainda quem é efetivo tem um monte de regalia, um monte de coisa a mais do que quem é categoria O, que
eu acho também um absurdo! E é isso, eu não sei direito quanto é que um professor consegue atingir hoje,
as professoras que trabalham comigo que tem 25 anos de casa, não ganham nem 4 mil reais. É muito
pouco! E nessas condições de trabalho. A gente que entra como iniciante com 20 aulas, lá você ia tirar uns
1400 reais, é muito diferente. Com outra estrutura, com outros problemas que você vai lidar, mas assim,
acho que é um desgaste um pouco menor... não sei... Você me chamou para a entrevista nos piores dias,
não porque eu não poderia vir, mas porque eu estou muito...”
PROFESSORA GABI
“Pode inventar? Rsrs. Eu gosto muito de trabalhar lá, tanto é que eu continuo dando aula
porque é uma coisa que eu gosto muito. Eu não me imagino fazendo outra coisa e eu não me imagino numa
escola particular. Se eu for para uma escola particular é por conta de dinheiro, sabe? É bonito, mas ao
mesmo tempo é triste... E aí eu fico pensando, isso é uma coisa que existe dentro da escola estadual,
dentro da escola pública. Já chegou época, isso quando eu comecei dar aula, de tirar espinho da mão de
aluno que ficava carpindo o dia inteiro e não conseguia escrever, a mão era puro pus, sabe umas coisas
assim? Então isso é uma coisa que me encanta. E aí eu acho que isso passa da questão da geografia,
sabe? Porque de verdade, pode até ser vagabundagem da minha parte, mas em uma aula de 50 minutos,
geralmente são meia hora, 25 minutos de geografia, e os outros 25 minutos são de qualquer outra
coisa, ensinar uma menina que tem que pentear o cabelo porque se não os outros vão “zoar” com ela
e ela vai ficar chorando, falar pro outro que não é pra ele ficar falando palavrão... pra menina que se
ela for transar para ela usar camisinha. Sabe umas coisas assim? E isso me faz aprender muito. Eu
aprendo muito com eles, eu até falo isso pra eles... até falo não, eu sempre falo isso pra eles, só que é
triste né? Num mundo ideal não precisaria acontecer isso, mas ao mesmo tempo é o que me encanta
também. Então não sei, é difícil né pensar numa escola de... mas eu acho que faltar, falta muita coisa,
125
sabe? Podia ser melhor, óbvio que não vai ser um conto de fadas, mas podia ser um pouco melhor no
sentido de ter algumas coisas que funcionasse nas salas, um globo, mais recursos, menos alunos nas
salas de aula, isso eu acho que seria uma coisa que iria ajudar, facilitar... 40 alunos e mais um cego,
como que eu dou conta? Não tem... sozinha, não dá... então dá pra melhorar, eu acho, eu acho não, eu
tenho certeza... tem que melhorar!”
PROFESSORA NAHÁLIA
“É aqui! Eu amo, é o que eu falo, eu amo trabalhar nessa escola. A gente tem muito problema,
por exemplo a gente não tem um real no caixa. Esse ano, Gi, a gente está em junho, a gente não teve um
real de verba. Não veio, o governo não repassou nem um real, nada. Então, assim, se quebrar uma descarga
a gente tem que tirar do nosso bolso, tanto que agora a gente vai fazer a festa junina no dia 24, é o que a
gente está esperando que dê certo para ter um fôlego. Então, o que que eu gosto? Primeiro, na nossa
área... o povo do nosso país está aqui dentro! A minoria é que está na escola particular. E o que mais
me assusta, estando nas duas, ainda, é ver que quem está lá na particular não enxerga quem está
aqui... não tem a mínima noção! Tem uma sala lá que é um pouco mais maleável lá no Criarte que é o
9ºC, e teve um dia que eu peguei uma atividade de um aluno do 6º ano, do Alisson, o jeito que ele escreveu.
Quando eu mostrei eu falei assim pra eles: “de que turma vocês acham que é isso?” Letra palito, desse
tamanho, mal escreve o nome tal... “Minha nossa professora, sei lá, acho que é do pré”. E eu falei: então, é
um sexto ano. “Quem de vocês se identificam quando vocês chegaram no 6º ano assim?”. Ninguém! Eu
falei “então, só que esse é um aluno onde o pai dele é semianalfabeto também, a mãe também, então todo o
aparato que vocês tiveram em casa, ou de uma babá, ou da vó, ou da própria mãe e do próprio pai, ele não
tem isso, ele depende só da escola”. Então eu amo trabalhar aqui exatamente por isso, porque eu sinto
que meu trabalho tem significado. E aí que nem eu te disse, na particular hoje eu ganho dinheiro lá...
só! Aqui eu também ganho, mas aqui eu construo uma carreira docente”.
As três falas foram mantidas na íntegra pois acredito que elas sintetizam opiniões
de muitos docentes das escolas públicas brasileiras. É bastante representativo o fato de que o
cotidiano da escola pública muitas vezes é desanimador, a luta contra o descaso do governo e
a busca por construir uma escola que tenha sentido para os alunos é exaustiva.
Por outro lado, as falas das professoras nos apresentam a dimensão de uma
escola que faz parte da realidade da educação pública brasileira, onde você sente que seu
trabalho é significativo e que seus alunos realmente precisam de você. Quem acredita que a
escola pública não dá mais certo, com certeza nunca pisou em uma escola pública. Durante o
ano de 2018 acredito que entendi o que está envolvido na minha profissão, compreendi qual a
126
diferença entre ser professora de geografia e educar, ensinar. A escola pública me apresentou
uma outra dimensão do ensinar, e sinto que se existe algum projeto de escola que deu certo, é
a escola pública.
Assim, finalizo esse capítulo militando pela escola pública, lutando para que a
autonomia, a valorização intelectual, salarial e o respeito revigorem a carreira docente e a
escola pública seja o lugar onde os docentes consigam sentir-se realizados profissionalmente,
emocionalmente e financeiramente.
127
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O que vem sendo apresentado nesse texto permite-me concluir que o problema
não está na existência das políticas curriculares, acredito que elas são necessárias para orientar
o processo de ensino-aprendizagem; também não está na utilização de um material didático
nas escolas públicas, como bem falaram as professoras. Mas sim, está na forma com que as
políticas curriculares são construídas. O problema está nas práticas discursivas que são
apresentadas aos docentes, que marcadas por articulações e disputas, apresentam-se enquanto
um projeto de escola hegemônico, marcado por políticas de culpabilização e de redução da
autonomia docente e diminuição da diversidade.
Com a criação de políticas curriculares aos moldes do Programa São Paulo Faz
Escola são produzidos sentidos de que a reforma curricular é capaz de solucionar os
problemas das escolas paulistas, a até mesmo salvar a educação brasileira através da
promoção da qualidade da educação. E se isso não acontecer, para o estado, o motivo não
estará associado aos documentos curriculares ou materiais fornecidos, mas sim ao trabalho
docente. Assim, as políticas curriculares do estado de São Paulo ao instituírem discursos
hegemônicos criam o seu corte antagônico pautado na oposição entre os professores e o seu
projeto de educação.
Esse corte antagônico é criado discursivamente pelo estado a partir de uma
relação limitadora entre o projeto de educação e o trabalho docente, mas, que ao mesmo
tempo, possui uma relação de interdependência, onde o projeto de educação só ocorre com o
trabalho docente. É por esse motivo que se pensa políticas curriculares da forma com que os
documentos analisados nesse texto as apresentam, buscando centralizar e controlar o trabalho
docente, limitando sua autonomia.
O fazer desta pesquisa me trouxe a visibilidade sobre a forma com que o
trabalho docente é limitado pelas políticas universais: “Caderninhos”, Saresp, decisões da
Diretoria de Ensino, livro didático, e muitas outras que permeiam o ambiente escolar e que
dificultam o trabalho do professor. Sob o discurso de alcançar a qualidade da educação,
diversas medidas entram nas escolas públicas e alteram o cotidiano dos alunos e docentes,
padronizando as escolas paulistas, e as transformando em um ambiente distante da realidade
dos alunos, e por isso sem sentido.
Durante o período em que escrevi o último capítulo dessa dissertação de
mestrado (o início do primeiro bimestre escolar), vivemos uma situação específica nas escolas
128
públicas paulistas que parecem um bom medidor para o que venho trabalhando neste texto. Os
“caderninhos” já estavam com seu prazo de validade vencido, foram elaborados prevendo
uma utilização entre os anos 2014 a 2017, e os utilizamos até dezembro de 2018, esperando
que no ano de 2019 eles fossem renovados. Acontece que devido a BNCC (Base Nacional
Comum Curricular), já discutida e aprovada para o Ensino Fundamental II e homologada para
o Ensino Médio, acredito que eles resolveram esperar para formular um material a partir desse
novo documento curricular.
Com isso, estamos os “caderninhos” para trabalhar com os alunos, apenas os
livros didáticos que foram devolvidos no ano passado (insuficiente para todos os alunos, que
devem continuar na escola, sendo usados apenas para consulta). Também recebemos
orientações de duas habilidades por série que deveríamos desenvolver até fevereiro. No início
ficamos preocupados, como dar conta de trabalhar habilidades junto aos conteúdos com os
alunos sem material? Com o passar do tempo fomos nos adaptando e aquilo que parecia um
desafio inalcançável tornou-se uma atividade onde movemos a criatividade e a liberdade e que
conseguimos criar estratégias a partir de formas que, se estivéssemos com materiais
apostilados, não enxergaríamos. Durante algumas aulas os alunos traziam questões que
acabaram sendo o tema da aula seguinte, e isso tornou as aulas mais interessantes e próxima
dos alunos, fazendo com que eles se colocassem mais, apresentassem suas dúvidas e
curiosidades.
Algumas especulações realizadas pelos gestores, me fazem acreditar que os
“caderninhos” após serem adaptados aos novos documentos curriculares voltarão às salas de
aula48
, o que me deixa preocupada, pensando a respeito da nova forma com que seremos
limitadas, com que teremos a nossa criatividade diminuída em detrimento de sequências
didáticas previamente elaboradas, onde pouca coisa dialoga com a realidade de nossos alunos,
com o contexto de nossas aulas, uma realidade já observada antes, apenas recontextualizada
com uma outra política curricular que nos é apresentada enquanto uma reforma na educação
brasileira.
Assim, a implementação de tais políticas curriculares acabam por constituir um
discurso de escola em que o conhecimento e a autonomia são colocados de lado em prol da
48
Ao revisar o texto, em agosto de 2019, releio essa informação e afirmo que eles já voltaram, nossos “caderninhos” foram desenvolvidos a partir de nova habilidades presentes na BNCC.
129
construção de uma escola gerencial e performática, baseada no controle e na exibição de
dados maquiados, promovidos por avaliações descontextualizadas.
Além disso também me preocupa a forma com que a própria produção do
conhecimento é entendida. Como mencionado no segundo capítulo, o conhecimento é um
processo que deve ser construído junto ao aluno, qualquer forma de sistematização que
apresente um conhecimento pronto perde o sentido, uma vez que ele se faz na relação entre o
mundo científico e o cotidiano vivido pelo aluno.
Assim como apresenta Contreras (2012, p. 49)
Isto mantém íntima relação com o fato de que o ensino é um trabalho
que se realiza com seres humanos. É impossível, por conseguinte,
fixar de uma vez por todas e por antecipação a prática do ensino. A
realidade variada e variável das situações humanas e de suas
características exige, pelo menos, uma adaptação às diferentes
circunstâncias e casualidades. Isso quer dizer que é impossível separar
por princípio a concepção da execução no ensino. Necessariamente, o
professor detém um nível de autonomia e de planejamento em seu
trabalho. É precisamente essa impossibilidade de separar radicalmente
a concepção da execução o que leva às tentativas de desenvolver
modos de racionalização do próprio processo de planejamento ou
concepção que os professores deverão realizar, de modo que fiquem
presos na lógica de controle pelo processo de tecnicidade,
abandonando a reflexão sobre seus fins e assumindo os da instituição.
Essa racionalização do processo de planejamento é o que incomoda os
professores e o que me fez elaborar a reflexão que aqui apresento. Essa dissertação apresenta
a política curricular do estado de São Paulo, o Programa São Paulo Faz Escola, e a forma com
que ele tensiona o trabalho docente, retirando-o sua perspectiva reflexiva, intelectual e social.
Mas e depois disso? Como seguir, reagir ou lutar contra o estabelecimento de tais políticas
universais esmagadoras? Finalizo este texto apontando o papel dos particularismos dos
professores frente a recontextualização de tais políticas no cotidiano escolar.
Acredito que
A antagônica relação entre o Estado e a relativa autonomia da escola.
“Essa necessidade contraditória do Estado e a relativa autonomia da
escola e do papel do professor criam espaços não definidos nem
totalmente fechados, de difícil controle técnico e burocrático, nos
quais cabem ações de resistência à imposição racionalizadora”
(CONTRERAS, 2019, p. 43).
Esses espaços fechados são representados pelas “brechas”, pelos espaços de
resistências em que os professores vão encontrando e se colocando, como é possível perceber
nas falas das professoras entrevistadas. Espaços esses que permitem que, mesmo sem a
autonomia para a atuação intelectual docente, os professores e as professoras consigam
130
recontextualizar as políticas, reinterpretando-as de acordo com suas visões e suas
necessidades, ainda que de maneira precária.
Assim, acredito que a Teoria do Discurso mostra a sua potência teórica
enquanto método uma vez que permite a visualização dessas “brechas”, a atuação de
particularismos na disputa para a constituição de um universal, ou mesmo de um hegemônico,
ainda que provisório. Ao escrever as últimas linhas deste texto, penso que o arcabouço teórico
do pós-estruturalismo me permitiu enxergar esperanças no fazer docente, me permitiu
compreender que a escola não é feita necessariamente de macro políticas curriculares, mas
sim de disputas, disputas entre particularismos e essas políticas, que disputam pela definição
da qualidade da educação, pela definição da própria escola pública.
E respondendo ao prólogo dessa dissertação “o que tem no chão da escola
que tanto atrai (no desejo de controle) como incomoda?” (MACEDO, 2015, p. 903),
acredito que o que há na escola é a liberdade do pensar, é o espaço onde a criatividade, onde
os seres humanos que ali estão não possuem ideias prontas ou visões de mundo construídas e
estabelecidas durante anos, e é justamente isso que incomoda e atrai o desejo de controle no
chão das escolas.
Para além de escolas, ressalto que a escola mencionada nesta dissertação é a
escola pública, essa entidade completamente antagônica e alvo de disputas. E que mesmo com
tanta precariedade ainda encontra espaço e significado na sociedade brasileira. Acredito que
essa pesquisa serviu para me fazer entender que se há uma escola que ainda tem potência para
educar, e não somente transmitir conhecimentos, essa escola com certeza é a escola pública,
que apesar de hoje encontrar-se carente em tantos aspectos, ainda é onde deve pulsar a
liberdade do pensar, a autonomia da construção do conhecimento.
131
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135
ANEXO 1: ROTEIRO DE ENTREVISTA
O professor
1. Gostaria que você se apresentasse enquanto docente:
→ Com quais anos você trabalha? Quantas turmas você tem? Em quais escolas?
Quanto tempo de docência você tem?
O currículo em sua carreira docente
1. Quais os documentos curriculares que você e sua escola utilizam para a
elaboração do planejamento anual de disciplina? Há algum documento que você mais se
identifica?
1.1. Qual o contato que vocês, professores da rede pública de ensino do Estado de
São Paulo, tiveram com o Currículo do Estado de São Paulo (2010)?
2. O que você acha que esse currículo trouxe de novo para o planejamento anual
das suas turmas e para as suas práticas diárias? Qual a diferença entre ele e os demais?
3. Em sua escola como vocês se apropriam de documentos curriculares?
→ Vocês têm grupos de estudos, grupos de discussões? Ou isso é feito no
momento do ATPC?
4. Ao planejar as aulas para suas turmas, existe alguma preocupação sua com
relação ao SARESP? Se sim, quais e por que?
5. Quais são as formas de cobrança internas para que seu planejamento tenha
alguma relação com o SARESP?
6. Existem resistências por parte dos professores nessa relação planejamento com
o SARESP?
Como você resiste, quais suas ações?
As suas práticas
1. Em suas aulas de geografia, você utiliza o material didático fornecido pelo
Estado, popularmente apelidado de “caderninhos”?
136
SE NÃO…
1.1. Por que os “caderninhos” não servem para você?
TENSIONAR A AUTONOMIA DOCENTE
1.2. Utiliza outros materiais didáticos para apoiar suas atividades de ensino? Que
tipo, por que?
1.3. Nada do “caderninho” lhe serve? Se sim, como você o utiliza?
SE SIM…
1.1. Por que você faz uso dos “caderninhos”? Em que medida ele te auxilia no seu
cotidiano de professora?
2. Como você avalia as situações de aprendizagem apresentadas nos
“caderninhos”?
Sobre as metodologias praticadas
1. Quais são os caminhos metodológicos na utilização dos “caderninhos”? Digo,
você segue passo a passo as instruções ou as modifica? Dê um exemplo.
2. Costuma acrescentar outras metodologias e fontes em complemento as
sequências didáticas apresentadas nos “caderninhos”? Por quê?
3. Como os professores de outras áreas costumam trabalhar? Em especial os
professores de Matemática e Língua Portuguesa, você tem conhecimento se eles usam os
“caderninhos”? Há algum diálogo entre vocês?
Opiniões sobre os “caderninhos”
1. Qual a opinião da gestão escolar sobre o uso dos “caderninhos”?
2. Você percebe que há alguma pressão com relação ao uso dos “caderninhos”,
SARESP e outros documentos curriculares?
137
3. Qual o posicionamento dos alunos com relação aos “caderninhos”? O que eles
preferem, livro didático ou os “caderninhos”?
4. Com relação à significação que o SARESP tem para o ambiente escolar que
está inserido, pontue, de acordo com a sua experiência e suas impressões, qual os significados
da avaliação externa do SARESP para cada um dos grupos sociais a seguir:
i. para a gestão escolar.
ii. para os professores.
Iii. Para os alunos.
Algumas questões investigativas
1. Qual o papel e o impacto produzido pela Avaliação da Aprendizagem em
Processo (APP) em suas aulas e para a escola? A partir de quando ela começou a ser
instituída?
2. Em que medida as APPs e as provas do SARESP estão ligadas?
3. Pela sua experiência na rede básica de ensino do Estado de São Paulo, há uma
preparação dos alunos especificamente voltada para obter resultados satisfatórios em
avaliações externas?
Se sim, de que forma isso ocorre?
4. Em que medida isso afeta o processo de ensino/aprendizagem? Em que medida
isso afeta a sua autonomia enquanto docente?
5. Como isso afeta o conhecimento dos alunos com relação à geografia?
6. Qual a importância ou o papel do conhecimento geográfico escolar para os
alunos responderem as questões das provas do SARESP e das APPs?
7. Na sua visão, quais são os resultados que o SARESP proporciona para a escola
e para as suas práticas?
8. Para finalizar, gostaria de deixar a palavra aberta para que você nos fale qual
seria a escola pública que você gostaria de trabalhar.