Post on 16-Feb-2015
GIORGIO DEL VECCHIO
,
HISTORIA DA FILOSOFIA
DO DIREITO
Tradução e Notas de João Baptista da Silva
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~
Belo Horizonte - 2010
-
Catalogação na Fonte da Biblioteca da Faculdade de Direito da UFMG e ISBN
Departamento Nacional do Livro
D367h
DeI Vecchio, Giorgio, 1878
História da filosofia do direito I Giorgio DeI
Vecchio ; tradução de João Baptista da Silva.
Belo Horizonte: Ed. Líder, 2006. p. 284.
ISBN: 85-88466-33-3
1. Direito - Filosofia - História 2. Direito
comparado 1. Silva, João Baptista da, trad. lI.
Título
CDU: 340.12(091)
COORDENAÇÃO
Dilson Machado de Lima
REVISÃO
Maria de Lourdes Costa Queiroz - Tucha
EDITORA
Editora Líder Rua Loreto, 25 - São Gabriel CEP:
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Nenhuma parte desta edição pode ser reproduzida, sejam quais forem os meios ou formas, sem a expressa autorização da Editora.
Impresso no Brasil
Printed in BraziJ
Prefácio do autor
Na falta de uma ampla e completa história da Filosofia
do direito (falta que se sente não só em nossa literatura, mas
também na estrangeira, não obstante a grande variedade de
monografias), foi-me proposto, faz tempo, publicar, em edição
separada, esta exposição resumida, que corresponde à parte
histórica das Lições, do mesmo autor, na sétima edição que
vem à luz ao mesmo tempo.
É óbvio que um livro de tão pequenas dimensões, como
este, não poderia preencher toda aquela enorme lacuna.
Todavia (segundo observação do editor e de não poucos
estudiosos), este compêndio poderá servir para integrar os
cursos de Filosofia do direito, que contêm apenas uma
exposição sistemática da matéria, e também para oferecer
esboço e subsídio aos cultores de outros ramos mais ou menos
afins do saber, que desejariam, todavia, conhecer as principais
tendências do pensamento antigo e moderno sobre os problemas
do direito e do Estado. I
A exposição histórica vem acompanhada,
freqüentemente, de observações e apreciações críticas que,
todavia, não prejudicam, segundo a visão do autor, a maior
objetividade possível e a exação nas referências das várias
doutrinas. Mas a história do pensamento filosófico, e
especialmente do pensamento filosófico-jurídico, não pode ser
mera série de dados; deve, sim, ser um
I A publicação da parte histórica das Lições em volume separado ocorre já em algumas edições estrangeiras (por exemplo, na espanhola de 1930).
--
repensamento deles. Por essa mesma razão, o propósito deste
livro será plenamente atingido somente se o leitor quiser
retirar deles significado por suas próprias reflexões e juízos.
Sumário
---- INTRODUÇÃO... ................................................................. 11
A FILOSOFIA GREGA ....................................................... 13
Os primórdios... ............................................................... .13
Os sofistas ...................................................................... ..14
Sócrates ........................................................................... .16 Platão ........................................................ " ....................... " ......................... .19
Aristóteles ....................................................................... .23
A escola estóica ............................................................... .30
A escola epicuréia ........................................................... .32
Os juristas romanos .......................................................... 34
O CRISTIANISMO E A FILOSOFIA DO DIREITO
NA IDADE MÉDIA .................................................................... .41
A Patrística ...................................................................... 4 3
A Escolástica ................................................................... .45
Os escritores gibelinos e a doutrina contratualística ....... 49
O Renascimento .............................................................. .57
A FILOSOFIA DO DIREITO NA IDADE MODERNA ..... 61
Maquiavel e Bodin .......................................................... .61
Grócio e outros escritores de seu tempo .......................... 65
Hobbes.............................................................................. 75
Espinosa ........................................................................... 79
Pufendorf ....................... ..., .............. ... .......... , ............. ...81
Locke e outros escritores ingleses .................................... 84 Leibniz, Thomasius e Wolf ................................................ 89
Vico e Montesquieu......................................................... 96
Rousseau e a Revolução Francesa ................................. 103
Kant ........ """"""""'" ......................................................... ... ........ ..1 09
Fichte e a escola do direito racional .............................. 125
O historicismo ............................................................. ..131
O historicismo filosófico, ou idealismo objetivo
(Schelling, Hegel) ......................................................... .132
O historicismo político, ou a Filosofia da Restauração .138
O historicismo jurídico, ou a escola histórica do direito 141
VISÃO DA FILOSOFIA DO DIREITO NA
IT ÁLIA, NOS TEMPOS RECENTES ............................. 149
1. Da época de Vico a 1870 ............................................... 149
2. De 1870 até aos nossos dias ........................................... 168
VISÃO DA FILOSOFIA DO DIREITO NA
FRANÇA, NA BÉLGICA, ETC., NOS TEMPOS
RECENTES (SÉCULOS XIX-XX) .................................. .197
VISÃO DA FILOSOFIA DO DIREITO NA
INGLATERRA E NOS ESTADOS UNIDOS, NOS
TEMPOS RECENTES ..................................................... .209
VISÃO DA FILOSOFIA DO DIREITO NA
ALEMANHA, NA ÁUSTRIA E NA SUíÇA, NOS
TEMPOS RECENTES .............................................................. .229
VISÃO DA FILOSOFIA DO DIREITO NA
ESPANHA, EM PORTUGAL, NA AMÉRICA LATINA,
NA ROMÊNIA, NA HUNGRIA, NA GRÉCIA, NA
HOLANDA, NA ESCANDINÁ VIA, ETC .............................. 243
VISÃO DA FILOSOFIA DO DIREITO NOS
PAÍSES ESLAVOS (POLÔNIA, RÚSSIA,
CHECOSLOV ÁQUIA, ruGOSLÁ VIA, BULGÁRIA) ........... 269
"Compreender que há outros pontos de vista é o
início da sabedoria."
Campbell
INTRODUÇÃO
É vantajoso conhecer a história de toda ciência. Mas a
importância do conhecimento histórico revela-se espécialmente nas
disciplinas filosóficas, tanto que, nestas, não se entende o presente
sem o passado; o passado revive no presente. Os problemas filo- .
sóficos hoje discutidos são, no fundo, os mesmos que se
apresentaram, ainda que apenas em forma embrionária, aos
pensadores da antiguidade.
O exame dos sistemas filosóficos oferece-nos como uma
série de. experimentos lógicos, nos quais podemos logo ver a quais
conclusões se chega partindo de certas premissas, e delas podemos
tirar partido na direção de um mais perfeito sistema, evitando-lhe os
erros já cometidos e tirando proveito dos progressos atingidos.
A história da Filosofia é ainda um meio de estudo e de pes
- quisa que nos ajuda grandemente em nosso trabalho; oferece-nos
um acumulado de observações, de raciocínios, de distinções, que
será impossível a um único indivíduo reunir, como seria impossível
a todo artífice inventar, ele próprio, ex novo, todos os instrumentos
de sua arte.
A história da Filosofia do direito, especificamente, nos
mostra, antes de tudo, que em todo tempo se meditou sobre o
problema do direito e da justiça, o qual, em verdade, não foi
artificiosamente inventado, mas corresponde a uma necessidade
natural e constante do espírito humano.
Todavia, a Filosofia do direito, em sua origem, não se
apresenta autônoma, mas mesclada à Teologia, à Moral, à Política;
sóaos poucos se operou a distinção.
11
GIORGIO DEL VECCHIO
Nos primeiros tempos a confusão é completa. Aparece-nos de
modo característico no Oriente, em cujos livros sacros são tratados
em conjunto a cosmogonia, a moral e os elementos de várias outras
ciências, teóricas e práticas. Neles domina o espírito dogmático; o
direito é concebido como um comando da divindade e como
superior ao poder humano, e, por isso, não como objeto de discussão
ou de conhecimento, mas apenas de fé. Assim, as leis positivas
consideram-se indiscutíveis, e inquestionável o poder existente,
como expressão da divindade.
Nesse estágio próprio dos povos orientais, o espírito crítico
não tinha ainda despertado. Deve-se, todavia, recordar que alguns
desses povos, especialmente os hebreus, os chineses e os indianos,
deram valiosos contributos aos estudos filosóficos, sobretudo no que
concerne à Moral.
2
-
FILOSOFIA GREGA
Os primórdios
A Grécia é a terra clássica da Filosofia, que assume nela um
desenvolvimento próprio. Em um primeiro momento, a mente grega
não se envolveu, porém, com problemas éticos e muito menos
jurídicos, mas considerou apenas a natureza física. Assim, a Escola
Jônica, a mais antiga (VI século a.c.), tentou a explicação dos
fenômenos do mundo sensível reduzindo-os a certos tipos. Essa
Escola, à qual pertenceram, dentre outros, Tales, Anaximandro,
Anaximene, Heráclito, Empédocles (o qual formulou a teoria dos
quatro elementos: água, ar, fogo e terra), não teve, porém,
importância para o nosso estudo.
Outra Escola quase contemporânea da Jônica, a Eleática,
representada por Xenofonte, Parmênides, Zenão, de Eléa, e Melisso,
de Samo, tentou o mesmo problema, de modo mais profundo do que
aquela, no ponto em que, elevando-se a um conceito metafísico,
sustenta que o ser é uno, imutável, eterno.
Para ela há uma só distinção: o que é e o que não é; em
seguida, negação, pois, do conceito de movimento e de vir-a-ser,
que seria uma ilusão dos sentidos. Não seria possível um nascer, um
morrer, um vir-a-ser.
Maior nexo com a nossa disciplina teria uma outra Escola
- a Pitagórica.
Conhecemos Pitágoras imperfeitamente, seja quanto à
sua vida, seja quanto à sua doutrina. Nascido em Samo, em
582 a.c., transferiu-se para a Itália Meridional, para Crotona,
onde fundou uma seleta sociedade de adeptos da doutrina que
professava. To
13
GIORGIO DEL VECCHIO HISTÓRJA DA FILOSOFIA DO DIREITO
Os Sofistas
Diálogos de Platão, nos quais Sócrates disputa freqüentemente com
os Sofistas). Homens de grande eloqüência e bravura dialética,
percorriam cidades, sustentando em seus discursos teses assaz
disparatadas; compraziam-se em se opor às crenças dominantes,
muitas vezes suscitando escândalo público em razão de seus
paradoxos.
É notável, sobretudo, o fato de que, então, começou-se a
discutir, a criticar o princípio da autoridade, a abalar a fé tradicional,
a despertar a atenção popular, isso em um período de discórdias
internas, em que se encontrava a Grécia. O trabalho dos sofistas
relaciona-se com essa efervescência.
Os Sofistas eram individualistas e subjetivistas. Ensinavam
que cada homem tem um modo próprio de ver e de conhecer as
coisas, do que resultava a tese de que não pode existir uma
verdadeira ciência objetiva e universalmente válida. Célebre é o dito
de Protágoras: "O homem é a medida de todas as coisas" (DáV'tÚ)v
XPll/lá'tú)v /lÉ'tpov av8pÚ)7to<;). Isto é: todo indivíduo possui
uma visão própria da realidade.
Em sentido bem diverso foi dito, por exemplo, por Kant, que
a mente humana é a medida de todas as coisas. Kant entendia a
mente humana como necessariamente idêntica em todos os
indivíduos, e, por isso, afirmar que ela seja a medida de todas as
coisas não destrói a validade universal da ciência.
As formas subjetivas, segundo Kant, apreendem, de certa
forma, a realidade, de maneira que toda experiência está por ser
feita (mas estas formas são comuns a todos os sujeitos pensantes).
Para os Sofistas, ao contrário, existem apenas as opiniões
divergentes de cada individuo.
Negando os Sofistas toda verdade objetiva, negam igualmente
que exista uma justiça absoluta; também o direito, por si, é relati vo,
é uma opinião mutável, a expressão do arbítrio e da força: 'justo é o
que favorece o mais poderoso". Assim, Trasímaco se pergunta se a
Justiça é um bem ou um mal, e responde: "A justiça é, em realidade,
um bem alheio, uma vantagem para quem manda, um dano para
quem obedece".
davia, esse aristocrático sodalício, de caráter moral e religioso,
sujeito a uma forte disciplina, durou pouco tempo porque, tendo
surgido dissidência política, teve de refugiar-se em Metaponto, onde
morreu por volta de 500 a.c.
Parece que Pitágoras não escreveu. Seu ensinamento foi
apenas oral. Suas teorias nos são conhecidas, em parte, por
fragmentos de seus discípulos e, em parte, pelas contestações de
Aristóteles. Especialmente importante é o escrito de Filolau,
seguidor de Pitágoras e contemporâneo de Sócrates, com o título
DEpt qJvcrEú)<; (Da natureza). Desse escrito chegaram-nos
notáveis fragmentos.
O pensamento fundamental da doutrina pitagórica é que a
essência de todas as coisas é o número; ou seja, os princípios dos
números são os princípios das coisas. Esse conceito matemático
abriu ensejo a considerações astronômicas, musicais e também
políticas. Na verdade, a Justiça é, para os pitagóricos, uma relação
aritmética, uma equação ou igualdade; daí a retribuição, a troca, a
correspondência entre o fato e o seu tratamento ('to
avn7tE7tov8ó<;). Neste conceito (que se aplica também, mas
não somente, à'pena) está o germe da doutrina aristotélica da
Justiça.
A Escola que por primeiro se decidiu a enfrentar os
problemas do espírito humano, o problema do conhecimento e o
problema ético foi a dos Sofistas, no VO século a.C.
Os Sofistas, cujos principais foram Protágoras, Górgias,
Hípias, Calixto, Trasímaco, Pródico, etc., nascidos na Grécia ou na
Magna Grécia (Itália Meridional, Sicília), costituíam um grupo de
pensadores e oradores que, mesmo ensinando doutrinas às vezes
contrárias, tinham muitas características comuns.
Conhecemos suas doutrinas não diretamente, mas mediante os
escritos de seus adversários (fontes principais são, para nós, os
14 15
GIORGIO DEL VECCHIO
Como se vê, os Sofistas eram moralmente céticos, e antes
negadores ou destruidores que construtores. Com tudo isso, tiveram
o grande mérito de ter desviado a atenção sobre dados e problemas
inerentes ao homem, ao pensamento humano. A própria dúvida a
respeito deles, levada à consciência pública, foi fecunda e benéfica,
tendo projetado o espírito crítico sobre muitos problemas que antes
não tinham sido postos para o pensamento.
Desta forma, enquanto os filósofos da Escola J ônica tinham
considerado apenas a natureza exterior, os Sofistas voltaram-se para
a consideração de problemas psicológicos, morais e sociais.
Foram eles que, por exemplo, puseram abertamente o
problema se a justiça tinha um fundamento natural, quer dizer, se o
que é justo por lei, ou, como diremos, por direito positivo, seja
também justo por natureza (antítese entre VÓ!lCú ÕíKalOV = justo por
lei, e <púcrtt ÕíKalOV = justo pela natureza), problema ao qual
responderam em geral negativamente, observando que, se
existisse um . justo por natureza, todas as leis seriam iguais.
Mais importante ainda que esta resposta, porém, foi a
colocação mesma do problema; em verdade, depois da solução
negati va tentada pelos Sofistas, outros filósofos puderam tentar uma
solução afirmativa para ela.
Os Sofistas foram, em suma, o fermento que deu causa à
grande Filosofia idealística grega, uma tlorescência do pensamento,
da qual talvez nenhum outro povo pôde vangloriar-se. Essa
tlorescência resume-se, principalmente, nos nomes de Sócrates, de
Platão e de Aristóteles, que brilharam soberanamente na história do
pensamento.
Sócrates
O grande adversário dos Sofistas foi Sócrates, que viveu em
Atenas, de 469 a 399 a.c. Ele foi mais o sábio da vida que o filósofo
teórico.
6
- HISTORIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
Também quanto a Sócrates estamos em condição análoga
àquela em que nos vemos perante os Sofistas, isto é, não temos
escritos autênticos dele; conhecemo-Io apenas por meio de
referências de outros, porém de seus admiradores (ao contrário do
que se deu com os Sofistas, cujas teorias nos foram transmitidas tão
só por seus adversários), a saber: dos Diálogos, de Platão, e dos
Memoráveis, de Xenofonte.
Os Diálogos platônicos são, de longe, a fonte mais
importante, mas neles o pensamento de Sócrates é muito superado
pelo do grande discípulo, com o qual se confunde. Isto
especialmente nos últimos diálogos. Os primeiros (Apologia,
Eutifrone, Crito, etc.) reportam mais fielmente as palavras de
Sócrates, as quais Platão recolheu de viva-voz.
Sócrates disputava de maneira característica, devolvendo
muitas perguntas e trazendo conclusões simples das respostas;
afirmava nada saber, bem diversamente dos Sofistas, que
presumiam saber tudo; golpeava-os com ironia, e os confundia,
interrogando
os (ironia = pergunta) sobre questões aparentemente simples,
porém, no fundo, muito difíceis, e deste modo constrangendo-os
indiretamente a dar-lhe razão.
Em um ponto Sócrates avizinhou-se dos Sofistas, a saber: no
haver dirigido o seu estudo ao homem. Sabe-se que a sua divisa era
a inscrição délfica: "Conhece-te a ti mesmo" (yv&8t crwuróv).
Ninguém mais que Sócrates insistiu na necessidade de conhecer a si
mesmo. Mas nesse estudo chegou ele a conclusões opostas às dos
Sofistas. Mostrou que cumpre distinguir o que é impressão dos
sentidos, onde domina a variedade, o arbítrio individual, a
instabilidade e a acidentalidade subjetiva, daquilo que é produto da
razão, onde encontramos conhecimentos necessariamente iguais
para todos.
Assim, é preciso remontar dos sentidos à unidade conceitual,
racional. Sócrates ensinava a inquirir o princípio da verdade. Saber e
operar significa para ele uma coisa só, como ciência e virtude, já que
esta não é senão a aplicação daquela. A virtude é a
verdade conhecida e aplicada.
17
HISTORlA DA l'lLOSOHA DO DIRElTO
GIORGIO DEL VECCHIO
Isto que se afmna do saber em geral vale também para o saber
jurídico. Sobre cada coisa devemos saber ver a universalidade.
Aqueles que vêem a variedade das coisas justas em cada tese ou
norma jurídica, mas não a justiça em si, não são filósofos
(q:nÀócroq>Ot = filósofos), mas q>lÀóÕOçOt = amantes da
glória) isto é, não amantes da sabedoria, mas da opinião da
nomeada. Sobre as contradições do mundo empírico, objeto da
opinião, está a unidade do mundo inteligível, objeto da ciência.
Filosofia é justamente o amor à ciência.
Desta maneira, Sócrates deu os primeiros acenos de um
sistema filosófico idealístico, mesmo não o construindo, como fez,
depois, Platão. Ensinou o método do filosofar, com especial atenção
para a Ética, reagindo contra o ceticismo prático dos Sofistas, por
dirigir-se para o bem; ensinou a respeitar as leis (que os Sofistas
haviam ensinado a desprezar), e não só as leis escritas, mas também
aquelas que, mesmo não escritas, valem, como dizia, igualmente,
em toda parte, e são impostas aos homens pelos deuses. Assim
Sócrates afirmou a sua fé em uma justiça superior, por cuja validade
não é necessária uma sanção positiva, nem uma formulação escrita.
A obediência às leis do Estado é, pois, em todos os casos,
para Sócrates, um dever. O bom cidadão deve obedecer também às
leis más, para não encorajar o cidadão perverso a violar as boas.
O próprio Sócrates pôs em prática esse princípio quando,
acusado de haver introduzido novos deuses e de ter corrompido a
juventude, e, tendo sido condenado à morte por esses pretensos
delitos, quis que se executasse a condenação, e enfrentou
serenamente a morte, da qual tinha podido escapar.
A acusação de querer introduzir novos deuses, já acenada por
Aristófanes nas Rãs, tinha sido possível porque Sócrates diziase
inspirado por uma di vindade (õat/-lwv = divindade), que não era outra
que não a sua consciência; e tal atitude, que parecia contrária à
religião dominante, serviu de pretexto para seus inimigos.
O modo sereno e sublime com que encarou a morte toma
ainda mais admirável a sua figura e faz dele um precursor dos outros
mártires do pensamento. Por seu ensinamento, com o qual pre
tendeu procurar os princípios racionais do agir, Sócrates
merece ser considerado um dos principais (se não
absolutamente o primeiro) entre os fundadores da Ética.
Platão
As obras do grande discípulo de Sócrates, Platão (427-347
a.c.), escritas em forma dialogal, apresentam o mestre discutindo
com seus discípulos e com Sofistas, seus adversários, de modo que
o inteiro sistema de Platão vem expresso aparentemente por
Sócrates. Este, porém, não é o seu construtor. Sócrates iniciou na
especulação filosófica, mas não produziu ele mesmo um completo
sistema. O Sócrates de Platão não é, pois, o Sócrates histórico, mas,
em grande parte, o próprio Platão.
Das doutrinas deste último não podemos tratar senão
enquanto contempla mais especialmente a nossa disciplina.
Faremos um resumo dos dois diálogos Politéia ou República
(melhor se traduziria "Estado"), e Nó/-lOt, ou "Leis", aos quais
pode-se acres
centar como terceiro, intermediário entre os dois, o intitulado
TIoÀtnKÓç; (= O homem político)
O mais importante é o primeiro, no qual Platão apresenta
completamente a sua concepção ideal do Estado. Quer ele considerar
a justiça no Estado, porque, como ele diz, aí a justiça se mostra mais
claramente, sendo escrita em caracteres grandes, enquanto em cada
homem é escrita em caracteres pequenos.
Para Platão, o Estado é o homem em grande, isto é um
organismo perfeito ou, antes, a mais perfeita unidade: um todo
formado pelos vários indivíduos, e fmnemente constituído, como um
corpo é formado de muitos órgãos, que, juntos, tomam possível a
vida de
les. Assim no indivíduo, como no Estado, deve reinar alguma
harmonia, que se obtém pela virtude. A Justiça é a virtude por
excelência, enquanto esta consiste em uma relação harmônica entre
as várias partes de um todo.
1
9 .8
GIORGIO DEL VECCHIO
A Justiça exige que cada um faça o que lhe cabe ('tá Éamoü
1tpá't'tEtV). Platão traça com cuidado o paralelo entre o Estado e o
indivíduo e o faz também nos particulares, dando à sua concepção
base psicológica. Três partes ou faculdades existem na alma do
indivíduo: a razão que domina, a coragem que atua, o senso que
obedece. Assim, no Estado distinguem-se três classes: a dos sábios,
destinada a dominar; a dos guerreiros, que devem defender o
organismo social; a dos artífices e agricultores, que devem nutri-lo.
Como o indivíduo é dominado pela razão, o Estado é pela classe que
representa justamente a sabedoria, isto é, pelos filósofos.
A causa da participação e da submissão do indivíduo ao
Estado é a falta de autarquia, isto é, a imperfeição do indivíduo, a
sua insuficiência em si mesmo. O ser perfeito que basta a si mesmo,
que tudo absorve e tudo domina, é o Estado. O fim do Estado é
universal, compreende nele, por isso, suas atribuições, tanto quanto
a vida de cada um. O Estado tem por fim a felicidade de todos
mediante a virtude de todos. Note-se que, pela Filosofia grega
clássica, felicidade e virtude não são termos antitéticos, mas
coincidentes, porque a felicidade é a atividade da alma segundo a
virtude, isto é segundo a sua verdadeira natureza.
O Estado, segundo Platão, domina ainda a atividade humana
em todas as suas manifestações; a ele compete promover o bem e
todas as suas formas. O poder do Estado é ilimitado, nada é
reservado exclusivamente ao arbítrio dos cidadãos, mas tudo está
sob a competência e ingerência do Estado. Esta concepção
absolutista é oposta àquela que foi, depois, sustentada por outros
filósofos, segundo os quais existem limites determinados para a
ação do Estado (Estado de direito: Kant).
A concepção platônica é, de resto, a dominante no mundo
helênico. Desta maneira, o Estado tem, antes de tudo, segundo os
gregos, a função de educador. E no diálogo da República
encontramos cumpridas dissertações sobre este tema.
20
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
São meios de educação, para Platão, sobretudo a Música (que
compreende a primeira instrução literária), e a Ginástica. A
Música gera uma disposição do ânimo apta ao acolhimento do bom
e do belo. Em seguida, a Matemática (compreendida a
Astronomia); segue, depois, para os mais capazes, o ensino das
outras ciências e da Filosofia.
Platão ocupa-se especialmente da preparação dos cidadãos
para a vida pública. Os indivíduos melhores deverão chegar ao
governo da coisa pública mediante gradual seleção e aplicada
educação, e só depois dos cinqüenta anos de idade, dedicando-se
exclusivamente a essa função, que é a mais alta entre aquelas do
cidadão.
Nesta concepção, o elemento individual é de todo sacrificado
ao social e ao político. Falta inteiramente a idéia de que todo
indivíduo tenha certos direitos próprios, originários. O Estado
domina de modo absoluto.
Para tomar mais legítima e estreita a estrutura política, Platão
suprime as entidades sociais intermediárias entre o indivíduo e o
Estado. Desta maneira, ele chega a sustentar a abolição da
propriedade e da faIllilia, ou seja, a comunhão dos bens e dos
haveres de
modo a formar uma só faIllilia, para que resulte inteira e perfeita a
unidade orgânica e a harmonia do Estado. Isto, porém, vale apenas
para as duas classes superiores (ou seja, aquelas que participam
mais diretamente da vida pública). Estamos ainda bem distantes das
modernas concepções comunistas.
De certo modo, a personalidade do homem não é
adequadamente reconhecida por Platão. Em vão, por exemplo, se
buscaria em Platão uma condenação da escravidão. Os escravos
não
estão incluídos nem mesmo nas três classes postas por ele para
exercitarem as funções do Estado, do que se vê quanto erram
aqueles que costumam considerar a teoria platônica ligada à do
socialismo hodierno.
Platão foi movido a construir seu Estado ideal apenas com
preocupações éticas e políticas, nunca econômicas.
2]
GIORGIO DEL VECCHIO HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
Estes, em resumo, os conceitos principais formulados
por Platão no diálogo da República.
O diálogo das Leis, composto mais tarde, quando Platão
era mais que setenário, tem caráter di verso do precedente,
porque não traça ele um ideal puro, mas, ao contrário,
considera a realidade histórica nos seus caracteres
contingentes, e mostra-nos freqüentemente um admirável
senso de experiência prática.
No diálogo da República, Platão tinha expressado a
regra de que os sábios governariam segundo a sua sabedoria.
Na verdade, se supomos que a sabedoria domina o
mundo, as leis são supérfluas (cf. sobre isto o Político,
294/299 e). Mas, se consideramos a prática e a natureza
humana em concreto, vemos a necessidade delas. O diálogo
das Leis põe exatamente a questão do que idealmente deveria e
do que acontece na vida, e trata largamente do problema da
legislação.
Os princípios fundamentais da República mostram-se,
não
obstante, os mesmos também no diálogo das Leis. Platão dá ao
Estado uma função educativa, quer as leis acompanhadas das
exortações e dissertações que lhe mostram os fins.
Nas leis penais, tem-se um escopo essencialmente
curativo. Platão considera os delinqüentes como doentes (pois
que, segundo o ensinamento socrático, nenhum homem é
voluntariamente injusto); a lei é o meio para cuidar dele; a
pena, a sua medicina.
Mas, em razão do delito, também o Estado é, em certo
modo, doente, donde, se a saúde do Estado o exige, isto é,
quando se trata de um delinqüente incorrigível, o delinqüente
deverá ser eliminado ou suprimido para o bem comum.
(Convém notar, a este propósito, a diferença entre a
concepção de Platão e a da moderna Escola de Antropologia
criminal; esta considera a delinqüência como um produto da
degeneração física, enquanto que, para Platão, o delinqüente
é, intelectualmente, um débil; e sua enfermidade é aberração,
ignorância do verdadeiro, isto é, da virtude, que é o
conhecimento do vero.)
N o diálogo das Leis, Platão demonstra um maior respeito
para com a personalidade individual (sempre, porém, apenas dos
homens livres, excluídos os escravos). A família e a propriedade nos
aparecem mantidas, e não mais sacrificadas a uma sorte de
estatismo, como na República. Mas a autoridade do Estado
permanece enorme e absorvente, por exemplo, no que concerne
àrepartição da propriedade (onde há divisão dos cidadãos em
diversas classes segundo o censo), à formação dos matrimônios e
àvida conjugal (sujeita sempre a uma rigorosa vigilância), à
atividade musical e poética (também essa regulada com precisão,
em razão de fins educativos), à religião e ao culto, etc.
Quanto à forma política, Platão critica tanto a monarquia
quanto a democracia, na qual uma parte dos cidadãos comanda e
outra serve; e propõe uma espécie de síntese, vale dizer, um governo
misto, com vista especialmente ao regime de Esparta, em que, ao
lado das duas formas, havia o Senado e os Éforos.
Temos afirmado que no diálogo das Leis existe uma notável
base histórica (há, por exemplo, uma exposição maravilhosa sobre a
gênese do direito), e aparece uma consciência da realidade empírica
muito maior que no da República. Também este, porém, onde o
Estado aparece como pura concepção ideal, não falta uma conexão
histórica, que é dada exatamente pelapólis grega, representada nos
seus traços essenciais e ao mesmo tempo idealizada.
Platão visava reagir contra o ceticismo dos Sofistas e as
tendências demagógicas do seu tempo, afmnando que só os
melhores deveriam governar, e para impedir a dissolução da coisa
pública. Deve-se reconhecer também que a sua teoria política teve,
ainda, um intento prático e uma referência às condições históricas
da sua idade.
Aristóteles
Aristóteles (384/322 a.c.), nascido em Estagira, foi discípulo
de Platão por bem vinte anos e, mais tarde, preceptor de Ale
22 23
GIORGIO DEL VECCHIO
xandre Magno. Quando este subiu ao trono, Aristóteles fundou sua
escola em Atenas, no Ginásio Liceu (dedicado a ApoIo
AÚKElOÇ).
Tratou o estagirita de quase todos os ramos do saber, e
muitas ciências pode-se dizer que começaram com ele. Todavia,
tendo grande parte de seus escritos andado perdidos, não se pode
determinar até que ponto valeu-se ele das perquirições de outrem.
O caráter do seu gênio é diverso do de Platão. Platão, por sua
natureza, mais especulativo; Aristóteles, mais inclinado à
observação dos fatos. Porém, em questões cardeais da Filosofia, ele
não se distancia muito de seu mestre, e é equivocado apresentá-Ios
como adversários e antagonistas, como às vezes se faz. É verdade
que Aristóteles refuta expressamente algumas teorias de Platão.
Temse mesmo acenado também para discórdias pessoais que se
sabe existiram entre mestre e discípulo. Mas, provavelmente, se
exagerou sobre este ponto, e se formaram lendas. Deve-se
reconhecer que também Aristóteles foi essencialmente metafísico e
idealista.
Também a respeito deste filósofo deveremos limitar-nos ao
exame das doutrinas que concemem à Filosofia do direito. As obras
mais importantes são, por isso, a Política e a Ética. Desta têm-se
três redações: Ética a Nicômaco, Ética Eudemia e a também dita
Grande moral ou magna moralia, que em muitas partes se
equivalem. Apenas a primeira (Ética a Nicômaco) é certamente
obra de Aristóteles, enquanto a Eudemia é provavelmente obra de
Eudemo,
seu aluno, e a Grande Moral é um extrato das duas precedentes. A
Política (IToÀ.t'nKá), em oito livros, não chegou a completar-se.
Outro escrito, sobre Constituições (IToÀ.t'"CElm), que
continha a descrição de 158 constituições, perdeu-se em grande
parte (recentemente encontrou-se importante fragmento da
Constituição dos Atenienses).
Como para Platão, também para Aristóteles o sumo bem é a
felicidade produzida pela virtude. O Estado é uma necessidade; não
é simples aliança (O'U~I.taxía), isto é, associação temporal feita para se
alcançar qualquer fim particular, mas é uma união orgânica
24
-- HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
perfeita, que tem por finalidade a virtude e a felicidade universal; é
uma comunhão necessária., tendente ao escopo da perfeição da
vida.
O homem é um animal político (ç<úov nOÀ.t'nKóV), isto é,
chamado pela sua própria natureza à vida política; e o Estado
logicamente existe antes dos indivíduos, tal como o organismo
existe antes de suas partes. Vale dizer: como não é possível
conceber, por exemplo, uma mão viva separada do corpo, assim não
pode o indivíduo, propriamente, pensar sem o Estado.
O Estado regula a vida dos cidadãos por intermédio das leis.
Estas dominam toda a vida, porque o indivíduo não pertence a si,
mas ao Estado. O conteúdo das leis é a justiça, e desta Aristóteles
elaborou profunda análise. O princípio da justiça é a igualdade, a
qual vem aplicada de vários modos.
Aristóteles distingue, a seguir, a justiça em várias espécies. A
primeira entre elas é a justiça distributiva ('"Cà ôíKmov Év '"Catç
ôwvoJlmç, '"Co ÔWVE~ll'nKÓV), que se aplica na repartição das
honras e dos bens, e visa a que cada um dos consociados dela receba
uma porção adequada ao seu mérito (Ka'"C' àçíav).
Se, pois - aduz Aristóteles - as pessoas não são iguais,
também não terão elas coisas iguais. Com isto, evidentemente, não
se faz mais que reafirmar o princípio da igualdade, pois que ele seria
violado em sua função específica, se se desse igual tratamento a
méritos desiguais. A justiça distributiva consiste pois em uma
relação proporcional, que Aristóteles, não sem algum artifício,
define como uma proporção geométrica (YEW~E'"CptK~ àvaÀ.oyta).
A segunda espécie de justiça é a corretiva ou igualadora, que
também se pode dizer retificadora ou sinalagmática, isto é, re
guladora das relações mútuas ('"Cà Êv '"Colç cr~vaÀ.À.áy~a<H
ÔlOp8w'nKÓV). Também aqui se aplica o princípio da igualdade,
mas em forma diversa daquela vista antes; pois aqui se trata só de
medir impessoalmente o dano ou o proveito, isto é, as coisas e as
ações no seu valor objetivo, considerando-se como iguais os termos
pessoais. Uma tal medida tinha, segundo Aristóteles, o seu próprio
tipo na proporção aritmética (dpt8~lltK~ ávaÀ.oyÍa).
25
GIORGIO DEL VECCHIO
Esta espécie de justiça tende a fazer que cada uma das
duas partes que se encontre em uma relação venha a encontrar-
se, em relação à outra, em uma condição de paridade; de modo
que nenhuma tenha dado nem recebido a mais nem a menos.
Daí a definição desta forma de justiça como o ponto
intermédio ou o meio entre o dano e a vantagem. Estes termos
vão, porém, em sentido lato, aplicando-se não só às relações
voluntárias ou contratuais, mas também àquelas que
Aristóteles chama involuntárias (âKOÚcnCX), e que nascem do
delito, mesmo que, porém, a seguir, se exija certa equiparação, vale
dizer, exata corespondência entre o delito e a pena.
A justiça corretiva (igualitária ou retificadora) vale, pois, para
toda sorte de troca e de interferência, de natureza ci vil ou penal.
A respeito, sempre segundo Aristóteles, que, todavia, não
desenvolve aqui muito claramente o seu pensamento, faz-se logo
ulterior subdistinção.
Ajustiça corretiva ou igualitária pode mostrar-se sob dois
aspectos: enquanto determina a formação das relações de troca
segundo certa medida, e se apresenta, então, como justiça
comutativa, ou enquanto tende a fazer prevalecer tal medida no
caso de controvérsias, com a intervenção do juiz, e se apresenta, aí,
como justiça judiciária.
Em matéria de delitos, a justiça corretiva exercita-se de
forma necessária, imediatamente, na forma judicial, porque, aí, se
tratata, necessariamnente, de reparar, contra a vontade de uma das
partes, um dano advindo injustamente. Ao invés, em matéria de
permutas ou de contratos, aquela justiça oferece normas, antes de
tudo, aos próprios contratantes, e a atuação corretiva do juiz pode
também não ser necessária.
Aristóteles preocupou-se com a dificuldade de aplicação das
leis abstratas aos casos concretos e indicou um corretivo para a
rigidez da justiça: a eqüidade, critério de aplicação da lei que
permite adaptá-Ia a cada caso, temperando-lhe a dureza.
26
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
Para tornar claro este conceito, ele equipara a equidade a uma
certa medida (régua lésbia*), feita de uma substância flexível, que
permitia seguir a sinuosidade dos objetos a medir.
Assim, as leis são formais, abstratas, esquemáticas. Sua justa
aplicação exige certa adaptação. Esta adaptação é constituída da
equidade, que, segundo Aristóteles, pode chegar, nos casos não
contemplados propriamente pelo legislador, até a sugerir novas
normas.
Quanto às relações entre o Estado e os indivíduos, enquanto
Platão queria afastados os graus intermediários, absorvidos nele,
Aristóteles os conserva, concebendo assim o Estado como a mais
elevada síntese da convivência, mas síntese que não elimina os
agregados menores, como a família, mesmo a tribo, ou os vilarejos (KéD~CXt).
Do primeiro agregado, a fanulia, passa-se ao segundo, a tribo,
ou vila. Em seguida, a reunião das KW~CXt dá lugar à 7tóÀtç, ou
seja, ao Estado grego (Note-se que a pólis grega é uma unidade
política mais reduzida do Estado moderno).
A consideração daqueles graus intermédios de convivência
demonstra uma melhor concepção histórica em Aristóteles do que
em Platão. Aqueles agregados são como as diversas etapas para
formar o Estado.
A abolição da fanulia e da propriedade, concebida por Platão,
encontra em seu discípulo uma oposição e uma confutação veemen
* N. T. - Régua lesbiana - Define-a Larousse como regle de plomb qui pouvait se plier pour prendre
le contour dês pierres à surface courbe ou brisée = "régua de chumbo que podia dobrar-se
para tomar o contorno das pedras de superfície curva ou fragmentada" (GRAND diccionaire
universal du XIXême siêcIe. Paris, 1865, tome treiziême, p. 856). A régua lesbinana é
tomada, aqui, em sentido intelectual, no campo das idéias, mais pelas suas propriedades que pela figura em sua materialidade. Tal como a régua, que amolga ao ser aplicada a
superfícies sinuosas, a eqüidade representa o amolgamento (adaptação) da conduta do juiz
para atender a peculiaridades do caso que examina. Mas, por que lesbiana? Parece que a
razão deve ser buscada na idéia de adaptação, presente na eqüidade e, também, na coisa,
lesbianismo. Estarei certo ou obrando em fantasia?
27
GIORGIO DEL VECCHIO HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
teso Desse contraste revela-se o temperamento diverso dos dois
grandes filósofos: ao idealismo absoluto, puramente especulativo de
um, opõe-se o espírito observador do outro, que busca nos próprios
fatos sua relativa razão, e os graus de seu sucessivo
desenvolvimento.
A farrulia tem como elementos o homem, a mulher, os filhos
e os servos, uma sociedade estabelecida perpetuamene pela
natureza. Da união de várias farru1ias surge a vila, ou a comuna
(KWfll1); da reunião de várias comunas, o Estado, que, ele só,
possui a plena autonomia administrativa. Este é, portanto, o
fim das outras comunidades dado pela natureza. Para não
precisar da sociedade deve
rá ser ou mais, ou menos que um homem, um animal, ou um
deus.
Aristóteles observa o fenômeno da escravidão, e também
buscajustificá-Io demonstrando como os homens que são
incapazes de se governarem deviam ser dominados. Alguns
homens afirma ele - são nascidos para a liberdade; outros, para a
escravidão. Tenta ainda provar com razões de índole prática a
utilidade da escravidão.
O Estado, na concepção aristotélica, tem necessidade de
uma classe de homens dedicada às ocupações materiais, que
sirva a outra classe, de condição privilegiada, permitindo a ela
atender a formas superiores de atividade, especialmente à vida
pública. Cumpre salientar que, então, a escravidão era
geralmente considerada como necessidade para o Estado
(Note-se que também o Estado romano tinha uma de suas
bases nessa instituição. Pense-se, por exemplo, nas grandes
obras públicas construídas pelos escravos. De mais a mais, a
possibilidade de os cidadãos participarem livremente da vida
pública, e de se dedicarem às letras e às ciências, dependia,
em parte, da escravidão. Esta era um efeito, considerado
legítimo, da conquista militar. Muitos dos escravos mais
cultos, especialmente gregos, desempenhavam funções
nobres, ajudando também aos seus donos naquilo que dizia
respeito aos seus conhecimentos. Sabe-se que muitos escravos
em Roma eram amanuenses e professores muito apreciados, e,
ainda, adidos às numerosas bi
bliotecas, especialmente ao tempo do Império. Talvez
possamos, então, compreender, até certo ponto, como
Aristóteles considerava necessária a escravidão a qual- dizia -
se poderia abolir "se a lançadeira corresse por si sobre o
tear"*
Tais palavras demonstram como existia nele uma
profunda compreensão da função econômica da escravidão no
seu tempo. Na verdade, para a abolição da escravatura, nos
tempos que se seguiram, contribuiu também o progresso da
indústria, a invenção da máquina, etc.
Todavia, podendo-se admitir, em certas fases históricas,
a relativa razão da escravatura - e, neste ponto, são apreciáveis
as razões de Aristóteles -, não é admissível a sua tese, quando
pre
tende dar para ela uma justificativa absoluta, uma vez que,
por si mesma, a escravidão choca-se contra o direito à
autonomia, que todo homem possui naturalmente; e não se
pode sustentar que exista uma categoria de homens destinada
pela natureza a servir.
Enquanto Platão havia engendrado um ideal de Estado,
Aristóteles, ao contrário, contempla, antes de tudo, a realidade
dos Estados existentes, desenvolvendo uma série de análises.
De sua coleção de Constituições políticas infelizmente a
maior parte se perdeu, e apenas, como dissemos, foi
encontrada a parte referente à Constituição dos Atenienses,
traduzida em italilano por Ferrier, se bem que a Política
contenha também considerações de
caráter geral. Nela Aristóteles destaca o nexo das instituições
políticas com as condições históricas e naturais; não, sem
dúvida, o melhor absoluto, mas o relativo, e examina quais os
governos mais adequados em relação aos vários elementos de
fato. Acena ele, * N. T. - Aristóteles era o filósofo, mas não era profeta. O que lhe parecia impossível, e era,
mesmo, no seu tempo (a lançadeira correr sozinha sobre o tear), o gênio inventivo de
Ark Wrigst (Sir Richard - 1732/1792) fez realidade em 1769 quando, retomando experiências de James Hargreaves, patenteou o invento de uma máquina de tecer
que substituiu o braço escravo, movida, inicialmente, pela força eqüestre, depois pela força
hidráulica, abrindo a Revolução Industrial do século XVIII.
28 29
GIORGIO DEL VECCHIO HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
por primeiro, para uma distinção entre os Poderes do Estado
(Executivo, Legislativo e Judiciário). A Constituição política é o
ordenamento desses Poderes. Segundo o poder supremo diga
respeito a um, a alguns, a todos, Aristóteles distingue três tipos de
constituições: monárquica, aristocrática, policial, que considera
igualmente bons, desde que quem tenha o poder o exercite para o
bem
de todos (KOWOV crtl.upÉpov). Mas, se o poder é exercitado por
quem governa para utilidade própria (t8wv crtl.UpÉpov), aquelas
formans normais de governo degeneram, dando lugar, respectiva
mente, à tirania, à oligarquia, à democracia (que melhor se diria
hoje demagogia, nesse sentido).
A escola estóica
A escola estóica liga-se à escola cínica, mas é uma
sublimação da idéia fundamental dos cínicos. Teve ela por primeiro
fundador Zenão de Cipro, que começou a ensinar em Atenas, em
308, a.c., e tomou o nome de stoá, ou pórtico de Atenas que era o
lugar onde se ensinava. Além de Zenão, entre os antigos estóicos,
são dignos de nota Cleante e Crisipo, que sucederam no ensino a
Zenão.
Entre os estóicos de uma era posterior, devem-se recordar,
especialmente, Panésio, Posei dão, que foi mestre de Cícero em
Rodes, em seguida, Sêneca, Epiteto (autor do famoso Enqueiridión,
ou Manual, belamente traduzido por Lopardi, e Marco Aurélio).
Os estóicos conceberam um ideal do saber humano, que
possui aquele que venceu todas as paixões e vê-se liberado das
influências externas. Somente desta maneira se obtém o acordo
consigo mesmo, isto é, a verdadeira liberdade.
Este ideal, que para os estóicos era personificado por
Sócrates, deve ser tido em mira por todo homem, porque lhe é
imposto pela reta razão. Existe uma lei natural que domina o mundo,
e reflete-se também na consciência individual: o homem épartícipe,
por sua natureza, de uma lei que vale unversalmente. O
preceito supremo da Ética é, pois, para os estóicos, "viver
segundo
( I - I a natureza" (o!-!oÀOYOU!-!EVú)S; 111 <pucra
Sl1v).
Esse conceito de uma lei universal faz que se quebrem as
barreiras políticas, e o homem se considera (como ocorria com os
cínicos, mas aqui em um sentido mais alto) um cosmopolita, cidadão
do universo.
Como Platão, em homenagem à pólis (= cidade), suprimia a
faml1ia e a propriedade, assim a escola estóica suprime os Estados
particulares em reverência ao Estado universal.
Até então dominava um ideal estritamente político no qual o
fim supremo era, em suma, a pertença do indivíduo ao Estado. Mas
com a Filosofia estóica anuncia-se e se prepara uma moral mais
abrangente e mais humana.
Vamos recordar, agora, duas escolas pós-aristotélicas de
grande importância: a estóica e a epicuréia.
A escola estóica deriva de uma precedente, dita escola
dos cínicos, representada principalmente por Antístenes, que
teve entre seus seguidores o famoso Diógenes.
Antístenes foi primeiro discípulo de Górgias, e depois de
Sócrates, mas colocou-se numa espécie de antagonismo com
outros discípulos de Sócrates, especialmente com Platão.
Para os cínicos, a virtude é o só bem e consiste na
modéstia, na
continência, no contentar-se com pouco. O sábio quase não
tem necessidades e despreza aquilo que os homens comuns
desejam: ele segue apenas a lei da virtude, e não cuida das
demais leis positivas.
Assim, ele não é estrangeiro em lugar algum; é
cosmopolita,
cidadão do mundo.
De acordo com esta idéia, os cínicos desprezam todas as
leis e os costumes dominantes, têm uma postura negativa
perante o Estado e buscam desprender os cidadãos dos
vínculos que os unem a ele, retomando à simplicidade
primitiva do estado de natureza. 30 31
GIORGIO DEL VECCHIO
o estoicismo afmna que existe uma liberdade que jamais
qualquer opressão poderá destruir, aquela que deriva da supressão
das paixões. O homem é livre se segue a sua verdadeira natureza,
isto é, se aprende a vencer as paixões, postando-se independente
delas.
Nesse sentido, não há diferença entre livre e escravo. Temse
uma sociedade do gênero humano, além dos limites assinalados
pelos Estados políticos, fundada sob a identidade da natureza
humana e da lei racional, que corresponde a ela.
É por si mesmo significativo que encontremos entre os mais
insignes escritores cultores e seguidores da Filosofia estóica um
escravo, como Epiteto, e um Imperador, como Marco Aurélio.
A Filosofia estóica prenuncia, de certo modo, o Cristianismo.
A escola epicuréia
A escola estóica opõe-se à escola epicuréia, que, por sua
vez, foi precedida da escola cirenaica ou hedonística, fundada
por Aristipo de Cirene. Segundo esta escola, o prazer é o único
bem e não existem outros fundamentos de obrigação, além
daqueles que derivam da finalidade do prazer.
Epicuro, que fundou sua escola em Atenas em 306 a.c., e
a continuou até o ano de sua morte (270), partiu do mesmo
conceito fundamental dos cirenaicos, mas teve o mérito de dar
um desenvolvimento mais amplo e mais razoável à doutrina
hedonística.
Para Epicuro a virtude não é o fim supremo, como para
os estóicos, mas um meio para chegar à felicidade. Assim,
enuncia-se o princípio utilitário, ou hedonístico, avesso à
moral estóica; e podese afirmar que as escolas éticas
posteriores dividiram-se segundo essas duas concepções, em
contínuo contraste.
Pessoalmente, Epicuro foi um homem sábio e pregava a
temprança como a primeira virtude para assegurar o prazer.
Segundo a sua doutrina, não é necessário procurar o prazer,
nem evi
tar toda dor, mas conduzir-se de maneira que o êxito final ou
o 32
--
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
resultado constitua a maior quantidade possível de prazer e a menor
possível, de dor.
Isto implica certo cálculo ou medida de utilidade. No caso, a
falta de moderação abrevia a vida, prejudica o organismo e diminui,
assim, a faculdade de gozar.
Neste ponto, Epicuro chegou a oferecer preceitos éticos.
Além disso, a escola de Epicuro manifestajá uma teoria sobre a
distinção qualitativa, ou graduação dos prazeres.
Diferentemente da Escola Cirenaica, que considerava
sobretudo as sensações físicas, Epicuro dá maior peso aos prazeres e
às dores do espírito, que são mais duradouros do que aquelas. A
amizade é consderada por Epicuro como o maior dos prazeres. Isto
mostra como sua doutrina não é apenas materialista.
Dessa graduação dos prazeres origina-se, porém, a crítica do
utilitarismo, uma vez que, admitindo-se prazeres inferiores e
superiores, há necessidade de um critério de escolha, de uma régua
qualitativa e não quantitativa, pela qual o sumo bem pode ser a
satisfação da consciência, a ser alcançada até mesmo a preço de uma
dor física. Supera-se, assim, a singela doutrinna hedonística, que
busca o prazer pelo prazer, sem distinções.
Merece ainda consideração a parte da doutrina de Epicuro que
conceme ao Estado. Também aqui domina a concepção utilitária.
Epicuro nega que o homem seja social por natureza. Em sua origem
estaria em luta permanente com os outros homens, mas esta luta,
gerando dor, vem a ser abolida com a formação do Estado.
Assim, para Epicuro, o direito é apenas um pacto utilitário, e
o Estado é o efeito de um acordo que os homens poderiam romper
toda vez que em tal união não encontrassem a utilidade pela qual a
concluíram.
Como se vê, o Estado de Epicuro está, pois, em condição de
anarquia potencial. Tem-se, aqui, a primeira formulação
(prescindindo-se de qualquer aceno dos Sofistas) da doutrina
platônica e aristotélica, que, ao contrário, fundava o Estado sobre a
natureza mesma dos homens.
33
GIORGIO DEL VECCHIO HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
Veremos depois, os sucessivos desenvolvimentos da
teoria contratualista, na Idade Média e na moderna.
Os juristas romanos
conceitos fundamentais da melhor Filosofia grega, expressos em
forma elegante e clara, para torná-los bem acessíveis ao povo
romano.
O próprio Cícero apela para o bom senso natural, para a
persuação comum dos homens, dando ao seu discurso caráter
popular. A sua tese principal é que o direito não é um produto do
arbítrio, mas dado pela natureza. Natura juris ab homines repetenda
est natura( = "A essência do direito deve ser procurada pelos homens na
natureza"). Tem-se, aí, como ensinaram os estóicos, uma lei eterna,
que é uma expressão da razão universal. Portanto, ele combate os
céticos, os quais, afirmando a impossibilidade do conhecimento, e a
mutação e relatividade de todas as coisas, deduziram daí a
impossibilidade de uma justiça absoluta (em especial a Cameades
que, com sua pregação cética, causara em Roma certa turbação,
abalando as convicções comuns, e sustentando que o critério do
justo não é fundado na natureza.
Cícero opõe-se a esses argumentos, e observa que nem tudo
que é posto como direito é justo, que, em tal caso, também as leis
dos tiranos formariam o direito. O direito funda-se em opinião
arbitrária, mas existe um justo natural, imutável e necessário, pelo
testemunho inferido da própria consciência do homem.
Este conceito é desenvolvido por Cícero com grande
eloquência: Est quidem vera lex recta ratio, naturae congruens,
diffusa in omnes, constans, sempiterna... neque est quaerendus
explanator, aut interpres eius alius. Nec erit alia lex Romae, alia
Athenis, alia nunc, alia posthac, sed et omnes gentes et omni
tempore una lex, et sempiterna, et immutabilis continebit... cui qui
non parebit, ipse se fugiet, ac naturam hominis
aspernatus hoc ipso luet, maximas poenas, etiamsi cetera suplicia,
quae putantur, eftugerit (= "Na verdade, a reta razão é uma lei
conforme à natureza, difusa em todos, constante, eterna... não exige
quem a explique, ou um outro intérprete. Nem existe outra lei em
Roma, outra em Atenas, outra agora, outra depois, mas uma só lei
existirá para todas as pessoas e em todo tempo,
Roma não teve uma filosofia original. Mas como no Oriente
o supremo objeto da atividade espiritual foi a religião e na Grécia, a
Filosofia, em Roma foi o direito. Nisto, a sabedoria romana excele.
Houve em Roma, certamente, correntes filosóficas, mas elas
derivaram da Grécia. Pode-se dizer que todas as Escolas gregas
tiveram em Roma representantes próprios. O Epicurismo, por
exemplo, teve Lucrécio Caro que, no poema De rerum natura, expôs
com eloquência as teorias de Epicuro; o Estoicismo teve Sêneca e
Marco Aurélio, etc.
Cícero (106/43 a.C.) foi aquele a quem pertence o mérito de
ter tomado popular a Filosofia em Roma, o intermediário típico
entre o pensamento grego e o latino. Autor de obras às quais deu
esplendor de forma e de eloquência, mas cujo conteúdo é quase
todo grego. Ele mesmo afirmou que seus escritos "apografa sunt",
e acrescenta: Verba tantum aftero, quibus abundo (= "apenas lhes
dou as palavras, nas quais sou fértil").
Suas obras mais importantes para o direito são: De
Republica, De Legibus, De OfficÜs, além de De finibus bonorum et
malorum, Tusculararum desputationum libri quinque, etc.
Do De Republica chegou-nos apenas cerca de uma terça
parte, descoberta em maio de 1819 em um palimpsesto vaticano. O
De legibus é também incompleto, mas talvez tenha sido deixado
assim pelo próprio autor.
Cícero não pertenceu propriamente a nenhuma Escola, mas
sentiu a influência de muitas, a começar pela Estóica, à qual se
filiava
seu mestre Poseidon. Foi eclético. O título e a forma de algumas de
suas obras (De Republica, De legibus) são platônicos; o conteúdo é
aristotélico e estóico; encontram-se neles, em suma, revigorados,
os
34 35
GIORGIO DEL VECCHIO
eterna, imutável... quem não lhe obedecer foge de si mesmo, e tendo
desprezado a natureza do homem, sofrerá por isso mesmo as
maiores penas, embora fuja de outros sofrimentos, que imagine").
Além do jus naturale, e em imediata pertinência com ele,
existe umjus gentium, observado por todos os povos, que serve de
base a suas relações recíprocas porque se funda sobre suas comuns
necessidades, não obstante as modificações que as diversas
circunstâncias tomam necessárias.
Por último, existe o jus civile, vigente para cada povo, em
particular.
Entre os termos dessa tricotomia (jus naturale, jus gentium e
jus civile) não existe contradição, sendo eles antes determinações
graduais de um mesmo princípio.
Ainda, para Cícero é o Estado um produto da natureza. Um
instinto natural leva o homem à sociabilidade, e precisamente à
convivência política. Renova-se, assim, a doutrina aristotélica.
Os juristas romanos tiveram, em geral, uma cultura
filosófica. O estoicismo foi, entre todos os sistemas da filosofia
grega, o que teve mais sorte em Roma, porque melhor correspondia
à índole austera, ao caráter fortemente rígido do cidadão romano.
Também
o ideal cosmopolítico dos estóicos tinha certa repercussão positiva
no crescente domínio de Roma.
O conceito de uma lei natural, comum a todos os homens
torna-se familiar aos juristas romanos, como uma crença implícita e
subentendida na sua própria noção do direito positivo. É apontado
como o fundamento deste a naturalis ratio, que não significa a
mera razão subjetiva, individual, mas aquela racionalidade que está
inscrita na
ordem das coisas e é, por isso, superior ao arbítrio humano. Há,
portanto, uma lei da natureza, imutável, não feita a propósito, mas
já existente, nata; lei uniforme e não sujeita a mutações por obra
huma
na (Jus naturale est id quod semper bonum et aequum est = "Direito natural é aquilo que é bom e eqüitativo sempre").
36
--
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
O conceito de jus naturale liga-se ao da eqüidade. A
eqüidade significa propriamente uma equalitação, tratamento igual
de coisas e assuntos iguais, um critério que obriga a reconhecer o
que é idêntico no substrato das coisas, além do vário e do acidental.
A idéia de eqüidade e a de lei natural tomam-se fatores de
progresso no direito. O direito positivo é uma modificação do
direito natural, com elementos de acidentalidade e de arbítrio. As
condições de lugar e de tempo mudam, a utilidade sugere normas
particulares, e isso os juristas romanos reconhecem amplamente.
Mas, não obstante, está neles o cuidado permanente de reconduzir o
direito às suas mais profundas raízes, de confrontar a norma com
seu fundamento natural, tolhendo as desarmonias e desigualdades,
igualando equiparando, com o objetivo de corrigir o que seja iníquo
ou irracional.
O simples reconhecimento de que o direito positivo é
contrário ao direito natural não basta, por si, para aboli-Io, mas
determina uma tendência à sua reforma ou.modificação, também no
momento da aplicação judicial, por meio da equidade.
Advirta-se que o magistrado romano tinha um poder mais
vasto que o do magistrado moderno; tanto que, assumindo o cargo,
o pretor publicava as regras que informariam sua jurisdição
(edictum).
O direito natural permanece o mais alto critério teórico. Dele
deduzem-se as máximas mais gerais; por exemplo, aquela segundo a
qual todos os homens são iguais e livres por natureza (segundo o
ensinamento da Filosofia estóica).
Desta maneira, os juristas romanos reconhecem,
expressamente, que a servidão é contrária ao direito natural;
porémjustificam-na em nome do jus gentium, sendo ela usada por
todos os povos (em conseqüência das guerras).
Outro princípio do direito natural é, por exemplo, a
legitimidade da defesa (Adversus periculum naturalis ratio permitit
se defendere = "Diante do perigo a razão natural permite a defesa"), ou
seja, vim vi reppelere (repelir a violência pela violência).
37
GIORGIO DEL VECCHIO
Ulpiano oferece do direito natural uma formulação que não
se encontra em outros escritores: o direito natural -diz- é
quod natura omnia animalia docuit ( = "aquilo que a natureza ensinou
a todos os animais").
Com isso estende a validade do direito natural também aos
animais em geral. Mas, em substância, nada mais faz que dar
expressão restrita àquilo que também era para todos um fIrme
princípio, ou seja, que o fundamento do direito está na natureza
mesma das coisas, naqueles motivos que, desenvolvidos maiormente
no
homem, estão, também, em germe, nos animais inferiores.
Uma questão importante em tomo das idéias jurídicas dos
romanos é a que concerne ao jus gentium, denominação usada em
diversos sentidos acuradamente distintos.
Entende-se porjus gentium, em primeiro signifIcado, o
complexo de normas que, no Estado romano, são aplicáveis aos
estrangeiros (isto é, entre estrangeiros e estrangeiros, e entre
estrangeiros e cidadãos romanos, uma vez que os estrangeiros eram
excluídos do jus civile.
De regra, para estas relações internacionais se estabeleceu
um direito simples, despojado daquelas formalidades solenes, das
quais era revestido o direito próprio do povo romano.
O jus gentium é o modo simples e sufIciente para regular as
relações às quais são admitidos também os estrangeiros.
Quanto ao segundo sentido em que se entende o jus gentium,
é provável que se tenha chegado a ele com o seguinte processo: a
princípio, os romanos não conceberiam esse direito como superior
ao civil, antes, como um direito primitivo e rudimentar; depois, o
estudo da FilosofIa grega fez reconhecer naquela própria
simplicidade a indicação da natureza, o reflexo da lei natural; em
seguida,
vislumbrou-se nele um elemento de superioridade, considerou-se o
jus gentium como expressão das exigências primordiais e comuns
a todos os povos, como revelação mais direta da razão universal.
Entende-se, então, por direito das gentes o direito positivo comum
38
- HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
a todos os povos (quasi quo jure omnes utuntur = "o direito que
todos usam").
Assim, um fato da experiência assume, pouco a pouco, um
significado filosófico, chegando-se à triconomia: direito natural
(universal, o mesmo sempre, perpétuo), direito das gentes
(elementos comuns que se encontram nos vários direitos positivos),
direito civil (com suas particularidades, que são determinações
posteriores das espécies precedentes).
Freqüentemente o jus gentium é confundido com o jus
naturale. Mas aquele é conceito essencialmente romano, nascido da
experiência histórica dos romanos; já este é conceito expresso pela
Filosofia grega. Isto não exclui, porém, que os romanos possam ter
tido alguma intuição nesse sentido, antes ainda da influência daquela
FilosofIa.
Os dois conceitos tendem a encontrar-se, e talvez pareçam
coincidir; têm, todavia, um significado diverso, e certamente são
também contrapostos, de tal modo que não se pode aceitar a tese
segundo a qual constituiriam eles uma só coisa.
Assim, por exemplo, os juristas romanos reconheceram a
escravidão como contrária ao direito natural (pelo qual todos nascem
livres); encontraram, todavia, para ela, justifIcativa na prática
comum dos povos, no jus gentium.
Bastaria isto para demonstrar a diversidade dos dois
conceitos. De resto, os juristas romanos não foram notáveis nas
abstrações teóricas, nas idéias puramente filosóficas, mas no
traspasse delas para a prática do direito positivo, na sua aplicação,
satisfazendo sempre, com genial agudeza, as exigências lógicas e as
necessidades mutáveis da realidade.
Consagrando o maior respeito pelas formas tradicionais e
históricas dos institutos, e não rompendo nunca de maneira violenta
a continuidade do seu desenvolvimento, os juristas romanos jamais
perderam de vista a vida concreta e a natureza das coisas, e
souberam fazer progredir continuamente o direito segundo o
coteúdo das
39
GIORGIO DEL VECCHIO
novas exigências, mas com uma técnica formal perfeita. Nisto está a
sua glória máxima. A nossa disciplina tem por fontes clássicas a
Filosofia grega e a Jurisprudência romana.
40
~
o CRISTIANISMO E A FILOSOFIA DO /
DIREITO NA IDADE MEDIA
A sublime doutrina religiosa e moral que, nascida na
Palestina, difundiu-se em poucos séculos em grande parte do mundo
civil, produziu uma mutação profunda na concepção do direito e do
Estado.
Originariamente, porém, a doutrina cristã não teve
significado jurídico ou político, mas tão só moral.
O princípio da caridade não se desenvolveu para obter
reformas políticas e sociais, mas para reformar as consciências.
Seguiam, sim este princípio, a liberdade, a igualdade de todos os
homens, e a unidade da grande farm1ia humana, porém, como
corolário da pregação evangélica; mas essas idéias não se opuseram
diretamente à ordem poÍítica estabelecida.
A própria escravidão não foi combatida, mas respeitada como
iQstituição humana, porém afmnando-se a fraternidade dos homens
pela lei divina. Ao contrário, chegaram alguns Padres da Igreja a
considerá-Ia como ocasião propícia para que os escravos se
exercitassem na paciência, e na obediência aos patrões, e os patrões
na brandura com os escravos. Não se sustenta, em suma, a
necessidade de abolir, na prática, a escravidão, mas contentou-se
com mitigá-Ia, através do princípio cristão da caridade e do amor.
A doutrina do Evangelho foi essencialmente apolítica. Todos
os seus ensinamentos tiveram, originariamente, um sentido
espiritual: "Não vim para ser servido, mas para servir - O meu
Reino não é deste mundo - Dai a César o que é de César, e a Deus, o
que é de Deus". Os tributos devem ser pagos ao Estado, não à
Igreja.
Todavia, a doutrina da Igreja teve efeitos e influência
notáveis também -sobre a Política e sobre as ciências atinentes a ela.
41
GIORGIO DEL VECCHIO
Um primeiro efeito, de natureza metodológica, é a
aproximação do Direito à Teologia. Posto que um Deus pessoal
governa o mundo, considera-se o direito como fundado sob um
comando divino. O Estado como instituição divina. E a vontade
divina é conhecida não tanto pelo raciocínio, quanto pela revelação;
antes de ser demonstrada, deve ser crida, aceita pela fé.
Somente no Renascimento, no qual se verificou, de certo
modo, um ressurgimento da Filosofia e da cultura greco-latina,
reafIr
mou-se a doutrina clássica segundo a qual o direito deriva da
natureza humana, independentemente da Teologia.
Outro resultado do Cristianismo, ou melhor, da forma
histórica do Cristianismo, é reconhecido na nova concepção do
Estado em relação à Igreja.
Na antiguidade clássica apenas existia o Estado, como
unidade perfeita. O indivíduo tinha a suprema missão de ser bom
cidadão, de dar ao Estado tudo de si mesmo.
Com o Cristianismo, ao contrário, outro fim é proposto ao
indivíduo: o fim religioso, do outro mundo. A meta última não é a
vida civil, mas a conquista da felicidade eterna, da beatitude celeste,
que se alcança mediante a subordinação à vontade divina
representada pela Igreja.
No Estado clássico, a religião era uma magistratura a ele
submetida; na Idade Média, a Igreja tende a sobrepor-se ao Estado,
dado que, enquanto o Estado cuida das coisas terrenas, a Igreja se
ocupa das eternas; daí a pretensão de usar o Estado como
instrumento do fim religioso. Portanto, a Igreja afirma-se como
autoridade autônoma, superior ao Estado.
Desta maneira, o relacionamento político complica-se. Dos
dois termos cidadão e Estado, aproxima-se um terceiro, a Igreja. O
princípio fundamental, o ideal do Cristianismo, a irmandade dos
homens
em Deus é mais vasto e elevado que o ideal grego da era clássica.
Em geral, os gregos não tinham visto mais, além do Estado,
da poUso O caráter cosmopolítico é assinalado apenas pela
filosofia estóica que, em algum aspecto, prenuncia o Cristianismo.
42
.......
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
Enquanto o ideal cristão se toma fator histórico e princípio de
organização social, assume, todavia, alguns caracteres próprios de
todo sistema político; como força social, não chega a uma
verdadeira universalidade, mas toma-se um fim antitético de outras
forças. Politicamente, a Igreja firmou-se, em certo modo, como
partido guelfo, em oposição ao gibelino: como Estado, frente a
outros Estados.
A Filosofia Cristã (que, nascida na Idade Antiga,
desenvolveu-se e predominou especialmente na Idade Média),
divide-se em dois principais períodos: o da Patrística e o da
Escolástica.
No primeiro fixam-se os dogmas, os artigos de fé, por obra
dos padres da Igreja (donde o nome). No segundo, surge uma
elaboração dos dogmas, notadamente em razão dos elementos
trazidos pela Filosofia grega.
É também importante notar que os padres da Igreja
deduziram dos juristas romanos a concepção do direito natural
(dando-lhe, todavia, uma base teológica), dominante sobre toda a lei
positiva.
Esta concepção, transmitida aos canonistas e em geral aos
estudiosos da Idade Média, foi desenvolvida pela Filosofia
escolástica, como se depreende, sobretudo, do sistema de Santo
Tomás, e teve uma certa função diretiva em toda a civilização
futura.
Pode-se, pois, dizer que os elementos essenciais do
pensamento clássico não ficaram de todo perdidos, não obstante a
revolução operada pelo Cristianismo; antes, passaram a dever a ele
uma nova vida.
A Patrística
A Patrística, que vai das origens do Cristianismo até aos
tempos de Carlos Magno (800), pode dividir-se também em dois
períodos, separados pelo Concílio de Nicéia (325). Entre os padres
da Igreja, depois dos Apóstolos, recordaremos: Tertuliano,
Clemente de Alexandria, Orígenes, Lactâncio, Ambrósio, etc. O
mais im
43
GIORGIO DEL VECCHIO
portante é Santo Agostinho (354/430), que escreveu numerosas
obras. Nasceu em Tagaste, na Numídia (Algéria), e morreu como
Bispo de Hipona (Bona).
Especialmente na obra em vinte e dois livros, De Civitate
Dei, desenvolveu suas teorias sobre a história do gênero humano,
sobre o problema do mal e sobre o destino ultraterreno do homem,
sobre a Justiça e sobre o Estado.
Em nenhuma outra obra se pode observar melhor a diferença
entre o conceito grego clássico e o cristão, a respeito do Estado.
Enquanto os gregos haviam exaltado o Estado como supremo fim do
homem, Santo Agostinho enaltece a Igreja e a comunhão das almas
em Deus.
A civitas terrena, que não significa propriamente um Estado
determinado, mas, em geral, o reino da impiedade (societas
impiorum), descende do pecado original, sem o qual não existiriam
senhorias políticas, nem juízes, nem penas. O Estado teve,
portanto,
origem de delitos (Caim e Rômulo foram fratricidas); e o próprio
Império Romano aparece a Santo Agostinho corrompido e viciado
pelo paganismo.
A Civitas terrena é, pois, caduca, e deve ser substituída pela
Civitas Dei (ou Civitas Coelestis), que já existe, em parte, na terra, e
reinará sozinha, por último.
Por civitas Dei Santo Agostinho entende a comunhão dos
fiéis, que se organizam como uma cidade divina, uma vez que são
predestinados a participar da vida e da beatitude celestes.
O Estado terreno tem, assim, escopo louvável e deriva,
também, da vontade divina e da natureza, enquanto se propõe
manter a paz temporal entre os homens. Mas está sempre
subordinado à cidade celeste, isto é, à Igreja, que tende a procurar a
paz eterna.
Pode o Estado justificar-se apenas relativamente, enquanto
deve servir sobretudo como instrumento a fim de que a Igreja atinja
os seus próprios fins (portanto, deve ele repelir as heresias). Por
último, o Estado terreno desaparecerá, para dar lugar ao
restabelecimento do reino de Deus.
44
.......
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
Esta concepção enormemente catastrófica das coisas humanas
explica-se, em parte, pelas experiências políticas do tempo de Santo
Agostinho, que viu o Império sendo invadido pelos bárbaros.
Em geral, Santo Agostinho elaborou a doutrina cristã em
todas as suas partes mais severas (a predestinação, a condenação
eterna da maior parte dos homens, etc.). A Filosofia política de
Santo Agostinho representa o triunfo da ascese. Em tal condição,
que tende a esvaziar o Estado, as aspirações ultramundanas levam
vantagem sobre os valores da vida terrena.
Notemos, ainda, que a obra De Civitate Dei pode ser
considerada como o primeiro ensaio de Filosofia da História, sob o
ponto de vista cristão. Santo Agostinho reconhece na História o
cumprimento dos desígnios da Providência Divina. Desta forma,
indic~, por exemplo, a tomada de Roma pelos bárbaros como um
produto do juízo universal.
A Escolástica
Tem-se, com a Escolástica, um retomo parcial à
Filosofia clássica. Na segunda metade da Idade Média
aparecem obras, especialmente da Filosofia grega, que
estiveram perdidas no obscuro período precedente; ou seja,
tinham permanecido perdidas, foram reencontradas e postas
em destaque. Todavia, foram estudadas com métodos
dogmáticos, com o propósito de, a todo modo, harmonizá-Ias
com os dogmas religiosos.
Este o caráter fundamental da Filosofia escolástica.
Aristóteles toma-se o doutor por excelência; mas, estudado e
interpretado com aquelas premissas, nem sempre foi
apresentado na sua verdadeira luz.
Porisso, ocorreu que, depois, na reação contra a
Escolástica, a Filosofia do Renascimento (por exemplo,
Telésio, Bacon, etc.) declarou-se antiaristotélica. .
Os Escolásticos arquitetaram engenhos rniraculsos na
elaboração dos dogmas e no esforço de harmonizar com eles a
Filosofia 45
GIORGIO DEL VECCHIO
clássica. Tomaram-se insuperáveis na agudeza e na sua habilidade
dialética, especialmente no distinguir.
Mesmo conservando o caráter dogmático, a Filosofia
escolástica tentou desenvolver os dogmas religiosos com uma
análise racional, até onde permitiam os limites da fé. O influxo do
pensamento clássico é, todavia, visível, e assaz fecundo.
Isto se mostra sobretudo nas doutrinas de Santo Tomás de
Aquino (1225/1274), o principal representante da escolástica. Sua
obra maior é a Suma Teológica, compêndio sistemático do saber
filosófico do seu tempo, obra pela qual conquista a qualidade de
Cabeça Doutrinal do Catolicismo.
Cumpre recordar, ainda, entre as outras obras suas, um
Tratado, De regimine principum, do quaIlhe pertencem apenas o
primeiro livro e parte do segundo, enquanto os outros dois livros
são atribuídos ao seu discípulo Ptolomeu de Luca (Ptolomaeus
Lucensis).
Santo Tomás deu sistematização mais orgânica ao
ensinamento cristão. Aludiremos apenas à parte que concerne à
nossa disciplina.
O fundamento da doutrina jurídica e política de Santo Tomás
é a divisão da lei.
Distingue ele três ordens de leis: a lei eterna, a lei natural e a
lei humana.
A lei eterna é a mesma razão divina que governa o mundo
(ratio divinae sapientiae = "razão da divina sabedoria"), que
ninguém pode conhecer inteiramente em si mesma (Legem
aetemam nullus potest cognoscere, secundum quod in ipsa est, nisi
solus Deus et beati, qui Deum per essentiam vident = "Ninguém
pode conhecer a lei eterna, segundo o que ela é em si, a não ser
Deus e os bemaventurados, os quais vêem a Deus em sua essência"
Summa theol., 1 a, 2a, q. 93, art. 2), não obstante poder-se ter dele
uma noção parcial através de suas manifestações.
A lex naturalis é, ao contrário, cognoscível diretamente pela ..
razão, sendo precisamente uma participação da lei eterna na criatu'"
46
..,.........
-
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
ra racional, segundo a sua própria capacidade (Lex naturalis nihil
aliud est quam participatio legis aetemae in rationali creatura = "a
lei natural nada mais é do que a participação da lei eterna, na criatura
racional", secundum proportionem capacitatis humana e naturae =
"de conformidade com a proporção da capacidade da natureza
humana" - Ib., q. 91, art. 2 e 4). A lex humana é uma invenção do homem pela qual, partindo
dos princípios da lei natural, vai-se às aplicações particulares (ib.,
q.91, art. 3; q. 95, art. 2). Ela pode derivar da lex naturalis, per
modum conclusionum (= "à maneira de conclusões") ou per
modum determinationis (= "mediante uma determinação") segun- .
do resulte de premissas da lex naturalis, como conclusão de um
silogismo, quer dizer, uma especificação maior daquilo que é
afirmado de modo geral na lex naturalis.
O problema prático é: a lex humana deve ser obedecida
também quando contrasta com a lex aetema e a lex naturalis? Ou
seja, até onde o cidadão deve obedecer às leis do Estado?
Segundo a doutrina tomística, a lex humana deve ser
obedecida também quando vá contra o bem comum, isto é, mesmo
quando constitua um dano, e isto para a manutenção da ordem
(propter vitandum scandalum vel turbationem = "para evitar o escândalo ou a turbação"). Não deve, porém, ser obedecida quando
implique uma violação da lex divina (contra Dei mandatum = "contra ordem de Deus"). Tal seria, por exemplo, uma lei que
impusesse um falso culto.
Na doutrina do Estado é ainda mais visível a influência de
Aristóteles, e também evidente a diferença entre a teoria tomística e
a de Santo Agostinho.
Para Santo Tomás, o Estado é um produto natural e
necessário à satisfação das necessidades humanas; deriva da
natureza social do homem e subsistiria também independentemente
do pecado. O Estado tem por finalidade garantir a segurança dos
homens consociados e de promover o bem comum, o que é uma
imagem do reino de Deus.
47
GIORGIO DEL VECCHIO
Com isto se tem uma reabilitação do conceito do Estado, em
confronto com a teoria de Santo Agostinho.
Não muda, todavia, a concepção fundamental, neste ponto,
que também SantoTomás formou do Estado como subordinado à
Igreja, à qual deve ele obedecer sempre, ajudando-a a atingir seus
fins.
Um Estado que se oponha à Igreja não é legítimo. Como
representante do poder divino, tem o Papa o direito de punir os
soberanos, e pode dispensar os súditos do dever de obediência a eles,
desobrigando-os do juramento de fidelidade. Tem isto grande
importância na história política da Idade Média.
Essa, em resumo, a teoria tornística, que contém elementos
preciosos extraídos, em parte, das doutrinas grega e romana.
Sob certo aspecto, pode-se notar como defeito a preponde
rância dada nela à autoridade, em confronto com a liberdade.
O homem, apesar de livre, é considerado, de regra, como
passivo perante o poder público, tanto eclesiástico quanto civil. Não
é ele o centro, o autor das leis; deve apenas submeter-se a elas; sua
autonomia não é plenamente reconhecida, nem na ordem teórica,
como sujeito do conhecimento, nem na ordem prática, como sujeito
de ação. Domina, ao contrário, a heteronomia, que, porém, não
exclui um conceito elevado da pessoa humana, como partícipe de
uma substância e de uma lei absoluta (Assim, Santo Tomás diz, por
exemplo, que as substâncias racionais, ou seja, as pessoas, habent
dominium sui actus, et non solum aguntur sicut alia, sed per se
agunt (= "têm o domínio de seus atos e não são apenas feitas, como
as outras, mas agem por si" (Suma teol., I, q. 29, art. 1).
De qualquer modo, surgiram oposições contra a teoria
tornística, determinadas mais por razões políticas concretas que por
defeito doutrinal. Realmente, é evidente que ela tendia a fazer da
Igreja o único Poder absoluto, sacrificando a ela todos os demais
poderes e, em especial, prejudicando a soberania estatal.
Era natural que uma reação, uma defesa, surgisse para
reafirmar a independência do Estado contra as pretensões de
ingerência da Igreja; tanto mais que era vivíssima a tradição do
Estado roma
48
~
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
no, que continuava, ainda, formalmente, no Império. Roma
representava, na mente do medievo, o Estado universal, o Estado
por excelência.
Havia, pois, dois fundamentos sobre os quais se apoiava a
vida política da Idade Média: o Papado e o Império. As relações
entre essas duas supremas autoridades se discutiam mesmo também
em termos simbólicos, tirando argumentos dos textos sagrados; por
exemplo, onde se acena para as "duas espadas" (cf. sobre este tema,
particularmente, as disquisições de Dante, Monarchia, 111,9).
Dois poderes foram estabelecidos por Deus sobre a
humanidade: um, temporal; o outro, espiritual. Este dualismo era
admitido por ambos os partidos, o dos guelfos e o dos gibelinos. O
primeiro, porém, afirmava que, derivando os dois poderes,
igualmente, da divindade, só a Igreja era intérprete imediata dos
quereres do Céu; e o Estado, ao contrário, os derivava
mediatamente, por meio da Igreja, de modo que o Papa tinha
também o direito de depor e de punir o Imperador.
Diversamente, o segundo partido afirmava que o poder civil
era paralelo, por isso, independente do poder religioso, dependente
só e diretamente de Deus.
Os escritores gibelinos e a doutrina contratualista *
Esta segunda teoria (a gibelina) buscava subtrair o
Estado e a sua soberania da intromissão da Igreja, e inspirava-
se no ideal do Império Romano. Foi sustentada sobretudo por
Dante Alighieri
* N. T. - Guelfos (do alemão Hwelp, Welf, duque da Baviera, no século XI); Gibelinos (do
alemão Waiblingen, uma possessão dos Hohestaufen). Dois partidos políticos entre os quais se dividiram, no século XII, os partidários das famílias dos duques da Saxônia e da Baviera,
e dos senhores de Hohenstaufen. Em razão do casamento de GuelfIl, duque da Baviera,
com Matilde, filha de Bonifácio d'Est, Guelf tomou-se dono de vastas possessões na Itália, acrescidas por via de sucessão, dos bens de famílias importantes (Lumberg, Brunswick,
Northeim, etc.). Instalados na Itália, os
49
GIORGIO DEL VECCHIO
(1265/1321) no tratado Monarquia (escrito provavelmente em tomo
de 1312; ignora-se a data exata).
Também Dante procede através de argumentos escolásticos,
por alegorias, por sÚllbolos, com disquisiçães sutilissimas,
confutando argumentos que aparentemente não mereceriam ser
afrontados. Sustenta, antes de tudo, no primeiro livro, que é
necessária a unidade do governo político para todo o gênero
humano, isto por razões metafísicas, em razão da excelência da
unidade em geral, e também
por utilidade prática (manutenção da paz).
No segundo livro, Dante passa a demonstrar que o povo
romano foi designado por Deus para comandar o mundo; e
afIrma a seguir que, como o Imperador era o herdeiro do povo
romano, por isso mesmo ele seria, de pleno direito, soberano
universal.
No terceiro livro Dante trata das relações do Estado
com a Igreja e sustenta a independência do Imperador em face
da Igreja,
na ordem temporal. Prova tudo isso com argumentos
abstratos, longe mesmo de toda a realidade, com valor apenas
alegórico.
Assim, discute o argumento do Sol (que para os guelfos devia
representar o poder da Igreja) e da Lua (que tinha
representado o Império, dele recebendo a luz). E mostra como
não se pode extrair uma prova da sujeição do Imperador, pois
a lua não recebe do sol o ser nem a atuação, mas apenas um
auxílio. Assim, o Imperador recebe, com certeza, da Igreja, o
lume da graça, mas isto não lhe destrói a independência.
partidos guelfos e gibelinos (nomes que se tomaram gritos de guerra nas batalhas da
convulsionada Itália dos anteriores à unificação), adquiriram coloração político-ideológica. Gibelinos, o povo como fonte e origem do poder; Guelfos, a aristocracia imperial
centralizando a origem do Estado, como expressão máxima e fonte única do poder. As
vicissitudes da História puseram os guelfos como partidários do Papa, defensores da supremacia da Igreja sobre o Estado, enquanto ao lado dos gibelinos enfileiraram-se os
que viam no Estado a fonte do poder absoluto, inclusive sobre a Igreja e temas religiosos.
Essa a marca diferenciadora de guelfos e gibelinos, passada à História, e que se faz
presente nas elucubrações dos filósofos do direito (cf. LAROUSSE, Pierre. Grand
diccionaire universel du XIXeme siecle, v. 8, p. 1.580-1582).
50
~
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
Dante discute ainda os argumentos históricos, como aquele
que se queria trazer da pretensa doação de Constantino
(historicamente insubsistente)*. Não a põe em dúvida, mas
demonstra que Constantino não tinha o direito de com ela dividir o
Império. A
* N. T. - Dante Alighieri (1265/1321) não era só poeta, o imortal poeta da Divina Comédia.
Aventurou-se na Política e alimentou pretensões na Filosofia (Convito ou Banquet). Não se
tem tudo da vida. O político, conquanto até eminente (foi Prefeito (Priori) de Firenze, cargo do qual foi deposto), seguiu o destino de tantos outros: amargou sucessivas derrotas nos
embates entre Guelfos, entre os quais ter-se-ia enfileirado inicialmente (Les traditions de sa
famille et sés propres inclinations I'attachaient à Ia cause des Guelfes (ap. OZANAM, M. A. F. Dante et Ia philosophie catholique au treizieme siecle. Paris: Chez Jacques Lecoffre,
1845, p. 51), e Gibelinos (cuja linha de pensamento perfilou, na obra lembrada por DeI
Vecchio); e sofreu as decepções pela constatação da impossibilidade de ver realizados seus generosos projetos no campo social; por fim, conheceu o exílio, onde, aliás, nasceu e
morreu (OZANAM. Dante et Ia philosophie catholique au treizieme siecle, p. 55). A força
avassaladora do esplendor da dominação papalina de seu tempo impediu o surgimento de grandes pensadores e ofuscou o brilho dos poucos que, como Dante, ensaiaram vôo no
espaço da Filosofia, com alguns laivos de independência. Ficou, então, o Poeta. Enquanto se tiver olhos (ou dedos) para ler, ou ouvidos para escutar coisas como Nel mezzo dei
cammín di nostra vita / Mi ritrovai per uma selva oscura..., Dante será lembrado, lido e
aplaudido até com frenesi. Não se pode duvidar da sanidade mental dos poetas. Mas é certo que o universo que habitam com preferência é o dos arroubos visionários e das exaltações
alegóricas, que os tornam facilmente crédulos. Dante aderiu à crença da Doação de
Constantino, sem se ocupar com o caráter lendário que, já no seu tempo, matizava-a. No século VIII (segundo uns), ou IX (como geralmente admitido), surgiu um Constituto (uma
Constituição, um Decreto, um Edito) que passou para a História como A doação de
Constantino. Atribuído com mais empenho a um francês, anônimo freqüentador da Cúria Romana, foi usado pela primeira vez pelo Papa Leão IX (1002/1054), que o reivindicou
para fundamentar o domínio temporal dos papas. Pelo teor do documento, o Imperador
Constantino teria conferido ao Papa Silvestre I (314/335) e a seus sucessores "o primado
sobre os grandes patriarcados" (MCBRIEN, Richard P. Vida dos Papas; de São Pedro a
João Paulo lI, p. 62 (tradução do original inglês: LAMBERT, Bárbara Theoto. Lives ofthe
papes; the pontiffs from St. Peter to John Paul 11. São Paulo: Loyola, 2000) e doado "não só o Palácio de Latrão, mas também a cidade de Roma e todas as províncias, lugares e
cidades da Itália e do Ocidente" (GRASSO, G. B. Lo. ln: CHIOCCHETTA, Pietro.
Dizionario storico religioso. Roma: Studium, 1966, p.198-199). Documento incluído entre os Falsos Decretais do século IX e nas Decretais de Graciano (id.). Informa ainda
MCBRIEN: "No século Xv, a autenticidade do documento foi questionada por Enea Silvio
Piccolomini
51
GIORGIO DEL VECCHIO
doação era, pois, ilegítima, e os direitos do Império não podiam ser
restringidos em razão dela.
Ao proclamar o elevado ideal da unidade política do gênero
humano, Dante não examina, porém, particularmente, as relações
que se deviam estabelecer entre o Império Universal e cada um dos
Estados. No máximo, parece pensar que todos os Estados existentes
(exceto o domínio temporal da Igreja) tinham de ter sido
conservados na sua estrutura atual, submissa à autoridade do
Imperador.
Não é, pois, exata a opinião de que tivesse Dante vaticinado a
formação de um Estado italiano unitário, mediante a supressão de
diversos regimes então vigentes na península. Pode-se dizer,
todavia, que um tal vaticínio estaria de certo modo implícito na sua
crença de que a Itália possuísse naturalmente uma certa unidade,
seja por seus caracteres geográficos, seja pela fundamental
homogeneidade de suas tradições, e de sua língua.
Ao tempo de Dante, outros escritores de tendências análogas,
no que concerne as relações entre o Estado e a Igreja, são o inglês
Guilherme de Occam (1270/1347) e Marsílio de Pádua (Marsilius
Patavinus - 1270/1342).
Este último tem particular importância. Levou vida vária e
aventurosa. Em 1313 foi nomeado Reitor da Universidade de Paris.
Gibelino por excelência, enérgico defensor dos direitos do Estado,
participou ativamente das lutas políticas de seu tempo, tomando
partido por Ludovico, o Bávaro, contra o Papa João XXII*.
(mais tarde Papa Pio 11) e outros, mas nesse meio tempo este documento e as
outras fontes espúrias exerceram enonne influência no pensamento medieval"
(ib.).
* N. T.-João XXII (Jacques Duese, de Cahors, na França, 1244/1334) protagonizou
um dos períodos mais conturbados da história da Idade Média e da hierarguia da
Igreja Católica. O segundo dos Papas de Avignon havia imposto uma decisão a
querela doméstica, que já se alongava, entre franciscanos conventuais e
espirituais. A decisão deixou dissidentes, entre eles Guilherme de Occam. João
XXII apoiara o rival de Luiz IV, o Bávaro, na disputa do trono da Alemanha.
Marsílio de Pádua e Occam valeram-se do pretexto para apoiar Luis IV no intento
de depor o Papa. Luiz IV entrou em Roma em janeiro de 1328, fez-se coroar
Imperador, 52
JII"""'"
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
Na sua obra Defensor pacis (1324) pretende restabelecer a paz
subordinando a Igreja ao Estado. Parte do conceito de que a fonte
do poder político é o povo; dele emana o governo; por isso, sendo o
Príncipe, no Estado, secundaria, quasi instrumentalis seu executiva
pars (= "uma parte secundária, como que instrumental ou
executiva"), deve governarjuxta subditorum suo num voluntatem et
consensum (= "de acordo com a vontade e o consenso dos seus súditos").
O Príncipe é sempre levado, em respeito ao povo, a observar a lei, e
pode ser punido em caso de transgressão.
A maior causa de perturbação entre os homens é, segundo
Marsílio, o Papado, cujo domínio como poder temporal resulta de
uma série de usurpações.
Marsílio sustenta que ao Papa e ao clero em geral não assiste
nenhuma jurisdição coercitiva, nem mesmo o direito de impor
coativamente a obediência à lei divina. Em todos os casos, as penas
contra os heréticos somente podem ser pronunciadas por tribunais
civis.
Reafirma-se, assim, de certo modo, com Marsílio, o conceito
clássico da soberania civil, pela qual o Príncipe não só é inde
pendente do sacerdócio, mas tem ainda legítima jurisdição sobre
tudo o que se passa no território do Estado, inclusive sobre os
ofícios do culto, e as práticas religiosas.
Em verdade, na antiga Roma a religião era uma magistratura,
um ofício público, e não um Poder estranho ao Estado.
decretou a deposição de João XXII por heresia (João XXII sustentara, em oposição aos
dissidentes franciscanos, que os Santos só no fim do mundo veriam a Deus face a face, erro
teológico de que se penitenciou publicamente ao morrer em Avignon, em 4/12/1334), e impôs a eleição de Nicolau V (Pietro Rainalducci,
franciscano espiritual). Sem o apoio de Luiz IV, Nicolau V "escondeu-se e acabou
indo a Avignon, onde se submeteu a João XXII e foi perdoado e posto em cativei ro confortável" (MCBRIEN, Richard P. Vida dos papas; de São Pedro a João
Paulo 11, p. 62 (tradução do original inglês: LAMBERT, Bárbara Theoto. Lives 01
the papes; the pontiffs from St. Peter to John Paul 11. São Paulo: Loyola, 2000, p. 243-244).
53
GIORGIO DEL VECCHIO
A obra de Marsílio de Pádua é sobremodo notável também
porque nela se delineia a teoria do contrato social, que já se
mostrava em germe nos sofistas e mais ainda em Epicuro, mas que,
a partir de Marsílio, ocupará lugar importante na história da
Filosofia do direito, terá campo fértil até o século XVIII por inteiro,
variamente concebida e diversamente exposta por escritores com o
objetivo de revelar nela conseqüências e aplicações práticas
diferentes. Presente estava sempre, e firme, a hipótese fundamental:
o Estado tivera origem no Contrato. Discute-se sobre o valor e sobre
cláusulas do suposto contrato, mas não se põe em dúvida (até o
século XVIII) a sua existência.
Resumidamente, pode-se compendiar a estrutura geral dessa
teoria da seguinte forma: admite-se, sem questionamento, tenha
existido um período da vida da humanidade anterior à formação do
Estado; nele os homens teriam vivido sem leis, sem autoridade, e
sem governo, entregues inteiramente a si mesmos. Esse estado extra
ou pré-Iegal é chamado estado da natureza (status naturae), e é
descrito de formas diversas, a saber: para alguns autores, signifi
caria uma era de paz e de beatitude, como um Paraíso (e se liga,
então, a vários mitos da Idade do Ouro, de Saturno, etc., isto é, de
uma primeira idade feliz da humanidade.2
2 Por exemplo: Tíbulo descreve assim a mística da Idade de Satumo: "Quam bene
Saturno vivebant rege, priusquam Ii Tellus in longas est patefacta vias!!!... Non
domus ullafores habuit, nonfixus in agrisll Qui regeret certisfinibus arva, lapis;1
IIpsae mella dabant quercus, ultroque ferebant Ii Obvia securis ubera lactis
oves.
IINon acies, non irafuit, non bella, nec ensem I/Immiti saevus duxerat arte faber"
(= "Quão bem viviam no reino de Satumo antes de a Terra abrir-se em longas
estradas! A casa não tinha portas, nos campos não havia marco que mantivesse
as lavouras em limites certos; até os carvalhos davam mel, e de boa vontade as
ovelhas mostravam os entumecidos úberes, sinal de leite. Não havia exércitos,
não havia
ódio, nem guerras, nem o cruel armeiro, com iníqua arte, produzia a espada").
Recorde-se também análoga descrição de Ovídio: Aurea prima sata est aetas,
quae,
vindice nullo, Ii Sponte sua, sine lege,fidem rectumque colebat. IIPoena
metusque
aberant; nec verba minaciafixo IIAere legebantur; Ii nec supplex turba timebant Ii
ludicis ora sui: sed erant sine judice tu ti, (= "Surgiu a primeira Idade do Ouro,
aquela que, sem vingadores, cultivava a lealdade e a justiça. O castigo e o medo 54
.............
HISTÓIUA DA FILOSOFIA DO DIREITO
Para outros autores, ao contrário, constituiria um estado de
suma infelicidade, cheio de perigos, sem freio algum para o
organismo, e sem qualquer proteção e garantia para a liberdade.
Seja como for, em certo momento tudo acabou, ou por efeito
do pecado original, que tirara do homem a inocência e aquela
beatitude primitiva, ou por conseqüência das paixões humanas e dos
perigos e danos naturais naquela condição.
As diversas teorias concordam em afirmar que, em certo
momento, o estado natural terminou, e os homens convieram em
abandoná-Io para se unirem em sociedade. Passa-se, assim, do
status naturae para o status societatis. Essa passagem faz-se através
de um contrato, por cuja força os homens se obrigam a respeitarem-
se mutuamente e a conviverem pacificamente (pactum unionis). No
mesmo ato, ou seja, em um momento sucessivo, o povo (tomado tal
pela multidão desagregada, por força do pactum unionis) submete-
se a um governo por ele mesmo designado. Isto acontece, todavia,
através de um contrato (pactum unionis). Este pode ser simultâneo
ou posterior ao pactum unionis.
O significado essencial da doutrina do contrato social
consiste em demonstrar como o poder político é emanação do povo,
ao reivindicar deste o direito soberano. Na verdade, admitindo-se
que o governo reivindica do povo a sua autoridade, será fácil
sustentar que, quando lhe aprouver, sempre pode o povo revogar o
poder conferido; isto sobretudo no caso de o governo vir a faltar
com os compromissos assumidos no suposto Contrato.
desertaram; nem se liam palavras de ameaça publicadas; nem as turbas súplices
temiam a sentença do seu juiz; mas sentiam-se seguros semjuízes").
Metamorphoses, L. L v. 89/93). Esta legenda encontrou eco, é dizer, em toda
literatura (Por exemplo em uma das mais eloqüentes páginas do Don Quixote, de
Cervantes, P.I.C'xI). Se bem falte a essas representações fundamento histórico
suficiente, todavia podem elas vir a ter significado peculiar, como hipóteses
indicativas de aspirações e ideais humanos. Isto aparece claro, por exemplo, na
obra de Rousseau, da qual adiante trataremos (cf. o nosso estudo O conceito da
natureza e os princípios do direito, 2. ed. 1922, p. 111 et seq. Conferir, ainda,
PFLEIDERER. A idéia de uma Idade de Ouro (1877); Curcio. Evocações da
Idade de Ouro, no v. Italianos utopistas do cinquecento, 1944, p. 197 et seq.).
55
GIORGIO DEL VECCHIO
De outro lado, poder -se-á também sustentar (e isto foi feito
por alguns escritores) que, em virtude do contrato social, o povo
perdeu irrecuperavelmente a sua liberdade, a sua soberania (tendo-a
cedido a um governo). O Contrato social toma-se, então, um meio
ou um motivo para fundamentar o poder absoluto.
A teoria contratualista pôde, assim, ser acolhida por
numerosos escritores, animados também de intenções diversas: no
século XV, por exemplo, pelo grande filósofo Nicolau de Cusa
(1401/
1464), autor da obra De concordantia catholica (1433), em cujas
doutrinas filosóficas inspirou-se mais tarde Giordano Bruno.
Ao mesmo tempo em que tendia a diminuir o poder do
príncipe, a teoria do contrato social pôde, em algum momento
histórico, corresponder aos fins da Igreja, quando se toma arma de
combate contra o poder civil. Assim: vários escritores jesuítas
reivindicam a autoridade do povo neste sentido (entre o século XVI
e o século CVII, Belarmino, Molina, Mariana, Soares).
Também escritores protestantes referem-se ao contrato social
para combater o absolutismo, mas com outro objetivo: provar que,
sendo o poder dos príncipes limitado pelo contrato de origem, não é
legítima a ingerência deles em certas matérias, e que a liberdade
religiosa, em especial, é inviolável.
Entre esses escritores, chamados antimonarquistas
(Monarcomachi) recordaremos o escocês Jorge Buchanan, que
escreveu a obra De jure regni apud Scotos (1579); o huguenote
francês Languet, que escreveu com o pseudônimo de Junius Brutus
o livro Vindicare contra tiranos, 1579, por alguns atribuído, porém,
a Mornay.3
3 Contra essa atribuição, pode-se ver o ensaio de BARKER, E. Proceedings o/the
Juguenot Society o/ London, v. XIV, 1930, p. 42 et seq. Avançou-se também a
hipótese de que tenham colaborado no livro, em diversas partes, Languet e Momay.
Nesse sentido, cf., por exemplo, YSSELSTEYN, G.T. van, Lauteur de l'ouvrage
Vindiciae contra tyrannos, Revue Historique, n. 167, especialmente p. 56 et seq.,
Mai/Aout, 1931.
56
.....
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
E, por último, Giovanni Althusio (Althusius), alemão, cuja
política metodice digesta é de 1603.
Como precursores dos autores há pouco lembrados, menção
merece o italiano Colucio SaIutati, da Stignano, VaI di Nievole
(1331/ 1406) que no ano 1400 escreveu um breve tratado, De
Tyrano, (publicado apenas recentemente, 1913/1914). Nesse escrito
Salutati, depois de ter distinguido as várias espécies de tiranos (por
falta de título, e por injustiça no governar), sustenta o direito de o
povo resistir ao tirano, e também de, em certos casos, eliminá-lo.
Com a teoria do contrato social se quis, primeiro, afirmar em
geral a soberania popular como poder absoluto, indeterminado;
depois, cuidou-se de determinar as conseqüências jurídicas, as
cláusulas do hipotético contrato, vindo-se, desse modo, a investigar
quais os direitos que o povo se reservou, e em quais casos e modos
poderia exercitá-Ios. Começou-se, assim, a formular os direitos
individuais, buscando-se manter possi velmente no estado de
sociedade aqueles direitos que se dizia terem existido no estado de
natureza (liberdade, igualdade, etc.).
De outra parte, manifestava-se, também, a tendência a
assegurar a necessária autoridade e a estabilidade do Estado, embora
sob a forma de contrato. Chegou-se, assim, através de graus (como
veremos), ao conceito do Estado de direito, prenunciado pelos bills
ofrights, e pela declaração dos direitos, isto é, dos princípios da
revolução inglesa, americana e francesa, que tendiam a garantir os
direitos individuais de liberdade nos limites da soberania do Estado.
o Renascimento
Com alguns dos escritores por último recordados
saímos,
enfim, da Idade Média.
A formação das teorias contratualísticas é já um
fenômeno
do Renascimento, um efeito daquele vasto desenvolvimento
que 57
GIORGIO DEL VECCHIO
deu nova direção ao espírito humano em todas as suas atividades.
Esse impulso de desenvolvimento ou renascimento, iniciado em
parte no século XIV (Petrarca), manifesta-se igualmente no século
XVI. Representa essencialmente a liberação do espírito crítico,
deprimido e sufocado, por longo tempo, pelos excessos de
dogmatismo.
Na Idade Média, o homem reputava-se subordinado a leis
extrínsecas, das quais não se reconhecia o autor, mas tão-só sujeito
passivo. Mesmo na obra científica não se admitia a liberdade de
pesquisa, mas nela se atinha rigorosamente aos chefes, às autorida
des estabeleci das (recorde-se o ipse dixit referido a Aristóteles).
Em suma, dominava um posicionamento heteronômico do espírito.
No Renascimento ressurge a autonomia. Várias causas,
algumas ocasionais, outras mais profundas, determinaram esse
grande ressurgimento que constitui, em certo sentido e sob certos
aspectos, uma volta à concepção clássica da vida.
Entre as causas ocasionais, recordaremos que já no século
XIV, e mais no seguinte, assim que Constantinopla foi tomada
pelos turcos de Maomé 11 (1453), caindo assim o Império do
Oriente, imigraram nas terras do Ocidente, especialmente na Itália,
muitos sábios gregos, os quais, tendo conservado em parte os
tesouros do saber antigo, contribuíram para reavivar o espírito da
civilização clássica, daí a fazer surgir um novo humanismo em
oposição ao espírito ascético dominante da Idade Média.
Outro fato extrínseco, todavia de grande importância, foi a
invenção da Imprensa, que permitiu a rápida difusão e propagação
das idéias.
Podem-se também recordar as grandes descobertas
geográficas, advindas na mesma época, em especial a descoberta da
América, que abriu novas vias para o trabalho humano, e promoveu
grandes transformações em toda a economia.
Causa mais profunda de renovação espiritual foi a nova
concepção científica do universo, isto é, a prevalência do sistema
58
.............-
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
copemiquiano, o qual contraditava o sistema ptolomaico, segundo o
qual a Terra seria o centro do Mundo. Esse progresso científico teve
graves conseqüências, porque induziu o abandono de algumas
crenças antropomórficas que tinham imperado na Idade Média.
Demonstrado que a Terra não é, como se cria, o centro fixo
do mundo, mas uma poeira infinitesimal, abriu-se espaço a novas
concepções da natureza e também a várias formas de panteísmo.
Não se afastaram, todavia, nem se podiam afastar, as verdades
fundamentais de caráter ético, já estabelecidas e que, entendidas
corretamente, são independentes das doutrinas físicas.
Outra manifestação do Renascimento é a Reforma religiosa,
ocorrida especialmente nos países anglo-saxônicos. Também aqui o
espírito crítico se insurge. A consciência busca ser independente
também no campo da fé.
Note-se que os reformadores foram, em geral, homens
religiosos, que quiseram subtrair-se à autoridade da Igreja porque se
creram capazes de adorar a divindade sem intermediários. Até nessa
matéria, portanto, a consciência individual tenta reafirmar a sua
autonomia contra as imposições dogmáticas tradicionais, embora
muitas vezes dando lugar a um novo dogmatismo.
Um fato de singular importância, que é também de ser
considerado, se se quer compreender o grandioso fenômeno do
Renascimento, é a mudança que se vem realizando nas condições
políticas. A essa mudança corresponde o desdobrar de novas teorias.
Durante a Idade Média, havia multidões de pequenos
Estados, de pequenas organizações políticas, as quais, mais ou
menos diretamente, mediante uma escala jerárquica de poderes e
privilégios (caractística do feudalismo) afrontavam as duas
supremas autoridades: Papado e Império.
A pouco e pouco esse estado de coisas muda. Papado e
Império perdem sua efetiva preponderância política mundial. Em
lugar das pequenas potências, constrangidas a apoiar-se sempre em
uma das duas maiores (ou seja, a tomar partido guelfo ou
59
GIORGIO DEL VECCHIO
gibelino ),surgem organizações mais vastas e seguras. Formam-se
grandes Estados, grandes monarquias, com territórios determinados,
mas independentes da hegemonia do Papado e do Império, e
verdadeiramente soberanas.
Também no campo teórico, o problema jurídico e político
põe-se, portanto, sob novas bases, e assim se procura saber, em
primeiro lugar, qual deva ser a relação entre o indivíduo e a
sociedade política, entre governados e governantes no Estado. Não
mais, como na Idade Média, entre a Igreja e o Império (as teorias
escolásticas, por exemplo, a das duas espadas, perdem então muito
do seu significado).
De uma parte, tende-se a afirmar, rigidamente, a soberania do
Estado, mesmo com prejuízo das liberdades populares (escritores
absolutistas).
De outra parte, tende-se a reivindicar os direitos populares,
mesmo pondo também em risco a estabilidade e a segurança do
Estado (escritores democráticos e liberais).
O direito não mais se estuda sob fundamento teológico, mas
sob bases humanas e racionais.
Rugo Grócio é considerado o iniciador desse novo
direcionamento. Mas teve numerosos precursores, que em suas obras
revelam os traços característicos do Renascimento.
Entre os escritores anteriores a Grócio, recomendaremos dois,
sobretudo, os quais, embora não tenham enfrentado os problemas
fundamentais da Filosofia do direito, são importantes em razão das
matérias políticas que versaram e pelo método que seguiram:
Maquiavel e Bodin.
60
~
A FILOSOFIA DO DIREITO NA
ERA MODERNA
Maquiave1 e Bodin
Nicolau Maquiavel (1469/1527), homem mais político que
filósofo, foi um dos primeiros a tratar a ciência política com o
espírito dos novos tempos, fundando-se na observação histórica e
psicológica, distanciado de qualquer preocupação dogmática. Foi
principalmente um homem de ação. Só quando se retirou dos
afazeres deEstado para a vida privada compôs suas principais obras,
entre as quais se destacam O Príncipe (Il Principe, de 1513) e os
Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio (Discorsi sopra ia
prima Deca de Tito Livio).
Maquiavel indaga-se quais as causas que asseguram a
estabilidade de um governo, e como tirar proveito a esse respeito da
história antiga, analisando os critérios de governo dos Romanos,
extraídos da narrativa de Tito Lívio.
Maquiavel examina os homens como são, com suas paixões,
com seus vícios em geral, estuda as condições de fato, às quais se
refere. Todavia, mirando o quadro desolador da Itália dilacerada por
vários dominadores, é levado a conceber o ideal da unidade pátria.
Segue, no entanto, sempre, o método da indução e da observação
histórica. Ciente das reais condições de seu tempo, mesmo naquilo
que elas tinham de mais triste, indaga como se possa tirar proveito
delas para chegar à formulação de um Estado Itálico independente.
Sem nenhuma preocupação moral, indica os meios que
estima como mais eficazes e aptos ao fim visado. Em certos casos
não
61
GIORGIO DEL VECCHIO
tem dúvida em aconselhar ao Príncipe que queira garantir o domínio
da Itália, a fraude, além da violência. Tais meios eram comumente
usados em seu tempo, mas o fato de ele os aconselhar lançou uma
sombra sobre o seu nome e sua obra. Maquiavelismo tem, em
política, um triste significado e resume-se na conhecida fórmula: o
fim
justifica os meios.
Alguns, como Alberico Gentili, Rousseau, Foscolo, etc.,
entenderam que Maquiavel tivesse querido apenas dar conselhos
imorais com ironia, a um Príncipe; e, na realidade, revelar de tal
modo os meios adotados na política para, desse modo, resguardar os
povos contra as malas-artes dos govemantes. Mas essa interpretação
de O Príncipe não é a dominante na crítica.
A verdade é que Maquiavel vem julgado e interpretado
segundo as condições de seu tempo. A sua justificação, em todo
relativa, está nisto: ele tinha um ideal político e calculava quais as
reais forças que, na prática, pudesse agregar em dadas
circunstâncias, à sua atuação. Em suma, é preciso julgar a sua obra
historicamente e em relação a determinado problema político, não
como um tratado de moral, que estava distante de seu propósito.
Queria apenas ensinar como tinha podido, então, formar-se um
Estado Nacional na Itália (analogamente ao que ocorreu na França e
na Inglaterra). Queria, em especial, exortar um Príncipe, ao qual as
suas palavras eram endereçadas, a tomar uma iniciativa para esse
fim.
O livro O Príncipe não é, pois, como se chegou a acreditar,
uma sátira contra a tirania, mas um programa para a transformação
da Itália em um Estado unitário.
Convém também advertir que, mesmo sob o aspecto prático e
político, Maquiavel não avaliou adequadamente a eficácia dos
fatores morais. Apenas se referiu aos motivos mais baixos da
natureza humana, mas com eles não se fundam nem se regeneram as
nações.
Os próprios fatos mostram que a Itália permaneceu dividida e
em grande parte escrava, ainda, por três séculos, não obstante os
62
,...
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
meios sugeridos por Maquiavel; e só renasceu para a unidade estatal por
intermédio de um mais elevado programa moral, ensinado pelos
pensadores e mártires do final do século XVIII e primeira metade do XIX.
***
Outro escritor de transição digno de ser lembrado é o francês
Giovanni Bodin (1530/1596), autor da obra Da República (De ia
République), em seis livros (1577, depois traduzido pelo próprio
autor para o latim, em 1586).
Bodin trata da organização do Estado com método racional,
não dogmático; é, por isso, um dos precursores da nova ciência
política.
Não obstante algumas diferenças, pode ser confrontado com
Maquiavel por várias razões: também ele funda-se sobre a
observação dos fatos e se propõe fins concretos, imediatos; também
ele, como Maquiavel, é absolutista; sua obra corresponde à
consolidação da Monarquia na França.
A parte mais importante de sua obra é a que se refere à so
berania. O conceito de soberania não podia ser bem definido na
Idade Média, porque a ele se associavam elementos estranhos,
especialmente teocráticos. (Considerava-se o soberano como
representante da divindade. De outra parte, no feudalismo, a
soberania política confundia-se com o direito privado de
propriedade.)
Bodin afirma que em todo Estado deve existir um poder
supremo, uno e indivisível (não há Estado sem poder soberano). São
caracteres essenciais da soberania o absolutismo e a perpetuidade. A
soberania compreende, em primeiro lugar, o direito de fazer leis.
Mas aquele que faz as leis, segundo Bodin, não pode a elas estar
sujeito; permanece, assim, superior a elas. O soberano está sujeito
apenas às leis divinas e naturais, cujo império reafirma. Na ordem
jurídica positiva, a soberania é necessariamente absoluta: aquele que
é dela investido é superior à lei, e para com o soberano existem
63
GIORGIO DEL VECCHIO
deveres, e não direitos. Assim, nenhum direito à rebelião contra o
tirano (como sustentado por algumas escolas); e, da mesma forma,
nenhum direito do cidadão contra o Estado. A liberdade é, desta
forma, sacrificada à autonomia estatal.
Observamos que essa concepção de Bodin é imperfeita,
porque põe em destaque o caráter de independência extrínseca do
poder soberano; não assinala, por outro lado, a possibilidade de uma
intrínseca limitação desse poder, com o objetivo de dar lugar a uma
tutela jurídica da liberdade individual. Mas a solução desse elevado
problema, do qual depende o surgimento do Estado constitucional,
devia estar reservada a uma época posterior.
A soberania, com todos os seus caracteres próprios, pode
pertencer, segundo Bodin, tanto a um monarca como ao povo, ou a
um corpo de nobres. É claro que, com isso, Bodin (contrariamente
a quanto foi considerado depois, por exemplo, por Roussseau)
confunde a soberania com o governo.
Distingue, portanto, três formas de soberania ou de governo:
monarquia, aristocracia e democracia.
Enquanto, segundo alguns (Aristóteles, Políbio, Cícero,
Maquiavel) podia-se ter também uma forma mista de governo,
Bodin refuta essa teoria, a qual, ao seu ver, contrasta com o
conceito fundamental de soberania, que é essencialmente
indivisível.
Assim, aqui e ali será preciso examinar a quem compete fa
zer as leis (primeiro distintivo da soberania). Quando no fazer a lei
existe parte essencial, por exemplo, o povo, o governo é
democrático; e assim por diante.
Bodin examina, depois, as vantagens de cada uma dessas
formas de governo e conclui pela excelência do governo
monárquico (como existia na França). Para Bodin, a soberania, que
é una por natureza, encontra na monarquia a sua natural expressão.
Como Maquiavel, Bodin é, antes de tudo, um político, e em
seus tratados visa sempre a política. Considera, portanto, com
particular zelo, as causas de mudança do governo e busca condições
64
..,.........-
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
melhores para o desenvolvimento do Estado, afirma a oportunidade
de adaptar as leis às condições naturais (insistindo, por exemplo, na
relação entre o clima e as leis). Inspirou, nessa parte, a
Montesquieu.
A obra de Bodin é também uma fonte de estudos especiais:
assim, por exemplo, sobre impostos, em que é considerado dos
primeiros cameralistas (cultores da ciência cameral, que
corresponde à hodierna ciência das finanças).
Bodin defendeu, ainda, a tolerância religiosa, diante das
violentas lutas que se feriram então entre católicos e protestantes.
Por essas e outras manifestações, mostra-se um iniciador da idade
moderna, enquanto que, por outros aspectos, conserva, ainda,
caráter medieval (por exemplo, ele escreveu ao influxo de demônios
e de astros, etc.).
Grócio e outros escritores de seu tempo
A renovação operada também no campo da Filosofia teórica
na época do Renascimento, e na que o sucedeu de imediato, é
representada principalmente por Telésio, Bruno, Campanella;
sobretudo pelos dois pensadores com os quais a Filosofia moderna
se anuncia propriamente nos seus caracteres programáticos e
sistemáticos, Francesco Bacon (1561/1626) e Renato Descates
(Cartesius; 1596/1650).
Os métodos de um e de outro são aparentemente opostos.
Bacon quer restaurar a ciência, com a observação dos fenômenos
naturais, substituindo o procedimento indutivo pelo dedutivo, pondo
seus experimentos no lugar dos silogismos.
Antes dele, salvo tentativas de alguns precursores isolados, a
Física era estudada em Aristóteles, cuja autoridade indiscutível
punha-se em detrimento do desenvolvimento da pesquisa científica.
O método experimental, empírico e positivo, que tantos
seguidores teria nas idades posteriores, é, pois, instaurado por
Bacon. Sua obra, da qual se pode aproximar a de seu
contemporâneo
65
, GIORGIO DEL VECCHIO
li'
Galileu Galilei (1564/1642), desenvolve-se com propósitos análogos
e fecundos de descobertas maravilhosas.
Descartes, porém, toma como ponto de partida a consciência
individual. Quer libertar-se de todas as opiniões recebidas,
emancipando-se, em um primeiro momento, da autoridade dos
dogmas, e submetendo, metodicamente, todo dado, todo
conhecimento, à dúvida. Estabelece, assim, como primeira certeza a
só existência do seu pensamento que duvida (cogito, ergo sum:
penso; logo, existo, isto é: existo porque penso - sum cogitans -
penso porque duvido).
Destarte, põe em primeira plana o problema gnoseológico e o
dirige para a solução, buscando na própria consciência o princípio
de toda certeza.
Nessa afirmação metodológica, inspiraram-se as sucessivas
escolas do racionalismo, do idealismo e do criticismo. Porém, bem
considerado, também o posicionamento baconiano e galileico im
plica a afirmação dos poderes cognoscitivos da razão humana, pois
pressupõe que a razão humana esteja em condições de, por si,
descobrir a verdade, perquirindo os fenômenos.
***
Importância mais direta para a Filosofia do Direito tem Hugo
Grócio (Groot), holandês (1583/1645), autor da obra Do direito da
guerra e da paz (De jure belli ac pacis), em três livros, publicada
em 1625.
Grócio é notável sobretudo porque, diferentemente dos outros
autores mencionados, os quais trataram de questões políticas
particulares, remonta aos princípios gerais da matéria, da qual tenta
uma sistematização completa, sendo comumente considerado o
nmdador da moderna Filosofia do direito.
Deve-se notar ainda que ele teve, também nesse propósito,
alguns precursores como, por exemplo,os três protestantes alemães
João Oldendorp, Nicolau Hemming e Benedito Winkler, que
publicaram suas obras sobre direito natural entre 1539 e 1615 (é
espe
66
......
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
cialmente notável o tratrado de Winkler, Principiorumjuris
libri quinque, editado em 1615; (cf. sobre esses autores o livro
de Kaltenborn, Os precursores de Ugo Grozio, em alemão,
1848).
***
Singular importância tem também nesse período,
imediatamente antes de Grócio, a obra do espanhol Francesco
Suarez (1548/1617), De legibus ac Deo legislatore (1612),
da qual faremos ainda um resumo adiante.
Esta obra, rica de idéias profundas, tem, porém, ainda,
certo caráter dogmático e contém numerosas referências à
Teologia, enquanto Grócio, ao contrário, quer ater-se tão só à
razão e àpresentar, sobre esta base, princípios válidos para
todos os homens, independentemente da religião.
***
Já o título de seu tratado (De jure ac pacis) demonstra que
Grócio tinha precipuamente em vista o direito internacional, isto é,
queria determinar as relações jurídicas que devem existir entre os
Estados, seja na guerra, seja na paz.
Ensaios desse gênero tinham j á existido, especialmente de
autores italianos e espanhóis. Recordaremos os escritos de Giovanni
da Legnano, professor em Bolonha - morto em 1383: De belio
(Da guerra, 1360); do espanhol Francisco Arias de VaI
deras aluno do Colégio de S. Clemente em Bolonha: Libelius de
belli
justitia injustitiave (Sobre ajustiça ou injustiça da guerra, 1533); de
Francisco de Vitoria, outro importante autor espanhol, ao qual
retomaremos (De Indis, Dejure belli, 1483/1546, etc., cerca de 1537/1539; 1. ed., póstuma, 1557); de Pietro Belli da Alba in
Piemonte (1502/1575): De re militari et belio (1563); de Baltazar
Ayala, nascido em Anversa, de pai espanhol, em 1548, e morto em
1584: De jure et officiis bellicis et disciplina militari (1582); e,
sobretudo, de Alberico Gentili, nascido em San Genesio (na Pro
67
GIORGIO DEL VECCHIO
vínciade Ancona) em 1552, e morto em Londres em 1608, depois de
ter ensinado por mais de vinte anos na Universidade de Oxford.
No seu tratado De jure belli (1588) e em outras obras suas,
Gentili revela-se um dos maiores teóricos do direito internacional,
preocupado em dar à prática da guerra, além das relações pacíficas
entre os Estados, um verdadeiro e próprio regulamento jurídico.
A obra de Gentili foi muito negligenciada. Grócio apenas
acena para ela, mas dela serviu-se largamente. Em nossos dias o
jurista inglês T.E. Holland republicou o De jure belli e escreveu uma
monografia sobre Gentili. Na Itália, Aurélio Saffi, em 1878, fez e
publicou sobre Gentili uma série de leituras. Escreveram ainda sobre
Gentili: De Giorgi, Speranza, Fiorini (que lhe traduziu em italiano a
obra principal, O direito de guerra, 1877), etc.
Gentili não é, certamente, inferior a Grócio como jurista;
mas, no confronto entre ele e outros escritores semelhantes, Grócio
tem o mérito de ter querido e sabido ir das questões particulares de
direito internacional aos princípios filosóficos gerais. Ele não foi
apenas jurista, mas também filósofo e, embora sem grande
originalidade, soube realizar uma obra sistemática.
Ao dar esse caráter à sua obra, Grócio foi induzido também
por considerações práticas, porque advertiu que um sistema de
direito internacional devia fundar-se sobre bases diversas daquelas
próprias dos sistemas jurídicos positi vos de cada Estado.
Na era precedente, e em toda a Idade Média, sobre cada
Estado tinham exercido (como vimos) uma espécie de
hegemonia duas grandes autoridades, a Igreja e o Império, as
quais, de qualquer forma, tinham regulado as relações
internacionais. Ao tempo de Grócio, essas duas autoridades
tinham perdido, finalmente, sua importância política: o sonho
de um Império ou de uma Igreja, universais como poder
político, esvanecera.
Era, então, preciso encontrar outras bases para
determinar
as relações jurídicas entre os Estados autônomos, limitados em
seu
território, mas absolutamente soberanos entre suas próprias
fronteiras, e iguais, juridicamente, entre eles.
68
,........
.....
HISTÓRlA DA FILOSOFIA DO DIREITO
Grócio estabeleceu esses princípios, retomando às fontes
clássicas, em especial a Aristóteles. Colhe deste a teoria
fundamental, que o homem é sociável por sua natureza e destinado a
urna certa forma de sociedade (política): Inter haec enim autem,
quae homini sunt propria, est appetitus societatis, id est
communitatis, non qualiscumque, sed tranquillae et pro sui
intellectus modo ordinatae (De jure belli ac pads, Proleg., § 6° =
"Entre as coisas, pois, que são adequadas ao homem, está o desejo
de sociedade, isto é, de comunidade, não de qualquer sociedade,
mas de sociedade pacífica e ordenada exclusivamente em benefício
de sua inteligência").
O direito é o que se mostra segundo a razão (não pela
revelação) apto a tomar possível a convivência social, isto é, o que a
reta razão demonstra conforme a natureza sociável do homem. Jus
naturale est dictatum rectae rationis, indicans actui alicui, ex eius
convenientia aut disconvenientia cum ipsa natura rationali ac
sociali, inesse moralem turpitudinem, aut necessitatem moralem
(Lib. I, capo I, § 10; cf. § 12 = "Direito natural é uma imposição da
reta razão que indica, para determinado ato, que é ele urna torpeza
moral ou urna necessidade moral, segundo sua conveniência ou não
conveniência com a própria razão natural ou social").
Grócio alcança substancial independência do direito em
relação à Teologia e põe explicitamente em relevo tal
independência. O direito natural, afirma, o sustentaria ainda que não
existisse Deus, ou
mesmo que ele não cuidasse das coisas humanas: Et haec quidem,
quae jam diximus, locum aliquem haberent, etiamsi daremus,quod
sine summo scelere dari nequit, non esse Deum, aut non curari ab
eo negotia humana (Proleg. § 11 = "E essas coisas que já
afirmamos, também diríamos que existem, mesmo que (o que não
poderia ser dito sem grande crime) não existisse Deus, ou não
cuidasse ele das coisas humanas"). 4
4 Convém advertir que essa fórmula, conquanto típica do sistema de Grócio e a ele
ordinariamente atribuída, não teve, porém, nele, a sua origem. Suarez (De legibus
ac
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GIORGIO DEL VECCHIO
Como se conhece o direito natural? Grócio indica dois
métodos: um, a priori, mais sutil e filosófico; o outro, a posteriori,
acessível a todos, mais popular.
Conhece-se a priori quando se encontra a necessária
conformidade ou desconformidade de uma certa coisa com respeito
ànatureza racional e social.
Conhece-se a posteriori quando se vê que alguma coisa é
crida como justa por todos os povos mais civilizados. Mas, admite o
próprio Grócio, este segundo método é imperfeito, e tem valor
apenas de probabilidade. Na verdade, ele exigiria, antes de tudo, o
conhecimento do direito positivo de todos os povos, e mais (e esta
deo legislatore, Lib. n, Capo CVI, § 3°) acena para vários autores que, em suas disputas
teológicas, usaram semelhantes expressões: em especial Gregorius, que não é, aqui, o
Gregório de Valença, do século XVI (como alguém entendeu), nem mesmo Gregório de
Rimini (Ariminensis, ou de Arimino, morto em 1358), no qual, de fato, lemos: Nam si per
impossibile ratio divina sive Deus ipse non esset, aut ratio illa esset errans, adhuc si quis
ageret contra rectam rationem angelicam vel humanam aut aliam aliquam si qua esset; peccaret (= "Pois, se por impossível, não exisisse a razão divina, ou o próprio Deus, ou
fosse titubeante aquela razão, se mesmo assim, agisse contra a reta razão, Angélica ou
humana, ou contra outra razão qualquer, pecaria") - (Super secundo Sententiarum, Distinctio XXXIV, quaestio 1, art. 2). Certamente por engano, Gierke, na sua excelente obra J.
Althusius und die Entwicklung der narurrechtlichen Staatstheorien (3. Aug., 1913, p. 74),
atribuiu essas palavras ao alemão Gabriel Biel (morto em 1495), o qual as escreveu, mas reportando-as a Gregório de Rimini, que não deixa de citar (cf. BIEL. Epítome et
collectorium ex Occamo super auatuor libros sententiarum, 1495, edição também com o
título Commentarii in IV Sententiarum libros, Brixiae, 1574, L. n. Dist. XXXIV, questão única, art. 1). As disquisições teológicas desses e de outros escritores tiraram motivo de uma
doutrina de Hugo de S. Victor (De sacramentis Christianae fidei. L. I. P. VI, Capo VI-VII.
In: MIGNE. Patrologia latina, t. 176). Notáveis são as palavras, com as quais Suarez retoma (sem, porém, aprová-Ias) as teses dos autores acima referidos: Licet Deus non esset,
vel non uteretur ratione, vel non recte de rebus judicaret, si in homine esset idem dictamen
rectae rationis dictantis, v. g. malum esse mentiri, illud habituum eamdem rationem legis,
quam nunc haber; quia esset lex ostensiva malitiae, quae in objecto ab intrínseco existit = "Ainda que Deus não existisse, ou não usasse a razão, ou não julgasse retamente a respeito
das coisas, se no homem existisse um ditame da reta razão que dissesse, por exemplo, ser
mau mentir, aquele ditame teria a mesma razão da lei que tem agora, porque a lei seria ostensiva da maldade que existe intrinsecamente no objeto" (loc. cit.). Suarez foi, sem
dúvida, a fonte próxima, à qual chegou Grócio.
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~
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HISTÓlUA DA FILOSOFIA DO DIREITO
é a objeção capital), o direito natural deve valer propriamente por si
mesmo, ainda se violado ou desconhecido.
Entre as condições de sociabilidade, que constituem o direito,
Grócio destaca nelas especialmente uma, a inviolabilidade dos
pactos. Se admitíssemos que fosse lícito faltar aos pactos, a
sociedade não seria possível. Deinde vero cumjuris naturae sit stare
pactis, ab hoc ipso fonte jura civilia fluxerunt (= "Na verdade, como
é do direito natural que os pactos são estáveis, dessa mesma fonte
decorreram os direitos civis" - Proleg., § 15).
Partindo desse princípio, Grócio deduz do mesmo a
legitimidade dos governos e a inviolabilidade dos tratados
internacionais. Supõe, de fato, que o Estado, a organização política,
seja constituído por força de um pacto. Portanto, também Grócio é
um contratualista, isto é, segue a teoria do contrato social, mas em
um sentido que podemos dizer empírico.
Outros escritores, anteriores e posteriores a Grócio, buscam
estabelecer um tipo ideal de contrato. Tinham eles compreensão,
mais ou menos explicitamente, de que o contrato é uma idéia, uma
hipótese, um princípio regulador mas não um fato histórico; este
reconhecimento realça o desenvolvimento progressivo da teoria.
Ao contrário, para Grócio, o contrato social teria acontecido,
ou seja, representaria uma verdade histórica. Por conseqüência, não
existe um contrato social único, mas existem tantos deles, e
diferentes, quantas e quais sejam as constituições políticas
existentes.
Grócio supõe que toda constituição positiva possa ter sido
precedida de um contrato correspondente, o que tomaria legítimas
todas as instituições, todos os governos. Sicut autem multa sunt
vivendi genera, alterum altero praestantius, et cuique liberum est
ex tot generibus id eligere, quod ipsi placet, ita et populus eligere
potest qualem vult gubrnationis formam, neque ex
praestantia huius, aut illius formae, qua de re diversa diverso rum
sunt judicia, se ex voluntate jus metiendum est (= "Assim como são
muitos os modos de vida, um mais valioso do
71
GIORGIO DEL VECCHIO
que o outro, e cada um é livre para escolher entre todos o que lhe
agrade, da mesma forma, o povo pode escolher a forma de governo
que deseja, não pelo valor dele, ou de sua forma, a respeito da qual
os juízos são diversos, mas esse direito deve ser medido pela
vontade"). (Lib. l, capo lU, § 8.)
O contrato social é, então, para Grócio, um ato exterior, uma
manifestação que deriva da opinião e de uma certa oportunidade do
momento, não já da natureza própria do homem. Só o impulso à
sociabilidade derivaria, para o homem, da natureza; mas a forma
que a sociedade deve assumir, seria deixada ao seu mero arbítrio.
Grócio inclina-se a combater a opinião (manifestada pouco
antes, por exemplo, por Althusius) segundo a qual os povos teriam
sempre o direito de chamar para si a soberania originária. Atque hoc
primum rejicienda est eorum opinio, qui ubique, et sine exceptione
summam potestatem esse volunt populi, ita ut ei reges, quoties suo
imperio male utuntur, et coercere et punire liceat" (ib.) (= "Em
primeiro lugar deve ser rejeitada a opinião daqueles que, sempre e
sem exceção, querem que o poder do Povo seja o maior, de tal modo
que a ele seja lícito coagir e punir os reis sempre que usem maio
poder").
Por isso ele, à guisa de postulado, declara que juris naturae
est stare pactis (= "É da natureza do direito que os pactos se
mantenham").
A idéia do contrato social é colocada por Grócio apenas para
demonstrar no povo a obrigação perpétua da obediência ao
soberano. Desta maneira, o contrato social é como uma paesumptio
juris et de jure, pela qual os atos praticados pelos governantes
entendem-se consentidos pelos súditos.
Entendida neste sentido empírico e irracional, a teoria
contratualística merece as várias objeções que lhe são feitas. Tais
objeções, todavia, não têm valor contra os sistemas, nos quais o
contrato social é entendido, mas como fato empírico, como
princípio racional regulativo. Podem, antes de tudo, opor-se às teses
de
72
1
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HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
Grócio as constatações históricas, que demonstram que a sociedade
e o Estado não tiveram origem no contrato, mas são fatos naturais,
produzidos independentemnete da reflexão e da deliberada vontade.
O caráter consensual prevalece apenas enquanto a vida da sociedade
progride; já o exercício e o reconhecimento jurídico da autonomia
de cada um sucedem gradativamente à primitiva solidariedade
impessoal dos grupos.
Poder-se-ia ainda indagar a Grócio por qual razão, dado que
um pacto tivesse mesmo sido conluído originariamente, devesse
obrigar as gerações seguintes, sem que elas tenham contratado ex
novo aquele vínculo.
Ademais, seria necessário verificar a liberdade do consenso e
examinar se o conteúdo do contrato é lícito ou não. A razão nos diz
que um contrato é obrigatório apenas se for concluído por
deliberação espontânea, ou pelo menos fora de imediata violência.
O caso de um povo que, derrotado na guerra, in periculum
vitae adductus, ou inopia pressus (como diz Grócio), renda-se
incondicionalmente em escravidão a outro povo ou uni homini
praepotenti, pode constituir entre as duas partes uma transação de
fato, não de direito. Enfim, é de advertir-se que, em certos casos, o
conteúdo do pretenso contrato pode ser de maneira a excluir por si
que o consenso tenha sido livre, e assim, válido.
Assim, quando se apresenta como conteúdo de um contrato a
alienação total, feita, por um dos contratantes, de tudo o que ele é e
tem, sem qualquer correspondência da outra parte, poderíamos
afirmar, a priori, sem receio de erro, que tal contrato, mesmo que
concluído, é nulo em face do direito. Mas Grócio, atento apenas em
estabelecer a obrigação de obediência dos súditos, atribuiu valor
absoluto ao pretendido fato do contrato social (que como tal
éinexistente). A hipótese contratualística não tem, pois, no seu
sistema, valor racional, mas representa apenas um expediente ou
uma fórmula fictícia para sanar e ratificar o que se encontra já
realizado.
A teoria de Grócio é, quiçá, mais fecunda quando se aplica
aos tratados internacionais. Ele quer introduzir a idéia do direito nas
73
GIORGIO DEL VECCHIO
relações entre os Estados, e demonstrar que os tratados concluídos
entre os Estados têm validade jurídica, são obrigatórios por direito
natural. Desenvolvendo esse conceito, Grócio promoveu o
desenvolvimento do direito internacional, em um tempo no qual a
sociedade dos Estados apenas se preparava para formar-se, depois da
decadência do poder medieval.
Além daquele princípio geral, Grócio propõe várias normas
especiais sobre o estado de paz e de guerra, preparando algumas
reformas nos usos dos beligerantes e formulando temperamentos
que, em parte, vieram a ser aceitos.
Segundo as regras do direito internacional, a guerra tomar -
seia quase um instituto jurídico, embora não perfeito, certamente. A
isso, na verdade, tendia o trabalho de Grócio. Em seu tratado, po
rém, ele vale-se sobretudo de exemplos históricos, de tal modo que
se transformou em uma exposição mais de fatos que de princípios.
A tendência moderna é no sentido de não reconhecer em
Grócio um grande valor especulativo. Mas é indubitável a
influência que ele teve em seu tempo, tanto que foi geralmente
proclamado o fundador do direito internacional (embora isto não
seja exato); e como tal foi considerado pelos estudiosos, e talvez
também pelos governos. Vico o chamou "o jurisconsulto do gênero
humano".
Entre as numerosas elaborações e discussões sobre a obra de
Grócio, recordemos o escrito do alemão Enrico Cocceji
(1644/1719), Grotius illustratus, que foi completado e publicado
(com notáveis acréscimos) por seu filho, Samuel Cocceji
(1679/1755). Pode-se ainda recordar a tradução francesa do De jure
belli ac pacis, acom
panhada de valiosas notas, de 1. Barbevrac (1674/1744), nascido na
França, professor em Losana e em Groninga), que traduziu e
comentou igualmente também a obra de Pufendorf.
Não faltaram a Grócio, mesmo em seu tempo, críticas e
oposições. Uma célebre polêmica desenvolveu-se a propósito da
liberdade dos mares, que Grócio (em vista dos interesses
holandeses) tinha defendido com a monografia intitulada Mare
liberum
(1609). Contra a tese de Grócio surgiram numerosos opositores,
especialmente na península ibérica e na Inglaterra.
74
..,.........-
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
Recordemos, entre os mais notáveis, o monge português,
professor na Espanha (em Valladoli), Serafino de Freitas (De justo
imperio Lusitanorum asiatico adversus Grotii Mare liberum, 1625)
e o inglês João Selden (1584/1654), Mare clausum, seu de dominio
ma ris, 1635). Com esta monografia, tomada famosa ao lado da de
Grócio, Selden propôs-se, antes de tudo, a demonstrar que, por
direito natural, o mar não é comum a todos os homens, e, assim,
pode ser objeto de domínio privado e político. Daí sustentou
particularmente os direitos do rei da Inglaterra sobre os mares que
circundam o Império Britânico.
Mais ainda que por esta dissertação, Selden merece menção
pela sua maior obra, De jure naturali et gentium juxta disciplinam
Ebraerum (1640), a qual representa uma singular tentativa de
construir um sistema de direito natural sobre as bases dos preceitos
divinos, que teriam sido revelados aos hebreus, e por meio deles a
outras nações (proibição da idolatria, da blasfêmia, do homicídio,
do adultério, do incesto, do furto, etc.).
A obra de Selden foi profundamente estudada e discutida por
Vico, ao lado das de Grócio e de Pufendorf, sendo justamente esses
autores estimados por ele "os três príncipes do direito natural das
gentes."
Hobbes
Um pensador cujo caráter filosófico é mais preciso e cuja
mente é mais aguda do que Grócio é o inglês Tomás Hobbes
(1588/1679), um dos mais importantes escritores de Filosofia do
direito. Suas obras principais são De cive (1642) e Leviathan
(1651).
Viveu em tempos turbulentos para a Inglaterra agitada por
lutas internas. É necessário ter isso presente para entender a
doutrina de Hobbes, o qual via a salvação do Estado somente em
um poder que fosse capaz de dominar com plena autoridade todas
as lutas e paixões individuais. É ele, por isso, um teórico do
absolutis
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GIORGIO DEL VECCHIO
mo, e o seu pensamento é, nesse sentido, bastante afim do de
Maquiavel e do de Bodin. As obras desses três autores
correspondem igualmente ao esforço, nem sempre satisfatório,
por formar ou consolidar a monarquia dos respectivos países.
As premissas filosóficas das quais se vale Hobbes para a
dedução de suas doutrinas políticas são: o homem não é
sociável por natureza: homo ad societatem non natura, sed
disciplina aptus
factus est ( = "o homem não é feito para a sociedade pela natureza,
mas pela disciplina"); o homem é naturalmente egoísta, busca
apenas o seu bem, é insensível ao bem dos outros; considera-se
governado somente por sua natureza, vive como se devesse
reconhecer inevitável uma guerra permanente entre todo indivíduo e
os seus semelhantes, razão pela qual cada um procura levar
vantagem com prejuízo dos outros (homo homini lupus = "o homem
é um lobo para o homem") 5.
A condição do homem, como era antes da insttituição dos governos,
e como seria se não existissem os governos é, portanto, uma gueITa de
todos contra todos (bellum omnium contra omnes). Nesse estado da
natureza o direito é individual e ilimitado; existe,então, um jus
omnium in omnia ( = "direito de todos contra tudo").
5 É digno de nota (se bem que não se advirta, de costume) que esta fórmula típica do sistema
hobbesiano deriva de um trecho de Plauto: Lupus est homo homini, non homo, quom, qualis
sit non novit = "o homem é lobo e não homem, para o homem, visto que o não conhece
como tal" - ASINARA, A. 11, século IV, v. 88). Podem-se recordar ainda as palavras de
Ovídio (que não se referem, porém, aos homens em geral, mas àqueles entre os quais
vivera): Vix sunt homines hoc nomine digni// Quamque lupi, saevae plusferitatis habent = "Poucos são os homens dignos deste nome; como lobos, têm mais de fera cruel" (Tristia, L.
V, Eleg. VII, v. 45/46). Desse trecho (não referido com exatidão) tirou argumento F. de
Vitória, escrevendo: 'Contra jus naturale est, ut homo hominem sine aliqua causa
adversetur. Non enim homini homo lupus est', ut ait Ovidius, 'sed homo' = "É contra o
direito natural que o homem hostilize o homem sem qualquer motivo. Pois o homem não é
lobo para o homem", como diz Ovídio, "mas homem" (Relectiones Theologicae, De lndis,
sect. m, 3" ed. Classics of lnternational Law, p. 259). A mesma frase, como termo de uma
antítese, vê-se em Erasmo de Rotterdam: Homo homini aut deus, aut lupus = "O homem ou é deus,
ou é lobo, para o homem" (Addagia, 1500). E depois em
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....
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
Hobbes afirma, porém, a conveniência de todo homem sair
desse estado de natureza, mísero e odioso, por causa dos perigos que
a contínua guerra leva consigo. Mas isso somente é possível
mediante um contrato, que tenha por conteúdo a renúncia de todos
àquela liberdade sem freios própria do estado de natureza. Tal
renúncia deve ser inteira, incondicionada, para que, de outra forma,
não recaia na anarquia primitiva, em poder do desenfreado egoísmo
individual. Por isso, todos os homens devem despojar-se de seu
direito originário e deferi-Io a um soberano, que imponha as leis e
defina o justo e o injusto, o lícito e o ilícito.
O Estado é, pois, uma criação artificial, uma máquina
onipotente, que tem um poder ilimitado sobre os indivíduos.
Nenhum cidadão pode alegar direito contra ele. O Estado, dotado de
autoridade absoluta, é necessário para impedir a guerra entre os
indivíduos. Hobbes realça o poder do Estado também perante a
Igreja, não admitindo que ela possa opor-se com seus preceitos aos
do Estado, nem que a paz pública possa ser perturbada por causas
religiosas.
Assim, tanto para Hobbes com para Grócio, o contrato social
é produto de um ordenamento pacífico. Mas, enquanto Grócio tinha
concebido o contrato como formado para o arbítrio, e até
indefinidamente mutável de acordo com as situações, Hobbes, ao
contrário, confere ao contrato um conteúdo fixo e determinado,
afirmando que ele não pode consistir em outra cousa se não na
subordinação incondicionada dos indivíduos a uma autoridade que
os represente, e concentre apenas em si todo o seu poder.
Owen: Homo homini lupus, homo homini deus = "O homem é lobo para o homem; o
homem é deus para o homem" (Epigrammata, 1606, m, 23); daí também em Bacon:
Justitiae debetur; quod homo monini sit Deus, non lupus (De dignitarte et augmentis scientiarum, 1623, L. VI, C. m, Exempla antith. XX). O outro termo da antítese (Homo
homini deus) tem, também, origem antiga, chegando a um provérbio grego (éiv'6púmoç
av'6po:m:oD Oatl-l°vwv = O homem é o demônio do homem); também escreveu Cecílio
Stazio: Homo homini deus est, si suum officium sciat = "O homem é um deus para o
homem, se sabe o seu ofício" (SIMMACO. Epistolae, IX, 114, 1; cf. OITO, A. Die Sprichworten und sprichwortlichen Redensarten der Romer. Leipzig, 1890, p. 109,201).
77
GIORGIO DEL VECCHIO
Enquanto, pois, para Grócio, uma renúncia total a todo direito
individual não é senão uma das infinitas espécies possíveis de
Contrato Social, para Hobbes aquela absoluta rendição é
conseqüência de uma razão objetiva que faz dela pressuposto
necessário e fundamental de qualquer constituição política.
Portanto, segundo Hobbes, a irrestrita submissão dos
indivíduos ao poder público, que é o objeto do contrato social,
mostra-se como vínculo indissolúvel, em qualquer sentido em que
manifeste o poder a sua atuação, isto é, mesmo quando ofenda, ao
invés de proteger a segurança e a paz dos súditos. Com este
entendimento, Hobbes apresenta-se como típico representante do
absolutismo.
a erro de Hobbes está na raiz, e consiste na limitação
arbitrária da natureza humana ao egoísmo. Ora, os estudos
modernos demonstram sempre mais claramente que o altruísmo é
tão natural quanto o egoísmo; que, além do instinto de conservação
própria, está, também, radicado em todo ser vivente, aquele de
conservação da espécie e da compaixão pelos outros; mostram que a
vida social, com todas as suas exigências, isto é, com as limitações
que impõe aos indivíduos, é a primeira condição necessária para que
o homem possa existir.
a homem leva, arraigado consigo, o instinto social. Também
em épocas primitivas, e entre os povos selvagens, não mais
encontramos nunca um estado de guerra entre indivíduo e indivíduo
(como supõe Hobbes), mas dominam sempre, ao menos em uma
certa esfera, os sentimentos sociais (a guerra existe só entre grupos).
Até os animais têm instintos sociais (como foi observado por
Darwin), sem os quais a espécie se extinguiria.
No aspecto juódico-político, a objeção fundamental, que pode
ser feita ao sistema de Hobbes, é que ele tende a satisfazer a uma só
exigência: a exigência da ordem, da tranquilidade; sacrifica a esta,
inteiramente, a liberdade.
Nós, ao contrário, damos valor à tranqüilidade porque nos
permite desenvolver, numa certa medida, a liberdade. Rousseau, ar
78
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HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
gutamente, observava a propósito, que se vive tranqüilo também nas
prisões (on vive tranquille aussi dans les cachots). Por temor da
licença, ou da anarquia, Hobbes suprimiu de todo a liberdade; donde
se poderia igualar o seu sistema a um contrato de garantia, no qual o
prêmio fosse superior ao valor da coisa assegurada.
As doutrinas de Hobbes, especialmente no campo da moral,
foram combatidas na própria Inglaterra, por Locke, do qual fa
laremos dentro em pouco, por R. Cumberland (1631/1718), na obra
De legibus naturae, 1672, e ainda por A. Shaftesbury (1671/1713), em Inquiry conceming virtue, 1699, etc., e por outros.
Espinosa
Um pensador que teve muita afinidade com Hobbes é
Benedito Espinosa, holandês (1632/1677). Suas obras que
concernem àFilosofia do direito são o Tratactus theologico-politicus
(1670) e a Ethica (1677), além do Tractatus politicus, que ficou
incompleto.
A importância de Espinosa é mais para a Filosofia geral do
que para a Filosofia do direito. Seu sistema funda-se no conceito de
um monismo absoluto (exerceu depois notável influência sobre
Schelling e sobre Hegel).
Espinosa sustenta que só existe uma substância, que chama
Deus sive natura (= "Deus ou a natureza"). Tudo o que acontece no
mundo é expressão dessa substância e é absolutamente perfeito. Mas
ta, então, todas as diferenças de avaliação ou de opinião. O que para
nós é imperfeito apenas é determinado ex necessitate divinae
naturae, e é mesmo perfeito na ordem da natureza.
Coerentemente com esse pensamento, Espinosa busca
identificar o direito natural com o poder físico e se aproxima, nesse
ponto, de Hobbes. Nada pode existir nada abolutamente injusto no
mundo; na ordem natural, tudo o que é querido e possível é também
justo (sub solo naturae imperio injuria non potest concipi = "sob o exclusivo império da natureza, a injúria não pode ser concebida").
79
GIORGIO DEL VECCHIO
É fácil observar que, sendo identificado o direito natural
com a potência e a necessidade física, tal identificação
equivale à pura e simples negação daquele direito.
A total elisão dos valores jurídicos, a ausência de todo
critério e de toda regra de agir, tem como conseqüência a
redução do ser humano ao conceito de necessidade universal.
Para reencontrar o princípio da vontade jurídica,
Espinosa deve supor que em certo ponto ocorra a cessação do
status naturalis, pelo acordo recíproco entre os homens de agir
ex solo rationis dictamine (= "pelo só ditame da razão").
Essa transição (do estado da natureza para o estado
jurídico) ocorreu pela força da causa fundamental do ânimo
humano, que é a conservação de si mesmo (Conatus proprium
esse conservandi = "ser próprio do instinto de conservar-se").
Para obviar o perigo nascente do uso ilimitado da força
de cada um, os homens concordaram em viver apenas de
acordo com a razão, respeitando-se reciprocamente, e deram,
assim, origem ao Estado, ou seja, a um poder unitário, árbitro
dos direitos de todos.
Mas pode-se perguntar: qual será o valor de tal acordo e
como poderá ele constituir uma obrigação, se os homens estão
sempre determinados pela natureza a agir como agem, de
acordo sempre com o seu maior interesse?
Essa dificuldade foi divisada por Espinosa, que cria
superáIa subordinando o valor do hipotético pacto à vantagem
que cada um tenha visto nele; admitiu, também, depois,
explicitatmente, o
direito que cada um teria de rompê-Io sempre que isso lhe
parecesse útil.
Tal reserva, se salva a lógica do sistema, retira, porém,
do suposto acordo toda a sua consistência, tomando-o mais que
caduco, irrisório.
Retirada a validade objetiva do pacto, cai, também, o
edifício jurídico que deveria fundar-se sobre ele, e o direito
reduz-se,
80
, ..--
.......
HISTÓRIA J!>A FILOSOFIA DO DIREITO
então, a relações de mero fato, a estipula5:ões arbitrárias,
delimitadas tão-só pela força de cada um.
Segundo suas premissas, Espinosa sustenta que o Estado
domina os cidadãos porque é mais forte, e a sua autoridade só é
legítima enquanto tem força para fazer-se valer.
Disso deduz Espinosa uma conseqüência importante: o
Estado não pode impor limites à cbnsciência, ao pensamento, e isso,
não por impossibilidade jurídica ou racional, mas material, porque o
pensamento é, de sua natureza, incoercível; tem-se, então, liberdade,
pela impossibilidade de violá-Ia.
Esta fundamentação da liberdade de pensamento é
insuficiente (embora tenha importância histórica como tentativa).
Basta observar que, se aquela liberdade fosse materialmente
inviolável, a sua reivindicação contra as seculares opressões teria
sido supérflua. Se o pensamento não é atingível em si mesmo, pode-
se, contudo, compeli-Io em suas manifestações, no seu substrato de
ordem física, e na própria vida do sujeito pensante.
Em todo caso, Espinosa tem o mérito de ter insistido sobre os
limites naturais do poder do Estado, preparando a distinção entre
moral e direito, que devia ser afirmada pouco depois por
Thomasius.
Pufendorf
Saímos, agora, do âmbito dos sistemas que identificam
em um mesmo conceito o direito e a força.
Entre aqueles que, contra as doutrinas de Hobbes e de
Espinosa, mantinham o princípio da sociabilidade do homem,
é de ser lembrado Samuel Pufendorf, alemão (1632/1694),
professor, em 1661, em Heidelberg (onde foi instituída por ele
a prirneira cadeira de direito natural e das gentes), de lá, na
Universidade sueca de Lund.
81
GIORGIO DEL VECCHIO
É um dos mais célebres escritores da escola do direito
natural; todavia, não se pode dizer que lhe tenha levado uma
contribuição de grande originalidade.
Suas obras: Elementajurisprudentiae universalis (1660), De
jure naturae et gentium (1672), De officio hominis et civis (1673),
das quais a primeira constitui uma introdução, a segunda um
completo sistema, e a terceira, um compêndio do mesmo, não
modificando substancialmente os princípios antes neles
estabelecidos, mas representando, de ceto modo, a fusão das teorias
de Grócio e de Hobbes.
O homem é levado a associar-se por instinto social (analogia
com Grócio), mas esse instinto é considerado como derivação do
interesse (analogia com Hobbes). O fim do Estado é a pax et
securitas communis (= "a paz e a segurança comum")
Pufendorf desenvolve longamente a teoria do estado da na
tureza (isto é, anterior à convivência política), no qual todos os
homens eram livres e iguais. Todavia, não havendo nenhuma
garantia para seus direitos, estando expostos a vexames, deviam
submeterse a um soberano, constituir o Estado.
Também aqui se encontra a mesma confusão no conceito de
estado da natureza, pelo qual se entende: a) uma sociedade, um
período histórico anterior àquele da existência do Estado; b) uma
idéia do que seria a condição do homem sem o Estado.
No primeiro sentido, tem-se uma narração histórica
insustentável; no segundo, um princípio hipotético, racional. Ainda
nesse segundo significado, a idéia do estado da natureza pode ser
acolhi
da como expediente dialético porque nos permite clarear as razões
que tomam necessário o ordenamento social.
Mas todos os escritores jusnaturalistas (entre eles Pufendort)
oscilam entre os dois diferentes significados, e isso toma falhas e
facilmente refutáveis suas doutrinas, não obstante a parte de
verdade que encerram.
82
,....
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
Os jusnaturalistas seguem um método ambíguo, e porisso
imperfeito: dão forma de narrativa histórica aos postulados ideais, e
não ousam afirmar esses postulados sem buscar alguma comparação
histórica. Também eles são semi-idealistas, e, podemos dizer ainda,
pseudohistóricos.
Com Pufendorf a Escola do direito natural apresenta-se em
forma típica, com um dos sistemas mais completos e elaborados.
Pufendorf antes de tudo confirma a distinção entre o direito e a
teologia; além disso, distingue o direito natural do direito positivo,
estabelecendo uma clara antítese entre eles. O primeiro tem a
supremacia: existe antes do Estado, conserva sempre o seu império;
e o direito positivo deve com ele conformar-se. O direito natural
oferece as normas diretivas da legislação.
Pufendorf distingue, ainda (coerentemente, aliás), os direitos
congênitos, dos direitos adquiridos. Aqueles são próprios do homem
isolado, antes de tomar-se "sócio", isto é, antes de pertencer a
alguma associação; estes são os direitos que se agregam ao homem
enquanto partilha uma sociedade (a fanu1ia, o Estado). Nessa
concepção, é característica a prevalência ajustada dos direitos sobre
os deveres. Esse caráter é comum a toda escola do direito natural
(até todo o século XVIII).
Como dissemos, Pufendorf não mostra muita originalidade no
seu sistema, e alguém fez dele um juízo severo (Leibnitz, por
exemplo, disse: Vir parum jurisconsultus et minime philosophus (=
"homem que era pouco jurisconsulto e minimamente filósofo").
Pufendorf é, porém, claro e distendido em suas deduções; e
foi lido também por seu ecletismo, e dominou nas escolas, por
muito tempo. Acham-se de certo modo resumidas, em suas obras,
quase todas as doutrinas que constituem o patrimônio da escola do
direito natural.
83
GIORGIO DEL VECCHIO
Locke e outros escritores ingleses
Na Inglaterra, especialmente até o fim do século XVI e
durante todo o seguinte, apareceram manifestações importantes do
pensamento político. Tais manifestações não tiveram, porém, em
geral, caráter puramente especulativo, mas objetivos determinados,
com referência às condições e aos problemas do tempo. Das
disputas teológicas traça a origem o tratado Ofthe laws of
ecclesiastical polity, de Ricardo Hooker (1554/1600), cujos
primeiros livros foram publicados em tomo de 1594. Nessa obra,
Hooker procura definir as relações entre o Estado e a Igreja,
atribuindo ao Rei da Inglaterra o poder supremo em matéria
eclesiástica.
Para chegar a essa conclusão, parte de uma análise das leis
em geral, análise conduzida com método escolástico, mas onde
afIoram, todavia, idéias modernas. Assim, afirma que pela lei
natural, conforme a vontade divina, o poder político funda-se no
consenso de toda a sociedade, porque nenhum homem tem, pela
natureza, o poder de comandar uma multidão de homens; se falta o
consenso, o poder é ilegítimo. Esta referência contratualística foi
depois retomada e desenvolvida por Locke.
No século XVII, aconteceu a grande revolução inglesa
(1688), pela qual se afirmaram e se consolidaram os direitos do
povo e do Parlamento perante a Coroa. Deste modo, vem-se
formando, por meio de múltiplas lutas, aquela constituição política,
que serviu depois de modelo às da Europa continental.
Os estudos dos autores ingleses desse tempo foram
geralmente conexos com o movimento histórico, talvez inspirados
por eles, talvez inspiradores deles. Hobbes, do qual falamos,
representa a tendência absolutística; do mesmo modo Roberto
Filmer (1610/1688), autor do Patriarcha (1680). Milton, Sydney e
Locke representam, ao contrário, a corrente liberal.
João Milton (1608/1674), escritor político, além de poeta, é
autor da Pro populo anglicano defensio (1651). Esse escrito é
84
"........-
..
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
uma resposta ao humanista francês Claudio Saumaise (Salmasio),
que tinha defendido o Rei Carlos I, condenado à morte e
decapitado em 1649, depois de longas lutas com o Parlamento
(Defensio regia pro Carolo I, 1649). Milton sustenta a liberdade de
consci
ência e a liberdade de imprensa, e justifica a morte do tirano. A
polêmica entre os dois escritores desenvolve-se ainda com sucessivas
réplicas.
Algernon Sidney (1621/1683) é autor dos Discorsi sul
governo, publicados em 1698, alguns anos após a sua morte,
ocorrida no patíbulo. Nesses discursos ele defende a soberania
popular, e refuta Filmer, que tinha sustentado, no Patriarcha, a tese
segundo a qual o poder político derivaria de Adão, isto é, teria sua
origem no poder paterno, e teria sido transmitido ao rei por
herança. Essa absurda tese foi depois refutada também por Locke, e
a ela referiu-se ironicamente Rousseau no princípio do Contrat
social. Sidney merece ser recordado, também como pensador e
mártir de suas idéias, também como um dos inspiradores de
Rousseau.
João Locke (1632/1704), que personifica de modo conspícuo
a tendência democrática e liberal oposta à absolutista de Hobbes, é
o escritor mais importante, pois nele se direciona ao senso racional
toda a doutrina do estado de natureza e do contrato social.
Locke difere de Hobbes no espírito e nas conclusões. Se
Hobbes tinha-se valido das hipóteses do estado de natureza e do
conseqüente pacto social, para fundamentar o absolutismo do
Príncipe, Locke vale-se das mesmas hipóteses para demonstrar os
limites jurídicos do poder soberano. Com os seus Dois tratados
sobre o governo (Two treatises of government, 1690), Locke
retoma a revolução inglesa, como mais tarde Rousseau, com seus
escritos análogos, anuncia e prepara a Revolução Francesa.
Locke tem grande importância também na Filosofia geral,
especialmente por intermédio da teoria do conhecimento, que ele
tratou, por primeiro, propositadamente.
85
GIORGIO DEL VECCHIO
No Ensaio sobre o intelecto humano (Essay conceming
human understanding, 1690), sustenta que o conhecimento
advém da sensação e da reflexão (elaboração dos dados
sensitivos): estes seriam os dois únicos poderes cognoscitivos
(Nihil est in intellectu quod prius non fuerit in sensu (= "Nada
existe no intelecto que não esteja antes no sentido").
A teoria de Locke opõe-se especialmente à doutrina das
idéias congênitas.
Em suas obras políticas, Locke dá uma justificativa
teórica do que se vinha realizando então na Inglaterra. Contra
o ensinamento de Hobbes, sustenta, antes de tudo, que o
homem é naturalmente sociável, não existe estado de natureza
sem sociedade; ao contrário, para o homem o estado de
natureza é exatamente a sociedade. Aquele estado de bellum
omnium contra omnes (= "guerra de todos contra todos"), que
Hobbes tinha fantasiado, é contrário à realidade. No estado de
natureza, qual concebido por Locke, o homem temjá certos
direitos, por exemplo, o direito à liberdade pessoal e o direito
ao trabalho, conseqüentemente à propriedade (que para Locke
funda-se, precisamente, no trabalho).
O que falta é a autoridade que possa garantir estes
direitos. Para assegurar-se tal garantia, isto é, para organizar-
se politicamente, os indivíduos devem renunciar a uma parte
dos seus direitos naturais, consentir em certas limitações; a
isso chega por meio de contrato. Mas aquele que é investido
da autoridade pública
não pode valer-se dela ao seu alvedrio, porque a própria
autoridade lhe é confiada para a tutela dos direitos de cada
um. Se dela abusa, viola o contrato, e o povo retoma, ipso
facto, a sua soberania originária.
O vínculo de obediência dos súditos é, em suma,
subordinado à observância do contrato social por parte dos
govemantes. O espírito da teoria contratualística de Locke
(como, depois, da teoria de Rousseau) está seguro no conceito
de reciprocidade ou bilateralidade da obrigação política.
86
.,..........
......
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
O Estado, para Locke, não é, pois, uma negação, mas uma
reafirmação, sob certos limites, da liberdade natural, que encontra
nele a sua garantia. Os indivíduos sacrificam apenas aquele tanto de
direito e de liberdade, que toma possível a formação do Estado
como órgão superior de tutela.
Assim, embora para Locke o contrato social seja ainda
apresentado como um fato ou evento histórico, esse fato é, por
assim dizer, racionalizado. Aparentemente, o método não difere
daquele de Grócio e de Hobbes: para demonstrar que a atividade do
Estado deve informar-se de certos princípios, não se deixa de
fundamentálos na pura razão, mas se quer descobri -los no
momento de origem do Estado, e apresentá-los como resultado
dessa origem.
O problema da formação histórica do Estado confunde-se,
assim, com aquele do ideal que o Estado deve buscar. A concepção,
que tem em Locke um dos seus maiores representantes e que
já muito antes (como vimos) tinha começado a fazer-se valer,
manifesta de modo típico o esforço para elevar o fato à dignidade de
princípio, ou, mais propriamente, de dar forma de evento empírico
ao que é exigido pela razão.
Com certeza, o contrato social é descrito por Locke como um
fato; porém, como o mais racional dos fatos. Os homens não se
supõem ignorantes ao se reunirem sob um regime político para certa
necessidade exterior que os aflija, nem as diferenças e os perigos do
estado de natureza são imaginados tais que cheguem a tolher a sua
possibilidade de detectar condições ou de fixar limites à autoridade,
à qual se submetem.
A submissão ao poder público não é, então, incondicionada,
e suas condições são representadas precisamente por aquelas
exigências fundamentais, para cuja satisfação todo indivíduo
entrou em regime de convivência política. As próprias exigências
permanecem, porém os fundamentos irremovíveis desse regime.
O atribuir ao consenso dos cidadãos a instituição do poder
público abre espaço, antes de tudo, à tese de que aquela mesma
87
GIORGIO DEL VECCHIO
vontade, por intermédio da qual foi uma vez instituído tal poder,
conserve um predomínio sobre este, e possa, em qualquer tempo,
revogá-Io ou modificar-lhe o ordenamento.
A vontade popular afirma-se, assim, como soberana em geral,
e a legitimidade de um governo é medida pelo consenso popular.
De outro lado, a hipótese de que os indivíduos tenham
fundado o Estado com um ato de vontade, para buscar nele certos
fins determinados, serve de argumento para sustentar que o poder
público esteja ligado ao cumprimento desses fins, e não possa
exercitar-se além ou contra eles. A hipótese do contrato social
assume, assim, caráter de norma ideal. O Estado não é mais mera
expressão de poder, de arbítrio, mas deve, necessariamente, por sua
natureza, estar voltado para garantir os direitos individuais.
Locke tem o mérito de ter determinado a sua doutrina
também nas questões particulares, isto é, de ter construído um
verdadeiro sistema constitucional. Ele traça a doutrina da divisão
dos poderes, que depois será reelaborada por Montesquieu, e expõe
os direitos do povo como unidade e dos cidadãos como indivíduos.
É o maior precursor de Rousseau, o qual declarou expressamente
que Locke tinha tratado do contrato social "segundo os seus próprios
princípios".
Assim, aquela direção, que se tinha iniciado com Marsílio de
Pádua e com os monarcômacos, a cujo respeito as doutrinas de
Hobbes e dos outros absolutistas representam em parte um desvio,
encontra sua síntese e explicação racional em João Locke.
Recordemos, ainda, que Locke fez-se propugnador da
tolerância religiosa, derivando tal conceito da separação entre o
Estado e a Igreja.
De menor importância para a Filosofia do direito é a obra,
sob outros pontos assaz relevante, de David Hume (1711/1776),
que teve, como veremos, certa influência sobre o pensamento de
Kan t.
88
,....
..
.
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
Dentre seus escritos recordemos: A treatise on human nature
(1739/1740); o terceiro livro dessa obra foi relaborado mais tarde
com o título: Enquiry conceming the principIes ofmorals, 1751);
Essays moral, political and literary (1741/1742).
As teorias de Hume denotam certa inclinação para o
ceticismo, sem incorrer, porém, nos extremos dessa doutrina, e se
distinguem pela fineza de certas análises.
A seu ver, ajustiça não deriva de um sentimento originário,
mas da reflexão e da estimativa de sua utilidade. Todavia, Hume
rejeita as doutrinas de Hobbes e admite que a sociedade tem um
fundamento natural na alma humana.
Às doutrinas de Hume opõe-se especialmente a chamada
escola escocesa, que teve por mentor Tomás Reid (1710/1796:
Inquiry into the human mind on the principIes of common sense,
1764, etc.). Assinale-se que escocês era também Hume.
Essa escola sustenta o valor da verdade atestada pela
consciência comum (principIes of common sense), tanto no campo
teórico quanto no campo ético. Pode-se notar que tal atitude
corresponde, no máximo, àquela manifestada por Cícero contra os
céticos do seu tempo.
A escola escocesa recebeu, porém, subsídios de notável
amplitude, também por obra de outros pensadores, como D.
Steward, J. Mackintosch, etc.6
Leibniz, Tomásio e Wolff
Leibniz - Com Goffredo Guilherme Leibniz
(1646/1716) pode-se dizer que tem início o florescimento da
filosofia alemã. Leibniz foi um pensador vigoroso, que
aplicou sua vasta inteligência a todos os problemas da
Filosofia. Porque se referiu à teoria do
6 Mencionaremos, mais adiante, alguns escritores ingleses também desse período, em
relação a temas particulares, além daqueles da época seguinte.
89
GIORGIO DEL VECCHIO
conhecimento, de foi antagonista de Locke, e contra a sua doutrina
escreveu (em francês) os Nouveaux essais sur l' entendement
humain (1704). Locke tinha combatido, como vimos, a doutrina das
idéias inatas, afirmando que o conhecimento existe só por meio da
sensação e em seguida, funda-se na experiência. Leibniz não
aceita o princípio Nihil est in intellectu, quod non fuerit in sensu, e
sustenta contra o sensismo a existência de atitudes originais do
intelecto; chega, porém, à fórmula "Exclua, salvo o próprio
intelecto" (Excipe: nisi ipse intellectus), o qual tem suas formas
próprias, onde brotam certas idéias (as verdades necessárias), que
não poderiam derivar da experiência.
Em sua obra principal, a Monadologia, Leibniz tenta uma
contemplação cosmológica e afIrma a harmonia preestabelecida do
universo. Em tudo isso há uma razão, e tudo é bom (o mundo
existente é "o melhor dos mundos possíveis", o que, como
observado
por um pessimista, não prova ainda que ele seja bom).
Em outro lugar propõe-se a resolver vários problemas que
derivam de seus princípios fIlosófIcos. Por exemplo, na Teodicéia,
examina como se possa conciliar a presença de um ser divino,
onipotente e benéfico, com os males e as dores da vida; tenta,
também, a justifIcação da divindade.
Deixando de ocupar-nos desses problemas e da obra de
Leibniz, que pertence à FilosofIa geral, apenas nos ateremos àquela
parte que se refere à nossa matéria.
Leibniz foi também jurista e escreveu sobre a jurisprudência
um pequeno livro, em idade ainda muito jovem, visando ampliarlhe
o campo e a melhorar-lhe o método (Nova methodus discendae
docendaeque jurisprudentiae (= "Novo método de aprender e de
ensinar a jurisprudência", 1667).
Nessa obra, Leibniz propõe, entre outras, uma pesquisa do
direito comparado, recolhendo as leis de todos os povos da terra.
Além disso, tentou (cf. o prefácio do Codex juris gentium
diplomaticus, 1693) uma classifIcação da FilosofIa prática, ou seja,
90
~
...
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
das normas do agir, onde se inclina mais a alargar o campo do
direito, que a restringí-Io.
A moral é considerada quase como um direito mais amplo.
Leibniz distingue três graus do bem, consoante o bem diga respeito
a Deus, à humanidade ou ao Estado. O primeiro grau constitui a
probitas ou a pie tas; o segundo, a aequitas, e o terceiro, o jus ou o
jus strictum.
Evocando conceitos aristotélicos, Leibniz denomina essas
divisões de mundo ético:justitia universalis,justitia distributiva
ejustitia commutativa. A isso corresponderiam, ainda,
respectivamente, os três preceitos do Direito romano (Honeste
vivere, suum cuique tribuere, neminem laedere = "Viver
honestamente, dar a cada um o que é seu, e não lesar a ninguém").
Em toda essa grandiosa doutrina se busca, porém embalde,
uma nítida distinção do direito, da Moral, e da Teologia; antes,
renova-se entre esses termos uma confusão, que outros autores (por
exemplo Pufendorf, contra o qual Leibniz polemiza) tinham já
tentado superar. Em outra parte, o direito é defInido por Leibniz
como potentia moralis, em contraposição ao dever, defInido como
necessitas moralis.
É, porém, notável que Leibniz reconheça que o direito (em
sentido estrito) seja concebível, anunciando, assim, um conceito,
que deveria assumir, depois, grande relevo.
Tomásio - O mérito de ter tentado o problema da distinção entre o
direito e a moral com propósitos sistemáticos pertence a Cristiano
Tomásio (1655/1728), mesmo que os elementos da sua doutrina
possam encontrar-se em escritores anteriores, por exem~ pIo, em
Marsílio de Pádua, e até, em parte, em Aristóteles.
Tomásio tem importância notável na história da cultura,
como representante do Iluminismo (Aufkliirung), isto é, daquele
movimento que tendia a divulgar a ciência, com o objetivo de que o
povo dela tirasse proveito, e a sociedade tirasse proveito da
libertação dos preconceitos.
91
GIORGIO DEL VECCHIO
Tomásio levou a Filosofia a fins práticos segundo o espírito
do Iluminismo (Aufkliirung). Em seus escritos e em suas lições (nas
quais a língua alemã substituiu a latina, até então predominante)
combateu o método escolástico silogístico, aplicou-se em separar a
ciência, da Teologia, e defendeu a liberdade da ciência com tal
ardor, ao ponto de semear inimizades e perseguições, e de deixar sua
cidade natal, Lipsia, e refugiar-se em Halle, onde ajudou a fundar a
Universidade, na qual foi mestre.
De início, na sua obra lnstitutiones jurisprudentiae divinae
(1688), seguiu as idéias de Pufendorf. Em 1705, publicou outra
obra, Fundamenta juris naturae et gentium, onde o problema da
separação do direito, da moral, é diretamente atacado e tratado com
critérios rigorosos.
O objetivo de Tomásio era principalmente político: propunha-
se traçar os limites da autoridade legítima do Estado, reivindicando
a liberdade de consciência individual, arbitrariamente violada pela
coerção jurídica. Combateu a tortura, os processos contra as bruxas
e os heréticos, propugnou pela liberdade religiosa e de consciência,
e a este propósito conduziu seus ensinamentos; quis dar uma
demonstração científica dos ideais pelos quais lutava na
prática, e assim esclarecer que existem campos nos quais a
ingerência do Estado não pode ter lugar.
Tomásio distingue as normas do agir e as ciências
correspondentes em três espécies: a Ética, a Política, a
Jurisprudência. Essas três disciplinas têm, todas, embora distintas,
um fim único, a felicidade ifacienda esse quae vitam hominum
reddunt et maxime diuturnam et felicissimam, et vitanda quae
vitam reddunt infelicem et mortem accelerant (= "devem ser feitas
aquelas coisas que tomam, ao máximo, a vida dos homens
constante e felicíssima, e devem ser evitadas as que a tornam
infeliz, e apressam a morte").
Nisso, como se vê, Tomásio não tem idéias muito elevadas
nem originais. Mais importante, porém, é a repartição das normas
92
,...
...
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
tendentes a esse último fim. A ética tem por princípio o honestum; a
política, o decorum; o direito, o justum.
O preceito fundamental do honestum, e mesmo da ética, é:
Quod vis, ut alii sibi faciant, tute tibi fácies, isto é, "Farás tu mesmo
a ti o que queres que os outros façam a si". Então, deve-se querer
não como indivíduo, mas como se fosse outro homem. É um
processo de generalização e de purificação da vontade (como uma
forma antecipada e um pouco grosseira do imperativo categórico de
Kant). O preceito do decoro é: "Faze aos outros aquilo que queres
que os outros façam a ti"(Quod vis ut alii tibifaciant, tu ipsisfacies);
é um preceito prático de conveniência ou utilidade. Enfim, o justo
(justum) exprime-se com a máxima (já enunciada nos textos
bíblicos, e também de Confúcio) : Não fazer aos outros o que não
querias fosse feito a ti. Conceito negativo. Enquanto a moral e a
política querem se favorecer, operar positivamente, o direito
prescreveria apenas: não prejudicar.
Não obstante a tricotomia, a antítese principal é aquela
estabelecida entre a ética (ou moral) e o direito.
O pensamento de Tomásio é, em substância, este: a ética
referese exclusivamente à consciência do sujeito, tende a procurar a
paz interna. O direito, ao contrário, regula as relações com os
outros, em seguida estabelece um regime de coexistência e tem
como princípio fundamental a obrigação de não ofender aos outros.
Por isso Tomásio traz como conseqüência que os deveres
morais referem-se somente à intenção, ao foro interno; enquanto o
direitopois que tende à paz externa - concerne apenas à
exterioridade das ações iforum extemum), visando impedir os
conflitos que podem nascer da convivência. Daí seguiria, ainda
segundo Tomásio, que os deveres jurídicos podem fazer-se valer
com a força.
Tudo quanto se desenvolve no âmbito da consciência é
incoercível, porque ninguém pode usar violência em si mesmo.
Não existem também deveres jurídicos para si, nem com res
peito a ações internas. Nesse campo domina só a legislação moral.
93
GIORGIO DEL VECCHIO
Portanto, o Estado, que é o órgão do direito, não pode penetrar nas
consciências nem impor alguma crença determinada. Ao contrário,
os deveres jurídicos são coercíveis, porque a coerção é possível com
respeito aos outros, quando se trate de ações externas. Tomásio
chama deveres perfeitos os jurídicos; imperfeitos os morais, porque
não coercíveis.
Temos, portanto, nesses elementos, quase todos os caracteres
diferenciais do direito e da moral, como foram depois expostos por
outros escritores (Kant não fez a não ser repeti-Ios, em substância).
Isso, porém, não significa que tais princípios, como formulados por
Tomásio, sejam em tudo exatos.
Não cremos aceitável, antes de tudo, a distinção absoluta en
tre as ações internas e as externas, porque todas as ações são a um
mesmo tempo internas e externas, isto é, têm um elemento psíquico e
um físico. Não se pode, porém, admitir que as ações internas sejam
reguladas apenas pela moral e as externas, tão-só pelo direito.
O que é verdade é que o direito e a moral são, ambos,
normas universais, que compreendem todas as ações. Assim, a
moral começa a considerar o momento interno da ação, mas
termina considerando também o seu momento externo.
O direito, ao contrário, desenvolve-se, primeiramente, no
aspecto físico ou externo das ações, mas depois remonta à intenção,
ao momento psíquico ou interno, o qual tem, todavia, grande
importância no campo do direito (o direito não é um ordenamento
puramente mecânico das ações).
É real o princípio da coercibilidade do direito; mas isso se
deduz por outra via, partindo do conceito da bilateralidade, que é
essencial ao direito. Nem é próprio chamar os deveres morais
imperfeitos porque incoercíveis; a coercibilidade é só uma forma
de sanção Plli'iicular do direito.
Mas também os deveres morais têm uma sanção - a da
consciência e da opinião pública - e são, por isso, perfeitos por si
mesmos.
94
,...
li
..
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
Wolff - Cristiano Wolff (Wolf, Wolfius; 1679/1754) é o
mais célebre dos discípulos de Leibniz. Escreveu numerosos
volumes de caráter enciclopédico, desenvolvendo e vulgarizando a
Filosofia do mestre, que mantém, na Alemanha, o predomínio, até
a chegada da crítica de Kant, que iniciou uma nova era. Wolff
escreveu, dentre outros, uma obra em oito volumes, Jus naturae
methodo scientifica pertractatum (= "Direito natural tratado pelo
método científico", 1740/1748), que é um dos mais vastos e
complexos sistemas da nossa disciplina. Nele predomina, porém, o
caráter escolástico e dogmático, contra o qual devia voltar-se a
crítica kantiana.
O princípio fundamental da Filosofia prática (isto é da moral
e do direito) é para Wolf a idéia do perfeccionismo: o homem tem
o dever de aperfeiçoar-se e de promover o aperfeiçoamento dos
outros. E esse dever é também um direito. Acolhendo os princípios
de Leibniz (que entendia o direito como potencia moralis e o dever
como necessitas moralis), Wolff afirma que o direito não ésenão a
faculdade de cumprir o próprio dever; enquanto o direito permite, a
moral, ao contrário, ordena.
O direito é lex permissiva; a moral é lex praeceptiva. Mas
essa doutrina oferece flanco à crítica, porque tende a confundir
dever moral e dever jurídico; muitas coisas são permitidas pelo
direito, as quais a moral veta. Não se pode, por isso, fazer coincidir
o lícito jurídico com a obrigação moral. De outra parte, o direito
tem
também natureza imperativa, e não simplesmente permissiva. A
verdadeira distinção entre o direito e a moral foi negligenciada por
Wolff, como já tinha sido já por Leibniz.
No seu amplo tratado, Wolff segue, de resto, as doutrinas
tradicionais da Filosofia do direito: a sociabilidade do homem, o
contrato social, etc. Distingüe entre direitos inatos (do estado
natural) e direitos hipotéticos ou adquiridos (do estado sodal). Os
direitos inatos correspondem aos deveres universais, que o homem
tem em razão da sua própria natureza.
95
GIORGIO DEL VECCHIO
É característica de Wolff o abuso da dialética e do
método racional. Com esse método (continuo ratiocinationis filo = "sempre com a tessitura do raciocínio"*). Wolff presume
deduzir a priori também os dados empíricos, ou seja, aqueles
conhecimentos que podemos recolher da observação dos fatos,
da experiência. Chega, portanto, um pouco tarde uma reação
contra o racionalismo, que, com mais justiça, deveria ter-se
dirigido contra os abusos ou as deficiências do mesmo.7
Vico e Montesquieu
Como vimos, os escritores até agora examinados
discutem principalmente o problema do fundamento racional
do direito. Eles negligenciam, todavia, o problema histórico,
genético; não se ocupam do direito como fenômeno histórico e
positivo, mas apenas como idéia e princípio especulativo;
consideram o que o direito deve ser, de preferência, ao que é.
O problema histórico toma-se predominante só no início
do século XIX e o acompanha ainda uma revolução em todas
as doutrinas da Filosofia do direito. No fim do século XVIII,
porém, al
* N. T. - Assim como na tessitura se vai de maneira lenta e contínua até chegar ao
objeto tecido, de maneira igualmente lenta e contínua labora o raciocínio, até que
se
chegue ao pensamento, à idéia.
7 Em razão do caráter sumário desta exposição histórica, deixamos de nos deter a respeito autores de menor importância, especialmente os numerosos jusnaturalistas que nos
séculos XVII e XVIII se ativeram, mais ou menos estritamente, às doutrinas de Grócio, de
Pufendorf, etc. Entre eles (além de Barbeyrac, que já tivemos ocasião de mencionar), recordemos, por exemplo, Burlamaqui (nascido em Genebra em 1694 e morto em 1748), de
família oriunda da Itália (Burlamachi ou Burlamacchi,
de Lucca), emigrada em razão de confrontos religiosos. Suas obras (Principes de droit naturel. 1747; Principes du droit politique, 1751, etc.) tiveram numerosas edições,
quase todas póstumas, também em italiano e em outras línguas. Lembramos ainda a obra do
alemão J. G. Heineccius (1681/1741), Elementajuris naturae et gentium (= Elementos de direito natural e das gentes, 5. ed., 1735, 1768, que teve, também,
várias versões italianas).
96
..,......
.....
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
guns escritores, dois sobretudo, antecipam, em certo modo, a
visão desse problema: Vico e Montesquieu.
Giovanni Baptista Vico, napolitano (1668/1744),
escreveu várias obras, dentre as quais especialmente
importantes são: um tratado latino, De universi juris uno
principio et fine uno (1720), e Principi di una scienza nuova
intorno alia comune natura delie nazioni (1725; outras duas
edições di versas dessa obra capital vêm publicadas em 1730 e
1744, a última saiu poucos meses depois da morte do autor).
A mente de Vico é vasta e genial, mas o seu tratado é
muito confuso. Em meio a tesouros de doutrina, a grandes e
profundas verdades, existem também muitos erros, devidos,
em parte, aos escassos conhecimentos históricos de seu tempo.
O intento fundamental de Vico é a conciliação da Filosofia
com a Filologia (esta palavra ele a usa em sentido especial,
não como doutrina meramente literária, mas como ciência dos
fatos humanos, que compreende todos os produtos históricos,
todos os documentos da cultura de qualquer gênero). A
Filologia é a ciência do fato; a Filosofia é a ciência do vero, do
eterno, do racional, do que não muda, do não contingente.
Entre essas duas direções do pensamento, Vico quer
demonstrar que existe uma necessária correlação; reprova em
seus predecessores terem cultivado a Filosofia e negligenciado
a Filologia, isto é, terem-se ocupado mais do abstrato do que
do concreto, mais da idéia do que do fato (assim, nos escritores
do direito natural ele critica a ausência de senso histórico).
Para Vico a conciliação dos dois termos (verum etfactum
convertuntur) é possível porque a mente humana está na raiz
das
duas atividades, ou seja, produz a teoria, tende ao vero
filosófico, enquanto produz também o vero histórico (o
direito natural, diz ele, é uma idéia humana, e é também um
fato humano). Ela apresenta o seguinte princípio ou degnità
(axioma) como base de toda a sua ciência nova: "Este mundo
civil foi certamente feito pelos homens,
97
GIORGIO DEL VECCHIO
porém seus princípios devem ser encontrados em nossa própria
mente humana".
Nossa mente é um reflexo da inteligência transcendente e, ao
mesmo tempo, imanente no mundo, que Vico chama de
"Providência". O desenvolvimento das vicissitudes humanas tem
também
caráter necessário, prefixado, e um significado ideal, além de real.
As verdades eternas, que a razão vem descobrindo, são
atuadas necessariamente pela humanidade no seu curso histórico.
Segue daí que, para Vico, não pode existir radical contraste entre
direito natural e direito positivo. Esses termos designam só os dois
aspectos de uma mesma realidade. No direito Vico distingue
exatamente dois elementos, que chama o vero e o certo; o vero é o
elemento racional; o certo, o elemento positivo, que corresponde à
autoridade.
A natureza humana compreende, segundo Vico, três
faculdades: um conhecer (nosse), um querer (velle), um poder
(posse). O homem é "um nosse, um velle, um posse finito que tende
ao infinito".
Como existe uma mente individual, assim há uma "mente
comum das nações". Vico encontra um paralelismo constante entre o
desenvolvimento da mente humana e as vicissitudes comuns das
nações. Apanha, com síntese extraordinariamente vasta, apesar de,
às vezes, confusa, todos os elementos da vida dos povos, nas
linguagens, nas leis, nas religiões, nas artes, no comércio; quer
compor uma história psicológica da humanidade e lança o olhar,
embora de muito fugazmente e sem ordem rigorosa, em todo lugar e
em todo tempo; descobre, ou crê descobrir leis históricas, e as afirma
com segurança, agarrando-se a suas intuições, muito maravilhosas,
mas não raro falazes.
Na verdade, nele prejudica o exagerado sistematismo, isto é, o
intento de comprimir em leis fixas, em sistema rígido, fatos diversos.
Suas interpretações dos documentos históricos são, por isso, de
serem acolhidas com muita cautela. A preocupação constante de
conciliar a história com a idéia, o fato com a razão, leva a sínteses,
aqui e ali, inexatas por sua própria rigidez.
98
..,.........
"'
"
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
Assim, ele nega, por exemplo, a transmissibilidade histórica
do direito, em obséquio ao princípio da uniformidade do espírito
humano. Esse princípio deve, a seu aviso, ser suficiente para
explicar todas as semelhanças das leis e dos costumes.
Vico exclui, portanto, toda recepção, e nega, dentre outros,
que os romanos tenham derivado dos gregos os preceitos jurídicos
das Doze Tábuas. Nisso, provavelmente, ele teve razão, ao menos
em parte, pois a influência grega sobre a lei das Doze Tábuas, se em
verdade não é mera legenda, foi, certamente, assaz limitada. 8
Mas, prescindindo dessa questão particular, observamos que
a transmissibilidade ou comunicabilidade do direito historicamente
sempre se verificou em certa medida. Isto não retira o valor do
princípio da uniformidade do espírito, antes o reforça, enquanto o
fato mesmo da transmissibilidade supõe necessariamente certa
igualdade fundamental do espírito humano. Se esta faltasse, os
institutos de um povo não poderiam valer fora dele, nem aplicar-se
a outro povo.
Considerando a história como um movimento cíclico, que se
realiza em um sentido uniforme, Vico chega a conceber a teoria,
tornada famosa, dos "cursos e recursos" da Humanidade, segundo a
qual existem três espécies de idades: a divina, a heróica e a humana,
às quais correspondem as formas políticas da teocracia, da
aristocracia e da democracia. Elas retomam periodicamente, e é
necessário que a humanidade passe sucessivamente por essas três
fases.
Vico robustece essa sua concepção com uma ampla coleção
de analogias e confrontos históricos, aproxima toda a história
moderna da antiga, vê no princípio da Idade Média uma idade
divina, no feudalismo uma nova idade heróica (a vassalagem
corresponderia, por exemplo, à clientela romana), etc.
8 Cf. sobre esta ainda discutida questão VOLTERRA, E. Diritto romano e
diritti orientali, 1937, p. 175 et seq.; BALOGH, E. Cicero and the greek law. In:
FERRINI, C. Scritti in onore de C. Ferrini. Milano, 1948, v. m, p. 2 et seq.
99
GIORGIO DEL VECCHIO
É claro que essa teoria dos cursos e recursos concilia-se mal
com a idéia do progresso e se inspira em uma espécie de fatalismo,
que não atende nem as exigências da razão prática (pelas quais todo
povo, como todo homem, é o artífice da sua sorte), nem aos dados
da observação histórica conduzida objetivamente.
Contudo, a obra de Vico tem alto valor pelo desenho que
oferece de uma grandiosa Filosofia da história humana, sob bases
principalmente psicológicas. Contém também numerosas
antecipações de doutrinas modernas. Os sociólogos indicam mesmo
Vico como seu precursor, enquanto a ciência nova, divinizada por
ele, seria exatamente a Sociologia. Mas em verdade é glorificar
muito a hodierna Sociologia empírica considerar Vico um seu
predecessor; ele foi, sobretudo, um filósofo do espírito.
***
Carlos de Montesquieu (1689/1755) é um escritor
comparável, sob certo aspecto, ao nosso Vico, por representar, em
verdade, uma antecipação do método histórico, em antítese ao
dedutivo então predominante.
Sua obra, De [' esprit des [ais (1748), conquistou
rapidamente grande nomeada, quiçá maior que a Ciência nova de
Vico, apesar de não ser maior que esta no mérito.
Entre esses dois escritores existe, todavia, uma diferença
notável. Montesquieu é mais exato na consideração dos particulares,
mais elegante, mas menos profundo nos princípios do que Vico.
Montesquieu é mais analítico; Vico, mais sintético. A obra de
Montesquieu é quase fragmentária, sem um vasto desenho orgânico.
Ele parte do princípio de que as leis são "as relações
necessárias que derivam da natureza das coisas". Porém, em geral,
não trata dessas relações, mas desce firme ao exame de cada lei e de
cada instituição, tentando uma explicação delas sob base de fatos e
circunstâncias particulares. Estuda as instituições jurídicas dos
vários povos como produtos históricos e difunde-se em uma série
nume
100
.,......
.....
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
rosa de análises em tomo das leis, dos costumes, dos ordenamentos
políticos e sociais, para demonstrar as razões e os motivos que os
determinaram.
Passa, em seguida, a uma resenha, junto aos mais diversos
povos (entre eles alguns orientais, por exemplo, os chineses) e
vários campos da legislação, e faz observações de muita delicadeza,
atribuindo grande importância, na gênese do direito, aos fatores
naturais, especialmente ao clima. Busca descobrir a formação
natural do direito, observar como isso surge na vida social e como
deva adaptar-se às condições do ambiente. O mérito maior de sua
obra está no ter largamente usado o método histórico. Mas a maior
nomeada lhe vem do fato de referir-se a doutrinas políticas.
Montesquieu distingue três formas de governo: República,
Monarquia e Despotismo. (Como se vê, esta repartição não
corresponde à de Aristóteles; o Despotismo, como forma
degenerada, devia ser posto à parte, segundo o conceito aristotélico.)
A cada uma de tais formas de governo Montesquieu atribui
um princípio particular, que é como a sua força motriz, a saber,
respectivamente: virtude, honra, temor.
A República tem por pressuposto a dedicação dos cidadãos ao
bem público, isto é, à virtude, e se distingue em democracia e
aristocracia, segundo que o povo inteiro, ou uma parte dele, tem o
poder soberano.
A Monarquia tem por fundamento ou propulsor psicológico o
amor pelas distinções e privilégios, que Montesquieu chama honra.
O Despotismo funda-se na força e tem, por isso, como sustentáculo
o temor que ela incute. Essa partição, um tanto artificiosa, parece
admirável e dá lugar a discussões tanto múltiplas quanto inúteis.
Entanto, a maior celebridade do Esprit des [ais derivou da
teoria da divisão dos poderes.
Tratando da Constituição inglesa, Montesquieu teve a
oportunidade de destacar que na Inglaterra existia verdadeiramente
um regime de liberdade política (que era o ideal das nações, em
espe
101
GIORGIO DEL VECCHIO
daI da França, então nas vésperas da revolução). Ele se colocou o
problema a respeito de que dependeria essa liberdade, quais seriam
as condições e os fatores que a tinham tomado possível, e entendeu
que o segredo estava no princípio da divisão dos poderes. E enuncia,
então, a máxima: "Para que não se possa abusar do poder, é preciso
que o poder contenha o poder". É preciso, portanto, que os poderes
do Estado sejam organizados de tal modo a frei aremse mutuamente;
que exista um sistema de freios recíprocos (sistema dito também de
pesos e contrapesos). Distingue, portanto, três poderes do Estado:
Legislativo, Executivo e Judiciário; e sustenta que esses poderes
devem estar divididos, independentes um do outro, e confiados a
pessoas diversas, exatamente como acontece na constituição inglesa,
considerada modelo.
É de notar-se, porém, que a análise da Constituição inglesa,
feita por Montesquieu, não é inteiramente exata. Inexato é, também,
como Montesquieu entendeu a divisão dos poderes.
Antes de tudo, não é possível uma divisão rígida, que seria
inconciliável com a unidade da soberania. Em verdade, e a bem
dizer, não se trata de diversos poderes, mas de diversos órgãos, que
devem ser distintos segundo suas respectivas funções, e, mesmo
assim, não no modelo absoluto entendido por Montesquieu.
O princípio impropriamente dito da divisão dos poderes
contém, porém, em si, uma verdade, de resto não nova (Locke e
atéAristóteles tinham acenado para ela). Devemos entender a teoria
assim: das três funções (legislativa, executiva ou administrativa e
judiciária), com as quais se manifesta a vontade do Estado, as duas
últimas devem estar subordinadas à primeira, que tem importância
maior, como expressão direta da soberania. Porém, deve ser
instituída uma tal distribuição das funções que tome possível fazer
valer a lei, por meio dos órgãos judiciários, mesmo contra os atos
eventualmente ilegítimos do governo, que exercita a função
executiva ou administrativa.
O princípio da "divisão dos poderes" tende, sobretudo, a fazer
com que ao órgão que estabelece a lei não compita igualmen
102
..,......-
i....
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
te a função de aplicá-Ia e de fazê-Ia executar, o que seria um perigo
para a liberdade dos cidadãos.
Em que pesem suas inexatidões, a doutrina de Montesquieu
tem, pois, o mérito de ter chamado a atenção para um princípio que
se tomou fundamental para as constituições modernas.
Montesquieu traçou, depois, um quadro completo da
monarquia constitucional, contribuindo muitíssimo para tomar
populares no continente europeu as idéias inglesas nessa matéria.
Por isso, ele foi chamado "o pai do constitucionalismo".
Segundo o exemplo inglês, Montesquieu sustenta que o
Poder Legislativo deve estar entregue aos representantes do povo e
a uma assembléia de nobres; ao contrário, o Poder Executivo, a um
monarca inviolável, mas cercado de ministros responsáveis.
Rousseau e a Revolução Francesa
Se Montesquieu tem importância notável na história do
pensamento político do século XVIII, como liame das idéias
inglesas no continente, mais importante ainda é J ean-J acques
Rousseau, de Genebra (1712/1778), que deu forma clara e racional
a tudo o que se agitava confusamente na consciência pública
daquele século. Seu pensamento e seu engenho fizeram que
representasse de modo típico a sua época; fez-se intérprete, como
nenhum outro, das necessidades ideais de seu tempo.
Seus caracteres peculiares foram de uma profunda
sensibilidade, um entusiasmo permanente pelos ideais de justiça
(um "ódio soberano contra a injustiça", como ele escreveu) e, em
geral, uma consciência vivíssima do dissídio entre o ser e o dever
ser, uma espécie de nostalgia daquilo que cada homem deveria ser,
e a diferença do que é.
Em todos os seus escritos, em estilo apaixonado, Rousseau
revela um anseio vigoroso pelo estado de natureza perdido, uma
aspiração inexaurível por um destino superior da humanidade, à
103
GIORGIO DEL VECCHIO
qual os fatos não correspondem. Sua obra tem mesmo o caráter de
um aposto lado.
A atividade de Rousseau desenvolve-se em diversos campos;
por exemplo, também na Pedagogia, com o Emílio (Émile), uma de
suas maiores obras, que tende a reformar os sistemas de educação
das crianças, de conformidade com a idéia de retomar à natureza, de
abandonar tudo o que é falso, fictício, etc.
Vamos restringir nossas considerações às obras que
concemem à Filosofia do direito, especialmente ao Discurso sobre a
origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens
(Discours sur I' origine et les fondements de I 'inégalité parmi les
hommes, 1753), e ao Contrato social (Contract social, 1762), obras
que se interligam e se completam.
A primeira pretende ser uma história (em grande parte
conjectural) do gênero humano e desenvolve a tese de que os
homens teriam sido, originariamente, livres e iguais, vivendo com
extrema simplicidade, nos bosques, apenas segundo os ditames da
natureza (no chamado "estado de natureza"). Nessa primeira fase, o
homem não tinha sido ainda deteriorado pela degeneração da
civilização; era bom, uma vez que o homem nasce bom, como tudo
o que vem da natureza; e era feliz.
Como aconteceu que esse estado de felicidade acabou por
ser perdido?
Rousseau procede, aqui, por hipóteses: chega a examinar a
origem da civilização, que para ele é um desvio, uma corrupção do
estado de natureza. Alguns homens mais fortes impuseram-se aos
outros. "Aquele que por primeiro fechou um campo e disse: 'este é
meu' foi o primeiro ator da infelicidade humana". À propriedade
privada agregou-se a dominação política; e assim, pelo domínio de
certas paixões, um regime artificial de desigualdades pôs os
homens em uma relação de dependência recíproca, contrária aos
princípios naturais do seu existir. Determinou-se, em suma, uma
antinomia profunda entre a constituição natural do homem e a sua
condição social.
104 .&....
~~
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
o Discurso termina com uma viva pintura dos males e
das injustiças que afligem os homens, isso não sem um particular
aceno para as condições políticas daquele tempo.
O Contrato social prossegue essa ordem de pensamentos, e
começa onde o Discurso sobre a desigualdade termina.
O Discurso tinha sido todo ele uma nostalgia do estado de
natureza. No Contrato social, Rousseau busca a solução do
problema prático. Reconhece que um retomo puro e simples ao
estado de natureza, depois de atingido o estado de civilização, é
impossível, "da mesma forma que não é dado a um velho retomar
àjuventude". A sociedade política deve aceitar-se como um fato
iITevogável.
Rousseau mesmo não preconiza o retomo ao estado primitivo
"de natureza", mas busca um equilíbrio, um substitutivo do retomo.
Em substância - observa ele -, o que constituía a felicidade primitiva
era o gozo da liberdade e da igualdade. O que importa é, pois,
encontrar um modo para restituir ao homem seI vagem o gozo
desses direitos naturais, para modelar, com base neles, a
Constituição política. Para essa finalidade, ele recorre à idéia do
contrato social, seguida ao seu tempo.
Para Rousseau, porém, o contrato social deve ter um conteúdo
preciso e determinado. Deve oferecer exatamente a solução do
problema. Os termos dessa solução são assim enunciados por
Rousseau: Trouver une forme d'association, qui defende et protege
de toute Ia force commune Ia personne et les biens de
chaque associé, et par laquelle chacun, s 'unissans à tous, n'
obéisse, pourtant qu' à lui même et reste aussi libre, qu ' auparavant
(= "Encontrar uma forma de associação, que defenda e proteja de
toda força comum a pessoa e os bens de cada associado, e pelá qual
cada um, unindo-se a todos, obedeça, assim, a si mesmo, e
permaneça livre daí por diante" ).
O contrato social representa, segundo Rousseau, a forma ideal
de garantia, na qual a inserção em um corpo político não des
105
GIORGIO DEL VECCHIO
trói a liberdade de cada um. Por isso o conteúdo do contrato é
determinado a priori; não é qualquer coisa de contingente (como,
por exemplo, para Grócio), mas pode significar apenas, e
necessariamente, a consagração política dos direitos de liberdade e
de igualdade próprios do homem no estado de natureza.
Portanto, o contrato não se refere à gênese histórica do
Estado, nem pretende representar a estrutura real dos Estados
existentes. Se fosse assim, compreenderia menos o escopo essencial
da obra, que é precisamente contrapor à realidade um ideal.
Rousseau bem sabia que um contrato social, como ele o
descrevera,jamais aconteceria; que, ao contrário, os fatos observados
contrastavam com ele; mas, por isso mesmo, ele escrevera o
Contrato social. Com o Contrato, quis afirmar categoricamente uma
necessidade racional: indicar como a ordemjurídica deve ser
constituída, por que devem ser conservados socialmente íntegros os
direitos que o homem já possui da natureza.
Para Rousseau, o contrato social é, em suma, um postulado
da razão, uma verdade não histórica, mas normativa e reguladora.
O erro de muitos escritores precedentes, que tinham
considerado o contrato social como um fato acontecido, estava bem
afastado da mente de Rousseau. Ele pretende ditar leis justas
ifoederis aequas leges = "leis equitativas de aliança"), movido pelo
Contrato social, depois de ter declarado explicitamente que as leis
vigentes (positivas) eram injustas.
Não se pode, pois, cometer maior erro do que interpretar o
Contrato social como um fato histórico, ou criticá-Io como se fosse
tal.
O direito natural de liberdade e de igualdade constitui o ponto
de partida e a base da construção política de Rousseau. O Estado
existe somente para a atuação desse princípio; portanto, somente
quando o seu ordenamento se conforma com isso, ele é um
verdadeiro Estado, ou seja, natural e racionalmente legítimo.
Porque a liberdade e a igualdade devem ser conhecidas no
Estado, não se segue que o Estado tenha tido origem no contrato;
106
"",..-
.....
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
mas, ao contrário, o Estado deve-se supor originado do contrato para
que aqueles direitos fundamentais sejam nele reconhecidos.
O ponto de vista empírico é assim superado: o contrato social
não é mais um fato, nem depende do arbítrio de qualquer um; mas é
o resultado necessário de termos dados objetivamente e fixados pela
natureza das coisas; é a interferência ideal dos direitos conaturais do
indivíduo.
Assim, a máxima do contrato tem para Rousseau um
significado eminentemente regulativo, ou seja, deontológico: é o
tipo universal da Constituição política, que a razão revela como
conforme à substância do homem, e serve por isso como critério
para avaliar as Constituições existentes.
Para Rousseau, o contrato social deve ser concebido do
seguinte modo: é necessário que os indivíduos, em determinado
momento, confiram os seus direitos ao Estado, o qual depois os
retoma a todos, mudado o nome (não serão mais direitos naturais,
mas direitos civis).
Desse modo, concluindo todos igualmente o ato, nenhum será
privilegiado; é assegurada, assim a igualdade.
De outro lado, cada um conserva a sua liberdade, porque o
indivíduo toma-se súdito unicamente com respeito ao Estado, que é
a síntese das liberdades individuais. Por essa espécie de novação, ou
transformação dos direitos naturais em civis, os cidadãos têm
assegurados pelo Estado aqueles direitos que já possuíam por
natureza.
Rousseau não entende, pois, que pelo contrato social exista
uma real alienação da liberdade individual. Esta liberdade, di-Io
expressamente, é inalienável, porque constitui a natureza humana
mesma, e o homem não pode renunciar à sua natureza. (Um contrato
pelo qual o homem se privasse da liberdade seria nulo.)
O contrato social representa apenas o procedimento dialético
pelo qual os direitos individuais convergem no Estado e por ele de
novo voltam reforçados e reconsagrados. O efeito é exatamente que
todos os homens se tornam livres e iguais como
107
.."
GIORGIO DEL VECCHIO
'11:1
no estado de natureza, enquanto seus direitos adquirem uma
garantia tuteladora, que faltava naquele estado. Os indivíduos
são súditos unicamente da vontade geral, que eles mesmos
concorrem a formar.
Para Rousseau, a lei não é outra coisa que não a
expressão da vontade geral; não é, pois, um ato de comando
arbitrário. Nenhum comando é legítimo se não se funda sobre
a lei, isto é, sobre a vontade geraL Nesta vontade geral
consiste a verdadeira soberania, que não pode, portanto,
atentar para um indivíduo, ou para uma corporação particular,
mas sempre e necessariamente para o povo enquanto constitui
um Estado.
Posto assim o princípio da soberania popular, Rousseau
aferrava-se tanto no seu rigorismo que não admitia nem
mesmo uma representação do povo, mas queria o exercício
direto da soberania. (Esta sua concepção tem uma certa
analogia com o que se pratica hoje, por meio do referendum,
na terra de Rousseau, em Isvizzera.)
A soberania é inalienável, imprescritível e indivisível.
Se o próprio governo, ou poder executivo, é afeto a
determinados órgãos ou indivíduos, a soberania conserva
sempre a sua sede no povo, que pode, a qualquer momento,
revocá-Ia a si.
Sob tais princípios fundou-se o programa da Revolução
Francesa, no qual teriam alguma influência as doutrinas de
Montesquieu e de outros. Mas idéias de Rousseau tiveram
maior eficácia, pois naquela época tudo concorria para a
valorização das teorias do direito natural, de que Rousseau era
o último e o mais eloqüente intérprete.
Aquelas idéias, com algumas modificações,
transformaramse em sistema positivo com as Declarações dos
direitos do homem e do cidadão que, aprovadas em 1789,
figuraram como preâmbulo da Constituição de 1791 e, depois,
com algumas alterações, das outras Constituições francesas
que se seguiram àquela.
Em parte, os princípios das Declarações foram
acolhidos também no nosso Estatuto de 1848 (que teve como
fontes próximas as Cartas constitucionais da França e da
Bélgica, para onde aqueles 108
.. HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
princípios, com certas adaptações, tinham sido transferidos), e daí na
nova Constituição da República italiana. A eles é preciso voltar para
encontrar a origem histórica das modernas Constituições.
Advirta-se que a idéia de uma Declaração de direitos não era
nova. Já havia precedentes na Inglaterra, especialmente no bill of
rights de 1688, com o qual se punham as bases das garantias
constitucionais perante o poder da Coroa. Em seguida, nas colônias
inglesas da América do Norte, com os bills of rights pelos quais (no
ano de 1774 e nos seguintes) as próprias colônias reivindicaram seus
direitos ante a mãe pátria, para se tomarem independentes.
É fora de dúvida que esses precedentes legislativos
influenciaram na Declaração dos direitos na França. Com efeito,
eram ali bem conhecidas as lutas pela independência da América,
nas quais alguns franceses tinham tomado parte com La Fayette; e
eram também conhecidos, em especial dos membros da Constituinte,
os bills of rights. Mas isso não retira a importância da Declaração
dos direitos franceses, na qual, mais que nos bills de tipo inglês, se
têm formalizações gerais, referentes não só a determinado povo, mas
a toda a humanidade.
De resto, e em última apálise, tanto a Declaração francesa
como os bills ingleses e americanos têm uma fonte comum: os bills;
são o reflexo das teorias da escola do direito natural. A Declaração
francesa pode ser considerada uma derivação extrínseca dos bills
americanos, mas intrínseca das teorias de Rousseau. Note-se que
Rousseau precede de muito também os bills americanos (1774) com
o Contrato social, que é de 1762, e teve, na formação daqueles,
alguma influência, pelo menos indireta, juntamente com Locke e
outros autores da escola do direito natural.
Kant
Na ordem especulativa, Emmanuel Kant (1724/1804)
fez qualquer coisa de semelhante ao que, na ordem política,
tinha feito Rousseau. O sujeito, reconhecido como o princípio
na ordem po .. 109
GIORGIO DEL VECCHIO
lítica, é também reconhecido como o princípio na ordem do
conhecimento; e Kant representa, exatamente, como veremos, essa
conquista especulativa.
Na Filosofia do direito, Kant não foi grande inovador. Apenas
percorreu e clareou, com método rigoroso, o antigo procedimento da
escola do direito natural. Na verdade, aquela escola tinha afirmado
um justo princípio, isto é, que a base do direito está no homem. Mas
tinha dado (ao menos aparentemente) um significado histórico
àquilo que era, ao contrário, um princípio racional; tinha
representado como processo empírico aquilo que era um processo
ideológico.
A escola do direito natural gerou também quase uma
mitologia, que ofereceu, depois, matéria à zombaria. Mas a idéia de
partir do homem para chegar ao Estado, entendendo este como
síntese dos direitos fundados na natureza humana, tem uma razão
profunda; nem foi ela, jamais, em verdade, refutada, nem mesmo da
parte daqueles que criam demolir o contrato social com argumentos
históricos.
Na Filosofia do direito, Kant tem o mérito de ter removido
aquela confusão entre o histórico e o racional, afirmando o valor
puramente racional (relativo) dos princípios do direito natural.
De resto, já em Locke e em Rousseau, bem que de forma a
recordar o antigo equívoco, vive latente essa concepção. Kant o
afirma explicitamente, e concebe o contrato social como pura idéia
que exprime o fundamento jurídico do Estado, o seu arquétipo
racional, não um fato realmente acontecido.
Costuma-se exprimir essa correção de método dizendo que
com Kant termina a escola do direito natural (Naturrecht) e começa
a escola do direito racional (Vernunftrecht). O direito natural torna-
se direito racional.
Mas não é necessário recordar que Kant não fez outra coisa
que cumprir um processo de correção metodológica, já iniciado
havia muito, e fora quase complementado na obra de Rousseau. Se
não é o fundador da Filosofia moderna (que remonta a Descartes e a
Bacon), Kant é, certamente, o seu renovador.
110
~ HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
Com Kant tem início, na Filosofia, um novo período, e para
ele convergem as diversas correntes filosóficas como o idealismo, o
empirismo, o positivismo, enquanto buscam nele as próprias
premissas e os germes do seu ulterior desenvolvimento. Ele é, sem
dúvida, o maior filósofo de nossa era e, talvez, de todos os tempos.
Toda a sua existência foi dedicada unicamente ao pensamento.
Em sua vida, que se passou por inteiro na nativa Konigsberg,
seguiu Kant uma rígida disciplina, dedicado exclusivamente à
meditação e à Filosofia; compôs um sistema vastíssimo e profundo,
tratando de todos os mais difíceis problemas. A sua importância vai
muito além dos limites da nossa disciplina. Assim, como já acena
mos, Kant foi mais inovador na Filosofia teórica e, em especial, na
Gnoseologia, do que na Filosofia do direito. Suas obras principais
são: Crítica da razão pura (1781), Fundações da meta física dos
constumes (1785), Crítica da razão prática (1788), Crítica do juízo
(1790). Além disso, e especiamente importantes para a nossa
matéria, os escritos Sobre a paz perpétua (1795) e Pincípios
metafísicos da doutrina do direito (1797).
Na Filosofia teórica, Kant répresenta um novo rumo, o
criticismo, que se distingue tanto do dogmatismo quanto do
ceticismo, e supera a ambos.
Kant havia crescido, primeiramente, sob a influência da
escola racionalística wolfiana, isto é, de uma Filosofia dogmática,
com uma fé cega no poder da razão, da qual tudo cria poder extrair
deduti vamente, pela reflexão (continuo ratiocinationis filo).
Julgava conhecer todo esse racionalismo dogmático e
raciocinava sobre a alma, sobre o mundo, sobre Deus, sem
preocuparse com os limites da razão humana. Daí suas afirmações:
"A alma éimortal, o mundo é infinito", etc., afirmações não
demonstradas, mas aceitas como tais.
Depois de ter seguido por certo tempo essa Filosofia, foi
abalado em sua fé pela tendência empírica manifestada na Inglaterra
e na Escócia, especialmente pela Filosofia cético-empírica de D.
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GIORGIO DEL VECCHIO
Hume, o qual havia levantado fortes dúvidas sobre o valor de nossas
idéias racionalistas e, antes de tudo, do princípio da causalidade, que
é fundamental para a ciência. Tem esse princípio um valor objetivo?
O exame dos fatos nos permite afirmá-Io com certeza? Na realidade
a observação externa nos apresenta apenas uma sucessão de fatos,
não um liame necessário; mostra que acontece alguma coisa, mas
não exclui que poderia também acontecer de modo diverso. A
necessidade não pode, portanto, ser extraída dos fatos, ou seja, da
experiência (Kant dirá depois que se tal princípio não pode ser
extraído dos fatos, pode sê-Io do intelecto).
Daqui o ceticismo de Hume, que sacode Kant do seu "sono
dogmático" (como ele escreveu), e o impulsiona a procurar e a
elaborar um sistema direcionado para superar criticamente tanto o
dogmatismo tradicional, como o empirismo cético.
Kant propõe-se a indagar as condições e os limites do nosso
conhecimento, determinar-lhe a possibilidade e o valor. Não o move
nem a fé cega na nossa razão nem o preconceito de que a nossa
mente seja passiva diante da experiência e incapaz de chegar à
universalidade.
Antes de tudo, ele distingue um elemento subjetivo e um
elemento objetivo. Todo conhecimento implica uma relação entre
um dado objetivo e um sujeito (toda experiência supõe alguém que
experimenta). Não se pode dizer que a realidade passe com certe
za em nosso espírito, em nossa mente, sem receber alguma marca.
A realidade, enquanto conhecida por nós, sofre as
modificações e as leis da nossa mente; enquanto apresentada por
nós, não se nos apresenta a não ser nas formas da nossa apreensão.
O modo de apreensão marca o objeto mesmo conhecido, como a
mão à neve que aperta.
Da premissa de que todo conhecimento implica a devida
relação, segue-se que não se pode falar de uma realidade conhecida
em si mesma, fora das formas subjetivas. Em outras palavras, a
"coisa em si", o absoluto, o noumeno, é inconcebível. Conhece
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HISTORIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
mos o ser somente enquanto ele se nos aparece, vale dizer, como
fenômeno (que significa exatamente aparição).
Kant distingue as formas (subjetivas) da matéria, do
conhecimento. Entre as formas, distingue aquelas que tomam
possível a percepção dos sentidos (formas de intuição) e aquelas que
tomam pos
síveis as operações lógicas, ou seja, os juízos (formas do intelecto).
As formas que fazem possível a intuição sensível são o
espaço e o tempo, que não são objetos existentes fora de nós, mas
apenas condições do pensamento. Com efeito, todos os dados do
mundo sensível são finitos: o espaço e o tempo são, ao contrário,
infinitos, não derivam da experiência, mas são pressupostos da
experiência. Se eles fossem objetos, deveríamos senti-Ios e
conhecê-Ios, colocando-os em um outro espaço e outro tempo, o
que é absurdo.
Além dessas formas de intuição sensível, existem as
categorias, ou formas do intelecto. Kant compilou uma tábula dessas
categorias, reduzindo-as a quatro espécies (quantidade, qualidade,
modo e relação). Cada uma delas compreende três; assim, as
categorias seriam doze. A principal entre elas é a da causalidade, a
qual, segundo um grande filósofo kantiano, Schopenhauer, é a única
verdadeira categoria, a qual toma possível a ciência natural.
É verdade que a experiência, por si só, não nos dá o princípio
da causalidade, mas isso não impede que ele seja um modo
funcional para apreender, colocar e coordenar os dados da
experiência. Assim se supera a posição cética de Hume.
Kant distingue duas espécies de juízos: analíticos e sintéticos.
Os juízos analíticos são aqueles nos quais o predicado pertence ao
sujeito, como implicitamente contido no seu conceito; portanto, o
predicado não acarreta nada de novo, mas apenas esclarece a noção
já dada. Exemplo: todo corpo é extenso. Este é um juízo analítico
porque o predicado extenso está já compreendido na noção do
sujeito corpo.
Nos juízos sintéticos, ao contrário, o predicado está fora do
conceito do sujeito, apesar de, no juízo, estar ligado com ele. Exem
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GIORGIO DEL VECCHIO
pIo: todo corpo é pesado. Este é um juízo sintético, porque o
predicado pesado agrega qualquer coisa que não está compeendida
na noção do sujeito corpo.
Kant distingue ainda os juízos segundo se completam
independentemente da experiência, a saber: por meio do pensamento
puro (a priori) ou da experiência (a posteriori). Os juízos a
posteriori são sempre sintéticos, isto é, por intermédio da
experiência, mostram algo de novo, que não está implícito no
sujeito. Os juízos analíticos são sempre a priori (não é necessária a
experiência para conhecer o que está inserido em dado conceito).
Ora, pergunta-se (e é este o problema capital): podem darse
juízos sintéticos a priori? Isto é, pode o intelecto, ele só, por si
mesmo, sem a experiência, chegar a conhecimentos novos?
Kant responde afmnativamente, mas só mediante noções
formais. Assim, a matemática, a geometria, são ciências a priori,
que contêm, além de juízos analíticos, também juízos sintéticos. As
ciências naturais compreendem apenas noções a priori, ou seja,
verdades universais e necessárias.
Os elementos subjetivos formais, que não derivam da
experiência, mas a precedem e a tomam possível, têm os caracteres
da
necessidade e da universalidade, enquanto os elementos materiais
do conhecimento, que derivam da experiência, têm os caracteres da
particularidade e da acidentalidade. Como dissemos, porém, é esta
a conclusão mais importante da crítica da razão pura: os elementos
formais valem só enquanto se referem a uma experiência
possível. O absoluto ou, como diz Kant, o noumeno, não pode ser
sujeito de conhecimento. Conhecer qualquer coisa in se é
impossível, porque o conhecimento implica sempre uma relação.
Nossos
juízos não são válidos, cientificamente, se transcendem a
possibilidade de alguma experiência.
Kant admite, porém, além das formas de intuição sensível e
as do intelecto (categorias), os princípios da razão, isto é, as idéias
da alma, do mundo e de Deus. Mas essas idéias, apenas tendo na
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HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
ordem dos conhecimentos uma certa função unificadora, não podem
chegar ao seu objeto, que permanece ao de lá da experiência
possível: são, pois (na linguagem kantiana), princípios regulativos,
mas não constitutivos.
Sendo assim, em sede puramente teórica ou científica, não
estamos em condições de resolver questões como estas: a alma é
imortal? O mundo teve um princípio no tempo e terá um fim? Existe
uma vontade livre? Existe uma divindade?
A todas essas perguntas podemos responder de modo
contraditório. Podemos desenvolver com igual razão tanto uma
resposta afirmativa quanto uma negativa. Isto porque não é possível
o experimento a respeito das idéias metafísicas.
Com efeito, Kant passa a demonstrar, para cada um desses
problemas, tanto teses quanto antíteses (Exemplo: o mundo tem um
princípio no tempo e um limite no espaço; o mundo é infinito seja
quanto ao tempo, seja quanto ao espaço), para concluir que não pode
existir verdadeiro conhecimento dessas coisas em si, mas apenas dos
fenômenos, e que a estes apenas são aplicáveis às categorias do
intelecto.
O conhecimento é, pois, relativo. Por outro lado, esta
afirmação não é, porém, cética, pois Kant sustenta que o
conhecimento, nos seus próprios limites, é necessariamente
uniforme e perfeitamente válido para todos os seres pensantes.
Portanto, também para Kant o homem é a medida de todas as coisas,
mas o homem entendido como sujeito de conhecimento, o homem
universal. O sofista Protágoras, ao contrário, afirmava que cada
homem (indivíduo) é a medida de todas as coisas, o que conduz a
negar inteiramente a possibilidade do conhecimento, por substituí-Io
pela arbitrária e mutável opinião individual.
Vamos agora à parte prática, à Ética em geral, no sistema
de Kant.
Os homens têm não só faculdade cognitiva, mas também ati
Va. Enquanto o conhecimento teórico do absoluto é impossível,
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GIORGIO DEL VECCHIO
mediante a prática, o ser subjetivo encontra-se em uma condição
melhor e tem uma certeza absoluta que o conhecimento teórico não
lhe poderia dar. No mundo prático, estamos como iluminados, temos
consciência de um dado a priori, que tem para nós um valor
inconcusso, um princípio que não está posto propriamente no
conhecimento, que é mais uma revelação do que um conhecimento;
éo vislumbre de uma verdade transcendente, que nos ensina
imperiosamente o que devemos fazer e o que não devemos fazer.
Este
princípio é a lei do dever.
Assim Kant afIrma o primado da razão prática sobre a
teórica. O homem, como ser ativo, está em contacto com o absoluto
mais que como ser cognoscitivo. (Não devemos confundir os títulos
das obras de Kant, diferentemente abreviados; os títulos completos
deveriam ser: Crítica da razão teórica pura, Crítica da razão
prática pura. A razão pura, ou seja, independente da experiência,
existe, segundo Kant, tanto teórica quanto praticamente.)
Na Crítica da razão prática Kant refuta antes de tudo os
sistemas de moral fundados sobre a utilidade (eudaimonismo). Nega
que a regra suprema do agir seja a propensão para a felicidade,
sendo este um elemento variável.
Ao contrário, a moral distingue-se radicalmente do útil e do
prazer. Se se age por causa do útil, a ação perde o seu caráter moral.
A moral é independente, é superior à utilidade. Ela comanda de
modo absoluto. É como uma voz sublime que impõe respeito, que
aconselha invisivelmente, ainda que se queira fazê-Ia calar, e
nos preocupemos em não ouvi-Ia. Ela quer que nossas ações
tenham um caráter universal. A isso se reduz a lei moral, que Kant
chama "imperativo categórico" e assim formula: "Age de modo que
a máxima da tua ação possa valer como princípio de uma legislação
universal".
Isso signifIca que nossa ação não deve ser movida por impul
sos particulares, não deve existir contradição entre a nossa ação
individual e aquilo que deve ser possível a todos.
116
~ HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
Este é um princípio puramente formal, não fornece preceitos
de ética material, não diz o que se deve fazer, mas como, com quais
intenções se deve agir.
Ocorre, portanto, em razão desse princípio, que se deve agir
com a consciência do dever, de modo que seja possível uma
legislação universal conforme a atuação particular. Por exemplo: o
furto é logicamente uma contradição, porque com ele se pretende
adquirir a propriedade, enquanto ele é a negação da propriedade; daí
não poder ser colocado como princípio universal, pois é contrário à
lei moral.
Lembre-se de que, neste particular, Kant não afirmou nada de
verdadeiramente novo: a lei moral por ele formulada não é
substancialmente diversa daquela que já se encontra enunciada nos
antigos pensadores, especialmente na doutrina cristã ("Não fazer aos
outros", etc.). É, porém, muito abstrata e desenvolvida na sua
expressão.
O próprio Kant, quando se lhe objetou a pouca novidade do
seu conceito sobre a lei moral, mostrou-se satisfeito com tal
observação, pois lhe teria parecido estranho que se esperasse dele a
invenção de uma nova moral, como se ela não devesse ser a mesma
em todo tempo e sentida igualmente por todos.
A originalidade de Kant está no modo de conceber o valor
desse imperativo categórico. "Duas coisas", escreve ele, "enchem a
alma de sempre nova admiração e reverência: o céu estrelado sobre
mim, e a lei moral em mim".
Esta lei, o dever, é a maior certeza que temos. De tudo
podemos duvidar, menos disso.
Em geral os moralistas antes de Kant tinham posto primeiro o
conceito de liberdade, daí o de dever, ou seja, da lei moral, que
impõe certo uso da liberdade. Freqüentemente, ainda, os moralistas
partiam do postulado da existência de Deus, para fundar sobre ele a
lei moral. Kant inverte tudo isso e parte do imperativo categórico,
como da primeira certeza. A liberdade não precede o dever, mas é
uma conseqüência dele; sem ela o imperativo categórico
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III~ 111I 111
GIORGIO DEL VECCHIO
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se tomar absurdo; então, devemos admiti-Ia como corolário do
imperativo.
A liberdade é noção metafísica, e não se pode dar dela
demonstração teórica (que requereria o conhecimento do absoluto).
Portanto, na ordem prática devemos crer-nos livres, porque sem essa
crença não se explicaria a consciência do dever.
Destarte, a liberdade, que a crítica da razão pura teórica tinha
deixado em suspenso, é reafirmada na ordem prática como exigência
da nossa conciência moral.
Analogamente, como corolário do imperativo, Kant chega a
admitir a existência de Deus e a imortalidade da alma, porque a
razão exige necessariamente, como afirma Kant, o prêmio ou a pena
para as ações. E essas penas e essas recompensas não poderiam atuar
sem a existência de Deus e sem uma vida ultraterrena. Mas o
fuÍiâamento do sistema permanece sempre o imperativo categórico,
que é como um sinal do absoluto vivo no nosso ânimo,
incomparavelmente superior a qualquer conhecimento dos
fenômenos.
Depois de vermos os caracteres gerais da ética kantiana,
vejamos suas divisões.
Kant estabelece uma antítese clara entre moral e direito,
fundando-se sobre a distinção entre os motivos do agir (que Kant
chama "ações internas") e o aspecto físico do agir (que Kant chama
"ações externas").
Para a Moral, o que importa é apenas o motivo da ação,
enquanto o efeito físico dela é de todo indiferente: uma ação é boa
quando é realizada com intenção moral, isto é, tem por motivo o
respeito da lei moral. O essencial é, pois, agir com a consciência do
dever (princípio formal). Conseqüentemente, a mesma ação feita
por outro motivo, que não o respeito da lei, é de ser reprovada. É
imoral agir por uma paixão, por um impulso, por um sentimento.
Como de repente se vê, esta doutrina kantiana tem, pelo
menos aparentemente, qualquer coisa de rude, já que não faz
nenhuma distinção entre motivos superiores e inferiores, altruísticos
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HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
egoísticos, nobres e ignóbeis. Por exemplo, o sentimento da
compaixão pode determinar-se para ações que não consideramos
imorais; nem o afeto pelos amigos, onde somos levados a
beneficiálos, pode ser equiparado a sentimentos baixos ou egoístas.
Todavia, esses vários movimentos das ações seriam, todos eles,
segundo Kant, reprováveis. A moral exige o superamento de toda
afeição sensível, a pura autonomia, ou seja, a determinação segundo
a lei universal do dever.
A esse respeito característico da moral kantiana não se tem
economizado críticas. Recordemos apenas o famoso epigrama do
poeta Schiller (o qual era, todavia, sequaz de Kant na Filosofia em
geral): "Sirvo de bom grado os amigos, mas, desgraçadamente o
faço com interesse, e por isso me punge o remorso de não ser
virtuoso" .
Pode-se responder brevemente a essa ironia observando que o
afeto é um guia mendaz. A amizade deve estar subordinada à
justiça, e não se deve favorecer sempre os amigos só por serem
amigos. A máxima do dever é mais alta do que todo motivo
particular.
Kant chegou, porém, a extremos de rigorismo. Ressurgindo
um caráter da moral histórica, traçou uma separação absoluta entre
o que é dever e o que não o é, ou seja, entre o bem e o mal, sem
levar em conta nenhum grau intermédio. Todavia, mesmo
admitindo-se a supremacia da lei moral como princípio formal, deve
ser possível distinguir as paixões segundo sejam mais ou menos
egoístas, e até segundo o seu diverso valor moral (isto mostraram
particulannente J. Stuart Mill e outros filósofos ingleses).
O outro ramo da ética é o direito. Este, segundo Kant,
contempla apenas o aspecto físico do agir, ou seja, considera
somente se a ação realizou-se, ou não, prescindindo dos motivos
que a tenham determinado. Tal concepção mecânica do direito, de
resto não nova (recordem-se as teorias de Thomasius), é, porém,
insustentável, pois que o direito não prescinde inteiramente dos
motivos. Pode-se observar que se Kant tivesse sido jurista teria
compre
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endido de quanta importância é o respeito ao animus em todo ramo
do direito; e certamente se teria resguardado de fundar a distinção
entre moral e direito sobre aquelas premissas.
Se eventualmente o direito deixa certa latitude aos motivos,
isso não significa que ele não resguarde, em alguma medida, o
elemento psíquico. Nenhuma valorização jurídica de uma ação seria
possível sem volver às intenções. É verdade que a moral parte da
consideração do motivo para chegar a considerar o aspecto físico; lá
onde o direito segue um procedimento inverso; mas, em um e outro
caso, trata-se apenas mais de precedência, ou prevalência na
consideração, do que de exclusividade. E nesse sentido cremos deva
ser retificada a doutrina kantiana.
Estabelecido que o direito se ocupa apenas do mundo físico,
isto é, do efeito extrínseco do agir, Kant afirma que o direito, à
diferença da moral, é essencialmente coercível, pois sob as
intenções não se pode exercer violência, e a consciência é uma
fortaleza inacessível. O pensar é livre, de sua natureza, enquanto
direito e possibilidade de constrição são uma só coisa.
Nós nos associamos a estas conclusões, mas a elas chegamos
por outras considerações, que se referem essencialmente ao caráter
bilateral do direito. (O direito é uma relação que põe frente a frente
pelo menos dois sujeitos, lirnitando-Ihes o agir recíproco. Por isso
mesmo as fixações jurídicas implicam sempre a possibilidade de se
fazerem valer contra um outro.)
Portanto, o direito, segundo Kant, se reduz a regular as ações
externas dos homens e a tomar possível a sua coexistência. Kant
assim o define: "O direito é o complexo das condições pelas quais o
arbítrio de cada um pode coexistir com o arbítrio dos outros,
segundo uma lei universal de liberdade".
Nesta definição (ou "máxima da coexistência") reafirma-se o
conceito da liberdade como supremo valor ético. O homem deve ser
respeitado na sua liberdade, isto é, não deve ser considerado
120
~ HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
ou tratado como coisa, como instrumento ou meio, mas como fim
em si mesmo (Selbstzweck). A liberdade é um direito natural, inato
(a distinção entre direitos naturais e direitos adquiridos, feita pelos
precedentes escritores do direito natural, foi aceita por Kant).
Assim, todos os direitos naturais se compendiam, segundo Kant, no
direito de liberdade.
Na verdade, a liberdade é o valor supremo que coloca o
homem sobre o mundo dos fenômenos. Se o homem fosse apenas
um fenômeno, seria determinado, como tudo o que pertence à
natureza. Ora, ele pertence, sim, à natureza enquanto tem um
aspecto inferior, e é por isso determinado, e pode-se demonstrar
que toda ação, como fenômeno, promana, necessariamente, de
certas causas. (Nesse sentido, Kant é, com razão, determinista.)
Mas, de outra parte, o homem tem em si um modo de de
terminar -se superior ao da causalidade natural.
A deliberação, por proceder do ser autônomo do sujeito,
tem um significado que vai além do mundo dos fenômenos.
O homem é livre enquanto determina segundo a lei moral,
que é um princípio absoluto, implícito no seu próprio ser.
Produzida que seja a ação, ela pertence à ordem dos fenômenos, e
como tal aparece determinada. Assim se conciliam a liberdade e o
determinismo.
Na valorização do direito de liberdade, Kant recebe, de re
pente, influência de Rousseau, como se deduz da substância mesma
do seu sistema filosófico, e também de uma explícita confissão sua.
(Ele escreveu: "Houve um tempo no qual acreditei que o maior valor
consistisse na inteligência, e que o escopo supremo da vida fosse o
conhecimento. Rousseau me fêz mudar de opinião, e me persuadiu
de que existe coisa superior, a liberdade e a moralidade".) Daqui a
doutrina kantiana do primado da razão prática sobre a teórica.
Também na concepção do Estado a derivação de Rousseau é
evidente.
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"I
GIORGIO DEL VECCHIO
A teoria do contrato social é aceita expressamente por Kant,
que define o Estado como "a reunião de uma multidão de homens
sob o comando de leis jurídicas".
Mas essa multidão deve ser concebida como associada em
virtude de um contrato, pela vontade de todos.
Nesse sentido o contrato se transforma em um princípio
regulativo, isto é, um fato não histórico, mas um critério para
valorizar a legitimidade de um Estado.
E não há dúvida de que este fosse o sentido que também
Rousseau atribuía à sua teoria. Todavia, Rousseau não foi um
técnico da Filosofia, mas um amador, por assim dizer, romântico.
No seu desprezo pelas sutilezas escolásticas e pelo
tecnicismo dos filósofos de profissão, falou mais pelo sentimento
do que pela reflexão sistemática, donde talvez caia em aparente
contradição, e
não formulou exatamente a sua teoria.
O mérito da formulação precisa pertence a Kant.
Lendo Rousseau, talvez se possa ter a impressão de estar
lendo um conto mitológico.
Na verdade, em tempo algum os homens estiveram unidos
por contrato, e a sociedade (máxime nas origens) independe de
deliberação. Mas Rousseau quer efetivamente exprimir apenas um
princípio de valorização, que é: para todo Estado devem-se
pressupor o consenso e o acordo livre de seus membros.
Tudo isso Kant explica claramente, afastando todo equívoco
e afirmando que o Estado deve ser (não foi) constituído segundo a
idéia de um contrato social. (O contrato é a base jurídica, o pressu
posto ideal do Estado, que se deve organizar como fundado sobre o
reconhecimento dos direitos da pessoa, ou seja, como síntese da
liberdade humana.)
Kant aceita, também, a doutrina dos filósofos
constitucionalistas (Locke, Montesquieu, Rousseau) sobre a divisão
dos poderes. O Poder Legislativo não deve ser confundido com o
Poder Executivo. Aquele diz respeito ao povo (soberania
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HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
Jopular); este, pode ser delegado a órgãos governamentais.
Sonente com a divisão dos poderes e com a atribuição do
Poder :"egislativo ao povo a Constituição é legítima ou, na
expressão (antiana, "republicana" (com esta locução Kant não
pretende, aliis, designar uma forma particular de governo).
Ainda a respeito da pena, Kant é contrário às doutrinas
~udaimonísticas, que justificam a pena mediante um fim
utilitário (para defender a sociedade, ou seja, para educar o
delinqüente). Segundo Kant, a pena é um bem em si mesma,
como reafirmação eticamente necessária da lei do dever
violada (teoria absoluta da penalidade, em confronto com as
outras teorias relativas).
É ainda importante o breve tratado, publicado por Kant
em 1795, intitulado Sobre a paz perpétua, que concerne aos
princípios filosóficos do direito internacional.
Kant sustenta que a vocação da humanidade é formar
um Estado único. O tempo no qual todos os povos se reunirão
desse modo é remoto, mas nem por isso se pode negar que a
tendência seja nesse sentido, nem duvidar que esse objetivo
venha a ser alcançado.
Também nesse caso trata-se de um princípio regulativo,
isto é, de um critério racional, que serve como ponto de
referência para a interpretação da realidade.
Kant observa que a formação do direito internacional é,
em certo modo, análoga àquela do direito interno do Estado. O
Estado atual é o efeito de uma síntese de elementos a um
tempo discordantes: os indivíduos se combateram por longo
tempo (e nós com maior exatidão histórica diremos, antes, dos
indivíduos, os grupos humanos, as gentes, os clãs), até que foi
possível a instauração de um poder unitário sobre os
elementos isolados, em contraste entre eles.
Kant, segundo a terminologia do seu tempo, diz que,
como o estado de natureza foi vencido pelos indivíduos,
porque o imperativo categórico os obrigou a se associarem em
um regime de convivência civil, assim tempo virá em que
também os Estados terão
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GIORGIO DEL VECCHIO
superado tais condições, eis que também para eles vige o mesmo
imperativo. Isso assinalará o fim de toda guerra, da mesma maneira
que a formação do Estado assinalou o fim das frenéticas lutas
individuais.
Em suma, os Estados devem sair do estado de natureza
(estado quase pré-jurídico, no qual atualmente se encontram), para
seguir o imperativo categórico: "Não deve existir guerra", e
constituir, assim, um Estado cosmopolítico.
Não se limitou Kant apenas a indicar esse longínquo ideal de
unificação jurídica da humanidade, mas quis ainda apontar os meios
que poderão acelerar esse atingimento. Enuncia, para tanto, os
artigos de uma espécie de tratado internacional, que deve assegurar
àhumanidade a paz perpétua. Além dos "artigos definitivos",
enuncia ainda alguns "artigos preliminares" ou provisórios desse
tratado, ou seja, uma série de máximas dirigi das ao escopo de evitar
as contendas internacionais e, quando não seja possível evitá-Ias, de
assegurar-Ihes certo caráter jurídico.
Por esse lado, Kant une-se àquelas tradições da Filosofia do
direito, em especial à obra de Grócio, trazendo, também ele, um
notável impulso aos avanços positivos do direito das gentes.
Afirma ele, em substância, que também no estado de guerra
deve ser mantida a possibilidade da paz; nem aí deve estar ausente a
boa-fé. Ainda, devem ser respeitados os tratados (por exemplo, os
armistícios). Também, e ainda, não podem ser usados meios de
guerra que afetariam a estima recíproca dos beligerantes, como a
traição, o assassínio dos chefes adversários por meio de sicários, a
difusão de doenças infecciosas, a poluição das águas, etc.
E acrescenta que nas relações entre os Estados devem sempre
valer certos princípios jurídicos, como, por exemplo, o Estado não
pode ser mais considerado uma propriedade, e também não pode ser
adquirido por hereditariedade, nem por venda ou permuta; mais: que
a nenhum Estado é permitido imiscuir-se com violên
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.......
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
1
cia no governo de outro Estado (princípio da não intervenção),
princípio hoje quase universalmente reconhecido.9
Kant levava fé no progresso da humanidade em um tempo em
que outros (por exemplo, M. Mendelssohn) sustentavam o contrário:
que só o indivíduo, não o gênero humano, pode progredir.
A essa opinião Kant opõe um raciocínio característico. Se
nós, diz, temos o dever de cooperar para o maior bem da
humanidade, devemos acreditar que os nossos esforços não sejam
vãos. Destarte, como corolário do nosso dever, devemos aceitar a
crença na perfectibilidade do gênero humano. Ao contrário, seria
insensato sentirmo-nos ligados a um dever, se não crêssemos na
eficácia, ainda que remota, do seu cumprimento.
Fichte e a escola do direito racional
Kant teve um discípulo direto em Giovanni Amedeo Fichte,
que, todavia, no sucessivo desenvolvimento de seu pensamento,
distanciou-se notavelmente dos ensinamentos do mestre. Viveu de
1762 a 1814.
Na teoria do conhecimento, Kant havia deixado subsistir um
grave dualismo, como, de resto, dualística é toda a sua Filosofia.
Para Kant, de um lado se é sujeito e, de outro, objeto. O
conhecimento é uma relação entre qualquer coisa de subjetivo, isto
é, a mente, e qualquer coisa de objetivo, de independente do sujeito,
a saber, a coisa em si.
Esse dualismo é rejeitado por Fichte, que concebe uma só
realidade, a do eu, da mente subjetiva. E, na verdade, o sistema de
9 É Oportuno advertir que o princípio da não intervenção não tem propriamente um valor absoluto, mas encontra, ao menos a nosso ver, um limite racional no pressuposto de
que os direitos elementares da humanidade sejam tutelados em cada Estado). Isto demonstra que doutrinas dessa espécie não são meros exercícios dialéticos, mas também
fatores históricos, que acompanham e regulam o progresso real.
.. 125
GIORGIO DEL VECCHIO
Fichte pode, por isso, dizer-se do idealismo subjetivo, em
contraste com o sistema de Schelling e de Regel, dito do
idealismo objetivo, porque apóia, como veremos, sobre outro
extremo da antítese.
Para Fichte a realidade é o eu, o ser consciente; fora
dessa esfera nada pode existir.
Observa ele que, se partimos, como fez, por exemplo,
Espinosa, do conceito do ser, não poderíamos chegar ao
conceito do pensamento, porque há um abismo entre esses
termos. Partin
do, ao contrário, do conceito de consciência, ou do ser
consciente, está, per se, implícito o conceito de ser, onde se
deduz que a pri
meira noção deve ser a do eu.
O eu põe, antes de tudo, a si mesmo, e por isso, no ato
mesmo, põe exatamente um não eu, ou seja, contrapõe
qualquer coisa a si. Mas este termo de contraposição é sempre
gerado pelo eu, do qual é como uma projeção. Enfim, o eu
estabelece uma relação entre si e aquilo que é diverso de si,
isto é, limita-se a si mesmo, nas suas relações com o não eu.
Isso acontece em um
duplo sentido: o eu pode considerar-se a si mesmo como
determinado pelo mundo externo, e então se põe como ser
cognoscente; ou como determinante do mundo externo, e
então se põe como ser
operante, como sujeito não de conhecimento, mas de ação.
Daqui a divisão fichtiana da Filosofia em teórica e prática.
É verdadeiramente característico, em todo o
procedimento de Fichte, o esforço de deduzir de um só
princípio (a
autoconsciência) as várias formas da atividade espiritual, as
quais, ao contrário, Kant havia simplesmente elencado como
se não se tratasse se não de enumerá-Ias.
Em outras palavras: Kant distinguia o conhecimento, a
von
tade, etc., como qualquer coisa separada, sem remontar a um
princípio único. Fichte, ao contrário, quer dar ao sistema
kantiano uma base unitária, remontando àquilo que, segundo
ele, era um tácito pressuposto dele. Diz, por isso, que a
Filosofia de seu mestre me
lhor se compeende apoiando-a sobre aquele princípio
fundamen 126
~
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-.....
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
tal, e que só por erro ela admite a existência de uma coisa
radicalmente diversa do eu. A coisa em si, segundo Fichte, não
éincognoscível, mas é o eu mesmo; a natureza é o limite que o eu
dáa si mesmo; é um produto, um campo que o eu se cria para poder
ali desenvolver a sua atividade. E isso é o cumprimento extremo do
sistema idealístico, no sentido subjetivo.
Se não existe a não ser o eu, o eu é livre (não depende de
outro, tão só de si mesmo), e por isso qualquer limitação aparente da
liberdade é efeito da subjetividade mesma, é uma autolimitação.
Assim, as nossas ações aparecem determinadas, com certeza,
pelas causas ou motivos, portanto não são livres, donde o temor de
vir o livre-arbítrio a ser sacrificado. Mas esta lei de determinação da
causa pelo efeito é puramente intelectiva, que o homem impõe a si
mesmo, e por isso ela não destrói nem diminui, de nenhum modo, a
liberdade. Eis, portanto, a liberdade defendida pela metafísica; e
mais, conciliada com o determinismo.
Não é inoportuno observar aqui que o caráter geral da
Filosofia fichtiana harmoniza-se com o caráter pessoal do autor.
Fichte tinha uma natureza entusiástica. Era apaixonado pela
liberdade. A sua Filosofia foi a da ação, uma espécie de
pragmatismo absoluto, e toda a sua obra tem significado de
apostolado, de reivindicação de liberdade em todas as esferas.
Entre os primeiros escritos de Fichte, é notável o de 1793,
intitulado Contribuição para a retificação dos juízos do público
sobre a Revolução Francesa, todo cheio de entusiasmo por aquela
revolução, considerada como a proclamação histórica dos direitos
naturais do indivíduo.
A Revolução Francesa, saudada de início com glória por
todos os espíritos liberais da Alemanha e da Europa em geral,
perdera muitas simpatias depois que degenerou em excessos
sangrentos, especialmente em 1793 (o ano do Terror).
Surgiram, então, severas críticas, largamente seguidas. Contra
elas opôs-se Fichte, sustentando a legitimidade da Revolução
127
GIORGIO DEL VECCHIO
Francesa, e da revolução em geral, porque todo povo tem o direito
de dar-se o governo que corresponda às suas aspirações, e isso
também com a violência, quando não seja possível de outra forma.
Também ele, nesse ponto, liga-se a Rousseau, e lhe
interpretajustamente a teoria do contrato social, considerando este
como princípio jurídico ou deontológico, como critério da
legitimidade dos governos.
Outras obras de Fichte são: Fundamento da doutrina da
ciência (1794), Lições sobre a missão do douto (1794) e,
especialmente importante para a nossa disciplina, Fundamento do
direito da natureza (1796), que é uma exposição sistemática da
teoria do direito natural segundo os princípios e os precedentes há
pouco indicados.
Especialmente manifesta é a influência de Kant. Para Fichte,
o imperativo jurídico supremo é: "O eu deve limitar a sua liberdade
individual, mediante o conceito da possibilidade da liberdade alheia,
com a condição de que os outros façam o mesmo". Não posso
reconhecer a mim mesmo uma liberdade sem reconhecê-Ia aos
outros. Também aqui, portanto, o fundamento do direito encontrase
no princípio da coexistência das liberdades.
Nessa obra encontramos também exposto o caráter diferencial
entre moral e direito segundo a visão kantiana, mas de modo a
acentuar ainda mais a antítese.
Ainda nesta obra Fichte trata, de acordo com Kant, de outras
matérias fundamentais, como noção do Estado, dos direitos
individuais, etc. Porém, em seguida, nota-se um progressivo
distanciamento do pensamento de Fichte em relação ao do seu
mestre.
As primeiras conseqüências importantes dessa evolução
aparecem no seu livro O Estado comercial fechado (1800), onde se
abandona o conceito do Estado como mera emanação dos direitos
individuais, direcionada apenas ao escopo de garantir aqueles
direitos, e se lhe atribui além disso uma função econômica.
128
".... HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
O Estado deve representar a vida perfeita e deve bastar-se a
si mesmo, ou seja, ter em si todos os elementos necessários e
suficientes (é o conceito platônico e aristotélico da autarquia que
renasce); deve fazer-se organizador e distribuidor do trabalho,
regulador das trocas, constituindo uma barreira diante do exterior,
até o ponto de proibir as trocas internacionais. O Estado deve ser
fechado não só juridicamente, mas também economicamente; e
deve assegurar a cada um a possibilidade de viver com o próprio
trabalho.
Por esta sua obra, Fichte foi depois incluído entre os
precursores do moderno socialismo de Estado.
Nos escritos posteriores, Fichte atribui ao Estado, além da
função jurídica e econômica, também a função de moralizador e de
promotor da cultura. Com isto ele se distancia muito da doutrina
kantiana.
Notemos, por último, que o pensamento de Fichte teve
importância especial também para as condições históricas daquele
tempo: concorrer para reerguer o espírito germânico, deprimido
pela conquista de Napoleão, em especial com os seus Discursos à
nação alemã (1808), onde, porém, o exasperado amor à pátria leva
às vezes o filósofo a expressões de cru e tacanho nacionalismo.
O ensinamento de Fichte encontra paralelo nas obras de
outros pensadores e patriotas, quais, por exemplo, entre os
italianos, Gioberti. Houve entre eles quem, como Romagnosi e
sobretudo
Mazzini, soube desenvolver o seu apostolado em um sentido ainda
mais alto e universal, propugnando a um tempo pela ressurreição e
pela liberdade de sua pátria e de todas as outras.
A escola do direito natural, tornada mais precisamente escola
do direito racional sobretudo pela obra de Kant (cf. supra), atingiu
com Fichte, na primeira fase de seu pensamento, o mais alto
fastígio.
Entre os numerosos seguidores dessa escola, devem-se re
cordar também, pela eficácia e difusão que tiveram suas obras: F. v.
Zeiler (1751/1828); professor em Viena, onde tinha sido discípulo
do trentiano C. A. Martini (1726/1800), seguidor de Wolff, e
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GIORGIO DEL VECCHIO
autor, ele também, de notáveis escritos de Filosofia do direito; o
Direito privado natural, de Zeiller, foi editado muitas vezes também
em italiano; l.E Fries (1773/1843), que, apesar de dissentir, em parte
de Kant, acatou-lhe, em substância, os princípios; P. 1. A. Feuerbach
(1775/1833), conhecido sobretudo como penalista, mas importante
também por suas doutrinas filosófico-jurídicas; K. Gros, K.
Zachariae, A. Bauer, W Krug, C. Droste-Hülshoff, C. v. Rotteck
(1775/1840), a quem devemos um dos mais elaborados tratados da
matéria (Lehrbuch des Vernunftrechts und der
Staatswissenschaften, 4. v., 1829/1835), etc. À mesma escola
pertenceram ainda alguns italianos, como, por exemplo: P. Baroli
(1797/1878, professor em Pávia: Direito natural privado e público,
6 v., 1837); G. P. Tolomei (1814/1893, professor em Pádua, Curso
elementar de Direito natural ou racional, 2. ed., 1849; 1855, e
outras edições sucessivas, 2 v.), etc. e obras que merecem ser
estudadas.
Ligam-se ainda a essa escola outros notáveis pensadores,
como Rosmini e Taparelli (ao qual faremos menção mais adiante),
embora tenham eles dado a suas doutrinas fundamento
prevalentemente teológico.
Todos esses autores sustentam o princípio de que existe um
direito ideal antes do direito positivo; o conceito de justo e de
injusto é anterior ao Estado, o qual, por isso, não pode fixar-lhes
arbitrariamente os limites, mas deve reconhecer e garantir os
direitos individuais, presconstituídos pela natureza e demonstrados
pela ra
zão. Daqui uma espécie de esquematismo lógico e um caráter que,
às vezes, pode parecer muito estreitamente individualístico no trato
dos problemas sociais.
Somente o Fichte "da segunda maneira" modifica tal
posição, que permanece, contudo, característica, para escola do
direito racional propriamente dito.
Seja como for, essa escola tem o mérito de ter mostrado
verdades essenciais em tomo do direito, recolhendo e aperfeiçoan
130
~
....
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
do os frutos das indagações precedentes e evitando, de outra parte,
os erros metodológicos de Grócio e dos primeiros jusnaturalistas.
Assim, ela abandonou a mitologia do estado natural, somente
recordando a velha fórmula como mera hipótese, com escopo
demonstrativo.
Deve-se ainda assinalar como mérito dessa mesma escola o
zelo por ela desenvolvido no ilustrar, além da idéia do direito em
geral, cada um dos institutos do direito privado e público,
procurando recolher, à luz da razão, o fundamento intrínseco de
cada um deles, para assinalar ainda, precisamente, os defeitos da
legislação positiva e promover-lhe a oportuna reforma. A obra da
escola foi, na realidade, útil, tendo efetivamente contribuído para os
avanços legislativos, em especial na preparação dos Códigos em
vários Estados; e mais teria podido ajudar se a ela não se tivesse
oposto àescola do historicismo, em suas variadas formas.
o historicismo
A escola do direito racional foi objeto de fortes críticas
da parte de uma diversa tendência de pensamento, que se
divide em vários ramos, mas que tem um significado
fundamental de oposição ao raciocínio puro e abstrato. Na
verdade, os pensadores daquela escola tinham produzido,
prevalentemente, com método dedutivo, ex ratiocinatione
animi tranquilli (= "pelo racicínio de alma tranquila", como
dizia Thomasius).
A esse tranqüilo raciocinar acompanhava às vezes certa
negligência com o material histórico, um insuficiente exame
dos fatos. Daí a reação que se anuncia em nome do resguardo
devido àhistória. Com o nome de historicismo designam-se
justamente as várias oposições surgidas contra as doutrinas ora
expostas e qualificadas como racionalismo. Mas a
denominação comum não de
verá impedir de distinguir no historicismo três correntes
distintas: o historicismo filosófico de Schelling e de Hegel, o
historicismo 131
1
GIORGIO DEL VECCHIO
político dos filósofos da Restauração, que se opõe à Revolução
Francesa, e, por fim, o historicismo jurídico, ou escola
histórica dos juristas alemães.
o historicismo filosófico ou idealismo objetivo
(Schelling, Rege!)
o idealismo objetivo é representado pelos sistemas de
Schelling e de Regel, muito parecidos entre si. Pode-se dizer que
pertence ao de Schelling a idéia fundamental, mas genérica; e ao de
Regel, toca o mérito de tê-Ia aperfeiçoado e desenvolvido em um
sistema rigoroso e completo.
Esta relação entre os dois sistemas é especialmente manifesta
no que se refere à nossa matéria, porque Schelling tratou
escassamente da Filosofia do direito, enquanto Regellhe dedicou
uma de suas maiores obras.
Federico Schelling (1775/1854) iniciou muito jovem a sua
atividade filosófica. Em 1795 publicou um breve escrito de Filosofia
do direito, com o título Nova dedução do direito natural, que é,
todavia, mais que outro, um reflexo da doutrina fichteana. Em 1800
publicou o Sistema do idealismo transcendental e, em 1803, as
Lições sobre o método do estudo acadêmico, obra notável
também porque esclarece as idéias políticas do autor.
Vamos traçar uma suma da sua posição especulativa.
Até então, o espírito tinha sido considerado como qualquer
coisa de subjetivo. A mente, o eu de Kant e de Fichte, eram
essencialmente qualquer coisa de pessoal. Com Schelling, o espírito
torna-se objetivo, e a sua primeira revelação é a natureza.
Isto porque a natureza já não é concebida (como queria
Fichte) como qualquer coisa morta, como um limite, mas como um
princípio ativo, um todo animado, um espírito que se transforma. E a
evolução da natureza afigura-se como uma série incessante de
tentativas para produzir o eu. O homem é a meta da natureza, ou
132
-" ...... ,
....
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
seja, o olho pelo qual a natureza contempla-se a si mesma. E
aqui Schelling se põe a distinguir a natureza corno sujeito e
corno objeto.
Advirta-se, porém, que a distinção já tinha sido feita
pelos escolásticos e por Espinosa, com terminologia própria.
De fato, eles falavam de natura naturans e de natura naturata
(natureza enquanto produz, e natureza enquanto é produzida).
A natureza corno sujeito está em infinita produtividade,
que
Schelling chama também alma do mundo (Weltseele): ela está
a exteriorizar-se primeiro no mundo físico (vegetal, animal) e,
depois, no mundo do espírito. Corno existe urna alma do
mundo, assim existe, também, urna alma do povo
(Volksseele). De início inconsciente ou subconsciente. É essa
alma que determina a constituição social e política.
Como se vê, acena-se em Schelling, pela primeira vez,
para o conceito de espírito popular ou coletivo, que devia
depois tornar uma importância notabilíssima, especialmente
na escola histórica
dos juristas (para a teoria do costume).
Dissemos que esse conceito foi apenas acenado;
porque,
na verdade, ele foi desenvolvido por Regel. Para ambos os
pen
sadores, o Estado é a mais perfeita criação do espírito. Toda a
Filosofia de Schelling (corno de resto a de Regel) ressente-se
de certa veneração do Estado e, mais em geral, para com o fato
estabelecido. Assim, em seus escritos encontramos, por
exemplo, estas fórmulas tão imprecisas quanto dogmáticas: "O
Estado é a união do ideal e do real"; "O Estado é a reunião da
liberdade e da necessidade", etc.
Ao lado do Estado existe ainda um outro organismo, a
Igreja. O Estado tem mais de real lá onde a Igreja tem mais de
ideal, mas arnbas as organizações possuem um e outro
elemento. Schelling aproxima, por essa via, o Estado da Igreja,
dando àquele um caráter teológico. Isto, sob o ponto de vista
crítico, não se pode considerar como um progresso, porque se
retoma, desse modo, a uma confusão de domínios e de
competências, já superada e corrigida pela Filosofia política
precedente. rn
GIORGIO DEL VECCHIO
Jorge Hegel viveu de 1770 a 1831. Menos precoce do
que Schelling, publicou suas obras depois deste. De fato, a sua
Fenomenologia do espírito é de 1807, e a Filosofia do direito,
de 1821.
O pensamento fundamental de Hegel é o idealismo
absoluto em sentido objetivo. Ele nega dogmaticamente
qualquer limite ao conhecimento; também o absoluto é
cognoscível. Para Kant, essa idéia era absurda e contraditória,
uma vez que, quando o absoluto viesse a ser conhecido, por
isso mesmo não seria mais absoluto, mas relativo. Mas Hegel
não cuida da obra analítica, prudente e sagaz de Kant, para
procurar os limites do conhecimento; por ela mostra até certo
desdém. Aí, o dogmatismo é um primeiro caráter da Filosofia
hegeliana.
Outro caráter (que se poderia indicar com o nome de
intelectualismo ou também de panlogismo) é constituído pela
identificação do pensamento e do ser.
Tudo é pensamento, e nada existe fora dele. As coisas
são como são pensadas; as formas subjetivas do conhecimento
são também as formas objetivas da realidade. Assim, por
exemplo, as leis astronômicas são também leis do pensamento
(matemáticas), são razões objetivadas; tudo o que acontece é
um movimento da idéia, ou seja, a idéia que se move. Um
passo célebre do prefácio da Filosofia do direito diz: "Tudo o
que é real é racional, e tudo o que é racional é real".
Surgia aí a impossibilidade de uma discordância entre o
ser e o dever ser, enquanto a consciência deste contraste tinha
sido o tormento e, juntos, a grandeza dos pensadores
precedentes, e tinha promovido tantos e nobres esforços para o
progresso das coisas humanas.
Para Hegel o fato é divino, é digno de adoração, porque
se
identifica com a idéia. Daí o significado também político da
Filosofia de Hegel, significado verdadeiramente otimista,
porque nenhuma injustiça, nenhuma violação de direito é, em
termos absolutos,
134
."...
~
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
possível. E como pelo caráter e pela posição dogmática Hegel
contrapõe-se a Kant e a Fichte, assim também pelo seu
otimismo diferencia-se dos críticos idealistas (dentre os quais
Schopenhauer), geralmente propensos ao pessimismo.
Outra peculiaridade da Filosofia de Hegel é o
evolucionismo. "Nada existe, tudo se transforma". "A luta é a
lei de todas as coisas". Este pensamento tinhajá sido expresso
por Erác1ito na antiguidade grega: "Tudo passa" (návT<x PÊi)
e "A guerra é a mãe e rainha de todas as coisas".
Para Hegel, o absoluto (isto é a idéia) transforma-se
através de contradições, contrastes, vicissitudes de luta. O
absoluto écognoscível só mediante um sistema de conceitos,
não por um conceito, que é necessariamente unilateral, parcial.
Como a realidade é essencialmente progresso, movimento,
assim também o sistema dos conceitos deve ser móvel,
composto de pensamentos em movimento.
Eis o método dialético, característico do hegelismo: todo
conceito é unilateral porque põe o seu contrário, suscita uma
contadição; de uma tese procede uma antítese; onde a
necessidade de um novo conceito, que apóia os dois conceitos
precedentes, os superiores, e elimina a contradição. Mas esse
conceito
superior, à sua vez, cai no seu contrário: por isso, outra vez
tese, antítese, síntese, e assim por diante.
Hegel quer aplicar a toda realidade esse método
dialético, procedendo sempre por via de contradições e de
superamento das contradições. Todo conceito sucessivo é
mais rico que os precedentes, porque os contém em si. O grau
superior é a verdade do inferior.
O primeiro conceito é o mais vago, o mais abstrato - é o
conceito do puro ser. O último é o mais cheio, o mais
completo - é a idéia que se pensa a si mesma, ou seja, o
pensamento do absoluto.
Expostas assim as caracteristicas gerais da especulação
hegeliana, convém observar mais de perto a estrutura do
sistema.
135
IIIII I!IIII
~ I
GIORGIO DEL VECCHIO
o sujeito do processo mundial chama-se idéia. A idéia, diz
Regel com uma terminologia muito pessoal, está, antes, em si, isto é,
representa um reino de verdades abstratas. Em um segundo
momento, a idéia está fora de si, exterioriza-se nas formas do espaço
e do tempo (como natureza). Em um terceiro momento, a idéia está
em si e por si, isto é, entra em si mesma, toma-se espírito.
Começa, assim, um novo processo, distinguindo-se em
espírito subjetivo, espírito objetivo e espírito absoluto. À sua vez,
cada um desses tem três graus (ou formas). O espírito subjetivo
distingue-se em alma, consciência e razão. O espírito objetivo se
apresenta nas três formas do direito, da moralidade e do costume
(também estes termos têm, como já veremos, um significado
especial).
Por último, o espírito toca o mais alto estágio do absoluto em
outras três formas: a arte, a religião e afilosofia, formas supremas
nas quais o espírito concilia-se consigo mesmo; e tem-se a
identidade perfeita entre sujeito e objeto. A arte e a religião são,
todavia, apenas os pródromos da filosofia, são filosofia que se
transforma. A relação que se estabelece entre estes três termos é
análoga à relação entre instituição, representação e conceito.
Devemos agora acrescentar algum esclarecimento da parte do
sistema que mais concerne à nossa disciplina, ou seja, do espírito
objetivo. Este reside sobretudo, como dissemos, no direito. O direito
é, segundo Regel, "a existência do livre querer".
Em outras palavras, é a liberdade que se põe externamente, é a
existência externa da liberdade. O querer do homem é
essencialmente livre; é livre enquanto é querer. Deste modo o
problema da
liberdade do querer, que afadigou tantos filósofos, é quase omitido,
ou seja, eliminado com uma simples identificação.
Mas, prossegue Regel, a liberdade, que é realizada nas formas
externas do direito, é falha porque se oculta em si mesma; e tem-se,
então, a moralidade (consciência moral), ou seja, o mo
mento subjetivo do dever que, à sua vez, é incerto e insuficiente.
136
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HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
Seguindo sempre o método dialético, a essa contradição deve
seguir-se a síntese; e tem-se o costume, o Ethos objetivo. Este, na
linguagem de Regel, significa a vida ética efetiva, concreta, como
síntese das categorias abstratas do direito e da moral. Aqui (no
costume) encontram-se três formas de organização: a famrlia, a
sociedade civil, o Estado.
Antes de Regel, ninguém tinha distinguido tão nitidamente
sociedade e Estado, figurando aquela como forma de organização
espontânea e este como forma de organização especial jurídica.
Regel porém, atribuiu erroneamente à sociedade muitos caracteres
jurídicos.
Também Regel, como Schelling, faz um panegírico do
Estado. O Estado é o grau mais alto do espírito objetivo. É o espírito
que desperta, enquanto se revela adormecido na natureza; é a
manifestação suprema da liberdade. Acima do Estado, apenas o
absoluto. Daí a importante conseqüência: todos os Estados estão em
condições de igualdade; não pode haver jurisdição humana sobre
ele. Assim se vem a justificar sistematicamente a guerra. Uma vez
que os conflitos entre Estados não podem ser solucionados ou
decididos por uma jurisdição superior, devem ser regulados, em
última análise, com a guerra, que é uma espécie de juízo divino.
A esse propósito Regel faz sua (talvez exagerando arespeito,
quanto ao sentido) uma máxima do poeta Shiller: "A história do
mundo é o tribunal do mundo". Isto é, os povos recebem na história
a sua justa sentença.
Portanto, Regel não admite a possibilidade de uma invasão
injusta ou de uma conquista ilícita: na guerra vence quem deve
vencer, e todo povo, como todo governo, tem a sorte que merece.
O espírito do mundo é superior ao espírito dos Estados, e
pronuncia irrevogavelmente sobre eles as suas sentenças.
O espírito do mundo atua por intermédio dos Estados,
fazendo-se representar ora por um povo, ora por outro. O Estado
que, em determinado momento, representa o espírito do mundo, é o
dominador dessa época.
137
GIORGIO DEL VECCHIO
Regel enumera quatro tipos de Estados, que teriam
representado, sucessivamente, como graus, o progressivo
transformarse do espírito do mundo: o Oriental, o Grego, o Romano
e o Germânico (isto é, Prussiano).
Assim, para Regel, o ideal último do Estado concretizar-seia
no Estado alemão e, mais especialmente, no Estado monárquico
prussiano. Entre eles não reconhece uma missão histórica universal
para a Itália, para a Inglaterra, ou para a França.
O caráter otimista e, mesmo na prática, conservador da Filo
sofia hegeliana lhe rendeu muita adesão, e foi, por certo tempo, a
Filosofia oficial do Estado prussiano.
Após várias vicissitudes, o filósofo obteve uma cátedra na
Universidade de Berlim, e ali pontificou como supremo árbitro da
Filosofia entre a admiração quase geral, até 1831, ano de sua morte.
Mas esse mesmo caráter oficial da sua Filosofia, que foi mo
mentaneamente um fator de sucesso, causou-lhe, mais tarde,
especialmente depois de 1848, ano de revoluções e de crises
políticas, não de todo sem razão, certo descrédito.
Notemos, enfim, que o sistema hegeliano apresenta-se sob
uma forma de idealismo. Efetivamente, identificando o real com o
ideal, ele é ao mesmo tempo um realismo. Por isso, não estranha
que do seio da Filosofia hegeliana tenham surgido também sistemas
materialistas. De lá, por exemplo, Marx extraiu o conceito de
necessidade histórica, entendendo esta, restritivamente, como
determinismo econômico (materialismo histórico).
o historicismo político ou a Filosofia da
Restauração
Já vimos como os sistemas de Schelling e de Regel
representaram uma espécie de historicismo filosófico, ou também
ideológico, enquanto identificam exatamente o tato histórico com o
ideal, e se reúnem na glorificação do fato mesmo. Todavia, esse
caráter
138
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-...
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
pertence a uma outra tendência que, não obstante certas
diferenças, podemos chamar de historicismo político. Essa,
aliás, teve vida efêmera, enquanto que retirava origem de
circunstâncias e contingências particulares, isto é, de uma
reação contra a teoria e a prática da Revolução Francesa.
Inspirara-se, no seu programa, na escola do direito natural que,
desenhando uma antítese entre o direito positivo e o natural,
tinha aberto espaço à critica das instituições vigentes e às
reivindicações políticas no sentido liberal.
Já, até o início da revolução, manifestaram-se oposições
ao programa dela, expresso na solene Declaração dos direitos
do homem e do cidadão (cf. supra). Assim, por exemplo, da
parte do inglês Burke, do qual trataremos em pouco.
Mas sobretudo os trágicos acontecimentos
sucessivamente ocorridos, em especial a decapitação do rei
Luiz XVI, suscitaram uma vasta e violenta polêmica contra a
pretensa "metafisica revolucionária ", imputando-se
inteiramente às teorias jusnaturalísticas até os excessos das
mais baixas paixões.
Este modo de reação visou praticamente restaurar as
monarquias absolutas, abatidas ou abaladas pelo grande
catac1isma da revolução. A "Santa Aliança", que os soberanos
da Áustria, Prússia e Rússia contraíram em 1815, para a defesa
de seus tronos ameaçados, é a manifestação concreta mais
característica da referida tendência. Nesse mesmo tempo, no
campo especulativo, produzse uma florescência de escritos,
tendentes analogamente a exaltar a
autoridade dos poderes estabelecidos e consagrados, há
muito, contra as pretensões inovadoras da razão individual. A
esta forma de historicismo foi, por isso, dado o nome de
"Filosofia da Restauração" .
Segundo as teorias dessa escola, o direito não é
qualquer coisa de abstrato, que possa ser descoberto
dedutivamente, excogitado pelo pensamento de quem quer
que seja. É, ao contrá
rio, um fato histórico, que supõe uma longa elaboração, e
deve ainda ser transmitido de geração em geração. 139
GIORGIO DEL VECCHIO
Conseqüentemente, também as Constituições políticas devem
ter uma base segura na tradição e não podem ser ciradas nem
reformadas, ex novo pela obra de cada pensador nem de um grupo de
doutrinadores.
Esta última tese tem particular referência aos fatos daquele
tempo, dado que exatamente no período da Revolução Francesa
teve-se (não só na França, mas também na Itália) uma série
copiosíssima de projetos de constituições políticas. Tanto que até
foram anunciados concursos com tal finalidade, e quase todo
cidadão se cria capaz de propor um sistema de governo para
substituir o existente. É óbvio, aliás, que observar o excesso nesse
sentido não significa provar a verdade da tese oposta, que tenderia a
fechar o uso da razão.
O historicismo político assume, prevalentemente, caráter
teocrático, tendo mesmo buscado convalidar a autoridade da tradição
com o dogma da investidura divina, em favor dos soberanos
absolutos. Retoma-se, com isso, às formas próprias do pensamento
medieval, para subtrair os regimes políticos da crítica dos povos e
dos filósofos.
A escola histórica tem, portanto, alguma coisa de retrógrado,
de anacrônico, que se revela sobretudo na acérrima hostilidade
contra as idéias liberais, mesmo quando elas representavam
progresso e uma conquista, em geral não repudiáveis, da consciência
dos tempos novos.
Isso não impede que alguns escritores dessa escola tenham
revelado dotes elevados de pensamento e também de eloqüência.
Relembremos entre os mais notáveis: L. De Bonald
(1754/1840, Teoria do poder político e religioso na sociedade
civil, 1796; Legislação primitiva, 1902; Ensaio analítico
sobre as leis naturais da ordem social, 1817, etc.) de tal
modo inclinado ao absolutismo político, a ponto de preferir,
por exemplo, a antiga constituição egípcia à inglesa;
Giuseppe De Maistre (1753/1821), nascido em Sabóia,
quando essa região fazia parte do reino da Sardenha.
140
~
~
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
Fez seus estudos universitários em Turim, onde morreu, depois de
ter sido ministro do Rei Vitório Emanuel I na Rússia. Obras
principais: Considerações sobre a França, 1796; Ensaio sobre o
princípio gerador das constituições políticas, 1810; Do Papa, 1819;
As tardes de São Petersburgo,1821). Também feroz adversário do
contratualismo e do racionalismo, fautor da teocracia e entusiasta da
Idade Média; o suíço c.L. v. Haller (1768/1854), autor de uma obra
respeitável pelo seu caráter sistemático, intitulada Restauração da
ciência política (6 v., 1816/1825), tendente da mesma forma a
combater as ideologias revolucionárias e os princípios do
liberalismo em geral; os alemães F. v. Gentz (1764/1832), J. Gorers
(1776/1848), A. Müller (1779/1829) e K. Jarcke (1801/1852), cujo
pensamento, em especial dos dois primeiros, teve diferentes fases;
enfim, e não menos notável, o italiano Clemente Solaro della
Margarita (1792/1869), que foi ministro do rei Carlos Alberto de
1835 a 1847 e tentou em vão, opor-se à concessão do Estatuto,
sustentando inflexivelmente também, com seus escritos
(MemorandD histórico-político, 1851/1852; Acontecimentos
políticos, 1853; O homem de Estado orientado para para o governo
da coisa
pública, 1863/1864), os princípios do absolutismo e do legitimismo
tradicional.
o historicismo jurídico ou a escola
histórica do direito
Bem maior importância tem uma terceira corrente, ou espécie
do historicismo, que podemos chamar de historicismo jurídico, e
que comumente se chama escola histórica do direito.
Diferentemente das outras tendências mencionadas, ela não
tem propósito filosófico direto nem político, porém suas doutrinas
interligam-se mediante certas premissas filosóficas e também por
meio do programa da restauração política. Isso aparece também na
origem da escola, que, não diversamene da Filosofia da Restau
141
GIORGIO DEL VECCHIO
ração, foi determinada em parte pela reação contra a
Revolução Francesa.
Um dos inspiradores da escola histórica do direito foi,
em verdade, o inglês Edmundo Burke (1729/1797), com sua
obra intitulada Reflexões sobre a revolução da França (1790).
Nela o autor, opondo-se resolutamente às teorias
jusnaturalísticas (em especial às de Rousseau), que tinham
então inspirado o trabalho legislativo da Constituinte, sustenta
o princípio da continuidade histórica.
As instituições políticas fundam-se, a seu ver, na
história e nas tradições de cada povo, e é por isso um grave
erro querer mudá-Ias subitamente por meio de raciocínios
abstratos, de caráter uni versal. Assim, critica a Declaração
dos direitos do homem e do cidadão, qualificando-a como um
"digesto da anarquia".
Th. Paine (1737/1809) respondeu a Burke defendendo
os princípios da Revolução Francesa (Direitos do homem,
1791/ 1792), como já havia defendido os mesmos princípios
da revolução americana (Senso comum, 1776).
Idéias semelhantes às de Burke foram sustentadas em
seguida por escritores italianos, especialmente por Vincenzo
Cuoco, no seu Ensaio histórico sobre a revolução de Nápolis
(1801).
Mas, se Burke é quase um precursor ou inspirador da
escola histórica do direito, seus verdadeiros chefes e
fundadores foram três grandes juristas da Alemanha (onde a
escola floresceu sobremaneira), a saber Hugo, Savigny e
Puchta.
O primeiro, Gustavo Hugo (1764/1844), destacou
alguns fundamentos do programa em um escrito de 1790, mas
incidentalmente, enquanto seu pensamento se desenvolveu
exata
mente por outras vias, com caracteres próprios, que seria supér-
.
fluo examinar. A compilação completa e sistemática foi feita,
todavia, por Federico Cado v. Savigny (1779/1861), em um
célebre opúsculo de 1814, voltado a um fim polêmico contra
Antônio Thibaut. Este (professor, como Savigny, em
Heidelberg), tinha 142
~
&.
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
publicado, em 1814, um libreto intitulado Da necessidade de
um direito civil geral para a Alemanha, no qual sustentava que
se deveriam unificar todas as leis vigentes nos vários Estados
alemães, formando um só código.
A idéia da codificação não era nova, uma vez que
contava já em seu favor com experiências em alguns Estados
italianos, na Prússia, na Áustria e especialmente na França,
cujo Código Civil, preparado durante a revolução, teve o selo
de Napoleão.
A tendência à unificação legislativa era, de resto,
resultado lógico da orientação racionalística. Não era por acaso
que, depois da proclamação dos direitos do homem e do
cidadão (1789), passaram os homens da Revolução Francesa a
se dedicarem à elaboração de normas do direito privado, para
reuni-Ias na unidade sistemática do Código que, aprovado em
1804, é ainda hoje vigente na França.
Thibaut fizera-se representante, na Alemanha, dessa
tendência racionalística, aduzindo em sustentação da
codificação, razões tiradas, preferentemente, da prática. Assim,
fazia notar os inconvenientes produzidos pela disparidade das
leis e dos costumes e ainda chamava a atenção para a
importância nacional que a unificação do direito privado
assumiria nas relações entre os vários Estados alemães.
Savigny opôs-se a Thibaut com o célebre opúsculo Da
vocação do nosso tempo para a legislação e para a
jurisprudência, publicado no mesmo ano de 1814. Declara-se,
aí, contrário não só a toda codificação, mas também, sob certo
sentido, à legislação em geral, porque as leis (e a fortiori os
códigos) são enrijecimentos do direito, constituem qualquer
coisa de morto, que lhe impede o desenvolvimento ulterior. O
direito, sustenta Savigny, vive na prática e no costume, que é a
expressão imediata da consciência jurídica popular.
A "consciência jurídica popular" tem um conceito
característico, que a escola histórica do direito derivou do
historicismo filo
143
GIORGIO DEL VECCHIO
sófico de Shelling e de Rege!. (Em verdade, toda essa corrente está
em estreita conexão com o historicismo filosófico, e até se pode
chamá-Ia uma aplicação particular dele no campo do direito.)
Segundo a escola histórica, todo povo tem um espírito, uma
alma sua, que se reflete em uma numerosa série de manifestações:
moral, direito, arte, linguagem, são produtos espontâneos e
imediatos, todos, desse espírito popular (Volksgeist).
Especialmente notável, nesse propósito, o paralelo entre o
direito com a linguagem: como a linguagem surge e se desenvolve
espontaneamente, sem o trabalho dos gramáticos, que só
posteriormente lhe fixam os princípios e as regras, extraindo-os do
fato da sua existência, assim o direito não é criação do legislador,
mas uma produção instintiva e quase inconsciente, que se manifesta
no fato, e só em uma fase posterior aceita a elaboração reflexiva por
meio dos técnicos, que são os juristas.
Ao trabalho dos juristas segue-se, depois, a legislação, que
se funda, porém, sobre costumes preexistentes.
Portanto, as leis, segundo Savigny, têm uma função de todo
secundária, nada mais fazem que fixar (e quase imobilizar,
cristalizar) os princípios já elaborados pela consciência j urídica
popular.
Somente esta é a fonte autêntica e genuína do direito. Daí a
aversão de Savigny (e em geral da escola histórica) contra a
codificação. Sendo sínteses sistemáticas de leis, os códigos têm
maior estabilidade e podem, a longo prazo, até conter a evolução
espontânea do direito.
Com a obra de Savigny conecta-se a de Giorgio Puchta
(1798/1846), da qual é de ser recordado sobretudo o tratado sobre
Direito consuetudinário (2 v., 1828/1837), de acordo com os
mesmos princípios.
Essa tendência doutrinária, que visava convergir toda atenção
para o estudo da consciência popular e dos seus produtos
imediatos, renunciando a toda inovação legislativa, foi benéfica por
promover o
144
,,-
~
.....
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
estudo do fato histórico do direito e induzir a considerar o surgir do
direito em relação às condições particulares de cada povo.
Por esta parte a escola histórica representa um progresso
relativamente às concessões precedentes, que descuravam o lado
positivo, histórico, do direito, mas tem, todavia, defeitos, que vieram
mais assinaladamente à luz com o progresso ulterior da ciência.
Antes de tudo, o estudo do direito positivo, justamente
propugnado pela escola histórica, não deve excluir a especulação
ideal da justiça. Segundo a doutrina daquela escola, devemos tomar
uma posição passiva diante de todo produto histórico. Mas essa
adoração do fato consumado contradiz a exigência crítica da nossa
consciência e é negação de todo progresso jurídico. Se identificamos
sistematicamente o real com o ideal, negamos a possibilidade do
progresso. Eis o ponto no qual permeia o erro de todo o historicismo
e em que se revela, de outro lado, a superioridade das escolas
racionais clássicas. A simples observação do fato, propugnada pelo
historicismo, não basta. O fato não pode conter a noção do direito;
antes, a escolha dos fatos pressupõe um intuito ideal, porque, para
recolher os fatos ou fenômenos jurídicos, devemos, antes de tudo,
ter os critérios distintivos do jurídico do não
jurídico.
A teoria tratada é falha também quanto ao costume e às fontes
do direito em geral, porque contempla só a fase originária da
evolução jurídica, enquanto está em contraste com as fases que se
seguem.
Na verdade, se é certo que o direito surge mediante o costume,
não é menos verdadeiro que o costume é depois, gradativamente,
absorvido pela lei.
Se é verdade que o costume é a fOl1lla primitiva,
rudimentar, tosca, do direito, é igualmente verdade que a
elaboração legislativa é uma fOl1lla superior, uma vez queadmite e
supõe uma crítica, uma discussão, uma consciência "toda atenta".
145
GIORGIO DEL VECCHIO
A mais, se a lei, em sua origem, não tem outra eficácia que a
de estabelecer e fixar os produtos do costume, mais tarde ela se
constitui como fonte autônoma, afirma-se como inovadora, também
a respeito do costume.
A teoria da escola histórica tem, em suma, o defeito de ter
dogmatizado a fase inferior do desenvolvimento. Daí se poder dizer
que aquela teoria recebe tanto o desmentido dos fatos, quanto mais
avançados são os estágios da civilização.
O cotejo do direito com a linguagem é também verdadeiro
apenas em parte (em grau inferior). Entendido em absoluto, conduz
a desconhecer a eficácia que nos graus superiores de evolução
jurídica tem a livre e consciente discussão em tomo das leis de
sanção ou de reforma.
Outro defeito da escola histórica é a concepção romântica do
desenvolvimento do direito. Quanto de nebuloso, de fantástico, e,
digamos mesmo, de ichlico o domina! A consciência popular
deveria ser algo de misterioso, de infalíveL Mas essa é uma
expressão mítica que não corresponde à realidade; é romantismo, é
mitologia.
A verdade é que a consciência e a vontade de um povo são
certamente mais que a síntese das consciências e das vontades
individuais. Aí, não sem erro, Ihering contrapunha à concepção
romântica da escola histórica, a realista da luta pelo direito, como
uma das formas da luta pela vida.
Efeti vamente, quando se trata de estabelecer uma norma de
direito, freqüentemente não existe acordo absoluto nem inspiração
uniforme, mas têm-se discussões e contrastes. A norma jurídica
positiva representa apenas a resultante das várias opiniões e
tendências, ou seja, exprime a vontade social que em um certo
momento predomina.
Característica da escola histórica é, além disso, um culto até
excessivo do direito romano, o que faz com que ela contradiga, às
vezes, os princípios por ela mesma afirmados. Os juristas da escola
histórica foram, em geral, rornanistas; consideravam o direito ro
146
"... HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
mano como protótipo de todos os direitos, válido de certo
modo para todos os povos. (Isso contrasta com a máxima da
mesma escola, segundo a qual todo povo teria um espírito
próprio, e a todo espírito popular corresponderia um certo
direito.)
Também, em razão desse culto unilateral do direito
romano, a escola histórica não deu, efetivamente, às pesquisas
históricas aquele impulso que dela se teria podido esperar e
que em nossos tempos foi dado pela escola etnológica e
comparativa, destinada
verdadeiramente a ilustrar, sem preconceitos restritivos, o
direito
de todos os povos. Observou-se justamente que, sob certo
aspecto, o direito romano tomara-se para a escola histórica
um sucedâneo do direito natural, combatido por ela.
Todavia, a teoria da escola histórica, salvo retificações
particulares, e o abandono de certos termos e caracteres
extrínsecos (que se vinham perdendo à medida que a doutrina
se difundia),
pode ser considerada ainda hoje predominante, com seus
méritos e com seus defeitos. São geralmente admitidos os dois
princípios da historicidade e da relatividade do direito. E assim
mesmo a opinião dominante é no sentido de que se deva voltar
a atenção apenas para o direito positivo, e não para o direito
naturaL
Essa tese, enquanto visa restringir o campo da Filosofia
do direito, excluindo a pesquisa pura da justiça, constitui um
erro assaz pernicioso. Mas ela é, sem dúvida, uma fase
passageira do pensamento, a qual, como se vê de alguns
sintomas de salutar reação, está já para ser superada. ***
Terminaremos esta breve exposição histórica acenando para
os escritores mais recentes; primeiro, os italianos e a seguir, os de
outras nações.
&. 147
~ I
I
I;
I
r I
II I 1
, VISÃO DA FILOSOFIA DO DIREITO /
NAITALIA,NOSTE~OSRECENTES
1. Da época de Vico a 1870, mais ou menoslO
A Itália, que assinalou um rasto glorioso na história da
Filosofia do direito, tem atravessado, todavia, períodos de
depressão intelectual. Vico, uma luminosa exceção, com
poucos outros, em um desses períodos obscuros, não foi por
isso plenamente compreendido por seus contemporâneos.
Dessa depressão a Itália vem-se recuperando, por
virtude própria e, em parte, também pelo influxo do
pensamento de outras nações; e a vemos participar com
honras, no século xvm, daquele movimento de estudo e de
pensamento, dito do iluminismo, que se desenvolve então na
Germânia e depois em França, por obra dos encic1opedistas.
Na Itália temos igualmente uma série de escritores que
tentam exaltar o grau de cultura da nação e de melhorar-lhe a
ordem política. Antes de puros filósofos, esses escritores são
mais publicistas, historiadores, economistas e também juristas.
Prosseguem o trabalho de liberação do espírito dogmático e
absolutístico, que tinha imperado na Itália por muitos séculos.
Contemporâneo de Vico foi Ludovico Antonio Muratori,
de Vignola, no Módeno (1672/1750) que, além de dar
poderoso impulso aos estudos históricos, escreveu várias obras
de temas moral e político (Da caridade cristã, 1723; A
filosofia moral, 1735;
I
10 Alguns dos escritores italianos desse período, como C. A. Martini, Solara della Margaritta,
etc.,já foram mencionados acima, incidentalmente, nos lugares oportunos.
& 149
II
GIORGIO DEL VECCHIO
Dafelicidade pública, 1749, etc.), não ricas de originalidade, mas
animadas de um vivo amor do bem, e um ensaio, Dos defeitos da
jurisprudência (1742), direcionado para a promoção da simplifi
cação das leis, seu recolhimento em códigos e a sua reta aplicação.
Este livro exerceu notável influência sobre escritores italianos e
estrangeiros (por exemplo, sobre o português L. A. Vemey), como
também sobre as primeiras tentativas de codificação que ocorreram
em vários Estados italianos na segunda metade do mesmo século.
Também exerceram atividade mais de historiadores que de
filósofos dois outros grandes contemporâneos de Vico:
Gianvincenzo Gravina, de Rogiano, na Cal abria (1664/1718), e
Pietro Giannone, de Ischitella, em Puglie (1676/1748); um e outro
porém, tentando,
por vias diferentes, retirar dos fatos particulares as razões mais ge
rais da vida do direito e do Estado.
Entre os escritores políticos desse tempo deve também ser
recordado Scipione Maffei, de Verona (1675/1755), que na obra
Conselho político (escrita em tomo de 1736, e publicada postu
mamente, em 1797) expôs considerações análogas às de
Montesquieu, especialmente sobre a Constituição inglesa. É, po
rém, muito duvidoso que ele possa ser visto (como parece a alguns
esdudiosos) como precursor de Montesquieu, pois que a obra sobre
o Espírito das leis, apesar de completada só em 1748, foi
iniciada pelo menos vinte anos antes; e também porque a estada de
Montesquieu na Inglaterra (1729/1731) é anterior ao de Maffei
(1736). Sob certos aspectos, além de caber a Vico, o título de
precursor cabe a Gravina.
Em Vico inspirou-se Jacopo Stellini, de Cividale deI Friuli
(1699/1770), que no livro De ortu et progressu mo rum (= "Do
nascimento e do progresso dos costumes" - 1740) e nas
lições de
Ética (dadas na Universidade de Pádua e publicadas postumamen
te, 1778/1779) combinou de certo modo, sem todavia aprofundálos,
os princípios viquianos com os aristotélicos, buscando deduzir
a diversidade dos costumes das diversas faculdades da alma
humana, enquanto a virtude consistiria no equi1fbrio delas.
150
~ HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
Com Vico identifica-se também Emanuele Duni, de
Matera (1714/1781), que em suas obras Ensaio sobre
jurisprudência universal (1760), Origens e progressos do
cidadão e do governo civil de Roma (1763) e A ciência do
costume ou seja sistema sobre o direito universal (1775)
reproduziu, muitas vezes de forma servil, as doutrinas do
grande napolitano, sem, aliás, entenderlhe verdadeiramente o
profundo significado.
Contra Duni, e contra o próprio Vico, voltou-se o jesuíta
Giovani Francesco Finetti, de Gradisca (1705/1782), na obra
De principiis juris naturae et gentium (= "Dos princípios do
direito natural e das gentes", 1764), acusando-o de impiedade,
por haver contraditado a Sagrada Escritura com a doutrina do
primitivo estado ferino dos homens. Seguiram-no uma longa
réplica de Duni (1765; em obra complementar de 1845, v. li),
e, a seguir, um opúsculo de Finetti (com o pseudônimo de
Filandro Misoterio), Apologia do gênero humano acusado de
ter sido certa ocasião uma besta (1768), e ainda outras
referências polêmicas de Duni na Ciência do costume, e de
Finetti na segunda edição de sua obra De principiis juris
naturae et gentium (1777).
Maior importância tem Antônio Genovês, de Castiglione
de Salemo (1712/1769), que ensinou Ética e Economia Política
na Universidade de Nápoles, e foi mesmo o primeiro a iniciar,
na Europa, o ensino de Economia Política, em 1754. Antônio
Genovês escreveu uma obra sobre direitos e deveres dos
homens institulada Da diceosina, ou seja da Filosofia do justo
e do honesto (1767), que se inspira em certo ecletismo e, em
particular, nas doutrinas de Wolff. Valiosos são ainda seus
tratados sobre o comércio, que se tomaram clássicos.
Também Giovanni Maria Lampredi, de Rovezzano,
próximo de Florença (1732/1793), inspirou-se nas doutrinas de
Wolff, que escreveu um tratado de Filosofia do direito com o
título Juris publici universalis, sive juris naturae et gentium
theoremata (= "Teoremas de direito público universal, ou de direito natural e
das .. 151
GIORGIO DEL VECCHIO
gentes", (1776/1778, trad. it. de D. Sacchi, "Direito público
universal ou seja Direito da natureza e das gentes", 2 ed., 1817,
1828). Esta obra serviu de texto às lições dadas pelo autor na
Universidade de Pisa (até 1791); um dos seus discípulos, o célebre
penalista Giovanni Carmignani, dedicou-lhe um amplo exame
crítico na sua História da origem e dos progressos dafilosofia do
direito (ed. póstuma, 1851, v. III, p. 175/197).
Escritor de notável eficácia social foi César Beccaria, milanês
(1737/1794), o qual em 1764 publicou aquele célebre libretoDos
delitos e das penas, que, traduzido em muitas línguas, propiciou ao
autor uma fama talvez superior aos seus méritos.
Em verdade, Beccaria foi mais que uma mente especulativa,
um espírito filantrópico, um verdadeiro representante do
iluminismo. Sem tentar remontar aos sumos princípios da Filosofia,
fez-se promotor de uma reforma humanitária do direito penal. Ele
parte do conceito de que as penas devem ser, o quanto possível,
menores, isto é, reduzidas só ao necessário. Enquanto, aceitando a
teoria do contrato social, opina que por esse contrato os homens
tinham renunciado ao mínimo possível de sua liberdade. Daqui a
regra que a
pena é tanto mais justa quanto menos exceda os limites da pura
necessidade.
Adentrando no exame de cada uma das penas, Beccaria
demonstra não necessária, nem mesmo justa, em tese, a pena de
morte; combate também a tortura, então praticada em toda a
Europa, observando que ela leva a condenar "os inocentes débeis",
e a absolver os "celerados fortes". A ele pertence o mérito de ter
fixado claramente alguns princípios cardiais do moderno direito
penal, como, por exemplo, aquela regra segundo a qual ninguém
pode ser
punido por um fato que não esteja previamente qualificado como
crime pela lei (nullum crimen sine lege). Fixou atenção sobre a
necessidade de vetar interpretação extensi va das leis penais e so
bre a impossibilidade de raciocinar por analogia em tal matéria; e
insistiu igualmente que as leis devem contemplar os crimes por
categorias inteiras, e não por casos singulares determinados.
152
~
.i..
-....
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
o livrinho de Beccaria foi amplamente discutido,
celebrado por muitos, combatido por outros, por exemplo, por
Kant, que reprovou nele o humanitarismo sentimental.
Entende-se facilmente o contraste: enquanto Beccaria
assinala para a pena um fim utilitário, reduzindo-o ao estrito
necessário para preservar a sociedade (nec peccetur = "não se
pecará"), Kant segue, ao contrário, o conceito da penalidade
fundada sobre justiça absoluta (quia peccatum est = "porque é
pecado"), ou seja, considera a pena como expiação necessária para
copensar o mal moral do delito.
Pedro Vem (1728/1799), cultor de várias ciências, e o irmão
menor, Alessandro (1741/1816), foram concidadãos e amigos de
Beccaria, ao qual deram estímulo e matéria para a sua obra, que
depois defenderam contra as críticas por ela suscitadas.
Os dois irmãos Vem, com Beccaria, Gian Rinaldo Carli (de
Capodistria, 1720/1795) e outros, todos inspirados por ideais de
liberdade e de progresso civil, colaboraram no periódico O Café,
que, sob a direção de Pedro Verri, saiu por dois anos (1764/1766)
em Milão e foi o órgão do novo movimento intelectual. Entre as
obras de Pietro Vem recordamos Meditações sobre economia
política (1771), e o Observações sobre a tortura (1777), no qual ele
também, como Beccaria, combateu esta cruel prática arraigada.
Pode-se aqui lembrar também o nome, então célebre e hoje
esquecido, do abade Pietro Tamburini, de Bréscia (1737/1827) que
foi professor na Universidade de Pávia, e nas suas Lições de
Filosofia moral e de direito natural e social (1803, nova edição em
1833) tratou com largueza de vista e espírito humanitário numerosas
questões de Ética aplicada às matérias sociais e políticas. Em outras
obras (especialmente nas Letras teológico-políticas sobre a presente
situação das coisas eclesiásticas, 1794) sustenta as razões do poder
civil em face do eclesiástico, o que lhe acarretou não poucos
confrontos.
153
GIORGIO DEL VECCHIO
1 11
"I
Francesco Mário Pagano, nascido em Brienza (Lucânia), em
1748, e morto em 1799, foi um espírito nobilíssimo de cientista e
patriota, tendo também associado, como freqüentemente acontecia
naqueles tempos de grandes manifestações políticas, a atividade
prática e os estudos teóricos. Foi decapitado em razão do partido que
tomou no movimento revolucionário que produziu a República
Partenopéia*, quando esta caiu.
Pagano tem um lugar notável na história do pensamento
italiano por um estudo sobre o processo criminal, onde invoca os
princípios mais justos e humanos, seguindo a posição de Beccaria; e
especialmente por seus Ensaios políticos, publicados em 1783.
Nesse tratado conduziu-se como discípulo de Vico, ao qual se refere
muitas vezes expressamente. Quis traçar um quadro das origens da
sociedade, de seu progresso e de sua decadência, isto é, quis fazer
obra de Filosofia da história, segundo o grande projeto viquiano.
Também ele, como Vico, distingue três períodos na história
humana. Também ele ensina que a humanidade saiu da barbárie; e
considera especialmente a importância dos fenômenos naturais na
mentalidade primitiva; a origem dos mitos e das religiões é por ele
posta igualmente nos cataclismas e principalmente nos terremotos;
para a prova de suas teorias examina (no prefácio da primeira edição
do seu Ensaios políticos) os efeitos morais do terremoto ocorrido
então (1783) na Calábria, que foi um dos mais catastróficos de que
se tem memória. Pagano, porém, diferencia-se de Vico por uma
certa inclinação ao materialismo.
Foi forte sobre ele a influência da Filosofia sensística, que
então ingressara na Itália vindo da França. Com efeito, aceita o
conceito mecânico da vida e concebe o ser humano como uma
máquina submetida a leis invariáveis.
* N. T. - República proclamada em Nápoles pelo francês Championet. Teve vida
efêmera. Uma coalisão de forças (ingleses, russos e turcos) promovida pelo Papa
retomou Nápoles e rechaçou os franceses além do Vale do Pó.
154
~ HISTÓlUA DA FILOSOFIA DO DIREITO
Para Vico, a utilidade e a necessidade são apenas motivos
ocasionais que induzem o homem a "celebrar a sua verdadeira
natureza" (bona occasio est utilitas). Ao contrário, para Pagano,
tOdas as ações e fatos históricos se explicam com a só considera
ção das necessidades, dos impulsos; e as razões ideais teriam uma
importância subordinada.
Pode-se dizer que, sob esse aspecto, sua vida foi mais nobre
do que sua doutrina.
Ao lado do nome de Pagano pode-se também recordar o de
Vincenzo Russo, nascido em Palma Campania, perto de Nápoles,
em 1770, e morto, também, no patíbulo em 1799, vítima da reação
burbônica em razão das idéias audaciosamente inovadoras por ele
professadas. Na sua obra intitulada Pensamentos políticos ele
propõe vastas reformas de caráter social.
Espírito nobilíssimo foi, também, Gaetano Filangieri, que,
nascido em Nápolis, em 1752, morreu prematuramente em 1788,
deixando incompleta sua grande obra Ciência da legislação, que,
no entanto, permanece como uma das obras mais respeitáveis sobre
Filosofia civil e política.
Filangieri inspirou-se principalmente em escritores franceses
do seu século, e na Ciência da legislação o influxo de Montesquieu e
de Rousseau aparece evidente. Em certo sentido, a sua obra é
análoga à de Montesquieu sobre o Espírito das leis.
Onde, porém, Montesquieu foi antes um filósofo analítico,
inclinado a observar o fato existente, Filangieri quis ser antes de tudo
um reformador: nos seus escritos os desenhos do futuro prevalecem
sobre representações do passado. Suas idéias são liberais. Põe como
princípio que a liberdade é inalienável, e o Estado deve, em primeiro
lugar, garantir esta liberdade. Quer, não obstante,
estender as funções do Estado, a fim de conseguir, com a sua
autoridade, o maior bem da sociedade.
Além de tratados gerais sobre governos, Filangieri fez
profundas considerações sobre vários objetos legislativos e adminis
155
r
GIORGIO DEL VECCHIO
trativos, como, por exemplo, sobre a instrução pública e o
ordenamento das escolas, universidade, etc., tratados
verdadeiramente maravilhosos pela clareza e modemidade das
idéias, que deveriam ser ainda hoje meditadas.
Filangieri ocupa-se, também, das funções do Estado a res
peito do comércio e, em geral, sobre todas as formas da vida civil.
O siciliano Nicola Spedalieri (1740/1795), autor da obraDos
direitos do homem (1791), é uma figura característica, que
pode
também parecer ambígua. De fato, ele foi abade e ao mesmo
tempo pregoeiro entusiasta dos princípios da Revolução Francesa.
Quis conciliar a liberdade com a teocracia, as doutrinas do
racionalismo democrático com os dogmas da Igreja, o que denuncia
certo dissídio em suas idéias. No primeiro capítulo da obra citada é
sustentada a
teoria do contrato social, e são reivindicados os direitos naturais do
homem (na verdade sem muita originalidade, porque é manifesta a
derivação das teorias de Rousseau e de outros escritores, especial
mente franceses).
A seguir, nos sucessivos capítulos, Spedalieri quer demons
trar que o melhor protetor desses direitos é a Igreja. E,
prosseguindo por essa via, chega a anular em parte as doutrinas de
liberdade antes sustentadas. Mantém, ao contrário, a intolerância
religiosa, legitima a censura episcopal e outros institutos análogos,
exatamen
te nos quais se apoiavam aquelas doutrinas.
Resulta do sistema como Spedalieri tinha desenhado uma
reforma da política eclesiástica em sentido liberal. Isso explica as
várias interpretações e discussões, até apaixonadas, que se fizeram
mesmo em tempos recentes em tomo da obra de Spedalieri. Dele
pode-se dizer verdadeiramente que teve a sorte de ser combatido
por todos: pelos conservadores ortodoxos, por causa dos princípios
revolucionários contidos na primeira parte da sua obra; e pelos
liberais democráticos, por causa de suas conclusões teocráticas e
pelo ilimitado poder civil por ele atribuído à Igreja.
De resto, tal fenômeno não é sem precedentes nem sem
sucessor na história do pensamento. Já vimos que muitos
monarcomatas
156
~ HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
eram jesuítas e com sua teoria democrática e revolucionária visavam
diminuir o poder dos príncipes e aumentar os da Igreja.
Qualquer coisa de semelhante apresenta Spedalieri, com o
que, não sem razão, foi definido como um monarcômaco atrasado.
De outra parte, ainda em nossos tempos, não faltaram tentativas de
introduzir um espírito inovador na política da Igreja. Quanto a essas
tentativas, Spedalieri talvez pudesse ser considerado precursor.
Outros notáveis pensadores meridionais são Vincenzo Cuoco,
de Civitacampomarano, no Molise (1770/1823), que, entre outras
obras, escreveu um Ensaio histórico sobre a revolução de Nápolis
(publicado em 1801); e CataldoJannelli, de Brienza (1781/1841),
que em 1817 publicou o ensaio Sobre a natureza e a necessidade da
ciência das coisas e das histórias humanas, ambos inspirados
principalmente em Vico.
Em Cuoco é especialmente notável o profundo senso
histórico, que o induziu a uma crítica talvez até excessiva das
ideologias revolucionárias, crítica análoga, como acenamos acima, à
do inglês Burke.
O pensamento de Cuoco se contrapõe nisso ao dos gloriosos
mártires Pagano e Russo, dos quais ele foi também amigo. Jannelli,
alheio às questões políticas, meditou com intentos puramente
teóricos o grandeqJfojeto da Ciência nova, de Vico, e tentou
aperfeiçoá-Io, traçando os lineamentos programáticos de uma
"Historiosofia" e de uma "ciência das coisas humanas" que teria por
fim "o exato conhecimento do nexo e da subordinação das coisas
humanas entre elas". É fácil visualisar aí uma antecipação do
pensamento fundamental de Comte.
Gian Domenico Romagnosi, de Salsomagiore, em EmI1ia
(1761/1835), foi educado na escola do sensismo, difundida na Itália
depois da metade do século XVID, especialmente na região onde ele
nasceu, e também porque um dos chefes daquela escola, o filósofo
francês Condillac, foi a Parma como educador do príncipe na corte
burbônica, de 1758 a 1768.
Do Colégio Alberoni, de Piacenza, onde Romagnosi foi
educado, saiu também outro pensador de certa importância,
Melchiorre
.. 157
GIORGIO DEL VECCHIO
Gioia (1767/1829). Em uma obra juvenil (sobre o tema Qual dos
governos livres mais convém àfelicidade da Itália, 1797) Gioia
sustenta, com espírito liberal, a idéia de unidade da Itália, contra a
tendência federalista.
Em outras obras tratou de questões sociais e morais, e ainda
econômicas, como também da Estatística, uma ciência ainda em
formação (Novo prospecto das ciências econômicas, 1815/1819; Do
mérito e das recompensas, 1818; Filosofia da estatística, 1826).
Romagnosi, inteligência ainda mais vasta, aplicou a sua
atividade em várias ciências e em todas as partes da Filosofia. Seu
pensamento conservou sempre um caráter naturalístico, pelo qual se
pode dizer que ele antecipou o positivismo moderno.
De suas numerosas obras recordamos: Gênese do direito
penal (1791 ),Introdução ao estudo do direito público universal
(1805), Da constituição de uma monarquia nacional representativa
(1815, primeira parte da obra A ciência das consituições, publicada
intergralmente, após a sua morte, em 1848, Primeiro propósito da
ciência do direito natural (1820), Instituições de Filosofia civil ou
seja dejurisprudência teórica (1825; edição póstuma, 1839).
Como transparece ainda destes títulos, além de estudos de
pura Filosofia, Romagnosi aplicou o seu robusto engenho não só em
diversas ciências, mas também nas disciplinas jurídicas, em toda a
sua amplitude.
A terminologia usada por ele é talvez obscura e ambígua;
encontram-se mesmo nos seus escritos termos metafísicos
(derivados da escola de Wolff), que poderiam induzir em erro sobre
o verdadeiro caráter do seu pensamento. Na verdade, ele quer
excluir a noção do absoluto, seja sob o aspecto teórico, seja sob o
aspecto prático, dando um significado relativo também às idéias do
bem e do dever.
Romagnosi tem o mérito verdadeiramente grande de ter
aprofundado o conceito de sociedade. Concebeu a sociedade como
158
~
1.
.......
HISTORIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
um organismo que surge, desenvolve-se e decai por leis
próprias. Conceito análogo àquele sustentado depois por
Spencer.
Importante é o confronto entre Romagnosi e Spencer,
porque nas doutrinas desses dois autores encontram-se iguais
pontos de contato, naturalmente com vantagem para o
primeiro, que precede o segundo de mais de meio século.
O caráter geral da Filosofia de Romagnosi pode ser
compendiado nas palavras naturalismo e determinismo. Essa
tendência manifesta-se também no campo do direito penal,
como se pode ver em sua primeira obra, há pouco citada.
Romagnosi quer fundar o direito penal prescindindo da
idéia do livre-arbítrio. A pena é por ele considerada como uma
defesa da sociedade. Parte do conceito da motivação
psicológica: existem impulsos ou motivos que levam o homem
ao delito; contra esses motivos deve agir o motivo mais forte
da pena. À força impulsiva do delito deve corresponder a força
repulsi va da pena; ao impulso, o contra-impulso.
Outra parte importante do sistema de Romagnosi é a sua
doutrina do Estado constitucional, fundada sobre o princípio
da nacionalidade, ou "etniarquia"; desse princípio foi, talvez o
primeiro, indubitavelmente um dos primeiros defensores.
Ao sensismo francês e também italiano opõe-se o grande
filósofo Pasquale Galluppi, de Tropea, na Calabria
(1770/1846). Suas obras principais são: Ensaio filosófico
sobre crítica do conhecimento (1819), e Filosofia da vontade
(1832/1840). Galluppi sentiu principalmente a influência de
Kant, sem, todavia, aceitar-lhe todas as idéias. Ele é, em certo
sentido, o Kant italiano. Põe como princípio fundamental o
fato originário do eu, que sente o não eu.
Se não se parte da consideração do sujeito, não se pode
chegar ao objeto. Galluppi distingue dois poderes primordiais
no espírito humano: análise e síntese; e com eles quer explicar
todos os processos do conhecimento.
Na Filosofia prática Gàlluppi é ainda mais vizinho de
Kant porque, como este, combate a moral eudaimonística ou
utilitária, e 159
GIORGIO DEL VECCHIO
sustenta o absolutismo da lei do dever e do princípio do bem. O
direito é por ele definido como "o poder moral de fazer o que a lei
não veda".
Enquanto Galluppi esteve imune às preocupações políticas, o
mesmo não se pode dizer de outros filósofos italianos, dentre os
quais os dois maiores, Rosmini e Gioberti.
Não obstante tenham polemizado entre eles (e mais ainda
polemizaram os seus respectivos discípulos), em um exame
objetivamente histórico suas figuras aparecem relativamente
vizinhas. Ambos foram sacerdotes e buscaram conciliar a Filosofia
com a Religião, a Igreja com o Estado. Mas por suas tendências
liberais foram talvez hostilizados também pela autoridade
eclesiástica, que proibiu algumas de suas obras e desconfiou de seus
sequazes, em especial dos de Rosmini.
Vejamos brevemente suas doutrinas.
Antônio Rosmini Serbati nasceu em Rovereto (Trentino) em
1797 e morreu em 1855. Entre suas obras principais recordaremos:
Novo ensaio sobre a origem das idéias(1830), Princípios da
ciência moral (1831), Filosofia da política (1839), Filosofia do
direito (184111843),A Constituição segundo ajustiça social (1848),
O comunismo e o socialismo (1849, republicado com o título
Ensaio sobre comunismo e socialismo, em Apêndice à 2.
edição da Filosofia da política, 1858). Rosmini é idealista. Afirma
que existe uma idéia a priori em nós. Esse ponto de vista é análogo
ao de Kant.
Mas onde Kant tinha tentado formular um elenco de noções
ou elementos a priori, Rosmini reduz tais noções a uma só: à idéia
do ser (isto é, do ser possível e indeterminadíssimo). Essa idéia não
pode ser dada pela experiência, porque a experiência mesma supõe
a idéia do ser.
A filosofia prática de Rosmini é estritamente análoga à
Filosofia teórica. Princípio fundamental ético, segundo Rosmini é:
"conformar as próprias ações ao grau de entidade dos objetos", ou
seja, "reconhecer praticamente o ser na sua ordem"
160
~
1.
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
Por isso, em primeiro lugar (eis uma aplicação característica)
tem-se o dever do respeito absoluto da personalidade, pois que na
personalidade o ser se manifesta na sua mais alta forma.
Rosmini esforça-se sempre para conciliar as doutrinas
filosóficas com os dogmas religiosos. E põe um cuidado especial no
conciliar o direito com a moral. Assim define ele o direito "uma
faculdade de operar o que agrada, protegida pela lei moral, que
impõe aos outros o respeito".
Distingue três espécies de sociedade: a teocrática, a doméstica e a
civil, e trata distintamente dos caracteres de cada uma. A política -
ensina - é a arte de conduzir a sociedade civil ao seu próprio fim. Mas
isso ela pode fazer somente com subordinação ao direito, ou seja,
àjustiça.
No traçar um projeto de "constituição segundo a justiça
social", declara ele que este projeto, compilado com vista à
monarquia, pode igualmente aplicar-se à forma republicana, quando
se troca o rei por um presidente. E coloca como princípio
fundamental que "os direitos da natureza e da razão são invioláveis
por todo homem".
As formas propostas por Rosmini (seguidas de considerações
explicativas) visam em parte ao Estatuto italiano de 1848, mas em
parte dele diferem (por exemplo, enquanto contemplam duas
Câmaras legislativas, ambas eletivas). Advirta-se que o escrito de
Rosmini remonta a 1827, apesar de publicado só em 1848.
Certamente teve presente o exemplo de outras Cartas
constitucionais.
As preocupações políticas tiveram parte notável, ainda que
como escapadelas da atividade filosófica, na vida de Vincenzo
Gioberti, torinense (1801/1852). Foi ele, em verdade, um dos
apóstolos do Ressurgimento italiano, e, muitas vezes, Ministro do
reino da Sardenha. Sua ideologia não difere profundamente da de
Rosmini. Também ele é idealista.
Porém, não parte, como Rosmini, do fato da consciência, mas
da revelação do ser absoluto, divino. Este ser é a causa criadora de
todas as coisas.
161
GIORGIO DEL VECCHIO
Gioberti recolhe sua Filosofia na fórmula: "O ente cria o
existente". As doutrinas filosóficas de Gioberti foram expostas por
ele principalmente nas obras Teórica do sobrenatural (1838),
Introdução ao estudo da Filosofia (1840), Protologia (edição
póstuma, 1857).
Muitas outras obras de Gioberti possuem conteúdo político.
Propôs-se a ressurgir o espírito italiano. Dirigiu para esse escopo
todo o livro publicado em 1843, Do primado moral e civil dos
italianos, escrito com um estilo um tanto enfático e empolado, mas
não privado de eficácia e eloqüência.
Esse livro suscitou grande entusiasmo; via-se nele um
auspício pelos destinos da pátria em um futuro não distante. Por
isso, mais que amá-Ia, devemos esquecer as desilusões pelos
acontecimentos de 1848 e de 1849. Desses fatos existe uma
descrição dolorosa na obra publicada por próprio Gioberti em 1851,
com o título Da renovação civil da Itália.
O ideal político de Gioberti (especialmente no Primado) foi o
dos guelfos, ou melhor, dos neoguelfos. Ele sonhou com a
unificação dos Estados italianos em forma de federação sob a
hegemonia do Pontífice, e muitos participaram também desse ideal.
As preo
cupações políticas e a brevidade da vida impediram o engenho
filosófico de Gioberti, que era, certamente, de primeiríssima ordem,
de dar todos os frutos que dele se podiam esperar. Ele teve, em
filosofia, vários seguidores, porém menos numerosos e notáveis do
que os de Rosmini.
Eclético pode ser considerado Terenzio Mamiani, de Pesaro
(1799/1885), que sofreu a influência sucessivamente de Galluppi,
de Rosmini e de Gioberti, e buscou ao final renovar o idealismo
platônico. Versou argumentos de Filosofia do direito nas obras: De
um novo direito europeu (1859), Teoria da religião e do Estado
(1868), Das questões sociais e particularmente dos proletários e do
capital (1882), etc. Digna de nota é a elevada discussão que
manteve com P. S. Mancini (de Castelbaronia, perto de Avellino,
162
~
~
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
1817/1889), sobre a Filosofia do direito e especialmente sobre o
direito de punir (1841).
Mamiani defende o projeto dogmático-idealístico e concebe a
pena como exigência absoluta.
Mancini inclina-se ao positivismo e entende a pena em
sentido relativo. É de ser recordado também, e sobretudo, o discurso
de Mancini, Da nacionalidade como fundamento do direito das
gentes (1851), que constituiu o programa da pretendida escola
italiana de direito intemacional,já anunciada por Romagnosi.
Foi o genovês Giuseppe Mazzini (1805/1872) um engenho
soberano, que teria podido apresentar singularíssima contribuição
também à especulação filosófica, se as lutas pela unidade e pela
liberdade nacionais não o tivessem ocupado constantemente.
Mazzini concebeu a vida como uma missão. Na sua doutrina,
o dever domina tanto na teoria quanto na ação. Assim, também a
idéia do direito é por ele subordinada à idéia do dever. Os seus
escritos são maravilhosos pela elevação e nobreza dos pensamentos
(recordemos, por exemplo, o livro Deveres do homem), mas, no
mais das vezes, de caráter político e também polêmico, voltados
para questões atuais. Contêm por si só esboços filosóficos bastante
sumários, entregues ao sentimento e à intuição, mais que à análise e
ao raciocínio sistemático.
Profunda e quase mística é a sua fé nos ideais de humanidade
e de progresso, que nele se sobrepuseram com os de pátria e de
soberania popular. Esses princípios diretivos são por ele afirmados,
em geral apoditicamente; mas a sua férvida e inflexível aplicação
prática é, por si mesma, uma demonstração eficaz deles. De grande
valor são ainda suas idéias sobre a solução da questão social,
mediante a colaboração e a solidariedade das várias classes que
compõem a nação.
Escritor de notável importância é também Carlo Cattaneo,
milanês (1801/1869), discípulo direto de Romagnosi, e, tal como
ele, inclinado ao naturalismo e ao positivismo. Projetou uma vasta
163
GIORGIO DEL VECCHIO
obra sobre a Psicologia das mentes associadas, tema então
novíssimo, fazendo dela objeto de algumas conferências no
Instituto Lombardo (1859/1863). Apreciável, apesar de
incompleto, é, ainda, o ensaio Do direito e da moral (1863,
edição póstuma, 1892). Em política, sustentou a idéia de uma
república federal, pondo-se em certa contradição não só com
as tendências monárquicas, mas também com o programa
unitário mazziniano.
De Romagnosi deriva igualmente Giuseppe Ferrari,
também de Milão (1812/1876), que teve entre os seus méritos
o de cooperar validamente a fim de que fossem estudadas e
apreciadas as doutrinas de Vico (Cuidou de uma edição, em
seis volumes, das obras de Vico, anotando-as e permeando-as
com um valioso ensaio sobre a mente de Vico). Escreveu com
vigoroso engenho, nem sempre com método rigoroso,
Filosofia da revolução (1851) e Curso sobre escritores
políticos italianos (1862), etc. Também, como Cattaneo, foi
tenaz defensor do federalismo. A sua fama de filósofo da
história é devida principalmente à sua obra Teoria dos
períodos políticos (1874).
Segundo essa teoria, todo desenvolvimento social
cumprese em quatro períodos, correspondentes à duração de
uma geração (cerca de trinta anos) cada um, períodos que
Ferrari chama dos precursores, dos revolucionários, dos
reacionários, dos que decidem.
Estes últimos completariam as coisas em ordem
estabilizada,
e então começaria novo ciclo.
Esta esquematização filosófica da história, como todas
as outras análogas, tem uma parte de verdade e uma parte de
erro, porque até mesmo a história refuta semelhantes
esquemas fixos.
Digno de memória é também o palermitano Emerico
Amari (1810/1870), por sua obra Crítica de uma ciência das
legisla. ções comparadas (1857), que prossegue e dirige a
novos desenvolvimentos, modificando em partes o
pensamento viquiano a res 164
~ HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
peito da Filosofia da história e especialmente do direito, com
particular atenção ao direito comparado.
São igualmente de serem recordados, na história do
pensamento filosófico italiano, alguns seguidores do hegelismo, e
em especial dois: Augusto Vera, de Amelia, na Úmbria
(1813/1885), que representa o hegelismo ortodoxo intransigente; e
Bertrando Spaventa, de Bomba, perto de Chieti (1817/1883), que
promoveu eficazmente o estudo da Filosofia alemã em geral e
também se ressentiu da influência da crítica kantiana. O seu
hegelismo é combinado de certo modo com o kantismo. Seus
Estudos sobre a ética de Hegel (1869) são importante reelaboração,
não desprovida de originalidade, das doutrinas hegelianas, também
sobre a Filosofia do direito.
Contribuições apreciáveis para a escola do direito racional
deram vários pensadores italianos, além de Baroli e de Tolomei, dos
quais fizemos acima referência. As obras desses pensadores não se
distinguiram por grande originalidade, mas continuaram não sem
méritos uma outra tradição do pensamento, e não merecem, por isso,
o esquecimento no qual vieram a cair. Tais são: C. BonCompagni
(Introdução à ciência do direito para uso dos italianos, 1848); B. D'
Acquisto (Curso de direito natural oufilosofia do direito, 1852); I.
Pizzarelli (Curso elementar de direito natural ou filosofia do
direito, 1859); P. Fiorentino (Programa de um curso de direito
filosófico ou seja princípios racionais do direito expostos segundo a
ordem lógica, 1859); M. A. Raibaudi (A ciência da justiça natural
entre os privados, 1860); A. CataraLettieri (Introdução àfilosofia
moral e ao direito racional, 1862, 2. ed., 1872); Vincenzo Pagano
(Novos elementos de direito racional ou universal, 1863); F. A. De
Luca (Afilosofia do direito ou seja instituição completa de direito
natural e direito público, 1863/1864. Também não é fora de
oportunidade recordar que o ensaio de B. Grisafulli Zappalà
(Autoridade dos italianos sobre a ciência do direito, 1862), que se
atém a semelhantes critérios na
1,. 165
GIORGIO DEL VECCHIO
valorização da contribuição do pensamento italiano aos
progressos da Filosofia do direito.
Da mesma forma devem-se recordar alguns escritores
que, se não pertenceram estritamente à dita escola, seguiram-
lhe em grande parte os princípios e os métodos, como:
Giovanni Carmignani (1768/1847) que, além da obra histórica
já citada (História da origem e dos progressos da Filosofia do
direito), e uma monografia ainda inédita, intitulada Juris
philosophiae lineamentaII, escreveu uma Teoria das leis da
segurança social (1831/1832) direcionada especialmente a
fundar sobre bases filosóficas o direito penal, em cuja
exposição teve como discípulo o grande jurista F. Carrara; P.
L. Albini (1807/1863), Ensaio analítico sobre direito e sobre a
ciência e instrução político-legal, 1839; Do princípio supremo
do direito, 1854; Princípios de filosofia do direito, 1857, que
buscou distinguir o "direito filosófico" do "direito da razão" e
do "direito positivo", avizinhando-se de Rosmini,
especialmente nos últimos escritos; F. DeI Rosso (Dever e direito - Ensaio de filoso
fia moral, 1845/1847), que analisou sobretudo a noção do
dever, dele fazendo derivar o direito; L. Ambrosoli
(Introdução àjurisprudência filosófica, 1846), que seguiu em
parte as pegadas de Romagnosi, e tentou conciliar a escola
racional com a histórica. Também Alessandro De Giorgio,
conhecido sobretudo pela edição, de sua responsabilidade, das
obras de Romagnosi, esmerou-se, com grande, mas pouco
frutífero, resultado, em interpretar a seu modo e corrigir as
doutrinas desse autor, conciliando-as com o espiritualismo;
escreveu, ainda, um Ensaio sobre princípios fundamentais de
direito filosófico e em particular sobre a teoria do direito
penal (1852), no qual aparecem elementos romagnosianos
confundidos com outros assaz heterogêneos. De De Giorgi
pode-se recordar ainda
11 O. Scalvanti deu um amplo resumo desta obra (Ensaio sobre algumas obras inéditas de G. Carmignani. Perugia, 1892). Cf., também, CANUTI, G. G. Carmignani e
seus escritos defilosofia do direito. Grottaferrata, 1924.
166
~
.&
.
......
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
uma longa e severa crítica, do ponto de vista católico, do sistema de
Ahrens (Exames do curso de direito natural do prof H. Ahrens,
1853), e um ensaio sobre Afilosofia do direito e a escola histórica
(1863). Com a tradição romagnosiana, largamente entendida (e
mantida particularmente viva na Universidade de Pávia), ligam-se
também os Prelúdios, de Alessandro Nova (Afilosofia, afilosofia do
direito, etc., 1862). .
Notáveis manifestações de atividade deu a escola católica do
direito natural, à qual substancialmente aderiram também alguns dos
autores já nominados, e assinaladamente Rosmini, também por
originalidade própria do seu pensamento.
Dentre os principais representantes de tal escola nesse
período, além do próprio Rosmini, devem ser enumerados: Luigi
Taparelli, de Torino (1793/1862), ao qual se deve um dos mais
amplos e elaborados desenvolvimentos filosóficos sobre direito em
geral e seus vários ramos (1840/1843), além de uma síntese do
mesmo tratado (Ensaio teórico de direito natural apoiado sobre o
fato - 1840-1843 -, alínea de um resumo do mesmo Tratado, (Curso
elementar de direito natural para uso das escolas, 1845), e de uma
outra importante obra que se pode considerar como apenso ou
comentário da primeira (Exame crítico das ordens representativas
na sociedade moderna, 1854); Matteo Liberatore (Ethicae etjuris
naturae elementa = "Elementos de ética e de direito natural", 1846);
Guglielmo Audisio (Juris naturae et gentium privati et publici
fundamenta, 1852 = "Fundamentos de direito natural e das gentes
privado e público").
Segundo os mesmos princípios, mas com singular vivacidade
e amplitude de idéias, discutiu os problemas fundamentais do direito
público P. Giorcchino Ventura, de Palerma (1792/1861; em O poder
político cristão, 1858, e no Essai sur le pouvoir public ou exposition
des lois naturelles de I' ordre social, 1859; as edições italianas dessa
obra apareceram em 1860).
167
GIORGIO DEL VECCHIO
Seguidores de Rosmini foram Francesco Melilo (Instituições
de direito da natureza e das gentes, 2. ed., 1846, 1856; Manual de
filosofia do direito para uso da Juventude italiana, 1869), e U golino
Fasolis (Elementos da filosofia e história do direito, 1867). E quanto
a Luigi Rossi (Da filosofia do direito, 1853) e ao abade Felice
Toscano, no seu valioso Curso elementar de filoso
fia do direito (1860, 3. ed.,1869), ativeram-se, prevalentemente, a
Gioberti.
Convém advertir que não só os autores acima citados, mas
ainda quase todos os outros indicados antes e os que indicaremos a
seguir, acolheram, explicita ou implicitamente, em suas doutrinas,
os princípios essenciais da ética cristã, aceitando-os a priori ou a
eles chegando por vias diversas. Esses princípios, conjugados com a
clássica tradição greco-romana, são por isso, e não sem razão,
considerados como elementos de umaphilosophia perenis. Estri
tamente ligada à escola católica é, em especial, a do direito
racional, e não é exagerado dizer que os programas das duas
escolas coincidem, em muitas partes, como facilmente se vê, se se
confrontam as obras acima citadas.
2. De cerca de 1870 até os nossos dias
Também em época mais recente, os estudos de Filosofia do
direito tiveram na Itália estímulos e progressos consideráveis.
Alcançada a unidade da pátria com Roma feita Capital, meta
de seculares esforços e também de trabalhos do pensamento, as
mentes dos melhores italianos não foram mais desviadas, ou o foram
em menor proporção, da atividade científica e filosófica, por causa
das lutas políticas.
Aquela atividade, já espalhada em diversos centros de
cultura com escassa comunicação entre eles, vem-se encaminhando
mesmo para uma certa unificação, vale dizer, para um maior
coordenamento, sem prejuízo, bem se entende, da variedade das
escolas e das opiniões.
168
~
...
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
Em igual tempo o pensamento italiano entrou em
comunicação mais freqüente e ativa com o de outras nações. Na
época precedente, apesar de representado por grandes, talvez
grandíssimos, engenhos, ele era mais isolado; por isso a influência
italiana sobre o pensamento europeu, depois do Renascimento, não
foi tão grande como devera ter sido.
Só em tempos mais recentes buscou-se unir a Filosofia
italiana à européia; especialmente o abruzzese B. Spaventa, acima
recordado, e o bolonhês Luigi Ferri (1826/1895, professor em Roma
desde 1871), ocuparam-se em fazer conhecer melhor entre nós os
grandes sistemas filosóficos estrangeiros, e também em divulgar
além dos Alpes o nosso pensamento (cf., por exemplo, de Ferri o
Essai sur l' histoire de la philosophie en ltalie au dix-neuvieme
siecle, 2 v., Paris, 1869.)
A crítica kantiana, fundamental para o desenvolvimento da
Filosofia moderna, foi divulgada entre nós particularmente por Carlo
Cantoni (1840/1906) e também por Felice Tocco (1845/1911),
Filippo Masci (1844/1923) e outros. As doutrinas evolucionísticas
de Spencer tiveram, por obra de muitos, difusão ainda maior. O
mesmo pode-se dizer de muitas outras doutrinas, também no campo
especial c;la Filosofia do direito.
Indicaremos agora, sumariamente, os autores italianos que,
por volta de 1870, deram contribuições de algum valor aos estudos
da Filosofia do direito, buscando reagrupá-Ios, o quanto possível,
segundo a respectiva afinidade; isto, todavia, não sem advertir que
uma classificação rigorosa é impossível, tendo todo pensador
caracteres próprios, nem sempre bem definidos e nem sempre
redutíveis a uma única denominação.
Embora permanecendo vivas ainda nesse período todas as
diferentes escolas já desenvolvidas na época anterior, uma delas teve
grande deserivolvimento e radical renovação, a pon
to de poder ser anunciada como expressão típica do pensamento
moderno e tornar-se realmente predominante, do final do sé
lhQ
GIORGIO DEL VECCHIO
culo XIX até os primeiros lustros do século presente: a escola
positivista.
Na história do pensamento italiano, essa escola tinha
precedentes distantes (por exemplo, em Galilei) e
relativamentepróximos (Romagnosi e Cattaneo). Mas o maior
impulso derivou-lhe das obras de Comte, de Darwin e de Spencer,
largamente difundidas e acolhidas com muito grande favor, também
por trazerem temas de crítica contra as doutrinas tradicionais. O
principal representante do positivismo italiano foi Roberto Ardigà,
de Casteldidone, perto de Cremona (1828/1920), que elaborou um
completo sistema, não sem caráter original, e teve numerosos
discípulos, dentre os quais G. Tarozzi, G. Marchesini, E. Ferri, A.
Groppali.
De suas muitas obras, recolhidas em onze volumes, é
especialmente de ser recordada aA moral dos positivistas
(1878/1879), compreendendo na origem também a Sociologia
(depois reelaborada e publicada também à parte).
Tanto a moral como o direito são considerados por Ardigà no
seu aspecto empírico ou fenomênico, ou seja, como fatos, dos quais
ele estuda exatamente (segundo sua fórmula preferida) a "formação
natural" mediante a passagem "do indistinto ao distinto".
Ele admite também um "direito natural" sobre o direito
positivo
(que se identifica com o "fato do poder"). Mas entende essa
fórmula como simples idealidade ou atualidade psicológica, que
prepara o direito do porvir, o qual deve vencer o direito do passado.
"O ideal absoluto do direito", afmna, ele, "não existe realmente", o
que é certamente exato, se a realidade se faz consistir só no relativo.
Permanece, de qualquer modo, digno de nota que Ardigó
reconheceu (porquanto lho consentiam seus princípios) a idealidade
da justiça, definida por ele como "a força específica do organismo
social".
Deixando de ocupar-se dos outros positivistas, que têm
menor importância para nossa disciplina (por exemplo, o pugliese
Andrea Angiulli (1837/1890, autor de um notável livro sobre A
170
-".... --..
HISTÓRIA DA fILOSOFIA DO DIREITO
filosofia e a escola, de 1888), façamos um esboço dos
defensores das doutrinas positivistas no campo especial da
Filosofia do direito.
O mais autorizado entre eles é Icilio Vanni, de Citá della
Pieve, na Umbria (1855/1903), que dedicou, ao lado de seus
escritos, todos assaz meditados, aos problemas metodológicos
(Primeiras linhas de um programa crítico de sociologia, 1888;
O problema da filosofia do direito na filosofia, na ciência
ê na vida nos nossos tempo, 1890; A função prática da
filosofia do direito considerada em si e em relação ao
socialismo contemporâneo, 1894; O direito na totalidade de
suas relações e a procura objetiva, 1900; A teoria do
conhecimento como indução sociológica e a exigência crítica
do positivismo, 1902.
Ao seu arguto espírito científico não podiam escapar de
todo as fraquezas, em verdade irreparáveis, do programa
positivista, ao qual ele se filia por inteiro; especialmente a de
retirar da experiência os critérios que tornam possível a
experiência mesma e a de estabelecer os valores éticos ou
deontológicos sobre a base dos fatos mesmos que se pretenda
valorizar.
Fez-se, ele, por isso, defensor de um "positivismo
crítico", ou seja, de um "conúbio do positivismo com a
crítica", conúbio que devia porém permanecer estéril, o ao
menos escassamente fecundo, pela profunda heterogeneidade
dos seus termos. Os escritos de Vanni (dentre os quais
mencionaremos ainda a monografia sobre Os estudos de H. S.
Maine e as doutrinas da filosofia do direito, 1892 12 e as
Lições de filosofia do direito, editadas só depois da prematura
morte do autor, em 1904) têm, todavia, um alto valor, pela
escrupulosidade das indagações, pela completude da
informação e pela lucidêz da forma.
12 Essa monografia, com as abaixo recordadas, e outras foram republicadas nos dois
volumes póstumos Ensaios de filosofia social e jurídica, 1906/1911.
.... 171
GIORGIO DEL VECCHIO
Por esses seus dotes ele foi também um excelente mestre, e
na sua escola formaram alguns dos sucessivos professores da
matéria, os quais lhe conservaram reverente reconhecimento, mesmo
discordando de suas doutrinas.
O positivismo mais rigoroso e intransigente, dirigido a uma
pura fenomenologia do espírito por meio da pesquisa
genéticoevolutiva, é representado por Salvatore Fragapane, de
Licódia Eubéia, perto de Catânia (1868/1909), que sustenta por isso
uma alongada e vivaz polêmica contra as doutrinas de Vanni,
julgadas
por ele ec1éticas. Suas obras (Contratualismo e sociologia
contemporânea, 1892, O problema das origens do direito, 1896,
Dafilosofiajurídica no presente ordenamento dos estudos, 1899;
Objeto e limites da filosofia do direito, v. I, Os critérios de uma
limitação positiva da filosofia do direito, 1897, v. 11, As relações
gnoseológicas e práticas da filosofia do direito, 1899, v. 111,
Desenho de uma purafenomenologia do direito como filo
sofia; este último volume foi publicado somente em parte, em 1902,
e permanece, pesarosamente, incompleto) atestam um vigoroso
engenho, que outros frutos teria podido oferecer, se também ele
(como jáVanni e depois Petrone) não tivesse sido atingido de
prematura morte.
À escola positivista pertencem ainda 13;
R. Schiattarella (Os pressupostos do direito científico e
questões afins de filosofia contemporânea, 1881,2. ed., 1885);
G. Vadalà-Papale (Moral e direito na vida, 1881; Darwinismo
natural e darwinismo social, 1882; V. Vautrain Cavagnari (O
ide
al do direito, 1883; As leis da organização social, 1890); P.
Cogliolo (Filosofia do direito privado, 3. ed., 1888, 1936); G.
D' Aguanno (A gênese e evolução do direito civil segundo as
13 Tenha-se presente que dos autores citados indicamos, de regra, alguma entre as obras mais significativas. Uma completa bibliografia sairia manifestamente do quadro desses sumários esboços.
172
~
"'"
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
resultâncias das ciências antropológicas e histórico-sociais, 1890);
A. Majorona (Teoria sociológica da Constituição política, 1894,2.
ed.); M. A. Vaccaro (As bases do direito e do Estado, 1893); V.
Miceli (Estudos de psicologia do direito- As bases psicológicas do
direito, 1902; As fontes do direito do ponto de vista psíquico-social,
1905; A norma jurídica, 1906; Princípios defilosofia do direito, 2.
ed., 1914, 1928, que em suas numerosas obras considerou o direito
especialmente sob o aspecto psicológico, como fenômeno de crença
coletiva; G. Dallari (Dos novos
fundamentos da filosofia do direito, 1896; A exigência do
positivismo crítico pelo estudo filosófico do direito, 1903, O
novo contratualismo na filosofia social e jurídica, 1911); A.
Groppali (Os caracteres diferenciais da moralidade e do direito
segundo a escola positiva inglesa, 1901; Lições de sociologia, 1902;
O problema do fundamento intrínseco do direito no
positivismo moderno, 1904; Filosofia do direito, 1906, nova edição,
totalmente reelaborada,1944); F. Puglia (A função do direito na
dinânica social, 1903; A luta pelo direito e a evolução soci
al, 1903; Linhas gerais de um sistema de filosofia do direito,
1907); T. Labriola (Imperativo jurídico e adesão espontânea, 1905;
Razão, função e desenvolvimento da filosofia do direito, 1906; Da
idéia de justiça, 1906); A. Falchi (As exigências metafísicas da
filosofia do direito e o valor dela a priori, 1910)
A teoria do direito no sistema da filosofia jurídica, 1926), que
discute particularmente, com o propósito de refutá-Ias, as objeções
colocadas contra o positivismo jurídico; Alessandro Levi (Por um
programa de filosofia do direito, 1905; Contributos para uma teoria
filosófica da ordem jurídica, 1913; Filosofia do direito e tecnicismo
jurídico, 1920; Ensaios de teoria do direito, 1924) que,
ultrapassando a esfera dos dados empíricos, realizou notáveis
estudos sobre a natureza lógica do direito; C. Nardi-Greco
(Sociologia jurídica, 1907); F. Cosentini (A reforma da legislação
civil, 1911; Sociologia, 1912; Filosofia do direito, 1914; G.
173
GIORGIO DEL VECCHIO
Mazzarella (As unidades elementares dos sistemas jurídicos, 1922),
que se atém especialmente a estudos de Etnologiajurídica; R. Vacca
(O direito experimental, 1923), que, mesmo atendo suas pesquisas
originais a um método rigorosamente indutivo, deixou em aberto as
prospectivas por uma diversa consideração filosófica do direito.
Se não de modo específico, trataram do direito como parte da
fenomenologia social, segundo a tese positivista, vários economistas
e socilólogos, como: A. Loria (A teoria econômica da Constituição
política, 1886, obra sucessivamente ampliada com o título: As bases
econômicas da Constuição social, 4 ed., 1913: A sociologia, o seu
objeto, suas escolas, 1901); V. Pareto (Tratado de sociologia geral,
2. ed., 1916, 1923); A. Asturo (A sociologia, seus métodos e suas
descobertas,2. ed., 1896, 1907; O materialismo histórico e a
sociologia geral, 1904; Sociologia política, 1911); E. De Marinis
(Sistema de sociologia, 1901); F. Squillace (As doutrinas
sociológicas, 1902), etc. Numerosíssimos estudos sob este assunto,
atinentes ainda ao direito, foram elencados na Revista Italiana de
Sociologia (1897/1920).
Os fenômenos da vida social ligados com a criminalidade
foram amplamente estudados pela nominada escola positiva do
direito penal, fundada por C. Lombroso (1835/1909): O homem
delinqüente, 5. ed., 1876, 1896/1897; O delito político e as
revoluções, 1890, etc.) e prosseguida especialmente por E. Ferri
(Sociologia criminal, 5. ed., 1929/1930; ampliamento da obra
publicado em 1881: Os novos horizontes do direito e do processo
penal), R. Garofalo, S. Sighele, etc. Esta escola foi, sem dúvida,
uma das mais vigorosas e eficazes manifestações do positivismo
italiano e encontrou consenso, ao lado de oposições, em toda parte
do mundo. Pode-se mesmo notar que algumas de suas conclusões
práticas por uma racional reforma dos institutos penais e dos meios
de prevenção e defesa contra a delinqüência puderam, igualmente e
talvez melhor, deduzir premissas filosóficas assaz diversas.
174
~
~
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
Ligada à tendência positivista, porque igualmente inclinada
ao estudo dos fatos, mas distinta dela por uma diferente
consideração dos fatos mesmos, é a historicista ou neo-historicista,
representada principalmente por Carle.
Essa tendência trazia origem e alimento da tradição viquiana,
nunca extinta ou interrompida na Itália. A ela se ajuntavam alguns
elementos derivados do sistema romagnosiano, especialmente os
contributos recolhidos da "escola histórica dos juristas", de lá
também, ao menos indiretamente, do idealismo objetivo de
Schelling e de Rege!.
Mais que de uma verdadeira escola, trata-se mesmo, repitase,
de uma tendência, da qual se encontram traços também em
pensadores de caráter eclético ou aderentes a diversas escolas. Para
o "elemento histórico" que deve ser introduzido na ciência filosófica
do direito "como princípio essencial", apelou,por exemplo, em
várias de suas obras, A. Cavagnari (Hodierno caminho da filosofia
do direito, 1870; conferir, do autor, Ensaio de filoso
fia jurídica segundo os cânomes da escola histórica, 1865;
Elementos naturais, históricos e filosóficos do sistema do direito,
1876; Curso moderno de filosofia do direito, v. 1, 1882, v. II, 1892,
v. III, com o título Princípios críticos de ciência política do Estado,
1907), que enfeixou, aliás, fórmulas e conceitos assaz heterogêneos,
sem se cuidar de compô-los em unidade orgânica de um sistema.
Não imune também de um certo ecletismo, mas muito
vigoroso e coerente em suas afirmações, foi Giuseppe Carle, de
Chiusa de Pesio, no Piemonte (1845/1917): Prospecto de um ensino
de
filosofia do direito, 1874; Ensaios de filosofia social, 1875; A vida
do direito nas suas relações com a vida social, 1880, 2. ed. 1890;
Afilosofia do direito no Estado moderno, v. I, 1903, obra
incompleta), benemérito dos estudos de Filosofia do direito, além de
o ser por seus importantes escritos e pela docência longamente
distribuída na Universidade de Turim.
17"
GIORGIO DEL VECCHIO
Em obras de largo descortino, inspirando-se sobretudo nas
tradições do pensamento jurídico e filosófico italiano (com
particular atenção para o direito romano e para as doutrinas de Vico
e de Romagnosi), e buscando desenvolvê-Ias em harmonia com o
pensamento europeu, de seu tempo, Carle estudou a gênese e o
desenvolvimento histórico tanto das outrinas relacionadas com o
direito quanto das instituições sociais e jurídicas positivas.
Em suas pesquisas revelou um espírito antes sintético que
analítico, antes construtivo e assimilador, que dialético e crítico.
Nem se pode dizer que tivesse meditado verdadeiramente o
significado profundo da crítica kantiana. Seguiu em parte as teorias
de Comte e de Spencer, distinguindo-lhes a originalidade e
procurando superáIas com uma visão integral dos vários elementos,
especialmente psicológicos, que determinam a vida da sociedade e
do direito.
A obra de Carle foi dignamente prossegui da, na cátedra e em
escritos, por seu discípulo Gioele Solari, que dedicou à mesma obra,
aos seus precedentes e às suas conexões, uma preciosa monografia
(A vida e o pensamento civil de G. Carle, 1928).
Mais profunda e diretamente informado que Carle dos
grandes sistemas da Filosofia moderna, em especial do sistema
hegeliano, Solari ressentiu-se um pouco da sua influência no seu
posicionamento, sempre marcado pelo historicismo.
Numerosas e notáveis são as contribuições dadas por Solari à
história da Filosofia do direito, nos quais a pesquisa erudita
acompanha-se freqüentemente de uma severa crítica (A escola do
direito natural nas doutrinas ético-jurídico dos séculos XVII e
XVIII, 1904; A idéia individual e a idéia social no direito privado,
Parte. I, 1911; Historicismo e direito privado, 1940; Estudos
históricos de filosofia do direito, 1949).
A escola hegeliana propriamente dita, que se mantém
especialmente na Itália meridional, teve a principal representante,
depois de A.Vera e B. Spaventa,já lembrados os seguintes
escritores: A. C. De Meis (1817/1891), que foi discípulo de B.
Spaventa
176
~
-l
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
e escreveu, entre outros, alguns ensaios de Filosofia política (O
soberano, 1868; nova edição, deI Croce, 1928; O Estado, 1869); P.
D'Ercole (1831/1917); A pena de morte e a sua abolição,
1875); e R. Mariano (1840/1912; A liberdade de consciência,
1875; O indivíduo e o Estado no relacionamento econômico e
social, 1876).
A maior parte da atividade desses escritores, e de outros da
mesma escola, foi porém, dedicada mais aos problemas da
Filosofia teórica, do que aos da Filosofia moral e jurídica.
Mas as teorias de Regel tiveram exatamente uma eficácia
considerável, apesar de não exclusiva, na formação intelectual de
alguns juristas e filósofos do direito, entre os quais são de serem
recordados, precipuamente, Filomusi Guelfi e Miraglia. Francesco
Filomusi Guelfi, de Toco Casauria em Abruzzo (1842/1922), foi
discípulo de Bertrand Spaventa e trouxe inspiração também do seu
irmão, o pratriota e estadista Sílvio (1822/1893), em especial pela
sua concepção do Estado.
Reteve ele longamente, com suma dignidade e altura de
pensamento, a cátedra de Filosofia do direito e a de Direito civil na
Universidade de Roma. Elementos viquianos e kantianos,
juntamente com os hegelianos, unem-se em suas doutrinas
fundamentais, expostas especialmente na parte introdutiva da sua
excelente Enciclopédiajurídica (7. ed., 1873, 1917).
Notemos entre os outros seus escritos, geralmente breves
mas todos profundamente meditados e valiosos também pela
clássica nitidez de estilo, notemos: A doutrina do Estado na
antiguidade grega nas suas relações com a ética (1873); Do
conceito de direito natural e do direito positivo na história da
filosofia do direito (1874); Do conceito da Enciclopédia do Direito
(1876).
O direito é concebido por ele como princípio de organização
e de desenvolvimento, que determina a coexistência da liberdade. A
idéia suprema do direito - afirma - é universal e absoluta. Realiza-se em
forma concreta e histórica, como direito positivo, no qual é, po
177
GIORGIO DEL VECCHIO
rém, sempre, ao lado de um caráter de relatividade, um elemento
ideal. Da idéia do direito deriva um sistema de "exigências
racionais", que devem encontrar satisfação no próprio direito
positivo. O Estado, segundo Filomusi Guelfi, é um "organismo
ético" e, ao mesmo tempo, um "organismo jurídico". Também nesta
tese são manifestas as várias fontes de inspiração acima apontadas.
Substancialmente semelhantes, embora com maior inclinação
ao historicismo, são as doutrinas de Luigi Miraglia, nascido em
Regio, da Calábria (1846/1903), que foi por muitos anos professor
de Filosofia do direito na Universidade de Nápólis. A ele devemos
um amplo e sábio tratado desta matéria (Filosofia do direito, 3. ed.,
1885, 1903, sempre como v. I, não seguido de outro), no qual
também vem refundindo alguns dos seus escritos menores (Por
exemplo, o ensaio sobre Os princípios fundamentas dos diversos
sistemas de filosofia do direito e a doutrina ético-Jurídica de G. G.
F. Hegel, 1873).
Particularmente valiosos são nessa obra as considerações
sobre cada instituto do direito privado. Nas partes mais gerais,
inspiradas sempre pelo propósito de harmonizar o elemento ideal ou
racional com o positivo, destaca-se o esforço de conciliar sistemas
opostos, para recolher de cada um uma parte de verdade, esforço
que, aliás, não aproveita, antes prejudica o real aprofundamento da
pesquisa especulativa. .
Pode-se aqui acenar ainda para o singularíssimo
pensador
que foi Giovanni Bovio, de Trani (1841/1903): O verbo novo,
sistema de filosofia universal, 1864; Ensaio crítico do direito
penal, 1872; Curso de ciência do direito, 1877, republicado
com o título de Filosofia do direito em 1885,4. ed., 1894;
Sumário da história do direito na Itália da origem de Roma
aos nossos tem
pos, 2. ed., 1883, com o título Desenho de uma história, etc.
1895). Tentou construir um sistema, por ele dito do
"naturalismo matemático", com o qual presumia superar
também o hegelismo, declarando-se, em um sentido seu,
próprio, positivista. Mas do
178
r
1
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
positivismo ele estava realmente distante, pela sua tendência à
especulação abstrata e logicisante, que o aproxima, ao
contrário, bem que a contragosto, do racionalismo dogmático
de Hegel. (Ele mesmo escreveu, por exemplo, em 1864: "Se a
filosofia de Hegel não éverdadeira, nenhuma outra a vence de
verdade, nenhuma a iguala em coerência", etc.)
Assim ele sustenta a idéia da evolução, porém mais
como esquema dialético do que como resultado da experiência
("A Natureza faz-se Pensamento, o Pensamento faz-se
História"). Também nas obras concernentes ao direito
abundam as fórmulas conceituosas e, por assim dizer,
lapidares (mesmo apesar de paradoxais, por exemplo, "O
Estado é um meio proporcional geométrico entre a Igreja e o
Ateneu"). Mas, faltam-lhe a análise e a elaboração científica
verdadeira e própria. Por isso, embora tendo tido numerosos e
férvidos admiradores também por sua exemplar retidão, ele
não teve, nem pôde ter, continuadores.
Sucessivamente, inspiraram-se nas doutrinas hegelianas
dois entre os mais notáveis pensadores italianos
contemporâneos, Benedetto Croce, de Pescasseroli, no
Abruzzo (n. em 1866), e Giovanni Gentile, de Castelvetrano,
na Sicília (1875/1944, ambos benemérios pelos contributos e
pelos impulsos dados aos estudos históricos e filosóficos. Não
aprofundaram, porém, as pesquisas sobre direito e não lhe
penetraram a natureza. Croce (Redução da
filosofia do direito àfilosofia da economia, 1907, nova edição em 1926; Filosofia da prática - Econômica e ética, 5. ed., 1909,
1945; Elementos de política, 1925) desconhece inteiramente o
caráter ético e normativo do direito, na sua tentativa de reduzi-Io à
Economia, onde é fácil demonstrar a falha desta tese (cf., por
exemplo, as nossas observações na Revista Internacional de
Filosofia do Direito, XV, p. 617/622, 1935; XVI, p. 567/569, 1936).
É verdadeiramente singular que Croce, estudioso profundo de Vico,
não tenha apreendido nele que o direito é uma manifestação própria
e distinta do espírito humano (isto é uma verdadeira categoria),
179
GIORGIO DEL VECCHIO
nem mais nem menos do que a moral, e tem, por isso, ao lado desta,
o caráter de universalidade.
Considerando como fundamento único do direito a
conveniência econômica, Croce repeliu e combateu a idéia do direito
natural, negou, ainda, que aos homens caibam direitos inatos,
naturais e inalienáveis; afirmou a "amoralidade da política", a
"anterioridade da política em relação à moral"; sustentou que o
Estado deve ser concebido "como poder e não como justiça", e que
se deve considerar "morta a falaz idéia do direito internacional como
de uma legislação moral da humanidade". Estas suas doutrinas não o
impediram, contudo, de de se qualificar como liberal, e de ser
reputado por muitos como precursor do liberalismo.
Gentile (Os fundamentos da filosofia do direito, 3. ed., 1916,
1937; d. a obra póstuma Gênese e estrutura da sociedade, 1946)
define o direito como o "querer já querido", em antítese à moral, que
seria a vontade em ato. Ao que é fácil opor que o direito não é
apenas conformidade com uma norma dada, mas é, antes de tudo,
criação da mesma norma, na sua natureza específica, ou seja:
determinação do critério fundamental pelo qual se distingue o lícito
do ilícito nas relações entre mais sujeitos. Também essa doutrina
desconhece, pois, o caráter originário e sui generis, que é próprio do
direito como produto necessário do espírito humano.
Essas evidentes e estranhas falhas (que fazem repensar o dito
ciceroniano: Nihil tam absurde dici potest, quod non dicatur ab
aliquo philosophorum (= "Nada se pode dizer tão absurdamente que
não tenha sido dito por algum dos filósofos") não impediram que as
doutrinas ora mostradas encontrassem algum eco e exercessem
alguma influência (talvez pela fama adquirida por seus autores nos
diversos campos do saber) sobre alguns cultores da Filosofia do
direito, nenhum dos quais, porém, a bem da verdade, as aceitou sem
reservas, correções ou integrações.
Assim, mesmo tendo dedicado àquelas doutrinas uma
atenção, a nosso parecer não merecida, souberam desenvolver o
pró
180
~
i
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
prio pensamento em trabalhos dignos de nota: Giuseppe Maggiore
(A unidade do mundo no sistema do pensamento, 1913; O direito e
o seu processo ideal, 1916; Filosofia do direito, 1921; A eqüidade e
o seu valor no direito, 1923); W. Cesarini Sforza (O conceito do
direito e ajurisprudência integral, 1913; "Jus" e "directum ",1930;
Objetividade e abstração na experiência jurídica, 1934; Guia ao
estudo dafilosofia do direito, 2. ed., 1945, 1946); A. E. Cammarata
(Contributos para uma crítica gnoseológica da jurisprudência - O
problema do direito em relação ao conceito do Estado, 1925; O
conceito do direito e a "pluralidade dos ordenamentos
jurídicos", 1926; O significado e afunção do "fato" na experiência
jurídica, 1929; Limites entreformalismo e dogmática nas figuras de
qualificação jurídica, 1936).
Com tradição constante, mas sem progressivo
desenvolvimento, continuou, nesse período, a obra da escola
católica de Filosofia do direito, a qual, embora diante da
proliferação de doutrinas opostas, sustenta inflexivelmente a grande
idéia do direito natural. Este, segundo a mesma escola (que
concorda neste ponto com a concepção clássica), é o fundamento
do direito positivo; enquanto a lei natural, à sua vez, funda-se sobre
a vontade e a sabedoria divinas.
Foram representantes dessa escola, imediatamente depois
daqueles já citados, principalmente: Giuseppe Prisco (1836/1923),
arcebispo de Nápolis: Metafísica do direito sobre bases éticas,
1872, O Estado segundo o direito e segundo os ensinamentos de
Leão XIII, 1886; Giulio Costa-Rossetti (nascido em Veneza em
1841, morto em Presburgo, em 1900: Philosophia moralis, seu
lnstitutiones ethicae etjuris naturalis, 1886,2. ed.,1892) e Felice
Cavagnis (de Bergamo, 1841/1906: Noções de direito público
natural e eclesiástico, 1886, também em várias edições latinas). A
eles seguiram-se numerosos outros escritores, os quais, embora
fundando-se sobre os mesmos princípios, deram, todavia, aos seus
tratados um caráter menos dogmático, com vista ainda a doutrinas
de diferentes escolas e a problemas da vida moderna.
181
GIORGIO DEL VECCHIO
Isso se pode dizer, em certa medida, também de um
contemporâneo dos autores ora nominados, o abade pugliese
Vincenzo Lilla (1837/1905, em 1866 professor em Medina:Teorias
fundamentais dafilosofia do direito, 1877, Filosofia do direito,
1880, Crítica da teoria ético-jurídica de J. S. Mill, 1889; Manual de
filosofia do direito, 1903). São também notáveis: A. Burri (As
teorias políticas de S. Tomás e o moderno direito público, 1884); V.
Rivalta (A renovação da jurisprudência filosófica segundo a
escolástica, 1888; Direito natural e positivo - Ensaio histórico,
1898); G. B. Biavaschi (Origem da força obrigatória das normas
jurídicas, 1907; O problmema da autoridade civil no direito público
vigente, 191O;A crise atual da filosofia do direito, 2. ed., 1913,
1922; A concepção filosófica do Estado moderno, 3. ed., 1918, com
o título A moderna concepção filosófica do Estado, 1924); F.
Aquilanti (Filosofia do direito, v. I, Pressupostos, História, v. 11,
Teoria, 1916); M. Cordovani (O direito natural na moderna cultura
italiana, 1924, nova edição no v. Catolicismo e idealismo, 1928;
Lineamentos tomísticos de uma filosofia do direito, 1934; O
cidadão e o Estado nafilosofia de S. Tomás de Aquino, 1944); F.
Olgiati (O renascimento do direito natural na Itália, 1930; A
redução do conceito filosófico de direito ao conceito de justiça,
1932; O conceito de jurisdicidade e S. Tomás de Aquino, 1943; G.
Gonella (Classificação dos conceitos de natureza na filosofia do
direito, 1933; A pessoa na filosofia do direito, 1938; Pressupostos
de uma ordem internacional, 1942; Princípios de uma ordem social,
1944); V. Viglietti (Corporativismo e cristianismo, 1934; O
ensinamento de um mestre, 1934; Idéia e conceito do direito, 1935;
As premissas meta físicas da doutrina, etc. 1938); S. Romani{As
bases da moral e do direito, 1935; De normajuris, 1937); A.
Brucculeri (As doutrinas sociais do catolicismo: A justiça
socia~;Afimção social da propriedade; O Estado e o indivíduo; A
ordem internacio
182 .l.
r HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
nal, etc., 1936/1942); A. Messineo (Justiça e expansão colonial,
1937; O direito internacional na doutrina católica, 2. ed., 1942,
1944); G. DellaRocca (O estado ético, 1938). G. Graneris (A
amoralidade do direito ante a doutrina de S. Tomás, 1940; Os
caracteres do direito natural no "Ensaio" de P. Taparelli, 1941;
Philosophiajuris, 1943; Gnoseologia e ontologia no pensamento de
G. B. Vico, 1945). Esses escritos, e não poucos outros, embora às
vezes de pequena dimensão, nem todos, mas de igual importância,
demonstram viva (e em conjunto valiosa) a atividade do pensamento
católico italiano sobre problemas da Filosofia do direito. Vale aqui,
todavia, e de resto, a advertência já feita sobre a
efetiva adesão dada às vezes aos mesmos princípios e, sobretudo, às
mesmas conclusões, por pensadores de diferentes escolas.
É, pois, supérfluo recordar, sendo isso conhecido universal
mente, que as máximas fundamentais do cristianismo sobre o
direito, no Estado e na sociedade dos Estados, tiveram recentemente
o maior relevo e as mais claras expressões, em face também das
circunstâncias presentes, nas mensagens do Pontífice Pio XII (às
quais particularmente se referem, com largos comentários, as duas
últimas obras de Gonella citadas acima).
Se as escolas e tendências, às quais nos referimos há pouco
tiveram na Itália predomínio quase exclusivo durante o último
trintênio do século XIX, continuando a afirmar-se ainda no nosso
século, existiram, todavia, no mesmo tempo, escritores que tratam
de Filosofia do direito sem pertencerem propriamente a qualquer
uma delas. Suas obras têm, porém, em verdade, caráter eclético, e
se ligam em vários pontos com as doutrinas da época precedente.
Temas rosminianos, não afastados de alguma crítica ao
próprio Rosmini, encontram-se, por exemplo, na obra vasta e
valiosa de Luigi Mattirolo (Principios de filosofia do direito
privado e
público, 1871), que tentou conciliar a escola jurídico-filosófica, ou
seja, racional, com a histórica. Um abstrato e vazio dogmatismo
lR1
GIORGIO DEL VECCHIO
ideológico, que parece ignorar os problemas suscitados no
pensamento moderno da crítica kantiana, se delineia ao contrário na
obra de Augusto Conti (O bom no vero ou Moral e direito natural, 2.
ed., 1873, 1884).
Às doutrinas da escola racionalista, de envolta com um vago
evolucionismo naturalístico, reporta-se Luigi Lucchini, que depois se
toma célebre como penalista, em uma obrajuvenil (Afilosofia do
direito e da política sobre bases de evolução cósmica, 1874). Às
tradições da Filosofia, diante do nascente evolucionismo, faz apelo
G.S.Tempia (De alguns lineamentos da idéia da leijurídica, 1880,
republicado em edição póstuma de seus Escritos vários jurídicos e
sociológicos, com prefácio de C.F.Gabba, 1891), a quem a brevidade
da vida (1855/1889) impediu mais amplo e preciso desenvolvimento
de seu pensamento.
Pobre de conteúdo filosófico e demasiado confusa é a obra
deD.Lioy (Da filosofia do direito, 3. ed., 1887/1888;4. ed., 1907, 2
v.), largamente difundida também em várias línguas estrangeiras,
mas certamente não a ponto de de ilustrar o pensamento italiano.
Não são melhores, por exemplo, os escritos de G. Abate Longo
(Introdução ao estudo da filosofia do direito, 1880; Princípios de
filosofia do direito, 1881; Afilosofia do direito na sua orientação
moderna, 1885; A lei do direito, 1888), nos quais aparecem
fórmulas de certo modo entrelaçadas, fórmulas de doutrinas opostas,
com prevalente inclinação ao positivismo, mas sem real
aprofundamento da matéria.
Assaz dignos de memória e de estudo são os escritos de
Francesco Fisichella, que, se não nos deu um tratado completo de
Filosofia do direito, discutiu agudamente várias partes dela, e
questões a ela pertinentes, de acordo com um método crítico e
racional
(Sobre ofundamento do direito de propriedade, 1883; Das relações
entre moral e direito, 1886; Das obrigações naturais, 1889; A
teoria dos contratos na filosofia do direito, 1890, etc.).
184
"..
-1.
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
Mas uma verdadeira renovação nos estudos italianos de
Filosofia do direito foi iniciado por um pensador, que supera em
muito, pela importância, não só os escritores indicados por último,
mas também todos, ou quase todos, os precedentes, a saber: Igino
Petrone, di Limosano, em Molise (1870/1913).
Dotado de finíssimo espírito crítico e de genial intuito
especulativo, viu e assinalou com admirável clareza os defeitos do
positivismo jurídico, e propugnou com fervente palavra, não imune,
por vezes, de alguma ênfase, a necessidade de uma concepção alta,
capaz de penetrar além do fato nu a natureza eminentemente
espiritual e ética do direito, concepção que chamou de "idealismo
crítico" . Entre seus escritos, todos notáveis, são particularmente
importantes: Afase recentíssima dafilosofia do direito na
Alemanha (1895); Afilosofia do direito à luz do idealismo
crítico (1896); O valor e os limites de uma psicogênese da
moral (1896; este ensaio e o precedente foram republicados,
com outros, no volume: Problemas do mundo moral deditados
por um idealista, 1905); Contribuição à análise dos
caracteres diferenciais do direito (1897); A história interna e
o problema presente da Filosofia do direito (1898); Os limites
do determinismo científico (2. ed., 1900, 1903) O direito no
mundo do espírito (1910).
Especialmente nesta última obra, não apenas submeteu à
crítica perspicaz doutrinas de outros, mas tentou delinear, até
mesmo sumariamente, um sistema próprio, reconduzindo o
direito à sua gênese ideal, ou seja, surpreendendo-o no
momento em que ele germina da atividade produtiva do
espírito.
Esse princípio dialético consiste, à sua vez, na limitação correspectiva do ego e do alter, segundo a idéia geral comum do socius.
Supérfluo determo-nos aqui sobre 9 significado e sobre
os precedentes dessa doutrina, que se liga com a de Fichte e,
ainda, Com as modernas pesquisas psicológicas de Baldwin
sobre o desenvolvimento da consciência pessoal.
lR'i
GIORGIO DEL VECCHIO
Nas suas teses de caráter sistemático (por exemplo, sobre a
admissibilidade do direito natural), Petrone teve, em verdade,
alguma oscilação, ou incerteza, e também a sua orientação
especulativa em geral não foi sempre exatamente a mesma, tendo
atravessado diversas fases, do que o censuraram. Mas deve-se
reconhecer que os propósitos fundamentais do seu pensamento não
tiveram, em realidade, verdadeira mudança, estando ele
constantemente determinado à reivindicação crítica dos supremos
ideais éticos e jurídicos, em tempos não certamente propícios a um
tal programa, no que tanto maior é o seu mérito.
A singularidade do seu temperamento filosófico derivava de
ser ele ao mesmo tempo um hipercrítico e um místico. Versado nas
sutilezas da escolástica e da moderna gnoseologia, tinha ao mesmo
tempo profunda aspiração pela comunicação com o absoluto, uma
aspiração afanosa e quase patética ao que o intelecto não pode
compreender e a palavra não sabe expressar. Daqui o especial
caráter de seus escritos, nos quais a concitação lírica e apologética
sobrepõe-se às vezes ao rigor das demonstrações.
Perda foi não leve para os estudos italianos, que a atividade
de um tão distinto pensador tenha sido turbada e interrompida por
grave doença, que o levou prematuramente à sepultura. A ele cabe,
todavia, lugar elevado na história da moderna Filosofia do direito.
De quanto visto resulta com expressão quais eram as
condições da Filosofia do direito na Itália no início do século XX.
Podese bem dizer que estava então ligada a um ponto crítico:
enquanto perduravam as correntes tradicionais de caráter
prevalentemente dogmático, erguiam-se contra elas, e apareciam
preponderantes as tendências positivistas. Viva estava ainda a
corrente hegeliana, dogmática na forma, mas empírica e até próxima
do positivismo, na substância; isto enquanto, não obstante, também
ambígua era a tendência historicista, que se atribuía até algumas
altas fórmulas de Vico, mas não lhe aceitava realmente a metafísica,
por avizinhar-se mais, também ela, do relativismo positivista.
186
T
1
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
Do contraste entre estas correntes opostas devia derivar um
estímulo por uma solução crítica dos problemas da Filosofia do
direito, que conciliasse as exigências legítimas da corrente histórica
e positiva com aquelas igualmente legítimas da pura especulação,
vale dizer, com a consciência do absoluto valor da justiça.
Tal programa requeria, antes de tudo, uma revisão das
premissas gnoseológicas da matéria, revisão que não podia
prescindir da crítica kantiana, mas, sem se render a ela e procurando
antes, o quanto possível, integrá-Ia e superá-Ia.
Nesse propósito dirigem-se também os nossos modestos
estudos, dos ensaios sobre Sentimento jurídico (1902) e seus
Pressupostos filosóficos da noção do direito (1905) aos mais
recentes sobre Justiça, sobre Ética, direito e Estado, etc. Desses
estudos ("que por necessidade aqui se registra") cabe aos outros o
juízo.
Que tal fosse realmente a exigência dos tempos novos, resulta
do grande número de escritores que, nos primeiros decênios deste
século, se aplicaram ao desenvolvimento desse mesmo programa, ou
de outros semelhantes, com pesquisa e análise crítica sobre o
conceito do direito, e seus fundamentos e suas conexões.
Pode-se, por isso, falar de uma escola crítica, ou
neocriticista, da Filosofia do direito, a reunir-se às outras até aqui
mencionadas, embora tal designação, que denota mais o método
que os princípios e as teses fundamentais, seja um pouco genérica.
Poder-se-ia aceitar ainda a fórmula idealismo crítico, usadajá por
Petrone. É obvio, de resto, que, nesta matéria, as denominações,
como as classificações e os reagrupamentos, não podem ter senão
um valor relativo e aproximativo, devendo todo sistema ser julgado
por si.
Assim, não há dúvida de que a mesma exigência crítica, que
serve propriamente para assinalar o posicionamento especulativo de
um certo número de escritores, teve talvez eco e repercussões no
seio de diversas escolas, como tivemos já ocasião de notar.
Indicaremos agora os principais desses escritores, sem
alongar-nos em distinções e valorizações particulares, que não
seriam
187
GIORGIO DEL VECCHIO
possíveis nesta resenha sumária, e devem, portanto, estar
reservadas a um outro lugar, ou a um outro tempo.
Esta remissão é necessária também por causa da
complexidade do pensamento de alguns autores, nos quais se
encontram vários elementos e influências, não sendo possível
dar deles com brevidade uma definição precisa.
E quanto aos vivos, especialmente aos jovens, o seu
pensamento está ainda em curso de desenvolvimento.
Citamos aqui, para todos os autores, somente alguma
das obras mais significativas. F. Masci (1844/1922): A
sociedade, o direito, o Estado, 1906/1908, ed. póstuma 1925);
A. Pagano (1874/1930: As prejudiciais da filosofia do direito,
1901; Afunção prática da filosofia do direito e o direito
natural, 1906; Introdução àfilosofia do direito, 1908; O
indivíduo na ética e no direito, 1912/1912); A. Bartolomei
(Lineamentos de uma teoria do justo e do direito, 1901; As
razões da jurisprudência pura, 1912; Lições de filosofia do
direito, 7. ed., 1942); F. B. Cicala (Relação jurídica, direito
subjetivo e pretensão, 2. ed., 1909, 1935; Filosofia e direito
- Os sumários, 1924/1927); A. Ravà (Por uma doutrina
geral do direito, 1911; O direito como norma técnica, 1911; O
Estado como organismo ético, 1914); G. De Montemayor
(1874/1939: Primeiro esboço de umajurídica -Do igual bem de cada
um, 1914); F. Orestano (1873/1945: Filosofia do direito, 1941); M.
Barillari (Direito e filosofia, 1910/1912: O ideal e o real do direito,
2. ed., 1916, 1932); E. Di Cado (Teoria pua e teórica empírica no
direito, 1912; Em torno de algumas questões de filosofia do direito,
1914; O direito natural na atual fase do pensamento italiano, 1932;
Filosofia do direito, 2. ed., 1940, 1946); B. Donati (O elemento
formal na noção do direito, 1907; O respeito da lei diante do
princípio dae autoridade, 1019; Fundação da ciência do direito,
1929; O princípio do direito, 1933); A. Bonucci (1883/1925): A
orientação psico
lógica da ética e da filosofia do direito, 1907; O fim do Estado,
188
T
1
"""
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
1915); S. Panunzio (1886/1944: O direito e a autoridade, 1912;
Direito, força e violência, 1921; Análise da experiência comum,
1930; O problema da ciência do direito, 1937); G. Perticone
(Lineamentos de filosofia do direito, 1931; A conceção especulativa
da atividade jurídica, 1932; Regime político e ordem jurídica,
1934/1935); P. Gentile (O essencial da filosofia do direito, 1919);
F. Costa (Ensaio filosófico sobre a natureza do direito, 1919;
Âncora sobre o problema central da filosofia do direito, 1926;
Tratado de filosofia do direito, 1947); C. Gray (O direito no
evangelho e a influência do cristianismo sobre o direito romano,
1922; O direito como idéia-força, 1924; Realidade e transcendência
na concepção do direito e do Estado, 1938; Por uma filosofia do
direito positivo, 1938); C. Goretti (O caráter
formal da filosofia jurídica kantiana, 1922; Os fundamentos do
direito, 1930; Contributos ao estudo da norma jurídica em relação
aos atos jurídicos, 1938); M. Ascoli (A interpretação das leis, 1928;
A justiça, 1930); F. Battaglia (A crise do direito natural, 1929;
Direito efilosofia da prática, 1932; Escritos de
teoria do Estado, 1939; Curso de filosofia do direito, 1943/1947, 3
v.); A. Poggi (Filosofia e direito, 19930); O. Condorelli (Direito e
autoridade, 1930; Eqüidade e direito, 1934); L. Caboara
(Considerações sobre o problema da justiça, 1930); A. Pekelis
(1902/1946; O direito como vontade constante, 1931); C.
Espósito (Lineamentos de uma doutrina do direito, 1932); E.
Paresce (Direito, norma, ordenamento, 1933/1935;Agênese ideal
do direito, 2. ed., 1938, 1947); R. Treves (O direito como relação,
1934; O problema da experiênciajurídica, 1938; Direito e cultura,
1947); N. Bobbio (O caminho fenomenológico nafilosofia social e
jurídica, 1934; Ciência e técnica do direito, 1934; A analogia na
lógica do direito, 1938; O costume como fato normativo, 1942); L.
Perego (O direito na consciência contem
porânea e o estado de eqüidade, 1934; Filosofia do direito, 1946);
A. Banfi (Ensaio sobre direito e sobre o Estado, 1935);
189
I GIORGIO DEL VECCHIO
G. Giacomazzi (1891/1941: Problemasfundamentais do direito,
1935; Pelo conhecimento do direito, 1938); T.A. Castiglia (A
experiência jurídica e o conceito do Estado, 1935;A
experiênciajurídica e as regras da vida, 1938); v'Crisafulli (Sobre a
teoria da normajurídica, 1935); G. Marchello (O problema crítico
do direito natural, 1936; A metafísica do sujeito e o princípio
especulativo do direito, 1939; O problema da unidade social e o
direito, 1946); L. Secco (Ensaio sobre o problema da interpretação
da lei, 1937); Estudos filosóficos sobre a ciência do direito, 1939; A
certeza do direito, 1942; Compêndio de filoso
fia do direito, 1942); B. Leoni (O problema da ciência jurídica,
1940, Por uma teoria do irracional no direito, 1945); F. D' Antonio
(Sobre alguns conceitos fundamentais da doutrina do direito,
1940,); V. Palazzolo (Considerações sobre a natureza da ação e
sobre o caráter da experiência jurídica, 1941; A filosofia do direito
de J. Binder, 1947); L. Bagolini (O problema do direito, 1941;
D{reito e ciência jurídica na crítica do concreto, 1942; O
significado da pessoa na experiênciajurídica e social, 1946); C.
Foresu (O fundamento filosófico da relação entre direito e o Estado,
1941); G.Pottino (Sociedade e direito naformação da pessoa,
1942); A. Attisani ("Decorum ", e "justum"Contributo para a
teoria das relações entre moral e direito, 1945); G. Calogero (Ética,
jurídica, política, 1946); D. DeI Bo (O problema da vontade no
contrato do direito privado, 1947).
A tendência cética teve o seu principal representante em
Giuseppe Rensi (1871/1941; Lineamentos de filosofia cética, 2. ed.,
1919, 1921; A filosofia da autoridade, 1920), que, porém, em
precedentes fases do seu pensamento, tinha sustentado com vigor
uma espécie de espiritualismo absoluto, admitindo ainda a idéia do
direito natural (O fundamento filosófico do direito, 1912; O gênio
ético e outros ensaios, 1912).
À história das doutrinas filosóficas sobre direito e sobre o
Estado deram respeitáveis contribuições alguns dos autores já men
190
~ HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
cionados, como G. Carmignani, G. Ferrari, F. Filomusi Guelfi, G.
Carle, G. Solari, etc. (cf. supra).
Numerosíssimas são as monografias dedicadas a esta
matéria, especialmente nos últimos tempos. Deve-se, porém
observar que (também por uma falha reforma didática) a história
das doutrinsas políticas foi cultivada neralmente assaz mais que a
das doutrinas jurídicas, embora a esta se devesse atribuir
logicamente o primado.
Indicamos algumas destas monografias, em achega àquelas
que já tivemos ocasião de recordar. Enquanto é de ter presente que
também não poucas obras sistemáticas de Filosofia do direito,
acima mencionadas, contêm igualmente tratados históricos, mesmo
que não notáveis: Ferri - Dafilosofia do direito em Aristóteles
(1855);
P. L. Albini; Das doutrinas filosóficas sobre direito de A. Genovesi
(1859); F. Cavalli -A ciência política na Itália (1865/1881, 4 v.); C.
Cantoni; G. B.Vico - Estudos críticos e comparativos (1867); G.
Levi -A doutrina do Estado de G. Hegel e outras doutrinas em tomo
do mesmo assunto (1880/1884); L. Rava; Celso Mancini - Ensaio
sobre doutrinas políticas italianas (1888); G. Cimbali, Nicola
Spedalieri (1888); L. Rossi - Os escritores políticos bolonheses (1888) e Dos escritos inéditos jurídico-políticos de
Giovanni da Legnano (1898); G. Laviosa - Afilosofia científica do
direito na Inglaterra (1897); G. D' aguanno - Compêndio
histórico da filosofia moral e jurídica no Oriente e na Grécia
(1900) e G.D. Romagnosifilósofo ejurisconsulto (1902/1906);
EE. Restivo - A filosofia do direito da natureza (1900); F.
Ruffini -A liberdade religiosa - História da idéia (1901);v'
Pareto - Os sistemas socialistas (1902); A. Bonucci -A lei
comum no pen
samento grego (1903) e A derrogabilidade do direito natural
na Escolástica (1906); A. Levi - Delito e pena no
pensamento dos gregos (1903), A filosofia política de G.
Mazzini (1917) e O positivismo político de C. Cattaneo
(1928); F. P. Fulei - A filosofia científica do di rito no seu
desenvolvimento histórico
(1906); A. Ravà - O socialismo de Fichte e suas bases filosófi I ~
1 Q1
GIORGIO DEL VECCHIO
co-jurídicas (1907); E. Zoccoli -A anarchia (1907); A. FalchiAs
doutrinas modernas teocráticas (1908); A. Luzzatti - A liberdade
de consciência e de ciência (1909); R. Mondolfo - Entre o
direito natural e o comunismo (1909), Rousseau na formação da
consciência moderna (1912) e O materialismo histórico em F.
Engels (1912); G. De Montemahyor - História do direito natrual
(1911); B. Donati - Doutrina pitagórica e aristotélica da justiça
(1911), A crítica de Muratori à jurisprudência (1934) e Novos
estudos sobre afilosofia civil de G. B. Vico (1936); T. Persico - Os
escritores políticos napolitanos de 1400 a 1700 (1919); M. Barillari
- A doutrina do direito de G. Leibnitz (1913); E. Di Cado -
Contributos à crítica de recentes conceções filosófico-jurídicas
(1913) e A filosofia juridica e política de S. Tomás de Aquino
(1945); A. C. Jemolo - Estado e Igreja nos escritores políticos
italianos do seiscentos e do setecentos (1914); M. DeI Giudice - A
escola histórica italiana do direito e seus fundadores (1918); G.
Maggiore - Fichte (1921); A. Solmi - O pensamento político de
Dante (1922); G. De Ruggfiero - O pensamento político meridional
nos séculos XVII e XIX (1922) e História do liberalismo europeu (3.
ed., 1925, 1945); F. Battaglia - A obra de Vicenzo Cuoco e
aformaçção do espírito nacionalista na Itália (1925), Marsilio de
Pádova e a
filosofia política da Idade Média (1928), C. Thomasio, filósofo e
jurista (1935) e Lineamentos de história das doutrinas políticas
(1936); F. Ercole -A política de Machiavelli (1926), O pensamento
político de Dante (1927/1928) e De Barto all 'Althusio (1932); U.
Mariani - Escritores políticos agostinianos do século XIV(1927); R.
De Mattei -A política de Campanella (1927) eA história das
doutrinas políticas (1938); A. Gerbi -A política do setecentos
(1928); F. Costa - Delito e pena na história do pensamento
humano (1928); A. Passerin d'Entreves - A teoria do direito e
da política na Inglaterra no início da idade moderna (1929) e R.
Hooker (1932); E. Brundy - A idéia do direito nas
192
~ HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
novas correntes dafilosofiajurídica na Itália (1929); L.
Caboara - A filosofia do direito de G. D. Romagnosi (1930) e
Afilosofia política de Romagnosi (1936); F. D' Antonio -
Afilosofiajurídica post-kantiana na Alemanha (1930); U.
Redanà - História das doutrinas políticas (1931); V. Beonio-
Breocchieri - Ensaios críticos de história das doutrinas
políticas (1931); G.MoscaLições de história das instituições e
das doutrinas políticas
(1932); C. Curcio - A política italiana do 400 (1932), Do Renascimento à Contrareforma (1934) e Mitos da política
(1940); A. Poggi - O conceito do direito e do
Estadonafiloso fia jurídica intaliana contemporânea (1933); G. Gonella - A
filosofia do direito segundo A. Rosmini (1934); A.
Beccaria - A fundação das doutrinas políticas na Grécia (1935) e O proble
ma do direito natural nafilosofia política (1940); L. Salvatorelli - O
pensamento político italiano de J 700 a J 870 (2. ed., 1935, 1941); P. M. Arcari -O pensamento político de F. Patrizi da Cherso
(1935) e História das doutrinas políticas italianas, v. I (1943), v.
TI, (1946); V. Mazzei-Afilosofiapolíticade G. Hwegel (1935) e O
socialismo nacional de C. Pisacane - P. 1(1943); G. Perticone -
Teoria do direito e do Estado (1937) e História do socialismo
(1945); B. Brunello - A política da caridade em L. A. Muratori
(1938) e O pensamento político italiao do setecentos (1942); F.
Collotti - Ensaio sobre o pensamento filosófico e civl de F. M.
Pagano (1939); G. Santonastaso - O pensamento político de Egídio
Romano (1939), Estudos do pensamento político (1939) e As
doutrinas políticas de Lutero e de Suarez (1946); B. Magnino -
História da Sociologia (1939) e Às origens da crise contemporânea - Iluminismo e revolução (1946); G. A. Belloni
Ensaios sobre Romagnosi (1940); L. Firpo - Introdução aos
aforismos políticos de T. Campanella (1941) e Resenhas
campanelianas (1947); N. Bobbio - A filosofia do direito na Itália
na segunda metade do século XIX (1942) e O direito natural no
século XVIII (1947); L. Bagolini - Humanidade do Es
ir
. 10~
GIORGIO DEL VECCHIO
tado em Aristóteles (1942) e Experiência jurídica e política no
pensamento de D. Hume (1947); B. Barillari - Gianvincenzo
Gravina como precursor de Vico (1942); D. DeI Bo - Montesquieu -
A doutrinas jurídicas e políticas (1943); E. Opocher - G. A.
Fichte e o problema da inividualidade (1944); G. Ambrosetti -
Afilosofia das leis de Suarez (1948); G. Fasso - Os "quatro
autores" de Vico (1949). Merece ainda ser notado o fato de alguns cultores do direito
positivo (e mesmo entre os mais eminentes) terem versado talvez
argumentos de caráter geral, atinentes com os problemas da
Filosofia do direito, oferecendo, assim, na realidade, contribuições
ao desenvolvimento dessa disciplina, que, todavia, alguns deles
afetavam ignorar ou não ter em seu caminho. Isso confirma que,
como não se pode negar a Filosofia sem filosofar, assim não se pode
aprofundar o estudo de qualquer parte do direito positivo sem
defrontar conceitos e problemas fundamentais sobre a natureza do
direito em geral, que é exatamente o objeto da Filosofia do direito.
Citemos para exemplo: M. Pescatore - A lógica do
direito (1863) e FIlosofia e doutrinas jurídicas (1874/1879); C. F.
Gabba - Ensaio sobre a verdadeira origem do direito de sucessão
(1861) e Entorno a alguns mais gerais problemas da ciência social
(1876/1887,3 v.); E. Pessina- Fiosofia e direito (1868) e
Pensamentos sobre moral e sobre direito (1905); P. Nocito
Prolegômenos à filosofia do direito judiciário penal e civil (1867);
V. Scialoja - Do direito positivo e da eqüidade (1880); C. Nani -
Velhos e novos problemas do direito (1886); B. Brugi - Introdução
enciclopédica às ciências jurídicas e sociais (5. ed., 1891,
1928); D. Anzilotti -A escola do direito naturral na
filosofiajurídica contemporânea (1892) e Afilosofia do direito
e a sociologia (1892); D. Donati - O problema das lacunas do
ordenamento jurídico (1910); S. Perozzi - Preceitos e
conceitos na evolução jurídica (1912); G. Brunetti -Normas e
regras finais no direito (1913) e O direito natural na
legislação civil (1922); P. De Francisci - Os pressupostos
teóricos e o métodO
194
~
--1.
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
da história jurídica (1916); P. Bonfante - O método naturalístico na
história do direito (1917); S. Romano - O ordenamento
jurídico (2. ed., 1918, 1945) e Fragmentos de um dicionário
jurídico (1947); F. Maroi - Reflexos de direito nas artes clássicas
figurativas (1927) e Tendências antigas e recentes verso unificação
internacional do direito privado (1930); F. Invrea - A parte geral do
direito (1935); F. Carnelutti - Teoria geral do direito (2. ed., 1940,
1946).
Sem acrescentar outras citações (as feitas podem, talvez,
parecer excessivas), notemos, enfim, que quase todos os cultores
italianos da Filosofia do direito colaboraram, juntamente com alguns
estrangeiros, na Revista Internacional de Filosofia do Direito
(fundada em 1921), a qual refletiu também o movimento das várias
correntes doutrinais no último trintênio.
Numerosas monografias de diversos autores foram recohidas
também em dois volumes de Estudos filosófico-jurídicos (publicados
em Modena, em 1930/1931).
O pensamento filosófico-jurídico italiano foi também não raro
apresentado em periódicos de outros países, por exemplo, o Archiv
für Rechtsund Wirtschaftsphilosophie (de 1907), a Revue
Internationale de Ia Théorie du Droit (de 1926) e o Archives de
Philosophie du Droit et de Sociologie Juridique (de 1931).
Concluindo, pode-se afirmar que o pensamento italiano, em
tempos mais recentes, desenvolveu uma atividade considerável no
campo da Filosofia do direito. Não só se mantém viva uma
antiqüíssima tradição, que é um título de honra para o nosso país,
mas se busca mesmo renová-Ia e enriquecê-Ia com novas pesquisas.
É, por isso, lícito confiar nas futuras e progressivas
manifestações desse pensamento, em colaboração com o de outras
nações. Entretanto, é de augurar que, cumprindo um desejo antigo,
se trabalhe, por obra de um só ou de vários cultores da matéria, para
uma adequada História da Filosofia do direito na Itália, para a qual
as presentes breves notícias não podem oferecer mais que um
sumário e esquemático esboço.
lq"
1
.".
VISÃO DA FILOSOFIA DO DIREITO ;
NA FRANÇA, NA BELGICA, ETC.,
NOS TEMPOS RECENTES ;
(SECULOS XIX-XX)
Na França, depois dos autores já nominados, poderíamos
distingüir várias escolas. Existe, antes de tudo, uma escola
espiritualista, cujo chefe é Maine De Biran (1766/1824) e, mais
especialmente, Cousin (1792/1867). Essa escola tem por princípio a
liberdade do espírito e afirma, porém, com um certo ec1etismo, a
Filosofia metafísica idealística, opondo-se ao empirismo, ao
fenomenismo, ao positivismo. Em Psicologia esta escola segue o
método da introspecção (refere-se ao sentido interno), em Política
funda-se sobre o conceito de autonomia da pessoa humana. Estas
diretivas espiritualísticas correspondem a uma tradição constante do
pensamento francês, diferentemente do pensamento inglês, que foi
sempre mais inclinado ao positivismo naturalístico.
Desse grupo recordaremos: Th. Jouffroy (1796/1842), pelo
seu Curso de direito natural; J. Simon (1814/1896), que tratou
especialmente da liberdade e do dever; P. Janet (1823/1899), ao
qual se deve uma valiosa História da ciência política, dentre outras
obras. Mencionaremos em breve outros escritores com semelhante
orientação.
Não nos deteremos, porém, naqueles que, como Damiron,
Vacherot, Ravaisson, Barthelemy-Saint-Hilaire, etc., não obstante
beneméritos dos estudos filosóficos em geral, têm menor
pertinência com nossa disciplina. Todos devem a sua fama, mais
que a uma singular originalidade ou profundidade de pensamento,
ao são critério, à lucidez das idéias e à felicidade na exposição
delas.
197
GIORGIO DEL VECCHIO
III
III
Grupo bem distinto é o dos escritores reformadores e
comunistas (entendida esta palavra em sentido lato), que se
inicia já com alguns publicistas do século XVIII, defensores da
igualdade dos bens entre os homens e, conseqüentemente, de
radicais transformações da sociedade (Morelly, autor do
Código da natureza, de 1755; Mably, 1709/1785; Babeuf, que
terminou no patíbulo em 1797). O principal entre os escritores
desse grupo é o conde de Saint-Simon (1760/1825), que foi
mestre de Comte; crente na perenidade do progresso humano,
fez-se defensor de uma nova "Filosofia positiva", fundada
sobre o estudo dos fatos; e, por último, também de um
Cristianismo renovado, ou religião do amor sem dogmas.
Segundo Saint-Simon, a Revolução Francesa teria ficado
incompleta, daí a necessidade de completá-Ia com uma série de
reformas sociais, com um certo caráter ético e religioso e
consistentes, sobretudo, na elevação das classes operárias.
Cado Fourier (1772/1837) pertence à categoria que se
pode chamar dos utopistas, os quais expressam suas idéias de
reformas sociais em projetos mais ou menos fantásticos, de
Estados perfeitos, traindo inspiração talvez ainda da República,
de Platão.
O nome de Utopia foi dado ao seu hipotético Estado
pelo Inglês Th. More ou Morus (De optimo reipublicae statu
deque nova insula Utopia, de 1516. O autor morreu
heroicamente no patíbulo, em 1535).
Análogos projetos foram traçados por alguns escritores
de diversos países, como os italianos Francesco Patrize da
Cherso (A Cidade feliz, 1553), T. Campanella (A cidade do
sol, de 1602, editada a primeira vês em latim em 1623) e L.
Zuccolo (O porto, ou seja, da república de Evandria, in:
Diálogos, 1625), os ingleses J.Harrington (The commonwealth
ofOceana, 1656) e R. Owen
(A new view of society, 1812; The book of the new world,
1820), etc. Fourier (Traité de l'association domestique
agricole, 1822, Le nouveau monde insdustriel et sociétaire,
1829, etc.) desenhou em minúcias um novo tipo de unidade
social (phalange),
198
~ HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
com uma sede comum (phalanstere) e uma comum organização do
trabalho. Criticou especialmente o instituto da faffil1ia, e enunciou
uma série de profecias de todo gênero, muitas vezes assaz
extravagantes.
Nas obras de Fourier e em algumas outras, há pouco citadas,
inspirou-se um outro utopista francês, É. Cabet, autor do fantástico
Voyage en Icarie (1842), onde é descrita uma espécie de
comunismo, com propósitos filantrópicos e humanitários.
Grande ressonância tiveram o nome e a obra de P. J.
Proudhon (1809/1865, Qu'est-ce que Ia propriété?, 1840; De
lajustice dans Ia Révolution et dans l'Église, 1858, etc.), que
exercitou o seu engenho poderoso, mas rico em contradições e
paradoxos, em sentido mais negativo que construtivo, combatendo
sobretudo a propriedade privada e propugnando com veemência
polêmica, mais que com rigor de conceitos, um novo ordenamento
da sociedade e do trabalho.
Todos esses escritores, porém, mais que filósofos, foram
publicistas e reformadores políticos, e raramente se elevaram a
concepções puramente especulativas em tomo do direito.
Importância maior deve-se reconhecer ao grupo dos
positivistas, cujo chefe é um dos mais ilustres filósofos franceses,
Augusto Comte (1798/1857). A sua obra principal é o Cours de
Philosophie positive (1830/1842, 6 v.).
Comte é considerado o fundador do positivismo, e não sem
razão, desde que se entenda isso com discreção. Na verdade,
nenhuma ciência e nenhuma filosofia foram jamais fundadas
completamente ex novo por um homem. Assim, também neste caso,
é bem certo que os elementos da Filosofia positivista existiam antes
de Comte.
Alguns deles são visíveis, por exemplo, em Saint-Simon, e
também se poderia remontar aos princípios do método galileico e
aos da filosofia de Bacon.
Não há dúvida de que, especialmente na Inglaterra, pela
tradicional orientação do pensamento inglês, já se prenunciavam,
mui
199
GIORGIO DEL VECCHIO
to antes, as mesmas exigências, em sentido realístico, que
determinaram o surgimento do positivismo. Mas nem por isso
queremos negar a Comte aquela qualificação, porque a ele pertence
o mérito de ter dado sistematição orgânica à doutrina.
O positivismo consiste essencialmente em um método que
quer ser oposto ao metafísico. Quer ele excluir toda especulação que
vá além da consideração dos fatos.
Todo raciocínio deve fundar-se, segundo o positivismo, na
observação empírica, sobre a experiência.
Pode-se também opor (como Kant havia demonstrado) que a
experiência não é qualquer coisa de originário, mas de derivado; não
qualquer coisa de simples, mas de complexo; ela é, em suma, uma
relação entre um sujeito e um objeto.
De mais, a experiência pode-nos dizer que as coisas são de
certo modo, mas não que não poderiam ser diferentes; ela nos dá
apenas noções particulares e contingentes, e não noções universais e
necessárias.
E ainda é claro que todas as noções fundamentais
matemáticas, geométricas, lógicas (por exemplo, o princípio da
contradição), e ainda as éticas, não podem depender da experiência;
nem é certo que enunciamos a lei de que a soma dos ângulos de um
triângulo é igual a duas retas porque tenhamos medido todos os
triângulos.
Note-se que não existem triângulos na natureza. Os nossos
desenhos das figuras geométricas são meras aproximações do que
existe apenas no pensamento.
Partindo do seu princípio metodológico, Comte distingue no
desenvolvimento da humanidade três períodos.
No primeiro (período teológico), o pensamento humano
reconduziria as forças da natureza ao conceito de uma ou mais
divindades..
Vencido esse estágio, advém o segundo período (meta físico
), no qual a mente humana personifica as forças da natureza, isto é,
imagina entidades abstratas, considerando-as existentes realmente
(por exemplo, o conceito de causa).
200
~ HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
Enfim, chega-se ao terceiro período (positivo), no qual se
observa objetivamente a realidade, sem personificações nem
abstrações: domina, aí, o método experimental.
É digno de nota que, para Comte, as condições reais da
sociedade dependem das idéias fundamentais daqueles que a
compõem. Só por esse aspecto o positivismo comtiano assume, pois,
e já, certo aspecto idealístico. As convicções teóricas determinam as
instituições sociais.
Em seguida, Comte, seguindo o critério de partir do mais
simples para chegar ao mais complexo, formula uma classificação
das ciências na seguinte ordem: Matemática, Astronomia, Física,
Química, Biologia, Sociologia.
É de notar-se, aqui, a omissão da Psicologia (omissão assaz
criticada em seguida, especialmente por Spencer). Tal omissão, de
resto, foi plenamente consciente, crendo Comte, dominado pelas
teorias de Gall, poder abolir a Psicologia, reduzindo-a à Biologia.
Todas estas ciências, segundo Comte, surgem e se desenvolvem
passando pelos três estágios já assinalados. Mas, até onde a
matemática, a astronomia, a física, a química e a biologia já
chegaram ao estágio positivo, a sociologia deve ainda atingir esse
estágio.
Comte atribui a si o encargo de conduzi-Ia até esse ponto, ou
seja, de constituir a verdadeira ciência da sociedade humana,
fundada sobre o critério metódico de observar os fatos, esquecendo
toda ideologia metafísica.
Verdadeiramente pode-se advertir que o próprio Comte não
ficou imune a preconceitos ideológicos: assim, por exemplo, a sua
lei dos três estágios tem um caráter metafísico.
Nem, de outro lado, se pode dizer absolutamente novo o
propósito de Comte: muito antes dele, Vico, Montesquieu e outros
ainda, começaram a etudar os fatos sociais em suas correlações, por
meio da observação e da análise racional.
Comte insiste especialmente sobre a unidade de todos os
fenômenos sociais. A sociologia, ou ciência geral dos fenômenos
201
GIORGIO DEL VECCHIO
sociais, retira a sua razão de ser desta fundamental unidade ou
concexão, que ele chama consensus.
Um estudo parcial, que faça abstração dessa complexidade e
considere só um lado da fenomenologia social, é, necessariamente,
imperfeito. Daqui a aversão de Comte a cada uma das ciências
sociais (por exemplo, a Economia política) que, na sua concepção,
teria devido ser de certo modo absorvida pela única ciência geral da
sociedade.
Comte distingüe estática social de dinâmica social. Aquela
estuda os órgãos da sociedade; esta lhe estuda o movimento e o
progresso. A fé inabalável que tinha Comte no progresso humano
tem também caráter metafísico. Ela tinha sido já proclamada por
Saint-Simon e, antes ainda, por Condorcet, um dos chefes e das
vítimas da Revolução Francesa.
Segundo Comte, a Sociologia positiva deveria servir de base
à Política; a esta ele dedicou uma obra importante (Systeme de
politique positive, 1851/1854,4 v.). Nos últimos anos de vida, Comte
caiu em uma espécie de mania, produzida, além do trabalho
intelectual, pelas dolorosas vicissitudes de sua vida. E em sua mente
turbada o sistema do positivismo transmudou-se em uma religião,
com seus mártires, seus santos, seu calendário.
O positivismo comtiano teve numerosos seguidores,
especialmente na França. Recordemos Laffitte (1823/1903), que foi
o discípulo mais fiel de Comte; Littré (1801/1881), Taine
(1807/1893), Renan (1823/1892). Os dois últimos ocuparam-se
prevalentemente dos problemas históricos e de várias culturas,
visando, porém, sempre encontrar os nexos da fenomenologia
social. No campo específico da Sociologia, continuaram as
pesquisas segundo o caminho comtiano, mas não sem qualquer
originalidade de iniciativa: A. Espinas (1844/1922), autor de um
conhecido livro sobre Sociedade animal (1877); G. Tarde
(1843/1904), que em numerosas obras insistiu sobre o fator
psicológico e especialmente sobre a pretensa lei da imitação, como
base dos fatos sociais em geral; E. Durkeim
202
~
HISTÓlUA DA FILOSOFIA DO DIREITO
(1858/1917), que perquiriu com método realístico o conhecimento
coletivo como distinto daquele individual e tentou escrever os vários
fenômenos e tipos de organização social, repelindo todo critério de
valorização a priori (La division du travail social, 1983; Les regles
de Ia méthode sociologique, 1859; etc.).
Com semelhantes diretivas metodológicas discutiram os
problemas da Sociologia também R. Worms (1869/1926), que
estudou especialmente os princípios biológicos da evolução social,
1. Izoulet, E. de Roberty (nascido russo), o belga G. de Greef, L.
Lévy- Bruhl, L. Bourgeois, defensor do pretenso solidarismo, C.
Pouglé, G. L. Duprat, R. de Ia Grasserie, etc.
Dentre os pensadores franceses da segunda metade do século
XIX e do princípio do XX, emergem Ch. Renouvier (1815/1903),
autor de um completo sistema neocriticista, pelo qual podia ser
chamado, em certo sentido, o "Kant francês"; 1. Lachelier
(1832/1918), também ele kantiano; A. Foillée (1832/1912), que
tentou conciliar o idealismo platônico com o moderno
evolucionismo, e exerceu um certo influxo também na Itália (cf., por
exemplo, v.Wautrain Cavagnari, O ideal do direito, 1883); 1.M.
Guyau (1854/1888), que seguiu igual caminho evolucionístico; E.
Boutroux (1845/1921), filósofo da contingência; H.Bergson
(1859/1941), defensor de um novo espiritualismo; etc. Esses autores
porém (exceção para Foillée, que se ocupou largamente também de
Filosofia do direito, por exemplo, no livro L'idée moderne du droit,
1878) consideraram sobretudo os problemas mais gerais da Filosofia
teórica e da moral.
Dedicaram à Filosofia do direito obras valiosas outros
pensadores, que se contentaram, quase todos, mais ou menos estrita
mente, com a escola espiritualista lembrada no início desta resenha.
De modo especial devem ser recordados: É. Lerminier
(Philosophie du droit, 3. ed., 1832, 1853); 1. Oudot (Premiers essais
de philosophie du droit, 1846; Conscience et science du devoir,
1855/1856); W. Bélime (Philosophie du droit, 4. ed., 1844, 1881);
H.Thiercelin (Principes du droit, 2. ed., 1857, 1865); 1.
203
GIORGIO DEL VECCHIO
Bami (La morale dans la démocratie, 2. ed., 1868, 1885); A.
Franck (Philosophie du droit pénal, 2. ed., 1864, 1880;
Philosophie du droit ecclésiastique - Des rapports de Ia
religion et de l'État, 2. ed., 1864, 1885, Philosophie du droit
civil, 1886); J. Tissot (lntroduction philosophbique à l'étude
du droit en général, 1875); E. Carp (Probleme de morale
sociale, 1876); A. Boistel (Cours élémentaire de droit naturel
ou de philosophie du droit, 1870; Cours de philosophie du
droit, 1899), o qual se inspirou nos princípios do nosso
Rosmini; J. G. Courcelle Seneuil (Préparation à l'létude du
droit- Étude des principes, 1887); É. Beaussire (Les principes
du droit, 1888); Vereilles-Sommieres (Les
principesfondamentaux du droit, 1889); Ch. Beudant (Le droit
individuel et l'État, 1891); G. Richard (L'origine de l'idée de
droit, 1892; L'évolution des moeurs, 1925); 1. Lagorgette (Le
fondement du droit et de la morale, 1907); 1. Charmont (Le
droit et l'esprit démocratique, 1908; La renaissance du droit
naturel, 1910); P. de Tourtoulon (1867/1932), que foi
professor em Losanna (Principes philosophiques de l' histoire
du droit, 1908/1919, Les troisjustices, 1933); M. Leroy (La
loi, 1908); G. Davy (Le droit, l'idéalismo et l'expérience,
1922); G. Renard (Conférences d'introduction philosophique a
l' étude du droit, 1924/1927); La valeur dela loi, 1928; La théorie
de l 'institution, 1930); P. Cuche (Conférences de philosophie du
droit, 1928); L. Le Fur (1870/1943); La théorie du droit naturel
depuis le XVII'me siecle et la doctrine moderne, 1928); Les grands
problemes du droit, 1937); M. Réglade (Essa i sur lefondement du
droit, 1933; Les caracteres essentiels du droit, 1936); 1. T. Delos
(La théorie de l 'institution, 1931; Les buts du droit: bien commun,
sécurité, justice, 1938); P. Roubier (Théorie génerale du droit,
1946); J. Brethe de Ia Gressaye; M. Laborde- Lacoste (Introduction
générale à l' 'tude du droit, 1947), etc.
Dentre os que trataram a matéria de modo dogmático,
segundo os princípios da Filosofia escolástica, relembremos: L.
Bautain
204
~
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
(Philosophie des lois au point de vue chrétien, 1860); T. Roghe
(Traité de droit naturel théorique et appliqué, 1885/1912); A.
Valensin (Traité de droit naturel, 1922/1925); J.Lec1ercq, belga
(Leçons de droit naturel, 3. ed., 1927/1937, 1947/1948), etc. Nem
muito diferente é o método seguido por Vareilles-Sommieres, na
obra muito notável acima indicada.
Particular relevo, também pelas fecundas discussões que
suscitaram, merecem as doutrinas de L. Duguit e de F. Gény. O
primeiro (1859/1928, L' État, le droit objectif ela loi positive, 1901;
Le deroit social, le droit individuel et les transformations de l' État,
3. ed., 1908; Traité de droit constitutionnel, transformations de l'
État, 6. ed., 1911, 1927), tentou uma renovação das noções de
direito público no sentido positivístico, sob a base do princípio da
solidariedade social. O segundo (Méthode d'intérpretation et
sources en droit privé positif, 2. ed., 1899, 1919; Science et
technique en droit privé positiv, 1914/1924) ocupou-se
especialmente do problema das fontes e dos métodos de
interpretação jurídica, chegando, por esta via, a reafirmar o valor da
idéia do direito natural.
Os estudos filosófico-jurídicos se avantajaram grandemente
também na França, não só pelas aprofundadas e ampliadas pesqui
sas históricas (como as de N. Fustel de Coulanges, R. Dareste, Ch.
Letoumeau, etc.), mas também pela necessidade, geralmente
sentida nos nossos tempos, de submeter a uma revisão crítica os
con
ceitos das ciências jurídicas positivas.
Assim, elevaram-se a considerações importantes de caráter
geral, levados (como Gény) por investigações de direito privado: R.
Saleilles (École historique et droit naturel, 1902); É. Lambert
(Lafonction du droit civil comparé, 1903; L'enseignement du droit
como sicence sociale et comme science internationale, 1928); R.
Demogue (Les notionsfonrtamentales du droit privé, 1911); H.
Lévy-Ullmann (Éléments d'introduction générale à l'étude des
sciences juridiques, 1917/1928); H. Capitant
205
GIORGIO DEL VECCHIO
(Introduction à l'étude du druoit civil, 5. ed., 1898, 1929); G. Ripert
(La regle rnorale dans les obligations civiles, 2. ed., 1925, 1927); J.
Cruet (La vie du droit et l'irnpuissance de lois, 1908); G. Morin (La
révolte desfaits contre le Code, 1920; La loi et le contrat, 1927; La
révolte du droit contre le Code, 1945); J. Bonnecase (La notion de
droit en France au dix-neuvierne siecle, 1919); lntroduction à I'
étude du droit, 1926, Science du droit et rornantisrne, 1928;
Hurnanisrne, classicisrne, rornantisrne dans Ia vie du droit, 1930;
Philosophie de l'irnpérialisrne et science du droit, 1932); L.
Josserand (De l'esprit des droits et de leur relativité, 1927); L.
Husson (Les transforrnations de Ia responsabilité, 1947), etc.; ou,
então, movidos (como Duguit) pelas investigações de direito
público: M. Hauriou (Príncipes de droit public, 11. ed., 1927; La
science sociale traditionnelle, 1896, Leçons sur le rnouvernent
social, 1899; La théorie de I 'institution et de Ia fondation, 1925); R.
Carré de Malberg (Contribution à Ia théorie général de l'État,
1929/1931); R. Mirkine-Guetzevich, russo (Droit constitionnel
international, 1933; Le droit contitutionnel et I' organisation de Ia
paix, 1934; Les nouvelles tendances du droit constitutionnel, 2. ed.,
1936).
Sinal do reavivado interesse pelos estudos de Filosofia do
direito na França foi dado também pela fundação do Archives de
Philosophie du Droit et de Sociologie Juridique (1931), que tiveram
por diretores Le Fur, acima recordado, com G.Gurvitch (oriundo da
Rússia, autor de notáveis obras, como: Le temps présents et l'idée du
droit social, 1931; L'idée du droit social, 1932; L' expérience
juridique et Ia philosophie pluraliste du droit, 1935), e outros. Esse
periódico tomou-se órgão do Instituto Internacional de Filosofia do
Direito e de Sociologia Jurídica, fundado em Paris, em 1933, com a
participação de estudiosos de vários países.
Podem-se, enfim, registrar, ao lado de escritores franceses, os
suíssos: E. Roguin (Le regle de droit, 1889; La science juridique
206
'T"
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
pure, 1923); C. Du Pasquier (Introduction à Ia théorie générale et à
Ia philosophie du droit, 3. ed., 1937, 1948); F. Guisan (Note sur le
droit naturel, 1940; La sicience juridique pure:Roguin et Kelson,
1940); e os belgas: F. Laurent (1810/1887), autor, além de um
conhecido tratado de direito civil, de uma ampla e valiosa obra
histórico-filosófica (Histoire du droit des gens et des relations
internationales - Études sur l'histoire de l'humanité, 18 v.,
1860/1870,2. ed., 1861/1880); E. Picard (Le droit pure, 1899; outra,
1908; Les constantes du droit, 1921); L. Hennebick (Philosophie du
droit et droit naturel, 1898; L'idée du juste dans l'Orient grec avant
Socrate, 1914); F. Mallieux (Prolégomenes à Ia science du droit,
1911); G. Comil (Le droit privé, 1924); H. de Page (De
l'interprétation des lois, 1925; À propos du gouvernement des juges
- L'équité en face du droit, 1931); J. Dabin (La Philosophie de
l'ordre juridique positij, 1929; La technique de l'élaboration du
droit positij, 1935); J. Haesaert (Contingences et régularités du droit
positij, 1933; Laforrne e le fon du juridique, 1934; Théorie générale
du droit, 1948), além
de De Greef e Leclercq, acima recordados.
207
~ I
VISÃO DA FILOSOFIA DO DIREITO NA
INGLATERRA E NOS ESTADOS
UNIDOS, NOS TEMPOS RECENTES
Passando agora a uma breve resenha dos filósofos ingleses,
depois daqueles dos quais já demos notícia, notamos em geral como
o caráter empírico prevaleceu na Filosofia inglesa. Foi ela, em
outros termos, mais inclinada à observação e ao experimento que
àespeculação das idéias. Existem também algumas exceções, quem
sabe, gloriosas. Na Filosofia geral e na teoria do conhecimento
dominou o sensismo, ou seja, a tese segundo a qual dos dados dos
sentidos derivaria todo o saber. Na Ética e na Filosofia do direito
predominou o utilitarismo, isto é, a tendência a pôr no útil ou no
prazer a lei fundamental do agir.
Na Ética, esta orientação corresponde ao sensístico na
Filosofia teórica. Para superar a moral utilitária é necessário admitir
um princípio absoluto, uma verdade superiror à realidade empírica,
um bem e um dever que valham per se. Mas isso, evidentemente,
contrasta com a Filosofia sensística.
Portanto, enquanto nos grandes sistemas do idealismo
encontramos uma moral e um direito absolutos, nos sistemas do
sensismo encontramos, ao contrário, uma Ética relativa e, em
especial, utilitária.
Não é de crer, certamente, que o utilitarismo seja uma inven
ção do pensamento inglês. Pelo contrário, sistemas utilitários
tiveram fim na antiguidade, sobretudo e fundamentalmente, o
epicurista. Mas o utilitarismo comporta muitos aspectos, e a
doutrina utilitária foi na Inglaterra, melhor que em outro lugar,
sucessivamente afina
?OQ
---
GIORGIO DEL VECCHIO HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
da e aperfeiçoada, com o fim de tomá-Ia pais sustentável, embora,
na verdade, não aceitável.
Pode-se dizer que o fundador do utilitarismo inglês foi
Geremia Bentham (1748/1832), autor de numerosas obras, dentre as
quais vamos recordar: Introdução aos princípios de moral e
legislação (publicada em 1789); Tratado de legislação civil e penal
(de 1802; notemos que Bentham foi especialmente cultor do direito
penal, e ocupa um posto notável nesse ramo das ciências jurídicas);
Livro dos sofismas (de 1824); e, enfim, Deontologia, publicado em
1834, dois anos depois de sua morte.
Em Bentham o utilitarismo aparece em uma forma quase rude
e primitiva. O prazer (tomado em sentido materialístico, como
satisfação sensíveil e vantagem pessoal) é o único fim da vida.
Portanto, só se procura o prazer. E a moral não é nada além do
cálculo dos prazeres.
Deriva daqui a pretensa "aritmética moral". É necessário
evitar o vício somente enquanto conduz à infelicidade, ou seja,
representa um erro de cálculo na busca da felicidade.
A virtude, sempre segundo Bentham, seria um egoísmo, bem
entendido, que exige também alguma renúncia, mas apenas para um
fim utilitário. Assim, por exemplo, o sacrifício do prazer menor pelo
prazer maior, a renúncia ao prazer presente, em vista do prazer
futuro.
Com isto se chegaria, evidentemente, à negação de uma
verdadeira moral, pois que se trataria, sempre, do prazer individual,
sem qualquer atenção ao bem de outrem.
Todavia, Bentham, como os outros utilitaristas, advertiu
sobre a necessidade de alguma correção ao seu rude princípio.
Recorre, para isso, ao coeficiente da simpatia: reconhecer a
necessidade, na qual nos encontramos, de participar de qualqeur
modo dos sentimentos do nosso próximo, e admite, em substância,
que não se possa ser feliz em meio a uma multidão de infelizes.
A esta, uma outra consideração se agrega: que, agindo
segundo o puro princípio egoístico, legitimaremos igual postura dos
outros contra nós e faremos em seguida, em última análise, o nosso
prejuízo.
De tudo isso surge uma certa mitigação da doutrina
originária. Tende-se a substituir o conceito de útil individual com
um conceito superior e mais vasto. O fim supremo não é mais o
prazer do individuo, mas "a felicidade máxima do máximo número".
Nisto consiste a pretensa "maximização do prazer". Bentham
acrescenta esta regra: "na repartição dos prazeres nenhum homem
deve ser excluído, e cada um deve contar por um".
Delineados assim os princípios fundamentais do sistema de
Bentham, não é difícil observar como todo esse edifício seja
defeituoso nas suas bases.
Antes de tudo, identificar o útil com o bem moral é
contradizer irreparavelmente o testemunho da consciência humana.
Freqüentemente surgem conflitos entre a utilidade e o dever.
Nós seremos impelidos pela utilidade a agir de certo modo, mas o
sentimento moral nos retém e nos impele a agir diversamente.
Calcular apenas a própria vantagem, o proveito individual das
próprias ações, não é mais agir moralmente. Antes, a lei moral exige
que nós superemos o nosso egoísmo e ajamos segundo uma máxima
universal, identificando em nós mesmos o ser de todo outro homem.
De mais, mesmo admitido o princípio, ele não conduz
exatamente às conseqüências que Bentham dele extrai. Se o prazer é
o único escopo da vida, não se compreende, em verdade, por que nos
deva preocupar a felicidade dos outros, o prazer "do máximo
número", por que se deva sentir o dever de "contar cada um por um".
Seria mais lógico um egoísmo desenfreiado, pelo qual cada um
buscasse o máximo prazer próprio, mesmo em prejuízo dos outros.
Chegar-se-ia, assim, a um anarquismo de ínfimo grau.
As razões adotadas por Bentham para justificar a trans
formação do seu princípio não parecem suficientes. Seria mais
conseqüente (segundo suas premissas) um egoísmo sem limites do
que uma conciliação ou um compromisso entre o egoísmo e o
altruísmo.
210 ? 11
GIORGIO DEL VECCHIO
Notamos ainda que existe certa ambigüidade no conceito
mesmo de prazer ou de felicidade.
Bentham e, em geral, os utilitaristas da sua escola partem do
conceito do prazer material. Compreendendo depois a
impossibilidade de limitar-se apenas à consideração dos prazeres
inferiores, freqüentemente dão àquele termo um significado mais
vasto, até compreender nele também as satisfações do intelecto e da
consciência.
Assim, pode-se chegar a conseqüências bastante plausíveis.
Todavia, modificou-se inadvertidamente o princípio fundamental, e
a coerência lógica do sistema é destruída.
Uma escala dos prazers foi admitida também por Platão (cf.
Filemon), que não era, certamente, utilitarista. Mas importa mesmo
advertir que entre os prazeres dos sentidos e os prazeres do intelecto
corre uma distância incomensurável, e que nada existe de comum
entre os prazeres inferiores ou sensíveis e o apagamento da
consciência moral, quando o homem que cumpriu o dever se sente
em harmonia consigo mesmo.
Subordinar as satisfações inferiores às superiores, eis o fim
ou a regra da moral. Mas não se poderá jamais chegar a demonstrar
a necessidade de uma tal subordinação partindo da premissa
utilitária.
Sobre as doutrinas de Bentham elevam-se, com certo avanço,
as de JoOO StuartMill (filho de Giacomo Mill, filósofo ele
também). Foi sem dúvida um dos maiores pensadores ingleses e
também figura nobilíssima de homem e de cidadão. Viveu de 1806
a 1873.
Entre os seus escritos recordaremos a Lógica indutiva e
dedutiva e os ensaios: Sobre a liberdade, Sobre o governo repre
sentativo e Sobre o utilitarismo. Pertence a Mill o mérito de ter
desenvolvido a doutrina utilitária, aperfeiçoando-a, e sobretudo o de
ter buscado na lei psicológica da associação de idéias um
desdobramento, se não suficiente, certamente notável, da formação
da consciência moral.
Mill reconhece que o cálculo, de que fala Bentham, é um absurdo
psicológico. Nós agimos, em geral, segundo as indicações
212
",. HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
do sentimento, e não em virtude de cálculos; temos uma faculdade
moral que preside a direção dos nossos atos. Esta consciência moral
como se explica?
Mill responde que o indivíduo, vivendo na sociedade, adquire
a persuação de que a vantagem prória é inseparável da vantagem de
outro. Por uma série de experiências nos persuadimos de que, para
alcançar o nosso bem, devemos querer o bem do outro. Isto,
entretanto, é efeito não de cálculo, mas de hábito psicológico, de
uma espécie de faculdade arraigada, que é exatamente a consciência
moral. Esta derivaria, então, do fato de que o indivíduo associa,
reúne, na sua mente, a idéia do seu bem particular com a idéias do
bem geral da sociedade da qual é parte. Por esse processo
psicológico operar-se-ia uma espécie de alargamento do conceito da
própria vantagem, até compreender nele o bem do próximo.
Busca Mill aperfeiçoar a doutrina de Bentham também em
outro sentido, isto é, como tentativa de uma distinção qualitativa dos
vários prazeres.
Bentham tinha distinguido os prazeres apenas segundo uma
medida quantitativa (tinha posto como fim último o "máximo", isto
é, a maior soma possível de prazeres). Mill, ao contrário, distingue
os prazeres mais nobres dos menos nobres, os prazeres que são
próprios do homem, dos prazeres que o homem tem em comum com
os outros animais, e considera os primeiros (ou seja os prazeres
intelectuais e morais) como superiores ante os outros.
De tais princípios Mill extrai conseqüências também jurídicas
e políticas. No máximo, sustenta os princípios do puro
individualismo, dando relevo sobretudo à idéia da liberdade. Mas a
legislação, segundo Mill, deve favorecer a associação mental entre o
bem do indivíduo e o bem da espécie, de modo que o indivíduo,
procurado o próprio bem, deve também necessariamente buscar o
bem da sociedade. Desse conceito serve-se Mill para dar um
desenvolvimento e uma justificação da pena. Quando a um ato
lesivo se comina uma pena, determina-se uma associação de idéias,
pela qual o delito deve ser considerado um mal também para quem o
comete.
213
GIORGIO DEL VECCHIO
Esta associação de Mill, embora engenhosa, não nos aplaca,
uma vez que ficará sempre a explicar como se chegou a assinalar
uma pena a um ato, se este não era antes (isto é, independentemente
da pena) objeto de censura ou reprovação pela consciência comum.
Na verdade, a teoria utilitária não tem com Mill um
fundamento sólido. Só com a teoria da evolução ela aparecerá um
pouco transformada e posta sobre bases menos frágeis.
Em Bentham e em Mill o esforço evidente de conciliar a
busca do bem individual com a consideração devida à convivência
social (consideração, porém, que exorbita da doutrina utilitária)
constitui por si quase uma confissão da insuficiência do egoísmo,
adotado como princípio, a fundar uma Ética. E, na verdade, se não
fosse possível um superamento do egoísmo individual, não nos seria
moral nem correto.
O "cálculo" de Bentham não é aceitável como lei ética,
também porque ele não poderia ser feito, a cada vez, pelo indivíduo;
e da mesma forma a "faculdade moral", de que fala Mill, não
poderia realmente formar-se (mesmo com a ajuda da associação de
idéias) mercê apenas dos elementos fornecidos pela experiência
individual.
A Ética de Mill não é senão um aperfeiçoamento da Ética de
Bentham; dela conserva, portanto, os defeitos fundamentais.
Um novo progresso na doutrina utilitária é trazido pela teoria
da evolução, cuja origem é ligada aos nomes de Darwin e Spencer.
O primeiro estudou a evolução no campo das ciências naturais e
precisamente no mundo orgânico; o segundo elevou o princípioo a
um significado universal, tentando explicar com ele toda a realidade.
Carlos Darwin (1809/1882) publicou em 1859 a sua obra
capital Sobre a origem das espécies mediante a seleção natural.
Com longas e pacientes pesquisas (fez mesmo, à sua custa,
uma viagem de circunavegação para estudar a vida animal),
observou que, para viverem, os animais devem sustentar uma luta
com o ambiente. Todo ser vivente deve realizar um esforço para
afirmarse diante das dificuldades naturais. Existe, então, uma luta
pela vida
,., 1 A
-....
1
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
(struglefor life). Como conseqüência dessa luta, alguns entre
os seres viventes, isto é, os mais adaptados (não os melhores,
como se diz, talvez erroneamente), sobrevivem. Outros, os
menos adaptados ao ambiente, sucumbem. Acontece, então,
uma seleção, uma escolha, uma seleção natural.
Toda a teoria darwiniana apóia-se sobre dois princípios:
luta pela vida e conseqüente seleção natural. Isto que acontece
com o indivíduo, acontece igualmente com a espécie. Por
efeito da seleção natural as espécies transformam-se,
adaptando-se, cada vez mais, às condições do ambiente. As
que não se adaptam, perecem.
Esses conceitos fundamentais Darwin os aplica também
ao homem.
O homem - observa Darwin - não poderia viver sem a
ajuda dos seus semelhantes; ele é, então uma espécie social, e a
sociabilidade é uma das suas condições de vida. Conseqüentemente,
o indivíduo inapto a viver na sociedade vai eliminado pela seleção,
enquanto os mais adaptados a conviver socialmente sobrevivem.
De tal modo se reforça, continuamente, o instinto social que
ele se identifica, para Darwin, com o instinto moral.
Esse mesmo critério da sociabilidade maior ou menor tem
correspondência nas lutas entre as nações.
Assevera Darwin que, encontrando-se dois povos, dos quais
um seja formado de indivíduos sociáveis, capazes de se sujeitarem
a uma disciplina comum e de se sacrificarem um pelo outro, e o
outro povo, ao contrário, seja composto de indivíduos não
sociáveis, egoístas, incapazes da subordinação social e do sacrifício
dis
ciplinado, o primeiro terá maior probabilidade de vencer.
Assim, as estirpes menos sociáveis serão eliminadas pouco a
pouco, e o instinto social tenderá a difundir-se no mundo.
Esses conceitos são desenvolvidos ulteriormente por Erberto
Spencer (1820/1903), que construi um sistema completo de
Filosofia sobre as hipóteses da evolução. Suas principais obras, que
compõem tal sistema são: Primeiros princípios, Princípios
71"
GIORGIO DEL VECCHIO
de biologia, Princípios de psicologia, princípios de sociologia e
Princípios de ética. Esta última obra compreende várias partes,
dentre as quais os Dados da ética (ou Bases da moral), a Justiça e a
Beneficência.
Segundo Spencer, a vida do uni verso é um grande ritmo, um
movimento contínuo de formações e de dissoluções. O sentido desse
movimento é que constitui a evolução; e esta consiste precisamente
em uma passagem do homogêneo para o heterogêneo, do
indiferenciado para o diferenciado, do incoerente para o coerente.
Como o sistema solar, segundo a conhecida tese de Kant e de
Laplace, teve origem de uma massa sideral informe, de uma
nebulosa imensa, difusa e homogênea, da qual se destacaram, pouco
a pouco, em virtude do movimento, os astros e os corpos celestes,
assim na sociedade humana, e em toda outra ordem de realidade, de
uma masssa caótica, informe e difusa, destaca-se uma plural idade
de seres individuais, que se dispõem em relação harmônica entre
eles. E forma-se, assim, a pouco e pouco, uma distribuição e
sistematização de funções, uma especialização de atividades; nasce,
em suma, uma nova e superior unidade.
As ordens primitivas, compostas de indivíduos que exerci
tam todos as mesmas funções e vivem promniscuamente, mudamse
pela evolução em sistemas sociais, nos quais se desenvolvem as
diversas individualidaddes, se distinguem as várias funções, e a vida
da coletividade apresenta-se, então, como um todo harmonicamente
ordenado, composto de partes distintas e perfeitamente reunidas,
tendo cada um ofício próprio em relação ao todo.
A sociedade humana é, pois, concebida por Spencer à
semelhança de um organismo, isto é, como uma unidade vivente,
sujeita àlei da evolução. Em tal organismo distinguem-se várias
partes e funções, não menos que no organismo indi vidual, no qual
identificamos um tecido endodérmico que nutre, um tecido
mesodérmico que distribui o alimento, um tecido exodérmico que
protege e defende o organismo. Na sociedade correspondem ao
primeiro os componen
216
.....
l HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
tes da classe agrícola e industrial, ou seja, os produtores; ao segundo,
os comerciantes; ao terceiro, enfim, os soldados e os juízes, que
protegem e defendem a sociedade dos perigos externos e internos.
Tal concepção orgânica, como se vê, é fundada sobre uma
analogia simples com o organismo individual.
Todavia, o próprio Spencer distinguiu os limites dentro dos
quais se pode aceitar a concepção orgânica, advertindo que se trata
de analogia, e não de identidade. Na verdade, entre o organismo
individual e o organismo social existem diferenças notáveis.
O primeiro é um todo concreto, compacto, indivisível; o
segundo, um todo discreto, isto é, distinto, composto de partes
separadas ou separáveis.
Enquanto os elementos do organismo individual não têm
valor por si e servem apenas à vida do todo, os elementos do
organismo social (os indivíduos) têm valor e vida própria, são (para
usar uma lingagem kantiana) fins em si, e não apenas meios com
respeito ao todo.
A teoria orgânica, se aceita absolutamente, poderia conduzir à
negação do valor da existência individual. Longe disso, Spencer foi
em política resolutamente individualista e reconheceu (na obra da
Justiça) que o indivíduo tem para si mesmo uma série de direitos
naturais. Disso falaremos mais adiante.
Spencer tem o propósito de reformar o utilitarismo,
substituindo o utilitarismo empírico de seus predecessores pelo
utilitarismo
racional. Aceita o princípio tadicional da Filosofia inglesa, que o
útil é o fim do agir humano e a base da Ética. Mas atribui à
utilidade um significado não hedonístico (hedoné = prazer), também
biológico.
Não se refere Spencer ao prazer como sensação
subjetiva, nem ao cálculo dos prazeres, segundo a doutrina de
Bentham, nem à faculdade psicológica derivante de tal
cálculo, segundo a doutrina de Mill, mas, ao contrário, ao
equilíbrio biológico entre as condições do indivíduo e as
condições do ambiente. E desta maneira Spencer liga-se a
Darwin.
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'7
""
GIORGIO DEL VECCHIO HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
Expressão desse adaptamento ao ambiente, que se completa
no curso da evolução, é a Ética, que é também qualquer coisa de
variável e relativo: as regras do agir transformam-se à medida que
mudam as condições do ambiente, pois representam exatamente as
condições necessárias para a existência do indivíduo e da sociedade.
Estamos, portanto, em pleno relativismo.
Todavia, Spencer tenta elevar-se, depois disso, chegando a
uma Ética absoluta.
O significado da Ética é para Spencer a correção do egoísmo,
porque a primeira condição de vida para o homem é a sociabilidade,
o adaptamento à vida social, que representa um freio, uma limitação
imposta ao egoísmo. Admite, então, a formação de um sentimento
moral altruístico, pela virtude do processo biológico.
Segundo os mesmos conceitos darwinianos, o indivíduo que
não pudesse adaptar-se ao ambiente desapareceria, necessariamente,
pelo efeito da seleção natural. Sobrevivem só os mais adaptados. E
isto vale, além dos indivíduos, também para os povos.
Ao explicar esse processo de adaptação do indivíduo à vida
social, Spencer chega a outro critério importantíssimo - o da
hereditariedade. Segundo esse critério (que está, porém, ainda no
estado de hipótese), a adaptação não se realiza só na vida do
indivíduo, mas também, e sobretudo, na vida da espécie.
Os resultados das experiências (que forçam o homem a
dobrar o seu egoísmo, educando-o para a sociabilidade) acumulamse
e se transmitem hereditariamente de geração em geração.
Assim se explicaria o surgir dos instintos morais, que não têm
comparação adequada na experiência do indivíduo. Eles (segundo a
hipótese) seriam o fruto das experiências da espécie. O que parece
inato no indivíduo, seria adquirido com respeito à espécie. O
sentimento do dever e o do direito seriam os produtos das
experiências de utilidade de toda a espécie, tansmitidos e tomados
orgânicos em nós.
Spencer tentou uma conciliação análoga entre o empirismo e
o idealismo a respeito das categorias do intelecto, ou seja, das for
mas necessárias do conhecimento; também elas seriam adquiridas da
espécie, a posteriori, isto é, fruto das experiências acumuladas e
transmitidas, mas apareceriam a priori no indivíduo, que lhe entraria
na posse já ao nascer.
A nós não parece que esta tentativa de conciliação, embora
engenhosa, seja verdadeiramente aceitável, podendo-se fazer graves
objeções a ela.
Se o a priori (a forma subjetiva) é um elemento necessário
para o conhecimento, e em particular para a experiência, não se
compreende como isso possa ser o resultado de um certo acúmulo de
experiêcias. O suceder-se, o multiplicar-se das experiências, não
resolve o problema da condição, que permite (toma possível) as
experiências mesmas.
A mesma objeção pode-se fazer relativamente às faculdades
morais: é difícil admitir que o sentimento do dever e o do direito
possam depender de um acúmulo de experiências, quando estas
experiências pressupõem exatamente certa vocação ou atitudes
originárias da consciência individual. O dizer que esta atitude é a
resultante de um longo perpassar de experiências, e que trasmonta a
tempos remotos, é um expediente que prolonga, mas não resolve o
problema. A nosso parecer, em suma, Spencer não chegou a
encontrar o fundamento da moral e do direito. Isto, aliás, era
inevitável, dadas as suas premissas, pois que a só observação dos
fenômenos naturais não pode conduzir a descobrir a essência do
homem e as leis da sua consciência.
Segundo Spencer, a adaptação à vida social (na qual consis
te exatamente a moral) tende a tornar-se orgânica, isto é, a
transformar-se por efeito de imposições obrigatórias em hábito
espontâneo e quase instintivo. De conseqüência, o sentimento do
dever (ou de obrigação moral) seria um sentimento transitório,
próprio de um estado de adaptação incompleto.
O dissídio entre o impulso espontâneo e o sentimento do
dever e da obrigação chegaria, de mão em mão, a comparar-se com um
218 219
, I
GIORGIO DEL VECCHIO
mais perfeito adaptamento à vida social. A moral estaria, então, em
via de regresso, tenderia a descer ao instinto.
Mas essa construção teórica de Spencer não corresponde à
realidade dos fatos. A experiência demonstra que com o progredir
da civilização o senso do dever cresce.
Nas fases originárias confunde-se o ser com o dever ser, isto
é, o que é sempre feito com o que se deve fazer, a força com o
direito. Nas fases mais progressivas, ao contrário, a antítese entre
esses termos desenvolve-se e se reforça a consciência do dever e do
direito; o sentimento de obrigação faz-se mais intenso, agudo e
consabido.
A adaptação à vida social tem também por efeito, segundo
Spencer, a tansformação do regime de convivência do tipo militar
para o tipo industrial.
Nisso ele renova a doutrina de Comte, que distinguia
exatamente dois tipos de sociedade: o militar e o industrial. O
primeiro seria próprio das sociedades primitivas, e denotaria menor
adaptação à vida social; a organização da sociedade estaria, pois,
preordenada inteiramente para este único fIm: a luta, o combate, a
guerra.
No seus Princípios de sociologia, Spencer traça amplas
descrições (valendo-se também das narrações de numerosos
exploradores) da vida das sociedades primitivas sobre a base de uma
organização militar e aponta como caracteres fundamentais delas a
hierarquia rigorosa, a restrição extrema da liberdade pessoal, a
restrição da iniciativa individual. Esses caracteres, próprios de todo
exército, estendem-se a toda a vida civil.
Com o proceder da evolução, a sociedade assumiria, pouco a
pouco, um tipo industrial: o indivíduo vai-se emancipando da
disciplina coercitiva e pode exercitar livremente a sua atividade,
pode desenvolver pacificamente suas iniciativas. O fIm supremo não
são mais os trabalhos de guerra, mas os de paz; alcança-se uma
mudança de todos os valores sociais, uma tansformação profunda
nas idéias e nos institutos. Esse esquema de evolução é, como todos
os outros esquemas fixos de FilosofIa da história, em parte verdadei
"' 220
...,
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
ro, em parte inexato; não pode ele, pois, ser aceito senão com muita
cautela.
Spencer propôs-se, ao final, este problema: o processo de
adaptação à vida social deve ser concebido como finito ou como
infinito? Pareceria que Spencer, coerentemente com o seu
empirismo, devesse limitar-se à simples observação do processo,
sem indicarlhe um término; se para ele a realidade é apenas relativa
e em movimento contínuo, uma parada da evolução parece
contraditória, e como tal foi na realidade considerado, também, por
muitos seguidores das teorias spencerianas. Contudo, Spencer
raciocinou sobre a hipótese de uma evolução completa, supondo
uma organização social perfeita, não mais dividida por contrastes,
nem debilitada por transgressões, mas em completa harmonia em
todas as suas partes, com uma plena conciliação entre altruísmo e
egoísmo.
Spencer contrapõe, portanto, a Ética absoluta à Ética relativa.
A primeira corresponde a uma perfeita adaptação do indivíduo à
vida social; a segunda, a determinado momento, a certo grau do
processo. Mas, na verdade, toda a Ética, segundo as bases da
concepção spenceriana, deveria ser relativa.
Por admitir, além dessa, uma Ética absoluta, passa a especular
um ideal que se funda sobre a razão, e não sobre a experiência. E
então nos separamos das bases da teoria de Spencer e entramos no
âmbito dos imperativos categóricos de Kant.
Essa parte da doutrina de Spencer dá lugar a muitas
dificuldades e foi confutada por seus próprios seguidores, os quais
observaram que, ao contrário, a evolução e, portanto, também o
processo de adaptação não podem admitir um termo final.
E, de outra parte, mesmo admitindo um termo da evolução,
como poderemos nós conhecer e afirmar preceitos absolutos? E
como se conciliaria a Ética absoluta com a Ética relativa? Qual se
ria, respectivamente, o seu valor? Parece que, ao menos por
enquanto, a Ética devesse ser apenas relativa, uma vez que não se
alcançou ainda a adaptação perfeita.
221
-
GIORGIO DEL VECCHIO HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
Por outro lado, Spencer afmna como válidos certos princípios
de Ética absoluta. Isto é, sem dúvida, uma ilogicidade. Mas é uma
ilogicidade, que aos nossos olhos toma-se preciosa, enquanto nos
mostra que o autor quis, com um salto de lógica, corrigir o defeito
originário do seu sistema.
É singular que Spencer, expoente máximo da reação
positivística contra o racionalismo na Filosofia jurídica, se tenha
tornado, por último, adepto dos princípios mesmos do direito
natural. Nisso está uma incoerência, que se pode também aceitar
como voluntária, preferindo uma ofensa à lógica do sistema, a uma
ofensa à verdade. Todavia, não deixa de ser, do ponto de vista
intrínseco, um defeito do sistema mesmo.
Os princípios de Ética absoluta, espostos por Spencer,
contemplam de modo particular o direito. Tem-se, então, nessa
matéria, uma contraposição nítida entre as regras da justiça
absoluta e as regras das várias legislações positivas.
O princípio jurídico fundamental, enunciado por Spencer é:
"Cada um pode fazer o que quer, desde que não ofenda a igual
liberdade dos outros". Este princípio não é novo, pois
substancialmente é o mesmo já sustentado pela escola do direito
natural (racional). Confronte-se, no caso, a fórmula da "igual
liberdade" de Kant. Essa coincidência evidente com o conceito
kantiano foi observada pelo próprio Spencer que, depois de declarar
que ignorava a obra de Kant, indicou algumas diferenças entre as
duas fórmulas.
Em substância, disse o seguinte: enquanto Kant deduz a má
xima de critérios apriorísticos, eu a retiro do resultado de
numerosas experiências sociais; onde Kant insistiu sobre o lado
negativo, eu, ao contrário, atribuo maior importância ao lado
positivo (liberdade positiva: cada um pode fazer o que quer).
Essas considerações não destroem, todavia, a concordância
fundamental. Entretanto, não nos parece que a fórmula de Spencer
possa verdadeiramente ser considerada como fundada sobre a
experiência ou retirada somente dela.
Ao princípio ora exposto Spencer acrescenta um outro
complementar, isto é, que "cada um deve suportar as conseqüências
da prória natureza e da própria conduta". Esta é exatamente uma
exigência absoluta da Justiça, superior às normas das legislações
positivas. Spencer dá depois um elenco dos direitos naturais do
homem, que resultam daqueles princípios (direito de mover-se
livremente, direito de propriedade, direito de livre troca, direito à
liberdade de crença, de culto, de palavra, de imprensa, etc.). É um
elenco análogo ao formulado, por exemplo, na Declaração dos
direitos do homem e do cidadão, de 1789. E é verdadeiramente
notável que tais verdades de ordem metafísica se encontrem em um
escritor de tendências opostas como Spêncer.
Com a justiça liga-se a filantropia. E assim vemos seguir à
Justiça uma outra obra sua, Beneficência negativa e positiva.
A beneficência é para Spencer um corretivo da justiça, que
tende a suprir certas conseqüências da justiça mesma. As ajudas aos
seres mais fracos, que se não são ajudados serão condenados a
morrer, a integração da pessoa deficiente, tudo isso está fora da
justiça e forma, ao contrário, o objeto da filantropia.
Basta pensar nas organizações familiares para reconhecer a
necessidade de não se seguir rigidamente a máxima que impõe a
todo indivíduo suportar as conseqüências da própria conduta. É
necessário que a benevolência mitigue os males ocasionados pelas
inferioridades temporáis ou permanentes.
Este é exatamente o campo da beneficência, o qual é,
portanto, uma forma secundária de altruísmo, enquanto a justiça lhe
é a forma primária.
Na luta pela vida, a beneficência é um freio interior, que
chega ao exterior porimposição da lei jurídica.
Em política Spencer foi, como acentuamos, resolutamente
individualista, conforme a tendência da sua pretensa escola liberal
clássica. Toda a sua doutrina política é dirigida contra a invasão do
Estado (cf., especialmente, o livro The man versus the State, ed.
222 223
GIORGIO DEL VECCHIO
it., com o título O indivíduo e o Estado. Cf., sobre este livro o ensaio
de M. Minguetti, O cidadão e o Estado, no volume Escritos vários,
1896, p. 401-471).
Ao Estado deve pertencer só a tutela dos direitos individuais,
que quanto ela seja necessária. E tal necessidade deve decrescer
progressivamente, ou seja, deve diminuir a atuação do Estado, para
deixar espaço sempre mais largo à iniciativa individual.
Spencer mostra-se especialmente contrário à assunção pelo
Estado dos ofícios de beneficência. Vê nisso o perigo de o Estado
tirar de uns o que lhes pertence com justiça para dá-lo a outros sob a
forma de beneficência.
Segundo Spencer, esta deve ficar fora do Estado, como está
fora da justiça; deve ser espontânea, deixada à iniciativa individual,
e não obrigatória, forçada ou coagida.
É provável que tais reflexões lhe tenham sido sugeridas pelo
ordenamento da vida inglesa, onde a iniciativa individual exercitase
vigorosamente com a maior liberdade, e onde a beneficência tem
uma verdadeira e própria organização privada. Assim, também na
Inglaterra verificou-se o fato, comum na idade moderna, de maior
atividade do Estado, que sempre chamou a si novas funções e novos
ofícios. Exatamente contra tal tendência Spencer quer reagir,
afirmando energicamente os direitos do indivíduo.
Dentre os escritores ingleses do último século que tentaram
de vários modos superar o empirismo positivístico, merecem
menção: F. H Bradley (1846/1924) e B. Bosanquet (1848/1923).
Suas obras referem, prevalentemente, argumentos gerais de Ética e
apenas tocam problemas de Filosofia do direito.
Sobre esta matéria escreveram tratados, dentre outros, J.
Lorimer (The institues of law, a reatise of the principies of
jurisprudence as determined by nature, 1872) e W. G. Miller
(Lectures on the philosophy oflaw, 1884).
Depois das clássicas obras de W. Blackstone (1723/1780),
que, na base de suas considerações sistemáticas sobre o direito
224
T I
"esTÓRIA DA "LOSO"A DO D<R~O -l inglês, pôs elevada concepção do direito natural, as doutrinas
de J. Austin (1790/1859 são mais atinentes ao direito positivo,
mas não privadas de interesse filosófico. Ele é o chefe da
pretensa "escola analítica de jurisprudência", derivada de
Bentham, e sempre largamente seguida pelos juristas anglo-
saxões. Um deles, T. E. Holland (1835/1926), é notável além
de em razão de sua obra The elements ofjurísprudence (13.
ed., 1830, 1924), também por ter sabiamente reivindicado a
glória de Alberico Gentili. Valiosos são ainda os tratados de
F. Pollock (A first book of Jurisprudence, 6. ed., 1896,
1929), e de J. Salmond (Jurisprudence, 10. ed., 1902, 1947).
Com as doutrinas austinianas ligam-se especialmente os
estudos de W. Jethro Brown (professor na Austrália): The
Austinian theory of law, 1906, The underlying principies of
modern legislation,1912.
Entre as obras sistemáticas mais recentes sobre a teoria
do direito, são particularmente notáveis as de W. Friedmann
(Legal theory, 2. ed., 1944, 1947), C. K. Allen (Law in the
making, 4. ed., 1927, 1946), W. Buckland (Some reflections on
jurisprudence, 1945), G. W. Paton (A text-
bookofjurisprudence,
1946), J. Stone (The province and function of law, 1947), os
dois últimos professores na Austrália; ainda vários ensaios de
H. C. Gutteridge (Comparative law, 1946), A. H. Campbell e
outros.
De grande importância são as resenhas histórico-
comparativas de J. S. Maine (1822/1888; Ancien law, 1861,
etc.). Além de Maine, investigaram a vida social dos povos
primitivos J. F. Mac-Lennan, J. Lubbock, E. B. Taylor, J. G.
Frazer, L. T. Hobhouse, etc.
Também deram valiosas contribuiçõesa para a história
das doutrinas jurídicas e políticas R. Flint, L. Stephen, F.
Pollock, H. Sidgwick, J. Bryce, A. Dicey, F. W. Maitland, D.
G. Ritchie, J. N. Figgis, A. 1. Carlyle, G. P. Gooch, C. E.
Vaughan, F. Heamshaw, J. W. Allen, Ph. Doyle, etc.
n'i
GIORGIO DEL VECCHIO HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
***
Os problemas próprios desta disciplina foram mais
considerados, sob vários apspectos, por F. Lieber (Manual of
political ethics, 2. ed., 1838, 1876), J. M. Baldwin (Social and
ethical interpretations in mental development, 1897, etc.), F.
H. Giddings (Principles of sociology, 1886), W. Willoughby
(An examination of the nature of the State, 1896), L. F. Ward
(Pure sociolgy,
1902), W. N. Hohfeld (Fundamental legal conceptions as
applied in judicial reasoning, 2. ed. 1913/1917, 1923), e,
mais recentemente, com notável incremento, por outros
eminentes cultores, quais, principalmente, 1. H. Wigmore
(Problems oflaw, 1920, etc.), A. Kocourek (Jural relations,
1927; An introduction to
the science of law, 1930), R. Pound (Outlines of lectures on
jurisprudence, 4. ed., 1928; The spirit ofthe common law,
1921; An introduction to the philosophy oflaw, 1922;
Interpretations of legal order, 1933, etc.), B. N. Cardozo (The
growth of the
law, 1927; The nature of the judicial process, 1928; The
paradoxes oflegal science, 1928), C. G. Haines (The reival of
natural law concepts, 1930), M. Radin (The nature of the
legislative act, 1931), etc.
Entre as contribuições americanas ao estudo das
organizações jurídicas primitivas, notamos as obras de L. H.
Morgan (Anciene society, 1878) e de R. H. Lowie (Primitive
society, 1920;
The origin ofthe State, 1927), e, entre as relativas à história das
doutrinas políticas, os tratados de J. W. Burges, W. Dunning,
C. Merriam, R. G. Gettel, W. C. Mac1eod, etc.
O impulso dado na América do Norte aos estudos
filosófico-jurídicos resulta também de publicações coletivas,
como: Modern legal philosophy series, evolutions oflaw series
(sob a responsabilidade de A. Kocourek e J. H. Wigmore,
1915/; 1918), Readins in jurisprudence (sob a
responsabilidade de J. Hall, 1938) e a recentíssima resenha de
ensaios em honra a R. Pound, Interpretations ofmodern legal
philosophies, 1947, com introdução de P. Sayre.
Dentre os recentes ensaios de Sociologia recordamos os de
M.Ginsberg, e, entre os de Filosofia política, as obras de H.J.Laski
(Studies in the problem of sovereignty, 3. ed., 1917, 1924, A.
grammar ofpolitics, 4. ed., 1925, 1938, Democracy in crisis,
1933, etc.). Escritos de vários autores, atinentes à Filosofia do
direito foram recolhidos, sob a responsabilidade de W. J. J ennings,
no volume Modern theories oflaw (1933).
Podem-se, ainda, recordar, aqui, alguns escritores que,
nascidos em diversos países, desenvolveram na Inglaterra sua
atividade filosófico-jurídica. Tais são, por exemplo, o finlandêz E.
Westrmarck (1862/1939), que estudou especialmente a formação
das idéias morais e jurídicas junto aos povos primitivos; o russo P.
Vinogradoff (1854/1925), que, tendo sucedido a Maine e a Pallock
na cátedra de Oxford, prosseguiu-lhes a tradição, aprofundando
também suas pesquisas de direito sob o aspecto histórico-
comparativo (Outlines of historical jurisprudence, 1920/1922, etc.;
o americano A. Goodhart, também ele professor em Oxford (Essays
injurisprudence and the common law, 1930, etc.).
Os estudos filosófico-jurídicos tiveram ainda, na idade
moderna, apreciável desenvolvimento nos Estados Unidos da
América do Norte.
Já no período do iluminismo (século XVIII) o
pensamento americano havia-se firmado com B. Franklin
(1706/1790), T. Jefferson (1743/1826), A. Hamilton
(1757/1804), etc., sobre argumentos éticos e políticos, mais
em conexão com as lutas pela independência, do que por
escopos puramente especulativos.
Os sucessivos sistemas de outros pensadores, como R.
W. Emerson (1803/1882), G. T. Ladd (1834/1916), C. S.
Peirce (1939/1914), W. James (1842/1910), J. Royce
(1855/1916), J. Dewey (n. em 1859), etc., têm maior
importância para a Filosofia teórica do que para a Filosofia do
direito. 226
227
VISÃO DA FILOSOFIA DO
DIREITO NA ALEMANHA, ;
NA AUSTRIA E NA SUIÇA NOS
TEMPOS RECENTES
Já falamos de alguns dos maiores sistemas filosófico-
juridícos, nascidos na Alemanha até os primeiros decênios do
século XIX.
J. F. Herbart (177 6/1841) ocupou -se especialmente de
psicologia. Quanto à ética e, em particular, ao direito, ele tentou
reconduzir essas categorias à estética. Na verdade, ele parte do
princípio de que a luta desagrada, a contestação produz um
desprazer estético; e nisso encontra o fundamento do direito, como o
que busca evitar a luta e produzir a paz. Essa explicação é, porém,
certamente insuficiente.
Outra observação que se pode fazer a esse escritor é o fato de
ter confundido a moral com o direito, defeito comum, aliás, a muitos
escritores do último século e que representa uma reação ao rigor
com o qual a distinção tinha sido feita nos sistemas de Thomasius,
Kant e Fichte. Seguidores de Herbart foram, dentre outros, Geyer e
Thilo, autores de obras respeitáveis de Filosofia do direito.
K. Krause (1781/1832) foi filósofo espiritualista ligado a
Schelling, e autor de várias obras (entre elas uma Filosofia do
direito). Ele é notável também porque de sua escola saíram dois
autores assaz conhecidos: D' Ahrens (1808/1874) e Rõder
(1806/1879). A doutrina de Krause (e também a dos seus seguidores
e discípulos) tem caráter eclético. A exposição, obscura em Krause,
é, ao contrário, em Ahrens e Rõder, harmônica e clara (isso explica
a grande difusão de suas obras), apesar de, em geral, não muito
profunda. O conceito fundamental é que o direito é a condição do
desenvolvimento da sociedade.
229
GIORGIO DEL VECCHIO HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
Pensador de importância muito maior foi Arturo Schopenhauer
(1788/1860). De suas obras recordaremos a principal, O mundo
como vontade e como representação, publicada em 1819, e dois
breves mas profundos tratados, Sobre a liberdade do querer e Sobre
o fundamento da moral.
Schopenhauer opôs-se vivamente a certas tendências
especulativas do seu tempo e foi, particularmente, o grande
adversário de Hegel. Para Hegel, a essência das coisas é a idéia;
para Schoplenhauer, é a vontade. Daí que, se aquele pode dizer-se o
representante do intelectualismo, este se dirá o representante do
voluntarismo. A vontade é, em Schopenhauer, entendida, em
sentido muito extenso, como princípio independente da consciência,
como impulso que se encontra também no reino da física. O mundo
é uma vontade que tende a individuar-se. A vontade de viver é o
princípio informador do mundo: têm aí origem as formas
individuais.
A inteligência sobrevém em seguida, como uma faculdade
secundária.
A individuação é a grande desventura, a fonte de todos os
males, porque da vontade de viver individualmente nasce a
desproporção entre as aspirações e o ser; e isso é a dor.
Dadas estas premissas, a Ética tem um único princípio: a ne
gação da vontade de viver, a abnegação de si.
Ocorre aqui o mesmo pensamento fundamental da Filosofia
budística: em certo modo, Schopenhauer quis ser o intermediário
entre a sabedoria ocidental e a oriental.
A compaixão é, para Schpenhauer, a virtude primeira, o
fundamento da Ética, porque ela significa exatamente uma extensão
da vontade além da esfera individual, uma participação na vida de
outro, e até mesmo o reconhecimento da identidade fundamental de
todos os seres, contra as ilusões da nossa subjetividade.
Schopenhauer não se ocupou ex professo da Filosofia do
direito, mas, pela conexão entre os vários ramos da Filosofia, tratou
argumentos atinentes com ela.
Assim, por exemplo, é notável e original, apesar de, a nosso
ver, não aceitável a distinção que faz entre moral e direito.
Segundo Schopenhauer, a moral seria afirmativa ou positiva;
o direito, ao contrário, negativo. Isto é, a moral determinaria aos
homens ajudar aos outros, pelos princípios da abnegação e da
compaixão; o direito determinaria apenas o neminem nocere; todo o
direito se reduziria, então, no neminem laedere; e a moral
acrescentaria a este o immo juva.
Já dissemos que esta distinção não nos parece admissível. Na
verdade, tanto a moral quanto o direito, ordenam não só a abstenção
de certos atos, mas também o cumprimento de atos positivos, certas
prestações a favor dos outros ou da sociedade inteira.
Seria cômodo, mas supérfluo, fazer aqui um elenco de
obrigações jurídicas dessa natureza.
Schopenhauer exerceu certa influência sobre E. v. Hartmann
(1842/1906), que derivou algumas idéias também de Schelling e de
Hegel. Característica de seu sistema é a importância atribuída ao
inconsciente, para a explicação da vida em geral. Hartmann tratou
largamente da fenomenologia da consciência moral, sem porém
firmar-se nos problemas específicos da Filosofia do direito.
Federico Giulio Stahl (1802-1861) sentiu a influência de
Schelling, da Filosofia da Restauração e da Escola Histórica. Seu
sistema tem um caráter espiritualístico teocrático.
Notável pela profundidade da maneira de tratar, não obstante
o ponto de vista muito unilateral, é a sua Filosofia do direito
(publicada a primeira vez em 1830), onde é criticado severamente o
antigo direito natural. Um dos três volunes dessa obra é dedicado à
história da Filosofia do direito, e foi traduzido para o italiano.
Singular pensador foi Max Stirner (pseudônimo de J. C.
Schmidt), que viveu de 1806 a 1856, e no seu livro O único e a sua
propriedade (1845, trad. italiana de 1902) desenvolveu a teoria de
um extremo individualismo anárquico.
Afim, sob certos aspectos, é a teoria, cheia de paradoxos, de
Federico Nietzsche (1844/1900), que nos seus numerosos es
230 231
GIORGIO DEL VECCHIO HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
critos (Como falou Zaratustra, 1883/1891, Ao de lá do bem e do
mal, 1886, Genealogia da moral, 1887, etc.) propôs-se a subverter
todos os valores éticos, combatendo a moral do amor, e exaltando,
ao contrário, a ilimitada "vontade de potência", como característica
própria do homem superior, ou "super-homem".
Estão em direto constraste com as doutrinas de Stirner e de
Nietzsche, inspiradas por um falso individualismo, as doutrinas
daqueles que, movidos por um conceito absoluto da sociabilidade,
sujeitaram a uma crítica radical os modernos ordenamentos
políticos, com o fim de elevar as condições de vida das classes
operárias.
Principal entre eles é Carlo Marx (1818/1883) que, com suas
obras Crítica da economia política (1859) e O capital (1867), pôs as
bases do socialismo moderno.
Segundo Marx, a estrutura econômica da sociedade
determina a superestrutura jurídica e política, às quais correspondem
as formas sociais da consciência. Essa teoria, dita do "materialismo
históri
co", abre flanco a graves objeções que não é oportuno repetir aqui.
Federico Engels (1820/1895) colaborou com Marx em vários
escritos (dentre os quais o Manifesto do Partido Comunista, de
1848), e compilou, sobre os apontamentos deixados por ele, o
segundo e o terceiro volume de O Capital (1885/1894).
Notável escritor e agitador político, de igual tendência, foi
Ferdinando Lassalle (1825/1864). A sua concepção do socialismo
difere, todavia, em parte, da de Marx e de Engels, tendo caráter mais
nacional que internacional.
Lassale inspirou-se, em Filosofia, sobretudo em Regel,
buscando desenvolver a sua doutrina com particular referência ao
direito. Na sua obra Sistema dos direitos adquiridos (1861), sustenta
a relatividade das leis e até dos direitos sancionados por elas,
enquanto as leis não são outra coisa que a expressão concreta da
consciência jurídica popular; consciência mutável no curso do tem
po. Retoma assim, nesta doutrina, um motivo característico da
escola histórica dos juristas.
J. R. v. Kirchmann (1802/1889) expôs uma
teoriaempíricorealística do direito (Os conceitos fundamentais do
direito e da moral, 1869), depois de já ter negado, em um famoso
opúsculo, todos os valores científicos à Jurisprudência (Die
Werthlosigkeit der Jurisprudenz ais Wissenschaft, 1848).
As doutrinas clássicas, em especial as aristotélicas, foram
renovadas por Adolfo Trendelenburg (1802/1872) na sua notável
obra Direito natural sobre a base da ética (2. ed., 1860, 1868, trad.
italiana, 1873).
Valiosos são, também os tratados de Enrico Ahrens (Curso de
direito natural ou de filosofia do direito, editado muitas vezes
também em italiano) e de Cado Roder (Elementos do direito natural
ou da filosofia do direito, 2. ed., 1856, 1860), para o qual já
acenamos.
Rodolfo v. Ihering (1818/1892) foi um dos mais geniais
juristas da idade moderna. Na sua obra principal, O espírito do
direito romano nos diversos graus de seu desenvolvimento
(1852/1865, trad. italiana só da primeira parte, 1855) tentou uma
análise profunda não só do direito romano, mas do direito em geral.
Suas premissas filosóficas mais restritas, inspiradas por um
certo positivismo, não o impediram de pôr em grande relevo os
elementos racionais e voluntários na produção do direito e na sua
evolução. Isto aparece principalmente no breve escrito, tomado
famoso, A luta pelo direito (1872, trad. italiana, 1875) e na obra de
vasto cenário, O fim no direito (1877/1883), que, todavia,
permaneceu incompleta.
Guilherme Wundt (1832/1920 desenhou um amplo sistema
que compreendia todos os ramos da Filosofia e também, em síntese,
os resultados das diversas ciências. Um volume é dedicado ao
direito, como parte da psicologia dos povos (Volkerpsychologie);
outro, à Ética, etc.
São idéias fundamentais de Wundt o monismo e o
evolucionismo. Delineia uma história psicológica do
desenvolvimento do direito, nos seus vários graus, e, embora o seu
conceito de evo
232 ?11
GIORGIO DEL VECCHIO
lução não seja idêntico ao de Spencer, não se pode dizer que ele
tenha verdadeiramente superado o positivismo.
Deu-nos Adolfo Lasson (1882/1917) um dos melhores
tratados da nossa disciplina com o seu Sistema de filosofia do
direito (1882), onde são expostas com clareza e acuidade tanto as
doutrinas mais gerais quanto as aplicações a cada instituto. A
orientação especulativa de Lasson é rigorosamene hegeliana, e isso
dá ao seu sistema caráter um pouco dogmático. Mas mesmo quem
dissente das suas teses deve reconhecer o grande valor da obra e do
autor, que foi, além de verdadeiro filósofo, excelente mestre.
José Kühler (1849/1919), igualmente ele insigne mestre da
Universidade de Berlim, desenvolveu genial e larguíssima atividade
em todos os campos da jurisprudência. Na Filosofia do direito
inspirou-se exatamente em Hegel, declarando-se neo-hegeliano,
porém, sem ater-se estritamente aos princípios e às fórmulas
daquele filósofo, mas, seguindo, no considerar o direito como
"fenômeno de cultura", de preferência, um método histórico e
positivo. De suas numerosas obras recordamos: Filosofia do direito
e história universal do direito (In: Enciclopédia Jurídica de
Holzendorff, 5. ed., 1890, 6. e 7. ed., 1903/1913), e especialmente o
Manual de filosofia do direito (Lehrbuch der Rechtsphilosophie, 3.
ed., 1909, 1923).
Kühler promoveu eficazmente, dentre outros, os estudos do
direito comparado (com particular atenção para os povos
primitivos); estudos que já tinham recebido, e receberão ainda, na
Alemanha, notáveis contribuições, especialmente de A. H. Post
(1839/1895), A origem do direito, 1876; Os inícios da vida
estatutária ejurídica, 1878; Jurisprudência etnológica, 1894/1895,
tradução italiana, 1906/1908,2 v., etc.). Liga-se com estes estudos
também a conhecida obra do suíço J. J. Bachofen (1815/1887) sobre
Matriarcado (Das Mutterrecht, 1861).
O conceito do direito e outros conceitos jurídicos
fundamentais foram objeto de atentas análises na obra de alguns
eminentes
234
.. HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
juristas, quais: Augusto Thon (1839/1912), Norma jurídica e
direito subjetivo, 1878, trad. italiana com introdução de
A.Levi, 1939), E. R. Bierling (1814/1919, Pela crítica dos
conceitosjurídicos fundamentais, 2 v. 1877/1883, Teoria dos
princípios
jurídicos, 1894/1917,5 v.), Carlo Binding (1841/1920), As
normas e as suas transgressões, com particular referência ao
direito penal, publicados em várias edições de 1872 a 1920,4
v.); Emesto Zitelmann (1852/1923, Conceito e essência das
pretendidas pessoas jurídicas, 1873; Erro e negócio jurídico,
1879; S. Schlossmann (1844/1909); Sobre a doutrina da
coação, 1874; O contrato, 1876); etc. Nem se deve esquecer
das contribuições dadas à discussão dos mesmos conceitos dos
maiores pandetistas, como K. A. Vangerow (1808/1870), B.
Windscheid (1817/1892), A. Brinz (1820/1887), F.
Regelsberger (1831/1911) e outros.
Adolfo Merkel (1836/1896) ocupou-se especialmente do
direito penal. Mas tentou também declinar o programa de uma
teoria geral do direito (positivo), distinta da Filosofia, e de
expor em breves sínteses os seus elementos (Sobre a relação
dafilosofia do direito com a ciência jurídica positiva e com a
parte geral dela,
1874, rist. em Gesamm. Abhandl, 1899, I; 1885, 2. ed. 1900;
Elementos da teoria geral do direito, na Enciclopédia Jurídica
de Holzendorff, 5. ed., 1890, e Gesamm. Abhandl, 11).
Pode-se, aqui, acenar, também para a obra de Guilherme
Schuppe (1836/1913) que, embora tenha dedicado a maior
parte da sua atividade à Filosofia teórica, sustentando sua
concepção de um criticismo sobre base empírica (dito também
Filosofia da imanência), deu igualmente contribuições à teoria
do direito (Fundamentos da ética e da filosofia do direito,
1882; O conceito do direito subjetivo, 1887; O direito
consuetudinário, 1890).
O conceito do Estado e os outros a ele pertinentes foram
estudados, também sob o aspecto filosófico, por vários
publicistas, dentre os quais é especialmente de ser lembrado
Jorge Jellinek (1851/1911), Sistema dos direitos públicos
subjetivos, 2. ed., 1892, 1905, trad. italiana, 1912; Doutrina
geral do Estado, 3. 235
GIORGIO DEL VECCHIO HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
ed., 1900, 1914; rist. 1921, trad. italiana, com acréscimo de V E.
Orlando, 1921/1949, 2 v.).
Digna de nota é também a obra do austriaco Antônio Menger
(1841/1906), que no seu desejo de um Estado democrático do
trabalho, buscou sistematizar em forma jurídica os postulados
práticos do socialismo (Neue Staatslehre, 3. ed., 1902, 1906,
trad. italiana, com o título O Estado socialista, 1905, d. do
mesmo autor, os escritos precedentes: O direito ao produto
integral do trabalho, 3. ed., 1886, 1904, O direito civil e o
proletariado, 1890; 3. ed., 1904, trad. italiana, 1894).
A idéia do direito natural foi combatida, com profusa
erudição, mas sem argumentos válidos, por K. Bergbohm
(Jurisprudência efilosofia do direito, 1892) e por outros.
Notável, mais pela largueza de informações que por
aprofundamento de conceitos, é o Sistema de filosofia do
direito e da economia, de F. Berolzheimer (1904/1907,5 v.,
trad. parcialmente em italiano, 1916), de objetivo afim ao de
Kohler.
Cabe a Rodolfo Starnrnler (1856/1938) o mérito de
teriniciado uma revisão crítica das doutrinas filosófico-
jurídicas, que na Alemanha, como na Itália, divagavam
geralmente entre o dogmatismo positivista e o hegeliano. A
derivação de Kant (evidente, sobretudo, no escrito Sobre o
método da teoria histórica do direito, 1888), não impediu
Stammler de tentar caminhos em parte novos para resolver os
problemas da Filosofia do direito, tomados mais urgentes
pelos contrastes entre as várias doutrinas e pelos progressos
inegavelmente atingidos no campo das pesquisas históricas e
positivas.
Na sua obra Economia e direito segundo a concepção
materialista da história (4. ed., 1896, 1921) Stammler
distingue claramente a forma e a matéria da vida social e
conclui afirmando
como ideal supremo, ou fim absoluto desta, a comunidade de
homens que querem livremente (Gemeinschaft frei wollender M enschen).
Na outra obra, A teoria do justo direito (1902, nova edição
1926) buscou determinar, segundo a mesma máxima, o conceito do
direito justo (richtiges Recht), como uma espécie e ao mesmo tempo
um critério do direito em geral. A esse critério ele atribuiu um valor
puramente formal, apartando-se, assim, do antigo jusnaturalismo e
admitindo a positividade do direito e a sua variabilidade.
A doutrina de Stammler, exposta também em outras obras
suas, como a Teoria da ciência jurídica (2. ed., 1911, 1923) e o
Manual de filosofia do direito (Lehrbuch der Rechtsphilosophie, 3.
ed., 1922, 1928) pôde levantar, e de fato levantou, várias objeções;
é, porém, uma das expressões mais respeitáveis da moderna
Filosofia do direito.
Júlio Binder (1870/1939), depois de ter dedicado um amplo
estudo crítico à doutrina de Starnrnler (Conceito do direito e ideal
do direito, 1915), afastou-se sempre mais dela para aproximar-se, ao
contrário, do pensamento hegeliano. E é, certamente, depois de
Lasson, o maior representante do hegelismo na moderna Filosofia
jurídica. Sua obra principal é afilosofia do direito (1925), depois
reelaborada com o título Sistema de Filosofia do direito (1937).
. Eugênio Ehrlich (1862/1922) iniciou uma nova série de
pesquisas sobre o que ele chamou de "direito vivente", isto é, o
direito que extrai sua origem imediatamente da sociedade, e não do
Estado. Sua visão sistemática sobre este tema foi por ele exposta
nas duas obras: Fundação da sociologia do direito (1913) eA
lógica
jurídica (1918).
Já em opúsculo precedente (Livre encontro do direito e livre
jurisprudência, 1903), tinha posto em relevo como decisões
jurídicas, não fundadas sobre leis prévias, criam novo direito
substancial. Essa tese foi retomada e desenvolvida por H.
Kantorowicz (1877/1940), que no escrito A luta pela ciência do
direito, publicado em 1906 com o pseudônimo Gnaeus Flavius
(trad. italiana, 1908) expôs o programa da pretendida livre criação
do direito (freie Rechtsschopfung) ou escola do direito livre.
236 237
GIORGIO DEL VECCHIO HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
Esse programa, que tende a pôr em segunda linha a
autoridade das leis em confronto com a prática judicial, encontrou
aderentes em vários países, mas, de outra parte, graves objeções.
Com frneza e originalidade de pensamento, Gustavo
Radbruch (1878/1949) deu várias importantes contribuições à nossa
matéria. Especialmente valioso é o seu tratado (Grundzüge der
Rechtsphilosophie) que, publicado em 1914, foi mais tarde
inteiramente reelaborado por ele (com o título Rechtsphilosophie, 3.
ed., 1932). Notável é, ainda, a sua breve mas conceituosalntrodução
à ciência jurídica (8. ed., 1910, 1929), como ainda, entre os escritos
mais recentes, a Propedêutica da filosofia do direito (Vorschule der
Rechtsphilosophie, 1948), que pode ser vista como complemento ou
desenvolvimento ulterior do mencionado tratado. O posicionamento
filosófico de Radbruch, fundado sobre a teoria do conhecimento,
compendia-se na palavra relativismo, que, todavia, não significa,
segundo entende, a negação dos valores absolutos, mas mais o
respeito a todas as suas possíveis afirmações.
Entre os melhores tratados sistemáticos da matéria, merece
distinção a de M.E. Mayer (Filosofia do direito, 1922), rica de
visões originais e inspirada por um criticismo, que termina na afir
mação da humanidade como supremo princípio ético.
Singulares, pela amplitude e pela riqueza de erudição, são os
tratados de W. Sauer (Bases da sociedade, 1924; Manual de
Filosofiajurídica e social, 1929,2. ed. reelaborada com o título
Sistema de filosofia jurídica e social em 1949;
Metodologiajurídica, 1940; etc.)
A filosofia jurídica neo-escolástica teve, também nos países
de língua alemã, numerosos e notáveis representantes, os quais
mantiveram assinaladamente alta a idéia do direito natural, como:
Th. Meyer, V. Cathrein (suíço), C. Gutberlet, G. v. Hertling, J.
Mausbach, 1. Haring, M. Grebmann, etc. Igual orientação revelam
em suas obras E. Holscher (Teoria moral do direito, 1928), K.
Petraschek (Sistema de filosofia do direito, 1932), etc.
De grande interesse, especialmente para a Filosofia do direito
público, são as doutrinas da pretendida escola de Viena, ou da
"teoria pura do direito", que tem por mentor Hans Kelsen.
Pretende essa doutrina definir a essência do direito
eliminando todos os elementos estranhos (psicológicos, éticos, etc.),
valendo como pura norma.
Rejeitada a concepção do direito natural e também a idéia de
justiça, que, enquanto distinta do direito, seria um "ideal
irracional", essa teoria limita-se a considerar o direito positivo
como é, recusando-se a valorizá-Ia.
Sob este ponto capital, conjuga-se então com o realismo ou
positivismo jurídico. Característica dessa teoria é a repulsa de todo
dualismo no campo do direito.
Assim, segundo Kelsen, as distinções entre direito objetivo e
subjetivo, entre direito público e privado, e também aquela entre
Direito e Estado.
Supérfluo relevar a gravidade dessas identificações, em
especial a última. O ordenamento jurídico, sempre segundo a mesma
teoria, deve ser concebido como construído por uma série de graus
(Stufenbau); e nesta série, sobre o direito dos Estados, existe o
direito da comunidade internacional, entendido igualmente como
direito positivo.
Essas doutrinas foram agudamente elaboradas, não só pelo
próprio Kelsen nas suas várias obras (Principais problemas da
teoria do direito estatal, 1911; O problema da soberania e a teoria
do direito internacional, 1920; Doutrina geral do Estado, 1925;
Teoria pura do direito, 1934, etc.) A mais completa formulação do
seu pensamento está no volume editado recentemente na América
do Norte, General theory of law and state, 1945), também por
outros autores que lhe aceitaram os princípios, destacadamente por
A.Verdross, que desenvolveu especialmente as doutrinas atinentes
ao direito internacional (A unidade da con
figuração jurídica do mundo, 1923; A constituição da comunidade
jurídica internacional, 1926).
238 239
GIORGIO DEL VECCHIO HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
Pertencem também a essa escola, ou a ela se ligam
estreitamnte, A. Merkl, F. Sander, F. Kaufmann, F. Schreier, J.
Kunz e outros escritores de diversos países, como o checo F. Wevr,
que antes ainda de Kelson tinha expressamente visão análoga; o
polaco S. Rundstein; o iugoslavo L. Pitamic; o húngaro B. Horváth;
o dinamarquês A. Ross; o japonês T. Otaka; etc. Adesões, não
separadas das críticas, à mesma escola têm sido encontradas
recentemente na América Latina. No que concerne à Itália, as
doutrinas em questão foramjá consideradas e discutidas por diversos
estudiosos.
Portanto, não nos deteremos para indicar, aqui, os valores e
os defeitos dessa doutrina. Notamos apenas que eles, não há dúvida,
deixam não resolvidos alguns dos maiores problemas da Filosofia
do direito.
Os estudos filosófico-jurídicos têm tido, na era moderna, na
Alemanha, na Áustria e na Suíça, tal desenvolvimento que este
breve sumário histórico teve necessariamente de limitar-se a acenar
para algumas das obras mais significativas.
Registramos aqui, ainda, os nomes de outros autores que, em
várias direções do pensamento, deram também contribuições ao
progresso destes estudos: L. A. Warnkõnig; J. Held; L. Knapp; F. A.
Schilling; W. Arnold; C. L. Michelet; Ferd. Walter; H. v. Treitscke;
F. Dahn; F. Harms; O. Bü1ow; L. Kühnast; P. Kloeppel; R.
Wallascheek; E. Lask; A. Hold v. Ferneck; J. Stern; L. Kuhlenbeck;
E. Hõlder; R. Loening; M. Rumpf; E. Bekker; A. Sturm; E. Jung; A.
Reinach; I. Kornfeld; F. Münch; W. Fuchs; G. Wielikowski; H.
Reichel; Th. Sternberg; L. Nelson; M. Rümelin; M. Salomon; M.
Wenzel; E. Beling; A. Baumgarten; F. Darmstaedter; C. A. Emge;
S. Marck; E. Swoboda; G. Leibhols; K. Wolff; E. Weigelin; 1.
Kraft; H. Kraus; K. Haff; L. Waldecker; W. Schõnfeld; R. Laun; F.
Müllereisert; H. Heller; K. Larenz; E. Voegelin; H. Dietze; H.
Coing; H. Thieme; A. Schwientek; etc. Entre os suíços, autores de
monografias não menos valiosas, recordamos (além dos já
anotados): J. C. Bluntschli; A. Affolter; M. Gmür;
E. Huber; W. Burckhardt; D. Schindler; H. Nawiasky; A. Simonius;
H. Nef; E. Brunner; etc.
São de caráter prevalentemente sociológico, mas não
privadas de interesse para a Filosofia do direito, as obras de K.
Vollgraff; A. Schaffle; F. Tõnnies; G. Ratzenhofer; G. Simmel; P.
Barth; M. Weber; A. Vierkandt; M. Scheler; O. Spann; O. Spengler;
F. Jerusalem; R. Thumwald; etc.
Para a história das doutrinas jurídicas e políticas são
preciosos os tratados de R. v. Mohl; C. v. Kaltenborn; O. Gierke; S.
Riezler; R. Stintzing; E. Landsberg; R. Hirzel; R. Schoz; F.
Meinecke; J. Sauter; E. Wolf; etc.
240 '>.1.1
VISÃO DA FILOSOFIA DO
DIREITO NA ESPANHA, EM PORTUGAL, ; A
NA AMERICA LATINA, NA ROMENIA, ;
NA HUNGRIA, NA GRECIA, NA HOLANDA, ;
NA ESCANDINAVIA, ETC.,
Na Espanha, o domínio da Filosofia escolástica protrai-se
mais longe do que em outro lugar. Nem houve ali um verdadeiro
Renascimento, no sentido de um destaque do dogmatismo próprio
da Idade Média. Mas do seio mesmo da Escolástica surgiram ali
alguns pensadores que elaboraram as doutrinas tomísticas,
especialmente em tomo do direito natural, com grande finura e
profundidade, conduzindo-as a novos e mais originais
desenvolvimentos; isso para determinar o que foi chamado "um
renascimento da Escolástica". Já nos referimos a alguns desses
escritores, mas convém dizer alguma coisa a respeito deles, antes de
atentarmos para os mais modernos.
Notável sobretudo como um dos fundadores da ciência do
direito internacional é o dominicano Francisco de Vitória
(1483/1546), que nas suas Relectiones theologicae (publica das
postumamente, em 1557) discutiu com largueza de idéias e
profundo senso de humanidade o problema da licitude da guerra, e
em especial da que os espanhóis conduziam, muitas vezes
cruelmente, contra os indígenas do continente americano, havia
pouco descoberto.
Discípulo de Vitória foi Domingos de Soto (1494/1560), que
escreveu um amplo e excelente tratado, De justitia et jure (1556).
Sobre o mesmo argumento fundamental, sempre elaborando e
desenvolvendo os princípios da Escolástica, escreveram ainda obras
refletidas os jesuítas Luiz de Molina (1535/1600), e João de Lugo
(1583/1660).
243
GIORGIO DEL VECCHIO HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
Grande fama, por meio de fortes contrastes, conquistou o
jesuíta João Mariana (1536/1623) por sua obra De rege et regis
institione (1599), na qual é exposto um desenho da monarquia
representativa e defendida a tese Uá antes enunciada por outros, por
exemplo, por Molina) da legitimidade do tiranicídio.
Importância ainda maior tem o pensamento do jesuíta
Francisco Suarez (1548/1617), que com o seu Tractatus de legibus
ad Deo legislatore (1612) ofereceu-nos um dos tratados sistemáticos
mais completos da nossa disciplina.
Característico é que, embora sobre fundamento teológico,
Suarez põe, todavia, em enorme destaque a razão: assim, ele
sustenta a soberania popular e (dentro de certos limites), a
legitimidade da insurreição contra o tirano. Isso porque o príncipe
tinha recebido o poder do povo sob a condição ut politice, non
tyrannice regeret ( = "para que reinasse política e não tiranicamente").
A obra de Suarez é respeitável ainda por muitas doutrinas
particulares, que têm, ainda, vivo interesse, por exemplo, sobre a
interpretação das leis. Em outro escrito, Defensio fidei catholicae et
apostolicae (1613), retoma o exame dos argumentos fundamentais
da política e defende a supremacia da Igreja sobre o Estado,
limitada, porém, somente aos fins espirituais.
Depois de um longo período de depressão, que compreende
especialmente o século XVIII, o pensamento filosófico espanhol
explicou-se com certo vigor no século XIX e mais ainda no nosso,
ressentindo o influxo das várias correntes especulativas de outros
países e tentando, ainda, vias próprias.
Permaneceu sempre bem viva a tradição escolástica ou
neoescolástica.
Ligam-se a ela, por exemplo, as doutrinas sociais e políticas
de J. Donoso Cortés (1808/1853), com freqüência vivamente
polêmicas; e as mais altamente filosóficas, de J. L. Balmes
(1810/1848), e assim, sucessivamente, as de E. Gil y Robles (morto
em 1908:
Tratado de Derecho politico, 1899) e as de L. Mendizabal y Martin
(1859/1931), do qual o recente e amplo Tratado de derecho natural
(escrito, na sétima edição, em colaboração com o filho, A.
Mendizabal Villalba), representa uma típica tentativa de inserir na
velha trama escolástica os dados e os problemas da vida jurídica
moderna.
Quase todas as principais escolas filosóficas européias
tiveram, no último século, eco e reflexo na Espanha. Mas
particularmente é de ser assinalada a sorte que ali encontrou a
doutrina de Krause, pela obra de J. Sanz deI Rio (1814/1869). O
maior discipulo deste, F. Ginerde los Rios (1839/1915), conquistou
para si grande benemerência como promotor dos estudos filosóficos
jurídicos, além dos dedicados à educação e à instrução pública em
geral. Entre suas obras recordamos os Principios de derecho natural
(1873, nova edição, 1916) e especialmente o Resumen de
filosofia dei derecho (1898). Ambas estas as mostram também o
nome do seu discípulo e colaborador A. Calderón.
De caráter eclético é o Novíssimo tratado completo de filosofia dei
derecho o derecho natural, de C. Fernandez Elías (1874);
entrementes, têm marca mais histórica, ou sociológica, os estudos de
J. Costa (1846/1911); La vida dei derecho, 1876, etc.). N. Salmerón
(1838/1908), procedendo do krausismo, aproximouse, por último,
do positivismo. Este é representado principalmente por P. Dorado
Motero (1861/1919), que foi discípulo de Ardigà, inspirando-se, de
outra parte, também na escola de Krause (Roder), e recebendo então
o influxo do humanismo tolstoiano. Tratou especialmente os
problemas do direito penal. Notável é ainda a sua obra
póstuma de caráter geral: Naturaleza y función dei derecho (1927).
J. Ortega y Gasset, M. Garcia Morente, J. Xirau Palau
cooperaram eficazmente para o progresso dos estudos filosóficos
em geral, tocando às vezes também problemas de Filosofia social e
política.
No campo mais propriamente filosófico-jurídico, emergem as
figuras de A. Bonilla y San Martin (1875/1926), F. Pérez Bueno
(1877/1934), F. de los Rios Urruti, L. Recaséns Siches, F. Rivera
Pastor, L. Legaz y Lacambra, W. Roces, E. Luno Pena, M.
244 245
GIORGIO DEL VECCHIO HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
Puigdollers, F. Gonçalez Vicen, A. De Luna, A. Garcia Valdecasas,
J. Medina Echevarria, E. Galán y Gutierrez, J. Corts y Grau, E.
Gomez Arbeleya, F. Elias de Tejada Spinola, A. Truyol Serra, os
quais, com importantes trabalhos, aprofundaram os problemas da
nossa disciplina.
Obras respeitáveis sobre a teoria do Estado escreveram G. de
Azcárate (1840/1917), A. Posada, C. Ruiz deI Castillo, L. DeI
Valle, J. Beneyto Perez, F. J. Conde, L. Sanchez Agesta. Ocuparam-
se, entrementes, da Filosofia do direito penal, particularmente, Q.
Saldafía e L. Jiménez de Asúa.
Levaram contribuições à teoria jurídica geral também
eminentes cultores do direito privado, como M. Alonso Martinez, F.
Clemente De Diego, F. Sanchez Román, 1. Castan Tobefías, D. De
Buen.
Deve-se aos autores nominados, e a outros que aqui omitimos
por brevidade, ocupar a Espanha, presentemente, um posto muito
honroso no atual reflorescimento dos estudos de Filosofia do
direito.
peruanos, J. B. De Lavalle, J. De La Riva Agüero, J. Ayasta
González; entre os venezuelanos, E. Gil Borges e R. Pizani; entre os
colombianos, 1. R. Safíudo, P. Carrefío, C. Betancur, E. Nieto
Artelã; entre os bolivianos, J. Bustillo; entre os mexicanos, A. Caso,
J. Bremer, J. Rivera, E. Garcia Maynes, R. Preciado Hemandez;
entre os guatemaltecos, L. Beltranena e E. Viteri.
***
***
Em Portugal, como na Espanha, dominou, por longo tempo, o
método escolástico.
Na sua generalidade, o direito foi estudado sobre bases
teológicas, com intentos moralísticos e com a inclinação ao
absolutismo político, quase exclusivamente por obra de sacerdotes.
Tais foram, por exemplo, João Sobrinho, que pelo fim do século
XV, escreveu um livro, De justitia, e Diego Lopes Rebele, que no
mesmo tempo compôs uma obra, De republica, de escassa ou
nenhuma originalidade. O pensamento português, nesse período,
não aparece distinguido, com caracteres próprios, da corrente
tradicional. Isto se pode dizer também dos escritos sucessivos de
Amador Arrais (morto em 1600) e de Duarte Ribeiro de Macedo
(1618/1680).
Outros autores, também eles religiosos, demonstraram,
porém, vigor especulativo, especialmente Ferdinandus Rebellus
(Rebelo, morto em 1608), que escreveu uma obra notável, muito
discutida em seu tempo e hoje sem razão esquecida, sobre várias
espécies de deveres (De obligationibus justitiae, religionis et
charitatis, Lugduni, 1608; Venetiis, 1610); e Serafim de Freitas,
que, como já notamos, escreveu em oposição a Grócio uma
monografia para defender os direitos dos portugueses sobre os
mares asiáticos (De justo imperio lusitanorum asiatico adversus
Grotii mare liberum, 1625). Nas obras desses autores,
assinaladamente do primeiro, podese sentir um certo influxo dos
pensadores espanhóis, em especial de Suarez, o qual ensinou por
alguns anos (por 1597) em Coimbra, e escreveu ali a sua obra maior.
Também na América de língua espanhola tivemos, em nossa
época, numerosas e apreciáveis manifestações do pensamento
filosófico-jurídico, com prevalência o caminho sociológico e
positivo, mas não sem traços do criticismo e de outras tendências
especulativas. Relembramos, entre os mais notáveis escritores
argentinos: C. O. Bunge (1875/1918), W. Escalante, J. Ingenieros,
A. Dellepiane, E. Quesada, E. Martinez Paz, M. Saenz, A. J.
Rodriguez, C. MeIo, A. Fragueiro, R. A. Orgaz, C.Cossio, E. R.
Aftalión, F. Garcia Olano, J.Lozano Mufíoz, F. Legón, S. Linares
Quintana, A. E. Sampay, M. Ruiz Moreno.
Entre os do Equador, A. M. Paredes e J. Villagomez Yepez;
entre os chilenos, R. Femandez Conha, A. Alvarez, F. Vives, C.
Hamilton; entre os cubanos, M. Aramburo (autor de um amplo
tratado de Filosofia del derecho, 3 v., 1924/1928), P. Desvemine,E.
F. Camus, J. E. Casasús, A. S. de Bustamante y Montoro; entre os
?4tí 247
GIORGIO DEL VECCHIO HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
o estudo filosófico do direito independentemente da Teologia
começou em Portugal só na segunda metade do século XVIII. Em
particular, com a refonna dos estudos universitários (de 1772),
efetuada pelo célebre ministro marquês de Pombal, foi dado o
devido lugar ao Direito Natural, como disciplina autônoma. O
iluminismo português, em tal período, foi representado
principalmente por Luiz Antônio Vemey (1713/1792), que viveu por
muito tempo na Itália e teve estreitas relações com L. A Muratori e
com Antônio Genovesi.
Foram então traduzi das para o português as obras de alguns
jusnaturalistas, entre os quais a do italiano C. A Martini (Positiones
de lege naturali, 1764), que foi adotada como texto na Universidade
de Coimbra até 1843. Nesse ano foi publicado e adotado como texto
em lugar do de Martini, o Curso de direito natural, de Vicente
Ferrer Neto Paiva (1798/1886), que neste e noutros de seus escritos
se inspirou nas doutrinas de Kant e de Krause, demonstrando
mesmo, todavia, em respeito a eles, certa independência de
pensamento.
Importantes, mas atinentes mais ao direito público que à
Filosofia do direito, são as obras (publicadas em parte em língua
francesa) de S. Pinheiro Ferreira (1769/1846).
Entre os cultores especiais da nossa matéria, depois de Ferrer
Neto Paiva, merecem menção: José Dias Ferreira (1837/1907),
Noçãesfundamentais e Filosofia do direito, 1864), que sustenta
idéias em parte afins com as de Hegel; J. M. Rodrigues de Brito
(1822/1873), Filosofia do direito, 2. ed., 1869, 1871), que se
inclinou ao positivismo, pondo como princípio do direito a
mutualidade dos serviços ou a solidariedade social; EM. de Faria e
Maia (1841/1923, Determinação e desenvolvimento da idéia do
direito, 1878), que tentou uma elevada síntese dos princípios ideais
do direito com os dados da experiência.
Sucessivamente, por alguns decênios, prevaleceram em
Portugal, como em outros lugares, as doutrinas positivistas e
evolucionistas,
derivadas dos pensadores franceses e ingleses. Podem-se recordar,
neste propósito, as obras de Theóphilo Braga (Sistema de
Sociologia, 1884), de Emídio Garcia e de Henriques da Silva.
Um novo e fecundo impulso aos estudos de Filosofia do
direito em Portugal foi dado em nossa época por Luís Cabral de
Moncada, ao qual se devem valiosas obras, tanto de caráter crítico e
sistemático (Do valor e do sentido da democracia, 1930; Direito
positivo e ciência do direito, 1944; A caminho de um novo Direito
natural, 1945; Filosofia do direito e do Estado, 1947) quanto de
caráter histórico (Subsídios para uma história dafilosofia do direito
em Portugal, 1938, Um iluminista português do século XVIII: L. A.
Vemey, 1941. De sua escola saíram todos ou quase todos os mais
recentes e valorosos cultores da Filosofia do direito nesse país,
dentre os quais citamos: ARodrigues Queiró (Osfins do Estado,
1938; Ciência do direito efilosofia do direito, 1942, A. de Brito
Lhamas (O problema da justiça,
1939), F. Pinto Loureiro (Individualismo e antiindividualismo no
direito privado, 1940); A. J. Brandão (Estado ético conta Estado
jurídico, 1941; O direito - Ensaio de ontologia jurídica, 1942;
Vigência e temporalidade do direito, 1944).
Contribuições para a Filosofia do direito deram também
cultores de ciências afins, como o históriador do direito P. Merêa,
que escreveu um ensaio sobre Suarez, Grocio, Hobbes (1941); o
constitucionalista M. Caetano; etc.
***
No Brasil, a Filosofia do direito teve numerosíssimos e
egrégios cultores, dentre os quais, especialmente: C. Beviláqua
(1859/ 1944), conhecido também como civilista e intemacionalista;
S. Romero, R. de Farias Brito, P. Lessa, J. Mendes, A. Diniz, J.
Serrano, Pontes de Miranda (autor de uma vasta síntese sociológica
?4R 249
GIORGIO DEL VECCHIO
intitulada Sistema de ciência positiva do direito, 1922), J.Arruda,
M. Reale, C. Campos, P. Dourado de Gusmão, E. de Queiroz Lima,
Alves da Silva*, etc.
* N. T. - A resenha de Dei Vecchio é pouco abrangente, mesmo tendo em vista a
realidade da época. À parte a questão de ser ou não o Brasil a "raça mais refractária
à metafísica" (João Ribeiro, 1860/1934) ou a de "o Brasil não ter cabeça filosófica" (Tobias
Barreto (1839/1889), é certo que muito se cogitou e se cogita, entre nós, dos problemas
filosóficos. De 1938 (data da edição ora traduzida) para cá, o quadro alterou-se
significativamente, e não é difícil chegar a um elenco expressivo de nomes e títulos dedicados à investigação, à interpretação e à divulgação filosóficas. Os autores e obras a
seguir indicados (evidente que sem preocupação com a exaustão) mostram um painel
iIustrativo e deveras rico a respeito; Jônatas Serrano (História dafilosofia. Rio de Janeiro, 1944, p. 195-225; Pe. Leonel Franca (Noções de história da filosofia, a partir da 2" ed., VII
Parte, Rio de Janeiro, 1928); João da Cruz Costa (Contribuição à história das idéias no
Brasil. Rio de Janeiro, 1956; A doutrina de Kant no Brasil. São Paulo, 1949; Experiência intelectual brasileira. Instituto Cultural Brasil- Alemão, Boletim n. 2, Porto Alegre, 1957,
com edições no México -1957 - e na Alemanha -1957); Miguel Reale (Momentos decisivos
e olvidados do pensamento brasileiro. Porto Alegre; O contratualismo - Posição de Rousseau e Kant. São
Paulo, 1946; O estado moderno. São Paulo, 1936; De dignitate
jurisprudentiae. São Paulo, [s.d]; Formação da política burguesa. São Paulo, 1934; A doutrina de Kant no Brasil. São Paulo, 1946; Filosofia em São Paulo. São Paulo, 1962;
Pluralismo e liberdade. São Paulo, 1962; Teoria tridimensional do direito. São Paulo,
1973); Guilherme Francovich (Filósofos brasilenos. Buenos Aires, 1943); Djacir Meneses (Afilosofia no Brasil, Rio de Janeiro, 1957); Renato Cirell Csena (Panoramafilosófico
brasileiro. Anais do I Congresso Brasileiro de Filosofia, v. I, p. 232/259); Euryalo
Canabrava (A Cultura Brasileira e seus Equívocos, Rio de Janeiro, 1954; Idéias para a Filosofia no Brasil. Anais do i o Congresso Brasileiro de
Filosofia, v. 1, p. 159-169; A filosofia no Brasil. Rio de Janeiro, 1957); A. L. Machado
Neto (Formação e problemas da cultura brasileira. ISEB - Textos brasileiros de filosofia, 3. Rio de Janeiro, 1958); A. Álvaro Vieira Pinto (ideologia e desenvolvimento nacional,
ISEB, Rio de Janeiro, 1956); Alberto Guerreiro (introdução crítica à sociologia brasileira.
Rio de Janeiro, 1957); Jacob Gorender (Correntes sociológicas no Brasil. Revista de
Estudos Sociais, Rio de Janeiro, n. 34,
1958); Luis Washington (A filosofia atual no Brasil. Revista Brasileira de Filosofia,
Rio de Janeiro, v. VIII, 1958); Leonardo Coimbra (A meditação filosófica no Novo Mundo. Anais do Congresso internacional de Filosofia de São Paulo, v. III, p.
1.089-1.096); Pe. Henrique Vaz, SJ (O pensamento filosófico no Brasil hoje, em
Apêndice à 17" ed. de Noções de história dafilosofia, do Pe. Leonel Franca, SJ, Rio de Janeiro: Agir, p. 343-373); Antônio Joaquim Severino (Afilosofia contemporâ
nea no Brasil-Conhecimento, política e educação. Vozes, 1999; Política e Educa
ção, Ed. Vozes, 1999); Adolpho Cripa [Coord.]. As idéias filosóficas no Brasil Séculos XVIII e XIX. São Paulo, 1978; As idéiasfilosóficas no Brasil- Século XX,
250
~ HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
***
Na România os inícios da Filosofia do direito coincidem com
o despertar do sentimento nacional unitário, fundado sobre a idéia
São Paulo. 1978.2 v.); Autores diversos (Conversa com filósofos brasileiros. São
Paulo; Editora 34, 2000).
De tão rico mealheiro é possível selecionar nomes que em nada esmaecem diante da constelação mostrada por Dei Vecchio, pelo menos em seus pontos menos culminantes, tais
como; Francisco Mont' Alveme (1784/1858; Compêndio de filosofia, póstuma; Obras
oratórias); Tobias Barreto (1839/1889, Questões Vigentes); Farias Brito (1862/1917;
Finalidade do mundo, 1894; A base física do espírito, 1912; O mundo interior,
1914); Sílvio Romero (Doutrina contra doutrina, 1894); Luís Pereira Barreto
(1840/1923; As três filosofias: a filosofia teológica, 1874; Filosofia meta física,
1889); Francisco Pontes de Miranda (A moral do futuro. Rio de Janeiro, 1912; A
sabedoria dos instintos. Rio de Janeiro, 1921; A sabedoria da inteligência. Rio de
Janeiro, 1922); Miguel Lemos (Pequenos ensaios positivistas, 1877); Graça
Aranha (Estética da vida; Espírito moderno); Jackson de Figueiredo (1891/1930;
Algumas reflexões sobre afilosofia de Farias Brito; Afirmações; A reação do bom
senso); Ivan Lins (introdução ao estudo dafilosofia); Caio Prado Júnior (Dialética
do conhecimento. São Paulo, 1955); Lydio Machado Bandeira de Mello (O
problema do real; Prova matemática da existência de Deus; A origem dos sexos;
Quadrados mágicos; Pí em função das menores figuras); Pe. Paschoal Rangel,
SDN (Emmanuel Mounier - Uma introdução ao personalismo mounierano. Belo
Horizonte: O Lutador, 1976); Carlos Campos (O mundo como realidade. Belo
Horizonte, 1961; Ensaios sobre a teoria do conhecimento; Sociologia e Filosofia
do Direito); Arthur Versiani Velloso (A filosofia e seu estudo. Rio de Janeiro,
1947); Antônio Paim (História das Idéias Filosóficas no Brasil, São Paulo, 1967);
Anísio Teixeira (A pedagogia de Dewey. São Paulo, 1959; A educação e a crise
brasileira. São Paulo, 1956); Edmundo H. Dreher (Problemas filosóficos.
Curitiba, 1975); João Camilo de Oliveira Torres (O positivismo no Brasil. Rio de
Janeiro, 1957; A libertação do liberalismo. Rio de Janeiro, 1949); Renato
Almeida (Fausto - Ensaio sobre o problema do ser; Figuras e planos); Vicente
Ferreira da Silva (1916/1963; Elementos de lógica matemática, 1940; Lógica
simbólica, 1940; Dialética das consciências, 1950; Ensaiosfilosóficos. São Paulo,
1948; Exegese da ação. São Paulo, 1949; Idéias para um novo conceito do
homem. Revista Brasileira de Filosofia I, v. I, fasc. 4, 1951; Teologia do anti-
humanismo. São Paulo, 1953; A filosofia da mitologia e da religião, 1954.
Destaque especial para o Padre Vaz (Pe. Henrique Cláudio de Lima Vaz, SJ. Ouro
Preto, 1921; Belo Horizonte, 2002). O Pe. Vaz marca, seguramente, época de
esplendor nos estudos filosóficos no Brasil. Sua obra, voltada, toda ela, para a
Filosofia e a Ética, revela uma mente forte, transparente e aberta à diafaneidade,
ilustrada ao máximo e com peculiaridades só encontradas nos realmente grandes
251
GIORGIO DEL VECCHIO HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
da origem romana da nação. Essa idéia fora exposta com força
e orgulho pelos "cronistas" dos séculos XVII e XVIII, alguns
dos
quais foram verdadeiros filósofos do direito público. Inspirada por
aquela idéia foi também a primeira codificação do direito privado,
filósofos: uma acuidade rara de apreensão do pensamento filosófico que lhe é posto; uma
percepção (um pré-sentir) quase divinatório do sinal dos tempos (a Filosofia iluminando os caminhos do amanhã), e, sobretudo, uma autonomia e uma competência (talvez encontradas,
entre nós, apenas em Farias Brito), para tratar o pensamento filosófico de maneira crítica,
reduzindo-o à sua verdadeira expressão e significado, e abrindo horizontes para novas opções ou indicações conceituais. "A extensa obra científica do Pe. Vaz no campo da
filosofia ocupa posto de absoluto destaque no cenário filosófico brasileiro. Poucos como ele
têm logrado reunir em torno de si e de suas idéias uma plêiade de discípulos tão numerosos e devotados, muitos dos quais têm hoje uma presença significativa no meio universitário.
Seu pensamento tem sido objeto de teses e estudos monográficos. Seu nome e a análise de
sua obra têm um lugar assegurado nas publicações nacionais e internacionais dedicadas à filosofia no Brasil. Suas idéias e sua personalidade fizeram dele talvez o representante mais
destacado e o interlocutor mais respeitado, nos meios intelectuais e universitários do país,
do pensamento de inspiração cristã. Ainda recentemente não só foi incluído entre os 16 entrevistados pelos autores do livro Conversa com filósofos brasileiros (São Paulo: Editora
34, 2000), mas também é citado por vários deles entre os três ou quatro maiores expoentes
da filosofia brasileira na atualidade" (Danilo Mondoni, editor da Revista de Filosofia Síntese, de que foi o Pe.Vaz cofundador, Belo Horizonte, v. 29, n. 94, maio/ago. 2002,
/MG). Parece pouco o muito que se tem falado, no seu necrológio, diante de obras como:
Escritos de filosofia INII - Problemas de fronteiras. São Paulo, 1968; Ética e cultura. São
Paulo,
1997; Filosofia e cultura; Ética efilosofia. São Paulo, 1999; Introdução à ética filosófica I.
São Paulo, 2000; Introdução à eticafilosófica lI; Ontologia e história. São Paulo, 2000; Raízes da modernidade. São Paulo, 2002; e Ética e direito. São Paulo, 2002; etc.
No.campo específico da Filosofia do Direito, vale lembrar, dentre outros, e sem
preocupação com data e escola ou tendência: João Arruda (Filosofia do direito. São Paulo, 1942); Tristão de Athayde (Introdução ao direito moderno. Rio de Janeiro,
1933); Tobias Barreto de Meneses (Sobre uma Nova Concepção do Direito, Rio de Janeiro,
1882; Estudos de filosofia e crítica, Questões vigentes de filosofia e de direito, Estudos de direito.ln: Obras completas. Sergipe, 1925); Francisco de Paula
Batista (Compêndio de hermenêutica jurídica. Recife, 1860); Clóvis Beviláqua (A
fórmula da evolução jurídica. Recife, 1894; Estudos jurídicos - História, filosofia e crítica. Recife, 1916); Carlos Campos (Sociologia efilosofia do direito. Rio de Janeiro, 1943;
Hermenêutica tradicional e direito científico); Teófilo CavaIcanti Filho et ai (Estudos de
filosofia do direito. São Paulo, 1952; O problema da segurança no direito. São Paulo, 1964); F. Vicente Ferreira da Silva (Dialética das consciências. São Paulo, 1950); Tércio
Sampaio Ferraz Filho (Die Zweidmensionatistiit des Rechts ais Vorasssetzung für den
Mewthodendualismus von Emil Lask. Meinsenheim am Glau, 1970); Basileu Garcia (Instituições de direi
to penal. São Paulo, 1951); Pedro Lessa (Estudos de filosofia do direito. Rio de Janeiro,
1916); Hermes Lima (Introdução à ciência do direito. Rio de Janeiro, 1952); A. L. Machado Neto (Sociedade e direito. Bahia, 1959; Introdução à ciência do direito. São
Paulo, 1960); Edgar de Godoi da Mata Machado (Direito e coerção. Belo Horizonte, 1956;
Contribuição ao personalismo jurídico. Rio de Janeiro, 1954); Carlos Maximiliano (Hermenêutica e aplicação do direito. Porto Alegre, 1933); José Mendes (Ensaios de
filosofia do direito. São Paulo, 1905); Djaci Menezes (Introdução à ciência do direito. Rio
de Janeiro, 1952); Evaristo de Moraes Filho (O problema de uma sociologia do direito. Rio de Janeiro, 1950); Francisco José de Oliveira (Instituições políticas brasileiras. Rio de
Janeiro, 1949); Luiz Pinto Ferreira (Princípios gerais de direito civil. Recife, 1947); Pontes
de Miranda (Sistema de ciência positiva do direito, Rio de Janeiro, 1922); Euzébio de Queiroz Lima (Sociolo
giajurídica. Rio de Janeiro, 1936); Vicente Rao (O direito e a vida dos direitos. São
Paulo, 1952); Artur Ramos (Introdução à psicologia social. Rio de Janeiro, 1952); Miguel Reale (Fundamentos do direito. São Paulo, 1940; Teoria do direito e do Estado. São Paulo,
1940; O Estado moderno. São Paulo, 1936; De dignitate jurisprudentiae. São Paulo, [s.d]);
Horizontes do direito e da história. São Paulo, 1956; Teoria tridimensional do direito. São Paulo, 1973; O direito como experiência. São
Paulo, 1968; Lições preliminares de direito. São Paulo, 1973); Sílvio Romero (Ensaio de
filosofia do direito, Rio de Janeiro, 1908); Edgard Landor (Prolegômenos à ciência do direito. Bahia, 1927); Ernildo Stein (Compreensão e finitude. Porto Alegre, 1967); lrineu
Strenger (Dogmáticajurídica. São Paulo, 1964); Gofredo Telles Jr. (A criação do direito.
São Paulo, 1953; Direito quântico. São Paulo, 1980); Lourival Vilanova (Sobre o conceito de direito. Recife, 1947); A. B. Alves da Silva (Introdução à ciência do direito, São Paulo,
1953); Tobias Aquiles Beviláqua (Teoria geral do direito civil, Rio de Janeiro, 1951);
Gustavo Corção (Lições de abismo. Rio de Janeiro, 1954); Helvécio de Gusmão (Introdução à ciência do direito, 1931); Cabral de Moncada (Filosofia do direito e do
estado I, São Paulo, 1950); Nelson de Souza Sampaio (Ideologia e ciência política. Bahia,
1953; Teoria do estado. Rio de Janeiro, 1960); Benjamim de Oliveira Filho (Introdução à ciência do direito. Rio de Janeiro, 1957); Pedro Aleixo (Imunidades parlamentares. Belo
Horizonte, 1961); Oswaldo Aranha Bandeira de Mello (Natureza jurídica do estado
federal. São Paulo, 1948); Celso Antônio Bandeira de Mello (O conteúdo jurídico do princípio da igualdade. São Paulo, 1978) Francisco Campos (Direito constitucional. Rio
de Janeiro, 1956,2 v.); Dalmo de Abreu Dallari (Elementos de teoria geral do estado. São
Paulo, 1972); Antônio Sampaio Dória (Direito constitucional. São Paulo, 1953); Fábio Lucas (Conteúdo social nas constituições brasileiras. Belo Horizonte, 1959); Luiz Pinto
Ferreira (Princípios gerais do direito constitucional moderno. São Paulo, 1983); Geraldo
de Camargo Vidigal Teoria geral do direito econômico. São Paulo, 1977); Augusto Teixeira de Freitas (1816/1883; Regras de direito. São Paulo: Lejus, 2000); A. Machado
Paupério (O conceito polêmico de soberania. Rio de
Janeiro, 1955; O estado e o pluralismo jurídico. Rio de Janeiro, 1953; Teoria geral do estado. Rio de Janeiro, 1958); etc.
?<:i? 253
GIORGIO DEL VECCHIO HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
completada separadamente por Valachia e Moldavia no princípio do
século XIX, por obra de vários juristas, dentre os quais vale recordar
C. Flechtenmacher (1785/1843), e depois renovada em forma
unitária, especialmente por de C. Bosianu (1815/1882) e Boerescu
(1830/1883), após a revolução de 1848 e a reunião da Valachia e da
Moldavia em um só Estado, ocorrida em 1859.
Parte eminente, nesse período de renovação espiritual, teve o
transilvano Semeone Barnutiu (1808/1864), professor de Filosofia
do direito em J assy, que fundou o seu sistema de direito natural
privado e público (Dreptul natural privat, 1868), Dreptul natural
public, 1870) sobre o princípio da nacionalidade, ressentindose
também do influxo dos pensadores italianos contemporâneos.
No período imediatamente posterior, é notável a figura de T.
Maiorescu (1840/1917), autor de obras filosóficas (Crítica, 1874;
Lógica, 1876, etc.), inspiradas em parte por Kant, e de estudos
jurídicos e políticos, que tiveram larga acolhida. Entre os seus
disCÍpulos podem-se recordar: Pietre P. Negulescu, autor de estudos
sobre a vida dos partidos políticos e sobre a evolução da cultura
(Partidele politice, 1926; Geneza fonnelor culturei, 1934), r.
Petrovici (Certari filosofice, 1926; lntroducere in metafizica, 1929;
etc.), S. Zeletin (Neoliberalismul, 1927), etc.
Influxo considerável sobre a moderna cultura romena em
geral exerceu o grande historiador Nicola Jorga (1871/1940).
Deram contribuição à Filosofia do direito: P. Missir
(1856/1929), escreveu sobre A filosofia do direito e o direito
natural, 1904, com tendência positivista); G. Mironescu (Estudos
jurídicos, 1912; Curs de enciclopedia dreptului, 1915; etc., também
com orientação positivista, particularmente afinado com o russo
Korkunow, v. infra). E sobretudo Micea Djuvara (1886/1944), um
dos maiores pensadores contemporâneos no campo da Filosofia
jurídica (Le
fondement du phénomene juridique, 1913; Teoria generala a
dreptului, 1930, 3.v.; Considerações sobre método indutivo na
ciência jurídica, 1931; Drept rational, izvoare si drept pozitiv,
1833; Sources et normes du droit positij, 1934; Relatividade e
direito, 1935; etc.).
Djuvara, idealista crítico, formado sobre bases neokantianas,
distancia-se, todavia, do formalismo neokantiano mediante uma
análise profunda e original da realidade do direito vivo.
Notáveis, entre os mais recentes escritores da matéria, são,
também: E. Sperantia (Problemele sociologiei contemporane, 1933;
Perspectiva istoria in viata sociala, 1934; Lectiuni de enciclopedie
juridica cu o introducere istorica in filosofia dreptului, 1936;
Princípios fundamentais de filosofia jurídica, 1936); A.
Vallimarescu (Pragmatismul juridic, 1927; Studiu asupra
raporturilordreptului cu celelalte discipline, 1929; Teoria dreptului
natural, 1930); R. Goruneanu (Ideea de drept si procesul ei de
formatiune, 1931); v. Veniamin (Problematica generala a dreptului
privat, 1932; Viata si gândirea prof rof M. Djuvara, 1945); O.
Jonescu (La notion de droit subjectif dans le droit privé, 1931;
Consideratiuni asupra nonneijuridice, 1933); P. Georgescu
(Conceptul si idea dretului in doctrina lui R. Stammler, 1939;
Privire asuprafilosofiejuridice contimporane - 1- Pozitivismul,
1941; Cercetari de filosofie juridica, 1942).
Ocupou-se especialmente de Filosofia da História A. D.
Xénopol (1847/1920); La théorie de l'histoire, 1908; etc.). Sua tese
principal é que a história é uma verdadeira ciência, traduzível em
leis abstratas, das quais, porém, não se pode derivar a previsão dos
acontecimentos futuros.
Trataram de questões sociais, com referência também ao
direito: C. Dumitrescu-Jasi (1849/1923, Doua morale, 1908); S.
Haret (1851/1912; Mecanica sociala, 1910); D. Gusti, iniciador de
um método monográfico em Sociologia (Sociologia rasboiului,
1915; Sociologia militans, 1935), D. Draghicescu (Du rôle de
l'individu dans le détenninisme social, 1904; etc.; recentemente,
com caminho em parte modificado, La nouvelle cité de Dieu, 1929;
Phiolosofie du droit et droit naturel, 1935); G. D. Scraba
254 255
GIORGIO DEL VECCHIO HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
(Sociologie, 1914; La dialectique historique, 1922); p. Andrei
(Sociologia revolutiei, 1921, Sociologie generala, 1936); etc. '
No campo do direito civil, elevaram-se a foqnulações
filosóficas: G. Danielopol (1837/1913); M. Cantacuzino
(1864/1925; Elementele dreptului civil, 1921; La vie, le droit
et la liberté, ed. póstuma, 1929); E. Antonescu (Beziehungen
zwischen Rechtswissenschaften und moderner
Rechtsphilosophie, 1898; Scrieri juridice, 1903); A.
Radulescu (Unificarea legislativa, 1927; Tendências romenas
para o direito italiano, 1931; A jurisprudência como fonte do
direito, 1933); T. Jonascu (L'évolution de la notion de cause,
1923; etc.); A. Angelesco (La technique législative en matiere
de codification civile, 1930).
No campo do direito público, além dos já recordados: C.
Dissescu (1854/1932), Dreptul constitutional, 1892;
Introducere la studiul dreptului constitional, 1911), C. Stere,
Paul N egulescu, A. Teodorescu, R.Boila, V. Pella (penalista),
etc.
***
(Ciência do direito natural, 1813, primeira obra de Filosofia do
direito em língua húngara) e a valiosíssirnadeAVITozsil (Jus
naturae privatum, methodo critica deductum, 1833,3 v.).
As grandes reformas promovidas e acontecidas, também no
campo do direito, pela metade do século XIX (por obra de S.
Széchenyi, J. Eütvos, L. Kosuth, etc.) tiveram, entre outros efeitos,
a substituição da língua húngara pela latina, até então geralmente
usada nos tratados jurídicos e filosóficos, analogamente ao que
tinha acontecido cerca de um século antes, na Germânia e em
outros lugares. Não poucas obras modernas húngaras foram
igualmente publicadas também em alemão ou em outras línguas.
Recordemos, entre as monografias mais importantes: a de J.
Eütvos, A influência das idéias dominantes no século XIX sobre o
Estado (em alemão, 1851/1854,2 v.), onde são discutidas
profundamente as idéias de liberdade, igualdade e nacionalidade.
Outro notável pensador, T. Pauler, publicou de 1851 a 1878 obras
semelhantes (em húngaro) sobre direito natural ou racional, em
sentido kantiano. Partidário do direito natural foi ainda A Esterházy
(Manual de jurisprudênciafilosófica, em húngaro, 1897), que
criticou severamente o positivismo jurídico.
As tendências positivistas são representadas especialmente
por A. Pulszky, sua maior obra, publicada em 1885 em húngaro e
em 1888, em inglês (The theory oflaw and civil society), atesta
porém um apreciável esforço para compreender, ao lado dos
fenômenos, o valor dos conceitos e dos ideais. Mas estritamente
aderente ao positivismo empírico e utilitário foi J. Pikler
(Introdução à
filosofia do direito, em húngaro, e em 1888 im inglês, 1892, Da origem
e evolução do direito, id., 1897).
F. Somló (1873/1920) passou do positivismo ao
neokantismo. Nele inspira-se sua iportantísima Juristische
Grundlehre (1917), que permanece uma das mais finas análises
críticas dos conceitos jurídicos fundamentais.
No caminho neokantiano está igualmente o maior
representante da hodierna Filosofia do direito na Hungria, Júlio
Moór, que
Na Hungria, o direito foi objeto de tratados importantes
também em séculos não próximos. A obra fundamental de S.
Werboezy (1460/1541, Tripartitum opusjuris consuetudinarii inclyti
regni Hungariae, 1517) é notável por seu caráter sistemático. As
doutrinas mais gerais são, aí, originárias do direito romano e
coordenadas com os costumes jurídicos nacionais. As sucessivas
vicissitudes políticas e militares foram prejudiciais ao
desenvolvimento dos estudos, que refloresceram depois da
libertação dos turcos. No século XVIII, numerosos tratados foram
dedicados ao direito natural (por exemplo, as obras de W. Bossánvi,
1706; S. KOleséry, 1723; G. Lakits, 1778; etc.). Depois das
reformas de Maria Teresa, as obras do trentino C. A Martini,
professor de direito natural em Viena, fizeram-se presentes também
na Ungria.
As doutrinas filosófico-jurídicas de Kant inspiraram novas
elaborações da matéria, dentre as quais recordaremos a de J. S.
Szilágyi
256 257
GIORGIO DEL VECCHIO
com várias valiosas monografias elaborou um complexo sistema
(Força, direito, moral, em alemão, 1922, Introdução à Filosofia do
direito, em húngaro, 1923, O elemento lógico no direito, em
tedesco, 1928, Sobre a paz perpétua, ido 1930, Teoria pura do
direito, direito natural e positivismo jurídico, id., 1931, Criação e
aplicação do direito, em italiano, 1934, O problema do direito
natural, em alemão, 1935, etc.). Notáveis contribuições à nossa
disciplina deu também B. Horváth, tanto do fato histórico (A
doutrina da justiça dos pré-socráticos, em alemão, 1930, A
doutrina da justiça de Aristóteles, ido 1931, etc. como do
sistemático (A idéia da justiça, em tedesco, 1928, Justiça e verdade,
id.,
1929, Introdução à ciência do direito, em húngaro, 1932,
Sociologiajurídica, em alemão, 1934, etc.).
Mencionamos ainda o estudo de T. Vas sobre o Significado
da Lógica transcendental na Filosofia do direito, em alemão, 1935.
Exerce influência considerável nos estudos húngaros de
di
reito público o sistema de Política, de V. Concha (em
húngaro, 1894/1905,2 v.) que, movido pela premissa
hegeliana, sustenta o caráter ético do Estado.
Pode-se, aqui, anotar também o nome de E. Balogh,
como autor e promotor de estudos de direito comparado, não
privados de interesse para a Filosofia do direito (cf. Acta
academiae universalis jurisprudentiae comparativae,
1928/1935).
***
Na Grécia, a dominação turca foi, por quatro séculos, um
obstáculo ao desenvolvimento do pensamento filosófico. Todavia, a
luz do glorioso passado não se apagou, jamais, inteiramete.
Na primeira metade do século XIX, especialmente depois da
revolução de 1821/1828, trataram problemas de ética e de Filosofia
do direito, N. Vambas (1770/1855) e T. KaYris (1784/1853). Na
mesma época podem-se mencionar Ph. Joannou (1796/1880), autor
de uma obra sobre direito natural (publicada por um seu dis
258
T ] HISTÓRIA
DA FILOSOFIA DO DIREITO
cípulo, em 1879); N .Kazazis, que escreveu um tratado, Filosofia do
direito e do Estado (1891/1892,3 v.), inspirado pela Filosofia
idealística alemã; B. Antoniades, que ilustrou a doutrina tomística
do Estado (1890), etc.
Em época mais recente, publicaram trabalhos dignos de nota:
F. Vallindas, inclinado ao positivismo, sob a influência de Duguit (A
ciência jurídica positiva, 193); D. Vezanis (A teoria do Estado,
1932), com igual orientação; K. Triantaphyllopoulos, que tratou os
problemas fundametnais do direito privado com método racional; e
especialmente ConstantinoTsatsos, o maior representante da
hodiema Filosofia do direito na Grécia. Ele desenvolveu o seu
pensamento em valiosas obras sistemáticas, inspiradas nos
princípios do idealismo crítico (O conceito do direito positivo, em
alemão,
1928; O problema da interpretação do direito, em grego, 1932; A
missão da filosofia do direito na civiliação contemporânea, 1933;
etc.).
Recordemos, ainda, como atinentes direta ou indiretamente à
Filosofia do direito, os escritos de E. Anastasiades (Savigny,
Jhering, Bergson, 1916; Ensaios defilosofia do direito, 1927), de P.
Bisoukides (O processo de Sócrates, 1918); de N. Poli tis (Les
nouvelles tendances du droit international, 1927); de G. Maridaki
(As correntes contemporâneas do direito internacional privado,
1927); de T.Tsatsos, seguidor de Hegel (Introdução ao direito
público, 1928); de N. Coumaros (Le rôle de la volonté daris
l'actejuridique, 1931); de G. Cassimatis (O futuro do direito
privado, em italiano, 1934); de C. Periphanakis (La théorie grecque
du droit et le classicisme actuel, 1946); e os também notáveis de P.
Zepos, A. Svolos, C. Georgopoulos, etc.
***
A Holanda tem a glória de ter dado nascimento a dois
dos maiores escritores de Filosofia do direito Grócio e
Espinosa (cf. 259
GIORGIO DEL VECCHIO HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
supra). Mas não se pode dizer que suas doutrinas filosófico-jurídicas
(substancialmente opostas) tenham tido na Holanda especial
seguimento ou que tenham dado origem, aí, a verdadeiras escolas.
Isso, apesar de se terem difundido, com bem variada fortuna, entre
os estudiosos de todos os países, graças também à universalidade da
língua latina.
Grócio pode ser ligado à escola de jurisprudência que floriu
na Holanda, nos séculos XVII e XVIII, apenas por algumas de suas
obras menores, concernentes ao direito romano e holandês.
Alcançaram elas, nos estudos romanísticos, a primazia a que que
tinham jáchegado as escolas italiana e francesa, então em
decadência.
Entre os grandes juristas holandeses dessa época reçordamos,
por exemplo: A. Vinnen (Vinius, 1588/1657), U.Uber (1636/ 1694),
G. Voet (1647/1714), G. Noodt (1647/1725), C. Bynkershoek
(1673/1743).
Em geral, os numerosos juristas dessa escola, tão beneméritos
pelas pesquisas históricas e exegéticas, não questionaram os
conceitos fundamentais do direito, a não ser para ilustrar as noções
clássicas e as definições romanas.
Houve, todavia, algumas exceções, especialmente notáveis,
no que concerne ao direito público: Huber, na obra De jure civitais
(1672), confutou o absolutismo holbesiano, delineando uma
concepção política liberal, que antecipa de certo modo aquela
sustentada, pouco depois, por Locke; Noodt, no seu discurso De
religione ab imperio jure gentium libera (1706), defendeu a causa
da liberdade de consciência e de religião, já propugnada, dentre
outros, por Espinosa; B ynkershoek discutiu agudamente problemas
de direito internacional, por exemplo, o da liberdade do mar (De
dominio maris, 1702), propondo uma solução a respeito, inter
mediária entre as duas antitéticas, de Grócio e de Selden.
Na época seguinte, especialmente depois da codificação de
1838, preveleceu no estudo do direito o método positivo ou
meramente exegético. A perquirição crítica e filosófica somente
mais
tarde ressurgiu, em tempos bem vizinhos de nós. A tendência
empírica, realística e sociológica é representada por H. l Hamaker
(1844/1911; O direito e a sociedade, 1888)e mais recentemente por
L H. Hijmans (O direito da realidade, 1910; O dualismo da ciência
jurídica, 1933). Uma vigorosa crítica dessa tendência foi feita por
W. van der Vlugt (1853/1928; Lutando pelo direito, 1889;
Introdução geral à ciência do direito, 1924), particularmente
benemérito dos estudos de Filosofia do direito na Holanda.
Valiosos são, ainda, os escritos de H.Krabbe (1857/1936; A
teoria da soberania do direito, em alemão, 1906; A idéia moderna
do Estado, 2. ed., 1919; Exposição crítica da teoria do Estado,
1930), onde a soberania do direito é sustentada em confronto com a
soberania do Estado e a consciência jurídica é afirmada como valor
fundamental. Ao lado dessa concepção coloca-se, considerando o
direito especialmente sob o aspecto psicológico, R. Kranenburg
(Direito positivo e consciência do direito, 2. ed., 1912, 1928;
Estudos sobre direito e Estado, 1926/1932).
P. Scholten (Pensamentos sobre o direito, 1924; Parte geral
[do direito civil], 1931; Direito e justiça, 1932; Princípios da vida
social, 1934; Princípios do direito, 1935), elaborou uma notável
teoria "personalista", que admite na consciência individual, ao lado
de elementos relativos, elementos absolutos, do que se seguiriam
certas uniformidades na vida do direito. A consciência pessoal,
segundo Scholten, é, de um lado, autônoma, mas, de outro,
"teônoma", ligada à ordem divina revelada pela ética cristã.
Entre os seguidores da Filosofia néo-escolástica recordamos
J. Hoogveld (Lineamentos principais da filosofia geral do direito,
1934), L. Bender (Philosophia iuris, 1947). A idéia do direito
natural em sentido católico foi defendida também por F. Sassen
(Direito e ética, 1927), W. J. Duynstee e E. lvan der Heyden;já a
escola calvinista é representada, nessa matéria, por H. Dooyeweerd
(Calvinismo e direito natural, 1925).
De caráter sociológico são os escritos de S. R. Steinmetz (A
filosofiadnguerra, em alemão, 1907; Introdução à sociologia, 1931;
260 261
GIORGIO DEL VECCHIO HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
Escritos de etnologia e sociologia, em alemão, 3 V., 1928/1935);
igual tendência manifesta-se também nos escritos, mais atinentes ao
direito, de J. J. von Schmid (As relações entre a coletividade e o
indivíduo na evolução do pensamento sociológico, em francês,
1936; Filosofia do direito, 1937; Estudos filosófico-jurídicos e
sociológicos, 1939).
O posicionamento neokantiano (ao qual se podem ligar
também alguns dos pensadores acima nominados) é representado
especialmente por L. Polak, que dedicou agudos estudos à Filosofia
do direito penal (O sentido da retribuição, 1921; Sobre a
justificação moral da pena, em alemão, 1930).
São ainda de serem recordados os estudos sobre As noções
fundamentais do direito civil (em francês, 1892), de P. van
Bemmelen; sobre A consciência jurídica (1913) de J. Boasson,
sobre os métodos da ciência jurídica de E. M. Meijers, e outros mais
notáveis de B. M. Telders, 1. H. Carp, F. Scheltema, A Stoop, 1.
Coebergh, M. van Praag, S. A van Wien, L Kisch.
Uma apreciável atividade desenvolveu a Sociedade
Holandesa de Filosofia do Direito (Vereeniging voor Wijsbegeerte
des Rechts), fundada em 1919 (com sede em Leida), que publicou
regularmente seus Atos (Handelingen), cujo primeiro presidente foi
Van der Vlugt, ao qual sucederam Steinmetz, Krabbe e Kranenburg.
***
no do direito), seguindo um método empírico ou positivo. Uma
diversa concepção, tendente a dar à norma ética um valor
objetivo, foi sustentada porC.N. Sarcke (1858/1926), ao qual
se deve ainda um valioso livro sobre A família primitiva, suas
origens e o seu desenvolvimento (1888, ed. francesa, 1891).
Contribuições várias à Filosofia do direito deram, no
século XIX e nos primeiros decênios do século XX, AS.
Oersted, C. Bomemann, C. Goos, A Kraft, S. Christensen, V.
Bentzon, F. Dah1, C.Torp.
Particularmente notável, entre os escritores mais
recentes, é AlfRoss que, depois da obra Teoria das fontes o
direito (em alemão, 1929), inspirada nas doutrinas de Kelsen,
escreveu outras (Crítica do pretenso conhecimento prático, em
alemão, 1933; Realidade e validade na teoria do direito, em
dinamarquês, 1934), analisando os juízos de valor e
sustentando a necessiade de superar aquele dualismo pelo qual
o direito se considera como atuação no mundo empírico de
valores pertencentes ao mundo supra-sensível. Segundo a sua
opinião (que substancialmente concorda com a do suíço A
Hagerstrom), tais referências metafísicas não podem ser
aceitas senão enquanto exprimem fatos de psicologia social.
Aos problemas das origens do direito, com particular
atenção ao direito romano, dedicou profundos estudos C. W.
Westrup, indagando, com método comparativo, a formação
das noções jurídicas elementares (cf. especialmente o v. lU de
sua obra lntroduction to early roman law, 1939).
Na Dinamarca, mais que a Filosofia do direito, foram
cultivados outros ramos da Filosofia. Pensador original, assaz
conhecido também na Itália, foi S. Kierkegaard (1813/1855), que
sentiu profundamente a tragicidade dos problemas da vida interior e
traduziu a sua ânsia em fórmula subjetiva, mas não construiu um
verdadeiro sistema.
Não menos conhecido, especialmente pela sua ótima História
da filosofia moderna (traduzida em italiano por P. Martinetti), é H.
Hoffding (1843/1931), que escreveu também obras respeitáveis de
psicologia e de moral (com algumas considerações em tor
***
Na Suécia, o estudo filosófico do direito tem tadições
bastante antigas (relembre-se que Pufendorf ensinou direito natural
e das gentes, de 1670 a 1677, na Universidade de Lund; e depois em
Estocolmo, onde permaneceu outros dez anos e onde escreveu a
maior par
26
2 7h1
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO GIORGIO DEL VECCHIO
te de suas obras). Não consta, porém, que, antes do século XIX, o
pensamento sueco tenha produzido, nessa matéria, obras originais de
algum relevo. Foram ali bem acolhidas, e lá encontraram eco, as
principais doutrinas filosóficas inglesas, francesas e alemãs.
Merece anotado que no Código geral de 1734, foram
inseridas, como preâmbulo, as chamadas "regras do juiz"
(Domareregler), uma espécie de compêndio da sabedoria juridica
popular, que remonta ao antigo reformador sueco Olaus Petri (Oloz
Petersson, 1493/1552). Por exemplo: "Um juiz bom e prudente vale
mais que uma boa lei [...] Onde há um juiz mau e injusto, uma boa
lei não ajuda, porque ele a torce e a toma injusta a seu arbítrio".
Chr. Jac. Bostrom (1797/1866), notável pensador, floresceu
na época seguinte. É autor de um sistema de Filosofia idealística,
que exerceu grande influência sobre toda a cultura sueca. A sua
concepção da sociedade é afim com a da escola histórica, mas tem
caráter filosófico mais preciso, onde pode também confrontar-se
com as doutrinas de Schelling e de Hegel. A sociedade é, ao seu
aviso, um organismo vivo, animado por uma idéia pessoal, absoluta
ou divina. Essa idéia manifesta-se no mundo empírico como norma
e escopo da atividade dos indivíduos; daqui seguem os direitos e os
deveres, aos quais a sociedade pública, ou seja, o Estado, deve dar
forma racional.
O pensamento de Bostrom teve numerosos continuadores,
entre os quais recordaremos apenas K. Claison (1827/1859), que
tratou especialmene da teoria do direito, e C. Y Sahlin (1824/1917),
o qual, desenvolvendo conceitos sobre a sociedade e o Estado,
aproximou-se mais do idealismo hegeliano.
O mais respeitável e original mestre sueco de Filosofia do
direito em nosso tempo foi Axel Hagerstrom (1868/1939), conhe
cido também como romanista (Der romische Obligationsbegriff,
I, 1927, lI, 1941; entre suas outras obras recordamos: Estado e
direito, 1904; Sobre questões do conceito do direito objetivo, 1917;
alguns outros seus ensaios foram recolhidos no v. Socialfilosofiska
Uppsatser, 1939, com introdução de M. Fries).
O pensamento de Hagerstrom tem caráter essencialmente
critico; ao seu entender, nem os deveres juridicos nem os direitos
subjetivos têm uma verdadeira realidade: reais são apenas certas
representações psíquicas e certos estados de fato. Por isso, ele se
distancia tanto das doutrinas do direito natural, como daquelas do
positivismo juridico; enquanto admite aqueles conceitos, reputa-os
não imunes de elementos jusnaturalísticos. Fora de lugar seria
discutir essas idéias aqui.
Discípulo de Hagerstrom foi V. Lundstedt, que levou às
últimas conseqüências as doutrinas do mestre, negando todo valor
científico à Jurisprudência14 e, combatendo em particular as teorias
do direito intemacioal, as quais, ao seu entender, não só não
conduziriam à paz entre os povos mas, sem dúvida, produziriam o
efeito contrário. As obras de Lundstedt, algumas das quais foram
publicadas também em inglês e em alemão (Superstition or
rationality in action for peace ? - A criticism of jurisprudence, 1925;
Die Unwissenschaftlichkeit der Rechtswissenschaft, 1932/1936,
etc.), suscitaram várias discussões em vários países.
Outro pensador digno de nota é K. Olivecrona, também
discípulo de Hagerstrom. Na sua obra principal (edição inglesa, Law
asfact, 1939; edição alemã, Gesetz und Staat, 1940), tentou expor a
"realidade" (em sentido empírico) do ordenamento juridico, negando
a personalidade do Estado e considerando as normas juridicas como
imperativos não derivantes de um sujeito unitário, mas da
intermitente vontade de certos indivíduos (cf. também o seu ensaio
Der Imperativ des Gesetzes, 1942). Só a existência de uma
organização coercitiva em um território determinado constituiria a
unidade de um sistema.
Questões atinentes à Filosofia do direito trataram, ainda, V.
Norstrom, R. Kjellén, E. Tegen, O.Kinberg (penalista), etc.
14 Pode-se recordar que tese semelhante tinha sido sustentada no século precedente, como já
anotamos, por Kirchmann (Die Werthlosigkeit der Jurisprudenz ais Wissenschaft,
1848), que foi refutada por Rudorff e por Stahl.
264 265
GIORGIO DEL VECCHIO HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
*** Chamamos a atenção ainda para os valiosos estudos de P.
Sokolowski (nascido na Letônia em 1860, professor na Rússia e na
Alemanha, morto em 1934), que na sua obra A filosofia no direito
privado (em alemão, 1902/1907) ilustrou amplamente a influência
das doutrinas filosóficas gregas sobre algumas concepões jurídicas
dos romanos; e na outra obra sobre O Estado (1932) indagou
agudamente sobre os laços entre as formações políticas e as
condições gerais da cultura nos vários tempos e junto de outros
povos.
M. Laserson (professor em Riga, depois em Tel-Aviv e em
New Y ork) escreveu uma Teoria geral do direito (em russo, 1930)
e vários notáveis ensaios sobre Recht, Rechtstsseitigkeit und
Geradheit, (1921); Revolution und Recht (1929); La philosophie du
droit de Mai'monide (1937); etc.
L. Sules (também professor em Riga) escreveu, dentre outras
obras, uma monografia sobre A teoria do mínimo ético (em letone,
com resumo em francês, 1936).
Na Noruega, os estudos filosóficos tiveram certo incremento
apenas na idade moderna, especialmente depois da fundação da
Universidade de Cristiania (Oslo), ocorrida em 1811.
Numerosas obras sobre vários ramos da Filosofia escreveu N.
Treschow (1751/1833), que desenvolveu parte de sua atividade na
Dinamarca e esteve entre os primeiros a difundir as doutrinas
kantianas. A Kant atém-se ele na Ética, propugnando também pela
idéia da paz perpétua. Doutra parte, concebeu uma teoria da
evolução, pela qual mereceu o nome de precusor, e se falou a
respeito dele como de "pré-darwiniano".
Contribuições especiais para a Filosofia do direito, na
Noruega, foram dadas mais tarde por A. Eriksen (Direito e moral,
1900); A. Aall (Força e dever, em alemão, 1902); N. Gjelsvik
(Introdução ao estudo do direito, 1912); E. Solheim (Direito e
errado, 1914); A. Hoel (O mondemo método jurídico, 1925); e
outros.
Particularmente notável é F. Castberg que, na sua recente
obra Problemas fundamentais da Filosofia do direito (1939),
investigou com método crítico as relações entre a Filosofia do
direito e as outras disciplinas jurídicas, o caráter normativo e a
validade do direito, etc.
Vários indícios deixam crer que o interesse pela Filosofia do
direito esteja para crescer tanto na Noruega quanto nos outros
países nórdicos.
***
Na Lituânia, escreveram obras dignas de nota P. Leonas
(História dafilosofia do direito, 1928/1936), A. Tamosaitis (A
escola histórica do direito, 1929), e especialmente M. Roemeris (O
Estado, 1934/1935), que, tratando do Estado, põe em relevo suas
funções sociais, considerando ainda o complexo problema da
estadualização do direito.
*** ***
Para alguns escritores de outras nações acenamos apenas
incidentalmente, como o finlandês E. Westermarck, autor das
importantes obras The history ofhuman marriage (1891, ed.
italiana, 1894, com prefácio de C. F. Gabba) e The origin and
development ofthe moral ideas (1906/1908,2. ed. do li v.,
1917).
Entre os escritores da Estônia, recordamos G.v. Glasenapp, a
quem se devem alguns ensaios de história do pensamento político
(Maquiavel e o Maquiavelismo, em italiano, 1925, etc.).
26
6 ?f.7
~
I
1
VISÃO DA FILOSOFIA DO I
DIREITO NOS PAISES ESLAVOS A I I
(POLONIA, RUSSIA, CHECOSLOV AQUIA, I I
IUGOSLAVIA, BULGARIA)
Na Polônia, a Filosofia do direito tem antigas tradições,
também em razão dos fecundos contactos com o pensamento latino.
No século XV, P. Wlodkowicz (morto em 1435) publicou um
Tractatus de potestate papa e et imperatoris, no qual, seguindo a
ideologia teocrática predominante da Idade Média, sustenta a
superioridade do poder da Igreja sobre o Estado; mas já com G.
Ostrorog (1430/1501), que estudou provavelmente na Itália,
anuncia-se o Renascimento, tanto pelo método racional usado por
ele, como pelo conteúdo das suas doutrinas, direcionadas a
estabelecer o princípio da soberania do Estado.
No século XVI podem-se recordar: A. Frycz, ou Fricius
(1503/1570), cuja obra Commentariorum de Republica emendanda
libri quinque (1551) foi conhecida e citada por Bodin; S. Orichovius
(1513/1566), que, tratando do Estado polaco, se inspirou nas
doutrinas políticas de Aristóteles; A. Volan, ou Volanus
(1530/1610), que no seu notável livro De liberta te politica seu civili
(1572) remontou dos problemas do direito público aos princípios do
direito natural; L.Goslicki, ou Goslicius (1530/1607), que estudou
nas Universidades de Pádua e de Bolonha e escreveu uma obra, De
optimo senatore (publicada em Veneza em 1568), onde são
examinadas as funções e os fins do Estado; G. Zamoyski, ou
Zamoscius (1541/1605), que estudou também em Pádua e escreveu
uma obra, De Senatu romano (editada em Veneza em 1563, e em
Strasburgo, em 1608). Pertencem ao século XVII: L. Opalinski
(1612/1662), autor de um tratado, De officiis, e A. 01izarowski,
269
GIORGIO DEL VECCHIO HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
ou Olizarovius (1618/1659), autor de um Sistema de direito natural
e político; enquanto nos numerosos escritos de U. Kollataj
(1750/1812) já aparece o método histórico aplicado aos problemas
do direito.
Um movimento característico de idéias, do qual participaram
filósofos e também poetas, e tomou o nome de "messianismo"
polaco, desenvolveu-se no início do século XIX, por obra
especialmente de G. Hoene Wronski (1778/1853), A. Mickiewicz
(1798/1855), A. Towianski (1799/1878), B. Trentowski (1808/
1869),1. Slowacki (1809/1849) e outros. Buscou ele antes de tudo
produzir uma profunda renovação da consciência individual, mercê
da "autocriação" ou "descoberta do absoluto", isto é, a revelação da
eternidade e indestrutibilidade do espírito; daí um renascimento da
vida das nações, fundado sobre a confiança de que a cada uma
delas havia sido atribuída, por um desígnio divino, uma missão
própria na vida da humanidade. Deve-se advertir que, nessa
doutrina, a nação é tomada como pura unidade espiritual, ou
sociedade de crentes, e isto em um signicado nítidamente distinto
do étnico e até contrário a ele. Tal complexo de idéias e
sentimentos (que tem pontos de contato com a doutrina de
Mazzini), apesar de certa variedade de tendências, assume
particular valor para a nação polaca, enquanto lhe sustenta por
muito tempo os esforços para a desejada
redenção política, finalmente alcançada depois.
Entre as obras representativas deste movimento espiritual
indicaremos só os seguintes, escritos em francês por G. Hoene
Wronski, que pode ser considerado o fundador do movimento:
Prodrome du messianisme, révélation des destinées de l' humanité
(1831); Métapolitique messianique (1839); Philosophie absolue de
l' histoire (1852); Nomothétique
messianique ou lois suprêmes du monde (obra póstuma, 1881).
A obra de A. Cieszkowski (1814/1894), Pai nosso (v. I.
1847; v. IIJIV; póstumos, 1899/1906, tradução italiana, com o
título Os caminhos do espírito, de A. Palmieri, 1923) participa do
caráter místico, que é próprio do messianismo, enquanto se liga
também com o sistema hegeliano. Movida por uma teoria
transcendente do espírito universal, ela representa uma tentativa de
interpretar a história humana como atuação da dialética divina. O
direito é nela considerado justamente como expressão do espírito
universal, que se concretiza nas relações de fanu1ia e nação, e se
traduzirá, finalmente, na "Igreja da Humanidade", ou "do Espírito
Santo", e isto na união e na paz eterna entre as nações.
Outros autores polacos, na era moderna, deram, em vários
sentidos, contribuições não descuráveis à Filosofia do direito. L.
Gumplowicz (1838/1909), professor em Graz, desenvolveu em
numerosas obras (Philosophisches Staatsrecht, 2. ed., 1877, com o
título Allgemeines Staatsrecht, 1897; Der Rassenkampf, 2. ed., 1883,
1909; Grundriss der Sociologie, 1885; Die socioligische Staatsidee,
2. ed., 1892, 1902, tradução italiana com o título O conceito
sociológico do Estado, de F. Savorgnan, 1904; etc.) uma concepção
naturalística do Estado, considerado como mero poder de fato,
resultante da luta entre raças diversas (a palavra "raça" foi entendida
por Gumplowicx primeiro no sentido antropológico, depois no
sentido mais lato de grupo ou unidade social). O direito exprimiria,
portanto, a relação de predomínio, estabelecido em virtude dessa
luta, a qual continuaria, porém, a desenvolver-se no Esdado, como
luta entre as diversas classes sociais.
L. Petrazycki (1867/1931; de 1899 a 1917, professor em
Pietroburgo e, em 1919, em Varsóvia) elaborou uma teoria do
direito sobre bases psicológicas, analisando especialmente os
motivos do agir humano e considerando a consciência jurídica
individual como fator da fenomenologia social. As idéias diretivas
de suas obras, escritas na maior parte em língua russa (Sumário de
filosofia do direito, 1900; Introdução à ciência do direito e da
moral, 3. ed., 1909; Teoria do direito e do Estado, 2. ed., 1907,
1909/1910), são compendiadas no breve ensaio Sobre os motivos do
agir e sobre
a essência da moral e do direito, publicado, além do russo, em
polaco e também em alemão (1907).
Entre os mais recentes cultores polacos da Filosofia do
direito, recordemos: E. Jarra (Teoria geral do direito, 2. ed., 1920,
270 271
GIORGIO DEL VECCHIO
1922; História da filosofia do direito, 1923; etc.); A. Peretiatkowicz
(Afilosofiajurídica de J. J. Rousseau, 1913; Novas correntes na
jurisprudência, 1921; etc.); J. KoschembahrLyskowski, conhecido
também como romanista (A noção do direito, 1911); J. Reinhold (À
procura do direito igual, 1911); W. Maliniak (Contribuições à
metodologia e àfilosofia do direito, 1917); E. Krzymuski (História
dafilosofia do direito, 1923); J. Lande, seguidor das opiniões de
Petrazyki (Objeto e método da
filosofia do direito, 1916; Norma e fenômeno jurídico, 1925); S.
Rundstein, adepto da escola de Kelsen (A interpretação do direito e
ajurisprudência, 1916; Princípios da teoria do direito, 1924;
Direito internacional púlico efilosofia do direito, 1933;
Observations sur ia structure du "juridique", 1937); C.
Znamierowski (Noçõesfundamentais da teoria do direito, 1924;
Prolegômenos da ciência do Estado, 1930); H. Pietka (A eqüidade
na teoria e na prática, 1920); E. Bautro (O sentimento juídico,
1925), Z. Lubienski, autor de vários escritos sobre Hobbes; W.
Bitner (Princípios de direito, 1932); S. Drucks, S. Chelinski; etc.
Trataram especialmente da Filosofia do direito penal: 1.
Makarewicz (Introdução àfilosofia do direito penal, em alemão,
1906); W. Makowski (Fundamentos dafilosofia do direito pe
nal, 1917); B. Wroblewski (Introdução à política criminal, 1926;
Estudos sobre direito e ética, 1934); S. Glaser (A idéia de justiça
no direito penal, 1929); etc.
Também alguns eminentes cultores de vários ramos do
direito positivo, como S. Golab e W. Jaworski, deram contribuições
àFilosofia do direito (do primeiro recordamos, por exemplo, os
ensaiosAsformas das proposições jurídicas, 1920; A essência da
pessoa jurídica, 1916; Teroria e técnica da codificação, 1930.
Prevalentemente de caráter sociológico são os escritos de
W. M. Kozlowski (1859/1935).
Insta notar que alguns desses autores publicaram parte de
suas obras, ou compêndios delas, em alguma das línguas européias
mais geralmente conhecidas, inclusive a nossa.
272
~
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
***
Uma olhada, agora, nos autores russos.
A.W.Kunizin (1788/1840) escreveu uma obra sobre Direito
natural (1818/1820), inspirada nas doutrinas kantianas.
Mais original, não obstante certos influxos hegelianos, é a
obra de K. N. Njewolin (1806/1855; professor em Kiew e em
Pietroburgo) Enciclopédia da ciência jurídica (1839/1840) cujo
segundo volume contém uma história da Filosofia do direito. O
direito é definido como "a expressão da justiça, a qual consiste na
atuação do ser divino no mundo moral". No direito ele reconhece,
portanto, um elemento necessário e absoluto, ao lado de um
contingente e particular.
B. Cicerin (1828/1904), professor em Moscou, é
especialmente notável por uma História das doutrinas políticas
(1868/1877, 5 v.), além de outros escritos jurídicos e filosóficos
(Curso da ciência de Estado, 1897,3 v.; Sociologia, 1898; etc.).
W. S. Ssolowjew (1853/1900) escreveu várias obras
filosóficas, algumas das quais concernentes à Filosofia do direito
(História e futuro da teocracia, 1886; Direito e moralidade, 2. ed.,
1897, 1899), inspiradas em uma forma de misticismo ascético, que
encontra comparação na primitiva literatura cristã, mas nenhuma na
moderna Filosofia ocidental. É considerado o mais original dos
filósofos russos. Somente uma resenha de suas obras foi publicada
na França (1910) e na Germânia (1914, 1922).
A. Spir (1837/1890), tendo vivido muitos anos na Alemanha
e na Suíça, tratou com originalidade de visão, os maiores problemas
da Filosofia geral, tentando construir uma nova síntese, fundada
sobre a crítica do conhecimento. À Filosofia do direito dedicou uma
obra (Direito e errado, 1879), edição italiana, com o título A
justiça, 1930, inspirada em um racionalismo individualístico, de
derivação kantiana.
N. M. Korkunow (1853/1902; em 1878, professor em
Pietroburgo) escreveu, além de importantes obras sobre direito
público russo, uma História da filosofia do direito (4. ed., 1908, não
273
GIORGIO DEL VECCHIO
traduzida) e um ótimo Curso de teoria geral do direito (5. 00., 1887,
1898, tradução francesa, 1903, inglesa, 2. ed., 1909, 1922). Nele os
principais conceitos juridicos são expostos com clareza e às vezes
com profundidade, prevalentemente na base da observação histórica
e positiva; falta-lhe, porém, um adequado conceito do direito
natural.
S. Pachmann (1825/1902), professor em Kasan, Charkow e
Pietroburgo, autor também de notáveis obras civilísticas,
particularmente sobre direito consuetudiário) defendeu, com a
monografia Sobre o presente movimento da cienciajurídica (1882,
também em edição alemã) a autonomia científica da jurisprudência
contra várias tendências naturalísticas e sociológicas.
A. D. Gradowski (1841/1889; professor em Pietroburgo), de
tendências hegelianas, tratou especialmente os problemas do direito
público e da nacionalidade, ressentindo-se, sob esse ponto, da
influência de Fichte.
S. Muromzeff (1850/1910, professor em Moscou), partidário
do positivismo, considerou o direito como fenômeno social, relativo
à tutela de certos interesses, avizinhando-se, assim, da teoria de
Ihering e buscando aperfeiçoá-Ia.
Semelhantes concepções foram sustentadas também por J. S.
Gambaroff e outros.
G.v. Plechanow (1856/1918) inspirou-se nas doutrinas de
Marx e tratou os problemas sociais e políticos mais sob o aspecto
econômico que sob o jurídico. M. Kowalewski (1851/1916), que, ao
contrário, em política representou o liberalismo progressista,
escreveu obras notáveis de sociologia e de direito comparado,
seguindo o método indutivo.
Embora não pretendesse elaborar conceitos jurídicos, as
doutrinas pacifistas e humanitárias do grande escritor L. Tolstoi
(1828/1911) exerceram certo influxo sobre cultores da Filosofia do
direito em diversos países (por exemplo, sobre o espanhol P. Dorado
Montero, adiante recordado). Culminavam em uma espécie de
moralismo antiestatal, que remonta aos princípios do cristianismo
para combater a violência em todas as suas normas.
274
....... I
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
É assaz diferente pelo método, mas igualmente movida por
aspirações humanitárias a obra sociológica de G. Novicow
(1851/1912), Crítica do darwinismo social (edição italiana, 1910,
etc.), que tende sobretudo a mostrar, sob a base de observações
históricas e econômicas, que a guerra deveria ser abolida e
substuída pela federação entre os povos.
Agitadores de idéias políticas em sentido diretamente
revolucionário foram A. Herzen (1812/1870), M. Bakunin
(1814/1876), P. Kropotkin (1842/1921). Suas atividades passaram
da lutacontra o regime czarista à luta contra os governos em geral;
também contra a idéia mesma do Estado. Em especial, os dois
últimos tentaram dar uma justificação teórica do anarquismo. Falta,
porém,
em geral, a esses pensadores aquela imparcial serenidade e aquela
ordem sistemática, que são condições preliminares de todo
verdadeiro filosofar.
Os problemas próprios e fundamentais da Filosofia do direito
foram recentemente tratados em obras também importantes mas
infelizmente conhecidas por nós apenas em parte ou indireta
mente -, dos seguintes autores russos: P. Novgorodzeff, professor
em Mosca e em Praga, morto em 1924 (Kant e Hegel nas suas
doutrinas do direito e do Estado, 1901; A crise da consciência
jurídica moderna, 1909; Ideais políticos do mundo antigo e
moderno, 1910; O ideal social, 1917; etc.), que sustenta o direito
natural; W. M. Hessen, professor em Pietroburgo, morto em 1919
(O renascimento do direito natural, 1902; A ciência do direito,
1903) e E. Trubetzkoi, professor em Moscou (Lições sobre a
Enciclopédiajurídica, 1907; Lições sobre história dafilosofia do
direito, 1909), igualmente defensores do direito natural; G.
Scersceniewicz, oriundo polaco (1863/1912) professor em Kasan e
em Moscou (História da filosofia do direito, 1907; Teoria do
direito público, 1910/1912); N. Palienko, professor em Charkow
(Soberania, 1908; Objeto e limites da teoria jurídica do Estado,
1912), que criticou o jusnaturalisno e também o psicologismo
juridico, representado em especial pelo polaco Petrazycki (então
professor em Pietroburgo; dele damos notícia entre os escritores
polacos);
275
GIORGIO DEL VECCHIO
M. Reissner, professor em Moscou, morto em 1928 (A teoria
de L. Petrazycki; O marxismo e a ideolocgia social, 1908; O Estado,
2. ed., 1918), que, seguindo o método psicológico, tentou explicar a
gênese das ideologia sociais distinguindo em um mesmo Estado
diversos sistemas jurídicos coexistentes; W. A. Ssawalski, professor
em Varsóvia, morto em 1916, seguidor de um idealismo
neocriticista (As bases da filosofia do direito no sistema do
idealismo transcendental, Moscou, 1908); 1. W. Michailowski
(Lineamentos de filosofia do direito, 1913); B. Kistjakowsky, morto
em 1920, neokantiano (As ciências sociais e o direito, 1915); N.
Alexeiev, partidário de uma orientação fenomenológica (Introdução
ao estudo do direito, 1918; As bases dafilosofia do direito, 1923;
L'acte
juridique créateur comme source prima ire du droit, 1934); L Ijin
(Força e direito, 1910; Sobre a consciência jurídica, 1923), que
combateu as doutrinas de Tolstoi e o comunismo; B. Vycheslavzeff
(Os fundamentos da etica de Fichte, 1914; A ética do amor sublime
- A lei e a graça, 1931), que sustenta uma concepção mística e
neoplatônica; L. Karsawin (Filosofia da história, 1923), que se
fundou sobre conceito do "espírito popular", entendido,no sentido
metafísico. A. Gorovtseff (Estudos de principiologia do direito, em
francês, 1928), que analisou as noções de sujeito e de objeto do
direito; N. S. Timacheff (Introduction à Ia sociologie juridique,
1939), que estudou as transformações do direito e do poder como
fenômenos sociais.
Escritos de vários autores russos (N. Alexejev, N. Berdjajev,
etc.) estão recolhidos no volume Kirche, Staat und Mensch, editado
em Genebra em 1937.
Recordemos ainda os escritos, pertinentes especialmente ao
direito público, de A. Koulicher (La multiplicité des sources en
droit constitutionnel, 1934; etc.). Já acenamos para outros autores
de origem russa (como Vinogradoff, Gurvitch, MirkineGuetzévich,
De Roberty, etc.).
A revolução bolchevista turbou profundamento o
desenvolvimento da ati vidade científica e filosófica na Rússia,
constrangendo
276
~
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
numerosos pensadores (os já nominados e outros que nominaremos
mais adiante) a abandonar a pátria. Ao mesmo tempo, o novo
regime, instaurado sobre as ruínas do precedente, não parece que
tenha, até agora, pelo que sabemos, reflexos consideráveis e
verdadeiramente originais nas elaborações teóricas do direito.
O livro de N. Lenin (W. Uljanoff, 1870/1924), Estado e
revolução (1917), é de inspiração diretamente marxista. Todavia, as
tentativas de revisão das noções jurídicas, como as de P. L Stucka
(A função revolucionário a do direito e do Estado, 3. ed., 1924;
Introdução à teoria do direito civil, 1927) e de E. Paschukanis
(Doutrina geral do direito e marxismo, 3. ed., 1927, edição alemã,
1929), pressupõem, como demonstrada, a tese do materialismo
histórico ou determinismo econômico e têm um significado mais
negativo que construtivo, tendendo a uma desvalorização não só do
direito individual, mas do direito em geral.
Não obstante, com certeza, de esperar-se que um povo tão
altamente dotado, como o russo, reunirá outras grandes
contribuições, mesmo sobre a base das novas experiências sociais,
às jádadas para o desenvolvimento da Filosofia do direito.
***
Nos países que recentemente constituíram a
Checoslováquia, os estudos de Filosofia do direito tinham
alcançado certo incremento bem antes da unificação ao
Estado. Influências notáveis foram exercidas sobre o
pensamento da Boêmia já desde o Renascimento italiano. Em
seguida à Reforma (Rus), prevaleceu a influência germânica, à
qual se seguiu, em tempos recentes, a francesa e a inglesa
(positivismo). Em geral, as lutas religiosas, e especialmente a
rigorosa reação da Contra-Reforma, que predominou por três
séculos, foram de obstáculo ao formar-se e ao desenvolver-se
de uma tradição filosófica nacional; esta se delineia
claramente apenas na metado de século XIX.
Lugar eminente merece a obra, vasta e múltipla, de T.
G. Masaryk (1850/1937), que representa uma espécie de
síntese do 277
GIORGIO DEL VECCHIO
positivismo ocidental com o misticismo eslavo. Entre os seus
numerosos escritos, recordemos aquele sobre as bases do marxismo
(Die philosophischen und sociologischen Grundlagen des
Marxismus, 1899), longamente discutido, dentre outros, por Antonio
Labriola (O materialismo histórico, 2. ed., 1902, p. 133-156). Os
problemas da FIlosofia do direito são tocados especialmente no
ensaio O direito natural e o direito histórico (1900), onde Masaryk
reagiu contra a exagerada importância atribuída à tradição histórica,
e afirma o direito natural como uma soma de ideais éticos humanos
(maximum etico) do atuar-se no direito positivo (minimum ético).
Com essa concepção liga-se o seu programa político, defendido mais
com fatos que com o pensamento, e inclinado antes
de tudo a reivindicar a liberdade nacional (como direito natural).
Dignos de nota são também os seus ensaios sobre democracia e
contra o bolchevismo (recolhidos no volume Les problemes de Ia
démocratie, 1924).
Ideais humanitários foram defendidos por F. M. Klácel
(1808/1882), que, emigrado da América do Norte, fundou uma
comunidade de caráter cosmopolítico (positivismo ético). Gustavo
Lindner (alemão de origem, 1828/1887), acolhendo a teoria da
evolução de Darwin e antecipando em parte Spencer, tratou de
Psicologia social (Ideen zu einer Psychologie der GeseUschaft,
1871), além de outros ramos da Filosofia, que aqui podemos deixar
de lado (pedagogia, etc.). 1. Durdík (1837/1902), inspirado
principalmente
em Herbart, traçou uma classificação das ciências, pondo de lado as
ciências do mundo externo e as do mundo interno, e rafirmando
então, em oposição a Comte, a necessidade da introspecção. A
doutrina da sociedade (Sociética) fundar-se-ia, ao seu entender,
sobre as
ciências de caráter normati vo e sobre a Psicologia.
A escola de Krause teve um notável representante em H. v.
Leonhardi (1809/1875), que, nascido na Alemanha, desenvolveu
em Praga a sua principal atividade, organizando ali também o
primeiro congresso internacional de Filosofia (1868). Desse
Congresso tirou oportunidade para defender a paz e promover uma
concilia
278
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11'
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
ção, também religiosa, entre os povos. Dedicou ele uma
monografia especial para demonstrar a importância, teórica e
prática, da Filosofia do direito (Die hohe Bedeutung der
neueren Rechtsphilosophie,1874).
F. Drtina (1861/1925), discípulo de Lindnere de
Masaryk, escreveu uma vasta obra sobre a evolução do
pensamnto europeu (1902), indicando especialmente no
Cristianismo as bases dos direitos do homem e dos ideais
éticos afirmados na era moderna. Não vamos nos deter em
outros pensadores (como F. Krejcí, F. Cáda, etc.), que têm
importância quase exclusivamente para a Fi10sofia teórica.
Deram importantes contribuições à Filosofia do direito,
em tempos recentes, F. Weyr e J. Kallab, ambos de tendência
neokantiana. O primeiro elaborou uma teoria do conhecimento
jurídico, que é intimamente relacionado com a "doutrina pura
do direito" de Kelsen. Já no seu escrito Sobre o problema de
um sistema jurídico unitário (em alemão, 1909), Weyr
combateu a distinção entre direito público e privado, visando
depurar a construção jurídica dos elementos históricos,
políticos e sociológicos estranhos a ela.
Tema fundamental é aquele segundo o qual o direito
pertence ao mundo do dever ser, nitidamente distinto do ser
(idealismo crítico). Esta concepção Weyr a desenvolveu nas
suas obras Fundamentos da filosofia do direito (em checo,
1920), La théorie normative (1925), La notion de processus
juridique dans Ia théorie pure du droit (1931), etc.
Também Kallab tratou especialmente dos problemas
metodológicos da ciência jurídica, sobre bases da Filosofia
crítica, em antítese aos métodos histórico e sociológico. Suas
divergências de Weyr são relativamente secundárias. Entre
seus escritos, são notáveis: A "natureza" na Filosofia do
direito do século XIX (em checo, 1915); Introdução ao estudo
dos métodos jurídicos (2 v. em checo, 1920/1921); O objeto
da ciência jurídica (em italiano, 1922); Quelques
renseignements sur Ia méthodologie
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GIORGIO DEL VECCHIO
des sciences juridiques puisés dans la doctrine de la classification
des sciences (1930); Le droit et la politique (1934); etc.
Ensaios valiosos escreveu também J. Sedlacek (O conceito
rea/ístico e o conceito normológico da norma jurídica, em italiano,
1933; Interprétation et application de la regle de droit, 1933; etc.),
com análoga orientação metodológica, que se pode dizer
caracteóstico da escola de Bmo, à qual pertencem os três pensadores
nominados pelo último.
Deu iguais contribuições à História da Filosofia do direito B.
Tomsa (A moderna filosofia do direito italiano, em checo, 1921; A
idéia dajustiça e do direito na filosofia grega, em checo, 1923;
Fundamentos filosóficos da teoria do direito e do Estado de Cícero,
também em checo, 1924), que, mais recentemente, tratou ainda
problemas de caráter sistemático (Teoria da ciênciajurídica, em
checo, 1946).
Poder-se-iam recordar ainda os trabalhos de Em. Svoboda (O
homem e a sociedade, em checo, 1926; A democracia como
concepção da vida e do mundo, também em checo, 1927, etc.) e de
outros, que omitimos por brevidade.
***
Damos agora um breve aceno aos povos que compõem a
atual luguslávia. Junto as Sérvios, uma certa reflexão filosófica
sobrfe o direito delinea-se, porém sem muita originalidade, no início
do século XIX, paralelamente à revolução que libertou a nação
sérvia dos Turcos (1804/1815).
Os autores desse período (B. Grujovic, J .Stejic) seguiram em
geral as doutrinas do direito natural. Sucessivamente se acrecenta a
influência da escola hegeliana e de outras, como a escola histórica
do direito, e a italiana, que teve por Chefe Mancini.
Como primeira obra sistemática de Filosofia do direito,
podese indicar o Tratado de T. Filipovic (1819/1876); Filosofia do
direito, 2. ed., 1839, 1863), que se inspira nas doutrinas germânicas.
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HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
Semelhante inspiração nota-se ainda na obra de D. Matic
(1821/ 1884), Princípios de dieito racional público, 1851).
***
Entre os croatas, merecem menção M. Mikulcic, autor de uma
Enciclopédia da ciência jurídica (1869), e especialmente V. Bogisic
(1834/1908), que, seguindo o método histórico-etnográfico, recolheu
os costumes jurídicos da Eslávia meridional.
Entre os eslovenos emerge, no início do século XVIII, o
estadista F. Pe1zhofer, que em várias obras (latinas) buscou
conciliar a Ética e a Política sobre base religiosa. Durante o século
XIX, tiveram certo acolhimento as teorias jusnaturalistas,
frequentemente em conexão com ideologias dos partidos políticos.
Desse movimento de idéias participou, dentre outros, G.
Krajnc (Krainz - 1821/1875), conhecido especialmente pelas
atividades que exerceu na elaboração do direito civil austríaco
(Sistema do direito privado austríaco, edição póstuma, em alemão,
1885).
Manifestações muito notáveis nas doutrinas jurídicas,
políticas e sociais teve ainda o pensamento neotomístico G. E. Krek
(O socialismo, em esloveno, 1901), A. Usenicnik (Sociologia, em
esloveno, 1910, etc.).
***
Nos anos mais próximos de nós, os estudos de Filosofia do
direito fizeram na luguslávia progressos consideráveis.
Entre os pensadores que trataram com independência e
espírito cótico os problemas desta disciplina, recordemos: G. Tasic
(A teoria moderna sobre conceito de direito subjetivo, em sérvio,
1926, Le réalisme et normativisme dans la science juridique, 1927,
O direito positivo como valor e o direito natural, em italiano, 1930,
Introdução à ciência do direito, em sérvio, 1933; Justice, intérêt
général et paix sociale, 1938); S. Jovanovic (O
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GIORGIO DEL VECCHIO
Estado, em sérvio, 1922; Platão, Maquiavel, Burke, Marx., em
sérvio, 1935); J. Peric (Um olhar para a escola evolucionista
na ciência jurídica, em sérvio, 1908; De la matérialisation des
droits privés, 1915; Sobre as escolas no direito, em sérvio,
1921; L'injluence du temps sur les rapports de droit, 1927; Os
elementos não jurídicos no direito, em italiano, 1934; e outros
escritos em prol do ideal da paz). L. Pitamic, que deu várias
contribuições à teoria pura do direito, segundo o
posicionamento de Kelsen; T. Givanovic (Sisteme de la
philosophie juridique synthétique, 1927; Les problemes
fondamentaux du droit criminel, 1929); S. Frank (Vida, direito
e filosofia, em croato,
1924); N. Katicic (Estado e direito, emcroato, 1927); B.
Markovic (Éssai sur les rapports entre la notion de justice et l'
élaboration du droit privé positif, 1930); B. Furlan (Os
princípios naturais do direito, em esloveno, 1931; O problema
da realidade do direito, em esloveno, 1932, etc.).
Podem, enfim, ser mencionadas, aqui, as obras
publicadas na Iugoslávia por dois pensadores russos para lá
emigrados, T. Taranovski (1875/1936); Enciclopediajurídica,
em sérvio, 1923, já publicada em russo, em 1917) e E.
Spectorski (História dafilosofia social, em esloveno,
1932/1933,2 v. ***
Na Bulgária a Filosofia do direito foi representada
principalmente por V. Ganev, que em numerosos trabalhos
submeteu a aguda análise a natureza e a formação das noções
jurídicas (normativas), distinguindo-as das noções científicas.
As noções jurídicas, segundo Ganev, consituem síntese
especial da realidade social, e pelos elementos ideais próprios
tendem a determinar a evolução futura desta realidade. De seus
escritos, além daqueles em língua búlgara (Noções jurídicas, 1904;
Relações jurídicas e institutos jurídicos, 1911; Curso de teoria
geral do direito, 1921/1926, etc.), recordamos os seguintes, editados
em italiano e em fracês: O Estado como realidade coletiva
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HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
(1922); Síntese científica e síntese jurídica (1926); Les notions
juridiques (1930); Les sources du droit positif(1934); Lafinalité et
le droit (1938).
Valiosos são também os ensaios de Z.Torbov: Filosofia do
direito ejurisprudência (1930); O princípio fundamental do direito
- Diréito e justça (1940); Racionalismo e empirismo na ciência
jurídica (1943); Direito natural e filosofia do direito (1947); e o de
A.llkov, O problema da essência do direito (1940).
Entre os juristas búlgaros que se elevaram à consideração de
ordem filosófica, notamos o intemacionalista M. Popoviliev (Enci
clopédia e teoria geral do direito, 1905; Direito e justiça na
sociedade internacional, 1910; Naturezajurídica do direito in
ternacional, 1910; e o civilista L. Dikov (O direito civil e o futuro,
1931; Norma jurídica e vontade privada, 1934, estes dois trabalhos
editados em italiano).
Outros ensaios, concementes a várias matérias, mas não sem
pertinência com a Filosofia do direito, escreveram recentemente S.
Bolcev, W. Alexiev, L. Vladikin, S. Zancov, I. Apostolov,
D.B.Rainov, D. Liulinov, T. Gabrovski, etc.15
15 Estudiosos de todas, ou de quase todas, as nações têm participado das atividades do
Instituto Internacional de Filosofia do Direito e de Sociologia Jurídica, fundado, como
acima dissemos, em Paris, em 1933. Ele tem publicado trabalhos de suas três seções (os primeiros dos quais se deu em Paris, e a terceira, em Roma, em 1937)
sobre os seguintes temas: Le probleme des sources du droit positif(19~4), Droit, morale,
moiurs (1936), Le but du droit: bien commun, justice, sécurité (1938, edição síria). A atividade desse Instituto, como de todas as outras organizações análogas, foi
interrompida durante a Segunda Guerra Mundial. Mas a necessidade
da colaboração internacional, especialmente no campo dos estudos filosófico-jurí dicos, é tão manifesta, pela índole mesma dos problemas tratados, que essa coope
ração deverá, sem dúvida, ser retomada e desenvolver-se sobre bases ainda mais
amplas e com meios ainda mais eficazes do que os usados até agora.
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