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7/23/2019 GINZBURG, C. Sinais_raízes de um paradigma indiciário
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CARW GINZBURG
MIWS, EMBLEMAS, SINAIS
MORFOWGIA E HISTORIA
Traducao:
FEDERICO CAROITI
201 edicao
4fJ reimpressao
~ H_~" _
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Copyright © 1986 by Giulio Einaudi editore s. p. a., Torino
Titulo original:
Mitti emhlemi spie: morfotogta e slana
Capa:
joao Baptista da Costa Aguiar
sobre detalhe de 0 bibliotecario;
6leo sobrc tela de Giuseppe Arcimboldo
(Copyright ~ Livrustkammaren - Skoklosters Slott.
Acervo: Museu Hallwylska. Foto: Samuel Uhrdin)
Traducao das passagens em Iatlm:
Fernando Pia de Almeida Fleck
iNDICE
Preparacao.
Mario vilela
Revisao:
Denise Santos
G'enulino Santos
Prefacio 7
Ginzburg, Carlo, 1939
Mttos, emblemas, smais. morfologta c historia . I Carlo
Ginzburg uadccao. Federico (itroni, - S~O Paulo:
Companhia das tetras, 1')l:!9
Feiticaria e piedade popular: Notas sobre urn processo mo-
denense de 1519 15
De A. Warburg a E. H. Gombrich: Notas sobre urn problema
de metodo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 41
o alto e 0baixo: 0 tema do conhecimento proibido nos se-
Dadu~ lnternacicnats de Cataloga(ilo ill! Pubhcacao (cu')
(Camara Rra.~lleira ck> Ltvro, SP, Br a~iI)
ISIN 978-8;-7164-038-2
1, Feili<,;ari;. 2, Icilia - Ovthzacao 3. Milologia 4, Sigr=;
c siOlbolu~ I. Titulo
culos XVI e XVII 95
Ticiano, Ovfdio e os codigos da figura~iio erotica no seculo
89-0396
cuu-915
-133.4
-291 13
-30<i4
XVI 119
lndk'",~ para catalogc sistemitico
1 Feiucarta : Ocultismo 133.4
2 Italia r Cultura Htstorta 945
3 Milo Cultura Sociologia 31)6,4
4, Mitologia 291.13
5. Sinais e stmbolos : Cnltura : Sociologia 306.1
Sinais: Ralzes de urn paradigma indiciario 143
Mitologia germanica e nazismo: Sobre urn velho livro de
Georges Dumezil 181
Freud, 0 homem do. lobos e os lobisomens 207
Nota bibliograflca 219
2011 Notas 221
Todos os direitos desta edicao reservados aEDITORA SCHWAII.CZ [:mA.
Rua Bandeira Paulista, 702, cj. 32
04532-002 - Sao Paulo - sp
Telefone: (11) 3707-3500
Fax, (11) 3707-3501
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SINAIS
RAtzES DE UM PARADIGMA INDICIARIO
Deus esta no particular.
A. Warburg
Ur n objeto que fa la da perda, da destruicac, do
desaparecimento de objeros. Na o fala de si. Fala
de outros. Incluira tambem a des?
] . J o h n s
Nessas paginas tentarei mostrar como, por volta do final do
seculo XIX, emergiu silenciosamente no ambito das ciencias hurna-
nas urn modelo epistemo16gico (caso se prefira, urn paradigma ')
ao qual ate agora nao se prestou suficiente arencao. A analise desse
paradigma, amplamente operante de fato, ainda que flaD teorizado
explicitamente, talvez possa ajudar a sair dos .incdmodos da con-
traposicao entre "racionalismo" e "irracionalisrno".
I.
1. Entre 1874 e 1876, apareceu na Zeitscbrijt lu r bildende
Kunst uma serie de artigos sobre a pintura italiana. Eles vinham
assinados por urn desconhecido estudioso russo, Ivan Lermolieff,
e fora urn igualmente desconhecido Johannes Schwarze que os
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traduzira para 0 alernao. Os artigos propunham urn novo metodo
para a arribuicso dos quadros antigos, que suscitou entre as his-
toriadores da arte reacoes contrastantes e vivas discussoes. Sornen-
te alguns anos depois, 0autor tirou a dupla mascara na qual se
escondera. De Iato, tratava-se do italiano Giovanni Morelli (sobre-
nome do qual Schwarze e uma copia e Lermolieff a anagrama, ou
quase}. E do "metodo morelliano" os historiadores da arte falam
correntemente ainda hoie.'
Vejamos rapidamente em que consistia esse metoda. Os mu-
seus, dizia Morelli, estao cheios de quadros atribuidos de maneira
incorreta. Mas devolver cada quadro ao seu verdadeiro autor e .
dificil: muitfssimas vezes encontramo~nos frente a obras nao-assi-
nadas, talvez repintadas Oil nurn rnau estado de conservacao. Nes-
sas condicoes, e indispensavel poder distinguir os originais das
capias. Para tanto, porem (dizia Morelli), e preciso ndo se basear,
como normalmente se faz, em caracteristicas mais vistosas, portan-
to mais facilmente imitdveis, dos quadros: os olhos erguidos para
o ceu dos personagens de Perugino, 0 sorriso dos de Leonardo, e
assim por diante. Pelo contrario, 6 necessario exarninar os ponnt:-
nares mais negligenciaveis, e menos influenciados pelas caracterfs-ticas da esccla a que 0 pintor pertencia: os lobules das orelhas,
as unhas, as formas dos dedos das maos e dos pes. Dessa maneira,
Morelli descobriu, e escrupulosamente catalogou, a forma de ore-
lha propria de Botticelli, a de Cosme Tura e assirn por diante:
traces presentes nos originais, mas nao nas copies. Com esse meto-
do, propos dezenas e dezenas de novas arribuicoes ern alguns dos
principais museus da Europa. Freqiientemente tratava-se de atti-
buicoes sensacionais: numa Venus deitada conservada na galerie
de Dresden, que passava por uma c6pia de urn. pintura perdida de
Ticiano feita por Sassoferrato, Morelli identificou uma das pou-
quissimas obras seguramente aut6grafas de Giorgione.Apesar desses resultados, 0metodo de Morelli foi muito cri-
ticado, talvez rambem pela seguranca quase arrogante com que era
propos to. Posteriormente foi julgado mecsnico, grosseiramente po-
sitivista, e caiu em descredito.' (Por outro lado, e possivel que
muitos estudiosos que falavam dele com desdem continuassem a
usa-lo tacitamente para as suas atribuicoes.) 0renovado interesse
pelos trabalhos de Morelli e merito de Wind, que viu neles urn
exemplo tipico da atitude moderna em relacao a obra de arte -
atitude que leva a apreciar os pormenores, de preferencia it obra
em seu conjunto. Em Morelli existiria, segundo Wind, uma exa-
cerbacso do culto pela imediaticidade do genic, assimilado por ele
na juventude, no contato com as cfrculos romanticos berlinenses.'
: e uma interpretacao pouco convincente, visto que Morelli nio se
colocava problemas de ordem estetica (0 que depois the foi censu-
rado) , mas sim problemas preliminares, de ordem filologica," Na
realidade, as implicacoes do rnetodo proposto por Morelli eram
outras, e muito mais ricas. Veremos que 0 proprio Wind esteve
muito proximo de intuf-las.
2 . " Os l iv ro s d e M or elli" - es cr ev e W in d - " ter n u rn
aspecto bastante ins61ito se comparados aos de outros historiado-
res da arte. Eles estiio salpicados de ilustracoes de dedos e orelhas,
cuidadosos registros das minticias caracterfsticas que traem a pre-
senca de urn determinado artista, como urn criminoso e traido
pelas suas impress6es digitais .. , qualquer museu de arte estu-
dado por Morelli adquire imediatamente 0aspecto de um museu
criminal ... ". Essa comparacao foi brilhantemente desenvolvida
por Castelnuovo, que aproximou 0 rnetodo lndicidrio de Morelli
ao que era atribuido, quase nos rnesrnos anos, a Sherlock Holmes
polo seu criador, Arthur Conan Doyle.' 0 conhecedor de arte ecornparavel ao detetive que descobre 0 autor do crime (do qua-
dro) baseado em indfcios imperceptfveis para a maioria. Os exem-
plos da perspicacia de Holmes ao interpretar pegadas na lama,
cinzas de cigarro etc. sao, como se sabe, incontaveis. Mas, para se
con veneer da exatidio da aproximacao proposta por Castelnuovo,
veja-se urn con to como "A caixa de papelao" (1892), no qual
Sherlock Holmes literalmente "da uma de Morelli". 0 caso come-
ca exatamente com duas orelhas cortadas e enviadas pelo correio
a uma inocente senhorita. Eis 0 conhecedor com maos a obra:
Holmes
1 4 4 1 4 5
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se interrompeu e eu [Watson] fiquei surpreso, olhando-o, ao ver
que ele fixava com singular atencao a perfil da senhorita. Por
urn segundo £oi possfvel ler no seu rosto ansioso surpresa e saris-
falJio ao mesmo tempo, ainda que, quando ela se virou para
descobrir 0 motivo do seu silencio, Holmes tivesse se tornado
impassfvel como sempre,"
Mais adiante, Holmes explica a Watson (e aos leitores) 0
percurso do seu brilhante trabalho mental:
Na sua qualidade de medico 0 senhor nao ignorers. Watson, que
nac existe parte do corpo humane que ofereca maiores variacoes
do que uma orelha. Cada orelha possui caracterfsticas propria-
mente sues e difere de todas as outras. Na Reoista Antropol6gica
do ana passado 0 senhor encontrara sabre este assunto duas bre-
ves monografias de minha lavra. Portanto, examinei as orelhas
contidas na caixa com olhos de especialista e observei acurada-
mente as suas caracterfsticas anatomicas. Imagine entjio a minha
surpresa quando, pousando as olhos sabre a senhorita Cushing,
notei que a sua orelha correspondia exatamente a orelha feminina
que havia examinado pouco antes. Njio era possivel pensar numa
coincidencia. Nas duas existia 0 mesmo encurtamento da aba, a
mesma ampla curvatura do lobule superior, a mesrna circunvo-
luciioda cartilagem interna. Em todos as pontos essenciais trata-va-seda mesma orelha. Naturalmente percebi de imediato a enor-
me importancia de uma tal observecso. Era evidente que a vitima
devia ser uma parente consangiiinea, provavelmente muito pro-
xima, da senhorita... 9
atrafram a atenciio dos estudiosos 12 para uma passagern, por muito
tempo negligenciada, do famoso ensaio de Freud 0 Moi5es de
Michelangelo (1914). No comeco do segundo paragrafo, Freudescrevia:
Muito tempo antes que eu pudesse ouvir falar de psicanalise,
vim a saber que urn especialista de arte russo, Ivan Lermolieff,
cujos prirneiros ensaios foram publicados em alemjioentre 1874
e 1876, havia provocado uma revolucgo nas galerias da Europarecolocando em discussao a atribuiciio de muitos quadros a cada
pintor, ensinando a distinguir com seguranca entre as imitac;5es
e as originals, e construindo novas individualidades artfstieas a
partir daquelas obras que haviam sido liheradas das suas atri-
bulcoes anteriores. Ele chegou a esse resultado prescindindo da
impressao geral e dos traces fundamentais da pintura, ressaltando,
pelo contrario, a importancia caracterfstica dos detalhes secunda-
rios, das particularidades insignificantes, como a conformacio das
unhas, doe lobos auriculares, da aureola e outros elementos que
normalmente passavam desapercebidos e que 0 copista deixa de
imitar, ao passo, porem, que cada artista as executa de urn modo
que 0 diferencia. Foi depois muito interessante para mim saber
que sob 0 pseudonimo russo escondia-se urn medico Italiano de
nome Morelli. Tendo se tornado senador do reino da Italia, Mo-
relli morreu em 1891. Q'<i_o_9.ue0seu metodo esta estreitamente
aparentado i t tecnica da psicanalise medica. Esta tambem tern par
~abito enetrar em coisas concretas e ocultas atraves de el~-
t~uco nota as ou desaperce 1 o~~_d_o!_~~~~i _!.q_~__Q_t!_~'refuB2s"da nossa observaC;iio(auch diese ist gewohnt, aus gering geschatz-
te n oder nieht beachtenten Ziigen, aus dem Abhub - dem
"refuse" - der Beobachtung, Geheimes und Verbotegenes zuerraten).»
desse paralelismo."
preciosa intuicao de
3. Veremos em breve as implicacoes
Antes, porem, sera born retomar uma Dutra
Wind:
A alguns dos cnncos de Morelli parecia esrranho 0 ditame de
que "a personalidade deve ser procurada onde 0 esforco pessoal
e menos intenso". Mas sobre este ponto a psicologia moderna
esraria certamente do lade de Morelli: os nossos pequenos gestosinconsdentes revelam 0 nosso carater rnais do que qualquer ati-
tude formal, cuidadosamente preparada por nos.'!
"Os nossos pequenos gestos inconscientes ... ": a generica
expressao "psicologia moderna" pode ser diretamente substituida
pelo nome de Freud. As paginas de Wind sobre Morelli, de fato,
o ensaio sobre 0 Maish de Michelangelo num primeiro mo-
menta aparecera anonimo: Freud reconheceu sua paternidade 50-
mente na ocasiao de inclul-lo em suas obras completas. Supos-se
que a tendencia de Morelli para apagar, ocultando-a sob pseudo.nimos, sua personalidade de autor acabasse de certo modo por
contagiar tambem a Freud; apresentaram-se hip6teses mais au
menos aceitaveis sabre 0significado dessa convergencia." 0 certo
e que, roberto pelo veu do anonimato, Freud declarou de maneira
ao mesmo tempo expIfcita e reticente a consideravel influencia
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inrelectual que Morelli exerceu sabre ele, numa fase muito ante-
rior a descoberta da psicanalise ("lange bevor ich etwas von der
Psychoanalyse horen kon~'t'l' .. "). Reduzir essa influencia, como
se fez, apenas ao ensaio soB,\e 0 Moish de Michelangelo, au em
geral aos ensaios sobre ternas ~gados a historia da arte," significa
restringir indevidamente 0 alcance das palavras de Freud: "Creio
que 0 seu metodo (de Morelli) es~ estreitarncnte aparentado a
tecnica da psicanalise medica". Na realidade, toda a declaracaode Freud que citamos garante a Morelli urn lugar especial na his-
toria da formacao da psicanalise. De fato, trata-se de uma conexao
documentada, e nao conjetural, como a maior parte dos "antece-
dentes" au "precursores" de Freud; alern do mais, 0encontro com
as textos de Morelli ocorreu, como ja dissemos, na fase "pre-ana-
Utica" de Freud. Temos de tratar, portanto, com urn elemento
que contribuiu diretamente para a cristalizacao da psicanalise,
e niio (como no caso da pagina sobre 0 sonho de J. Popper
"Lynkeus", lembrada nas reedicoes da Traumdeutungt" com uma
coincidencia encontrada posteriormente, quando ja se dera a des-
coberta.
4. Antes de tentar enrender 0 que Freud pode extrair da
leitura dos textos de Morelli, sera oportuno determinar 0momen-
to em que ocorreu essa leitura. 0momenta, au melhor, as rna-
mentos, vista que Freud fala de dois encontros distintos: "muito
tempo antes que eu pudesse ouvir falar de psicandlise, v im a
saber que urn especialista de arte russo, Ivan Lermolieff ... ":
"Poi depois muito interessante para mim saber que sob 0pseudo.
nimo russo escondia-se urn medico italiano de nome Morelli ...
A primeira afirmacao e datdvel apenas hipoteticamente. Como
terminus ante quem podemos colocar 1895 (ano da publicacao
dos Estudos sobre a histeria de Freud e Breuer) ou 1896 (quando
Freud usou pela primeira vez 0 termo "psicanalise"}." Como ter-
minus post quem, 1883. Em dezembro daquele ano, de faro, Freud
contou nurna longa carta a noiva a "dcscobena da pintura" feita
durante uma visita it galeria de Dresden. No passado, a pinrura
nao 0 interessara; agora, escrevia, "tirei de mim a barbatie e come-
148
cei a admirar"." E diffcil supor que, antes dessa data, Freud fossc
atrafdo pelos textos de urn desconhecido historiador da arte ; e
perfeitamente plauslvel, pelo contrario, que se pusesse a le-los
pouco depois da carta a noiva sobre a galeria de Dresden, visto
que os primeiros ensaios de Morelli reunidos em livro (Leipzig,
1880) referiam-se as obras dos mestres italianos nas galerias deMunique, Dresden e Berlim."
o segundo encontro de Freud com os textos de Morelli e da-
tavel com uma precisao talvez maior. 0 verdadeiro nome de Ivan
Lermolieff tornou-se publico pela primeira vez no frontispfcio da
rraducao inglesa, publicada em 1883, dos ensaios que acabamos
de citar: nas reedicoes e traducoes posteriores a 1891 (data da
morte de Morelli) aparecem sempre tanto 0nome como 0pseudo-
nimo.P Nao e de se excluir que urn desses volumes chegasse antes
ou depois a s maos de Freud; mas provavelmente ele veio a co-
nhecer a identidade de Ivan Lermolieff por puro acaso, em setem.
bro de 1898, bisbilhotando numa livraria milanesa. Na biblioteca
de Freud conservada em Londres, de fato, aparece urn exemplar
do livro de Giovanni Morelli (Ivan Lermolieff), Da pintura ita-liana. Estudos bistoricos criticos. As galerias Borghese e Doria
Pamphili em Roma, Miliio, 1897. No frontispfcio est. escrita a
data da aquisicao: Miliio, 14 de setembro.! A iinica estada mila.
nesa de Freud ocorreu no outono de 1898." Naquele momento,
por outro lado, 0livro de Morelli tinha para Freud mais urn outro
motivo de interesse. Havia alguns meses, ele vinha se ocupando
dos lapsos: pouco tempo antes, na Dalmacia, oeorreu 0 episodic,
depois analisado na Psicopatologia da vida cotidiana, em que ten.
tara inutilmente Iembrar 0nome do autor dos afrescos de Orvie-
to. Ora, tanto 0 verdadeiro autor (Signorelli) como os autores
fictfcios que num primeiro momento vieram it mem6ria de Freud
(Botticeili, Boltraffio) eram mencionados no livro de Morelli."
Mas 0 que pode representar para Freud - para 0 jovem
Freud, ainda muito distante da psicanalise - a Ieitura dos ensaios
de Morelli? E 0proprio Freud a indica-lo: a proposta de urn me.
~~dointerpretativo centrado sobre os residuos, sobre os dadO's
rnarginaia, considerados reveladores. Desse modo, pormenffieS'fl(;r.
149
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malmente consider-ados sem importancia, ou ate triviais, "baixos",
forneciam a chave para aceder aos produtos mais elevados do espl-
rito humano: "as meus adversarioa", escrevia ironicamente Mo-
relli (uma ironia talhada para agradar a Freud), "comprazern-se
em me julgar como alguem que nso sabe ver a sentido espiritual
de uma obra de arre e por isso da uma importancia particular a
meios exteriores, como as formas d a mao, da orelha e ate, borri-
bile dictu, de um objeto tao antipatico como as unhas"." Morelli
tarnbem poderia se apropriar do lema virgiliano care a Freud, es-
colhido como epigrafe para A interpretacao de sonbos: "Flectere
si nequeo Superos, Acheronta movebo" ISe nao posso dobrar os
poderes superiores, moverei 0 Aqueronte IF' AMm disso, esses
dados marginais, para Morelli, eram reveladores porque consti-
tuiarn os mementos em que 0 contrale de artista, ligado a tradi-
~ao cultural, distendia-se para dar lugar a traces puramente indio
viduais, "que lhe escapam sem que ele se de conta" .26 Ainda mais
do que a alusao, nao excepcional naquela epoca, a uma atividade
inconsciente," impressiona a identiflcacao do micleo Intimo da in-
dividualidade artistica com os elementos subtraidos ao controle daconsciencia,
em medicina; Conan Doyle havia sido medico antes de dedicar-sc
a literatura. Nos tres cases, entreve-se 0modele da semiotica me-
dica: a disciplina que perrnite diagnosticar as doencas inacessiveis
a observacao direta na base de sintomas superficiais, a s vezes
irrelevantes aos olhos do leigo - 0 doutor Watson, por exemplo.
(De passagem, pode-se notar que a dupla Holmes - Watson, 0de-
tetive agudlssimo e 0medico obtuse, represents 0desdobramento
de urn. figura real: urn dos professores do jovem Conan Doyle,
famoso pelas suas extraordinarias capacidades diagnosticas.) 30 Mas
nao se trata simplesmente de coincidencias biograficas. No final
do seculo X IX - maio precisamente, na decada de 1870.80 _,
cornecou a se afirmar nas ciencias humanas urn paradigms indi-
dado baseado [ustamente na semiotics. Mas as suas raizes eram
multo antigas.
II.
1. Por milenios 0homem foi cacador. Durante inumeras per.seguicoes, de aprendeu a reconstruir as formas e movimentos das
presas invisfveis pelas pegadas na lama, ramos quebrados, bolotas
de esterco, tufos de P elO S I plumas emaranhadas, odores estagna-
dos. Aprendeu a farejar, registrar, interpretar e classificar pistas
infinitesimais como fios de barba. Aprendeu a fazer operacdes men-
rais complexas com rapidez fulminante, no interior de urn denso
bosque ou numa clareira cheia de ciladas.
Geracoes e geracoes de cacadores enriqueceram e transmiri-
ram esse patrimonio cognoscitivo. Na faIta de uma documentacar,
verbal par. se par ao lado das pinturas rupestres e dos artefatos,
podemos recorrer as narrativas de fabulas, que do saber daquelesremotos cacadores transmitem-nos as vezes urn eco, mesmo que
tardio e deformado. Tres irmlios (narra uma tabula oriental, di-
fundida entre os quirquizes, tartaros, hebreus, turcos ... ) 31 encon-
tram urn homem que perdeu urn camelo - au, em outras varian-
res, urn cavalo. Sem hesitar, descrevem-no para ele: e branco,
cego de urn olbo, tern dois odres nas costas, urn cheio de vinho, 0
5. Vimos, portanto, delinear-se uma analogia entre os meto-
dos de Morelli, Holmes e Freud. Do nexo Motelli-Holmes e Mo-
relli-Freud ja falamos. Da singular convergencia entre os proce-
dimentos de Holmes e os de Freud por sua vez falou S. Marcus."
o proprio Freud, alias, manifestou a urn paciente ("a hamem dos
lobos") 0seu interesse pelas aventuras de Sherlock Holmes. Mas,
a urn colega (T. Reick) que aproximava 0 rnetodo psicanalitico ao
de Holmes, falou antes com admiracao, na primavera de 1913,
das tecnicas atributivas de Morelli. Nos tres casas, E!stas taJyez
infinitesimajs permjtem captar urna realjgade mais profunda de
outra forma jnatiogiyel. Pistas: mais precisamente, sintomas (no
caso de Freud), indicios (no caso de Sherlock Holmes), signos
pict6ricos (no caso de Morelli)."
Como se explica essa tripla analogia? A resposta, a primeira
vista, e muito simples. Freud era urn medico; Morelli formou-se
150 151
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outre cheio de oleo. Portanto, vitam-no? Nao, naD 0 viram. Entao
sao acusados de roubo e submetidos a julgamento. E, para os
irmaos, 0 triunfo: num instante demonstram como, atraves de
indicios minimos, puderam reconstruir 0 aspecto de urn animal
que nunea vitam.
Os tres irmaos sao evidentemente depositaries de uni~
de tipo ~esmo que nao sejarndescritos como cac;a~-
res). Q _ q _ u ~ _ 9 t . laC i e r i za esse saber e a capacidade de, a partir de
dados apare~temente n eg lig c::n div ers ,- 're m o n " t i i- - a u m a r e il io il- a e------ . . . .-- - .- . - - . .- ....-~ -" - _ , .. _",--_ .. ' . ' . - - - - " - ' ~ ~ " - -complexa flaD .~xpe;t!,m~ijf~ve,Idlre~amente.Pode-se acrescentar que
e~~~;d~d~~ sao se;"pre dis"~~t~;"pelo ('-b~-;;rvador de modo tal a dar
lugar a uma seqiiencia narrativa, cuja formula~io mais simples po-
deria ser ".lguem passou por la". Talvez a propria ideia de narra-
~iio (distinta do sortilegio, do esconjuro ou da invoca~ao) 3l tenha
nascido pela primeira vez numa sociedade de ca~adores, a partir da
experiencia da decifracao das pistas. 0 fato de que as figuras retori-
cas sobre as quais ainda hoje funda·se a linguagem da decifra~ilo
venatoria _ a parte pelo todo, 0efeito pel. causa - silo recondu-
ziveis ao eixo narrativo da metonimia, com rigorosa exclusao da
metafora,33 re£orc;s.ria essa hip6tese - obviamente indemonstravel-o cacador teria sido 0primeiro a "narrar urna historia" porque era
o unico capas de let, nas pistas mudas (se nao imperceptiveis)
deixadas pela presa, uma serie coerente de eventos.
"Decilrar" au "[er" as pistas dos animais sao metaforas. Sen-
timo-nos tentados a toma-les ao p e da letra, como a condensacac
verbal de urn processo hist6rico que levou, num espaco de tempo
talvez longuissimo, a invenciio da escrita. A mesma conexao e
formulada, sob forma de mito etiologico, pela tradicsc chinesa que
atribula a invencao da escrita a urn alto [unclonarto, que observara
as pegadas de urn passaro imprimidas nas margens arenosas de urn
rio." Por outro lado, se se abandona 0 ambito dos mitos e hip6-
teses pelo ci a historia documentada, f ica-se impressionado com as
inegaveis analogias entre 0 paradigma venat6rio que delineamos
e 0 paradigms irnpllcito nos textos divinat6rios mesopotamicos,
redigidos a partir do terceiro rnilenio a.C. em diante." Ambos
pressup6em 0 minucioso reconbecimento de uma realidade talvez
Infima, para descobrir pistas de eventos nio diretamente experi-
mcntaveis pelo observador. De urn Iado, esterco, pegadas, pelos,
plumas; de outro, entranhas de animais, gotas de oleo na agua,
astros, movimentos involuntarios do corpo e assim por diante. E
verdade que a segunda serie, a diferenca da primeira, e pratica-
mente ilimitada, no sentido de que tudo, ou quase tudo, podia
tornar-se objeto de adivinhacao para os adivinhos rnesopotamicos.
Mas a principal d ivergencia aos flOSSOS olhos e outra: 0 fato de
que a adivinha\ao se voltava para 0 futuro, e a decifracao, para 0
passado (talvez urn passado de segundos). Porem a atitude cognos-
citiva era, nos dois casos, muito parecida; as operacoes intelecruais
envolvidas - analises, comparacoes, classificacoes -, Iorrnalmen-
te identicas. E certo que apenas formalmente: 0contexte social
era rotalmente diferente. Notou-se, em particular," como a inven-
,ao da escrita modelou profundamente a arte divinat6ria rnesopo-
tamica, As divindades, de f ato, era atribuida, entre as outras prer-
rogativas dos soberanos, a d e se comunicar com as suditos atraves
de mensagens escritas - nos astros, nos corpos humanos, em toda
parte -, que os adivinhos tinham a tarefa de decifrar (ideia essa
destinada a desembocar na imagem multimilenar do "livro da na-
tureza"). E a identificacao da arte divinat6ria com a decifracao
de caracteres divinos inscri tos na realidade era reforcada pelas
caracteristicas pictograficas da escrita cuneiforme: ela tarnbem,
como a arte divinatoria, designava coisas atraves de coisas,"
Tambem urn. pegada indica urn animal que passou. Em corn-
paracao com a concretude da pegada, da pista materialmente en-
rendida, 0pictograrna j a representa urn incalculavel passo a frente
no caminho da abstracso intelectual. Mas as capacidades abstrati-
vas, pressupostas na introducao da escrita pictografica, sao por
Sua vez bern poucas em comparacao com as exigidas pela passagern
para a escrita fonetica. De fato, elementos pictograficos e foneti-
cos continuaram a coexistir na escrita cuneiforme, assim como na
literatura divinatoria mesopotarnica a progressiva intensificacao
dos traces apriorisricos e generalizantes nao apagou a tendencia
f undamental de inferir as causas a partir dos efeitos." E essa atitu-
de que explica, por urn lado, a infiltra~io na lingua da arte divi-
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natoria mesopotsmica de termos tecnicos extraldos do lexico juri-
dico: por outro, a presence nos tratados divinatorios de rrechos
de fisiognomonia e semiotica medica."
Depois de urn longo rodeio, portanto, vohamos a semiotica.
Encontrarno-la incluida numa constelacdo de disciplinas (mas 0
termo e evidentemente anacronico) de aspecto singular. Poder-se-ia
fiear tentado a contrapor duas pseudociencias como a arte divina-
toria e a fisiognomonia a duas ciencias como a direito e a medici-
na _ atribuindo a heterogeneidade da aproximaciic a distancia
espacial e temporal das sociedades de que estamos falando. Mas
seria uma conclusao superficial. Algo ligava realmente essas for-
mas de saber na antiga Mesopotamia (se exc1uirmos a adivinbacao
inspirada, que se fundava em experiencias de tipo extatico):" uma
atitude orientada para a analise de cases individuals, reconstrui-
veis somente atraves de pistas, sintomas, indicios. as pr6prios
textos de jurisprudencia mesopotamicos nao consistem em coleta-
neas de leis ou ordenacoes, mas na discussdo de urna casuistica
concreta," Em surna, pode-se falar de paradigma indiciario au di-
vinatorio, dirigido, segundo as formas de saber, para 0 passadc,o presente ou 0 futuro. Para 0 futuro - e tinha-se a arte divina-
toria em sentido proprio -r-: para 0 passado, 0 presente e 0 futu-
ro _ e tinha-se a semiotica medica na sua dupla face, diagnOstica
e prognostics -; para 0 passado - e tinha-se a [urisprudencia.
Mas, por tras desse paradigma indiciario au divinatorio, entreve-
se 0 gesto talvez mais antigo da historia intelectual do genera
humano: 0do cacador agachado na lama, que escrura as pistas
da presa.
2. Tudo 0que dissernos ate aqui explica como uma diagnose
de traumatismo craniano, formulada a partir de urn estrabismo
bilateral, podia se encontrar num tratado de arte divinat6ria me-
sopotamico; 42 de modo mais geral, explica como apareceu histori-
camente urna constelacao de disciplinas centradas na decifra~ao
de signos de vdrios tipos, dos sintomas as escritas. Passando das
civilizacoes rnesopotamicas para a Grecia, essa constelacao mudou
profundamente, em seguida a constituicao de clisciplinas novas,
154
como a historiografia e a filologia, e a conquista de uma nova
autonomia social e epistemologies por parte das antigas discipli-
nas, como a medicina. 0 corpo, a Iinguagem e a historia dos
homens foram subrnetidos pels primeira vee a uma investigacao
sem preconceitos, que por principia excluia a intervencao divina.
Dessa virada decisiva, que caracterizou a cultura da polis, nos
somos, como e obvio, ainda herdeiros. Menos 6bvio e 0 fato de
que nessa virada urn papel de primeiro plano tenha sido desempe-
nhado por urn paradigms definivel como semi6tico ou indicidrio."
Isso e particularmente evidente no caso da medicina hipocratica,
que definiu seus metodos refletindo sobre a nocao decisiva de sin.
toma (semeionv, Apenas observando atentarnente e registrando
com extrema rninticia todos os sinromas - afirmavam as hipocra.
ticos -, e possfvel elaborar "historias" precisas de cada doenca:
a doenca e, em si, inatingivel. Essa insisrencia na natureza indi-
ciaria da medicina inspirava-se, com todas as probabllidades, na
contraposicso - enunciada pelo medico pitag6rico Alcmeon _
entre a imediatez do conhecimento divino e a conjetutalidade do
humane." Nessa negacao da transparencia da realidade, impllcitalegitirnacao encontrava urn paradigma indiciario de fato operante
em esferas de atividades muito diferentes. Os medicos, os histo-
riadores, os politicos, os oleiros, as carpinteiros, os marinheiros,
os cacadores, os pescadores, as mulheres: sao apenas algumas entre
as categorias que operavam, para os gregos, no vasto territ6rio do
saber conjetural. as confins desse territorio, significativamenre go-
vernado por uma deusa como Metis, a primeira esposa de Jupiter,
que personificava a adivinhacao pela "gua, eram delimitados por
terrnos como "conjetura", "conjeturar" (tekmOT, tekmairesthai).
Mas esse paradigms permaneceu, como se disse, impliciro - esma-
gado pelo prestigioso (e socialmente mais devado) modelo de co.
nhecimento elaborado por Platao."
3. 0 tom apesar de tudo defensivo de certas passagens do
"corpus" hipocratico 46 da a entender que, ja no seculo v a.C., co-
rnecara a manifestar-se a polernica, destinada a durar ate nossos
dias, contra a incerteza da meclicina. Tal persistencia se explica
155
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pelo fato de que as relacoes entre 0medico e 0paciente - carac-
terizadas pela impossibilidade, par. 0 segundo, de controlar 0
saber e 0 poder detidos pelo primeiro - nao mudaram muito
desde 0 tempo de Hip6crates. Mudaram, pelo contrario, durante
quase 2500 anos, os termos da polemica, a par com as profundas
rransformacoes sofridas pelas noeoes de "rigor" e "cieneia". Como
e 6bvio, a cesura decisiva nesse sentido e constituida pelo apare-
cimento de urn paradigma cientifico centrado na Hsica galileanamas que se revelou mais duradouro do que ela. Ainda que a ffsi-
ca moderna nao se possa definir como "galileana" (mesmo nao
tendo renegado Galileu), 0significado epistemol6gico (e simboli-
co) de Galileu para a ciencia em geral permaneceu intacto." Ora,
~ de disciplinas que chamamos de Indicidrias
(incluida a ~cina) niio entra absolutamente nos crltenos--de
9s:0tifjcjdade ded;;iveis do paradigma gahleano. Tr.ata~se,de fato,
~~C;jp!!!.!!lJ_eminentemente guahtatlva~. que U!ffi por obJeto
cases, ..situaWes s;:_documentos individuais, enquanto individuais, e
VJstament~.ggr isS Q a lcan sam resultados que tel? .~ma m arg c:¥ l
ineliminavel de casualidade: basta pensar no peso das conjeturas
'(0.pr6~"rlc;termo e de ongern divinat6ria) ~ na medicina ou nafilologia, alem da arte mantica. A ciencia galileana tinha uma natu-
reza totalmente diversa, que poderia adotar 0 lema escolastico
individuum est inelfabile, do que e individual nlio se pode falar.
o emprego da rnaternatica e 0metodo experimental, de fato, im-
plicavam respectivamente a quantificacao e a repetibilidade dos
Ienomenos, enquanto a perspectiva individualizante excluia por
definic;io a segundo, e admitia a primeira apenas em funcoes auxi-
liares. Tudo isso explica por que a hist6ria nunea conseguiu se
tornar uma ciencia galileana. Justamente durante 0 seculo XVII)
pelo contrario, 0 enxerto dos metodos do conhecimento antiqua-
rio no tronco da historiografia trouxe indiretamente a l uz as
distantes origens indiciarias desta ultima, ocultas durante seculos.
Esse ponto de partida permaneceu inalterado, niio obstante as
relacoes sernpre mais estreitas que ligam a historia a s ciencias
sociais. A hist6ria se manteve como uma ciencia social sui generiJ)
irremediavelmente ligada ao concreto. Mesmo que 0 historiador
156
nio possa deixar de se referir, explicita au implicitamente, a series
de fenomenos comparaveis, a sua estrategia cognoscitiva assim
como os seus c6digos expressivos permanecem intrinsecamente
individualizantes (mesmo que 0 indivfduo seja talvez urn grupo
social ou uma sociedade inteira). Nesse sentido, 0 historiador ecornparavel ao medico. que utiliza os quadros nosograficos para
analisar 0mal especffico de cada doente. E, como 0 do medico, 0
conhecimento hist6rico e indirero, indiciario, conjerural."
Mas a contraposicao que sugerimos e esquematica demais. No
ambito das disciplinas indiciarias, urna delas - a filologia, e mais
precisamente a critica textual - constirulu desde 0 seu surgimen-
to urn caso sob certos aspectos atipico.
o seu objeto, de Iato, constitui-se atraves de uma drastica
sele~iio - destinada a se reduzir ulteriormente - dos elementos
pertinentes. Esse acontecimento interno da disciplina £oi escondi-
do por duas cesuras hist6ricas decisivas: a invencao da escrita e a
da imprensa. Como se sabe, a critica textual nasceu depois da
primeira {quando decidiu-se transcrever os poemas homericos l e
consolidou-se depois da segunda {quando as primeiras e freqiien-
temente apressadas edi~5es dos classicos foram substitufdas por
edicoes mais confiaveisl." Inicialmente, foram considerados ndo
pertinentes ao texto os elementos Iigados • oralidade e • gestuali-
dade; depois, rarnbem os elementos ligados ao carater ffsico da
escrita. 0 resultado dessa dupla operacdo foi a progressiva desma-
terializacao do texto, continuamente depurado de todas as refe-
rencias sensiveis: mesmo que seja necessaria uma rela~aosensivel
para que 0 texto sobreviva, 0 texto nio se identifica com 0 seu
suporte." Tudo isso nos parece obvio, hoje, mas nao 0e em termos
absolutos. Basta pensar na fun~ao decisiva de entonecao nas lite-
raturas orals, ou da caligrafia na poesia chinesa, para perceber que
a n0\80 de texto que acabamos de invocar esta ligada a uma esco-
lha cultural, de alcance incalculavel. Que essa escolha niio tenha
sido determinada pela afirmacao da reproducao rnecanica em lugar
da manual e demonstrado pelo exemplo clamoroso da China, onde
a invencao da imprensa nao rompeu 0 do entre texto literario e
157
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158
4. Urn desses medicos era Giulio Mancini, de Siena, medico-
mot de Urbano VIII. Niio parece que conhecesse Galileu pessoal-
mente; mas e bern provavel que as dais tenham se encontrado,
porque freqiientavam os mesmos ambientes romanos (da corte
papal iI Accademia <lei Lineei) e as mesmas pessoas (de Federico
Cesi a Giovanni Ciampoli, a Giovanni Faber)." Num vivlssimo
retrato, Nicio Eritrea, al ias Gian Vittorio Rossi, delineou 0atefs-
mo de Mancini. suas extraordinarias capacidades diagnosticas (des-
critas eom termos do Iexico divinat6rio) e a falta de escnipulos
em extorquir dos clientes as quadros de que era "intelligen-
tisslrnus"." Mancini de fate redigira uma obra intitulada Algu-
mas consideraciies rejerentes a pintura como deleite de um gentu-
bomem nobre e como introdurao ao que se deoe dizer, que circulou
amplamente em manuscrito (a primeira impressdo integral remon-
ta a duas decadas)." 0 livro, como mostra 0 titulo, era dirigido
nao aos pintores, mas aos gentis-homens diletantes - aqueles vir-
tuoses que. em mimero sernpre rnaior, Iotavam as exposlcoes de
quadros antigos e modernos que aconteciam todos os anos no
Pantheon) em 19 de marco." Sem esse mercado artfstico, a parte
talvez mais nova das Consideracbes de Mancini - a dedicada ao"reconhecimento da pintura", isto e, aos metodos para reconhecer
os falsos, para distinguir as originais das capias e assirn por
diante «J - nunca teria sido escrita. A primeira tentativa de fun-
da~iio da connoisseurship (como se chamaria urn seculo depois)
remonta, portanto, a urn medico celebre pelos seus fulminantes
diagn6sticos - urn hornem que, encontrando urn doente, com urn
rapido olhar "quem exitum morbus me esset habiturus, divinabat"
[adivinhava que fim aquela doenca viria a ter ]6 ' Sera permitido,
a esse ponto, ver no par olho clfnico-olho do conhecedor algo
mais que urna simples coincidencia,
Antes de seguir de perto os argumentos de Mancini, desta-quemos urn pressuposto comum a ele, ao "gentil-hornern nobre" a
quem se dirigiam as Consideracoes , e a nos. Urn pressuposto nao
declarado porque julgado (erroneamenre) 6bvio: 0 de que entre
um quadro de Rafael e uma c6pia sua (trate-se de uma pintura,
uma gravura DU, hoje, uma fotografia) existia uma diferenca ineli-
caligrafia. (Veremos em breve como 0problema dos "textos" Hgu-
rativos se colocou historicarnente em termos totalmente dife-
rentes.)
Essa nocao profundamente abstrata de texto explica por que
a critica textual, mesmo se mantendo largamente divinat6ria, tinha
em si potencialidades de desenvolvimento em sentido rigorosa-
mente cientffico que amadureceriam durante 0 seculo XIX,52 Com
uma decisao radical, ela levara em consideracao apenas os elemen-tos reprodutiveis (antes manualmente, depois mecanicamente. a
partir de Gutenberg) do texto. Desse modo, mesmo assumindo
como obieto os casos individuals," acabara por evitar 0 principal
obstaculo das ciencias humanas: a quahdade. E significativo que,
no momento em que se fundava - com uma reducao igualmente
drdstica - a moderna ciencia da natureza, Galileu tenha invocedo
a filologia. A tradicional comparacao medieval entre mundo e
livro funda-se na evidencia, na legibilidade imediata de ambos:
Galileu; pdo contrario, ressaltou que "a filosofia ... escrita neste
enorme livre que esta continuamente aberto diante dos nosscs
olhos (digo 0universo) ... nao se pode entender se antes na o se
aprende a entender a lingua, conbecer 05 caracteres nos quais esta
escrito", isto e , "triangulos, circulos e outras figuras geometri-
cas" .5 4 Para..o £;1650£0 natural como para 0 £i16]oiO. 0 texta e
urna entidade profJJnda ipyjsivel, a set tecoosttldda para aMm dos
dados senslveis: "as fi~uras, oS_.DlJIDCtDS-i:..,.os moyjroentgs m~s
na.2__9.L.Qd.Qres.nem QS sabores. nem os, sons. os auais fora do ani-
m al vivo n ao erd o q UL!!ta m ~ tem d e n om es".55
Com essa frase Galileu imprimia a ciencia da natureza uma
guinada em sentido tendencialrnente antiantropocentrico e anti-
antropomorfico que eia nio viria mais a abandonar. No mapa do
saber abria-se urn rasgo destinado a se alargar continuamente. E
certamente entre 0 fisico galileano, profissionalmente surdo aos
sons e insensivel aos sabores e aos adores, e 0medico conternpo-
ranee seu, que arriscava diagn6sticos pondo 0 ouvido em pei tos
estertorantes, cheirando fezes e provando urinas, 0 contraste nao
poderia ser maior.
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mindvel, As implicacoes comerciais desse pressuposto - de que
uma pintura e por definicso urn unicum, irrepetlvel " - sao
6bvias. A elas est" ligado 0 surgimento de uma figura social como
o do conhecedor. Mas trata-se de urn pressuposto que nasce de
uma escolha cultural de forma aIguma prevista, como mostra 0
fato de nao se apliear aos textos escritos. as supostos caracteres
eternos da pintura e da literatura nao cabem ai. J a vimos antes
as guinadas hist6ricas pelas quais a nocao de texto escrito foi de-
purada de uma serie de elementos considerados nao-pertinentes.
No caso da pintura, essa depuracao (ainda) niio se verificou. Por
i550, aos nOSSQS olhos, as c6pias ma nu sc ri ta s o u a s edicoes do
Orlando Furioso podem reproduzir exatamente 0 texto desejado
por Ariosto: as c6pias de urn retrato de Rafael, nunca.?'
o diferente estatuto das c6pias na pintura e na Iiteratura
explica por que Mancini nao podia se servir, enquanto conhece-
dor, dos metodos da critica textual, rnesmo estabelecendo em prin-
dpia uma analogia entre 0 ato de pintar e 0 ato de escrever."
Mas, justamente partindo dessa analogia, recorreu em buses de
ajuda a outras disciplinas, em vias de formacao.
o primeiro problema que ele se colocava era 0 da datacao
das pinturas. Para tanto, afirmava, e necessario adquirir "uma
certa pratica na cognicso da variedade da pintura quanta ao seu
tempo) como tern esscs antiquaries e bibliotecarios dos caracteres,
os quais reconhecem 0 tempo da escrira"." A alusao a "cogni-
c;ao_ .. dos caracteres" refere-se quase certarnente aos rnetodos ela-
borados nos mesmos anos por Leone Allacci, bibliotecario da V a -tieana, para datar os manuscritos gregos e latinos - metodos
destinados a set retomados e desenvolvidos meio seculo mais tarde
pelo fundador da ciencia paleogrsfica, Mabillon." Mas, "alem da
propriedade comum do seculo", existe - continuava Mancini -
"a propriedade propria individual", assim como "vemos nos escri-totes em que se reconhece essa propriedade distante". 0 n ex o
anal6gico entre pintura e escrita, sugerido antes em escala macros-
copica ("os tempos") "0 seculo"), era entio novamente propos to
em escala microscopica, individual. Nesse ambito, as metodos
protopaleograficos de urn Allacci nao eram utilizaveis. Houvera
160
porem, nesses mesmos snos, uma tentativa isolada de submeter a
analise, de urn ponto de vista incomum, as escritas individuais. 0
medico Mancini, citando Hip6crates, observava que e posslvel reo
montar das "operacoes" as "impressoes" da alma, que por sua vez
tern raizes nas "propriedades" dos corpos singulares: "suposicso
pela qual e com a qual, como creio, algumas belas inteligencias
deste nOSSQ seculo escreveram e quiserarn dar regra para reconhe-
cer 0intelecto e a inteligencia dos outros com 0modo de escrevere da escrita deste ou daquele homem". Uma dessas "belas inteli-
gencias" era, com todas as probabilidades, 0 medico bolonhes
Camillo Baldi, que em seu Tratado sobre como de uma carta mis-
siva se conbece a natureza e a qualidade do escritor havia incluido
urn capitulo que pode-se considerar 0mais antigo texto de grafo-
logia j a aparecido na Europa. "Quais sao os significados" - e 0titulo do capitulo VI do Tratado - "que na figura do carater
podem-se apreender": onde "carater" designa "a figura, e 0traca-
do da letra, que se chama elernento, feito c om a pena sobre 0
papel"," Mas, niio obstante as palavras elogiosas que lembramos,
Mancini desinteressou-se quanto ao objetivo declarado da nascente
grafologia, isto ~, a reconstrudlo da personalidade dos escreventes
rernontando-se do "carater" escrito ao "carater" psicologico (sino-
nfmia esta que remere, um a vez mais, a uma mesma remota matriz
disciplinar). Ele se deteve, pelo contrario, no pressuposto da nova
disciplina: a diversidade, ou melhor, a singularidade inimitavel
das escritas individuais. Isolando nas pinturas elementos igualmen-
te inimitaveis, estaria alcancado 0 fim que Mancini se prefixava:
a elaboracgo de urn metodo que permitisse distinguir entre os
originais e os falsos, as obras dos mestres e as c6pias ou trabalhos
de escola. Tudo isso explica a exortacao para se conferir se nas
pinturas:
ve-se aquela desenvoltura do mestre, e em particular naquelas
partes que necessariamenre fazem-se com resolucao, de modo que
nio podem passer he m com a imit~o, como sio em particular
os cabelos, a barba, os olhos, Qu e 0 anelar dos cebelcs, quando
se deve imitar, .faz-se com multo custo, que depois na c6pia spa-
rece, e, se 0 copiador na o quer imitd-lo, entio Dio tern a per-
feicio do mesrre. E essas partes na pintura sao como os traces e
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os volteios na escrira, que precisam daquela desenvolture e reso-
lucao de rnestre, Isso deve-se ainda observer em alguns sopros e
golpes de luz de espacc em especo. que pelo mestre sao postos
de uma vee e com a resclucao de uma pincelada inimitdvel; assim
nas dobras dos tecidos e em sua luz, os quais dependem meis da
fantasia e resoluceo do mestre do que de verdede da coisa criada.63
Como se v e , 0paralelo, ja sugerido por Mancini em varies
contextos, entre 0ato de escrever e 0de pintar e retornado nessa
passagem de urn ponto de vista novo, sem precedentes (se se exce-
tuar urn. fugaz alusso de Filarete, que Mancini podia nao co-
nhecer "). A analogia se ressalta com 0 uso de termos tecnicos
recorrentes nos tratados de escrita contempordneos, como "desen-
voltura ", "traces", "volteios"." Tambem a insistencia na "veloci-
dade" tern a mesma origem: numa epoca de crescenre desenvol-
vimento burocratico, as qualidades que asseguravam 0sucessc de
uma Ietra chance1eresca cursiva no mercado escriturario erarn, alern
da elegancia, a.rapidez no due/us (conducao da pena)." Em geral,
a importancia atribuida por Mancini aos elementos ornatnentais
dernonstra uma reflexao nao superficial sobre as caracterlsticas dos
modelos de escrita predominantes na Italia entre 0 final do seculoXVI e 0 infcio do seculo xvn." 0estudo da escrita dos "caracte-
res" mostrava que a identi£ica~io da mao do mestre deveria set
procurada de preferencia nas partes do quadro a) executadas mais
rapidamente e, portanto, b) tendencialmente desligadas da repre-
sentacao do real (emaranhado de cabeleiras, tecidos que "depen-
dem mais da fantatsia e resolucao do mestre do que da verdade
da coisa criada "). Sobre a riqueza que jaz nessas afirmacoes _
uma riqueza que nem Mancini nem os seus conremporaneos foram
capazes de trazer it luz -, voltaremos mais adiante.
5. "Caracteres". Por volta de 1620, a pr6pria palavra
retoma, em sentido proprio au analOgico, de urn lado nos textosdo fundador da ffsica moderna e, de outre, nos iniciadores da pa-
leografia, da grafologia e da connoisseurship, respectivamente. : e
certo que, entre os "caracteres" imateriais que Calileu lia com os
olhos do cerebro 73 no livro da natureza, e os que Allacci, Baldi
au Mancini decifravam materialmente em papeis e pergaminhos,
162
tela. ou quadros, 0parentesco era apenas metaf6rico. Mas a iden-
tidade dos termos ressalta ainda mais a hererogeoeidade das disci-
plinas que comparamos. 0seu grau de cientificidade, na ace~io
galileana do termo, decrescia bruscamente, a medida que das
"propriedades" universais da geometria passava-se a s "proprieda-
des comuns do seculo" das escritas e, depois, as "propriedades
proprias individuais" das pinturas - ou ate das caligrafias.
Essa escala decrescente confirm. que 0verdadeiro obstaculo
a aplicacao do paradigma galileano eta a centralidade maior ou
menor do elemeoto individual em cad. disciplina. Quanto mais
os traces individuais erarn considerados pertinentes, tanto mais se
esvafa a possibilidade de urn conhecimento cientffico rigoroso.
Certamente a decisao preliminar de negligendar os tra~os indivi-
duais nao garantia por si 56 a aplicabilidade dos metodos fisico-
matematicos (sem a qual nao se podia falar em adocso do para-
digma galilesno propriamente dito) - mas, pelo menos, excluta-a
de vez.
6. Nesse ponto, abriam-se duas vias: ou sacrificar 0conheci-
mento do elemento individual a generaliza~io (mais ou menos ri-gorosa, mais ou menos formuldvel em linguagem matematica}, ou
procurar elaboratt talve; As apelmdr]as urn paNtdjgma djfmnte,
fundado no conhecimento ciend£ico (mas de tooa uma cjeptificj~
dade por so definir) dQ individu'l1... A prime ira via foi percorrida
pelas ciencias naturais, e s6 muito tempo depois pelas cieneias
humanas. 0 motivo e evidente. A zendencia a apagar os traces in-
dividuais de urn objeto e diretamente proporcional a distancia
emocional do observador. Numa pagina do Tratado de arquitetura,
Filarete, depois de afirmar que e impossivei construir dois editi-
cios perfeitamente idenricos - assim como, apesar das aparencias,
as "Iucas tartaras, que ter n todas a mesma cars, ou as d a Etiopia,
que sao todas negras, se olhares direito, veras que existem dife-
rencas nas semelhancas" -, admitia que existem "muitos animais
que sao semelhantes uns aos outros, c o m o as moscas, formigas,
vermes eras e muitos peixes, que daqueia esp<'cie nao se reconhe-
ce um do outre"," Aos olhos de urn arquiteto europeu, as diferen-
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cas mesmo pequenas entre dois ediHcios (europeus) eram relevan-
tes, as entre duas fucas tartaras Oll etlopes, negligenciaveis, e as
entre dais vermes ou duas formigas, ate inexistentes. Urn arqui-
teto t.rtaro, urn etlope desconbecedor de arquitetura ou uma
formiga teriam proposto hierarquias diferentes. 0 conhecimento
individualizante L~emp£eantropocen!~}Eo, _ :!..n < > < :~ ~ !E !C O e assim
t£r diante .SiSfsifiraodo. E certo que ta~m os anirnais, mine-
rais ou plantas poderiam ser considerados numa perspectiva indio
vidualizante, por exemplo divinat6ria 75 - sobretudo no caso deexemplares claramente fora das normas, Como se sabe, a terato-
logia era uma parte importante da arte divinatoria, Nas primeiras
decades do seculo XVII, a influencia exercida mesmo que indireta-
mente por urn paradigma como 0galileano tendia a subordinar 0
estudo dos fenomenos anormais a pesquisa sobre a norma, a adivi-
nhacao ao conhecimento generalizante da natureza. Em abril de
1625, nasceu nas cercanias de Roma urn bezerro com duas cabe-
cas, Os naturalistas ligados a Accademia dei Lincei interessaram-
se pelo caso. Nos jardins vaticanos de Belvedere, encontravam-se
em discussiio Giovanni Faber, secretario da Accademia, Ciampoli
(ambos, como se disse, muito ligados a Galileu), Mancini, 0car-
deal Agostino Vegio e 0 papa Urbano VIII. A primeira pergunta
a ser colocada foi a seguinte: 0 bezerro bicefalo deve ser conside-
rado urn animal iinico ou duplo? Para os medicos, 0elemento que
distingue 0indivlduo e 0cerebro: para os seguidores de Aristote-
Ies, e 0 coracso," Nessa descricao de Faber, percebe-se 0 eco pre-
sumivel da intervencao de Mancini, 0 unico medico presente na
discussao. Portanto, apesar dos seus interesses astrologicos," ele
analisava as caracterfsticas especfficas do parto monstruoso nao
com urn tim de tirar ausplcios, mas para chegar a uma definicao
mais precisa do individuo normal - 0individuo que, por perten-
cer a uma especie, podia com todo 0direito serconsiderado repe-
tfvel. Com a mesma atencao que normalmente dedicava ao exame
de uma pintura, Mancini teve de investigar a anatomia do bezerro
bicefalo, Mas a analogia com a sua atividade de conbecedor parava
por ai. Num certo sentido, justamente urn personagem como Man-
cini expressava a uniiio entre 0 paradigma divinat6rio (0 Mancini
diagnosticador e conhecedor) e 0 paradigma generalizante (0Man-
cini anatomista e naturalista). A uniao, mas rambem a diferenca.
Niio obstante as aparencias, a descricao precisa da autopsia do
bezerro, redigida por Faber, e as minuciosas gravures que a acorn-
panhavam, representando as orgaos internos do animal," nao se
propunham captar as "propriedades comuns" (aqui naturais, nao
historicas) da especie. Desse modo, era retomada e aperfeicoada a
tradicao naturalista que se fundava em Aristoteles, A vista, sim-
bolizada pelo lince de olhar agudissimo que ornamentava 0brasdoda Academia de Federico Cesi, tornava-se 0orgiio privilegiado das
disciplinas para as quais estava vedado 0 olho supra-sensfvel da
rnatematica."
7. Entre essas estavam, pelo menos aparenternente, as den-
cias humanas (como as definirlamos hoje). A fortiori, num certo
sentido - quando menos peIo seu tenaz antropocentrismo, expres-
so com tanta simplicidade na pagina j. lembrada de Filarete. No
entanto, houve tentativas de inrroduzir 0metodo rnatematico tam-
bern no estudo dos fares humanos." E compreensfvel que a pri-
meira e mais bern-sucedida - ados aritmeticos politicos - tenha
adotado como seu objeto os gestos humanos mais determinados
em sentido biologico: nascimento, procriacdo e morte. Essa drasti-
ca reducao perrnitia uma pesquisa rigorosa - e, ao mesmo tem-
po, bastava para as finalidades cognoscitivas militares ou fiscais
dos Estados absolutist as , orientados, dada a escala das suas opera-
¢ies, em sentido exc1usivamente quantitativo. Mas a indiferenea
qualitativa dos comitentes da nova ciencia - a estatistica - nio
desfez totalmente vinculo entre ela e a esfera das disciplinas que
chamamos de indiciarias, 0 calculo das probabilidades, como diz
o titulo da obra classica de Bernouilli (Ars con;ectandi), procura-
va dar uma formulacao matemarica rigorosa aos problemas que
haviam sido enfrentados pela arte divinatoria de maneira comple-tamente diferenre"
Mas 0conjunto das ciencias humanas permaneceu solidamen-
te ancorado no qualitativo. Nao sem mal-estar, sobretudo no caso
da medicina. Apesar dos progressos realizados, seus metodos mos.
164 165
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travam-se incertos, e os resultados, dubios. Um texto como A cer-
teza da medicina de Cabanis, publicado no final do s&uIo XVIII,"
admitia essa falta de rigor, ainda que depois se esforcasse em reco-
nhecer a medicina, apesar de tudo, uma cientificidade sui generis.
As raz&:s da "incerteza" da medicina pareciam set fundamental-
mente duas. Em primeiro lugar, nao bastava catalogar todas as
doencas ate cornpe-las num quadro ordenado: em cada individuo,
a doenca assumia caracteristicas diferentes. Em segundo lugar, 0
conhecimento das doen~ permanecia indireto, indiciario: 0corpo
vivo era, por defini~ao, inatingivel. Certamente podia-se seccionar
o cadaver; mas como, do cadaver, ja corrompido pelos processos
da morte, chegar as caracteristicas do individuo vivo?" Diante
dessa dupla dificuldade, era inevitivel reconhecer que a propria
eficacia dos procedimentos da medicina era indemonstravel. Em
conclusao, a impossibilidade de a medicina alcancar 0 rigor proprio
das ciencias da natureza derivava da impossibilidade da quantifi-
c~, a nio ser em fun~ puramente auxiliares; a impossibili-
dade da quantificacao derivava da presence ineliminavel do quali-
tativo, do individual; e a presence do individual, do f.to de que 0
olho humano e mais sensivel a s diferencas [talvez marginais) entre
os seres humanos do que as diferencas entre as pedras ou as folhas.
Nas discuss5es sobre a "incerteza" da medicine, ja estavam for-
mulados os futuros nos epistemologicos das ciencias humanas.
8. Entre as linhas do texto de Cabanis transparecia uma
compreensfvel impaciencia. Apesar das obiecees, mais ou menos
justificadas, que the poderiam ser dirigidas no plano metodologico,
a medicina sempre se mantinha, porem, urns ciencia plenamente re-
conhecida do ponto de vista social. Mas nem todas as formas de
conhecimento indiciario se beneficiavam, naquela epoca, de seme-
lhante prestigio. Algumas, como a connoisseurship, de origem reo
lativamente recente, ocupavam uma posi~1io ambigua, a margem
das disciplinas reconhecidas. Outras, maio ligadas a prdtica conti-
diana, estavam simplesmente de fora. A capacidade de reconhecer
urn cavalo defeituoso pelos jarretes, a vinda de urn temporal pela
166
repentina mudanca do vente, uma inte~o hostil num rosto que
se sombreia certamente nao se aprendia nos tratados de alveitaria,
de meteorologia ou psicologia. Em todo caso, essas formas de
saber eram mais ricas do que qualquer codificac;io escrita; nao
eram aprendidas nos livros mas a viva voz, pelos gestos, pelos
olhares; fundavam-se sabre sutilezas certamente nao-formalizaveis,
freqiientemente nem sequer traduzfveis ern nivel verbal; consti-
tuiarn 0patrimonic, em parte unitario, em parte diversificado, de
homens e mulheres pertencentes a todas as classes sociais. Urn sutil
parentesco as unia: todas nasciam da experiencia, da concretude da
experiencia, Nessa concretude estava a forca desse tipo de saber,
e 0 seu limte - a incapacidade de servir-se do poderoso e terrf-
vel instrumento da abstra<;iio."
Desse corpo de saberes locais, 85 sern origem nem memoria ou
historia, a cultura escrita ten tara dar a tempo uma formulacao
verbal precisa. Tratava-se, em geral, de formulacoes desbotadas e
empobrecidas. Basta pensar no abismo que separava a rigidez
esquematica dos tratados de fisiognomonia e a acuidade fisiogno·
monica flexlvel e rigorosa de urn amante, urn mercador de cavalos
ou urn jogador de cartas. Talvez so no caso da medicina a codifi-
ca~ao escrita de urn saber indiciario tenha dado lugar a urn verda-
deiro enriquecimento (mas a historia das relacoes entre medicina
culta e medicina popular ainda esta por ser escrita). Ao longo do
seculo XVIII, a situa<;iio muda. Ha urna verdadcira ofensiva cultu-
ral da burguesia, que se apropria de grande parte do saber, indio
ciario e nao-indiciario, de artesaos e carnponeses, codificando e
simultaneamente intensificando urn gigantesco processo de acultu-
ra9io, ja iniciado (obviarnente com formas e conteudos diversos)
pela Contra-Reforma, 0 simbolo e 0 instrumento central dessa
ofensiva e, naturalmente, a Encyclopedie. Mas tambem seria pre-
ciso analisar epis6dios insignificantes mas reveladores, como a in-
tervencao do anonirno mestre-pedreiro romano, que demonstra a
WinckeImann, provavelmente estupefato, que a "pedrinha peque-
na e chata" reconhecivel entre os dedos da mao de uma estatua
descoberta em Porto d'Anzio era a "bucha ou a rolha da ambula".
167
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A coletanea sistematica desses "pequenos discernimentos",
como chama-os W i nc ke lm an n e m outre lugar," alimentou entre
os seculos XVIII e XIX as novas formulacoes de antigos saberes -
da cozinha a hidrologia e a veterinaria, Para urn rnimero sempre
crescente de leitores, 0acesso a determinadas experiencias torna-
se cada vez mais mediado pelas paginas dos Iivros, 0 romance
simplesmente forneceu a burguesia urn substituto e, ao mesmo
tempo, uma reformulacso dos ritos de iniciacso - istc e , 0
acessoa experiencia em geral." E e justamente gracas a literatura de
imaginacao que 0 paradigma indiciario conheceu nessa epoca urn
novo, e inesperado, destine.
9. Ja lembramos, a prop6sito da remota origem provavelmen-
te venatoria do paradigma indiciario, a tabula ou conto oriental
dos tres irmaos que, interpretando uma serie de indicios, conse-
guern descrever 0 aspecto de urn animal que nunea viram. Esse
conto apareceu pela primeira vez no Ocidente atraves da coletanea
de Sercambi." Posteriormente, retornou como ponte a l t o d e u m a
coletanea de contos muito mais ampla, apresentada como tradu-
~iio do persa para 0 italiano aos cuidados de Cristoforo Armenia,
que apareeeu em Veneza na metade do seculo XVI sob 0 titulo
Peregrina~ao dos Ires jovens [ilbos do rei de Serendip. Dessa
forma, 0 l ivro f oi reeditado e traduzido outras v ez es - a nt es em
alernao, depois, durante 0 seculo XVIII, n a o nd a d a m o d a orienta-
Iizante de entao, nas principais Ifnguas europeias.! 0 sucessa da
hist6ria dos filhos do rei de Serendip foi tal que levou Horace
Walpole, em 1754, a cunhar a neologismo serendipity para desig-
nar as "descobertas imprevistas, feitas gracas ao acaso e a inteli-
genda".to Alguns anos antes, Voltaire reelaborara, no tereeiro ca-
pitulo de Zadig, 0 primeiro conto da Peregrinaeao, que lera na
traducao francesa. No reelaboracao, 0camelo do original bavia setransformado numa cadela e num cavalo, que Zadig conseguia
descrever minuciosameote decifrando as pistas sobre 0 terreno.
Acusado de furto e conduzido perante as jufzes; Zadig justificava-
se reconstituindo em voz alta 0 trabalho mental que the permitira
tracar 0 retrato dos dois animals que nunca havia visto:
168
)'ai vu sur la sable les traces d'un animal, et j'ai juge aieement
que c'etaient celIes d'un petit chien. Des sillons legers et longs,
imprimes sur de petites eminences de sable entre les traces des
pattes, m'ont fait connaitre que c'etait une chienne dont les
mamdles etaient pendantes, et qu' ainsi elle avait fait des petits
it y a peu de [ours ... 93
Nessas linhas, e nas que seguiarn, estava 0 ernbriao do ro-
mance policiaL Nelas inspiraram-se Poe, Gaboriau, Conan Doyle
- os dais primeiros diretamente, 0 terceiro talvez indiretamente."Os motivos do extraordindrio destino do romance policial
sao conhecidos. Sobre alguns deles voltaremos adiante. Mas pode-
se observar desde ja que ele se fundava num modelo cognoscitivo
ao mesmo tempo antiqiiissirno e moderno. Da sua antiguidade
simplesmente imemorial j s falamos. Quante a sua modernidade,
bas tara citar a pagina em que Curvier exaltou os metodos e sucee-
sos da nov. ciencia paleon tologica:
... aujourd'bui, quelqu'un qui voit seulement la piste d'un pied
fourchu peut en conclure que l'animal qui a laisse cet empreinte
ruminait, et ceue conclusion est tout aussi certaine qu'aucune
autre em physique et en morale. Certe seule piste donne done l
celui qui I'observe, et la forme des dents, et Ia forme des michoi·
res, et la forme des vertebres, et Ia forme de tous Ies os des
[ambes, des cuisses, des epaules e t du bassin de l'animal qui
vient de passer: c'est une marque plus sure que toutes celles de
Zadig."
Urn sinal mais seguro, ralvez: mas tambem intirnamente se-
melhante. 0 nome de Zadig tornara-se tao simb6lico que Thomas
Huxley, em 1880, no ciclo de conferencias proferidas para a difu-
sao das descobertas de Darwin, definiu como "metoda de Zadig"
o procedimento que reunia a historia, a arqueologia, a ge ol og ia , a
astronomia fisica e a paleontologia: isto e, a capacidade de fazer
profecias retrospectivas. Disciplinas como estas, profundamente
permeadas pela diacronia, nao podiam deixar de se valtar para a
paradigma indiciario ou divinat6rio (e Huxley falava explicita-
mente de adivinhacao voltada para 0 passado)," descartando a
paradigm. galileano. Quando as causas nio sao reproduziveis, so
resta inferi-las a partir dos efeitos,
169
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III.
1. Poderfamos comparar as fios que compoern esta pesquisa
aos fios de urn tapete. Chegados a este ponto, vemo-los a compor-
se numa trama densa e hornogenea. A coerencia do desenho e ve-
rificavel percorrendo 0 tapete com as olhos em varias direcoes.
Verticalmente, e terernos uma sequencia do tipo Serendip-Zadig-
Poe-Gaboriau-Conan Doyle. Horizontalmente, e teremos no inicio
do seculo XVIII um Dubos que dassifica, uma ao lado da outra,em ordem decrescente de inconfiabilidade, a rnedicina, a connois-
seurship e a identificacso das escritas." Ate mesmo diagonalrnen-
te - saltando de urn contexto hist6rico para outro -, e a s costas
de monsieur Lecoq, que percorreu febrilmente urn "terrene in-
culto, coberto de neve", pontilhado de pistas de criminosos, com-
parando-o a "imensa pagina brancs onde as pessoas que procura-
mos deixaram escrito nao s6 seus movimentos e seus passos mas
tambem seus pensamentos secretes, as esperancas e angiistia que
as agitavam"," verernos perfilarem-se autores de tratados sobre a
fisiognomonia, adivinhos babilonicos empenhados em ler as men-
sagens escri tas pelos deuses nas pedras enos ceus, cacadores do
Neolltico.
o rapete e 0 paradigms que chamamos a cada vez, conforme
os contextos, de venat6rio, divinatorio, indiciario ou semi6tico.
Trata-se, como e claro, de adjetivos nao-sinonimos, que no entan-
to rernetem a urn modelo epistemol6gico comum, articulado em
disciplinas diferentes, muitas vezes ligadas entre si pelo empresti-
rno de metodos au termos-chave. Ora, entre as seculos XVIII e XIX,
com 0 aparecimento das "ciencias humanas", a constelacao das
disciplinas indiciarias modifica-se profundarnente: aparecem novos
astros destinados a urn rapido crepusculo, como a frenologia," ou
a urn grande destine, como a paleontologia, mas sobretudo afirma-
se, pelo seu prestigio epistemol6gico e social, a medicina. A ela se
rcferem, explicita ou implicitamente, todas as "ciencias humanas".
Mas a que parte da medicina? Na metade do seculo XIX, vemos
desenhar-se uma alternativa: 0 modelo anatornico de urn lado, a
semi6tico de outro. A metafora da "anatomia da sociedade", usada
170
numa passagem crucial tambern par Marx," exprime a aspiracao
a urn conhecimento sistematico numa epoca que vira enfim 0des-
moronamento do ultimo sistema filosofico, a hegeliano. Mas, nao
obstante 0 grande destino do marxismo, as ciencias humanas aca-
baram par assurnir sempre maisf com uma relevante excecao, como
veremos) 0 paradigma indiciario da semiotica. E aqui reencontra-
mos a triade Morelli-Freud-Conan Doyle da qual partimos.
2. Ate agora falamos de urn paradigma indiciario (e seus si-
nonimos) em sentido lato. Chegou 0 momento de desarticula-lo.
Uma coisa e analisar pegadas, astros, fezes (animais au hurnanas),
catarros, corneas, pulsacoes, campos de neve ou cinzas de cigarro;
outra e analisar escritas, pinturas au discursos. A distin~ao entre
natureza (inanirnada ou viva) e cultura e fundamental - certa-
mente rnais do que aquela, infinitamente mais superficial e muravel,
entre as disciplinas individuals. Ora, Morelli propusera-se busear,
no interior de urn sistema de signos culturalmente condicionados
como 0 pictorico, as signos que tinham a involuntariedade dos
sintomas (e da maior parte dos indicios). Na a 56: nesses signos
involuntarios, nas "rniudezas materiais - urn callgrafo as chama-ria de garatujas" comparaveis as "palavras e frases prediletas"
que "a maioria dos homens, tanto falando como escrevendo ...
introduzem no discurso a s vezes sem intencao, au seja, sem se
aperceber", Morelli reconhecia a sinal mais certo da individuali-
dade do artista." Dessa rnaneira, ele retomava (talvez indiretamen-
tel '00 e desenvolvia os principios de metodo formulados havia
tanto tempo pelo seu predecessor Giulio Mancini. Que aqueles
principios viessem a amadurecer depois de tanto tempo ni.o era
casual. Justamente entao vinha surgindo uma rendencia cada vez
rnais nitida de urn controle qualitative e minucioso sobre a socie-
dade por parte do poder estatal, que utilizava uma n~iio de indi-vlduo baseada, tambem ela, em traces mfnirnos e involuntarios.
3. Cad. sociedade observa a necessidade de distinguir os seus
cornponentes: mas as modos de enfrentar essa necessidade variam
conforme as tempos e as lugares.'?' Existe, antes de mais nada, 0
III
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nome; mas, quanto mais a sociedade e complexa, tanto rnais 0
nome parece insuficiente para circunscrever inequivocamente 8
idenridade de urn indivk'uo. No Egito greco-romano, por exemplo,
de quem se comprometia perante urn notario a desposar uma
mulher ou a cumprir uma transacao comercial eram registrados I
ao lado do nome, poucos e sumarios dados £i.icos, acompanhados
pela indic~iio de cicatrizes (se existiam) ou outros sinais particula-
res.'" As possibilidades de erro ou substiruicao dolosa da pessoa,porem, continuavam e1evadas. Em comparacao, a assinatura aposta
ao p e da pOgina nos contratos apresentava muitas vantagens: no
final do seculo XVIII, numa passagem da sua His/aria pict6rica, de-
dicada aos metodos dos conhecedores, 0abade Lanzi afirmava que
a inimitabilidade das escritas individuais fora desejada pela natu-
reza para a "seguranca" da "sociedade civil" (burguesa).I03 Cerra-
mente, as assinaturas tambc!m podiam ser falsificadas - e, sobre-
tudo, excluiam do controle os analfabetos. Mas, apesar dessas
falhas, por seculos e seculos as sociedades europeias n a o sentiram
a necessidade de metodos mais seguros e praticos de averiguacao
da identidade - nem quando 0 nascimento da grande industria,
a mobilidade geogrsfica e social a ela ligada, a rapidissima forma-
~iio de gigantescas concentracoes urbana. alteram radicalmente os
dados do problema. Todavia, numa sociedade com tais caracterls-
ncas, fazer desaparecer os proprios rastros e reaparecer com uma
outra identidade era uma brincadeira de crianca - niio s6 numa
cidade como Londres ou Paris. Mas somente nas ultlmas decadas
do seculo XIX foram propostos por varios lados, em concorrencia
entre si, novas sistemas de identific~. Era uma exigencia que
surgia dos fatos contemporiineos da luta de classes: a constituicao
de uma associacao internacional dos trabalhadores, a repressao da
oposi\,io operaria depois da Comuns, as modific.~s da crimina-
lidade.o aparecimento de relacoes de producao capitalistas havia
provocado - na Inglaterra desde 1720 aproximadamente.P' no
resto do Europa quase urn s&uIo depois, com 0 C6digo Napole6-
nieo - uma transformacao, ligada 30 novo conceito burgues de
propriedade, da legislo_'o, que aumentara 0 mimero de delitos
punlveis e 0valor des penas. A tendencia a criminaliza~iio do luta
de classes veio acompanbada pel. construcao de um sistema carce-
rario fundado sobre a deten_'" por longo pr02o."" Mas 0careere
produz criminosos. Na Franca, 0mimero de reincidentes, em con-
tinuo aurnento a partir de 1870, alcancou no final do seculo uma
porcentagem igual a metade dos criminosos suhmetidos a proces-
so.'O>0 problema da identi£ic~ dos reincidentes, que se colocou
naquelas decadas, constituiu de fato a cabeca-de-ponre de urn pro-
jete geral, mais ou menos consciente, de controle generalizado e
sutil sobre • sociedade.
Para a identifica~ao dos reinddentes era necesssrio provar
a) que urn indivlduo ja havia sido condenado, e b} que 0 indivi-
duo em questao era 0 mesmo que ja sofrera condenacso. '07 0 pri-
meiro ponto foi resolvido pela cr~iio dos registros policiais. 0
segundo levantava dificuldades mais serias. As antigas penas que
marcavam um condenado para sempre, estigmatizando-o ou mud-
lando-o, haviam sido abolidas. 0 lirio gravado no ombro de Mi.
lady permitira a D'Artagnan reconbecer nela uma envenenadora
ja punida no passado pelos seus crimes - enquanto dois fugiti-
vos como Edmond Dantes e Jean Valjean puderam reaparecer na
cena social disfarcados sob trajes respeitaveis (bastariam esses
exemplos para mostrar ate que ponto a figura do criminoso rein-
cidente pesava na imaginacao oitocentista}.'" A respeitabilidade
burguesa precisava de sinai. de reconbecimento igualmente inde-
levels, mas menos sanguinarios e humilhantes do que os impostos
sob 0ancien regime.
A ideia de urn enorme arquivo forografico criminal foi num
primeiro momento descartada, porque colocavs problemas de clas-
sifica~ao insoliiveis: como recortar elementos discretos no conti-
nuo da imagem? I,"A via da quantifica,lio pareceu mais simples
e rigorosa. De 1879 em diante, urn funcionario da prefeitura deParis, Alphonse Bertillon, elaborou um ~todo antropcmetrico
(que depois ilustrou em varios ensaios e memorias) 110 baseado em
minuciosas medicoes do corpo, que convergiam para uma ficha
pessoal, E claro que urn pequeno engano de poucos milimetros
criava as premissas de urn erro judicial; mas 0principal defeito do
17 2 173
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outros.
A analise cientffica das impress5es digitais iniciara-se desde
1823 com 0 fundador da histologia, Purkyne, na sua dissertacao
Commentatio de examine physiologico organi uisus et systematis
cutaneill5 Ele distinguiu e descreveu nove tipos fundamentais de
linhas papilares, ao mesmo tempo afirrnando, porern, que nao exis-
tern dois indivfduos com impress5es digitais identicas. As possibi-
lidades de aplica~iio pratica da descoberra eram ignoradas, 00 con.
trario de suas irnplicacoes filos6ficas, discutidas num capitulo
intitulado "De cognitione organismi individualis in genere" . 1 1 6 0
conhecimento do indivfduo, dizia Purkyne, e central na medicina
pratica, a comecar pels diagnose: em indivfduos diferentes os sin-
tomas 'se apresentam de formas diferentes e, portanto, devem ser
curados de modos diferentes. Por isso, alguns modemos, que niio
nomeava, definiram a medicina pratica como "artem individuali-sandi (die Kunst des Individualisirensj'U'? Mas os fundamentos
dessa arte se encontravam na filosofia do indivlduo. Aqui Purky-
ne, que quando jovern estudara filosofia em Praga, reencontrava
os temas mais profundos do pensamento de Leibniz. 0 individuo,
"ens omnimodo determinatum" [ente totalmente determinado],
possui uma singularidade verificavel ate em suss caracteristicas
irnperceptfveis, infinitesimais. Nem 0aeaso nem os influxos exter-
nos bastam para explicd-la. E necessario supor a existencia de uma
norma ou "typus" interne, que mant6n a diversidade dos orga-
nismos denrro dos Iimites de cada especie: 0 conhecimento dessa
"norma" (afirmava profetivamente Purkyne) "descerraria 0 co-
nhecimento oculto da natureza individual".'' ' 0 erro da fisiogno-
monia foi 0 de enfrentar a diversidade dos indivlduos a lu; d e
opini6es preconcebidas e conjeturas apressadas; dessa maneira, foi
ate agora impossfve] fundar uma fisiognomonia cientifica, descriti-
va. Abandonando 0 estudo das linhas da mao ii "va ciencia" dos
quiromantes, Purkyne coneentrou a sua atencao num dado muito
menos aparente - e nas linhas impressas nas pontas dos dedos
encontrava a senha oculta da individualidade.
Deixemos a Europa por urn momento e passemos ii Asia. A
diferenca de seus colegas europeus, e de forma totalmente inde-
pendente, os adivinbos chinese. e japoneses tambem baviam se
interessado pelas linhas pouco aparentes que sulcam a pele da mao.
o costume, atestado na China, e sobretudo em Bengala, de impri-
mir nas cartas e documentos urn. ponta de dedo borrada de piche
ou tinta 119 provavelmente rinha por tras uma serie de reflexoes
de carater divinat6rio. Quem estava habituado a decifrar escritas
metodo antropornetrico de Bertillon era outro, isto C, 0de ser pu -
ramente negative. Ele permitia separar, no momenta do reconhe-
cimento, dais indivfduos diferentes, mas njio afirrnar com seguran-
ca que duas series identicas de dados se referissem a urn mesrno
indivlduo.'" A irredutivel elusividade do individuo, expulsa
pela porta atraves da quantificacao, voltava a entrar pela janela.
Por isso, Bertillon propos integrar 0metodo antropometrico com
o eharnado "retrato faladc", isto e, a descricao verbal analitica
das unidades discretas (nariz, olhos, orelhas etc.), cuja soma deve-
ria restituir a imagem do individuo - possibilitando assim 0 pro-
cedimento de identificacao. As paginas de orelhas exibidas por
Bertillon 112 relembram irresistivelmente as ilustraeoes que, nos
rnesmos anal, Morelli incluta em seus ensaios. Talvez nao se tra-
tasse de uma influencia direta - ainda que seja surpreendente
verificar que Bertillon, em sua atividade de especialista grafologi-
co, eonsiderava indlcios reveladores de uma falsi£ica~ao as parti-
cularidades au "idiotismos" do original que 0falsario nile conse-
guia reproduzir e, eventualmente, substituia pelas suas proprias."!
Como se ted percebido, 0 metodo de Bertillon era incrivel-
mente complicado. Ja nos referimos ao problema posto pelas me-diacoes. 0"retrato falado" piorava ainda mais as eoisas. Como
distinguir, no momento d. descri~iio, urn nariz giboso-arcado de
urn nariz arcado-giboso? Como classificar os matizes de urn olho
verde-azulado?
Mas desde a sua dissertacao de 1888, posteriomente corrigi-
da e aprofundada, Galton propusera urn metodo de identificacao
muito mais simples, no que se referia tanto a coleta dos dados
como a sua classificacao.!" 0metodo baseava-se, como se sabe,
nas impressoes digitais. Mas a proprio Galton, com muita hones-
tidade, reconhecia ter sido precedido, teorica e praticamente, por
174 175
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misteriosas nos veios das pedras au da madeira, nos rastros dei-
xados pelos passaros ou nos desenhos impressos nas costas das
tartarugas 120 certamente chegaria sem esforco a conceher como
uma escrita as linhas impressas par urn dedo sujo numa superficie
qualquer. Em 1860, si r William Herschel, administrador-chefe do
distriro de Hooghly em Bengala, notou esse costume difundido
entre as populacoes locais, avaliou sua utilidade e pensou em
usa-lo para urn melhor funcionamento da administracao britsnica.(Os aspectos teoricos da questao nao 0 interessavam; a disserta-
<;30 latina de Purkyne, que por meio seculo permaneceu como
letra morta, era-lhe totalmente desconhecida.) Na realidade, obser-
vou Galton retrospectivamente, sentia-se uma grande necessidade
de urn instrumento de identificacao eficaz - nas colonias britani-
cas, e nao somente na India: as nativos cram analfabetos, litigio-
50S, astutos, mentirosos e, aos olhos de urn europeu, todos iguais
entre si. Em 1880, Herschel anunciou em Nature que, depois de
dezessete anos de experiencias, as impress5es digitais foram intro-
duzidas oficialmente no distrito de Hooghly, onde ja eram usadas
havia tres anos com 6timos resultadoe.!" Os Iunciondrios impe-
riais tinham-se apropriado do saber indiciario dos bengaleses e
viraram-no contra eles.
Do artigo de Herschel, Galton tirou a inspiracao para repen-
sar e aprofundar sistematicamente toda a questao. 0 q ue possibi-
litava sua pesquisa era a contluencia de tre,. elementos muito dife-
rentes. A descoberta de urn cientista puro como Purkyne; 0saber
concreto, ligado ii pratica cotidiana das populacoes bengalesas; a
sagacidade politica e administrativa de sir William Herschel, fiel
funcionario de Sua Majestade Britanica. Galton prestou homena-
gem ao primeiro e ao terceiro. Tentou, alem disso, distinguir
peculiaridades raciais nas impress5es digitais, mas sem sucesso;
de qualquer maneira, comprometeu-se a prosseguir as pesquisassobre algumas tribos indianas, na esperanca de nelas encontrar
caracteristicas "mais proxirnas a s dos macacos" (a mote monkey-
like patIn,,). J2l
Alem de dar urn. contribuicao decisiva ii analise das impres-
s6es digitais, Galton, como se disse, vira tambem suas implicacoes
176
praticas. Em pouquissimo tempo 0 metodo foi introduzido na
Inglaterra, e dali gradualmente no mundo todo (urn dos ultimos
poises a ceder foi a Franca). Desse modo, cada ser humano -
observou orgulhosamen te Galton, aplicando a si mesmo 0 elogio
ao seu concorrente Bertillon proferido por urn funcionano do
Ministerio do Interior frances - adquiria uma identidade, uma
individualidade sobre a qual poder-se-ia se basear de modo certo
e duradouro.!"Assim, aquela que, aos olhos dos administradores briranicos,
fora ate poueo antes uma multidao indistinta de "fucas" benga-
lesas (para usar 0 termo pejorativo de Filarete) tornava-se subita-
mente uma serie de individuos assinalados cada qual por urn trace
biologico especifico. Essa prodigiosa extensiio da nocao de indivi-
dualidade ocorria de fato atraves da rela~iio com 0Estado e seus
orgiios burocraticos e policiais. Ate 0Ultimo habitante do mais
miseravel vilarejo da Asia au da Europa tornava-se, gracas as im-
pressoes digitais, reconheciveI e controlavel.
4. Mas 0 mesmo paradigma indiciario usado para elaborar
formas de controle social sempre mais sutis e minuciosas pode se
converter num instrumento para dissolver as nevoas da ideologia
que, cada vez mais, obscurecem uma estrutura social como a do
capitalismo maduro. Se as pretensoes de conhecimento sistematico
mostram-se cada vez mais como veleidades, nem por isso a ideia
de totalidade deve ser abandonada. Pelo contrario: a existencia de
uma profunda conexao que explica os Ienomenos superficiais ereforcada no proprio memento em que se afirrna que urn conheci-
mento direto de tal conexiio nio e possivel. ~ realidade e opaca,
existem zonas privilegiada~ - sinais, indicios - gue PSrmitem
decifra.k_
Essa ideia, que constitui 0 ponto essencial do paradigma indio
ciario au serniotico, penetrou nos mais variados Ambitos eognosci-
tivos, modelando profundamente as cienci .. humanas. Minusculas
porticularidades paleograficas foram empregadas como pistas que
permitiam reconstruir trccas e transformacoes c ultur ai s - c om
uma expljcita invocacao a Morelli, que saldava a dlvida que Man-
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7/23/2019 GINZBURG, C. Sinais_raízes de um paradigma indiciário
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elm contralra junto a Allacci, quase tres seculos antes. A repre-
sentacao das roupas esvoacantes nos pintores florentinos do seculo
xv, as neologismos de Rabelais, a cura dos doentes de escrofula
pelos reis da Franca e da Inglaterra sao apenas alguns entre os
exemplos sobre 0 modo como, esporadicamente, alguns indicios
rninimos eram assumidos como elementos reveladores de fenome-
nos mais gerais: a visao de mundo de uma classe social, de ur n
escritor ou de toda uma sociedade.'" Um~<M~l!~omo _ nsica-nalise constitui-se, comovirnos, em torno dahiWI.C$e_.de._lI!Jepor-
me~()te~.•parentemente pegljgeJ)c;aveis pl!desS!'ll)_ r .~vsllli fe;;-j)~
n.2.sp[Qhll)dos. t ie !1 () lJ !y rl ,a 1 s !" '£ ,,~ A decedencia do pensamentosistematico veio acompanhada pelo destino do pensamento aforis-
matico - de Nietzsche a Adorno. 0proprio termo "aforismatico"
e revelador. (E urn indldo, urn sintoma, urn sinal: do paradigm.
niio se escapa.) Com efeito, Aiorismos era 0 titulo de uma famosa
obra de Hip6crates. No seculo XVII, comecaram a sair coletaneas
de Alorismos politicos.''' A literatura aforismoltica e, por defini-
s:ao, uma tentativa de formular jufzos sobre 0homem e a socieda-
de a partir de sintomas, de indicios: urn homem e uma sociedade
que estao doentes, em crise. E tambem "crise" e um termo medi-
co, hipocratico.!" Pode-se demonstrar facilmente que 0maior roo
mance da nossa ~a - a Recherche - e constituido segundo
urn rigoroso paradigma indiciario ,127
coes em que a unicidade e 0carater insubstitulvel dos dados sao,
aos olhos das pessoas envolvidas, decisivos. Alguem disse que 0
apaixonar-se e a superestimacao das diferen~s marginais que exis-
tern entre uma mulher e outra (ou entre urn homem e outro). Mas
isso tarnbern pode se estender as obras de arte ou aos cavalos.P
Em situacoes como essas, 0 rigor flexivel (se nos for permitido 0
oxirnoro) do paradigms indiciario mostra-se inelimirulvel. Trata-se
de formas de saber tendencialmente mudas - no sentido de que,
como ja dissemos, suas regras nao se prestam a ser formalizadas f{'" 1~:
nem ditas. Ninguem aprende a oHeio de conhecedp! OJ! de djaG'QQs-~ t'~ticador limitando-se a p~r em...Era1i9:~regras preexistentes Ncsse s : £ ltiM de cQoherjmeglo entram em jgm ldiz-se oorwglmmte) de
menl0s jrnpood.cdxrjs· b ir o gOIpe de vista jotuis:ao.
Ate aqui abstivemo-nos escrupulosatnente de empregar esse
termo minado. Mas, se se insiste em querer usa-Io, como sinonimo
de processos racionais, sera necessaria distinguir entre urna intui-
,"0 baixa e uma intuicao alta.
A antiga fisiognornonia arabe estava baseada na [irasa: n~iio
complexa, que designava em geral a capacidade de passar imediata-
mente do conhecido para 0desconhecido, na base de indfcios.P 0
termo, extraido do vocebuldrio dos sufi, era usado para designar
tanto as intuicoes misticas quanta as formas de discernimento e
sagacidade, como as atribuidas aos filhos do rei de Serendip.l"
Nessa segunda acepcao, a [irasa nao e senao 06rg80 do saber indi-
ciario.!"
Essa "intuicdo baixa" esta arraigada nos sentidos (mesmo su-
perando-os} - e enquanto tal niio tern nada a ver com a intuicao
supra-sensivel dos varies irracionalismos dos seculos XIX e xx. E
difundida no rnundo todo, sem limites geogrdficos, historicos,
etnieos, se xuai s ou de dasse - e e s18, portanto, muito distantede qualquer forma de conhecimento superior, privilegio de poucos
eleitos. E patrimdnio dos bengaleses expropriados do seu saber
por sir William Herschel, dos cacadores, dos marinheiros, das
mulheres. Une estreitamente 0 animal homem as outras especies
animais.
5. Mas pode urn paradigma indiciario ser rigoroso? A orien·
t~ quantitativa e aatjaattopocPatrica das dCadas da patureza J
a p~r~ir.d~.,G~iley..£Q]QhOlI as ciencias ~]
dile_~~: ()!:lJ~I!!lI.iLwn.eS1lltl.ltl.l.~@(~~giJ parachesar are·
sultados relevantes, ou assumir urn estatut9.cientlfico forte para
ch~g~;-a--;:;~;-Ii£~kYiP~~~ S6 •a lingiiistica conse-
gulu,iib (I"erom,"r~'kIo, subtrair-se a esse dilema, por issopondo-se como modelo, mais ou menos atingido, tambern para
outras disciplinas.
Mas vern a diivida de que este tipo de rigor e nao sO inatin-
givel mas tambt'm indesejavel para as formas d e saber maio ligadas
a experiencia cotidiana - OU, mais precisamente, a todas as situa-
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