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Geometria Hiperbólica: uma proposta didática a distância
Orientanda: Marília Valério Rocha Orientador: Prof. Dr Saddo Ag. Almouloud
Introdução
Na maioria dos cursos de licenciatura em Matemática, o estudo das geometrias
não-euclidianas não é uma realidade freqüente 1 , obrigando o futuro professor de
matemática a, caso seja de seu interesse, buscar esse conhecimento fora da graduação.
Reconhecendo a importância histórica do surgimento das outras geometrias,
além da euclidiana, no desenvolvimento da própria matemática e também na oportunidade
de conhecer outro estudo axiomático da geometria, elaboramos uma proposta didática
sobre o estudo da geometria hiperbólica.
A fim de atingir um número maior de professores idealizamos a apresentação,
numa página da Internet, de uma seqüência didática sobre o tema, orientados pelos estudos
de Duval (1993) e Brousseau (1986). A investigação será centrada na questão de pesquisa
“o conhecimento de outras geometrias poderá contribuir para a formação do professor de
matemática?” Acreditamos que a compreensão dos dados extraídos dessa pesquisa poderá
ser relevante para a comunidade de educadores no sentido de levantar alternativas
didáticas, contribuindo assim com a prática pedagógica do professor e também para a sua
formação específica.
Fundamentação Teórica
Raymond Duval publicou vários textos sobre a importância da demonstração
no ensino de matemática, em particular na geometria, e defende que, cognitivamente, a
demonstração requer uma maneira de raciocinar específica. O termo demonstração deve
ser entendido como uma prova matemática formal, na qual a validação de um resultado é
obtida pela aplicação de uma regra da lógica proposicional.
1 Cabariti (2004) elaborou um levantamento consultando, via Internet, as ementas dos cursos ou disciplinas de geometria em onze universidades ou faculdades nacionais, verificando que somente quatro (sendo que em duas a disciplina era proposta como optativa) propunham o estudo de geometrias não-euclidianas.
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Estudando o comportamento de alunos com idade entre 13 e 14 anos, Duval
(1990) cita os passos que marcam o funcionamento desse processo de raciocínio: a
inferência e o encadeamento. Uma demonstração apresenta uma estrutura ternária, devendo
contemplar uma premissa (hipótese), regras de inferência (axiomas, teoremas, definições)
que permitem concluir uma afirmação (tese). Podemos esquematizar segundo a figura 1:
Regras de Inferência
Verificação das
condições
Premissa Inferência
Conclusão
Figura 1: Estrutura Ternária de um passo da demonstração
As condições da premissa são verificadas utilizando uma determinada regra de
inferência e, somente então é possível se inferir para se chegar a uma conclusão, ou seja, a
conclusão é obtida pela implicação da regra de inferência. Essa estrutura (premissa, regra
de inferência e conclusão) terá um “estatuto operatório” definido no interior de uma
demonstração e, à medida que o encadeamento de inferências é feito, seu papel pode se
alterar. Exemplificando, o que foi uma conclusão num passo da demonstração (numa
estrutura ternária) pode se tornar uma premissa no passo seguinte.
Duval (1993) propõe que somente a partir do entendimento de tal
encadeamento é que o aluno se apropria desse conhecimento, a partir do qual a
demonstração passa a ser compreendida como um encadeamento de passos válidos.
Guy Brousseau (1986) desenvolveu a Teoria das Situações Didáticas (TSD),
que tem como objetivo analisar as interferências que ocorrem no ensino da matemática, e
posteriormente modelar estratégias vencedoras, considerando as relações entre o professor,
aluno e o saber almejado. O papel inicial do professor é a elaboração de uma situação em
que o aluno, considerando seus conhecimentos anteriores, consiga elaborar estratégias de
resolução a partir de sua ação com um meio propício ao processo de ensino e
aprendizagem. O aluno deve assumir a responsabilidade de seu aprendizado, devendo se
comprometer com a tentativa de criar alternativas de resolução à situação proposta. “O
professor tem, pois, de imaginar e propor aos alunos situações que eles possam viver e nas
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quais os conhecimentos apareçam como a solução ótima e passível de ser descoberta para
os problemas colocados” (Brousseau, 1986, p.38).
A TSD sugere quatro fases distintas para o processo de ensino e aprendizagem,
que resumidamente apresentamos:
1. Situação de Ação: momento em que se espera que o aluno se articule,
individualmente ou em grupo, na tentativa de solucionar um problema
proposto. Agindo com o meio, o aluno deve buscar uma solução,
provocando uma aprendizagem por adaptação. Nessa fase o professor
deve observar o desenvolvimento das estratégias elaboradas.
2. Situação de Formulação: momento em que o aluno deve formular suas
estratégias de resolução, socializando-as com o grupo, justificando as
soluções propostas.
3. Situação de Validação: momento em que o aluno utiliza mecanismos de
provas para a solução de um problema, divulgando suas descobertas. O
professor deve mediar as apresentações no sentido de valorizar as
estratégias vencedoras e uniformizar os avanços conquistados pelos
alunos.
4. Situação de Institucionalização: após a exploração da situação proposta,
quando o saber em questão emergiu na situação de validação, o
professor finalmente deverá expor o conteúdo pretendido, o que terá
mais significado para o aluno, que então poderá utilizar esse saber na
resolução de outras situações.
Entendemos que o TSD pode ser utilizada no ensino a distância, uma vez que o
professor cria as situações antecipadamente. Pensamos também em incluir na proposta os
pré-requisitos necessários para o início das atividades.
A dialética da ação propicia ao aluno momentos individuais de investigação,
onde o professor não deverá interferir. A socialização pode ocorrer em momentos
síncronos. As formulações poderão ser validadas pelos alunos através do confronto de suas
respostas com as soluções que serão divulgadas e ainda através da troca de informações,
através de e-mails ou fóruns.
Observando a teoria de Duval, pensamos em produzir as demonstrações,
evidenciando, passo a passo, em três colunas (número do passo, passo e justificativa) de
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maneira a tornar explícito o raciocínio lógico empregado. Elaboramos também um quadro
Resumo da Geometria Absoluta, com a numeração dos axiomas, definições e teoremas,
que poderão ser utilizados nas justificativas das demonstrações. A cada atividade esse
Resumo foi atualizado com os axiomas, definições e teoremas estudados, compondo o
Resumo da Geometria Hiperbólica.
Tecnologia e Ensino a Distância
O uso da Internet é uma realidade que, num mundo globalizado, possibilita
acesso às informações nunca antes imaginado. Embora esse acesso seja imediato, ainda é
grande a carência de materiais de ensino, que sejam apresentados numa linguagem
apropriada e que fundamentalmente sejam capazes de produzir um novo saber.
O acesso às mídias pode ser aproveitado como mais uma possibilidade de
contribuição à educação tradicional, ou ainda como um veículo que viabiliza o ingresso de
muitos estudantes a uma formação, ou especialização, outrora impossível. O Ensino a
distância oficial, ou mesmo a disponibilização de material didático na rede é crescente e
ocupa hoje um lugar relevante. Não é nossa intenção resgatar a história do ensino a
distância, ou mesmo seus benefícios ou problemas, mas partirmos do pressuposto que, os
desenvolvimentos tecnológicos e sua popularização permitiram que o Ensino a Distância
se afirmasse desde a década de 80, o que representa uma revolução definitiva na educação,
devendo se ocupar cada vez mais da formação dos indivíduos.
Pretendemos aplicar nossa pesquisa através de uma plataforma de ensino a
distância, de maneira a potencializar esse recurso através do uso de suas ferramentas
síncronas e assíncronas.
Numa proposta para o ensino de geometria, entendemos que a utilização de
softwares de geometria dinâmica pode contribuir para a aprendizagem, pois proporcionam
momentos de investigação, que podem colaborar para que o aprendiz avance em seus
conhecimentos. Após uma análise dos principais softwares de geometria dinâmica optamos
pelo Cinderella 2 . Ele foi criado na Alemanha por Jϋrgen Richter-Gebert e Ulrick
2 Balcewicz idealizou um estudo de caso com o software Cinderella para analisar o ensino de desenho em ambiente virtual, e concluiu que 80% das respostas foram positivas, “o que possibilita inferir que o software Cinderella ora avaliado é “muito bom” e apropriado para a mediação do ensino de desenho. Considerando os resultados apresentados nesta pesquisa, pode-se afirmar que os recursos disponibilizados no software Cinderella são adequados como instrumento de mediação para o processo de ensino-aprendizagem do
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Kortenkamp (Gerbet & Kortenkamp; 1996-2003) é dinâmico e escrito na linguagem JAVA
(Sum Microsystems – 1992). Seu principal diferencial é a exploração da mesma construção
em diferentes geometrias (euclidiana, hiperbólica e esférica) e a facilidade para salvar as
construções como página HTML para disponibilização na Internet. O modelo hiperbólico
(disco de Poincaré) faz parte do software (suporte nativo) não sendo necessária a sua
construção. Permite a elaboração de exercícios interativos com sugestões e posterior
verificação automática da solução, mesmo que o usuário não tenha a sua licença.
Questão de Pesquisa
O problema central de nossa pesquisa é “o conhecimento de outras geometrias
poderá contribuir para a formação do professor de matemática?”.
Nossa pesquisa se apóia em três hipóteses:
• Os conhecimentos da geometria hiperbólica devem influenciar
positivamente a prática do professor de geometria euclidiana.
Considerando as dificuldades apresentadas pelos graduandos, amplamente
discutidas no meio acadêmico, na apreensão dos conceitos da geometria euclidiana e na
compreensão das demonstrações formais, entendemos que a perspectiva de uma nova
geometria, confrontada com a geometria euclidiana, poderá contribuir para que o professor
termine por assimilar melhor também esta última.
Conhecer o desenvolvimento histórico e epistemológico da geometria, sua
repercussão em vários campos da ciência, entre eles na filosofia, na física, e na própria
concepção de Ciência, se torna fundamental na formação do professor, tornando-o mais
crítico e ampliando suas possibilidades nas escolhas futuras das variáveis didáticas, que
serão utilizadas na sua produção como professor.
• Seqüências didáticas aplicadas a distância podem contribuir para a
apreensão de um novo saber. desenho, analisados na interface pedagógica, recomendando-se este como recurso didático para as disciplinas de desenho geométrico, desenho técnico e geometria descritiva. BALCEWICZ (2003, p. 87)
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O ensino a distância cada vez mais será o responsável pelo aprimoramento
contínuo dos futuros profissionais. Propiciar uma aprendizagem efetiva através desse
recurso torna-se uma preocupação central do atual professor. Segundo Lévy (1997, p.2,
tradução nossa do italiano)
Se olharmos, ao mesmo tempo, a velocidade na qual os conhecimentos se desenvolvem, a extensão da capacidade cognitiva individual mediante as tecnologias, a as novas possibilidades de aprendizagem cooperativa e de colaboração entre as pessoas, no nível intelectual, eu acredito que nos deparamos com uma paisagem completamente nova na relação com o saber e somos obrigados a constatar que muitas de nossas concepções pedagógicas a respeito do ensino e aprendizagem, muitas das nossas instituições de ensino e dos nossos métodos para reconhecer ou validar competências foram elaboradas num período em que a relação com o conhecimento era muito diferente do atual. Então, há muito trabalho a fazer para que os nossos conceitos, as nossas instituições, os nossos modos de organização se adaptem a essa nova fase. LÉVY (1997, p.2, traduzido por nós do original italiano).
Entendemos que os recursos das atuais plataformas de ensino, aliado a
elaboração de seqüências didáticas que valorizem a descoberta do aprendiz e otimize as
qualidades de uma ferramenta didática, podem contribuir para um efetivo aprendizado.
• A apresentação das demonstrações em três colunas (número do passo,
passo, justificativa) favorece a aprendizagem do raciocínio lógico.
Nossa pesquisa tem o interesse de averiguar se essa exposição é eficaz no
processo de aprendizagem das demonstrações. Acreditamos que a explicitação de todos os
passos de uma demonstração, feita em três colunas, favoreça o entendimento, minimize as
eventuais dúvidas e incentive os estudantes a elaborar suas próprias demonstrações.
Desenvolvimento do material didático
Apoiados nos estudiosos citados iniciamos o processo de criação do material
didático. Na tela inicial da página foram incluídos os seguintes links:
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Figura 2: Tela Inicial
1. Mapa do Site: apresenta a disposição dos tópicos na página,
contribuindo para uma navegação satisfatória.
2. Apresentação: onde as intenções de nossa proposta são explicitadas
através de três quadros que apresentam respectivamente a descrição do
curso, sua dinâmica e o seu conteúdo programático.
3. Tópicos Históricos: apresenta um resumo histórico do desenvolvimento
das geometrias não-euclidianas.
4. Demonstrações: apresenta um histórico do desenvolvimento da
demonstração matemática, tendo como objetivo a apresentação da
linguagem que será utilizada nas atividades.
5. Atividades: contém as doze atividades onde o conteúdo é exposto.
6. Outros: apresenta os questionários inicial e final, as atividades que
serão propostas nos dois fóruns e a delineação do conteúdo do chat
inicial.
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7. Atividade Final: apresenta uma atividade a ser elaborada no término do
curso, onde constam questões sobre o conteúdo proposto.
8. Sites Relacionados: apresenta alguns links de trabalhos com geometria
hiperbólica e história, disponíveis na rede.
9. Software Cinderella: apresenta o link da página oficial desse software.
Os temas históricos foram abordados segundo a seguinte organização:
Figura 3: Tópicos Históricos
O conteúdo foi assim distribuido ao longo das atividades:
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Figura 4: Descrição das Atividades
Nos preocupamos em incluir em nossas atividades os seguintes momentos:
Investigações dinâmicas: onde as construções geométricas previamente
elaboradas são apresentadas e se propõe que aluno investigue determinado teorema.
Figura 5: Cópia Parcial da Atividade 3
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Construções geométricas: são solicitadas construções geométricas através de
exercícios previamente construídos com esse recurso do software, onde o aluno pode
verificar de imediato se a construção está correta. Em caso negativo é possível validar
passo a passo da construção para a retomada da atividade. Exploramos também outro
recurso do software, onde uma mesma construção geométrica pode ser visualizada nos dois
planos: euclidiano e hiperbólico.
Figura 6: Cópia Parcial da Atividade de Introdução
Exercícios de demonstrações: com a evolução das atividades e a familiarização
com a metodologia empregada nas demostrações o aluno é convidado a elaborar suas
próprias demonstrações.
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Figura 7: Cópia parcial da Atividade 8
Comparação entre as geometrias: algumas investigações dinâmicas são
apresentadas nos dois modelos, permitindo que o aluno compare o comportamento de
alguns entes geométricos.
Figura 8: Cópia Parcial da Atividade 2
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Análise de Situações: após a apresentação de uma determinada definição ou
teorema, o aprendiz é convidado a analisar uma determina situação, cuja solução exige o
resgate de um conteúdo da geometria euclidiana e a aplicação dos novos conhecimentos.
Figura 9: Cópia Parcial da Atividade 7
Conclusão Parcial
No momento atual, terminados os estudos a priori e a confecção da página,
pretendemos aplicar uma engenharia didática3 em alunos de graduação que tenham cursado
a disciplina de geometria euclidiana.
Acreditamos que tal proposta permitirá ao aprendiz uma reflexão que
possibilite avançar em seus conhecimentos, e repensar o ensino de geometria, porém
somente após a experimentação estaremos aptos a validar nossos questionamentos.
Referências Bibliográficas ARTIGUE, Michèle. Engenharia Didática. In: BRUM, Jean (Dir.). Didáticas das Matemáticas.Tradução de Maria José Figueiredo. Lisboa: Instituto Piaget, 1994. Cap. 4. p. 193-217. (Coleção Horizontes Pedagógicos). BALCEWICZ, Raquel Cruz. Ambiente Virtual para o ensino de desenho: um estudo de caso com a mediação do uso do software Cinderella. 2003. 96f. Dissertação (Mestrado em Engenharia de Produção – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis. BROUSSEAU, Guy. Fundamentos e Métodos da Didática da Matemática. In: BRUM, Jean (direção). Didáticas das Matemáticas. Tradução de Maria José Figueiredo. Lisboa: Instituto Piaget,1986. Cap.1. p. 35-113. (Coleção Horizontes Pedagógicos).
3 Uma engenharia didática “se caracteriza por um esquema experimental baseado em realizações didáticas em sala de aula, isto é, na concepção, na realização, na observação e na análise de seqüências de ensino” (ARTIGUE, 1996, p.196)
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BRASIL. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação/ Câmara de Educação Superior. Diretrizes Curriculares Nacionais para os cursos de Matemática, Bacharelado e Licenciatura. Brasília: 2001. CABARITI, Eliane. Geometria Hiperbólica: uma proposta didática em ambiente informatizado. 2004. 180f. Dissertação (Mestrado em Educação Matemática) – Pontifícia Universidade Católica, São Paulo. DUVAL, Raymond. Quels sont les éléments constitutifs d'un raisonnement. In : IREM de Strasbourg, 1993, Strasbourg, p.195-221. LÉVY, Pierre. Evoluzione del concettto de sapere nell’era telematica. Veneza, 1997. Disponível em http://www.mediamente.rai.it/home/bibliote/intervis/l/LÉVY02.htm. Acesso em 10 nov. 2006.