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Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLT 56 – Arquivos da memória literária e cultural da América Lusa.
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FONTES PRIMÁRIAS E REDESCOBERTAS: O CASO DE EMÍLIA DA MAIA
Mauro Nicola PÓVOAS1 RESUMO O presente trabalho originou-se de estágio pós-doutoral que realizei na Biblioteca Nacional de Portugal, em 2008, com o apoio da CAPES. O projeto, intitulado “Um estudo de fontes primárias: a presença da literatura brasileira em periódicos portugueses do século XIX (1850-1900)”, intentou mapear, em jornais, revistas e almanaques de procedência portuguesa, textos de e sobre escritores canônicos e não-canônicos pertencentes à literatura brasileira. Entre as inúmeras composições coletadas ao longo da pesquisa, constam vários poemas – publicados nas revistas A Voz Feminina e O Progresso, nos anos de 1868 e 1869 – da hoje pouco lembrada poetisa luso-brasileira Emília da Maia. O texto, a partir de fontes primárias e periódicas, busca rastrear, analisar e divulgar a obra dessa autora, que teve, com o passar dos anos, a sua produção literária obscurecida, como aconteceu, por uma série de razões, com tantas outras mulheres escritoras do século XIX. PALAVRAS-CHAVE Emília da Maia; periodismo literário; fontes primárias; século XIX; Romantismo.
Em 2008, passei alguns meses em Lisboa, para, com o apoio da CAPES, realizar
estágio de pós-doutorado intitulado “Um estudo de fontes primárias: a presença da
literatura brasileira em periódicos portugueses do século XIX (1850-1900)”, projeto que
teve como fim específico analisar a literatura brasileira em periódicos – jornais, revistas
e almanaques – portugueses, em especial lisboetas. Pesquisando no acervo da Biblioteca
Nacional de Portugal, um das “descobertas” que mais me chamaram a atenção foi ter
me deparado, nas páginas de A Voz Feminina (depois O Progresso), com dezessete
poemas de uma autora que eu ignorava quem fosse: “D. Emília A. M. da Maia”,
maneira como em geral ela era referenciada nas páginas dos dois periódicos, que
circularam nos anos de 1868 e 1869.
1 Professor da Universidade Federal do Rio Grande (FURG), Instituto de Letras e Artes (ILA). Endereço: Rua Duque de Caxias, 88/302, CEP: 96200-020, Rio Grande/RS, Brasil. mnpovoas@cpovo.net.
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Como naquele momento não conhecia a origem da poetisa, despertou o meu
interesse o fato de os seus textos, por momentos, fazerem referência explícita a
escritores e elementos brasileiros, o que trouxe à baila a expectativa de que fosse Emília
da Maia brasileira, o que depois se confirmou, não sem alguma dificuldade, advinda da
quase completa ausência da autora em livros referentes às Literaturas Brasileira e
Portuguesa.
São raras as ocorrências ao nome de Maia nas mais diferentes fontes, seja em
críticos e historiadores da Literatura Brasileira, seja da Portuguesa. As mais diferentes
obras – manuais, dicionários bibliográficos, antologias, histórias – foram consultadas,
sem sucesso: Inocêncio Francisco da Silva, Sacramento Blake, Jacinto do Prado Coelho,
Raimundo de Menezes, Massaud Moisés/José Paulo Paes, Celso Pedro Luft, Afrânio
Coutinho e J. Galante de Sousa, entre outros; sem contar os livros específicos de
literatura feminina, cuja consulta também resultou infrutífera: Alzira Freitas Tacques,
Hilda Agnes Hübner Flores, Nelly Novaes Coelho e Zahidé Lupinacci Muzart.
Porém, dois verbetes de dicionários dedicados ao sexo feminino trouxeram
alguma luz sobre quem era essa mulher que escrevia em Portugal, na segunda metade
do século XIX. O Dicionário mundial de mulheres notáveis (1967), de Américo Lopes
de Oliveira e Mário Gonçalves Viana, aponta o seguinte:
MAIA, Emília Adelaide Moniz da (1848-1919). Poetisa portuguesa,
natural do Rio de Janeiro; mulher do general português José Rufino
Moniz da Maia. Tinha 15 anos, quando publicou, na Revista Popular,
do Rio de Janeiro, a poesia “Súplica”, que foi muito bem recebida.
Colaborou em jornais portugueses: A Voz Feminina, Almanaque das
Senhoras etc. Publicou as seguintes obras: Fleurs (1878); Penas
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(1912); As sete palavras de Nosso Senhor Jesus Cristo (1916);
Angelus etc. Era muito caritativa; o produto da venda dos seus livros
destinava-se, em parte, a fins benemerentes. Nunca esquecia os
infelizes e os pobres: viúvas, soldados de comportamento exemplar,
órfãs etc. // Foi mãe do actor Fernando Maia, falecido
prematuramente, quando ocupava o cargo de gerente do Teatro
Nacional de D. Maria II. (OLIVEIRA; VIANA, 1967, p. 790)
Embora parcas, as informações são importantes frente à exigüidade de dados
sobre Emília da Maia. Por meio do verbete, fica-se sabendo que a escritora é brasileira
de nascença, embora tenha vivido e constituído família em Portugal. Elementos tanto da
sua vida particular como da sua vida literária também vem à tona, como o nome
completo, os anos de nascimento e falecimento, o nome de seu marido e filho, a estréia
com a publicação de um poema no Rio de Janeiro, as revistas em que publicou e os seus
livros.
Já Ilda Maria Assunção e Silva Soares de Abreu, no verbete “Emília Adelaide
Moniz da Maia”, incluído no Dicionário no feminino (2005), corrige algumas
informações anteriores e acrescenta outras. Por exemplo, sabe-se que era filha de José
Alves da Silva Gatueiro e de Maria Rosa da Silva, e que faleceu, na verdade, em 1912,
em Lisboa, para onde veio em 1863. Antes, aos 14 anos de idade, escreveu o poema
“Adeus à pátria”, em homenagem ao Brasil. O texto de Ilda de Abreu ainda registra,
com detalhes, as ações de benemerência da poetisa, assim como a sua participação na
Voz Feminina e no Almanaque das Senhoras, de propriedade de Guiomar Torresão, de
quem era amiga. Por fim, diz que os poemas “Amor e desejo” e “Amélia”, de Maia,
foram traduzidos para a Língua Francesa por Gonçalves Dias.
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Assim, foi a presença mínima de Emília da Maia na historiografia literária de
Língua Portuguesa, de ontem e de hoje, o motivo maior de trazer à tona, de novo, os
poemas dessa, nos dias que correm, pouco conhecida escritora. Antes, porém, algumas
palavras sobre os periódicos (na verdade, era como se os dois fossem um só; apenas
houve uma mudança de nome no decorrer da existência da revista) onde foram
publicados os textos da poetisa luso-brasileira.
A Voz Feminina era, conforme o seu subtítulo apontava, um “Jornal semanal,
científico, literário e noticioso exclusivamente colaborado por senhoras. Dedicado à
ilustração das senhoras”. Pode-se ver, somente por aí, que o periódico tinha um público
bastante definido, qual seja, as mulheres, que eram, cada vez mais, no século XIX, alvo
de empreendimentos tipográficos. A intenção de A Voz Feminina era a de ser um órgão
completo para o sexo feminino, servindo de fonte de informação, diversão e cultura,
publicando, para tanto, textos literários (em especial, poemas), críticas literárias, artigos,
notícias, charadas, correspondências, anúncios. De inicio, eram proprietários do jornal
os Srs. Janeiro e Macedo, sendo redator o Sr. Pinho Almeida; logo porém William T.
Wood (de origem inglesa) e Francisca de Assis Martins Wood passaram a ser os
administradores do órgão, que era impresso na Tipografia da Voz Feminina, depois
Tipografia Luso-Britânica; as gráficas localizaram-se, sucessivamente, às ruas de São
Bento, Fonte Santa e São Domingos à Lapa. Além de Francisca Wood e Emília da
Maia, podem ser ainda destacadas, entre as colaboradoras (que não eram apenas
mulheres, como prometia o cabeçalho), Amélia Janny, Guiomar Torresão, Mariana
Angélica de Andrade e Maria Cândida Colaço. Circulou de 5 de janeiro de 1868 (n. 1) a
27 de junho de 1869 (n. 76), sob o título A Voz Feminina, e entre 4 de julho (n. 77) e 26
de dezembro de 1869 (n. 102), com o nome de O Progresso; nas duas fases, sempre
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teve quatro páginas por edição. Cumpre repetir que a troca de denominação não trouxe
mudanças editoriais, gráficas ou de colaboradores ao periódico; o único elemento que
varia de um para o outro é que O Progresso tinha a numeração de páginas contínua ao
longo de suas edições.
Os dois jornais, embora de vida curta, tiveram uma trajetória acidentada, em
especial devido às reações da sociedade portuguesa da época, cujo pensamento burguês
não permitiu, muitas vezes, compreender os intentos do casal Wood. Foram diversas
trocas de caráter formal ou logístico – nome, diretores, redatores, endereço, tipografia:
Todas estas mudanças não são obra do acaso. Ao folhear com atenção
a colecção completa do jornal facilmente compreendemos que se
devem, sobretudo, ao choque entre a mensagem que a Voz Feminina
transmite e as resistências declaradas ou sub-reptícias que a
mentalidade comum oferecia aos ideais de libertação da mulher
(LEAL, 1992, p. 68).
Porém, o pensamento ideológico, político e religioso do “primeiro jornal
feminista surgido na Europa” (LEAL, 1992, p. 71) não mudou com o passar das
edições, o que igualmente acabou por trazer prejuízos ao empreendimento, afastando o
público, em geral de índole conservadora. Assim, o fato de mulheres escreverem e a
defesa da causa feminista eram aspectos ridicularizados, com os leitores, muitas vezes,
não acreditando na autoria feminina dos textos (ILDEFONSO, 1998, p. 11-12); a
questão ibérica, que teve um dos seus picos em 1868, foi mal conduzida pelo periódico
(ILDEFONSO, 1998, p. 23-25); e, por fim, em muitos momentos, o casal Wood trouxe
à baila textos em que se sobressaía um posicionamento anticlerical e antijesuítico, o que
desagradava à maioria católica do país luso (ILDEFONSO, 1998, p. 25-26).
Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLT 56 – Arquivos da memória literária e cultural da América Lusa.
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Ana Maria Costa Lopes, em livro que discute as imagens femininas na imprensa
feminina oitocentista, aponta que A Voz Feminina e O Progresso eram periódicos ricos
e multifacetados, abundantes em material passível de estudos. A intervenção do casal
Wood na imprensa periódica lusitana, nos terrenos social, político e lítero-cultural, é
notável, só encontrando par em Antónia Pusich, que dirigiu os jornais A Assembléia
Literária, A Beneficência e A Cruzada, desde o final da década de 1840 e ao longo da
década de 1850. Para Costa Lopes, os periódicos dirigidos pelos Wood contribuem para
o desenvolvimento de uma nova geração de mulheres, relacionando-as a outras
capacidades que não as ligadas estritamente à moda ou à vida doméstica e mundana. A
Voz Feminina e O Progresso, entre outros assuntos, discutem a educação e a instrução,
temas importantes, à época, para se pensar a emancipação intelectual das mulheres:
De facto, eles [William e Francisca Wood] seguem uma clara
estratégia de reversão das práticas que levavam à subordinação
feminina, através da comunicação entre elas. Com isto, alargava-se o
espaço doméstico, o do país, a outros mais dilatados, os de além-
fronteiras. Queria-se mostrar e provocar outros modelos de
comportamento através de imagens diferentes das habituais,
condenando algumas das existentes; multiplicar os espaços de
intervenção feminina e redefinir os papéis masculinos e femininos.
(LOPES, 2005, p. 361)
Emília da Maia tem artigos sobre esses assuntos analisados por Ana Maria Costa
Lopes, como o que foi publicado à página 4 de A Voz Feminina, n. 63, de março de
1869, em que a autora luso-brasileira deseja
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que em Portugal (...) e que o nosso sexo, que até hoje tem olhado com
indiferença para uma coisa tão importante como é a aplicação ao
estudo, se desembaraçasse dessa inação tão prejudicial que o tem
subjugado há tantos séculos. (LOPES, 2005, p. 425)
Se a Maia-articulista era solidária com o despertar de uma nova era para as
mulheres, a Maia-poetisa foge da linha feminista, como se a literatura não fosse o
espaço adequado para tais reflexões; como se a poesia, “pura”, não pudesse ser
manchada por discursos comprometidos com o cotidiano, enfadonho e comezinho. Nos
dezessete poemas de Emília da Maia encontrados nas revistas A Voz Feminina e O
Progresso, abaixo relacionados, a vertente predominante será a romântica, com temas
como a evasão, a infância, a pátria e a religiosidade dando o tom à lírica da autora2:
1) “Saudades da infância”, A Voz Feminina, Lisboa, n. 5, p. 3-4, 8 fev. 1868;
2) “A vida”, A Voz Feminina, Lisboa, n. 8, p. 4, 8 mar. 1868;
3) “O quê?”, A Voz Feminina, Lisboa, n. 13, p. 4, 12 abr. 1868;
4) “A suicida”, A Voz Feminina, Lisboa, n. 17, p. 4, 10 maio 1868;
5) “A Virgem do mar”, A Voz Feminina, Lisboa, n. 20, p. 4, 31 maio 1868;
6) “A fé”, A Voz Feminina, Lisboa, n. 23, p. 4, 21 jun. 1868;
7) “Charadas”, A Voz Feminina, Lisboa, n. 30, p. 4, 9 ago. 1868;
8) “Canção do exílio”, A Voz Feminina, Lisboa, n. 34, p. 4, 6 set. 1868;
9) “Oração de virgem”, A Voz Feminina, Lisboa, n. 35, p. 4, 13 set. 1868;
10) “Recordações”, A Voz Feminina, Lisboa, n. 39, p. 4, 11 out. 1868;
2 Pela digitação e atualização dos poemas, agradeço a Suellen Rodrigues Rubira, acadêmica do curso de Letras Português/Inglês da FURG e bolsista PIBIC/CNPq no projeto “Um estudo de fontes primárias: a presença da literatura brasileira em periódicos portugueses do século XIX (1850-1900)”.
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11) “Canto materno. À minha inocente filhinha”, A Voz Feminina, Lisboa, n. 43, p.
4, 8 nov. 1868;
12) “Uma lágrima. À memória de uma amiga”, A Voz Feminina, Lisboa, n. 53, p. 4,
17 jan. 1869;
13) “Tu’alma. À minha irmã Elisa”, O Progresso, Lisboa, n. 81, p. 130, 1º ago.
1869;
14) “És um anjo. A uma menina”, O Progresso, Lisboa, n. 84, p. 142, 22 ago. 1869;
15) “O velho pescador”, O Progresso, Lisboa, n. 94, p. 181 e 183, 31 out. 1869;
16) “Aos anos de uma menina”, O Progresso, Lisboa, n. 101, p. 210, 19 dez. 1869;
17) “A monja”, O Progresso, Lisboa, n. 102, p. 214, 26 dez. 18693.
Em muitos deles, há a recorrência à evasão do eu-lírico que, aborrecido com a
sua vida e com o mundo que o cerca, demonstra enfado, muitas vezes querendo fugir,
seja pela morte, pela fé ou pelo sonho e pelo devaneio. “A vida”, por exemplo, traz
esses elementos configurados na primeira estrofe:
A vida! O que é a vida mais que um sonho
Que aborrece ou apraz?
A vida é como a nuvem passageira,
Que antes os raios do sol passa ligeira,
E breve se desfaz.
Às vezes, não é o sujeito poético que se mostra cansado, mas as pessoas que o
rodeiam, como a moça que fica a cismar, em “O quê?”:
Em que cismas donzela? Que amargura
Enluta a tua fronte entristecida?
3 Alguns desses poemas foram, a partir da década de 1870, republicados no Almanaque das Senhoras, conforme aponta o verbete de Ilda de Abreu do Dicionário no feminino.
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Nessa idade feliz, doce e risonha
Dos sonhos juvenis, o que te pesa?
– A vida.
A existência como fardo, como peso, é aspecto que fica claro também em “A
suicida”, em que um eu-lírico feminino morto vem do além para justificar o seu ato de
dar cabo à própria vida: não foi por covardia, mas pelo cansaço causado pelas contínuas
mágoas e traições a que foi exposta, e pela falta de encanto do mundo. Tanto é assim
que, em “Uma lágrima. À memória de uma amiga”, a homenageada é uma “flor
delicada” que caiu “ao sopro do vendaval”; após a sua morte, “risonha”, ela voou “para
o seio do Senhor”, deixando para os que na terra ficaram um “fundo abismo de dor”.
O agasalho na religiosidade – presente nos poemas “A fé”, “Oração de virgem”
e “A monja – mostram, por outro viés, essa contínua insatisfação do eu-lírico frente a
uma vida que se descortina infeliz e dolorosa, com a morte, outra vez, constituindo-se
na única solução possível. Não à-toa, a moça do título de “Oração de virgem” reza ao
Senhor pela “glória, mas a glória / Que só pode existir do mundo além”. Já a monja do
poema de mesmo nome ora para sair do isolamento do claustro, para assim poder “sentir
no seio virgem / A chama divinal dum casto amor”; o sujeito poético a admoesta, no
entanto, pois a vida que ela leva é pura e tranqüila, até porque “O mundo é caos que
devora”, e nele “só há espinhos”.
Cantam-se, igualmente, a infância e a meninice, momentos de “gozo”,
“ventura”, “fulgores”, “fulgente luz”, “prazer”, “encantos”, como os poemas “És um
anjo. A uma menina” e “Aos anos de uma menina” deixam entrever. Exalta-se a
juventude por ser este um período em que as ilusões permanecem intocadas, como pode
ser visto em “Tua’alma. À minha irmã Elisa”:
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Oh! folga Elisa, folga enquanto o mundo
Em deleitosos sonhos te embalar,
Que depois chorarás por esse tempo,
Que embalde o buscarás sem mais achar.
Ou, ainda, em “O velho pescador”, em que o eu-lírico lembra do dia, há muitos
anos, em que brincava à beira-mar, momento em que um pescador aproxima-se em sua
embarcação e pergunta se a criança não teme brincar sozinha em lugar tão ermo, ao que
a menina responde serem preocupações em demasia do velho. Este, em sua tréplica,
responde longamente, sempre tentando mostrar a falsidade do mundo, como fica claro
nos trechos abaixo selecionados:
– Quando dos sonhos de ilusões douradas
Romper-se o véu,
Verás a terra se tornar inferno
Em vez de céu.
(...)
– Verás no meio dos salões pomposos
Linda donzela.
Com negra mancha de pesar infausto
Na fronte bela.
Além dos pontos acima vistos, na poesia de Emília Maia estampada em A Voz
Feminina e em O Progresso também se observa a glosa de dois autores canônicos do
Romantismo brasileiro, Casimiro de Abreu e Gonçalves Dias, numa evocação de algo
que já passou, seja temporalmente, seja espacialmente. A reminiscência temporal é
evocada em especial com o retorno à infância, tema caro aos escritores brasileiros de
cariz romântica, explícita em “Saudades da infância”; a lembrança espacial configura-se
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na saudade do torrão natal, clara em “Canção do exílio”. Em ambos, a autora luso-
brasileira empreende um jogo intertextual que se caracteriza pela paráfrase, primeiro de
Casimiro de Abreu, segundo de Gonçalves Dias – entenda-se, por paráfrase, aquele
texto que, de certa forma, reafirma, com palavras diferentes e por meio de um
deslocamento e de um distanciamento mínimos, aquilo que o texto primeiro coloca (cf.
SANT’ANNA, 1985, p. 16-33).
Em “Saudades da infância”, a matriz de Emília da Maia é o célebre poema de
Casimiro de Abreu, “Meus oito anos”, publicado no livro Primaveras4:
Saudades da infância
Oh! dias da minha infância
Oh! meu céu de primavera.
(C. d’Abreu)
Oh! vida da minha infância!
Doce vida sem igual
Oh! quanto não dera agora,
Para gozar como outrora
Esse viver divinal.
Eu choro, choro os encantos
Do passado viver,
D’aurora da minha vida,
Da minha infância querida
Que nunca mais hei de ver.
Choro saudosa a lembrança
4 Por motivos de espaço, não se publica aqui o texto de Casimiro de Abreu; recomenda-se a leitura comparativa das duas composições, a fim de que fiquem claras as semelhanças entre ambas.
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Daquele tempo ditoso,
Em que eu ia alegremente
Sorrindo brincar contente
No lindo prado viçoso.
Andava, pobre louquinha,
Pelos vergéis a correr
Atrás das aves mimosas,
Que iam nas moitas frondosas,
Mil gorjeios desprender.
Sorria quando nas ondas
Via um batel navegar,
E mais alegre ficava,
Se o pescador modulava
Um canto próprio do mar.
E quando atrás das montanhas,
O sol a fronte encobria,
Eu ia logo a correr,
Com minha mãe aprender
Rezar a Ave-Maria.
Quando o sol dourava os montes,
Ia eu com minha irmã,
Pelas formosas campinas,
Colher as lindas boninas
Rociadas da manhã.
Que céus, que jardins, que flores,
Vinham meus sonhos vestir!
Passava os dias folgando,
Adormecia cantando,
E despertava a sorrir.
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Pobre louca! Mal cuidava
Naquele sonho embebida,
Do mundo tão descuidada,
Que aquela glória sonhada,
Era uma glória mentida!
E hoje, embalde pranteio
O encantado prazer,
D’aurora da minha vida,
Da minha infância querida,
Que mais nunca hei de ver!
8 de fevereiro de 1868.
O título e a epígrafe do poema de Emília da Maia já apontam que a obra
casimiriana é o substrato para a sua construção poética. Parafraseando e ao mesmo
tempo, óbvio, homenageando o poeta fluminense, Maia traz um eu-lírico feminino (a
própria poetisa, em exercício autobiográfico?) que se volta com emoção para a infância,
quadra feliz a que não se pode mais voltar, e que se opõe à vida enfadonha e cansativa
que se afigura no presente, prática evasiva já observada anteriormente na sua produção.
A temática parecida entre ambos encontra eco na questão formal-lingüística,
pois o texto de 1868 traz semelhanças com o poema de nove anos atrás (1859): ambos
são heptassílabos, embora Casimiro se utilize de sete octetos, num total de 56 versos,
enquanto Maia faz uso de dez quintetos, num total de 50 versos; há a cópia literal de
versos de Abreu, por Maia, como em “D’aurora da minha vida, / Da minha infância
querida”; e várias são as palavras que aparecem nas duas produções, evocando os
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mesmos sentimentos, lugares e/ou imagens – “céu”, “mar”, “irmã”, “flor”, “mãe”,
“Ave-Marias” etc.
Na “Canção do exílio” de Emília da Maia também fica cristalino que o seu ponto
de partida é um outro poema clássico; no caso, o homônimo de Gonçalves Dias5,
publicado nos Primeiros cantos6:
Canção do exílio
Minha terra tem palmeiras
Onde canta o sabiá
(G. Dias)
Quero ver esses encantos
Da minha terra natal,
Quero sentir os perfumes
Do meu clima tropical
Quero ver essas palmeiras
Gemendo às brisas do sul.
Quero ver as áureas nuvens
Daquele céu tão azul.
Quero à sombra dos palmares
Nessa terra de Tupã,
Ouvir às horas da sesta
O canto do sabiá.
Quero nas noites estivas
5 O dado retirado do Dicionário no feminino, anteriormente referido, de que Gonçalves Dias traduziu poemas de Emílio da Maia para o Francês, permite deduzir que ambos os autores mantinham algum contato, e que reciprocamente se conheciam e se liam. 6 Por motivos de espaço, não se publica aqui o texto de Gonçalves Dias; recomenda-se a leitura comparativa das duas composições, a fim de que fiquem claras as semelhanças entre ambas.
Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLT 56 – Arquivos da memória literária e cultural da América Lusa.
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Sentar-me à beira do mar,
E ver a lua nas ondas
A nívea face espelhar.
Quero sentir o murmúrio
Das cachoeiras frementes,
Quero ver no céu da pátria
Essas estrelas luzentes
Quero ver entre as estrelas
Um grupo que tem mais luz,
Aquele santo cruzeiro7
Da terra de Santa Cruz.
Quero à sombra das mangueiras
Nas horas do sol ardente,
Na leve rede de penas
Embalar-me docemente.
Naqueles climas ardentes
Há mais doce animação,
Há mais amores na vida
Mais vida no coração.
As serras são mais altivas,
As flores mais peregrinas,
As veigas são mais extensas,
As águas mais cristalinas.
Quero ver esses encantos
Da minha terra natal,
Quero sentir os perfumes
7 Uma constelação de estrelas, que formam perfeitamente uma cruz, e que é conhecida pelo nome de Cruzeiro do Sul. (N. da A.)
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Do meu clima tropical.
Assim como no decalque anterior, aqui também Emília da Maia segue os passos
de seu antecessor, escrito em 1843 e publicado em 1847. Maia escreve em 1868,
momento em que a “Canção do exílio” gonçalvina já tinha se tornado uma referência na
literatura brasileira, com vários escritores rendendo a sua homenagem ao poema – óbvio
que no século XIX não há a presença da paródia e da estilização que aparecerão em
textos como os de Oswald de Andrade, Juó Bananére, Cassiano Ricardo, Carlos
Drummond de Andrade e Jô Soares e muitos outros que, nos séculos XX e XXI,
retomam os famosos versos do poeta maranhense.
Em Maia, o caráter é mesmo de paráfrase; não há a tentativa de inovar, mas sim
de retomar o anterior, com respeito – isso pode ser observado no título, na epígrafe, no
uso do heptassílabo (verso popular, presente também em Casimiro, conforme se viu
acima) e no sentido da composição da luso-brasileira, em que, como em Gonçalves
Dias, também se observa um eu-lírico que diz querer voltar a ver os encantos da terra
natal. Maia, todavia, não traz a mesma ênfase do texto primeiro, que clama: “Não
permita Deus que eu morra, / Sem que eu volte para lá;”; aqui, o verbo-chave é “querer”
(que, aliás, não aparece em Dias): o sujeito poético quer ver (os encantos, as palmeiras),
quer sentir (o clima tropical, o murmúrio das cachoeiras), quer se sentar (à beira do
mar), quer se embalar (na leve rede de penas), sem nunca, no entanto desfazer o local de
onde fala, Portugal, já que não ocorre as comparações efetivamente realizadas em Dias,
por meio do par opositivo “cá” e “lá”. No poema de Maia, se o eu-lírico “quer”, ele,
contudo, nunca pede ajuda aos Céus para que esse intento seja alcançado, e não usa, em
nenhum momento, o verbo “voltar”. Se há arroubos ufanistas, ocorrem sem que se
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procure a comparação que porventura poderia melindrar a nação que a acolhia no
momento, onde, aliás, o texto foi publicado e lido.
Por seu turno, “Recordações” é um poema que realiza a junção das temáticas
trabalhadas a partir da leitura dos poemas de Casimiro de Abreu e de Gonçalves Dias,
demonstrando a devoção de Maia por ambos:
Recordações
Oh! que saudades que eu tenho
Da minha infância gentil,
Daqueles dias tão belos
Passados lá no Brasil!
Naquelas praias tão alvas
Quantas carreiras eu dei!
Naqueles campos viçosos
Que lindos dias passei!
Oh! que saudades que eu tenho
Daquelas várzeas fagueiras,
Onde eu contente brincava
À sombra das bananeiras!
Gostava tanto de ouvir
Nas terras do meu Tupã
À sombra dos cafezeiros,
O canto do sabiá!
Oh! que primores se encontram
No Guanabara gentil.
Naquelas ledas manhãs
Do mês formoso de abril!
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Que noites tão deleitosas
Que às almas lembram amar,
Quando nas ondas brasílias
A lua se vão mirar!
A brisa sempre bafeja
O perfumado tapiz,
As flores sempre se mostram
Trajando verde matiz.
É tão altiva e formosa
A minha terra natal,
Que na beleza e tesouros,
No mundo não tem rival!
Oh! que saudades que eu tenho
Da minha infância gentil,
Daqueles dias tão belos
Passados lá no Brasil!
28-9-1868.
Também publicada em 1868, “Recordações”, construída a partir de versos
heptassílabos, como as duas anteriores, sintetiza o desejo de se estar em um tempo e em
um espaço diferentes daqueles que se conformam no presente. Juntam-se, aqui, as
saudades da infância e do Brasil, pois a primeira está relacionada ao segundo, já que
provavelmente o tempo infantil foi vivido em terras brasileiras; a vida adulta em
Portugal (caso se faça a leitura biográfica), para o eu-lírico, então, significa dupla
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distância: tanto da criança que ficou longe no tempo, tanto do país natal, que ficou
distante no espaço.
Na composição, ficam patentes as saudades dos tempos idos, da “infância
gentil”, em que o sujeito poemático vivia na terra “brasília”, “altiva e formosa”, de
“beleza e tesouros” sem rival no mundo, embora, como já foi antes apontado, sem a
“retórica da volta” de Gonçalves Dias. Talvez, mais do que o desejo ardente por retornar
à terra natal (até possível, caso esse fosse realmente um desejo incontornável) ou à
infância (impossível, a não ser pela memória ou pelo sonho), configura-se a vontade de
explicitar o amor àquilo pelo qual o eu-lírico passou, e que ele lembra com emoção e
nostalgia, segundo se observa na estrofe que funciona à guisa de refrão, e que abre e
fecha o poema, conforme se lê na reprodução acima.
Com uma poética apoiada na vertente romântica da literatura de Língua
Portuguesa, Emília da Maia, nos poemas coletados nos periódicos dirigidos pelo casal
Wood, repisa temas-clichê, numa postura epígona, típica daquele momento histórico em
ambos os lados do Atlântico, de transição do Romantismo para o Realismo: melancólica
e saudosa nos poemas, engajada e idealista nos artigos em prosa, a fim de atender a
todos os tipos de leitoras dos periódicos.
Essa dualidade fica clara também na sua identidade hifenizada, luso-brasileira,
fratura que a deixou a meio caminho, nem citada no Brasil, nem lembrada em Portugal,
vazio que nos leva a perguntar qual o lugar de Emília da Maia, já que ela é tanto
brasileira, no preito que faz à pátria em que efetivamente nasceu e nas homenagens que
presta a Gonçalves Dias e a Casimiro de Abreu, na forma de alusões intertextuais e de
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epígrafes8, quanto lusa, na dicção e na recepção, pois foi lida, essencialmente, por
portugueses.
É mais uma escritora que ressurge, como tantas outras (cf. MUZART, 1999-
2004), a provar que as mulheres produziam em pé de igualdade, quantitativa e
qualitativamente, com os homens, no século XIX. A intenção, na seqüência, é descobrir,
com o avanço das pesquisas, mais dados sobre a vida e a obra de Emília da Maia, a fim
de que ela possa ser devidamente inserida na historiografia, sendo possível, assim, aos
interessados pela literatura produzida por e para mulheres nos oitocentos, tanto no
Brasil como em Portugal, lê-la e estudá-la.
Referências bibliográficas ABREU, Casimiro de. Obras de Casimiro de Abreu. Org. Sousa da Silveira. Rio de Janeiro: Centro de Pesquisas da Casa de Rui Barbosa; Ministério da Educação e Cultura, 1955. ABREU, Ilda Maria Assunção e Silva Soares de. Emília Adelaide Moniz da Maia. In: CASTRO, Zília Osório de; ESTEVES, João (Dir.). SOUSA, António Ferreira de; ABREU, Ilda Soares de; STONE, Maria Emília (Coord.). Dicionário no feminino (séculos XIX-XX). Lisboa: Horizonte, 2005. p. 303-304. COELHO, Nelly Novaes. Dicionário crítico de escritoras brasileiras: 1711-2001. São Paulo: Escrituras, 2002. DIAS, Gonçalves. Obras poéticas de A. Gonçalves Dias. 1º tomo. Org. Manuel Bandeira. São Paulo: Nacional, 1944. FLORES, Hilda Agnes Hübner. Dicionário de mulheres. Porto Alegre: Nova Dimensão, 1999.
8 Cumpre registrar que além das epígrafes a Casimiro de Abreu, em quatro poemas (“Saudades da infância”, “Oração de virgem”, “Uma lágrima. À memória de uma amiga” e “Tu’alma. À minha irmã Elisa”), e a Gonçalves Dias (“Canção do exílio”), há ainda a referência a José Zorrilla (1817-1893), poeta e dramaturgo espanhol, em “A fé”, o que permite inferir, ainda que fragmentariamente, algumas das leituras de interesse da poetisa em tela.
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ILDEFONSO, Maria Isabel Moutinho Duarte. As mulheres na imprensa periódica do século XIX: o jornal A Voz Feminina (1868-1869). Dissertação (Mestrado em Estudos sobre as Mulheres). Universidade Aberta, Lisboa, 1998. LEAL, Maria Ivone. Um século de periódicos femininos: arrolamento de periódicos entre 1807 e 1926. Cadernos Condição Feminina n. 35. Lisboa: Comissão para a Igualdade e para os Direitos das Mulheres, 1992. LOPES, Ana Maria Costa. Imagens da mulher na imprensa feminina de oitocentos: percursos de modernidade. Lisboa: Quimera, 2005. MUZART, Zahidé Lupinacci (Org.). Escritoras brasileiras do século XIX: antologia. 2 v. Florianópolis: Mulheres; Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 1999-2004. OLIVEIRA, Américo Lopes de; VIANA, Mário Gonçalves. Dicionário mundial de mulheres notáveis. Porto: Lello & Irmão, 1967. SANT’ANNA, Affonso Romano de. Paródia, paráfrase & cia. São Paulo: Ática, 1985. TACQUES, Alzira Freitas. Perfis de musas, poetas e prosadores brasileiros: antologia de escritores brasileiros e estrangeiros. 5 v. Porto Alegre: Thurmann, 1956-1958.