Post on 07-Jan-2017
orde
m d
os e
nfer
mei
ros
| N
úmer
o 20
| J
anei
ro 2
006
Número 20 | Janeiro 2006 | www.ordemenfermeiros.pt | ISSN 1646-2629
VI Seminário do Conselho Jurisdicional
Final de vida
20
00
–2
00
6
i informação
e conf idenc ial idade
i i Questões ét icas da
Prát ica de enfermagem
i i i Questões ét icas das
r e lações Prof iss iona is
i V dod ire i to ao cu idado
V ét ica de enfermagem
Conselho JurisdiCional 2.º CiClo de deBaTes
"Cuidados seGuros"
na sequência da actividade desenvolvida em 2005, de debate nas regiões, ,
o Conselho Jurisdicional entende levar a cabo o 2.º CiClo de deBaTes, que decorrerá em Fevereiro e Março de 2006. está subordinado ao tema "Cuidados seGuros", centrando-se numa problemática actual e relevante, no âmbito ético-deontológico.
PonTa delGada29 de Março de 2006 (9h 30M - 12h 30M)
audiTório da esCola suPerior de enFerMaGeM de PonTa delGada
seCção reGional da r. a. açores
fax: 296281848 / sracores@ordemenfermeiros.pt
insCreva-se PreviaMenTe Por e-mail ou Fax
FunChal23 de Fevereiro de 2006 (14h 30M - 17h 30M)
audiTório da Casa da luz seCção reGional da r. a. Madeira
fax: 291237212 / srmadeira@ordemenfermeiros.pt
BraGa11 de Março de 2006 (9h 30M - 12h 30M)
audiTório do hosPiTal de são MarCosseCção reGional do norTe
fax: 225072719 / srnorte@ordemenfermeiros.pt
CoiMBra18 de Março de 2006 (9h 30M - 12h 30M)
audiTório do CenTro de ConGressos dos h.u.C. seCção reGional do CenTro
fax: 239487819 / srcentro@ordemenfermeiros.pt
Faro24 de Março de 2006 (14h 30M - 17h 30M)
audiTório CaMPus de GaBelas da universidade de Faro
seCção reGional do sul
fax: 213815559 / srsul@ordemenfermeiros.pt
São agendadoS
cinco debateS,
um em cada Região,
e pRetende-Se
ReflectiR em
conjunto SobRe
oS aSpectoS
da pRática de
cuidadoS que Se
Relacionam com
a peRSpectiva
ética da geStão
do RiSco e oS
caminhoS paRa
cuidadoS
SeguRoS.
©antó
niofreitas
ordem dos enfermeiros
V I S e m I ná r I o d e É t I ca
editorial – Bastonária �
cara(o) colega
Mesmo estando ciente das dificuldades que en-
volvem o juízo em causa própria, considero que
o Seminário de Ética, organizado anualmente
pelo Conselho Jurisdicional, é já imprescindível,
no panorama da enfermagem nacional. Muitos
são os argumentos que sustentam esta minha
convicção, mas, se mais não houvesse, bastaria
a extraordinária adesão que sempre tem por
parte dos enfermeiros para confirmar e privile-
giar este espaço de reflexão e debate no plano
nacional da Ordem.
Inscreveram-se este ano mais de mil enfermei-
ros e muitos mais foram os que manifestaram
interesse em nele participar. Embora lamente
que muitos não tenham tido a oportunidade
de assistir a tão relevantes comunicações e de
partilhar experiências e dúvidas com os seus
autores, bem como de lhes colocar questões
ou solicitar opiniões, a Ordem não consegue
ultrapassar as barreiras que os tempos e os
espaços impõem. Mas é nosso dever propor-
cionar a todos os membros o acesso ao acervo
documental do que todos partilharam.
É, pois, com enorme satisfação que a Ordem
dos Enfermeiros lhe disponibiliza, mais uma vez,
através da Revista que hoje lhe chega e graças
à amabilidade dos autores, os textos de todas
as comunicações proferidas no VI Seminário de
Ética sobre o Final de Vida.
Recordo que, já em 2004, a Revista da Ordem dos
Enfermeiros dedicou integralmente um número
à divulgação das comunicações do V Seminário
de Ética dedicado ao aprofundamento da Ética
de Enfermagem. Gostaria de vos dizer que as
inúmeras manifestações de agrado que recebe-
mos e a elevada procura que este número con-
tinua a ter legitimam esta opção editorial, que é
também um serviço prestado aos membros.
O tema escolhido para o seminário deste ano
– final de vida – é um tema de especial interesse
para a maioria dos enfermeiros. Sendo sempre
de difícil abordagem pela enorme carga emo-
cional que, na maior parte das vezes, transporta
ou desperta em cada indivíduo, os enfermeiros
têm dedicado muito tempo ao estudo de assun-
tos e aspectos especialmente relevantes para
melhor lidarem com pessoas em final de vida,
nos contextos em que exercem a profissão.
As escolhas do Conselho Jurisdicional, que
cuidadosamente preparou esta actividade,
revelam-nos perspectivas diferentes sobre
realidades que julgamos conhecer bem. Ao
longo das intervenções que foram feitas e dos
textos que agora poderá ler, podem encontrar-
-se tratadas desde a problemática ético-legal às
questões da morte ao longo do ciclo vital, isto é,
nas diferentes etapas da nossa vida: a infância,
a adolescência, a juventude, a idade adulta e a
velhice. Mas também as questões mais abran-
gentes foram abordadas, como as relacionadas
com o sentido da vida e o sofrimento humano,
com o suicídio e com a eutanásia.
São contributos de enfermeiros e de outros
profissionais que se têm dedicado a aprofundar
questões que nos inquietam a todos. É justo
aqui manifestar o nosso agradecimento pela
riqueza com que todos nos brindaram e que
todos partilhámos.
ARQ
UIV
O O
E
V I S e m I ná r I o d e É t I ca
�
ordem dos enfermeiros
Ordem dos Enfermeiros – Sede: Av. Almirante Gago Coutinho, 75 – 1700-028 Lisboa – Tel.: 218 455 230 / Fax: 218 455 259
– E-mail: mail@ordemenfermeiros.pt | Secção Regional da R. A. dos Açores: R. Dr. Armando Narciso, 2 – 9500-185 Ponta
Delgada – Tel.: 296 281 868 / Fax: 296 281 848 – E-mail: sracores@ordemenfermeiros.pt | Secção Regional do Centro: Av.
Bissaya Barreto, 191, c/v – 3030-076 Coimbra – Tel.: 239 487 810 / Fax: 239 487 819 – E-mail: srcentro@ordemenfermeiros.pt
| Secção Regional da R. A. da Madeira: R. 31 de Janeiro, 93 – 9050-011 Funchal – Tel.: 291 241 765 / Fax: 291 237 212 – E-mail:
srmadeira@ordemenfermeiros.pt | Secção Regional do Norte: R. Latino Coelho, 352 – 4000-314 Porto – Tel.: 225 072 710 /
Fax: 225 072 719 – E-mail: srnorte@ordemenfermeiros.pt | Secção Regional do Sul: Rua Castilho, 59, 8.º Esq. – 1250-068 Lisboa
– Tel.: 213 815 550 / Fax: 213 815 559 – E-mail: srsul@ordemenfermeiros.pt
Ficha técnica
Propriedade:
Ordem dos Enfermeiros
– Av. Almirante Gago Coutinho, 75
1700-028 Lisboa
Tel.: 218 455 230 / Fax: 218 455 259
E-mail: mail@ordemenfermeiros.pt
www.ordemenfermeiros.pt
Director: Maria Augusta Sousa
Coordenador: António Manuel
Conselho editorial: Amílcar Carvalho,
Élvio Jesus, Graça Machado, Jacinto
Oliveira, Sérgio Gomes, Margarida
Filipe, Nelson Guerra, Teresa
Chambel, Teresa Oliveira Marçal
Colaboraram neste número:
Aaldert Mellema, Abílio Oliveira,
Armandina Antunes, Filipe Almeida,
Lucília Nunes, Lurdes Martins,
Manuela Amaral, M.ª Isabel Renaud
Norberto Silva, Pedro Ferrari,
Rogério Gonçalves, Rui Nunes,
Sérgio Deodato e Susana Pacheco.
Secretariado: Tânia Graça
Av. Almirante Gago Coutinho, 75
– 1700-028 Lisboa
Tel.: 218 455 230 / Fax: 218 455 259
E-mail: revista@ordemenfermeiros.pt
www.ordemenfermeiros.pt
ISSN: 1646-2629
Consultoria em Língua Portuguesa:
Letrário – www.letrario.pt
Design Gráfico: Pedro Gonçalves
Paginação, Pré-impressão,
Impressão e Distribuição:
DPI-G – Design Produção Gráfica
e Imagem, Estrada de Benfica
n.º 304 A, 1500-098 Lisboa
Periodicidade: Trimestral
Tiragem: 49 000 exemplares
Distribuição gratuita aos membros
da Ordem dos Enfermeiros
Depósito legal n.º 153540/00
Duas das comunicações apresentadas trouxe-
ram-nos os resultados de estudos realizados.
Um aborda alguns aspectos da forma como os
enfermeiros vivenciam a morte, e o nosso colega
holandês deu-nos conhecimento dos resultados
de outro, numa comunicação que problematiza a
questão da eutanásia no seu país. Os resultados
de ambos falam por si. Sem querer fazer inter-
pretações, não posso deixar de me inquietar com
as consequências que uma tão grande exposição
ao final da vida de quem cuidamos e uma tão
grande proximidade naquele momento têm na
vida profissional e pessoal dos enfermeiros.
Durante o Seminário, foi afirmado:
“O enfermeiro é habitualmente considerado
como alguém que a tudo resiste. É bem verdade
que as suas vivências profissionais quotidianas
o expõem a situações-limite que, muitas vezes,
nem em cenários de guerra se encontram. São
grandes os impactes emocionais e estes não são
só causados por imagens de violência física....”
Com estas notas, gostaria de deixar aqui tam-
bém expressa a minha certeza de que o tempo e
o espaço de partilha que o Seminário proporcio-
nou àqueles que puderam estar presentes, bem
como aquilo que aqui fica escrito tornar-se-ão
num importante instrumento de trabalho indi-
vidual e colectivo, capaz de gerar outros tempos
e espaços de partilha. Pertencerão estes aos
nossos quereres e às nossas dificuldades, rela-
cionados com o apoio prestado a cada pessoa
de quem cuidamos e que é portadora de uma
Vida em fase final.
Precisamos de ser cada vez mais capazes de
lidar com a realidade que recusamos dentro de
nós, para podermos garantir, assumindo uma
postura profissional, que vivenciamos com o
outro a sua realidade.
Este tempo de trabalho das nossas próprias
vivências, na prática dos cuidados de en-
fermagem em final de vida, é um tempo de
investimento na melhoria da qualidade dos
cuidados que os enfermeiros devem oferecer
aos cidadãos, porque lhes permitirá, estando
melhor consigo próprios, assumir melhor a sua
responsabilidade profissional.
Façamos o caminho para que este seja um es-
paço de respeito pelas vontades e liberdades.
Saudações amigas da vossa Bastonária
Maria Augusta Sousa
editorial – Bastonária
V I S e m I ná r I o d e É t I ca
�
ordem dos enfermeiros
ARQ
UIV
O O
E
SumárioN.º 20 | Janeiro 2006
Sumário
04 Palavras de apresentação
06 Autonomia e morte
14 A morte no ciclo vital – Morte em pediatria
16 Olhar inquieto. O jovem perante a morte
31 A morte no ciclo vital: perspectiva da enfermagem
35 A morte no ciclo vital – Comentário de Rui Nunes
38 A morte no ciclo vital – Comentário de Jacinto Oliveira
41 Cuidado no final de vida – Dos deveres para com o doente terminal
46 A morte vista da Urgência
53 Final de Vida
57 Lidar com a morte na equipa de enfermagem
62 O papel dos enfermeiros nas decisões de fim de vida
66 Cuidado no final de vida – Comentário de Delfim Oliveira
70 Cuidado no final de vida – Comentário de Lucília Nunes
71 Da finitude e fragilidade humana
78 VI Seminário CJ – Final de vida. Conclusões
ARQ
UIV
O O
EA
RQU
IVO
OE
ARQ
UIV
O O
E
V I S e m I ná r I o d e É t I ca
divulgação�
ordem dos enfermeiros
Palavras de apresentação
Lucília Nunes
Presidente do Conselho Jurisdicional
Com periodicidade anual, o Seminário tem o propósito geral de
responder a necessidades expressas ou a temas considerados
pertinentes e relevantes para a prática profissional, procurando
contribuir para o aprofundamento e para a divulgação do Có-
digo Deontológico do Enfermeiro. Neste VI Seminário (Porto, 11
de Outubro, 2005), o Conselho Jurisdicional pretendeu conti-
nuar a promover a reflexão ético-deontológica, numa temática
relevante e ao encontro do definido no Artigo 87 do Código
Deontológico do Enfermeiro, relativo aos “deveres para com o
doente terminal”. Sendo certo que aos enfermeiros compete a
prestação de cuidados ao longo do ciclo vital, decorre, também,
o acompanhamento das pessoas, das famílias e dos conviventes
significativos nos processos de morrer. Escolhemos, para este
seminário, o tema Final de Vida pela pertinência, pela relevância
e pela importância que lhe é atribuída nas questões colocadas
face a esta circunstância de prestação de cuidados. Foi, em
2005, coincidência feliz que decorresse na Semana Nacional
de Cuidados Paliativos, a que nos associámos.
A morte acontece ao longo do ciclo de vida, e abordámos di-
ferentes perspectivas, em painel multidisciplinar designado “A
morte no ciclo vital”, considerando a perspectiva pediátrica, do
adolescente e jovem adulto e da intervenção de enfermagem.
Em relação ao “Cuidado no final de vida”, foram debatidos os
temas relacionados com os deveres para com o doente termi-
nal, a morte vista da Urgência, os cuidados paliativos, a tríade
enfermeiro-família-doente terminal, o lidar com a morte no
seio da equipa de enfermagem e o papel dos enfermeiros nas
decisões de fim de vida. Neste tema, destaca-se a participação
de Aaldert Mellema, enfermeiro holandês, membro de uma
organização nacional, a propósito da vivência da eutanásia
entre os enfermeiros.
As conferências inicial e final foram momentos de explicita-
ção em relação à autonomia e morte e à fragilidade e finitude
humana. As Conclusões sintetizam e reúnem os tópicos mais
relevantes das actividades do dia.
Como ocorreu com o seminário de 2004, entendeu-se relevante
a publicação dos textos por forma a ampliar a partilha e a
promover a continuação do debate e da reflexão; neste sen-
tido, uma palavra de especial agradecimento aos prelectores e
comentadores por esta (mais uma) colaboração.
A exemplo de anos anteriores, o Seminário teve elevada adesão
por parte dos colegas. Num balanço geral, contou com 972
participantes: 881 enfermeiros, 80 estudantes de Enfermagem
e 11 profissionais de outras áreas.
Destes, 163 fizeram avaliação escrita no questionário fornecido
– da análise dos questionários, verifica-se que a maioria possui
ARQ
UIV
O O
E
V I S e m I ná r I o d e É t I ca
divulgação �
ordem dos enfermeiros
o título profissional de enfermeiro (83%), 9% são enfermeiros
especialistas e 7% estudantes de Enfermagem. Relativamente
à idade dos participantes, a maioria encontra-se na faixa
etária dos 20-29 anos (51%), 29% na faixa dos 30-39 e 11%
na dos 40-49 anos. Quanto ao local de trabalho, verifica-se
a predominância do hospital (66%), havendo 9% a trabalhar
em centros de saúde e 7% em escolas superiores de saúde /
enfermagem.
A avaliação dos trabalhos foi globalmente muito positiva, pois a
maioria considerou a metodologia, os conferencistas, os meios
audiovisuais, o secretariado e o espaço físico adequados, com
valores superiores a 90%. Das sugestões dadas, destacam-se a
proposta de mais tempo para o debate e o cumprimento dos
tempos das comunicações. Dos comentários, os mais referidos
são, pela positiva, a participação do enfermeiro holandês e, pela
negativa, o apoio precário da restauração (bar).
Uma nota relevante, que o Conselho Jurisdicional se apraz em
registar, relaciona-se com o preenchimento e com a entrega
dos questionários de avaliação, onde, além de ajuizarem sobre
o evento em si, os colegas foram generosos em sugestões e
comentários, contributos preciosos para o desenvolvimento
de um trabalho que procurará responder às necessidades, aos
interesses e às expectativas. A todos, um bem-haja!
Consideramos que este VI Seminário foi mais um passo no cami-
nho por ora percorrido e, naturalmente, encontramos aspectos
a melhorar e a promover, designadamente no que se reporta
aos espaços de debate e à partilha de experiências vividas e de
reflexões, em contextos de trabalho. Neste aspecto, esperamos
que o Ciclo de Debates nas secções regionais, iniciado em 2005
e que nos propomos continuar em 2006, possa potencializar a
partilha de experiências e a reflexão conjunta sobre os aspectos
que mais preocupam na prática diária.
O enquadramento ético e deontológico da profissão filia-se, em
primeira instância, no desígnio de uma prestação de cuidados
de enfermagem de qualidade que respeita os direitos das pes-
soas, bem como as responsabilidades próprias da profissão. Os
caminhos a percorrer dependem de todos nós, do que souber-
mos, pudermos e formos capazes de realizar: a bem daqueles
a quem prestamos cuidados, a bem da profissão, a bem de um
agir reflectido de ser enfermeiro. oe
ARQ
UIV
O O
E
V I S e m I ná r I o d e É t I ca
divulgação�
ordem dos enfermeiros
Sérgio Deodato
Vogal do Conselho Jurisdicional
A proposta para esta conferência inicial do VI Seminário de Ética
é a de reflectirmos um pouco sobre a ligação – ou, talvez mais, a
confrontação – entre o exercício da autonomia e a morte.
Tentaremos olhar a morte à luz do exercício da autonomia in-
dividual, questionando-nos, nomeadamente, sobre um eventual
direito a morrer.
Pretendemos seguir este olhar na dupla perspectiva ética e jurí-
dica, na convicção de que se relacionam com o agir do enfermeiro
e concorrem para a deontologia profissional.
Seguindo a ideia de Paulo Ferreira da Cunha, no seu livro O
Tímpano das Virtudes, reflectiremos desta forma transdisciplinar,
trazendo também a arte a esta conferência.
Neste livro, o autor discute as relações entre a ética e o direito a
partir da apreciação dos frescos pintados por Rafael (um pintor
renascentista) numa sala do Vaticano: a Stanza della Segnatura
(cujo nome deriva do facto de aí ter funcionado um tribunal
eclesiástico – Tribunal della Signatura Gratiae). O pintor chamou
aos seus frescos a Filosofia, o Direito, a Teologia e a Poesia e
pintou-os nas paredes e no tecto desta sala.
É à luz desta transdisciplinaridade que, para falar de autonomia
e morte, vos convido a entrar na Stanza della Segnatura e sobre
o seu interior lançar alguns olhares. É que estes frescos, pela sua
beleza e pelo seu sentido, poderão ajudar-nos a reflectir sobre
a morte, enquadrada no exercício dos direitos em resultado da
autonomia individual, exactamente porque sugerem olhares
diferentes para o tema em análise.
Para começar, olhemos o tecto da Stanza, onde está pintada a
Justiça que, tal como a autonomia, constitui um princípio ético.
A autonomia
A autonomia da pessoa é hoje aceite (pelo menos no espaço socio-
político e geográfico onde nos inserimos) como um princípio ético
basilar. Notemos que o conceito actual de autonomia deve muito
ao pensamento de Kant. Para este filósofo, só sendo autónoma
a pessoa pode agir como ser moral, escolhendo e respeitando a
lei moral. Contrapõe a autonomia à heteronomia, ou seja, a um
agir de forma obediente sem reflexão crítica. O crescimento e
o desenvolvimento pessoal devem conduzir à maturidade que
permite o exercício desta autonomia1. Ou seja – numa primeira
nota, ou numa primeira pincelada –, diriamos que a autonomia
resulta do processo de desenvolvimento pessoal e que nos permite,
concretamente, o exercício da nossa cidadania.
Como corolário da autonomia individual de cada pessoa, ou na
essência desta autonomia, encontra-se o autogoverno sobre
si próprio, traduzido na liberdade de tomar decisões sobre si e
sobre a sua vida.
Contudo, segundo Michel Renaud, esta liberdade está “longe de
se limitar a ser pura possibilidade de escolha; a liberdade humana
1 THOMPSON, Ian; E. MELIA, Kath M.; BOYD, Kenneth M – Ética em Enfermagem. 4.ª ed. Loures: Lusociência, 2004. ISBN 972-8383-67-3. p. 184.
ARQ
UIV
O O
E
autonomia e morte
V I S e m I ná r I o d e É t I ca
divulgação �
ordem dos enfermeiros
é a realização do espírito na humanidade do ser humano”2.
Isto significa que, quando exercemos a nossa autonomia, não o
fazemos para um fim qualquer, escolhendo o que nos apetece
simplesmente, mas escolhemos com um fim humano. E, assim,
existem, a priori, hipóteses de escolha que não são sequer equa-
cionadas para tomar uma decisão.
Lembrando o filme A Ilha, se tenho uma doença grave no fígado,
não escolho retirar o fígado a outra pessoa para ficar curado.
Não me realizaria como humano esta decisão. Na escolha para
o meu tratamento, poderia considerar múltiplas hipóteses, mas
nunca equacionaria esta.
Michel Renaud considera que “o sentido filosoficamente mais
rico da liberdade não é o da liberdade de escolha, mas o da
liberdade enquanto realização de si mesmo”3. Estamos, assim, a
enquadrar a autonomia e, concretamente, a exteriorização dela
numa reflexão mais profunda, assente
no sentido da vida.
Na abordagem ética do tema da morte
(como noutros, de resto), a autonomia
individual deve ser discutida tendo
como pano de fundo o sentido da vida.
Isolar a liberdade de agir daquilo que
fundamenta o próprio agir pode condu-
zir-nos a caminhos desviantes do objecto essencial da reflexão. A
abordagem do eventual direito a morrer, enquanto titularidade
individual para livremente decidir matar-se, não tendo em conta
o sentido que damos à vida humana, pode levar-nos a conclu-
sões que contemplem o exercício deste direito, com base numa
liberdade sem fundamento verdadeiramente humano.
Vasco Magalhães4 considera que o sentido da vida reside na
própria pessoa. A pessoa que encontra na transcendência “o ir
2 RENAUD, Michel – A “Dignidade Humana”. Reflexão retrospectiva e prospectiva. «Ca-dernos de Bioética». Coimbra: Centro de Estudos de Bioética. 23 (Ago. 2000) 29.
3 RENAUD, Michel – Liberdade e consenso. «Cadernos de Bioética». Coimbra: Centro de Estudos de Bioética. 36 (2004) 42.
4 MAGALHÃES, Vasco – O sentido da vida. «Cadernos de Bioética». Coimbra: Centro de Estudos de Bioética. 30 (2002) 115.
de si para o outro”5, o sentido para a vida. É este encontro com o
outro que nos permite, através da relação estabelecida, perceber
o sentido que fazemos para o outro e logo descobrir que a nossa
vida faz sentido (só faz sentido) com o outro. Parece-nos, assim,
que a reflexão sobre uma decisão que ponha fim à nossa vida
terá sempre de incluir a dimensão do sentido da vida.
Analisar um possível direito de dispor da vida (utilizando a
eutanásia ou o suicídio assistido), sem equacionar esta dimen-
são, distorce a reflexão, limitando-a ao subjectivismo isolado
– aquilo que cada um poderá pensar livremente, mas não hu-
manamente.
De outra perspectiva, diríamos, portanto, que o agir livremente
no âmbito da autonomia individual consubstancia-se numa
liberdade responsável. Os actos decididos livremente na cons-
ciência de cada um originam consequências para o próprio e
para os outros, na medida das relações
estabelecidas. Deste modo, o exercício
da liberdade não ocorre de forma
ilimitada, mas sim tendo em conta os
limites impostos pela desumanidade
das consequências que estes podem
originar.
É a este propósito que alguns autores
falam em autarcia, definindo-a como a “autonomia da pessoa
enquanto cortada de todas as suas ligações com os outros”6.
Se falamos de uma autonomia cujo exercício se desenvolve
afastado da normal relação com os outros, sem ter em conta as
consequências nos outros com os quais vivemos, então não será
uma verdadeira autonomia.
Pelos actos que praticamos e, nomeadamente, pelos efeitos
produzidos nos outros e em nós, temos de responder ou assumir
5 MAGALHÃES, Vasco – O sentido da vida. «Cadernos de Bioética». Coimbra: Centro de Estudos de Bioética. 30 (2002) 117.
6 RENAUD, Isabel – Comentário. In: PRESIDÊNCIA do Conselho de Ministros – Tempo de Vida e Tempo de Morte. Conselho de Ética para as Ciências da Vida. Lisboa, 2001. ISBN 972-8368-20-8. p. 61.
... a autonomia individual
deve ser discutida tendo
como pano de fundo
o sentido da vida.
V I S e m I ná r I o d e É t I ca
divulgação�
ordem dos enfermeiros
a responsabilidade pelo acto praticado. É este fundamento que
preside aos diferentes tipos de responsabilidade que assumimos
na vida em sociedade todos os dias.
Aqui é próxima a passagem ao domínio jurídico, onde a res-
ponsabilidade se encontra dividida conforme o tipo de acção
praticada e, sobretudo, tendo em conta o resultado que pro-
duziu. É assim que falamos em responsabilidade civil, penal ou
disciplinar. Responsabilidade civil, se provocamos um dano em
alguém; penal, se praticamos um crime; e disciplinar, se violamos
um dever profissional.
Se passarmos à deontologia, a liberdade responsável constitui
uma dimensão essencial do agir ético. Por isto se entende que “a
liberdade responsável” surja como um valor da prática ética, no
respeito pela dignidade da pessoa cuidada e tendo em atenção
o bem comum. Assim se encontra no nosso código deontológico7
como valor universal a observar, no Artigo 78, n.º 2, alínea b.
Mas, para além da dimensão heteronómica da liberdade res-
ponsável, interessa-nos igualmente a vertente pessoal das
consequências dos actos que praticamos. Ou seja, discutir se a
autonomia individual permite a tomada de decisões que, não
tendo consequências (aparentes) para os outros, podem preju-
dicar ou terminar a vida. É neste âmbito que se inclui a reflexão
sobre os actos que provoquem a morte, como o suicídio, o
suicídio assistido ou a eutanásia. Ou seja, é nesta perspectiva
da autonomia e da liberdade do agir que pretendemos reflectir
sobre um eventual direito a morrer.
O ambiente acolhedor da Stanza della Segnatura permitir-nos-á,
com toda a certeza, reflectir com tranquilidade. Proponho um
olhar para os frescos alusivos ao Direito, que Rafael pintou em
ligação com as virtudes e com a justiça de forma destacada (hie-
rarquizando justiça – virtudes – direito, pintando nesta ordem do
tecto para as paredes, ou seja, de cima para baixo). Tentaremos
reflectir a ligação entre a autonomia e o exercício dos direitos
7 CÓDIGO Deontológico do Enfermeiro. Incluso no Decreto-Lei n.º 104/98, de 21 de Abril. Artigo 78, n.º 2, alínea b.
na tentativa de clarificar uma posição sobre a forma como a
autonomia pode fundamentar um eventual direito de decidir
sobre o fim da vida.
Autonomia e direitos humanos
A autonomia individual, sendo inerente à condição humana, mani-
festa-se ou exterioriza-se através dos direitos. Trata-se dos direitos
inerentes à condição humana: os direitos humanos, consagrados
na Declaração Universal dos Direitos do Homem e em outras con-
venções internacionais, na Constituição e em diversas leis.
A nossa deontologia profissional, exposta no Código Deontoló-
gico e em diversos pareceres emitidos pelo Conselho Jurisdicio-
nal, consagra como valor profissional o respeito pelos direitos
humanos. De resto, seguindo o pensamento de Lucília Nunes8,
os deveres do enfermeiro previstos no Código têm correlação
com os direitos consagrados aos cidadãos nossos clientes, na
medida em que a cada dever corresponde um ou mais direitos das
pessoas cuidadas. O enfermeiro assume deveres para proteger e
salvaguardar os direitos do cidadão a quem presta cuidados.
Como pano de fundo, ou como fundamento ético, o Artigo 78 do
Código Deontológico prevê, no seu n.º 3, alínea b, “o respeito pelos
direitos humanos na relação com os clientes” como um “princípio
orientador da actividade dos enfermeiros”. E, nos artigos 81, 82 e
83, prevêem-se, em concreto, os direitos que o enfermeiro deve
proteger no seu exercício profissional: como o direito à vida, os
direitos da pessoa idosa, os direitos da criança, entre outros.
Da mesma maneira, quando reflectimos sobre a ética de en-
fermagem (como o fizemos no seminário do ano passado),
inclui-se, naturalmente, a dimensão do respeito pelos direitos
humanos, nomeadamente como um valor “em relação à Pessoa
assistida”9.
8 NUNES, Lucília – Equacionando direitos humanos e necessidades em cuidados. «Revista da Ordem dos Enfermeiros». 4 (Nov. 2001) 21-25.
9 NUNES, Lucília – A especificidade da Enfermagem. In: NEVES, Maria do Céu Patrão; PACHECO, Susana – Para uma Ética de Enfermagem. Desafios. COIMBRA: Gráfica de Coimbra, 2004. ISBN 972-603-326-8. pp. 33-48.
V I S e m I ná r I o d e É t I ca
divulgação �
ordem dos enfermeiros
De todos, o direito à vida assume um especial destaque por ser
a vida humana que permite o exercício dos outros direitos. Só
faz sentido falar em direitos humanos ou direitos de persona-
lidade como direitos ligados à vida10, cuja titularidade e cujo
exercício dependem da vida. E o enfermeiro, de acordo com a
alínea a, do Artigo 82 do Código Deontológico, “assume o dever
de defender a vida humana em todas as circunstâncias”.
É neste contexto, em que reflectimos sobre autonomia e di-
reitos humanos, que talvez valha a pena levantar a seguinte
questão: a liberdade de decidir sobre si como corolário da
autonomia poderá, então, justificar a prática de actos que
comprometam seriamente ou ponham fim à vida? Ou, de
outro modo, encaramos como possível a existência de um
direito a morrer?
Dois caminhos poderemos seguir neste ponto da nossa reflexão:
ou consideramos que a autonomia de cada um é absoluta, o que
permite que o exercício da liberdade justifique o direito de decidir
morrer; ou, de outra forma, encaramos a vida humana como valor
supremo, o que exige respeito e protecção por todos, incluindo
10 Mesmo que alguns se dirijam à memória da pessoa depois de morta, só existem por que houve vida.
o próprio. E, perante estas possibilidades de escolha, assumimos,
deliberadamente, uma posição.
Começamos por discutir o conceito de ‘direito a morrer’ no
confronto com o de ‘direito à vida’. Olhando agora, na mesma
sala onde nos encontramos, o fresco Tímpano das Virtudes,
onde Rafael pintou as virtudes e encontrando-se na parede,
acima do fresco do Direito ou das leis, poderemos entender,
como Paulo Ferreira da Cunha, que as virtudes presidem às
leis, o que significa que no exercício dos direitos pessoais que
são atribuídos ou reconhecidos pelas leis, a mediação é feita
pelas virtudes.
Direito à vida versus direito a morrer
O direito à vida é um direito de personalidade, portanto, inerente
a cada um, pelo ‘simples’ facto de se ser pessoa. Está consagrado
no Artigo 3.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, no
Artigo 24 da Constituição da República Portuguesa e com especial
protecção no Código Penal. No nosso código deontológico, está
salvaguardado no Artigo 82, como vimos.
Sendo um direito de personalidade, inclui um conjunto de
características que lhe dão um estatuto próprio no mundo
ARQ
UIV
O O
E
V I S e m I ná r I o d e É t I ca
divulgação�0
ordem dos enfermeiros
jurídico, com uma posição de superioridade face às outras
categorias de direitos.
Das diversas características dos direitos de personalidade,
destacamos o carácter absoluto e a indisponibilidade. Sendo
absolutos, impõem-se erga omnes, o que significa que são
respeitados por todos. A indisponibilidade significa que não
podem estar disponíveis no comércio jurídico, sendo também
irrenunciáveis, ou seja, indisponíveis também para o próprio.11
Sendo a vida um direito de personalidade, numa perspectiva
jurídica, podemos considerá-la indisponível, inclusive para o
próprio. Se é um direito que integra a própria personalidade e
que suporta todos os outros direitos, não fará sentido pensar
em liberdade de exercício, até porque não se trataria de liber-
dade, porque este é um conceito ligado à vida, que só existe
nas pessoas vivas. Assim, sendo indisponível, não pode cada
pessoa extinguir a sua titularidade.
Há direitos dos quais podemos extinguir a respectiva titulari-
dade: se eu oferecer a minha caneta, extingo o direito de pro-
priedade que tenho sobre ela, sem qualquer problema jurídico,
ético, moral ou disciplinar. Mas querer extinguir a titularidade
do direito que tenho sobre a minha vida… pensamos tratar-se
de um domínio diferente.
Nesta perspectiva, actos como o suicídio, o suicídio assistido
ou a eutanásia, não configurando um agir ético, não poderão
ser aceites pela ordem jurídica, nem pela nossa deontologia
profissional, exactamente porque implicam dispor da vida,
extinguindo a titularidade do direito à vida. É, de resto, o que
se passa entre nós, no nosso ordenamento jurídico e deonto-
lógico.
A eutanásia não está prevista na lei, pelo que qualquer acto
que provoque a morte de outro é considerado homicídio, nos
termos dos artigos 131 a 133 do Código Penal.
11 ASCENSÃO, José de Oliveira – Teoria Geral do Direito Civil. Vol. I. Lisboa: FDL, 1996. p. 95.
No plano deontológico, no “enunciado de posição” de 2002,
também a Ordem dos Enfermeiros recusa a eutanásia, con-
siderando-a como uma “posição extremada”. O suicídio, não
podendo, naturalmente, ser penalizado relativamente ao agente,
está criminalizado para quem incita ou ajuda, nos termos do
Artigo 135, e para quem o publicita, nos termos do Artigo 139
do Código Penal.
Leva-nos, assim, a crer que a nossa ordem jurídica e a nossa deon-
tologia protegem a vida humana, não através de cada ser humano
em particular, mas protege-a em geral, como uma comunidade
humana. De tal forma, que mesmo em consequência de um acto
de vontade, como o suicídio, o nosso Direito condena-o, por via
indirecta, relativamente a terceiros intervenientes. Ou seja, não
consagra, no nosso entendimento, um direito a morrer.
De outra perspectiva, podemos discutir se esta indisponibilidade
terá ou não fundamento na ‘propriedade’ da vida. É que, se acei-
tarmos a disponibilidade da vida e, como consequência, a prática
de actos que lhe ponham fim, estamos a transformar a vida
humana num bem negociável e a colocá-la ao nível dos direitos
de propriedade. De resto, é este o raciocínio seguido por quem
defende o direito a morrer: dispomos da nossa vida porque somos
donos de nós (lembram-se que anteriormente tínhamos concluí-
do que dispor da propriedade – da caneta ou de qualquer outro
bem do qual se é dono – é juridicamente possível, normal).
O Padre Feytor Pinto considera (a este respeito, e marcando uma
posição católica) que a indisponibilidade da vida pelo próprio
deriva do facto de não termos sobre ele propriedade, uma vez
que ela “é de uma humanidade em crescimento…”12. Esta é a
perspectiva da vida como um bem supremo, com valor que supera
a vontade de cada um. É a sacralidade da vida entendida como
fora do domínio da pessoa, porque atribuída por Deus. E, portanto,
não sendo escolhido o início por cada um de nós, também não
fará sentido que possamos decidir do seu fim.
12 PINTO, Feytor – O direito de morrer: Perspectiva teológica e ética. In: ASSOCIAÇÃO dos Médicos Católicos Portugueses – Da Vida à Morte. Coimbra: Gráfica de Coimbra, 1988. pp. 203-218.
V I S e m I ná r I o d e É t I ca
divulgação ��
ordem dos enfermeiros
Ao contrário, a defesa da vida como valor subalterno rela-
tivamente à liberdade13 (como defende a posição oposta)
permite concluir pela disponibilidade da vida, uma vez que
a liberdade, sendo o bem supremo, autoriza a prática de ac-
tos que ponham fim à própria vida. Para os defensores desta
tese, é a liberdade que é a “condição suficiente para que o
homem exista como homem”, sendo a vida apenas “condição
necessária”14.
Sou pessoa porque sou livre…para ser livre e ser pessoa preciso
de ter vida, diriam.
Mas, sem questionar o carácter essencial da liberdade na
condição humana, fará sentido pensar em liberdade destacada
da vida? Que sentido terá a liberdade se se destinar a pôr fim
à vida? Assim, e neste contexto, consideramos que aceitar a
morte como um direito coloca, desde logo, diversas questões
de ordem ética, deontológica e jurídica. É estando vivo que a
pessoa é titular de direitos e pode exercê-los. Ora, não faz assim
sentido existir na nossa esfera pessoal um direito que elimina
todos os outros, porque extingue a vida.
Por outro lado, colocava-se a questão da protecção jurídica
que todos os direitos têm. Se houvesse um direito a morrer,
a ordem jurídica teria de mobilizar meios que permitissem o
exercício deste direito. A ser exercido, seria o último dos direitos
a ser concretizado.
Depois, sendo o direito a morrer um direito de personalidade,
gozaria das características inerentes a estes direitos. E, assim,
como vimos anteriormente, seriam absolutos, o que significaria
que todos teriam o dever de respeitar. Ou seja, todos teríamos
o dever de respeitar que uma pessoa, no momento em que
decidisse, tivesse os meios para pôr termo à sua vida.
13 PIEPER, Annemarie – Argumentos éticos em favor da liceidade do suicídio. In: POHIER, J. [et al.] – Suicídio e Direito de Morrer. Petrópolis (Brasil): Editora Vozes, 1970. pp. 49-60.
14 PIEPER, Annemarie – Argumentos éticos em favor da liceidade do suicídio. In: POHIER, J. [et al.] – Suicídio e Direito de Morrer. Petrópolis (Brasil): Editora Vozes, 1970. p.56.
Por outro lado, uma questão ainda se levantaria no que se
refere ao exercício do direito por terceiro, como, por exemplo,
dos pais relativamente aos filhos. Considerando a titularidade
do direito a morrer como universal, incluímos também aquelas
pessoas que estão incapacitadas de decidir sobre si, tal como os
menores ou outros considerados incapazes, a quem a lei atribui
o “poder” do exercício dos seus direitos a outrem.
Concebemos como legítimo que uma pessoa possa exercer o
direito de morrer de outra? Será legítimo que os pais possam
decidir sobre a morte de um filho só porque exercem o poder
paternal? Portanto, assumido como um direito, a morte teria
obrigatoriamente de gozar de tutela jurídica, e teríamos um
confronto permanente entre a protecção da vida e a defesa
da morte. Os tribunais passariam a julgar, tendo em conta o
respeito pela vida e também em defesa do direito à morte. E
havendo conflito? Como decidiria o juiz?
Podemos imaginar alguém que seria acusado de não fornecer
os meios para uma pessoa exercer o seu direito de morrer. O
tribunal condenaria pelo facto de uma pessoa ter evitado que
outra pessoa morresse. Continuando a ficção, podemos imagi-
nar um cenário possível, em que de manhã o tribunal condenava
alguém por não ter prestado auxílio a uma vítima mortal e de
tarde, condenaria uma outra pessoa porque, prestando auxílio,
não permitiu que a pessoa morresse.
Talvez este exemplo nos aproxime da clarividência necessária
para abordar a questão, tornando possível a análise de todas
as vertentes do problema. Nesta, como porventura em todas
as questões éticas, a maior falácia poderá ser a de olhar apenas
numa perspectiva, sem abrir os horizontes da razão. Quando
reflectimos seriamente, muito provavelmente conseguimos
olhar mais profundamente e vislumbrar problema onde parecia
existir apenas solução.
E as questões que se levantam prolongam-se também para
o domínio da operacionalização do exercício a um eventual
direito a morrer. Para que alguém pudesse exercer este direito,
teria de existir uma estrutura profissional ao nível da saúde,
V I S e m I ná r I o d e É t I ca
divulgação��
ordem dos enfermeiros
concretamente, que permitisse este exercício. Seriam necessários
profissionais de saúde habilitados e competentes para realizar
os procedimentos.
Nos serviços de saúde e nos profissionais de saúde envolvidos no
acto de morrer de alguém, colocar-se-iam diversos problemas de
ordem ética, deontológica e de ordem prática. O paradigma da
vida humana que constitui um eixo estruturante das formações
em saúde passaria a incluir uma vertente relacionada com a
decisão de morrer.
Do ponto de vista ético, que valores e que princípios seriam invo-
cados para aceitar e operacionalizar a decisão sobre o momento
da morte de uma pessoa? Qual o fundamento ético para normas
deontológicas que impusessem ao profissional de saúde o dever
de respeitar essa decisão? E em termos práticos organizacionais?
Faz sentido utilizar recursos que são escassos para eliminar vidas
humanas? Ou, de outro modo, poderá a gestão e a economia
vir a discutir o custo-benefício dos cuidados paliativos versus
praticar a morte? Assim, e trazendo outro olhar, consideramos
que a perspectiva diferente de analisar o problema é a reflexão
do direito a morrer com dignidade.
A esta altura, imagino que nos frescos da Stanza della Segna-
tura, tal como nos quadros da escola de feiticeiros onde Harry
Potter estuda, algumas personagens estejam a mexer-se muito,
indignadas com a conversa. Por isso, talvez valesse a pena um
olhar atento sobre o fresco com Platão e Aristóteles, tentando
encontrar a serenidade do pensamento.
O direito a morrer com dignidade
A discussão sobre o direito a morrer é muitas vezes colocada na
perspectiva do direito a ter uma morte digna. A morte digna é
tida como aquela que ocorre sem sofrimento, ou pelo menos,
com o menor sofrimento possível.
Os adeptos da eutanásia, por exemplo, refugiam-se sobretudo
nesta linha de argumentos, defendendo que toda a pessoa tem
direito a morrer, livre da dor ou da incapacidade causada pela
doença. E é porque se pretende pôr termo ao sofrimento que se
assegura o exercício a um direito de dispor da vida, matando-se
ou pedindo a outros que o façam.
Esta reflexão parece-nos enviesada, porquanto uma coisa é ter
direito a decidir sobre o momento da sua morte, outra coisa é
ter o direito a morrer com dignidade.
Morrer com dignidade, considerando nomeadamente a compo-
nente do sofrimento, parece-nos de facto constituir um direito
individual, desde logo, legitimado pelo direito à vida. Se consi-
deramos a morte como a última etapa da vida e só entendemos
esta com a dignidade que lhe é inerente, então, até ao final, a vida
humana realiza-se em dignidade. Assim, consideramos que pro-
porcionar uma morte serena, com o menor sofrimento possível,
em que a pessoa se mantém inserida no seu meio familiar ou,
pelo menos, não afastado dele, constitui uma exigência ética.
Os cuidados paliativos, como forma de o sistema de saúde res-
ponder às necessidades físicas, psíquicas, sociais e espirituais da
pessoa que vai morrer, cuidando-a de forma holística, concreti-
zam o respeito pela dignidade na fase terminal e na morte.
Actualmente, os cuidados paliativos constituem uma preocu-
pação dos cuidados de saúde e multiplicam-se entre nós os
projectos para a sua implementação no seio das organizações
de saúde, que nem sempre tiveram em consideração a pessoa
em fim de vida.
Temos hoje conhecimento científico bastante e a experiência
técnica necessária para desenvolver os cuidados paliativos como
forma de diminuir a dor e o sofrimento. Ou seja, já vivemos, no
presente, um tempo que permite o respeito pela morte com
dignidade.
Portanto, também pela riqueza da experiência adquirida neste
domínio não fará mais sentido colocar o problema da legitimação
para o direito de morrer, no sofrimento do final de vida, porque
corre-se o risco de ficar limitado ao redutor argumento do caso
particular.
V I S e m I ná r I o d e É t I ca
divulgação ��
ordem dos enfermeiros
Parece-nos, assim, como Serrão, que o “direito a morrer é uma
expressão sem sentido”15, pelo simples facto de ser contradi-
tória na sua essência. Não pode haver um direito que elimine
todos os outros. Não pode a morte, etapa certa do final da vida,
ser considerada como um direito, até porque, parafraseando Frei
Bernardo, uma vez que vivemos, temos o “dever de morrer”.
Se me permitem um olhar final pela Stanza della Segnatura,
terminaria dizendo que, sem excluir outros olhares, à luz da
transdisciplinaridade e trazendo a poesia também presente nos
frescos da Stanza, só conseguimos vislumbrar, não o engenho de
MORRER mas a ARTE DE VIVER (onde naturalmente a morte se
inclui e os cuidados paliativos se inscrevem).
Referências bibliográficas
ASCENSÃO, José de Oliveira – Teoria Geral do Direito Civil. Vol.
I. Lisboa: FDL, 1996.
CÓDIGO Deontológico do Enfermeiro. Incluso no Decreto-Lei n.º
104/98, de 21 de Abril.
CUNHA, Paulo Ferreira – O Tímpano das Virtudes: Arte, Ética e
Direito. Coimbra: Almedina, 2004.
GAFO, Javier – 10 Palavras Chave em Bioética. Coimbra: Gráfica
de Coimbra, 1996. ISBN 972-603-105-2.
MAGALHÃES, Vasco – O sentido da vida. «Cadernos de Bioética».
Coimbra: Centro de Estudos de Bioética. 30 (2002) 113-118.
KANT – Crítica da Razão Prática. Lisboa: Edições 70, 2001. Trad.
de Artur Morão.
PIEPER, Annemarie – Argumentos éticos em favor da liceidade do
suicídio. In: POHIER, J. [et al.] – Suicídio e Direito de Morrer.
Petrópolis (Brasil): Editora Vozes, 1970. pp. 49-60.
PINTO, Feytor – O direito de morrer: Perspectiva teológica e
ética. In: ASSOCIAÇÃO dos Médicos Católicos Portugueses
– Da Vida à Morte. Coimbra: Gráfica de Coimbra, 1988. pp.
203-218.
RENAUD, Isabel – Comentário. In: PRESIDÊNCIA do Conselho de
Ministros – Tempo de Vida e Tempo de Morte. Conselho de
15 SERRÃO, Daniel – Eutanásia. In: ARCHER, Luís [et al.] – Novos Desafios à Bioética. Porto: Porto Editora, 2001. ISBN 972-0-06036-0. pp. 249-254.
Ética para as Ciências da Vida. Lisboa, 2001. ISBN 972-8368-
20-8. pp. 58-61.
NEVES, Maria do Céu Patrão; PACHECO, Susana – Para uma Ética
de Enfermagem. Desafios. COIMBRA: Gráfica de Coimbra,
2004. ISBN 972-603-326-8.
NUNES, Lucília – Equacionando direitos humanos e necessidades
em cuidados. «Revista da Ordem dos Enfermeiros». 4 (Nov.
2001).
NUNES, Lucília – A especificidade da Enfermagem. In: NEVES,
Maria do Céu Patrão; PACHECO, Susana – Para uma Ética de
Enfermagem. Desafios. COIMBRA: Gráfica de Coimbra, 2004.
ISBN 972-603-326-8.
RENAUD, Michel – A “Dignidade Humana”. Reflexão retrospectiva
e prospectiva. «Cadernos de Bioética». Coimbra: Centro de
Estudos de Bioética. 23 (Ago. 2000) 15-31.
RENAUD, Michel – Liberdade e consenso. «Cadernos de Bioética».
Coimbra: Centro de Estudos de Bioética. 36 (2004) 39-45.
SERRÃO, Daniel – Eutanásia. In: ARCHER, Luís [et al.] – Novos
Desafios à Bioética. Porto: Porto Editora, 2001. ISBN 972-0-
06036-0. pp. 249-254.
SERRÃO, Daniel – Suicídio assistido. In: ARCHER, Luís [et al.]
– Novos Desafios à Bioética. Porto: Porto Editora, 2001. ISBN
972-0-06036-0. pp. 255-257.
THOMPSON, Ian; E. MELIA, Kath M.; BOYD, Kenneth M – Ética
em Enfermagem. 4.ª ed. Loures: Lusociência, 2004. ISBN
972-8383-67-3. oe
ARQ
UIV
O O
E
V I S e m I ná r I o d e É t I ca
divulgação��
ordem dos enfermeiros
Prof. Doutor Filipe Almeida
Médico, especialista em Pediatria
A morte em pediatria leva-nos a pensar a morte no tempo de ser
criança – ou seja, entender o “tempo de acabar” como o “tempo
de começar”.
Estranho conceito este: como se tivesse de começar a escrever uma
sinfonia pela coda, pelo trecho final, pelo seu epílogo. É propor-me
transformar a densidade da vida
em algo de muito fugaz,
em algo que rapidamente desemboca no fim,
em não mais que o prelúdio da grande realidade humana que é
a morte, esta sim aqui apresentada como o primeiro momento
solene de uma realidade definitiva.
É parafrasear Joseph Autran na sua poética interrogação:
“O que é a nossa vida senão uma série de prelúdios a este canto
estranho de que a morte entoa o primeiro e solene canto?”
Colocada assim a questão, não me parece importante falar da
morte. Centrar-me-ei, sim, no tempo de morrer. De facto, a morte
biológica não comporta em si mesma qualquer especificidade
pediátrica. Ao contrário, o tempo de morrer aporta, com certeza,
alguma especificidade pediátrica.
À morte são inerentes três conceitos:
a irreversibilidade (algo de permanente),
a não-funcionalidade (todas as funções que definem a vida
cessam com a morte),
a universalidade (tudo quanto vive morrerá).
Este conceito de universalidade transforma a morte numa inevitabi-
lidade, portanto, numa banalidade (se nascer e viver são privilégios
de apenas alguns biliões de seres humanos, morrer é a certeza de to-
dos quantos vivem, é a certeza da totalidade, é um determinismo).
E “este corpo prometido à morte” – na poesia de Florbela Espanca
– faz desta realidade uma efectiva banalidade.
•
•
•
O tempo de morrer, esse sim, é uma especialidade. Com especifici-
dade, já que o tempo de morrer irrompe no tempo de ser criança,
isto é, o tempo de morrer surge no tempo que é ainda o de nascer.
Tempo que pede, assim, para ser analisado sumariamente em
três vertentes: a da criança, a dos seus pais e a dos profissionais
de saúde.
I – Da criança
1. Abaixo dos cinco anos de idade, a criança não tem consciente a
noção de finitude; morre-se apenas.
2. Acima dos cinco anos de idade, este conceito torna-se presente
e a criança confronta-se com a experiência do fim, quando o pai
ou o amigo morre. E intui este conceito de forma muito curiosa,
por vezes com mais clareza e frontalidade que os próprios adultos.
Pelo que urge desmitificar os nossos medos reais, indevidamente
transportados para a “incapacidade” da criança.
II – Dos pais (para quem a morte dos filhos é o maior dos absurdos)
1. Antecipação cronológica de um tempo natural longínquo.
2. O nosso filho nasce para viver, não (nunca) nasce para morrer, mas
para me continuar; o meu filho é a minha imortalidade (“os pais
retiram à vida o direito de se apagar na pessoa do seu filho”).
3. Se eu, enquanto adulto, não penso na minha própria morte, neste
a morte no ciclo vital – morte em pediatria
ARQ
UIV
O O
E
V I S e m I ná r I o d e É t I ca
divulgação ��
ordem dos enfermeiros
meu determinismo biológico, jamais terei oportunidade, disponi-
bilidade mental e emocional para pensar na morte do meu filho,
tal é a “irracionalidade” de uma tal arquitectura de pensamento.
Assim, perante o anúncio da morte do seu filho, os pais fixam-se
maximamente na negação deste tempo de morrer (E. Kubler-Ross):
não! Não! Não! Não pode ser! E logo a revolta, a negociação, a de-
pressão (reactiva ou preparatória) assumem tremenda intensidade.
E, na mesma medida, no mesmo plano de intensidade, a aceitação
deste tempo de morrer é – vai ser – não poucas vezes, a expressão
máxima de um surpreendente encontro com a vida, na sua pleni-
tude, capaz de assumir este tempo de morrer
como um tempo de finalidade e de totalidade;
como um tempo de comunhão do dia de ontem, do dia de hoje
e do dia de amanhã;
como um tempo que fará desmoronar a estanquicidade do
compartimento biológico da vida.
Este tempo de morrer do meu filho é, assim, plenamente, não o meu
tempo de morrer, mas “o meu tempo de morrer” também, já que é
uma extensão do “meu tempo de viver” que agora se acaba.
Estranha forma de vida esta que me não deixa distinguir do ser que
de mim se distinguiu! Estranha forma de vida esta que, no meu
“eu” feito “distância e projecto”, agora se finda!
São este pai e esta mãe que, nesta tecitura, se acabam enquanto
“ser relacional” do filho que agora se consome, são este pai e esta
mãe que hoje me desafiam, profissional de saúde, para uma atenção
desmesurada de humanidade.
III – Profissionais de saúde
1. Só é possível acompanhar devidamente os nossos meninos no
seu tempo de morrer quando sabemos acompanhá-los devida-
mente no seu tempo de viver.
2. “Nós não sabemos morrer!”, lembra-nos o poeta. Mas poderemos
e deveremos estar “lá” neste tempo único que é o tempo de
morrer.
3. Mas só poderá estar “lá”, no acompanhamento adequado ao
tempo de morrer, quem, no tempo de viver, soube igualmente
“lá” estar e “lá” tenha sabido conquistar e garantir espaço para
poder habitar condignamente.
4. Estamos, os profissionais de saúde, muito marcados por uma
cultura de glória que se atém às vitórias médicas no domínio
tecnológico. Mas esta cultura está também profundamente
marcada por um sentimento de vergonha no que se relaciona
com a morte e com o tempo de morrer dos nossos doentes.
5. Os curricula profissionais.
6. As estatísticas das instituições.
É tempo de fazer morrer, sim, este pudor que se vai exibindo sempre
que o cheiro a morte humana invade os nossos serviços. É tempo de
afirmar, no remanso deste encontro único com a vida que, porven-
tura acabada de nascer, já morre, é tempo de afirmar, dizia, o direito
à dignidade que lhe é agora devido. É tempo de entender porque
“rebento no interior da morte como o grão de trigo” (a expressão
doce com que Daniel Faria vê na morte a primavera da vida).
Caros profissionais de saúde, que tendes o privilégio de “tocar” e
serdes tocados quotidianamente pelo corpo das crianças doentes:
seja na intensidade terapêutica farmacológica com que procu-
ramos pôr fim à dor,
seja na intensidade terapêutica com que perseguimos a reali-
dade do sofrimento humano,
seja na determinação terapêutica da limitação ou supressão
farmacológica ou tecnológica que visa bem fazer ou não mal
fazer,
seja na afirmação inequívoca de uma recusa da obstinação
terapêutica,
seja na disponibilidade ou até na indisponibilidade para uma
doação de órgãos,
seja no olhar cintilante de um rosto ético,
à criança que vive o seu tempo de morrer, como a seus pais, não
devemos prodigalizar atitudes enfadonhas de epidérmico de-
vocionismo. Devemos sim prodigalizar posturas de inequívoca
novidade, epifania de uma incontornável eticidade, posturas
que sejam a roupagem humana de um encontro de reais e
singulares dignidades. oe
V I S e m I ná r I o d e É t I ca
divulgação��
ordem dos enfermeiros
olhar inquietoo jovem perante a morte
Abílio Oliveira
Eng. Informático e Psicólogo Social
Professor Auxiliar no Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa, Lisboa. Autor dos livros O Desafio da Morte, Olhar Interior, SobreViver e Dar e Amar (abilio.oliveira@iscte.pt).
Introdução
“Epá... depois de ter saltado veio-me à ideia que a vida é perfeita, que a vida é o melhor que há.A vida está recheada de magia, beleza,oportunidades e televisões.E surpresas, imensas surpresas, sim.E depois há aquilo que toda a gente desejamas que só sente quando já passou o tempo.Ocorreu-me isto tudo.Acho que isto não se vê tão claramentequando se está... percebem... vivo.”
Tom Tom, The Million Dollar Hotel, Wim Wenders & Bono (1999)
“Qual é o significado da vida e da morte? Esta é a mais impor-
tante e complexa pergunta que a nós próprios temos a possibi-
lidade de formular. Alguém consegue imaginar um desafio maior
do que perceber a magnitude da sua existência?” (Oliveira, 1999,
p. 19). Para além do imenso fascínio e apreensão que nascer e
morrer desde sempre nos suscitam, o mistério primordial que
em nós encerramos, é igualmente a certeza de que nos poderá
levar mais intimamente e mais longe: a evidência de SER. Ao
enfrentarmos a morte, olhamo-nos a nós mesmos. Mais do que
morrer... receamos viver plenamente. Ao reconhecermos a rea-
lidade da (nossa) morte, podemos ser afastados, quase violen-
tamente, da mundaneidade do nosso pequeno universo privado
de ideias, emoções, sentimentos... ilusões, relações e de práticas
familiares, sociais e profissionais. Teremos seguramente maior
consciência da vida se estivermos conscientes da morte.
Diziam os Antigos, no sentido de Sábios, que temos em nós os
maiores segredos do Universo. “Como é em cima, assim é em
baixo”, refere um conhecido princípio hermético. A verdade é que
não conseguimos imaginar o nada. “Há sempre qualquer coisa,
algo que pulsa, que vive. Mas se o vazio não existe, porque é
que para muitas pessoas a morte é o fim inexorável, é o ponto
a partir do qual nada mais existe?” (Oliveira, 2001, p. 94).
A verdade é que nem sempre reparamos ou valorizamos o
que temos, o que fazemos, o que somos (e quem ousa tentar
descobrir "quem É?"), quem está perto de nós ou o que existe
em nosso redor, ao alcance de um olhar, um toque, uma acção.
Tal como o Tom Tom na história que introduz este texto, nem
sempre nos apercebermos claramente das coisas, das pessoas,
dos factos,... da Vida de que somos parte integrante, em toda a
sua beleza, magia e magnificência. Por vezes, nós só reparamos
no mais importante... “quando já passou o tempo”, quando a
vida que anima(va) um corpo jazente ou enfraquecido após
uma dura viagem anseia por se libertar e passar mais uma
curva no Caminho. Por vezes, encontramos jovens como o
Tom Tom, que presos ao remoinho em que a sua existência se
tornou, na ânsia de encontrar um novo rumo para uma forma
de vida tornada intolerável, no desespero por alcançar algo que
os faça sentir que estão vivos e lhes dê uma razão para pros-
seguir, arriscam morrer, não por pensarem que vão encontrar
ARQ
UIV
O O
E
V I S e m I ná r I o d e É t I ca
divulgação ��
ordem dos enfermeiros
a sua própria morte, mas sim por sonharem poder sobreviver...
numa outra forma.
“O suicídio é a única saída quando uma pessoa está num mundo desconhe-cido e quando a única ‘música’ que ouvimos é a da solidão.”
(rapariga de 17 anos citada por Oliveira, 2004)
Qualquer criança ou adolescente, desde a mais tenra idade,
pensa frequentemente na morte. E depara-se com ela nas mais
diversas situações e nos mais diversos contextos. No familiar que
deixou de ver, na folha de árvore no chão, no peixinho que deixou
de nadar,... no brinquedo estragado, no programa de televisão
ou, tantas vezes, na refeição que lhe é dada. A ideia de morte
reflecte sobretudo o interesse crescente que a criança, e mais
tarde o adolescente, tem sobre si mesma, o seu crescimento e
o facto de estar viva. Não seria natural isso ser também comum
num adulto?
A percepção da morte na infância
“Disseste-me que o pai foi viajar e a avó disse-me que ele foi para o céu... mas eu sei que ele morreu... e não volta, nem pode apanhar o meu pa-pagaio de papel, quando ele voa no vento. Mas olha que às vezes estou a dormir e ele vem visitar-me, diz que gosta muito de mim, corre comigo, pega-me ao colo e dá-me um beijinho para eu dormir melhor... ah, e diz que gosta muito de ti também, e pediu-me para eu te dizer para tu não chorares, e eu sei que tu choras às escondidas mamã, e o papá também sabe, mas olha que o papá não nos esquece e está aqui [fala pondo a mão no peito da mãe] bem juntinho a nós e vê-nos todos os dias... e eu também o vejo... às vezes.”
André, com cinco anos, citado por Oliveira e Araújo (2002, p. 14)
Encarar a morte, sem iludir, ignorar ou maltratar... sem fugir nem
fingir... seremos capazes de responder a este tremendo desafio
que todos os meninos e todas as meninas como o André nos
lançam continuamente?
Podemos não saber exactamente o que uma criança pensa e
sente sobre a morte, mas estamos certos de que cada uma, à
sua maneira, sofre sempre com a separação e a perda. O que
quer que pensemos ou façamos, digamos ou deixemos por dizer,
influi decisivamente no processo evolutivo de um ser humano
sensível e inocente. Porquê menosprezar ou ignorar as suas
questões, impelindo-o a falar de outra coisa, repreendendo-o
ou silenciando-o? Por vezes, a criança é enganada, perturbada
com banalidades ou inquinada pelas dúvidas, pelos fantasmas,
pelos medos e pelas inseguranças dos adultos. Uma sociedade
que disfarça a morte cultiva também, desde cedo, a opressão,
a culpabilidade e o terror pela dor, pela morte e, em rigor, pela
vida e por viver.
Ao longo do tempo, as crianças vão tendo diferentes noções
sobre a morte, conforme a sua capacidade de entendimento,
a experiência pessoal, o contexto social e a educação recebida.
Consideram-se, em geral, quatro fases sucessivas, do nascimento
à adolescência.1
“É possível que a criança comece a entender o significado da
morte física (como irreversível) antes dos seis anos, se consi-
derarmos que ela apercebe-se das várias mortes que observa e
que as suas ideias podem ser influenciadas pelas tradições cul-
turais de suas famílias e seus companheiros de escola” (Oliveira
e Pires, 2005, p. 7). Por volta dos seis anos, começa a olhar a
morte como permanente e comum a todos os seres vivos. Mas,
de alguma forma, crê que ela e os seus familiares são imunes,
por se portarem bem ou por terem várias vidas... a morte é
personificada, representada como um monstro, um papão ou
um fantasma, provocando medo, angústia e, com frequência,
terrores nocturnos – e quem contribui mais para isso? É também
frequente a criança interessar-se pelas causas e pelo processo
de decomposição decorrente da morte, o que aprende na escola
em relação às plantas e animais.
Na verdade, muito do que somos enquanto adolescentes e em
adultos resulta do nosso desenvolvimento cognitivo, afectivo,
moral, psicossocial e social, desde o início, num dado contexto,
da instrução recebida, da educação e das interacções estabe-
lecidas com quem nos é próximo, antes de mais, com os pais
e educadores. As crianças e os adolescentes, na sua maioria,
1 Desenvolvemos e sintetizamos as representações típicas da morte e as diferentes fases pelas quais habitualmente passam as crianças (do nascimento à adolescência), associadas ao seu desenvolvimento físico, psicológico e social, num outro artigo (OLIVEIRA; ARAÚJO, 2002) e na tese de doutoramento (OLIVEIRA, 2004).
V I S e m I ná r I o d e É t I ca
divulgação��
ordem dos enfermeiros
preocupam-se não só com a morte, mas, também, com a vida,
Deus e a vida após a morte. Antes do processo de socialização
em que são envolvidas, numa sociedade castradora e redutora,
é-lhes naturalmente fácil aceitar a morte. Se repararmos bem,
do ponto de vista do ciclo vital, as crianças estão mais próximas
da morte do que nós, adultos. É interessante perceber o que
elas nos conseguem dizer sobre isso... Quais os limites da sua
imaginação? E da nossa ilusão?
Perspectivas predominantes face à morte
A morte assusta e parece estilhaçar as relações humanas. Por
isto, é dissimulada ou desprezada. Contudo, a vida desdobra-se
em múltiplas formas e situações. E “quanto mais o ser humano
se apega às aparências das formas, às obrigações e aos prazeres
mundanos, mais obnubila ou tão só adormece a morte [...] ele
desdiz a realidade interdita e alimenta a quimera da imortalidade
física. Ilude-se de novo e desgasta-se inutilmente” (Oliveira,
1999, p. 137).
A morte biológica encontra-se amplamente estudada e, tal
como o nascimento, faz parte da existência humana. Mas seria
estranho afirmar que nada mais existe além do corpo físico, sem
o admitir cientificamente, pois tal iria contrariar as evidências
que a Natureza nos oferta, com a qual aprendemos que nada se
perde, tudo se transforma e renova, e que isso implica nascer,
desenvolver, morrer, nascer... uma vez que todos os fenómenos
são cíclicos. Se a morte fosse a aniquilação, “o fim”, os ciclos
da vida seriam absurdos, o que não é verdade. Contudo, é “um
fim”, como afirmam muitos jovens na investigação que temos
realizado (e. g., Oliveira, 2004).
Hoje em dia coexistem três perspectivas predominantes face à
morte e ao morrer: científica (ou das ciências em geral), religiosa
(essencialmente judaico-cristã) e ocultista (ou das grandes tra-
dições filosóficas e espiritualistas).
A perspectiva científica tem como verdadeiro somente o que é
observável e de algum modo quantificável. Numa visão mecani-
cista, considera a morte como a extinção do ser individual. Sabe-
-se que o corpo será decomposto, desagregado e os seus átomos
dispersados e reutilizados, num processo em que intervêm uma
multiplicidade de seres vivos. Olha-se a morte do outro mas
não a própria e questiona-se: Temos mesmo de morrer? Com os
prodígios alcançados na biomedicina, na engenharia de tecidos e
de órgãos, na física quântica, na manipulação genética, na inte-
ligência artificial, na tecnologia biónica e criónica… os cientistas
sonham com a imortalidade física e acham que a nossa geração
poderá vir a medir a sua existência em séculos e não em décadas
(e. g., Oliveira, 1999). Entretanto, “poderemos chegar a um mo-
mento em que a nossa sociedade se terá tornado tão insensível
a ponto de se autodestruir a si mesma, à vida que a sustém e
ao sonho da (neste caso, néscia) imortalidade” (Oliveira, 2001,
p. 99). Apenas a morte nos oferece uma visão de continuidade,
repõe em circulação os átomos (cujo número se mantém cons-
tante desde o início dos tempos), as moléculas e os sais minerais
de que a Natureza necessita para se desenvolver, para todos os
seres se poderem regenerar. A morte é uma necessidade da vida.
Será a imortalidade física possível ou desejável? Qual o risco
que assumimos e que custo nos dispomos a pagar? O Homem
inteligente sempre gostou de ver mais além. O transcendente
que a ciência tentou varrer do horizonte racional aparece agora
como o postulado final das ”ciências de ponta”2 investigando-se
o que é ”invisível”.
Uma outra formulação genérica, comum nas igrejas fundadas
em três (das doze grandes) tradições religiosas – cristã, judaica
e islâmica –3, associa ao ser humano uma alma individual
imortal, que é eternamente punida ou recompensada em
função das acções cometidas aquando da sua única passagem
pela Terra. Esta ideia é frequentemente apoiada em dogmas,
sistemas de crenças e em noções de pecado, mistério, culpa,
medo e julgamento. Inúmeros problemas (e incongruências)
são dificilmente contornáveis pela razão... Quais os critérios
2 Como a astronomia, a cosmogonia, a química orgânica, a bioquímica, a biologia molecular, a nanotecnologia, a engenharia genética, a física quântica, a inteligência artificial ou a biomedicina.
3 Embora nestas tradições se encontrem ramos que defendem e sustentam leis como a reencarnação, respectivamente, os cristãos esotéricos, os cabalistas e os sufis; até ao século V, o cristianismo aceitava as teses do teólogo Orígenes que defendia a reencarnação (e. g., LUZ, 1988; OLIVEIRA, 1999).
V I S e m I ná r I o d e É t I ca
divulgação ��
ordem dos enfermeiros
que irão determinar o destino de um ser humano e quem os
julgará? O que é ser condenado a um inferno ou recompen-
sado com o céu, por toda a eternidade?! O que fazer com uma
criança que morre com tenra idade, não tendo a oportunidade
de realizar algo? Etc.
A terceira hipótese refere também existir uma alma imortal,
mas como reflexo de um princípio espiritual imperecível, e
perspectiva a sua viagem ilimitada no espaço e no tempo,
através de inúmeras formas e contextos, de existência (ou
personalidade) em existência humana, num percurso evolutivo,
mudando de corpo tal como um actor muda de papel, fato e
cenário. Segundo a teoria da reencarnação ou do renascimento,
pela experiência assimilada em vidas sucessivas, o Homem vai
ampliando os seus níveis de consciência e evolui, ultrapassando
as suas limitações, falhas e defeitos, e
manifestando cada vez melhor as qua-
lidades divinas que em si dormitam.
A maioria dos povos e das grandes
civilizações da Antiguidade (Egipto,
Grécia, Roma etc .) defenderam a
reencarnação. Actualmente, muitos
milhões de pessoas e povos continuam
a atribuir-lhe uma coerência lógica.
Assim sucede entre os grandes movimentos de espiritualidade
orientais, as principais religiões e filosofias hindus, o Budismo,
o Zoroastrismo, o Taoismo e outras tradições religiosas (como
os sufis islâmicos, os cabalistas judeus e os cristãos esotéricos),
entidades e grupos ocidentais (e. g., Anacleto, 2002; CLUC,
1995; Luz, 1988; Oliveira, 1999, 2001).
Da aceitação geral à actual interdição da morte
Nas sociedades modernas (ditas) ocidentais, as representações
dominantes da morte oscilam, sobretudo, entre a perspectiva
científica e a tradição judaico-cristã marcadamente católica (e.
g., Ariès, 1989, 1992; Bradbury, 1999; Kastenbaum, 2001; Oliveira,
1999; Parkes [et al.], 2003; Morin, 1988; Vovelle, 1983). Resulta-
dos de uma nossa pesquisa recente mostram-nos que os jovens
adolescentes adoptam e partilham representações diversas ou
transculturais, englobando traços das três perspectivas, sendo,
igualmente, os que mais encontram forte fundamentação e
razões lógicas na dimensão espiritual do ser humano e na reen-
carnação (Oliveira, 2004).
Interditou-se a morte. E morrer tornou-se indigno, sobretudo por
suicídio. Evita-se partilhar ou abordar sentimentos, especialmente
associados a dor. A medicina e as novas tecnologias oferecem-nos
maior esperança de aqui viver mas não nos ‘salvam’. Eis um outro
paradoxo: tememos morrer mas o que na verdade mais receamos
é viver. “Temo a morte, mas sei que, se tentar fugir-lhe, estarei
a correr na sua direcção” (Peixoto, 2003, pág. 60). Vivemos com
pressa, impelidos para o prazer, a acumulação de bens e títulos,
a actividade, a beleza (aparente) e a juventude, envoltos em
preocupações e obrigações, escondendo, adiando ou renegando o
encontro com o que nos afronta, e nada
nos incomoda mais do que a morte,
impiedosa e repelente. Mas ela acena-
nos, perversa, num apelo à reflexão e
à autodescoberta. Enquanto podemos,
hesitamos em parar e aquietar-nos
para a olhar e agimos como se fosse-
mos imortais. O silêncio e a solidão,
que deveríamos cultivar naturalmente,
surgem por imposição a quem quer abordar aquilo sobre o qual
não se deve falar. A cultura ocidental isola a pessoa que, por si
mesma ou através de um ente querido, se aproxima da morte.
Como chegámos a esta situação?
Na baixa Idade Média, todo o ser humano reconhecia facilmente
a sua mortalidade e queria preparar-se antecipada e serena-
mente para o seu momentum, deitado convenientemente na
sua cama, em casa, rodeado de amigos e familiares, conforme
se descreveu na “arte de bem morrer”. A morte ‘desejada’, tão
ou mais importante do que o funeral e o luto, era celebrada
publicamente. A familiaridade assumida sem temor, desprezo,
orgulho ou desespero, revelava a aceitação de um destino
comum a todas as pessoas (e. g., Ariès, 1989; Oliveira, 1999).
Do século XII ao século XIV, a morte converteu-se no mo-
mento em que todas as particularidades da vida humana eram
A medicina e as novas tecnologias
oferecem-nos maior
esperança de aqui viver mas
não nos ‘salvam’.
V I S e m I ná r I o d e É t I ca
divulgação�0
ordem dos enfermeiros
analisadas, pesadas, escritas... e julgadas, daí resultando a sal-
vação ou a condenação da alma. Existe assim uma ponderação
mais pessoal, interior e consciente da própria morte ou da
“morte de si próprio”.4 A partir do século XVIII, apesar de se
manter quase todo o cerimonial tradicional, a morte é aliada
ao imagético-simbólico e ao erotismo, exprimindo a ruptura
da ordem habitual. “A Humanidade começou a distanciar-se da
morte em si mesma e esta assumiu uma expressão dramática,
tensa, exaltada, contestada, espectacular” (Oliveira e Amâncio,
1999, p. 214). Desde então, o que mais se receia é a separação
inadmitida do próximo ou da pessoa amada, a “morte do ou-
tro”, tal como Ariès (1989) referiu. No século XIX, ela parecia
estar em todo o lado, no luto, no culto da recordação ou nas
peregrinações aos grandes cemitérios, mas talvez essa pompa
ocultasse o afrouxamento das antigas familiaridades. Com os
progressos das ciências, a todos os níveis, dos cuidados médicos
e das tecnologias, ia sendo cada vez mais afastada da família.
No século XX, a revolução de ideias e sentimentos foi de tal
ordem que a morte tornou-se vergonhosa e foi escondida5. Per-
cebeu-se claramente que ela não diferencia estatuto, posição
ou classe. Todos nós somos iguais... como mortais. Todos nós...
tão longe... e tão perto. Observamos em todo este percurso uma
forte influência das crenças, atitudes, medos, tabus e dogmas
típicos da igreja (católica apostólica romana) ocidental predo-
minante. Mas, entretanto, percebemos que nem a igreja nem
a medicina – apesar dos seus dignos esforços em prol da vida
humana e dos cuidados proporcionados – nos podem “salvar”
ou evitar a mortalidade.
Agora, arriscamo-nos muito a morrer no leito de um hospital
ou de uma instituição afim, sozinhos, na sequência de um
qualquer acidente – forma de morrer mais comum entre os
jovens, seguida do suicídio –, doença ou velhice. Ainda que
na maioria dos casos suceda num contexto público, a morte
transformou-se num fenómeno técnico, não cerimonial, por
4 Cercado por mortes horríveis (em particular devido à peste), o Homem procurava então atingir uma morte boa, pagando antecipadamente missas e encenando cerimónias fúnebres.
5 Ocupando o lugar antes destinado ao sexo.
vezes ocultado pelos profissionais de saúde, até à sua consu-
mação, vivido pelo próprio como um acto privado... solitário. A
pessoa que perscruta a morte é escondida dos olhares, cuidados
e sentimentos alheios, é isolada. E é habitual que ninguém
(doente, familiar, médico...) queira referenciar a morte ou quem
está a morrer, imperando um silêncio sepulcral que trespassa
a equipa hospitalar, a família, os amigos... a sociedade... e que
não ajuda ninguém.
Como pode um jovem adolescente (não) reagir ou ficar alheio a
esta situação? Como pode ele tranquilizar o seu olhar inquieto
e compreender a realidade em que se envolve?
A morte entre os jovens futuros profissionais de saúde�
Pensar na morte implica pensar em questões sociais ao nível
dos valores, das crenças, das atitudes, das culturas e das ideolo-
gias – e em nós próprios, no modo de ser, posicionar e agir no
quotidiano.
Numa outra investigação (Oliveira, 1995, 1999) em que ana-
lisámos a forma como a morte é representada entre jovens
estudantes universitários de medicina, enfermagem e biologia
(com idade média de 20 anos), verificámos que são os futuros
enfermeiros que revelam maior mal-estar e se mostram mais
emocionalmente envolvidos com a morte. Ao contrário dos
futuros médicos que, embora sentindo-se sós, revoltados e im-
potentes, se mostram quase indiferentes perante a morte (em
si e) de si próprios. Os aspirantes a biólogos, habituados a tentar
estudar a vida através de mortes, mostraram-se observadores e
curiosos, mas também emocionalmente distantes. Observámos
uma forte semelhança entre as representações das jovens e as
dos estudantes de enfermagem, e entre as dos jovens e as dos
estudantes de medicina. As mulheres salientaram mais uma
dimensão emocional face à morte do que os homens.
6 Para um aprofundamento do planeamento, dos métodos e dos procedimentos seguidos, bem como dos resultados da investigação que aqui abordamos muito sinteticamente, pode consultar Oliveira (1995, 1999) e Oliveira e Amâncio (1998, 1999).
V I S e m I ná r I o d e É t I ca
divulgação ��
ordem dos enfermeiros
Entre muitos outros aspectos, a generalidade dos sujeitos nesta
população revelou medo da morte ou de morrer e, na ausência
de qualquer estímulo adicional, mostrou tendência para a ocul-
tar, vivenciando ou respeitando o interdito. Ou seja, na ausência
de contexto experimental, ao contrário do que verificámos nas
condições experimentais, a morte foi olhada de soslaio, com
afastamento emocional, como algo que se reconhece existir
mas, para os outros, representada de modo abstracto, simbólico,
impessoal e não personalizado, como uma possibilidade remota,
controlável e improvável ou adiável – num cenário típico de
“morte interdita”.
A maioria salientou fazer muito sentido existir uma qualquer
forma de vida para além da morte, bem como uma alma e um
espírito humanos. Revelou também que não costuma assistir
a serviços religiosos e não deu absolutamente nenhuma (ou
deu pouca) importância à exibição de sinais exteriores de luto,
mas mostrou-se muito ou muitíssimo incomodada perante a
possibilidade de outra pessoa lhe mostrar pesar ou sofrimento
pela perda de um ente querido. Quando questionados acerca do
modo como prefeririam morrer, se pudessem optar, a maioria
escolheria morrer a dormir e, entre várias outras hipóteses
possíveis, ninguém optaria por morrer rodeado de enfermeiros
e médicos, o que não deixa de ser bastante significativo.
A importância da ressocialização da morte
Posteriormente, verificámos que as representações destes jo-
vens diferem muito pouco das dos profissionais de saúde. O
que se pode explicar, ao menos em parte, pelas motivações
pessoais, sociais e pelos processos de socialização em que os
jovens estudantes se encontram envolvidos. Doentes, familiares
e profissionais de saúde seguem caminhos paralelos quando se
aproxima um final de vida. Independentemente do estatuto,
da posição ou da profissão, todos somos humanos e a crise da
morte revela as dificuldades com que nos deparamos ao tentar
mudar o mundo (e. g., Kübler-Ross, 1991). Desnuda os grandes
conflitos (psicos)sociais da nossa sociedade que observa na
morte o fracasso do seu “projecto de modernidade”. O que nos
leva a salientar a premência dos cuidados continuados e da
ressocialização da morte.
“Não podemos esperar que sejam os médicos, os psicólogos ou
quaisquer outros grupos sociais a resolver, sozinhos, esta com-
plexa questão: um problema que a todos nós respeita e abrange
e em que todos nos deveremos empenhar. Só assim se tornará
possível ultrapassar uma crise tão profunda e enraizada no nosso
âmago” (Oliveira, 1999, p. 25). Técnicos de saúde, cientistas
sociais, teólogos, espiritualistas, todos, num esforço conjunto,
ARQ
UIV
O O
E
V I S e m I ná r I o d e É t I ca
divulgação��
ordem dos enfermeiros
solidário e organizado, poderão dialogar com os pacientes e os
seus familiares, socializando um momento único e tornando
mais fácil o superar de medos comuns, rumo a uma paz interior,
na certeza de que a vida, em cada ponta final, atinge toda a sua
beleza e plenitude. Os momentos anteriores à morte podem
suscitar transformações profundas. A morte, mais do que um
tempo de paragem, é um tempo de transição. E nada é mais
importante do que a dignidade na VIDA e na MORTE.
A morte distante
Apesar de algumas experiências ainda pontuais, a ressocializa-
ção da morte ainda está longe. Quer no hospital, quer em casa.
Em Portugal, não subsistem hoje mais do que vestígios da ars
moriendi, em raras e dispersas pequenas localidades do interior,
sendo, por isto, desconhecida ou estranha para uma grande parte
dos jovens (e. g., Coelho, 1991). A morte tornou-se estranha, me-
donha e arredou-se.... As crianças já não ficam perto da pessoa
que está a morrer e são afastadas do contacto com o morto;
não raras vezes, os adolescentes também são “aconselhados”
a manter uma certa distância. As cerimónias fúnebres e muitas
formalidades são geralmente entregues a profissionais da morte.
Idealizamos que certos factos apenas sucedem aos “outros” e que
morrer bem é, antes de mais, morrer a dormir e sem dor (e. g.,
Oliveira, 1999, 2004).
A morte continua a ser profundamente sentida no seio familiar,
mas perdeu-se o direito de o afirmar. As conhecidas manifestações
de luto, antes obrigatórias e agora “desaconselhadas”, vão desapa-
recendo. Temos enorme dificuldade em entender ou, até, aceitar,
que alguém, mesmo que seja nosso familiar ou amigo, nos mostre
emoções e reacções de sofrimento, pesar ou luto após a morte
de uma pessoa próxima (Oliveira, 1999, 2004; Oliveira e Amâncio,
1999). Este silêncio contrasta com o ruído de alguns media e da
Sétima Arte (p. e., nas ‘guerras em directo’, nos noticiários ou em
‘séries enlatadas’), onde se privilegia a morte como espectáculo
ou como banalização. Por paradoxal que pareça, no caso de uma
figura pública ou de um ídolo, em particular se morrer jovem, a
morte é glorificada ou deificada e nela revemo-nos facilmente.
Também o risco juvenil é socialmente aceite e glorificado (como
em certos desportos ‘radicais’), não apenas no círculo de colegas e
amigos, mas, amplamente, nesta sociedade obcecada pela juven-
tude e a imortalidade física. “E este é um facto particularmente
relevante no decorrer da adolescência, enquanto cada jovem está
a construir uma identidade e tanto se questiona sobre a morte e a
vida, e como, num movimento de autonomia, procura incessante-
mente referenciais, na família, no grupo, nas figuras que conhece
e nos ídolos que admira, por exemplo, no desporto, no cinema
ou na música. [...] Entre a glorificação desmedida e a interdição
irracional generalizada, estas representações ambivalentes da
morte não deixarão de o influenciar e ter alguma repercussão”
(Oliveira, 2004, pp. 103-104).
O adolescente tende a abordar questões como a morte e o suicí-
dio, em primeiro lugar, com os familiares mais próximos, antes de
o fazer com os amigos ou algum professor (Sampaio [et al.], 2000;
Oliveira [et al.], 2001). Em muitas situações percebe não poder
falar sobre isso e nem o dever tentar, mas também percebe que,
“na vivência intensa das dúvidas e pressões inerentes a crescer,
na busca dos valores e limites, um modo de se experimentar,
conhecer, apelar aos outros e a uma sociedade envergonhada na
sombra da morte é testar-se, arriscar além daquilo que é norma
social, transgredir a sua própria segurança para ver até onde
consegue chegar, nomeadamente através de comportamentos
de risco” (Oliveira, 2004, p. 93).
A morte por suicídio, em particular, converteu-se no nosso maior
tabu (e. g., Shneidman, 1996). “A morte expõe-nos a incontro-
labilidade do destino, numa sociedade que tende a renegar a
imaginação, instigar ao prazer, felicidade e glória efémeras, e onde
mais importa parecer do que ser” (Oliveira, Sampaio e Amâncio,
2004, p. 73).
Representações e reacções perante a morte e a perda na adolescência
Para génios como Platão ou Pitágoras, tudo o que observamos
quando estamos despertos é a morte... que não é mais do que
uma outra forma de sondarmos a vida. Tal não passa desperce-
bido ao adolescente que deseja ardentemente conhecer-se.
V I S e m I ná r I o d e É t I ca
divulgação ��
ordem dos enfermeiros
Na verdade, os adolescentes pensam muito na dor, na morte e no
suicídio (e. g., Crepet, 2002; Frankel, 1999; Marcelli, 2002; Pom-
mereau, 2001; Sampaio, 2002). Os seus conceitos acerca destas
questões existenciais estão intimamente ligados às suas ideias e
imagens de morte na infância. As crianças e os adolescentes em
geral preocupam-se não só com a morte, mas também com Deus
e a vida após a morte, relacionando estes três conceitos entre
si. Qualquer criança já pensa com grande frequência na morte e
na perda (e. g., Bowlby, 1998; Clerget, 2001; Kastenbaum, 2001;
Strecht, 2002), podendo eventualmente ser confrontada com a
falta de algum familiar próximo muito cedo, logo aí emergindo
uma das faces negras da interdição, pois, como afirmámos an-
tes, muitos adultos “evitam o tema, na esperança de as manter
afastadas da dor e, principalmente, das suas próprias dúvidas,
inseguranças, fantasmas e medos”
(Oliveira e Araújo, 2002, p. 15).7
Qualquer jovem, ao tentar respon-
der às grandes questões psicos-
sociais, envolve-se num processo
de (des)construção e criação que
implica, por um lado, os pais,
colegas e amigos e, por outro, os
ídolos e todos os que, directa ou
indirectamente, contribuem para
a conquista de uma autonomia, a
definição de valores e de uma identidade (e. g., Bouça, 1997;
Fleming, 1993; Geldard e Geldard, 2000; Sprinthall e Collins,
1999). Nesta habitualmente longa travessia que liga o ‘ser
criança’ ao ‘ser adulto’, é preciso ‘morrer’ para a ‘criança que se
tem sido’ e ‘nascer’ para o ‘adulto que se há-de ser’, fortalecer
a autoconfiança e a auto-imagem. Ao dominar as operações
formais, o jovem aprende a elaborar pensamentos abstractos,
raciocínios lógicos, gerar hipóteses, manipular variáveis, relacio-
nar conceitos, abordar questões sob diversas perspectivas e en-
contrar estratégias para as entender (e. g., Papalia [et al.], 2001;
Piaget, 1977, 1978; Sprinthall e Sprinthall, 1993). O adolescente
olha a morte como irrevogável, enquadra-a como etapa natural
7 Ver nota1.
do ciclo de vida fisiológico, mas não domina o conceito em si,
não pensa nem admite a hipótese dele mesmo morrer, o que
encontra correspondência no anseio humano de imortalidade
(e. g., Laufer, 2000; Oliveira, 1999, 2001, 2004; Pommereau,
1998; Sampaio, 1991, 1999).
Num extenso trabalho de investigação8 que realizámos recen-
temente com adolescentes escolarizados, de ambos os sexos,
entre os 15 e os 18 anos (Oliveira, 2004), verificámos que entre
as principais representações sociais da morte salientam-se os
pensamentos e sentimentos de mal-estar, associados a perda,
saudade, dor, medo, tristeza, isolamento, solidão ou desespero,
o ritual funerário e a vivência de proximidade com ‘o outro’.
A morte é, ”em muito, representada pelos ‘sentimentos’ que
desperta e objectivada em ‘causas
concretas’, como «um fimΩΩΩ» e não
como «o fim», esperando-se existir
‘continuidade’, ‘vida’ para além do
desconhecido” (Oliveira, 2004, p.
318), que não se pode controlar.
Encontramos representações so-
ciais que congregam dimensões
presentes nas três perspectivas
dominantes actualmente sobre
a morte e a perda, com saliência
para as que remetem para a con-
tinuidade ou a reencarnação.9 Quanto às representações mais
significativas do suicídio, salientaram sobretudo o mal-estar, a
tristeza, a infelicidade e o medo, a compaixão perante o suicida
e a debilidade que a ele se associa, as causas do suicídio, bem
como o suicídio como resolução ou morte violenta. O gesto sui-
cida destaca-se como um apelo, uma solução, saída ou fuga face
às dificuldades ou problemas, um reencontro, uma desistência
ou negação da vida, um acto desesperado e de sobrevivência
(Oliveira, 2004).
8 Numa tese de doutoramento em psicologia social realizado no ISCTE, intitulado Ilusões: A Melodia e o Sentido da vida na Idade das Emoções – Representações sociais da Morte, do Suicídio e da Música na Adolescência, e concluído em 2004.
9 A maioria dos jovens que questionámos afirmou que para si fazia muito ou mui-tíssimo sentido a existência de uma qualquer forma de vida para além da morte, bem como de uma alma e de um espírito (OLIVEIRA, 1999, 2004).
Nesta habitualmente longa travessia
que liga o ‘ser criança’ ao ‘ser adulto’,
é preciso ‘morrer’ para a ‘criança
que se tem sido’ e ‘nascer’ para o ‘adulto
que se há-de ser’, fortalecer a
autoconfiança e a auto-imagem.
V I S e m I ná r I o d e É t I ca
divulgação��
ordem dos enfermeiros
As reacções de um adolescente à perda de uma pessoa impor-
tante para si, em especial se já houve outras perdas, dependerão
do seu percurso pessoal, familiar e (psicos)social; e são difíceis de
tipificar, pois os sintomas de dor, sofrimento e o processo de luto
podem diferir do que é mais habitual num adulto (e. g., Clerget,
2001). O choque, a descrença ou negação, a tristeza ou angústia,
a ira, raiva, zanga ou revolta, a culpa e a depressão (ainda que
esta possa não ser a ordem precisa) são as reacções ou fases
mais comuns que precedem uma reorganização interior e uma
nova forma de viver, quando a ansiedade vai cedendo lugar a uma
relativa tranquilidade e à aceitação da perda. A “morte próxima”
gera um tremendo sofrimento e uma sensação de ruptura asso-
ciada à difícil e inevitável desvinculação. Qualquer adolescente
depara-se ainda com uma série de perdas, fantasmáticas e reais,
comparáveis ao processo de luto, que o remetem sempre para
um confronto simbólico com a morte (e o morrer) e as formas
de a representar. Ainda que as representações da morte realcem
as ambivalências ou oscilações emocionais e de comportamento
típicas neste período (e. g., Bossa, 2000; Braconnier e Marcelli,
2000; Campos, 2000; Clerget, 2001; Crepet, 2002; Marcelli, 2002),
podem ser confundidas com aparente indiferença, lentidão,
sintomas depressivos, agressividade ou hiperactividade. Porém,
qualquer das reacções possíveis mascara ou expõe um profundo
mal-estar interior.
Num percurso feito de constantes desequilíbrios, sempre em
busca de um novo equilíbrio... desequilibrador, o adolescente
dirige-se da família para o grupo... e mais tarde ruma para uma
nova família, sem deixar de ter e cultivar momentos de solidão
essenciais. A morte leva-o a pensar no enigma da finitude e na
inefável intangibilidade da própria vida, o que gera inúmeras
dúvidas, suposições e reflexões. Na procura de si mesmo, do que
deve pensar, sentir e fazer, e de algum sentido para tudo, como
poderia um jovem não precisar de falar sobre si e do que o rodeia?
Como poderia aceitar que nada se passa se continua inquieto,
sôfrego por informação, e o seu corpo, em constante transfor-
mação, ainda não desistiu de querer viver, nem se conforma a
uma vivência monótona, insensível e oca? Como poderia deixar
de tentar, de dialogar? Como reage a sociedade ao seu apelo? A
dissimulação, o silêncio ou as banalidades dificultam ainda mais o
desenvolvimento adolescente e não ajudam a “evitar que muitos
jovens se isolem e desistam de viver ao tropeçar nos problemas,
nas desilusões e nas dificuldades que, inevitavelmente, surgem”
(Oliveira, Amâncio e Sampaio, 2001, p. 519). A desesperança está
intimamente ligada à depressão, à ideação suicida e, ainda mais,
à intenção suicida e às tentativas de suicídio, como mediadora
entre a depressão e o suicídio (e. g., Velting, 1999).
A morte de uma pessoa próxima, particularmente por suicídio,
pode revelar-se um factor de risco na adolescência e, nalguns
casos, um factor precipitante para graves comportamentos paras-
suicidas ou suicidas (e. g., Laufer, 2000; Macfarlane e McPherson,
2001; Saraiva, 1999).
O adolescente suicida
“A morte é certa, não é possível evitá-la, temos é que a aproveitar todos os segundos o melhor possível.Se resolvermos optar pelo suicídio, se não temos vontade de viver, então para quê estar cá mais tempo. Às vezes a realidade é demasiado má. (...) Que sentido tem vivermos e sabermos que vamos morrer?!?”
(Rapariga de 17 anos citada por Oliveira, 2004)
O gesto suicida veicula sempre uma intolerável dor interior,
de quem não suporta mais a tensão, perdeu a esperança e não
encontra uma alternativa válida pela vida. Revela um fracasso
individual, familiar e social (e. g., Shneidman, 1981). “A autodes-
truição surge após múltiplas perdas, fragmentos de dias perdidos
ao longo dos anos, rupturas, pequenos conflitos que se acumulam
hora a hora, a tornar impossível olhar para si próprio. O suicídio é
uma estratégia, às vezes uma táctica de sobrevivência. Quando o
gesto falha, tudo se modifica em redor após a tentativa. E quando
a mão, certeira, não se engana no número de comprimidos ou no
tiro definitivo, a angústia intolerável cessa naquele momento e,
quem sabe, uma paz duradoura preenche quem parte. Ou, pelo
contrário e talvez mais provável, fica-se na dúvida em viver ou
morrer, a cabeça hesita até ao último momento, quer-se partir
e continuar cá, às vezes deseja-se morrer e renascer diferente”
(Sampaio, 2000, p. 152).
O gesto suicida “permite encarar a morte como refúgio, como
local de encontro com alguém que se perdeu, como forma de
V I S e m I ná r I o d e É t I ca
divulgação ��
ordem dos enfermeiros
destruir uma parte de si próprio sentida como incontrolável;
noutra dimensão, o suicídio aparece como desafio ou vingança
face a alguém a quem se está profundamente ligado; em der-
radeira análise (...) o gesto suicida adolescente é uma tentativa
de triunfo sobre as limitações humanas” (Sampaio, 1999, p. 12).
O adolescente sem esperança vê no suicídio uma solução ou a
fuga para uma situação insustentável, mas... quer morrer e viver
ao mesmo tempo. No fundo, gostava de desaparecer, transformar
a situação noutra melhor.
“Em busca de reparação para uma identidade destruturada, esti-
lhaçada ou gravemente ferida [...] quando as representações da
vida e da morte se confundem, na orla do desespero, do desânimo,
os adolescentes podem tornar-se suicidas ou, numa primeira fase,
ficar mais distraídos (e propensos a acidentes), tentar aliviar a
tensão que os oprime magoando-se a si mesmos ou procurar,
quiçá de modo algo inconsciente, actividades de risco. [...] As
ideias de morte, as ideias de suicídio, os parassuicídios, a intenção
suicida e as tentativas de suicídio, como numa escala sequencial,
progressiva, sucedem-se no tempo, ainda que nem sempre sejam
percebidos ou relacionados, com repetição de actos ou ocorrên-
cias cada vez mais graves” (Oliveira, 2004, p. 78).
Os parassuicídios10, que incluem os comportamentos de risco e
os de auto-agressão, são cada vez mais frequentes nas nossas
sociedades (e. g., Saraiva, 1999). Aqui, o adolescente não visa a
morte, mas, conforme a gravidade da situação, pode arriscar-se
a morrer. Num estudo que realizámos com adolescentes de
Lisboa, verificámos que cerca de metade já pensou em suicídio
(30% dos quais pensou bastantes vezes), perto de 35% já teve
comportamentos de auto-agressão ou automutilação e cerca de
40% já teve vários comportamentos de risco (Oliveira, 2004).
Crescer implica arriscar, testar-se, encontrar novos limites, ul-
trapassá-los, aprender e ampliar a consciência. Mas a busca de
emoções fortes, onde o jovem pode rapidamente debater-se
entre morrer e viver, revela um carácter predominantemente
simbólico de aproximação à morte e suscita um sentimento de
10 Aprofundámos este tema em Oliveira, 2004 e Oliveira, Amâncio e Sampaio, 2001.
identidade renovado. “É como se uma pessoa que desafia a morte
ficasse com o direito a viver e com mais razão para sobreviver”
(Sampaio, 1997, p. 98), então “encontrando uma forma de afir-
mação, valorização e reconhecimento social, em especial junto
do seu grupo de pares e de conquistar auto-estima, conferindo
algum sentido à vida” (Oliveira, 2004, p. 81). Os riscos demasiado
perigosos correm-se na batalha pela identidade e autonomia.
E decorrem de uma noção incorrecta da (própria) morte, vista
como muito improvável. Em suma, os jovens vêem no suicídio ‘o
fim’ temido, a resolução do desespero, e acentuam o profundo
mal-estar que a morte suscita, representando-a como ‘um fim’
distante, incontrolável e desconhecido, esperando que a vida, de
algum modo, continue (Oliveira, 1999, 2004).
Em nenhum caso a ‘conspiração do silêncio’ face à morte é útil ao
jovem que, por vezes, recorre a actos ‘limite’, de risco crescente,
para implorar a atenção de alguém que se disponha a escutá-lo
mesmo. É como que um derradeiro apelo no limiar do precipício
que convida à autodestruição. “Por vezes os adolescentes sofrem
em silêncio em casa pelas atitudes dos pais, que não compre-
endem que o adolescente tem as suas necessidades e utilizam
a argumentação de que «são fases» e nunca nos deixam contra-
-argumentar” (rapaz de 16 anos citado por Oliveira, 2004).
Desafia-se a morte e arrisca-se morrer para se conseguir
(sobre)viver e ter ânimo para prosseguir. Um(a) jovem morre por
suicídio quando não vislumbrou razão nem estímulo para viver,
não suportou as preocupações nem foi capaz de perceber a vida
ou não encontrou quem o auxiliasse a equilibrar-se. E então, ainda
que morra a sós, um pedaço de nós morre também com ele, pois
“ninguém morre sozinho” (Sampaio, 1991, 2002).
A importância da educação para a dor, a morte e o suicídio
“Todo o ser humano é diferente de mim e único no universo; não sou eu, por conseguinte, quem tem de reflectir por ele, não sou eu quem sabe o que é melhor para ele, não sou eu quem tem de lhe traçar o caminho; com ele só tenho o direito, que é ao mesmo tempo um dever: o de o ajudar a ser ele próprio”
Agostinho da Silva, em Educação de Portugal (1996, p. 8)
V I S e m I ná r I o d e É t I ca
divulgação��
ordem dos enfermeiros
Estejamos certos do seguinte: um dia, a criança ou o jovem que
nos é próximo vai abordar-nos, implícita ou explicitamente,
sobre a MORTE; e a nossa reacção será determinante para a
sua formação, para a sua noção de VIDA, o que é especialmente
premente no caso de uma criança, ainda demasiado maleável,
inocente e receptiva. Podemos contribuir para o seu correcto
desenvolvimento, apoiando-a na descoberta do melhor que (já)
existe no seu íntimo, educando-a para a compreensão do que é
o ser humano (nas suas várias “esferas” de manifestação), e para
uma visão serena e libertadora da morte, como um momento
natural da vida, que não cessa, mas que se transforma e revela
de várias maneiras, em diferentes contextos.
“Entre fomentar a ignorância, a astúcia e a mentira, ou educar
para a vontade de saber, a simplicidade e a autenticidade, não
podemos vacilar. Para que as crianças cresçam sem o estigma
da perda, sem o sufoco do desconhecimento e da vergonha
por serem órfãs ou filhos únicos. Elas têm direito à felicidade,
a prosseguir o seu caminho em harmonia. Ninguém, jamais,
poderá substituir quem partiu, mas os frágeis corações destas
crianças anseiam por receber atenção, afecto e carinho daqueles
que as rodeiam. E se elas nos disseram que estiveram com o
ente amado num qualquer laivo da sua imaginação ou no canto
de um sonho redentor, quem somos nós para as contradizer
ou, pior, repreender? Tentemos respeitá-las, sem as agrilhoar
ou impingir aquilo que nós mesmos não entendemos. Deixemo-
-lhes espaço para a sua sensibilidade e inteligência, deixemo-
las ganhar asas, voar e recordar as imagens que em si mesmas
perduram. E teremos muito a aprender com elas” (Oliveira e
Araújo, 2002, p. 18).
É tão fundamental proporcionar a oportunidade de diálogo so-
bre a dor, a morte e o suicídio, como permitir que quem passa
por uma experiência de (algum tipo de) morte, em especial um
jovem, sinta poder deixar fluir a tristeza, chorar se tiver vontade,
mostrar a sua revolta, exprimir a dor e revelar o luto... sem ser
criticado, silenciado ou ignorado. O sofrimento pode constituir
uma oportunidade de aprendizagem, e as perturbações psicoló-
gicas podem ter uma repercussão física ou somatização. Porque
não escutar e fomentar a proximidade?
Após a fase em que as emoções afloram abruptamente, pode
entender-se o que estas ocultam sobre nós e os outros. A cons-
ciência da morte leva-nos à auto-reflexão, torna-nos mais fortes,
valorosos e corajosos. “Ao olharmos para muitos adolescentes
e ao investigarmos as representações que cada um nos relata e
comunica, parecemos ver ainda por vezes uma criança que, no
seu íntimo, continua a desbravar a maturidade, titubeante face às
novas realidades com que se debate, mas sôfrega por se enten-
der e despertar adulta” (Oliveira, 2004, p. 111). Podemos ajudar
qualquer pessoa, começando pelas crianças e pelos jovens em
geral, a desenvolver a sua imaginação, a descobrir e a enriquecer
o seu fantástico mundo interior.
“Que os homens que guardam da sua infância a experiência
inédita, que interiorizam o movimento, o sentir, o amor, que
construíram um mundo seu, o abram aos outros, que o abram
às crianças. Para que haja AMOR, para que haja DIÁLOGO. [...]
Apelamos para que os Homens que sabem que NASCER, VIVER,
MORRER são apenas aspectos de uma forma de pensar que ilude
a fantasia, de uma forma de sentir que ilude o pensar… ajudem
as crianças que ainda o são AGORA a enriquecer o seu mundo
interior com vivências que tornem menos dura e menos só a hora
da morte. Para que as crianças nasçam como seres humanos e
vivam como pessoas, antes que as matem ou que se matem como
seres sensíveis e inteligentes” (Santos, 1991, pp. 317-318).
Para que exista verdadeira paz e amor, para que se respeite a
Vida e as crianças se tornem adultas responsáveis e esclarecidas.
A educação11 é o mais firme apoio para a criança que atravessa
a adolescência se ir autodescobrindo até se tornar um jovem
adulto que compreende a plenitude de ser humano. O que é
educar senão uma forma de comunicar e de amar?
11 O termo ‘educar’ tem a sua origem etimológica no verbo latino ‘educare’, derivado de ‘educere’ ou ‘eduzir’, isto é, conduzir para o exterior, despertar na pessoa os ele-mentos positivos que nele se achavam dormentes, como sejam, a verdade, a justiça, o amor, a tolerância, a solidariedade etc. Também o real educador precisa ser um ‘eduzido’, que se compreende, aceita e realiza integralmente. Ele é um edutor que eduz do seu educando o que nele dormita de melhor e mais puro. Educar não é injectar, impingir, impor, obrigar, mas sim desenvolver o que já existe em latência no educando. Assim, educação difere de instrução; a primeira visa o sujeito e a segunda refere-se aos objectos. A aquisição de conhecimentos e a descoberta de factores externos, fora de nós, é instrução, e torna o Homem erudito.
V I S e m I ná r I o d e É t I ca
divulgação ��
ordem dos enfermeiros
A educação para a morte e o suicídio é urgente e vital, e o espaço
escolar é essencial para a prevenção (e. g., Oliveira, Amâncio e
Sampaio, 2001; Sampaio, 1996), pois é aí que os jovens passam
grande parte do seu tempo. Encontram-se também aí os outros
elementos essenciais neste processo: os professores e os pais. “É
no convívio com os companheiros de escola que muitas vezes
se partilham os segredos e se comunicam ideias de morte. É
também na escola que frequentemente aparecem os primeiros
sintomas de depressão” (Santos e Sampaio, 1997, p. 193).
Morte... a ilusão da separação
Vivemos uma época agitada e ‘desmorteada’. Procuramos encon-
trar “terra firme” enquanto navegamos por entre uma neblina de
ilusões e desilusões. “Precisamos de contactar e conhecer, pro-
funda e afectuosamente, a Vida” (Oliveira, 1999, p. 182). O que
passa por encararmos cada situação, problema, dificuldade, [...]
satisfação, surpresa ou dor. Se não temermos o que vai suceder
a seguir, connosco, com a outra pessoa ou com tudo o que nos
envolve, se formos atentos e lúcidos e não calculistas, se não
recearmos viver nem dar sempre o melhor de nós a cada pessoa,
ocasião ou projecto, como poderemos recear morrer?
“Quando alguém de quem eu gosto [...] desaparece do ‘ângulo
de visão’ com que o observava e da ‘esfera de contacto’ que me
permitia tocar-lhe, quando deixo de escutar a sua voz e contar
com a sua presença, é que eu verdadeiramente me apercebo
do vazio arrasador que fica, do silêncio que me queima, das
lágrimas que se soltam na solidão que me invade, da memória
que rasga o espaço dorido da mente incomodada, da tristeza
sombria que parece me arrebatar a alma, da insignificância das
nossas impertinências e discussões, do quanto o aprecio e do
muito que ficou por lhe dizer, ou por fazer… só então eu consigo
intimamente compreender o que esse ser humano significa para
mim e, eventualmente, o quanto eu realmente o amo!” (Oliveira,
1999, p. 162). E pode ser tarde.
“Quanto mais estudo e observo as coisas, mais me convenço de
que o desgosto pela separação e pela morte é, talvez, a maior
ilusão. Compreender que se trata de uma ilusão é obter liberdade”
(Gandhi). Só a morte consegue amplificar tanto o hiato pesaroso
da (sensação de) separação e amargar uma dor indisfarçável.
Nós somos poeira das estrelas, ínfimas parcelas humanas. Mas
qualquer “parte desinserida do Todo é filosoficamente inexis-
tente. A parte só existe, só tem realidade, se (ou porque) não
isolada e destacada desse Todo – Único, por definição” (CLUC,
1995, pp. 51-52). As nossas vidas estão interligadas (Sagan,
1998). E “só podem ter um significado (e uma existência) real,
se não estiverem apartadas daquilo que verdadeiramente (é e)
nos dá sentido, que está bem para além do prodigioso cérebro
que ainda mal sabemos utilizar ou da maravilhosa e complexa
estrutura biopsicossocial que nos permite vivenciar e comunicar
aquilo que designamos por Vida. Se negarmos a nossa essência,
então sentir-nos-emos, ilusoriamente, afastados desse todo
[...]. E, então, a morte não pode deixar de ser vista como uma
implacável cessação, nossa ou daqueles que amamos” (Oliveira,
2001, p. 96).
Se não souber de onde veio nem para onde vai, então como é
que pode estar seguro de que se encontra aqui? Como não su-
portamos muita realidade, uma boa parte das nossas formas de
pensamento social são ilusões. Das quais muito dificilmente nos
conseguimos libertar. A morte não nos impede de sonhar nem de
dar ou amar, mesmo quem não vejamos por muitos anos. O que
é forte e verdadeiro fortalece-se, realça a imortalidade. Como
poderíamos apartar-nos de quem amamos? As emoções, os
ARQ
UIV
O O
E
V I S e m I ná r I o d e É t I ca
divulgação��
ordem dos enfermeiros
sentimentos e as ideias são, em si mesmas, substanciais. Sabemo-
lo intimamente. O que se pensa e sente é tão ‘real’ quanto o que
se pode observar no espaço limitado que enxergamos. O amor é
continuidade de consciência e prevalece sempre (e. g., Anacleto,
2005; CLUC, 1989, 1995). Tal como a vida sobre a morte.
“Transforma-se o amador na cousa amada”, escreveu sabiamente
Camões. A saudade e a dor da separação física podem transcen-
der-se e dar lugar a uma compreensão mais ampla e profunda
dos mundos nos quais e pelos quais efectivamente existimos.
Aquele(a) que amamos nunca nos pertenceu nem pertence
– outra das ilusões a clarificar. Mas, pela ligação que nos une,
quando oportuno, temos sempre meio de comunicar. Eis o que
muitos jovens nos transmitem.
Viver... e abraçar a vida
“A sombra das tuas vestesFicou entre nós na Sorte.Não ‘stás morto, entre ciprestes. Neófito, não há morte”
Fernando Pessoa em Iniciação
“Mais do que crente, o Homem moderno é muitas vezes carente.
Tem a inteligência e os meios adequados para a utilizar, mas nem
sempre os aplica no melhor sentido. As emoções que exterioriza
nem sempre são as que sente no seu sagrado mundo interior.
Falta-lhe por vezes o bom senso, o sentido ético, a lucidez a
curto e a longo prazo, a ‘espontaneidade de criança’, a vontade
determinada pelo e para o bem, a paz … o amor. Sente-se des-
crente e nem sempre admite que o mundo pode ser melhor.
Ao perder a esperança, entrega-se mais facilmente ao que o
afasta de si e dos ‘outros’. Como pode pensar na morte, se no
escuro do seu quarto, ao fechar os olhos, não sente que a ‘vida’
o realize?” (Oliveira, 1999, p. 120)
Esta é uma situação bem evidente num jovem insatisfeito e
ávido por explorar e se conhecer a si e ao mundo. A morte
expõe-nos face aos nossos limites, aos nossos medos e às
nossas fraquezas, incita-nos a superarmo-nos, no sentido
evolutivo, qual história interminável no dia-a-dia de uma
existência arredia da realidade que preferimos manter con-
fortavelmente longe. Admitindo a (nossa) morte, poderemos
atenuar e transformar a tristeza, perceber e superar a dor e
o sofrimento advenientes, reconhecer um nobre sentido na
Vida. Para nos dedicarmos ao presente, para melhor comunicar,
aprender e ensinar sem recear o destino. “E assim entregar-nos,
livre e plenamente, ao mais sublime desafio, com aptidão não
só para viver e sermos socialmente mais úteis, como para
morrer dignamente e saudar a morte, como quem proclama
um nascimento, quando a sentirmos aproximar-se, ou quando
a observarmos em qualquer pessoa a quem [...] damos a mão,
e, em tudo o que nos rodeia, permeado de energia vivificante”
(Oliveira, 1999, p. 240).
A consciência da morte e do morrer leva-nos a uma vida mais
intensa, tranquila, aprazível, plena de sentido, valor e solidária
com todos os seres. “Podemos abraçá-la e integrar a beleza
sumptuosa da nossa preciosa existência, da Existência. E pro-
ceder, em relação a cada coisa e a cada ser, sem adiamentos
nem receios infundados, respeitosamente, e sempre da forma
que pensamos ser a mais adequada. Cada momento, por mais
ínfimo que pareça, é único, irrepetível e inolvidável. E cada ser
humano é também único, insubstituível e incomparável. Tudo
aquilo que não se der perde-se. Podemos expressar o melhor
possível o que pensamos e sentimos a cada pessoa que nos é
próxima. E ajudar, especialmente os mais novos, a abordar a
morte e a vida com simplicidade, integridade e autenticidade”
(Oliveira e Pires, 2005, p. 8).
Perante uma realidade que lhe é adversa, num mundo de imper-
manência e ilusões, qualquer jovem precisa de tomar decisões
importantes, e procura, constantemente, resposta para as suas
incertezas. De olhar inquieto, em pulsante crescimento interior,
hesitante em seguir a sós, “face a familiares, colegas e amigos,
com os quais mantém cambiantes processos de socialização,
pode sentir grande dificuldade em encontrar pontos de equi-
líbrio, em alcançar uma sinfonia interior, sem que deixe de
arriscar, por vezes de mais, até ao limite de uma desarmonia.
[...] Talvez apenas no seu íntimo possa encontrar algo de seguro.
Talvez tenha de arriscar para se conhecer, também através do
V I S e m I ná r I o d e É t I ca
divulgação ��
ordem dos enfermeiros
que o circunda. Ao conquistar uma maior consciência da vida,
por vezes pelo contacto próximo com a morte, o indivíduo pode
entender que o suicídio não é mesmo uma solução” (Oliveira,
2004, pp. 401, 417). Apenas a cooperação e a comunicação, com
afectividade, o pode auxiliar a reerguer-se após os inevitáveis
tropeções, incentivar a prosseguir e amparar na difícil (mas
fantástica) caminhada que não pode deixar de realizar consigo
mesmo.
Ainda que a tentemos disfarçar ou repelir, a morte mantém-se
sempre demasiado perto. Alguns jovens aproximam-se perigo-
samente dela... e, por paradoxal que pareça, pensam na morte e
desafiam-na para a afastar, sem querer morrer, para sentir que
estão a viver e a conquistar (esperança para) a vida. O que nos
impede de escutarmos esses sinais, de fixarmos esses olhares
inquietos que tímida, agressiva ou ansiosamente nos perscru-
tam, de neles nos revermos a nós mesmos, de criarmos laços de
proximidade, darmos alguma atenção e dialogarmos? A morte
fascina. Mas não mais do que a Vida!
Referências
ANACLETO, J. – Espírito: Ciência ou Ilusão? Lisboa: Centro Lu-
sitano de Unificação Cultural, 2002.
ANACLETO, J. – Transcendência e Imanência de Deus. Lisboa:
Centro Lusitano de Unificação Cultural, 2005.
ARIÈS, P. – História da Morte no Ocidente. Lisboa: Teorema,
1989.
ARIÈS, P. – O Homem perante a Morte (I e II). Lisboa: Publ.
Europa-América, 1992.
BOSSA, N. – O normal e o patológico na adolescência. In: OLI-
VEIRA, V.; BOSSA, N. (eds.) – Avaliação Psicopedagógica do
Adolescente. Petrópolis: Vozes. 4 (2000).
BOUÇA, D. – Madrugada de Lágrimas – Depressão na Adoles-
cência. Porto: Edinter, 1997.
BOWLBY, J. – Apego e Perda. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
BRACONNIER, A.; MARCELLI, D. – As Mil Faces da Adolescência.
Lisboa: Climepsi, 2000.
BRACONNIER, A. – Guia da Adolescência – à procura da iden-
tidade. Lisboa: Prefácio, 2003.
BRADBURY, M. – Representations of Death. London and New
York: Routledge, 1999.
CAMPOS, D. – Psicologia da Adolescência. 17.ª ed. Petrópolis:
Vozes, 2000.
CLERGET, S. –Não Estejas Triste Meu Filho. Porto: Ambar,
2001.
CLUC – Sementes e Pérolas. Lisboa: Centro Lusitano de Unifi-
cação Cultural, 1989.
CLUC – Sete Chaves. Lisboa: Centro Lusitano de Unificação
Cultural, 1995.
COELHO, A. – Atitudes Perante a Morte. Coimbra: Minerva,
1991.
CREPET, P. – A Dimensão do Vazio. Porto: Ambar, 2002.
FLEMING, M. – Adolescência e Autonomia – o desenvolvimento
psicológico e a relação com os pais. Porto: Afrontamento,
1993.
FRANKEL, R. – The Adolescent Psyche. New York: Routledge,
1999.
GELDARD, K.; GELDARD, D. – Counselling Adolescents. London:
SAGE, 2000.
HANUS, M. – Éditorial. In: HANUS, M. (Ed.)– L’Adolescent et
la Mort. Études sur la Mort, 113. Paris: L’esprit du temps,
1998.
KASTENBAUM, R. – Death, Society and Human Experience. 7th
ed. Boston: Allyn & Bacon, 2001.
KÜBLER-ROSS, E. – Sobre a Morte e o Morrer. São Paulo: Livraria
M. F, 1991.
LAUFER, M. – O Adolescente Suicida. Lisboa: Climepsi, 2000.
LUZ, H. – A Reencarnação Desvendada. Lisboa: Centro Lusitano
de Unificação Cultural, 1988.
MACFARLANE, A.; MCPHERSON, A. – Adolescentes: da agonia
ao ecstasy. Lisboa: Europa-América, 2001.
MARCELLI, D. – Os Estados Depressivos na Adolescência. Lisboa:
Climepsi, 2002.
MORIN, E. – O Homem e a Morte. Lisboa: Publ. Europa-América,
1988.
OLIVEIRA, A. – Percepção da Morte: a realidade interdita. Lisboa:
ISCTE, 1995. Tese de Mestrado.
OLIVEIRA, A. – O Desafio da Morte – convite a uma viagem
interior. Lisboa: Editorial Notícias, 1999.
V I S e m I ná r I o d e É t I ca
divulgação�0
ordem dos enfermeiros
OLIVEIRA, A. – Morte – Um (grande) desafio ao Nada. In: CAEIRO,
M. (Ed.) – Nada vezes nove. Lisboa: extra]muros[, 2001.
OLIVEIRA, A. – SobreViver. Lisboa: Âncora, 2001a.
OLIVEIRA, A. – Ilusões: A Melodia e o Sentido da Vida na Idade
das Emoções – Representações sociais da morte, do sui-
cídio e da música na adolescência. Tese de Doutoramento.
Lisboa: ISCTE, 2004.
OLIVEIRA, A.; AMÂNCIO L. – Pertenças sociais e formas de
percepção e representação da morte. «Psicologia». XII:1
(1998) 115-137.
OLIVEIRA, A.; AMÂNCIO L. – A influência do contexto na per-
cepção e nas representações sociais da morte. «Psicologia».
XII:2 (1999) 213-235.
OLIVEIRA, A.; ARAÚJO, G. – Quando a morte chega demasiado
cedo. «Biosofia». 14 (2002) 15-18.
OLIVEIRA, A.; PIRES, M. – Aceitar a Morte, Viver o Luto, Abraçar
a Vida. «Biosofia». 26 (2005) 4-8.
OLIVEIRA, A.; AMÂNCIO, L.; SAMPAIO, D. – Arriscar Morrer para
Sobreviver. «Análise Psicológica». XIX:4 (2001) 509-521.
OLIVEIRA, A.; AMÂNCIO, L.; SAMPAIO, D. − Da desesperança
ao desafio da morte... e à conquista da vida: Olhar sobre o
adolescente suicida. «Psychologica». 35 (2004) 69-83.
OLIVEIRA, A.; SAMPAIO, D.; AMÂNCIO, L. − Perscrutando o
fim... – Representações sociais da morte e do suicídio na
adolescência. In: VALA, J.; GARRIDO, M.; ; ALCOBIA, P. (Eds.)
− Percursos da Investigação em Psicologia Social e Orga-
nizacional. Lisboa: Fenda (no prelo), 2004.
OLIVEIRA, A. [et al.] − As preocupações dos jovens face ao sui-
cídio – Representações sociais do suicídio na adolescência.
«Psiquiatria Clínica». 22:1 (2001) 41-48.
PAPALIA, D.; OLDS, S.; FELDMAN, R. − O mundo da criança. 8.ª
ed. Lisboa: McGraw-Hill, 2001 .
PARKES, M.; LAUNGANI, P.; YOUNG, B. − Morte e Luto através
das Culturas. Lisboa: Climepsi, 2003.
PEIXOTO, J. − Antídoto. Lisboa: Temas e Debates, 2003.
PIAGET, J. − Problemas de Psicologia Genética. Lisboa: D.
Quixote, 1977.
PIAGET, J. − Seis Estudos de Psicologia. Lisboa: D. Quixote, 1978.
POMMEREAU, X. − Quando o Adolescente se Sente Mal….
Lisboa: Terramar, 1998.
POMMEREAU, X. − L’Adolescent Suicidaire. Paris: Dunod, 2001.
SAGAN, C. − Biliões e Biliões. Lisboa: Gradiva, 1998.
SAMPAIO, D. − Ninguém Morre Sozinho. Lisboa: Caminho,
1991.
SAMPAIO, D. − Voltei à Escola. Lisboa: Caminho, 1996.
SAMPAIO, D. − Prefácio. In: OLIVEIRA, A. − O Desafio da Morte.
Lisboa: Editorial Notícias, 1999.
SAMPAIO, D. − Tudo o que temos cá dentro. Lisboa: Caminho,
2000.
SAMPAIO, D. − Ninguém morre sozinho. 12.ª ed. actualizada.
Lisboa: Caminho, 2002.
SAMPAIO, D. [et al.] − Representações sociais do suicídio em
estudantes do ensino secundário. «Análise Psicológica».
XVIII:2 (2000) 139-155.
SANTOS, J. − Ensaios sobre Educação( I e II). 2.ª ed. Lisboa:
Livros Horizonte, 1991 .
SANTOS, N.; SAMPAIO, D. − Adolescentes em risco de suicídio:
a experiência do Núcleo de Estudos do Suicídio. «Psiquiatria
Clínica». 18:3 (1997) 187-194.
SARAIVA, C. − Para-suicídio. Coimbra: Quarteto, 1999.
SHNEIDMAN, E. − You and death. «Psychology Today». 5:1
(1971) 74-80.
SHNEIDMAN, E. − Suicide Thoughts and Reflections, 1960-
1980. London: Human Sciences Press, 1981.
SHNEIDMAN, E. − The Suicidal Mind. Oxford: Oxford Univ.
Press, 1996.
SILVA, A. − Educação de Portugal. Porto: Ulmeiro (orig. publ.
1970), 1996.
SPRINTHALL, N.; COLLINS, W. − Psicologia do Adolescente
– Uma abordagem desenvolvimentista. Lisboa: F. C. Gul-
benkian, 1999.
SPRINTHALL, R.; SPRINTHALL, N. − Psicologia Educacional:
Uma abordagem desenvolvimentista. Lisboa: McGraw-
Hill, 1993.
STRECHT, P. − Interiores. Lisboa: Assírio & Alvim, 2002.
VELTING, D. − Personality and negative expectancies: trait
structure of the Beck Hopelessness Scale. «Personality and
Individual Differences». 26 (1999) 913-921.
VOVELLE, M. − La Mort et l’Occident de 1300 à nos Jours.
Paris: Gallimard, 1983. oe
V I S e m I ná r I o d e É t I ca
divulgação ��
ordem dos enfermeiros
Susana Pacheco
Enfermeira Especialista
Professora Adjunta na Escola Superior de Enfermagem de Ponta Delgada
Reflectir sobre a morte ao longo do ciclo vital numa perspectiva
da enfermagem significa dedicar uma atenção muito especial ao
que pensam, sentem e vivem os enfermeiros perante a morte de
alguém. Exige, também, tentar estabelecer algumas diferenças
entre os sentimentos e os comportamentos dos enfermeiros
quando acompanham a morte de uma pessoa nas diferentes
etapas da vida, como, por exemplo, a morte de um bebé que
acabou de nascer, a de uma pessoa jovem ou a de um idoso. Re-
flectir sobre a morte ao longo do ciclo vital numa perspectiva da
enfermagem implica, ainda, perceber qual o papel do enfermeiro
perante a pessoa que está a morrer e a família que está a viver
esta enorme perda.
Deste modo, começarei por fazer uma reflexão sobre o que a morte
representa para cada um de nós enquanto pessoas; prosseguirei
reflectindo sobre alguns sentimentos e comportamentos dos en-
fermeiros quando se vêem confrontados com o morrer; continuarei
relacionando as atitudes dos enfermeiros com a idade da pessoa
que morre; e, finalmente, dedicar-me-ei um pouco ao papel do
enfermeiro no acompanhamento do doente e da família.
1. Significado da morte na vida das pessoas
A morte é sempre um acontecimento que perturba a vida das
pessoas, na medida em que representa o desconhecido. Lembra-
nos a nossa finitude e, além disso, é o que temos de mais certo
na vida.
Como afirma Fernando Pessoa, “a morte é a curva da estrada”,
e é o facto de não sabermos o que está para além da curva que
nos causa apreensão e até um certo medo. São muitos e diversos
os sentimentos que nos percorrem quando pensamos na morte,
como são variadíssimas as questões que colocamos a nós mesmos
ou aos outros. O que está para além da morte? Será o nada? Será
uma vida eterna? O que nos vai acontecer afinal? Será que nos
vamos reencontrar com todos aqueles de quem gostamos e que
de formas diferentes marcaram a nossa vida? Para estas questões,
bem como para muitas outras, não encontramos qualquer resposta
concreta, e elas continuam a atormentar-nos, porque tudo é des-
conhecido para nós. Por isso, e como afirma Marie de Hennezel,
a morte “não deixa de continuar a ser um imenso mistério, um
grande ponto de interrogação que transportamos no mais íntimo
de nós” (1997, p. 11).
Porém, deparamo-nos quase constantemente com a morte e
sempre que vemos alguém morrer, consciente ou inconsciente-
mente, lembramo-nos de que também nós iremos morrer um dia,
que somos todos mortais e que não podemos de forma nenhuma
impedir que a morte aconteça.
De facto, a morte é a única certeza que temos na vida e, por mais
que a tentemos afastar das mais variadas maneiras, ela estará
sempre no final e é a única meta do caminho que estamos a
percorrer. Neste sentido, Filipe de Almeida afirma: “Se nascer e
viver foi o privilégio de apenas alguns biliões de seres humanos,
morrer é a certeza de todos quantos nasceram. Uma vez nascidas,
todas as criaturas têm uma probabilidade de morrer de 100%”
(1997, p. 47).
a morte no ciclo vital: perspectiva da enfermagem
ARQ
UIV
O O
E
V I S e m I ná r I o d e É t I ca
divulgação��
ordem dos enfermeiros
Estes pensamentos, sentimentos e medos estão, pois, muitas vezes
presentes em todas as pessoas; mas, quanto mais lidamos com
a morte e com o morrer, mais frequentemente nos recordamos
que ela existe. Assim sendo, se o pensar na morte pode ser mais
ou menos frequente em cada pessoa, é quase uma constante na
vida dos enfermeiros que presenciam quase diariamente a morte
de alguém.
2. Os enfermeiros e o morrer
Os enfermeiros vêem-se frequentemente confrontados com a
morte, sobretudo aqueles que desenvolvem a sua actividade em
hospitais, serviços de internamento, serviços de urgência, unidades
de cuidados intensivos, unidades de cuidados paliativos, entre
outros. Porém, também são pessoas que não estão, nem podem
estar, descontextualizadas da cultura e sociedade em que estão
inseridas, sofrendo, assim, as influências da sua evolução.
Como sabemos, se a morte era anteriormente vivida com alguma
naturalidade, a partir do momento em que fomos assistindo aos
enormes avanços científicos e tecnológicos no âmbito das ciências
biomédicas, as atitudes dos profissionais de saúde também foram
gradualmente mudando. Assim, a morte é hoje muitas vezes pen-
sada e vivida como um fracasso, como um erro, como um engano
e não como o limite natural da vida. Deste modo, os enfermeiros
têm ainda alguma dificuldade em lidar com o processo de mor-
rer. Quando se deparam com um doente em fim de vida, têm a
tendência de adoptar atitudes extremas, tais como afastar-se do
doente ou, pelo contrário, envolverem-se emocionalmente e de
forma muito intensa. De facto, ainda não é raro encontrarmos
enfermeiros que prestam cuidados ao doente em fase terminal de
uma forma rotineira e fria, que evitam o contacto e o diálogo com
o doente e com a família e que rodeiam a sua cama de biombos
de modo a evitar a permanência da visão de alguém que está
a morrer. Por outro lado, os mesmos enfermeiros envolvem-se
muito emocionalmente em determinadas situações particulares
de alguns doentes.
Estas atitudes de afastamento ou de um envolvimento demasiado
dependem de inúmeros factores que condicionam a forma como
encaramos e vivemos a morte, nomeadamente, o tipo de morte
e a idade da pessoa que morre. Efectivamente, vivemos senti-
mentos diferentes perante uma morte que acontece no final de
uma doença prolongada, uma morte que acontece subitamente,
uma morte por acidente ou uma morte por suicídio. Sentimos e
vivenciamos também de uma forma diferente a morte de uma
criança, de um jovem ou de um idoso.
3. Os enfermeiros e a idade da pessoa que morre
De um modo geral, podemos dizer que a morte é normalmente
inesperada nos jovens e que, pelo contrário, é previsível, esperada
e sentida como natural nas pessoas idosas. Com efeito, o acon-
tecimento da morte é, desde sempre, muito mais frequente em
pessoas que já atingiram uma certa idade do que nas pessoas mais
novas. Este facto tem vindo a acentuar-se cada vez mais com as
novas descobertas da medicina e hoje morrem realmente muito
mais velhos do que jovens. Deste modo, apesar de ser sempre
uma situação que gera sentimentos de tristeza, a morte é, de um
modo geral, sentida e vivida de formas diferentes quando estamos
perante uma pessoa jovem ou uma pessoa idosa. Sendo assim,
as atitudes dos enfermeiros perante a pessoa que está a morrer
e a família também vão depender em grande parte da idade da
pessoa que morre.
Podemos, pois, concluir que a aceitação da morte por parte dos
enfermeiros está intimamente relacionada com a idade da pessoa
que está a morrer. Apesar de o acontecimento da morte ser sem-
pre muito difícil, por vários motivos que já foram referenciados,
os enfermeiros conseguem, de um modo geral, conviver mais
facilmente com uma situação de morte de uma pessoa idosa, não
só porque eles próprios a aceitam melhor, mas também porque
os familiares também estão normalmente mais preparados para
viver aquela morte.
Com efeito, a morte nos idosos é um acontecimento relativamente
frequente para quem trabalha com doentes, e todos aceitamos que
uma pessoa, a partir de determinada idade, já cumpriu a sua missão
na vida, já viveu e já concretizou muitos dos seus objectivos. Os
enfermeiros conseguem aceitar com alguma naturalidade a morte
V I S e m I ná r I o d e É t I ca
divulgação ��
ordem dos enfermeiros
de alguém que já atingiu uma idade avançada, o que lhes torna
mais fácil o acompanhamento do doente e da própria família. Esta
também encara, geralmente, a situação com alguma aceitação e
serenidade – apesar de acompanhada de uma enorme tristeza
–, sobretudo quando a morte sobrevém no final de uma doença
prolongada e acompanhada de algum sofrimento.
Porém, a morte de um jovem ou de uma criança já não é sentida
da mesma forma, uma vez que na maioria das vezes não é aceite e
pode gerar até uma grande revolta. Como diz Cícero, no seu texto
“De Senectute”, “Assim como a morte de um adolescente me faz
pensar numa chama viva apagada sob um jacto d’água, a de um
velho se assemelha a um fogo que suavemente se extingue. Os
frutos verdes devem ser arrancados à força da árvore que os car-
rega; quando estão maduros, ao contrário, eles caem naturalmente.
Da mesma forma, a vida é arrancada à força aos adolescentes,
enquanto deixa aos poucos os velhos quando chega a sua hora”.
A morte de uma pessoa jovem pode ser comparada a uma luz que
se apaga subitamente ou a um fruto arrancado à força de uma
árvore, por ser normalmente inesperada, gerar sentimentos muito
fortes e provocar muita tristeza, raiva e até um maior ou menor
grau de revolta. Estas reacções surgem provavelmente, em grande
parte, precisamente pelo facto de pensarmos que é uma vida que
se apaga antes do tempo. De forma idêntica, acontece no que
se refere à morte de uma criança ou de um recém-nascido. “[…]
Se ela ainda nos pode aparecer como companheira inevitável da
idade adulta ou da velhice, quando a morte interrompe a vida no
seu começo é o grande absurdo, porque surge num momento a
que desde sempre esteve reservado um futuro terreno.” Afirma-o
Jorge Biscaia (1996, p. 47).
Todavia, os enfermeiros têm de continuar a defrontar-se com a
morte em qualquer idade, e, com maior ou menor aceitação, com
maior ou menor sofrimento, com maior ou menor dificuldade,
deverão estar preparados para apoiar quer o doente quer os seus
familiares. Este é, aliás, um aspecto contemplado no Artigo 87 do
Código Deontológico do Enfermeiro e que passo a citar:
“O enfermeiro, ao acompanhar o doente nas diferentes etapas da
fase terminal, assume o dever de:
a) defender e promover o direito do doente à escolha do local e das
pessoas que deseja o acompanhem na fase terminal da vida;
b) respeitar e fazer respeitar as manifestações de perda expressas
pelo doente em fase terminal, pela família ou pessoas que lhe
sejam próximas;
c) respeitar e fazer respeitar o corpo após a morte”.
4. Papel do enfermeiro no acompanhamento do doente e da família
O enfermeiro é o elemento da equipa de saúde que mantém
uma relação mais íntima com o doente e com a família, não só
por permanecer nos serviços de saúde durante um período mais
longo, mas também porque é ele quem presta mais cuidados
directos. É ele que, geralmente, conhece melhor o doente como
pessoa e todo o contexto familiar, o que faz com que tenha maior
possibilidade de perceber as suas necessidades específicas e saber
qual a forma de lhes dar a resposta mais adequada. Cabe-lhe, pois,
um papel decisivo no apoio e acompanhamento a dar ao doente
e aos familiares durante todo o processo de morrer, pelo que se
torna fundamental que seja capaz de demonstrar a sua disponi-
bilidade para ajudar.
É fundamental que o enfermeiro tenha sempre o cuidado de
manter o doente e / ou a família informados, respondendo a todas
as perguntas colocadas e repetindo tantas vezes quantas as que
eles o solicitam. É importante, acima de tudo, nunca mentir e ter
o cuidado de fornecer a informação de acordo com o que o doen-
te e os familiares querem e podem saber, bem com ter sempre
atenção às suas reacções.
O enfermeiro deve ter sempre o cuidado de respeitar os sentimen-
tos quer do doente quer da família e a forma como os manifestam.
É importante saber dar espaço para todas as manifestações de
perda, medo ou revolta.
Saber ouvir, estar presente, compreender a dor nas suas mais
variadas manifestações e também saber ficar em silêncio são
virtudes essenciais para a prática de cuidados humanizados. To-
dos os momentos devem ser acompanhados com compaixão,
V I S e m I ná r I o d e É t I ca
divulgação��
ordem dos enfermeiros
humanidade e atenção às necessidades do doente e da família. Em
muitos momentos é difícil encontrar palavras de conforto, embora
nem sempre seja necessário dizê-las. A simples presença pode signi-
ficar tanto ou mais do que muitas palavras e o facto de o enfermeiro
demonstrar a sua solidariedade é muitas vezes o suficiente.
E, quando a morte acontece, há que respeitar o corpo e a família
enlutada, de modo a conferir a dignidade intrínseca a que qualquer
pessoa tem direito, mesmo após a sua morte.
Gostaria, a este propósito, de relatar uma situação descrita por
Maurice Abiven no seu livro Para uma morte mais humana, que
nos elucida muito bem sobre o respeito com a pessoa depois da
morte:
“Agnès acaba de morrer rodeada da filha e do marido… Na sua
cama… está toda vestida de branco…o seu rosto aureolado de uma
coroa de cabelos negros… Nas suas mãos, um pequeno ramo de
flores brancas trazido pela sua filha, e nos seus cabelos uma flor
branca… O seu rosto, os seus cabelos, as suas mãos cheiram bem,
estão perfumados com o seu perfume, o que ela usava todos os dias.
Quando os membros da sua família se debruçam para a beijar…é
o seu cheiro que eles respiram, e é muito importante porque na
memória deles, Agnès está intimamente ligada a esse perfume.
Tudo o que foi símbolo de doença desapareceu do quarto… há
um tempo para tudo. Nesse preciso momento já não há espaço
para a doença…perante tanta beleza o marido começa a chorar…
o desgosto liberta-se e nós deixamo-lo chorar tanto quanto de-
seja…” (2001, p. 127).
Todavia, como já foi referido, os enfermeiros são também pes-
soas, pelo que necessitam de ser apoiados neste domínio. Seria
importante que nos serviços onde se vive com frequência a morte,
houvesse espaço e tempo para reuniões regulares, onde todos os
profissionais de saúde pudessem falar, partilhar experiências e
reconhecer ansiedades e sentimentos face à morte. Ou não terão
também eles o direito de fazer o luto dos seus doentes? Em nossa
opinião, é primordial contribuir para o bem-estar dos profissionais,
o que certamente fará com que sejam mais capazes de apoiar
os doentes no final da vida e os seus familiares. O ideal seria
que fossem programadas reuniões periódicas, propositadamente
para debater as vivências de cada profissional. Além disso, esses
momentos também poderiam ser aproveitados para reflectir em
conjunto sobre tudo o que de bom existe na vida e a que muitas
vezes não damos qualquer importância.
De facto, é também pensar na morte e conviver com a mesma que
nos faz perceber que a vida deve ser vivida. Marie de Hennezel,
num determinado ponto do seu livro Diálogo com a Morte, lem-
bra-nos precisamente disto quando escreve: “Após anos e anos
de assistência a pessoas que vivem os seus últimos momentos,
não sei muito mais sobre a morte em si mesma, mas a minha
confiança na vida não tem senão aumentado. Vivo, sem dúvida,
mais intensamente, com uma consciência mais aguda, aquilo que
me é dado viver, alegrias e tristezas, mas também todas essas
pequenas coisas quotidianas, que são óbvias, tal como o simples
facto de respirar ou de andar” (1997, p. 11).
A morte lembra-nos a vida e ajuda-nos a apreciá-la melhor, tal como
depois de uma tempestade apreciamos mais um dia de sol. É por isso
que os enfermeiros que se confrontam mais frequentemente com
a morte podem ter momentos muito tristes, mas são também eles
que olham mais à sua volta, “sentem” mais tudo o que a natureza
nos oferece, e se sentem felizes por poderem estar vivos.
Referências bibliográficas
ABIVEN, Maurice – Para uma morte mais humana. 2.ª ed. Loures:
Lusociência, 2001.
ALMEIDA, Filipe – O Morrer dos Homens: reflexões de um médico.
«Acção Médica». (1997) 46-50.
BISCAIA, Jorge – A morte no recém nascido. «Cadernos de Bioé-
tica». 12 (1996) 47.
HENNEZEL, Marie De – Diálogo com a Morte. 1.ª ed. Lisboa:
Editorial Notícias, 1997.
ORDEM DOS ENFERMEIROS – Código Deontológico do Enfermeiro:
anotações e comentários. Lisboa: Ordem dos Enfermeiros,
2003.
PACHECO, Susana – Cuidar a pessoa em fase terminal: perspec-
tiva ética. 2.ª ed. Loures: Lusociência, 2004. oe
V I S e m I ná r I o d e É t I ca
divulgação ��
ordem dos enfermeiros
Prof. Doutor Rui Nunes
Médico
Director do Dep. de Bioética e Ética Médica da Faculdade de Medicina do Porto
É para mim um privilégio e uma honra estar nesta magnífica
reunião. Felicito a Ordem dos Enfermeiros e, em particular, a
Senhora Bastonária, que queria cumprimentar com particular
veemência.
Começo por dizer que todas as comunicações que tive a opor-
tunidade de ouvir foram excelentes. Já tinha tido o prazer de
conhecer alguns dos interventores, outros conheci na manhã de
hoje e, neste sentido, vou comentar as duas últimas interven-
ções na perspectiva da bioética. Mais do que fazer uma síntese,
porque, obviamente, isso seria pouco relevante, vou referir-me
àquilo que a bioética pode acrescentar em relação aos temas
propostos. Ou seja, a morte no ciclo vital, a perspectiva do
jovem adolescente, por um lado, e da enfermagem, por outro.
Neste sentido, dividirei esta curtíssima intervenção, em jeito de
comentário, em três partes distintas. Em primeiro lugar, a pers-
pectiva do utente, do doente dos serviços de saúde. Em segundo
lugar, a perspectiva estritamente profissional e, finalmente, vou
referir-me à dimensão social e familiar da morte e à necessidade
de acompanhamento espiritual na fase final da vida.
No que respeita ao doente, ao utente, ao utilizador dos serviços
de saúde, a bioética tem reforçado, sobretudo ao longo dos últi-
mos vinte anos, o conceito de autonomia individual estruturada
em torno do direito à autodeterminação pessoal. Se estamos
a falar muito concretamente do adolescente e da criança, a
situação tende, portanto, a complexificar-se substancialmente.
Ou seja, se estamos de acordo com o facto de, numa sociedade
plural e secular, como a nossa, numa sociedade solidária e coesa,
como a sociedade portuguesa pretende ser, reconhecermos e
afirmarmos o primado da autodeterminação, deduz-se, logica-
mente, que, quando estamos a falar de crianças e adolescentes,
este conceito deve ser reequacionado. Pelo menos de acordo
com duas linhas directrizes. Por um lado, aquilo que tem a ver
com os limites da autodeterminação individual – por exemplo,
o suicídio e o comportamento parassuicida. Ainda que filosofi-
camente pudéssemos levar muito longe a discussão em torno
do suicídio racional, devemos, a priori, procurar os motivos que
levam um jovem a procurar o suicídio e tentar, obviamente,
controlá-los e dirimi-los. Por outro lado, e no que diz respeito
à criança, a sua autonomia terá que ser reportada ao futuro.
Trata-se do conceito – hoje universal – de direito a um futuro
aberto. Este direito, básico, fundamental e inalienável, pretende
salvaguardar a vida e a integridade física da criança, para que,
no futuro, esta possa exercer a sua autonomia. Portanto, com-
pete aos seus pais (ou legítimos representantes), desde que
defendam o melhor interesse da criança, proteger a especial
vulnerabilidade dos seus filhos.
Assim, termino este primeiro comentário chamando a atenção
precisamente para a importância do exercício da autonomia
a morte no ciclo vital– comentário de rui nunes
ARQ
UIV
O O
E
V I S e m I ná r I o d e É t I ca
divulgação��
ordem dos enfermeiros
individual, para os seus limites e para o modo como ela se
pode exercer no quotidiano dos profissionais de saúde. Muito
em particular, no quadro daquilo que hoje se designa pelos
“Novos Direitos dos Doentes” e que afirmam um em espe-
cial – que é matricial para este seminário – que é o direito a
morrer com paz e com dignidade. Portanto, ficava esta nota
preliminar, que dada a medicalização da morte e do processo
de morrer, qualquer ser humano tem o direito a morrer com
paz e com dignidade no exercício responsável da autonomia.
É, não apenas um direito, mas essencialmente uma grande
conquista civilizacional.
Do ponto de vista profissional queria salientar o papel fun-
damental das equipas de saúde. Hoje não se deve falar em
médicos, enfermeiros, farmacêuticos ou psicólogos a trabalha-
rem isoladamente, mas sim de verdadeiras equipas de saúde,
nas quais todos os profissionais de
saúde trabalham em conjunto para
alcançar um objectivo comum que
é, naturalmente, o bem-estar do
doente, o alívio do seu sofrimento,
a promoção da sua qualidade de
vida, designadamente, na fase ter-
minal. Ou seja, a bioética pretende
reinterpretar uma prática milenar
– a ética hipocrática que todos conhecemos –, nomeadamente
os princípios éticos da beneficência e da não-maleficência,
enquadrados em critérios claros de evidência científica. Isto é,
tornando este último ponto mais claro, beneficência já não é
apenas aquilo que decorre da experiência individual, mas sim
aquilo que a ciência vai determinando, à escala global, como
sendo o melhor curso de actuação possível. Trabalho em equipa
e prática baseada na evidência são, então, a marca genética
desta nova ética em cuidados de saúde.
Por estes motivos, não é de estranhar que os enfermeiros se
dediquem sobretudo a cuidar do doente. Esta postura tem uma
base ético-filosófica muito sólida – a ética do cuidar (the ethics
of care) – como sugere, aliás, Carol Gilligan. Mas esta ética do
cuidar e esta procura do melhor interesse do doente devem ter
em atenção, também, o carácter desproporcionado (heróico,
extraordinário) de algumas intervenções biomédicas junto dos
doentes. Fica para reflexão ulterior, no contexto da doença
terminal, aquilo que foi, aliás, teor de um parecer do Conselho
Nacional de Ética para as Ciências da Vida que é a suspensão ou
abstenção de meios desproporcionados de tratamento em doen-
tes em Estado Vegetativo Persistente (EVP) e em que condições
são legítimos estes tratamentos. Nestas circunstâncias, o papel
do enfermeiro é fundamental, se calhar ainda mais importante
que o dos médicos. Por outro lado, esta suspensão ou abstenção
de meios desproporcionados de tratamento remete-me para
outro domínio que é o das “Ordens de Não Ressuscitar” (Do
Not Resuscitate Orders). Trata-se de um tema da maior actuali-
dade dado que, cada vez mais, as decisões clínicas devem estar
compaginadas com as decisões éticas, devendo estas decisões
ser tomadas, em uníssono, por toda a equipa de saúde. Mais
uma vez, médicos, enfermeiros e
técnicos superiores de saúde devem
falar a mesma linguagem, a uma só
voz, para atingir o melhor interesse
do doente.
Finalmente, termino com a perspec-
tiva social e familiar da morte, que
foi aliás reiteradamente afirmada
pelos diversos palestrantes. Neste contexto, deve realçar-se o
facto de que a nossa matriz ideológica, com tradução constitu-
cional, reconhece um direito à protecção da saúde, portanto, um
direito de acesso aos cuidados de saúde, sendo mesmo consi-
derado como uma expressão da eminente dignidade da pessoa
humana. Também o Tratado Constitucional Europeu, que acabou
por não ser sufragado em Portugal, reconhece no seu Artigo
II-35 a existência de um direito humano básico à protecção da
saúde, devendo, em meu parecer, ser interpretado no contexto
da prestação de cuidados na fase final da vida humana. Assim,
duas pistas de reflexão, que aliás emergem das intervenções bri-
lhantes dos dois prelectores que me antecederam: em primeiro
lugar, a importância de uma rede social e familiar de apoio, que
de algum modo tente contornar o obstáculo que todos nós co-
nhecemos, e que é por demais evidente, que é a medicalização,
Nestas circunstâncias, o papel
do enfermeiro é fundamental,
se calhar ainda mais importante
que o dos médicos.
V I S e m I ná r I o d e É t I ca
divulgação ��
ordem dos enfermeiros
a hospitalização da morte, esse fenómeno recente que tem a
ver com a evolução da nossa sociedade. De facto, hoje em dia
as pessoas saem de casa para ir morrer no hospital, com todos
os inconvenientes que esta prática encerra. Esta circunstância
poderá ser mitigada se for criada uma rede de apoio firme com
base em princípios sérios de solidariedade humana. Nomeada-
mente, solidariedade intergeracional.
Por outro lado, queria também chamar a atenção para o im-
perativo da criação de uma rede de cuidados continuados e,
sobretudo, de cuidados paliativos. Sei que é um tópico hoje
muito propalado. Alguns dias atrás celebrou-se, pela primeira
vez, o dia mundial dos cuidados paliativos, devendo salientar-se
aqui, aliás, o papel do XVI Governo Constitucional quando, em
Julho de 2004, propôs e aprovou o Plano Nacional de Cuidados
Paliativos. Foi um importante passo para o sistema de saúde, mas
podemos progredir neste domínio dado que diversos estudos
evidenciam que apenas 5000 doentes em fase terminal de vida
(e que carecem de cuidados paliativos) têm acesso efectivo a
este tipo de cuidados. Deve, então, fazer-se um apelo para que
a nossa sociedade vá mais longe na implementação concreta
deste tipo de cuidados junto de doentes terminais, criando, em
todo o País, unidades de cuidados paliativos, em plena articula-
ção com as redes de cuidados de saúde primários e de cuidados
diferenciados.
Por fim, chamava a atenção para aquilo que hoje se reconhece
como um direito básico dos cidadãos, sobretudo daqueles que
se encontram e declaram doentes, e que é o direito ao acompa-
nhamento espiritual. A consagração deste direito implica alguma
reformulação do modo como está organizado o nosso sistema de
saúde. Trabalhando em conjunto com as pessoas vocacionadas
para o efeito, está em causa, também, um acompanhamento re-
ligioso para aqueles que o desejarem. Note-se que, por exemplo,
a Nova Carta dos Direitos dos Utentes dos Serviços de Saúde,
que tive a honra de ajudar a redigir quando era presidente da
Entidade Reguladora da Saúde, consagra claramente este direito
e propõe medidas eficazes para a sua concretização em todas
as unidades de saúde.
Termino como iniciei, felicitando novamente o Conselho Jurisdi-
cional pela excelência deste evento e a Ordem dos Enfermeiros
pela capacidade notável de que dispõe de mobilizar tantos pro-
fissionais, sobretudo tantos jovens, para reflectir sobre um tema
desta natureza, reflexão esta que vai contribuir sobremaneira
para uma verdadeira humanização dos cuidados de saúde. oe
ARQ
UIV
O O
E
V I S e m I ná r I o d e É t I ca
divulgação��
ordem dos enfermeiros
Jacinto Oliveira
Vice-presidente da Ordem dos Enfermeiros
Antes de mais, à semelhança do que fez o Sr. Professor Rui Nu-
nes, deixem-me felicitar o Conselho Jurisdicional da Ordem dos
Enfermeiros, por mais uma vez ter levado a cabo este Seminário.
A vossa participação é a prova de que faz sentido estarmos aqui
a reflectir sobre um tema que, apesar de eventualmente sobe-
jamente discutido, nos deixa sempre uma enorme margem de
discussão e espaço de aprendizagem.
Deixem-me cumprimentar todos os elementos desta mesa e
dizer-vos o quanto me sinto pequeno para ousar comentar tão
brilhantes intervenções.
Mesmo assim, farei uma tentativa. Mas antes, deixem-me dizer-
-vos que o meu comentário reside no facto de ter atingido há
pouco tempo a maioridade profissional no Centro Regional de
Oncologia de Coimbra. Refiro-me ao facto de trabalhar há mais
de 18 anos naquele centro. Ao longo deste tempo, cuidei de
muitas pessoas em fase terminal e creio ter ajudado muita gente
a morrer com dignidade. É um pouco sobre esta experiência que
o comentário será feito.
Tenho um outro privilégio: ajudei a construir um dos serviços de
cuidados paliativos deste país, e, já agora, posso afirmar-vos que
não foi tarefa fácil. Hoje está perfeitamente assumido que os
cuidados paliativos devem estar presentes. Na altura em que esta
construção se iniciou, tal não era nítido, havendo mesmo alguns
que consideravam tratar-se de uma despesa inútil. Reparem bem
no percurso que fizemos!
Acrescentar qualidade à fase terminal da vida e ajudar a morrer
com dignidade devem ser desideratos tão importante quanto
qualquer um dos outros do Serviço Nacional de Saúde.
Procurarei agora centrar-me em cada uma das intervenções.
O primeiro orador, o Sr. Professor Filipe Almeida contava a his-
tória de Susana – retive a primeira frase logo que entrei na sala.
Se bem me lembro, dizia ele: “ela pedia apenas que eu estivesse
ali, queria apenas a minha presença”. Creio que este é um apelo
sempre presente em qualquer fase terminal, independentemente
da fase do ciclo da vida de que estejamos a falar. As crianças,
os jovens, os adultos, quem quer que seja, apreciam, tenham a
idade que tiverem, a nossa presença; melhor, têm necessidade
dela. Em silêncio ou acompanhando o fino fio das últimas pala-
vras, a nossa presença testemunha o último momento sublime
de uma vida humana.
Vou contar-vos uma história. Um dia, trabalhava eu no serviço de
cirurgia, um doente em fase terminal tocava incessantemente à
campainha. Nessa altura, tínhamos o hábito de isolar os doentes
em fase terminal no quarto do fundo (porque seria?...) – era o
quarto mais pequeno, lembro-me bem. Sempre que ele tocava,
dirigia-me ao seu quarto e procurava saber se haveria algo mais
que pudesse fazer. Ele respondia-me invariavelmente “Só queria
a morte no ciclo vital– comentário de Jacinto oliveira
ARQ
UIV
O O
E
V I S e m I ná r I o d e É t I ca
divulgação ��
ordem dos enfermeiros
saber se estava aí…” A dado momento, decidi permanecer junto
dele e a campainha tocada por aquela trémula mão calou-se para
sempre... Era muito jovem, e demorei demasiado tempo a desco-
dificar a mensagem... Aprendi nesse dia que a minha presença era
o algo mais que aquele ser humano necessitava. Estar presente é
a última dádiva que a ninguém pode ser negada – lembrem-se!
Em relação às crianças, disse também o primeiro orador, é
importante estarmos atentos ao que elas são capazes de intuir
acerca da vida e da morte. Provavelmente, o modo como eles
vivenciam a morte tem a ver com esta sua capacidade. Se o
soubermos descobrir, ficaremos mais capazes de as ajudar.
E o problema dos pais? Perder um filho talvez seja o mais abso-
luto absurdo, disse-o também o primeiro orador. Não há dúvida
nenhuma de que qualquer mãe ou pai, perante a iminência da
morte de um filho, trocaria esse momento. Não hesitaria, se
tal fosse possível, em restituir o curso
natural dos acontecimentos, ou seja:
primeiro morrem os pais e só muito
mais tarde os filhos. Mas, por mais que
queiramos, tal não é possível.
Então, o que fazer? O que se espera
de nós? A nossa arte está em fazê-los
compreender que esse momento não é passível de ser trocado.
Partilhar esse momento respeitando o sofrimento que ele inflige.
Creio que esta nossa atitude não deixará de contribuir decisiva-
mente para a abordagem que aqueles pais hão-de fazer da morte
do seu filho e do processo de luto que se lhe seguirá.
Gostei também de ouvir que era importante percebermos que
a morte é um tempo de finalidade mas simultaneamente de
totalidade. À primeira vista, podem parecer coisas idênticas,
quando na realidade não o são. Finalidade, mas também de
totalidade. É muito importante que os enfermeiros interiorizem
esta diferença e lhe dêem conteúdo.
Faço daqui uma ponte para o segundo orador, o Professor
Doutor Abílio Oliveira, e centrava-me, porque o tempo
escasseia, em algo que eu não gostaria que entendessem como
uma atitude corporativista – aliás, cingir-me-ei aos resultados
apresentados. Dizia ele que, num estudo que fez, observou que
os enfermeiros se mostravam emocionalmente mais envolvi-
dos e que evidenciavam pensamentos de mal-estar perante
a morte mais vincados que os outros profissionais de saúde.
Fiquei contente. Sou enfermeiro e fiquei muito contente.
Saber que o envolvimento emocional é um dos elementos
distintivos da nossa prática deixa-me feliz. Devia deixar-nos
a todos felizes. Estar mais próximo do outro sempre e em
qualquer circunstância é um dos principais desideratos da
nossa profissão.
O desafio é saber o que podemos ainda fazer mais. O que
podemos construir quotidianamente para que, a cada dia
que passa, valorizemos mais a singularidade da pessoa e do
momento que ela vivencia. Sou enfermeiro porque amo as
pessoas, independentemente da fase
do ciclo de vida em que se encontrem.
Ninguém, do meu ponto de vista, con-
segue ser bom enfermeiro se não amar
verdadeiramente o outro.
Uma outra coisa me chamou a atenção
neste estudo do professor Abílio. Diz
respeito à inexistência de reacção na ausência de um estímulo.
Ou seja, quando não havia filme que invocasse o acontecimento
– a morte – parecia que ela não existia, parecia que a morte
estava longe. Não acontecia. Trata-se de um tópico que nos devia
obrigar a reflectir. Será que estamos num tempo em que só os
estímulos nos acordam para a realidade, a este e a outros níveis,
mas a este em particular? É bom este tempo em que é preciso
um estímulo para que nos possamos lembrar que algo existe, é
real? Porque será que só na presença de estímulos assumimos,
entrosamos a realidade?
Do meu ponto de vista, talvez fosse importante perceber porque
chegámos a este tempo e a esta fase do caminho. A maior parte
dos colegas são muito jovens, perdoem-me, mas deixo-vos esta
inquietude para as horas que hão-de vir...
Estar presente é a última
dádiva que a ninguém pode
ser negada – lembrem-se!
V I S e m I ná r I o d e É t I ca
divulgação�0
ordem dos enfermeiros
Já agora, outro tópico daquela comunicação: a sociedade pre-
fere fugir ou fingir? É interessante esta frase... também para
reflectir.
Creio que na exacta medida em que cada um de nós conseguir
colocar o assunto na ordem do dia, mais preparado estará para
lidar com a morte dos outros e com a sua própria morte. É muito
importante que saibamos ajudar a sociedade a não fugir e muito
menos a fingir. Este é um contributo que cabe a cada um dos
enfermeiros, que cabe a cada um de nós…
Quanto à terceira comunicação, escrevi aqui uma redundância
que me surgiu quando ouvia a colega Susana Pacheco a dizer “a
morte é a única certeza”, (e eu coloquei reticências!): “certa”.
Ocorreu-me, e espero que nenhum de nós se esqueça, que a
morte é a única certeza, e a única certeza que todos vivenciare-
mos. E que vivenciaremos de modo próprio e também prestando
cuidados aos que se encontram em fase terminal.
A questão é saber se estamos verdadeiramente preparados para
prestar cuidados aos outros quando eles se encontram em fase
terminal, quando a morte está iminente.
Creio que cada um de nós tem o dever de colocar essa ques-
tão a si próprio e, sempre que a resposta não for convincente,
procurar todos os dias preparar-se melhor para poder prestar
cuidados de melhor qualidade nesta fase tão importante da
vida dos outros.
Disse-nos também a Enfermeira Susana Pacheco que os enfer-
meiros têm tendência a adoptar atitudes extremas perante a
morte, e estas atitudes dependem do tipo de morte e da idade
de morte, ou da idade da pessoa que morre. Mas disse-nos algo a
seguir que eu considero absolutamente central: a morte é sempre
um acontecimento significativo, nunca uma banalidade, nunca!
A morte é sempre um acontecimento relevante.
E, por falar nisto, lembrei-me de evocar um dos meus livros
de mesinha de cabeceira – O Principezinho – que me ensinou
que “foi o tempo que dediquei à minha flor que a tornou tão
importante para mim”. Já todos leram o Principezinho? Se não
leram, ainda vão a tempo.
Também nos ensina muitas coisas sobre a morte e o modo como
somos capazes de a vivenciar.
A colega Susana Pacheco relembrou-nos também o Artigo 87 do
estatuto da OE, que me escuso aqui citar. Faço-vos, porém, um
pedido encarecido: quando forem daqui, porque já se esqueceram
do slide que esteve ali, porque foi um dia em que se falou da
morte, não deixem de voltar a ler ou a reler o Artigo 87.
Uma última nota, para dizer que é importante retermos que
os enfermeiros,(bem como outros profissionais), atendendo a
tantas exigências que eu lhes fiz aqui neste comentário, tam-
bém necessitam de que alguém olhe por eles, de alguém que
esteja atento aos seus momentos de vulnerabilidade. É um facto
que necessitamos de criar estruturas para apoiar aqueles que
prestam cuidados, não só a doentes em fase terminal ou onde
a morte se anuncia, mas também noutros momentos e em ou-
tros contextos de trabalho. Este deverá ser um salto qualitativo
sobre o qual devemos pensar maduramente, num futuro muito
próximo. Hoje todos estamos aqui com uma força enorme, mas
é preciso reconhecer que todos tropeçamos diversas vezes no
nosso quotidiano profissional e é preciso criar uma estrutura que
nos possa apoiar nesses momentos.
Última frase: os enfermeiros nunca deviam esquecer-se de que a
última imagem retida por um ser humano em fase terminal é, na
maior parte das vezes, a prestação de cuidados de enfermagem.
Esta imagem pode ser divulgada alhures... A ser assim, eu ficaria
mais tranquilo se, em qualquer outro local onde possam divul-
gar a imagem da minha profissão, a minha imagem enquanto
prestador de cuidados, pudessem dizer algo do género: aquele
enfermeiro do bigode e voz áspera esteve sempre presente. Inde-
pendentemente do que aconteceu, ele esteve sempre presente.
Oxalá todos saibamos estar presentes sempre que os outros
necessitem de nós. oe
V I S e m I ná r I o d e É t I ca
divulgação ��
ordem dos enfermeiros
Norberto Silva
Vogal do Conselho Jurisdicional Regional Secção Regional do Norte
Falar de final de vida e de deveres para com o doente terminal não
se me afigura tarefa fácil, pelo que espero que esta minha inter-
venção não resvale para uma tendência mórbida ou fúnebre.
A história natural e implacável de muitas doenças, a agressividade
que a vida moderna provoca sobre as pessoas, especialmente
ligada aos acidentes rodoviários e aos acidentes de trabalho, e o
envelhecimento aproximam muitos seres humanos do final de
vida.
Quando falamos do final de vida, referimo-nos a uma inelutável
mas penosa realidade, que muitas vezes se pretende minorizar,
abafar e esquecer: a morte, o fim da vida é a morte.
Nos dias de hoje, colectivamente, se não se pode recusar a reali-
dade da morte oculta-se, suprime-se do ideário e do imaginário,
lançando-se sobre ela o “tabu de um quase obsceno aconteci-
mento” (Osswald, W., 1999).
Assim, quando nos referimos ao doente terminal estamos a falar
daquelas pessoas para quem que já não há recursos terapêuticos
disponíveis capazes de parar a marcha da doença, tornando-se a
morte previsível a mais ou menos curto prazo. Estamos perante a
situação de um padecimento que desliza para a senescência avan-
çada, com progressiva perda de forças e capacidades e que conduz
inexoravelmente à morte. Teremos, então, um hiato temporal que
pode ir de horas ou dias a semanas ou meses.
Estas situações apresentam problemas específicos de grande com-
plexidade que se revestem de grande importância para a ética e
deontologia dos profissionais de saúde.
O Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, no pa-
recer sobre aspectos éticos dos cuidados de saúde relacionados
com o final de vida (11/CNECV/95), considera que a prestação
de cuidados de saúde no período final da vida se reveste de um
exemplar carácter ético.
O que resta fazer quando nada mais há a fazer? O que muda?
Em que sentido se há-de redefinir condutas e posições nestes
momentos difíceis em que profissionais de saúde, doentes e
famílias se defrontam com esta realidade?
Alguns, certamente, julgarão que a sua tarefa terminou
quando nada mais se pode fazer pela unidade orgânica viva.
Mas é exactamente esta a ocasião para lembrar que, além
dos aspectos biológicos que condicionam a fatalidade do fim
do organismo, estamos, sobretudo neste momento, diante
de uma pessoa e diante da experiência limite da existência.
(Silva, F., 2005)
Nestas circunstâncias, os valores que alicerçam a cultura ético-
-deontológica individual e institucional assumem um especial
relevo.
cuidado no final de vida – dos deveres para com o doente terminal
ARQ
UIV
O O
E
V I S e m I ná r I o d e É t I ca
divulgação��
ordem dos enfermeiros
Os valores são critérios segundo os quais valorizamos ou desva-
lorizamos as coisas e nesta medida justificam as nossas acções e
as nossas escolhas. (Nunes, L., 2005)
Pieper (1991) refere que não há moral sem as ideias de liber-
dade, igualdade, justiça e dignidade humana. Estas ideias são
assumidas pelo direito (em sentido normativo, traduzido no
ordenamento jurídico de cada país) ou pelos direitos, no plural
– direitos humanos – , senão vejamos, a título de exemplo: a
Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948) refere, logo
no primeiro parágrafo do seu preâmbulo, que “o reconhecimento
da dignidade inerente a todos os membros da família humana
e dos direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da
liberdade, da justiça e da paz no mundo” e também a Carta dos
Direitos Fundamentais da União Europeia (2000), quando, no seu
preâmbulo, considera que a União Europeia se baseia “nos valores
indivisíveis e universais da dignidade do ser humano, da liberdade,
da igualdade e da solidariedade” colocando “o ser humano no
cerne da sua acção”.
Também no ordenamento jurídico português encontramos con-
sagrados na Constituição da República Portuguesa os direitos e
deveres fundamentais da pessoa humana, dos quais destacamos:
os princípios da universalidade e da igualdade (artigos 12 e 13, res-
pectivamente), o direito à vida (Artigo 24), o direito à integridade
pessoal (Artigo 25), o direito à identidade pessoal, à capacidade
civil, à cidadania, ao bom nome e à boa reputação, à imagem, à
palavra, e à reserva da intimidade da vida privada e familiar (Ar-
tigo 26), o direito de livre expressão do pensamento e o direito
à informação (Artigo 37) e a liberdade de consciência, religião e
culto (Artigo 41).
Estes direitos (fundamentais) são naturais e universais, imprescri-
tíveis, inalienáveis, irrenunciáveis, invioláveis, indivisíveis, efectivos
complementares e interdependentes.
Neste sentido, devemos focalizar a questão dos deveres para com
o doente terminal e dos direitos do doente terminal nos grandes
princípios éticos da:
beneficência, “fazer o bem”;•
não-maleficência, “não fazer o mal”;
integridade da vida, “inviolabilidade da vida humana”;
autonomia, “liberdade pessoal e autodeterminação”;
justiça, “igualdade de direitos”;
verdade, “não induzir em erro”;
fidelidade, “não violar a confidencialidade” (Roth, H.; Zierath,
M., 1999).
Estes princípios éticos materializam-se sob a forma de compro-
misso, de onde decorrem obrigações e deveres. Isto é, manifes-
tam-se sob a forma de injunções e interdições.
Daqui decorrem as obrigações de natureza deontológica. A deon-
tologia é a formulação de um dever de natureza profissional que
engloba um conjunto de normas (código deontológico), alicer-
çadas nos princípios éticos e do direito, que procuram definir as
boas práticas, de acordo com as características próprias de cada
profissão.
O Código Deontológico dos Enfermeiros é um instrumento legal e
vinculativo para todos os profissionais de enfermagem, em cujo
articulado encontramos um conjunto de normas assentes em
princípios éticos e do direito, relativas à profissão e ao seu exer-
cício. Estas normas exprimem o que é esperado dos enfermeiros e
assentam no compromisso que estes têm para com a sociedade,
que lhes reconhece capacidades técnicas, científicas e humanas
para desempenhar um conjunto de funções. (Santos, C., 2004)
Neste particular, o Código Deontológico dos Enfermeiros tem um
conjunto de artigos em que os deveres decorrem da salvaguarda
e da garantia dos direitos dos utentes. Nomeadamente, refere o
“Artigo 87 – do respeito pelo doente terminal – O enfermeiro,
ao acompanhar o doente nas diferentes etapas da fase terminal,
assume o dever de:
a) defender e promover o direito do doente à escolha do local
e das pessoas que deseja o acompanhem na fase terminal da
vida;
b) respeitar e fazer respeitar as manifestações de perda expressas
pelo doente em fase terminal, pela família ou pessoas que lhe
sejam próximas;
•
•
•
•
•
•
V I S e m I ná r I o d e É t I ca
divulgação ��
ordem dos enfermeiros
c) respeitar e fazer respeitar o corpo após a morte”.
Esta referência específica ao dever de “defender e promover o
direito do doente [...]” e de “respeitar e fazer respeitar as mani-
festações de perda” coloca o enfermeiro como “advogado” do
doente, assumindo este o dever de assegurar, defender e vigiar
os seus direitos para que sejam respeitados.
A acção dos enfermeiros deve ser orientada no sentido de uma
preocupação efectiva em promover a qualidade de vida máxima
no tempo de vida que resta, em garantir cuidados básicos e
paliativos, com respeito pela dignidade de cada pessoa. A sin-
gularidade da situação terminal deve fazer emergir de forma
mais nítida a substância ética da relação enfermeiro-doente-
-família. O enfoque da nossa acção deve ser dado à valorização
da qualidade de vida e do acompanhamento do doente e da
família, isto é, intervir visando atenuar os sintomas da doença
(em particular a dor) e garantir o máximo de conforto possível,
sem agir sobre a causa. O objectivo, acima de tudo, é preservar
a dignidade humana.
Devem-se recusar todas as formas de obstinação terapêutica, não
recorrendo ao uso de recursos terapêuticos fúteis e inúteis, uma vez
que apenas conduzem ao arrastar do sofrimento dado que a cura
não é mais possível, tendo presente que a omissão de tratamentos
inúteis ou a interrupção de “meios artificiais” não são eutanásia.
Os enfermeiros são, muitas vezes, os interlocutores que mais
próximos se tornam do doente, naturalmente extravasando
as suas competências estritamente profissionais para criarem
laços de amizade, baseada na confidencialidade, no respeito, na
benevolência e na solicitude que devem sempre servir de norma
orientadora da relação com o doente. (Osswald, W., 1999)
Por isso, não raramente, no decorrer da nossa prática quotidiana,
somos confrontados com situações delicadas que exigem um
elevado sentido ético e deontológico. Assim, e para terminar,
vou abordar de seguida, a título de exemplo, duas situações, que
se calhar alguns de nós já vivenciámos e, provavelmente, nos
suscitaram dúvidas de natureza ética e deontológica.
A – Doente grave, hospitalizado, que entra em fase terminal. Será ético interromper tratamentos que se tornaram claramente ineficazes? Será eticamente aceitável não iniciar uma tentativa de reanimação?
O Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, no parecer
11/CNECV/95, considera que se deve recusar a “obstinação tera-
pêutica por ser má prática, mas utilizando todos os meios neces-
sários para assegurar o conforto e bem-estar do doente, de modo
a que o processo de morte decorra com respeito pela dignidade da
pessoa humana” e acrescenta que é necessário um “atendimento
personalizado e constante, por parte da equipa de saúde, que deve
ser permitida a presença de familiares durante 24 horas ou outras
pessoas que o doente deseje ver, incluindo ministros religiosos, e
que seja facilitada a alta na fase final se o doente ou a família o
desejar”. Mais acrescenta que “é eticamente inaceitável […] que o
doente terminal hospitalizado seja isolado e abandonado até que
ocorra a morte na mais completa solidão”.
Também o Código Deontológico do Enfermeiro considera, como
atrás se disse, no Artigo 87, que “o enfermeiro, ao acompanhar o
doente nas diferentes etapas da fase terminal, assume o dever de:
a) defender e promover o direito do doente à escolha do local e
das pessoas que deseja que o acompanhem na fase terminal
da vida”, orientando a sua acção para a promoção da qua-
lidade de vida do doente e família, garantindo cuidados de
acompanhamento e de suporte, no respeito pela dignidade
da pessoa.
No Enunciado de Posição Sobre a Eutanásia, aprovado pelo Con-
selho Jurisdicional da Ordem dos Enfermeiros em Junho de 2002,
afirma-se que “os enfermeiros assumem a defesa e protecção
da vida e da qualidade de vida, recusando posições extremadas
como o são a eutanásia e a distanásia (obstinação terapêutica)”,
considerando-se esta uma boa prática por se tratar da absten-
ção de tratamentos inúteis. Mais se acrescenta que não existe
diferença ética relevante entre não aplicar um tratamento que
pode prolongar artificialmente a vida e retirar um tratamento
que se tornou desproporcionado ou inútil (por exemplo desligar o
V I S e m I ná r I o d e É t I ca
divulgação��
ordem dos enfermeiros
ventilador), sendo estes, neste contexto, procedimentos etica-
mente aceitáveis.
Assim sendo, a omissão de uma acção, dentro de uma situação
terminal em que a morte ocorre (ortotanásia), por exemplo,
tentativa reanimação em caso de paragem cardiorrespiratória,
não é contrária à ética desde que tal ocorra por obediência à von-
tade competente e esclarecida do doente ou por razões de boas
práticas, isto é, o não-procedimento justifica-se eticamente pela
recusa de tratamentos “heróicos” ou despropositados (recusar a
obstinação terapêutica) que na maior parte dos casos provocam
sofrimento inútil ao doente.
B – Doente que sofre de dores intensas e é tratado com analgésicos e sedativos. Pode ser que estes fármacos tenham como efeito colateral a aproximação da morte ou a perda da consciência, parcial ou completa. Será eticamente aceitável utilizá-los?
Considera-se que o uso de tais fármacos pode ser lícito se se
cumprirem as seguintes condições, as quais são muito razoáveis
e de senso comum:
1) não há outra alternativa melhor (não há disponíveis outros
analgésicos que não tenham estes efeitos);
2) não há mais nada que se possa fazer;
3) trata-se de uma dor grave num doente terminal, e;
4) o doente já cumpriu ou pode razoavelmente cumprir com
seus deveres graves: “arrumar” assuntos familiares, receber
os sacramentos etc.
A intenção aqui não é “matar” o doente por meio de fármacos
para aliviar os seus sofrimentos, mas sim a de lhe aliviar os sofri-
mentos por meio de medicamentos adequados, ainda correndo
o risco de que a morte se aproxime mais rapidamente por isso
ou que perca a consciência, parcial ou completamente.
Muitos dos que estão a favor da eutanásia e do suicídio assistido
alegam falsamente que este argumento sobre os analgésicos é
hipócrita porque, dizem eles, é o mesmo acto de dar um fármaco
que em definitivo pode matar o doente e que a única coisa que
muda é a nossa intenção. A esses tais respondemos que não se
trata só da boa intenção, mas sim de proporcionar ao doente
uma dose adequada para tratar a sua dor.
Muitas vezes, a eutanásia ocorre quando os seus partidários
administram uma dose que eles sabem que matará o doente.
Mas quando aqueles profissionais que respeitam a vida propor-
cionam um analgésico cuja dose está encaminhada para aliviar A
RQU
IVO
OE
V I S e m I ná r I o d e É t I ca
divulgação ��
ordem dos enfermeiros
a dor, mas que ao mesmo tempo e infelizmente pode ter um
efeito ulterior não desejado de acelerar o processo da morte
e há motivos sérios para proporcionar tais fármacos (os que
mencionamos antes), então não há nenhuma razão para chamar
esse acto “eutanásia” nem “suicídio assistido”. Está claro que
não é um acto de hipocrisia, mas sim se fez o melhor que se
pôde numa situação difícil. Está claro também que se, aqueles
que são pró-vida, tivessem ao seu dispor fármacos melhores,
que não tivesse os efeitos mencionados, utilizariam esses e não
outros. (Castaneda, A., 2005)
A este propósito, o CNECV no parecer 11/95 – sobre aspectos
éticos dos cuidados de saúde relacionados com o final vida – diz
que é ética a aplicação de medicamentos destinados a aliviar a
dor do doente, ainda que possam ter, como efeito secundário,
a redução do tempo previsível de vida, atitude essa que não
pode ser considerada eutanásia.
O problema muitas vezes é que muitos profissionais não têm
a adequada formação no tratamento paliativo e por isso é que
se acredita que não há alternativas.
Para terminar, deixo-vos com uma das últimas mensagens de
Collière (2005) “a cada um, peço que se centre nas forças da
vida, na mobilização dos recursos vitais, respeitando o indiví-
duo e a humanidade para promover os cuidados e promover
a vida”.
Bibliografia
BARRETO, J – O consentimento informado e as doenças psíqui-
cas. «Cadernos de Bioética».Cérebro e Liberdade/Comentá-
rios e Notícias. Edições CEB. 20 (1999).
CARTA dos Direitos Fundamentais da União Europeia (2000/C
364/01). Disponível online em http://www.acime.gov.pt/
docs/Legislacao/LEuropeia/Carta_direitos_UE.pdf. arquivo
capturado em Maio de 2005.
CONSELHO Nacional de Ética para as Ciências da Vida – Parecer
11/CNECV/95, sobre Aspectos Éticos dos Cuidados de
Saúde Relacionados com o Final da Vida. Relator Daniel
Serrão. Disponível online em http://www.publico.clix.pt/
servico/notinuse/bioetica/vol3ii.html. arquivo capturado em
Maio de 2005.
CASTANEDA, A., – Como Defender a Vida Diante dos Argumentos
a Favor da Eutanásia e o Suicídio Assistido. Disponível online
em http://www.acidigital.com/eutanasia/argumentos.htm.
Arquivo capturado em Setembro de 2005.
CONSTITUIÇÃO da República Portuguesa – Lei do Tribunal
Constitucional. Coimbra Editora, 2002.
ORDEM dos Enfermeiros – Declaração Universal dos Direitos
do Homem. (Proclamada pela Assembleia geral das nações
Unidas em Dezembro de 1948). In: Código Deontológico
dos Enfermeiros: Anotações e Comentários. Ordem dos
Enfermeiros, 2003.
DECRETO-LEI n.º 104/98 de 21 Abril – Secção II. Código Deon-
tológico do Enfermeiro.
ORDEM dos Enfermeiros – Enunciado de Posição Sobre a Euta-
násia. Aprovado pelo Conselho Jurisdicional da Ordem dos
Enfermeiros em Junho de 2002. In: Código Deontológico
dos Enfermeiros: Anotações e Comentários. Ordem dos
Enfermeiros, 2003.
NUNES, Lucília – Análise dos Deveres Profissionais na Garantia
dos Direitos das Pessoas. Conselho Jurisdicional da Ordem
dos Enfermeiros, 2005.
OSSWALD, W. – O encontro com o outro no fim da vida. «Ca-
dernos de Bioética». Edições CEB, Coimbra. 21 (1999).
PIEPER, A. – Einfuhrung in die EthiK. UTB Francke, Tubingen,
1991.
RENAUD, M. – O respeito pelos direitos humanos na perspectiva
ética. «Revista da Ordem dos Enfermeiros». 15 (2004).
ROTH, H.; ZIERATH, M. – L’éthique dans les Soins Infirmiers.
ASI : Genève, 1999.
SAVATER, F. – O meu dicionário filosófico – D. Quixote, Lisboa,
2000
SANTOS, C. – Valores universais na prática de Enfermagem:
verdade e justiça. «Revista da Ordem dos Enfermeiros». 15
(2004).
SILVA, F. – Direitos e Deveres do Paciente Terminal. Disponível
online em http://www.portalmedico.org.br/revista/bio2v1/
direitdeve.html. Arquivo capturado em Setembro de 2005. oe
V I S e m I ná r I o d e É t I ca
divulgação��
ordem dos enfermeiros
António Manuel V. A. Silva
Enfermeiro Especialista
O contexto pessoal
Foi num serviço de urgência de um hospital central que fiz
praticamente todo o meu percurso profissional. Só nos últimos
dois anos não exerci no serviço de urgência, mas, se tivesse
dependido só de mim, ainda hoje trabalharia no serviço de
urgência.
Naquela unidade cresci como pessoa e como enfermeiro: fui
enfermeiro de nível I, enfermeiro graduado, especialista, chefe, e
durante dois anos também acumulei as funções de enfermeiro
supervisor. Isto é, vivi praticamente todas as situações profissio-
nais possíveis para um enfermeiro num serviço de urgência. Em
minha opinião, esta experiência possibilitou-me viver situações
muito semelhantes em posições profissionais completamente
diferentes, o que contribuiu decisivamente para a opinião que
hoje tenho sobre muitas questões. É nesta qualidade que faço
a presente reflexão.
Ver a morte da Urgência
Ver a morte da Urgência! Sem sequer pestanejar, aceitei de
imediato o convite para escrever este texto. Era uma hipótese
única de voltar ao SU. Ver a morte da Urgência, mas… em sete
páginas. É obra! Pensei longamente sobre a abordagem que
faria. As hipóteses eram tantas que me decidi por aquela que
me pareceu mais abrangente. Mas a abordagem que me pareceu
mais adequada poderá deixar-vos mais insatisfeitos, pois terei
de dedicar menos tempo a cada um dos assuntos. O que, bem
vistas as coisas, até nem será mau de todo pois poderá gerar
em vós a necessidade de pedir esclarecimentos, no período de
debate, que espero seja bastante vivo e participado1. Este tema
não pode deixar ninguém indiferente!
Dos nomes às coisas
A urgência: o que é e quem são os actores
Ao longo desta intervenção, quando me refiro ao serviço de urgên-
cia, não tenho em mente a unidade de prestação de cuidados que
aparece na literatura internacional, nem sequer a das definições
oficiais que vigoram em Portugal. Estou mesmo a falar daquela
unidade que tem sempre as portas abertas, onde, no mesmo mo-
mento, pode ser admitido o indigente que está sobretudo cheio de
fome e frio, e a vítima de um brutal acidente de viação. Refiro-me
àquele lugar onde ainda convivem, e por vezes em corredores sem
quaisquer condições de tratamento, os doentes com uma primeira
violenta cólica renal e o portador de uma dor crónica, em resultado
de uma neoplasia que lentamente lhe vai consumindo toda a força
vital. Falo daquela unidade onde encontramos o primo do amigo
da tia da sogra da lavadeira de um funcionário hospitalar, que re-
solveu a espera de três meses por uma consulta de especialidade
com uma ida particularmente combinada com um dos médicos
que estão de serviço. E por aí fora…
1 A possibilidade de solicitar esclarecimentos ou de comentar a refle-xão continua a ser possível através do endereço de correio electrónico antoniomanuel@ordemenfermeiros.pt.
a morte vista da Urgência
ARQ
UIV
O O
E
V I S e m I ná r I o d e É t I ca
divulgação ��
ordem dos enfermeiros
Serão muitas as diferenças entre os SU de todo o País, mas a
minha experiência diz-me que, basicamente, todos eles têm as
mesmas características fundamentais. As diferenças resultam
sobretudo da dimensão e localização.
Não consegui encontrar dados relativos à realidade nacional.
Baseio-me por isso apenas na minha experiência e nas refe-
rências que encontrei: numa investigação feita no Reino Unido
constatou-se que, em 40% das unidades de urgência, ocorrem
duas a três mortes por semana; em 25%, ocorrem entre quatro
e cinco (Dolan, 2003). A minha experiência diz-me que esta seria
aproximadamente a realidade da unidade onde trabalhei. É certo
que, nos meus últimos anos de exercício no SU, o contacto com
a morte era menos frequente que no início. E eu atribuía este
facto a três principais razões:
a abertura de novas unidades de saúde na periferia;
a acção das VMER;
a alteração legislativa que deixou de exigir o transporte de
cadáveres da via pública para o hospital, para verificação do
óbito.
Mas o certo é que, mesmo que a frequência seja agora menor,
é nos serviços de urgência que a probabilidade de “ver a morte”
é mais elevada.
Nestes serviços de urgência trabalham:
médicos, geralmente uma vez por semana e apenas por
obrigação;
enfermeiros, todos os dias, vinte e quatro horas por dia; e a
maioria por opção consciente;
outros técnicos de saúde, igualmente relevantes para o re-
sultado global, mas menos determinantes quanto à questão
em apreço.
A morte: o que é e quem são os actores
Apesar de menos sujeita a outras interpretações, nesta reflexão
entendo por morte a cessação permanente de todas as funções
vitais, o fim da vida humana, um acontecimento e um estado
(Dolan, 2003). Morte súbita é a que acontece sem aviso, a
inesperada, mesmo que resulte de doença prolongada. Morrer
•
•
•
•
•
•
é o processo de chegar ao fim, que poderá ter uma duração
pequena, (isto é algumas horas), meses ou anos.
Mesmo sendo provavelmente do conhecimento geral e apesar
de ter decidido não me deter na sua análise, parece-me impres-
cindível lembrar aqui o trabalho de Elizabeth Kubler Ross. Esta
autora identificou cinco estádios que qualquer pessoa confron-
tada com uma situação violenta ou de perda atravessa ou pode
atravessar. São eles: o da negação, o da revolta, o da negociação,
o da depressão e o da aceitação. Citei-os pela ordem por que
são descritos e que é considerada a natural. No entanto, esta
ordem não é obrigatória e, por vezes, não é possível identificar
nenhum deles. Contudo, em minha opinião, quem trabalha na
saúde deverá ter o trabalho desta autora sempre presente.
Apesar de ser um fenómeno singular, a morte que eu vejo da
urgência tem muitos actores:
a pessoa que morre,
os seus conviventes significativos,
o enfermeiro que cuida da pessoa que morre e dos seus con-
viventes significativos,
os restantes profissionais da saúde;
o ambiente, no seu sentido mais lato.
Ver: modo de actuar
O objecto central
Quando queremos “ver” algo, concentramos a nossa atenção
num objecto particular. Se este objecto é inanimado, a questão,
na maior parte das vezes, é simples. Mas quando se trata de
algo que envolve seres animados e de relação, por excelência,
é praticamente impossível isolar o objecto central.
O(s) contexto(s) circundante(s)
O contexto em que observamos o objecto da nossa atenção in-
fluencia marcadamente a nossa experiência sensorial e cognitiva.
Contexto é o ambiente físico, é o ambiente emocional, é a inten-
ção com que fazemos ou que colocamos naquilo que fazemos.
E todos sabemos que duas ou mais pessoas que atravessem um
determinado lapso temporal em simultâneo têm uma percepção
•
•
•
•
•
V I S e m I ná r I o d e É t I ca
divulgação��
ordem dos enfermeiros
diferente destas variáveis. O que, no limite, torna este mesmo
momento em duas realidades completamente diferentes.
As tonalidades (pessoais)
Para o contexto contribuem decisivamente as tonalidades pes-
soais. Para interpretarmos aquilo que vemos, utilizamos sempre
os nossos cinco sentidos – audição, visão, olfacto, tacto e, em
muitas circunstâncias, também o paladar. Utilizamos as nossas
crenças e a nossa cultura, a forma como vivemos e encaramos
a vida e o mundo; a crença religiosa ou a nossa espiritualidade.
A nossa história prévia é igualmente relevante. As experiências
anteriores modelam sempre a forma como vivemos algo que
reconhecemos como familiar. Mesmo que, por vezes, nos enga-
nemos redondamente na apreciação inicial que fizemos. E este
engano, felizmente, virá, na maior parte dos casos, modelar o
nosso comportamento futuro.
Ver a morte da Urgência
Tentarei agora ilustrar as minhas afir-
mações com resumos de histórias que
vivi pessoalmente e, propositadamente,
não farei nenhuma referência especial
aos aspectos particulares que pretendo
realçar. Apesar de não ser possível de comentá-las de viva voz,
espero, contudo, que posteriormente o façam com outros colegas
ou mesmo comigo, se assim o desejarem2.
O homem, o doente e a vítima
Começo por contar uma história que vivi, já há muitos anos atrás.
A meio de uma manhã calma na Urgência, entra em grande alvo-
roço um grupo de pessoas transportando uma maca. Tratava-se
de agentes da PSP e de alguns cidadãos que traziam a vítima de
um assalto na Rua de Santa Catarina, a pequena distância do
hospital. Fomos imediatamente informados de que o homem
tinha sido esfaqueado durante o assalto. Aquilo de que me lembro
com maior nitidez é de que transportámos a vítima à sala de
2 A possibilidade de solicitar esclarecimentos ou de comentar a refle-xão continua a ser possível através do endereço de correio electrónico antoniomanuel@ordemenfermeiros.pt.
emergência com a maior rapidez possível e de que, quando eu ia
começar a desapertar o casaco do doente, para o despir, fiquei
completamente banhado em sangue. O doente tinha recebido
uma facada directamente no coração, e estava a expelir sangue
em grandes golfadas. Tentámos reanimar o doente, fazer o que
se podia, mas ele morreu em meia hora. Sem chegar sequer ao
bloco operatório.
“Acabei de beber isto”
Num turno da tarde, aproxima-se uma pessoa do porteiro, en-
trega-lhe um frasco para a mão e diz-lhe: “Acabei de beber isto”.
O porteiro, sem saber o que fazer, dirigiu-se já não sei se a um
médico ou a um enfermeiro, e entregou-lhe o frasco. Este não
deixava dúvidas. O cheiro que exalava era obviamente o de um
organofosforado – remédio do escaravelho! Tentámos saber qual
era exactamente o produto, iniciou-se o
tratamento, a situação clínica começou
a deteriorar-se e o doente morreu dois
dias depois.
“Vou morrer, não vou?”
Certa vez, entrei de serviço à noite e
recebi um doente transferido de um
hospital distrital. Trazia a indicação de
que era transferido para o hospital central por falta de cirurgião.
Tinha uma hemorragia digestiva alta abundante. Apesar da
drenagem nasogástrica, teve algumas hematémeses violentas.
Tentámos equilibrá-lo hemodinamicamente, durante o tempo
que foi possível. Os sinais de choque hipovolémico começaram
a notar-se. Pouco antes da uma hora da manhã fui informado
pelo médico da sala de que os cirurgiões de serviço tinham
decidido que o doente não tinha condições operatórias. Prosse-
guia o tratamento médico. Eu ainda continuo a ouvir o doente
perguntar-me: “Senhor Enfermeiro, eu vou morrer, não vou?” Eu,
infelizmente, não consegui responder. Morreu “nas minhas mãos”
poucas horas depois.
Os conviventes significativos
Sexo feminino sem fala
Num outro turno da tarde, por volta das cinco da tarde,
As experiências anteriores
modelam sempre a forma como
vivemos algo que reconhecemos
como familiar.
V I S e m I ná r I o d e É t I ca
divulgação ��
ordem dos enfermeiros
os bombeiros transportaram para o serviço de urgência “um sexo
feminino sem fala” – a forma encontrada por quem trabalha nos
serviços de urgência para identificar pessoas inconscientes e sem
documentos ou outros elementos de identificação. Aparentava
trinta e poucos anos. Não havia qualquer história, sabia-se
apenas que tinha vindo de uma pensão. Os bombeiros tinham
sido chamados pela recepcionista que os informou de que uma
hóspede se sentia mal. Depois de se terem feito as primeiras
investigações diagnósticas, suspeitou-se de uma hemorragia
cerebral. Iniciou-se o tratamento possível. Cerca de duas horas
depois, um homem dirigiu-se ao serviço de urgência. Queria
saber informações sobre uma senhora que tinha sido trazida
nesse dia para a Urgência, cerca de duas horas antes e que estava
muito mal. Afirmava não saber o nome. Depois de conversarmos
mais um pouco com ele viemos a saber que eram vizinhos e
que tinham combinado um encontro
amoroso numa pensão. Durante o acto
sexual, a senhora deixou subitamente
de falar e ele viu-se confrontado com
aquela situação. Não conseguiu reagir.
Era amigo do marido. Só se lembrou da
possibilidade de a levar para o hospital
anonimamente. A senhora faleceu pou-
cas horas depois.
Última vontade
Recordo-me também de ter recebido, num outro turno noc-
turno, uma senhora idosa em estado agónico. A filha estava
presente e extremamente ansiosa. Disse-me que queria falar
com um médico. Levei-a junto do médico neurologista e assisti
à conversa. Dirigiu-se-lhe inquirindo: “Senhor Doutor, diga-me,
por favor, o que tem a minha mãe?” E o médico, ali no meio do
corredor, disse-lhe: “A sua mãe tem uma hemorragia do tronco
com inundação ventricular”. A senhora olhou para ele, por um
breve instante, e perguntou-lhe: “Mas o que lhe vai acontecer?”
A esta pergunta, o médico respondeu: “Estamos a tratá-la. Vamos
esperar pela evolução nas próximas horas.” O médico virou costas
e abandonou o local. Eu continuei o meu trabalho. Verificando
que a senhora continuava muito ansiosa, perguntei-lhe o que
se passava e ela disse-me: “Ó Senhor Enfermeiro, a minha mãe
vai morrer, não vai? É que… sabe, ela queria morrer em casa.” E
pediu-me por tudo que eu não a deixasse morrer no hospital. Eu,
sabendo que a mãe daquela senhora não teria muitas horas de
vida, fui ter com o médico neurologista. Informei-o do desejo da
doente que me tinha sido expresso pela filha e perguntei-lhe se
não seria possível arranjar forma de enviar a doente para casa. A
minha intervenção foi liminarmente rejeitada com o argumento
de que a morte naquela situação não era uma coisa certa e de
que a doente necessitava de tratamento. A alta da doente nunca
seria portanto autorizada.
Naquela altura, eu já não era um enfermeiro novato, já tinha
alguma experiência e sabia como proceder. Através de uma con-
versa verifiquei que a filha possuía as condições físicas mínimas
para receber a mãe inconsciente. Soube também que ela tinha a
capacidade económica necessária para
providenciar àquela hora as condições
necessárias ao tratamento de suporte.
Munido destas informações fui falar
com o chefe da equipa de urgência e
relatei pormenorizadamente a situação.
Cerca das duas horas da madrugada
– mais ou menos cinco horas depois
da primeira conversa – os bombeiros
transportavam a senhora para o domicílio, com “alta a pedido”.
Nunca mais soube nada dela. Mas naquela situação clínica, é
certo que acabasse por falecer em casa, como desejava.
Sozinho no mundo
Ainda num outro turno da noite, verifiquei que, no canto de um
corredor, estava um senhor de aspecto frágil. Aparentava cerca de
80 anos. Permanecia sentado ao lado de uma maca onde estava
deitada uma senhora: a esposa. Falei com ele e tentei fazer com
que percebesse que a esposa iria ficar internada. Informei-o de
que ele não poderia fazer muito mais e de que poderia ir para
casa. Mas ele pediu-me para o deixar ficar. Disse-me que, sem ela,
não sabia fazer nada. Eram só os dois, não tinham mais ninguém
no mundo e não saberia o que fazer quando chegasse a casa.
Pelo menos durante o meu turno, este senhor ficou comigo e
teve a companhia da esposa.
Eram só os dois, não tinham
mais ninguém no mundo
e não saberia o que fazer
quando chegasse a casa.
V I S e m I ná r I o d e É t I ca
divulgação�0
ordem dos enfermeiros
Os outros (profissionais da saúde)
Os números nem sempre são frios
Há também outro tipo de histórias. Logo no início da minha
vida profissional, estava certo dia de serviço na pequena cirurgia.
Naquela noite, a médica de serviço do sector era uma jovem
profissional muito dedicada, activa e cheia de vontade de apren-
der. A noite decorria dentro dos parâmetros da normalidade.
Até que, cerca das três horas da manhã, começaram a chegar
os bombeiros com o resultado de um despiste de automóvel na
Avenida da Boavista. Em cerca de dez minutos, fomos confron-
tados com seis cadáveres de jovens. Pouco mais jovens que nós:
entre os dezoito e os vinte anos. Cumprimos o nosso dever, mas
aquela médica chorou convulsivamente várias vezes durante a
noite. Tenho a impressão de que estive mais tempo a cuidar da
médica do que dos restantes doentes.
“Os conhecidos”
Noutras ocasiões, recebemos doen-
tes e alguém diz:
– Este não é o doutor fulano de tal?
– Ele tentou matar-se? Mas o que é
que terá sido? Terá sido sida? Terá
sido um desgosto de amor?
Pode também acontecer estarmos a trabalhar e a curiosidade
levar-nos a espreitar os locais onde se tenta reanimar uma pes-
soa que acabou de ser admitida. Recordo-me de uma situação
em que um dos profissionais de serviço, numa outra área da
Urgência, lançou um olhar de relance à vítima de um atrope-
lamento que tratávamos na sala de emergência. Aquele olhar
identificou um seu sobrinho. Largou tudo, despiu a bata à nossa
frente e foi a correr ter com o sobrinho. Felizmente, dessa vez,
não era o sobrinho dele.
O enfermeiro (24 horas, sete dias por semana)
Sobretudo, há aquelas pessoas que estão lá 24 horas, sete dias
por semana: os enfermeiros. Há uma história que me marcou
especialmente, já eu era enfermeiro-chefe. Tratava-se de uma
senhora com uma condição neurológica indeterminada. Esteve
internada no serviço de urgência dois dias e, apesar de não ter
sido possível estabelecer um diagnóstico médico, foi-lhe dada
alta. A colega que cuidava dela, sabendo que a filha da doente es-
tava à espera, chamou-a para que a ajudasse a vesti-la. Enquanto
a ajudavam a vestir-se, no entanto, a senhora teve uma paragem
cardíaca. Caiu desamparada, apesar de estar acompanhada por
duas pessoas. As manobras de reanimação foram imediatamente
iniciadas. Sem sucesso. O óbito foi verificado cerca de trinta
minutos depois. Fiquei sem saber quem precisava mais de ser
amparado: a filha que só repetia “Como é que puderam dar
alta à minha mãe neste estado”; ou a nossa colega que de tão
chocada com a situação a revia vezes sem conta, procurando
saber o que poderia ter feito mal.
Uma outra imagem que, depois de todos estes anos, ainda me
acompanha é a de uma minha colega de serviço que se refor-
mou há dois ou três anos. Sempre foi
muito jovial e muito alegre. Depois
de uma noite em que trabalhámos
lado a lado, contudo, deixou de ser a
pessoa que era. Não conseguíamos
saber o que se passava. Conversando
com ela, vim a saber que não conse-
guia esquecer a imagem de um ca-
dáver que tínhamos recebido da cadeia. Tratava-se de um preso
que se tinha enforcado na cela. Como era obrigatório, naquela
altura, o cadáver foi transportado para o serviço de urgência
para verificação do óbito. A morte tinha ocorrido algumas horas
antes. O cadáver estava rígido na posição de sentado, os braços
estendidos como quem agarra algo. Mas as características que
fixavam o nosso olhar eram a marcada cianose central e uma lín-
gua edemaciada e protraída. E enorme. Era esta imagem que não
a abandonava e a impedia de dormir. Disse-me posteriormente
que, durante alguns meses, aquela imagem a acompanhou noite
e dia. Eu também não a esqueci.
Eu próprio, apesar de já se terem passado muitos anos, ainda
sinto neste momento o cheiro da massa encefálica que muitas
vezes nós tínhamos de tirar das macas dos bombeiros e acon-
dicionar junto de outros restos mortais que eram enviados para
o Instituto de Medicina Legal.
Sobretudo, há aquelas pessoas
que estão lá 24 horas, sete dias
por semana: os enfermeiros.
V I S e m I ná r I o d e É t I ca
divulgação ��
ordem dos enfermeiros
Ainda me vejo atrapalhado, a tentar colocar a etiqueta de iden-
tificação num cadáver carbonizado que se resumia ao tronco.
Também não consigo esquecer o caso de um colega que morreu
em serviço. Estávamos a trabalhar e ele começou a sentir-se mal.
Apesar de o tratamento se ter iniciado imediatamente, faleceu
no dia seguinte, no mesmo serviço onde trabalhava.
Tratar a morte por tu
Considero que devemos tratar a morte por tu. A morte acontece.
Quantas mais vezes ela acontece, quanto maior a sua frequência,
maior obrigação nós temos de tentar melhorar a experiência e
influenciar o modo de ver as coisas. A nossa cultura diz-nos que
nós não devemos falar destas questões. No entanto, noutros
locais, noutras culturas, estas questões são abordadas como
um facto natural da vida. É natural que se morra e por isso nós
temos de falar destas situações.
Fiz alguma pesquisa internacional e verifiquei que, nestes con-
textos, neste momento, debatem-se as vantagens e os incon-
venientes de permitir que os familiares assistam à reanimação
dos doentes. Treinam-se frequentemente o modo de comunicar
más notícias. Preparam-se os ambientes: nos serviços de urgên-
cia existem salas destinadas a receber os familiares e onde os
familiares podem estar enquanto decorrem as tentativas de
reanimação dos doentes. Salas que têm café, revistas, telefone
à disposição das pessoas.
É importante que seja permitido aos conviventes significativos
a visualização do corpo. Há instruções sobre o modo como se
devem preparar os corpos, para que logo que acabam de falecer
possam ser vistos e tocados pelos conviventes significativos.
A visualização do corpo é um momento de enorme importância
para o processo de luto das pessoas que têm laços de maior
intimidade com o defunto. Eu próprio vivi uma situação familiar
em que verifiquei esta importância. Um primo meu faleceu num
serviço de urgência, na sequência de um acidente de viação. As
normas deste serviço não permitiam que os pais vissem o corpo.
Só a minha condição de enfermeiro possibilitou à minha tia a
visão do filho morto. Sei que, se ela não tivesse tocado o corpo
gelado, não teria superado a morte como superou.
Mas também encontrei referências que apontam para a
preocupação com as pessoas que trabalham nos serviços de
urgência e com o apoio que é dado aos enfermeiros. Encontrei
uma frase que ilustra bem esta necessidade de apoio e que
passo a tentar traduzir para português: “Para a maioria das
pessoas, os enfermeiros que trabalham no serviço de urgência
vivem experiências para lá do limite da razoável experiência
humana”.
O que podemos então fazer com aquilo que temos? Também
na literatura internacional sobre a saúde, os living wills são
assunto corrente. Ou seja, testamentos em vida. Os doentes
são aconselhados, durante o seu processo de doença, e mesmo
ainda antes, a pensarem, a reflectirem sobre aquilo que querem
ver feito quando um dia se aproximarem da morte. São acon-
selhados a comunicar a sua vontade aos profissionais da saúde,
mas sobretudo a comunicá-la aos familiares. É importante que
tenham coragem de discutir com eles estas questões, para que,
quando a situação se impuser, não haja hesitações. A verdade é
que não é no serviço de urgência, ou numa situação de urgência,
que estas hesitações se devem resolver.
ARQ
UIV
O O
E
V I S e m I ná r I o d e É t I ca
divulgação��
ordem dos enfermeiros
Contudo, mesmo nestas circunstâncias internacionais, em que
as questões são tratadas de outro modo, as coisas nem sempre
correm bem. Li uma história de um doente hispânico, em estado
terminal devido a uma neoplasia, que tinha tudo preparado.
Foi para casa para falecer e assim aconteceu. Só que as mani-
festações de dor da família foram tão ruidosas que os vizinhos
chamaram os paramédicos. Estes chegaram a casa da pessoa, ar-
rombaram literalmente a porta, entraram e iniciaram manobras
de reanimação. A filha contactou o médico de imediato que, pelo
telefone, disse aos paramédicos que interrompessem as mano-
bras. Estes, no entanto, disseram que tinham de cumprir ordens
e que não poderiam interromper a reanimação. Só na presença
do médico exibindo o registo da vontade do doente de não ser
reanimado, é que os paramédicos cessaram a intervenção.
Termino, convidando-vos a ler excertos de alguns artigos do
nosso código deontológico, que considero de enorme relevância
nestas situações. O enfermeiro deve reflectir sobre eles, antes
de actuar.
Artigo 86.º
– Do respeito pela intimidade
…assume o dever de:
a) r espeitar a intimidade da pessoa e protegê-la de ingerência
na sua vida privada e na da sua família;
b) salvaguardar sempre, no exercício das suas funções e na
supervisão das tarefas que delega, a privacidade e a inti-
midade da pessoa.
Artigo 87.º
– Do respeito pelo doente terminal
…assume o dever de:
a) defender e promover o direito do doente à escolha do local
e das pessoas que deseja o acompanhem na fase terminal
da vida;
b) respeitar e fazer respeitar as manifestações de perda expressas
pelo doente em fase terminal, pela família ou pessoas que lhe
sejam próximas;
c) respeitar e fazer respeitar o corpo após a morte.
Artigo 81.º
– Dos valores humanos
…assume o dever de:
a) cuidar da pessoa sem qualquer discriminação económica,
social, política, étnica, ideológica ou religiosa;
…
e) abster-se de juízos de valor sobre o comportamento da pessoa
assistida e não lhe impor os seus próprios critérios e valores
no âmbito da consciência e da filosofia de vida;
…
Artigo 89.º
– Da humanização dos cuidados
…assume o dever de:
a) dar, quando presta cuidados, atenção à pessoa como uma
totalidade única, inserida numa família e numa comunidade;
…
Referências
DOLAN, B; HOLT, L – Accident & Emergency Theory into
practice. Baillière Tindall, 2003.
http://www.medscape.com/viewarticle/512477 oe
ARQ
UIV
O O
E
V I S e m I ná r I o d e É t I ca
divulgação ��
ordem dos enfermeiros
Lurdes Martins
Enfermeira Especialista
Professora Adjunta da Escola Superior de Saúde do Instituto Politécnico de Setúbal, Mestre em Ética e Teologia da Saúde
Introdução
De que falamos quando falamos de cuidados paliativos? Falamos,
antes de mais, de uma “filosofia de cuidados”.
Procurando conhecer o significado, para melhor compreender-
mos o que nos querem dizer as palavras, vemos que “paliativo”
vem de “pallium”, cujo significado nos remete para “algo que
cobre, que tapa, que protege”; palavras que ilustram os actos que
realizamos quando prestamos cuidados paliativos.
O objectivo principal dos cuidados paliativos é assegurar qualidade
à vida quando as intervenções curativas já não têm resposta; é a
antítese do “já não há nada a fazer”, os cuidados paliativos cen-
tram-se na atenção global à pessoa, forma de cuidar tão presente
no quotidiano dos enfermeiros, não concebemos / prestamos
cuidados senão de uma forma holística. Assim, podemos afirmar
que os enfermeiros sempre prestaram cuidados paliativos.
Acompanhar um doente em fase terminal requer um outro
paradigma de cuidados, tecnicamente menos diferenciado mas
humanamente mais “sofisticado”.
Desenvolvimento
Os cuidados de saúde conseguiram, nos últimos anos, progressos
verdadeiramente espectaculares. A isto se deve que a esperança
de vida tenha aumentado significativamente. No entanto, chega
um momento em que, por muito que se faça, isso não chega,
não é suficiente, e a morte chega.
Quando trabalhamos / cuidamos de doentes em fase final
do seu ciclo de vida, somos confrontados com esta realidade
frequentemente, e também o doente sabe ou tem a intuição
de que vai morrer. O nosso cuidar deverá ser orientado para
uma avaliação da forma como cada um enfrenta este momento
e valorizar as alterações físicas e psíquicas que afectam a sua
qualidade de vida. O nosso grande objectivo seria proporcio-
nar-lhe
“um bem estar físico e uma serenidade para o ajudar a
bem morrer”1.
Esta ajuda a “bem morrer” não consiste numa atitude me-
ramente passiva. Vamos continuar a cuidar do doente, tanto
no aspecto físico (evitando a dor, a ansiedade etc.) como, e
sobretudo, cuidar do ser humano.
• Este “ajudar a bem morrer” é um dos objectivos, mas a inter-
venção em cuidados paliativos é mais ampla, podendo estes
ser encarados como uma atitude de prevenção do sofrimento.
Assim, devem iniciar-se antes da fase terminal da doença e
do período de agonia.
A concepção actual dos cuidados paliativos orienta a nossa
actuação para três áreas importantes, que são as indicadas
de seguida.
1 MONGE, Miguel Angel – Ética, Salud, Enfermedad. p. 120.
Final de Vida
ARQ
UIV
O O
E
V I S e m I ná r I o d e É t I ca
divulgação��
ordem dos enfermeiros
• Comunicação / informação ao doente e à família; respeito
pelos seus sentimentos e pelas suas manifestações.
• Controlo de sintomas / tratamentos e cuidados específi-
cos.
• Assegurar a satisfação das necessidades manifestadas pelo
doente e pela família2.
Só uma sólida formação permitirá praticas adequadas, com
a desejável repercussão na melhor e maior qualidade de vida
para os doentes.
Se todo o doente é um ser carenciado, inseguro, angustiado
em relação ao seu futuro, é-o de uma forma especial o doente
terminal. O doente terminal, citando um folheto do conselho
da Europa, tem três espécies de necessidades, tal como se
indica de seguida.
• Psicológicas – Confiança na competência do pessoal de
saúde, certeza de que não serão abandonados no momento
mais difícil. Informação compreensível da evolução do seu
estado, necessidade de uma presença que lhes fale, que os
ouça e que os apoie. Saberem que ainda pertencem a uma
família, porque continuam a precisar de amar e de serem
amados, de necessidade de compreensão e de serem consi-
derados como pessoas com dignidade.
• Físicas – São aquelas que estão ligadas às várias formas de
desconforto e à dor.
• Religiosas – De acordo com as convicções de cada um pe-
rante a perspectiva da morte, surgem com frequência as
grandes interrogações sobre a vida, para as quais as religiões
se propõem dar uma resposta. Têm processos espirituais de
comunicar paz, serenidade, força para a aceitação, sentido
para o momento doloroso que o doente vive.
O permanecer junto do doente em fase terminal, com uma
forma de estar que vai ao encontro das suas necessidades
físicas, psíquicas, intelectuais ou espirituais, é algo que para
além de tudo o que é ensinado durante o curso, só se adquire
à própria custa, pela experiência do vivido no dia-a-dia. Será o
2 MONGE, Miguel Angel – Ética, Salud, Enfermedad. pp. 125-127.
próprio doente o grande mestre. Ele o guiará se o enfermeiro
ao longo do internamento souber estabelecer uma relação de
franca reciprocidade, indispensável ponto de apoio nos últimos
momentos, quando a dor e o sofrimento do doente, o medo ou
a ansiedade forem demasiados fortes.
Nem sempre é fácil conseguir o equilíbrio desejável entre as
exigências da técnica e da terapêutica e a sensibilidade hu-
mana. É fruto de uma maturidade lentamente adquirida no
decurso da vida profissional com todos os seus percalços, as
suas incompreensões, o seu cansaço ou mesmo a alegria e as
satisfações, se ao mesmo tempo o enfermeiro mantiver pre-
sente e viva, a atenção à pessoa humana que é cada doente
um após o outro.
É imprescindível para a aquisição desta maturidade o conhe-
cimento dos diferentes estádios mentais que se sucedem
durante o evoluir para a morte, as consequentes alterações
do comportamento, assim como a diversidade de cuidados e
atenção que exigem.
É função do enfermeiro ajudar o indivíduo a viver o mais com-
pletamente possível no meio em que está inserido. Ao doente
terminal, devem ser assegurados os cuidados-base no que se
relaciona com o assegurar funções vitais e controlo eficaz de
sintomas; para além deste cuidado, o enfermeiro tem de ter
tempo para ouvir, para estar um pouco com o seu doente,
deixá-lo falar, exteriorizar o que tem necessidade de expressar.
A atenção que o enfermeiro prestar à descrição que o doente
faz do seu sofrimento pode igualmente contribuir para que se
sinta mais confortável e compreendido.
Qualquer acto de enfermagem pressupõe o estabelecer de
comunicação, uma interacção com o assistido. Comunicar é
relacionar-se. Junto do doente e especialmente do decorrer de
cuidar o doente em fase terminal, o enfermeiro é solicitado a
recorrer a várias formas de comunicação – falar, um gesto, um
olhar. Qualquer modo de comunicar é válido se estiver subja-
cente que o nosso objectivo é diminuir a ansiedade, atenuar a
insegurança, garantir uma presença reconfortante.
V I S e m I ná r I o d e É t I ca
divulgação ��
ordem dos enfermeiros
Ficar longe do doente quando ele é irritável ou exigente, quando
o sofrimento é grande, é tentação grande. Mas é precisamente
o momento em que ele mais necessita de uma presença amiga.
Quando não há tempo, pequenos nadas podem suprimir a sua
falta, como o chegar-se com frequência ao doente, aconchegar-
-lhe a roupa, humedecer-lhe os lábios, simplesmente sorrir, ou
dizer “Como vai?”.
Há pormenores que dão um bem-estar cujo alcance desco-
nhecemos. Porque se ignora a sua importância, nem sempre
se recorre aos diversos meios de expressão não verbal. Para o
doente que pouco a pouco se encaminha para o desapego total
do mundo, das realidades sensíveis, tem valor inestimável o
sentar-se a seu lado, o segurar a mão, uma carícia, a expressão
de um olhar sereno. Todas estas formas
de comunicação poderão contribuir para
o estabelecer de uma relação preciosa
nos momentos mais difíceis, no mo-
mento da morte.
Trabalhar em cuidados paliativos não
é fácil, é um longo caminho a ser per-
corrido, que se faz à custa de muito
sofrimento, através das diferentes aprendizagens vividas em
diferentes situações até o atingir de uma maturidade plena
que permite acompanhar e proporcionar ao doente terminal
uma morte digna.
Ainda na área da comunicação, as competências subjacentes
à transmissão de más notícias, o apoio ao doente e à família
na negação ou no “muro” de silêncio são fundamentais para
uma resposta adequada às necessidades dos doentes e das
famílias.
Se a vontade e o gosto por esta área são fundamentais para
que a prática se desenvolva, não são contudo suficientes. Não
é suficiente dizer que se conhecem os princípios dos cuidados
paliativos; é necessário integrá-los, aplicá-los ao processo de
tomada de decisão adequado às necessidades dos diferentes
doentes e das famílias.
Acompanhar a família é importante, e nós, profissionais de saúde,
devemos estar atentos e saber actuar de forma a responder
também a este objectivo dos cuidados paliativos.
Acompanhar é fazer tudo para que haja interacção significa-
tiva. Devemos, assim, desenvolver atitudes que favoreçam este
acompanhar:
• ter em atenção as diferentes realidades do indivíduo – bio-
psicossociocultural – e o contexto do momento;
• saber ouvir as necessidades, os medos, o que o outro não diz;
• ser capaz de uma presença silenciosa, que é símbolo de segu-
rança, companhia;
• ter abertura e receptividade;
• estar atento às diferentes dimensões da pessoa que sofre no
corpo e no espírito.
Para além da atenção a dar à família
que sofre, atendendo aos aspectos atrás
mencionados, nós, profissionais, devemos
investir no desenvolvimento de potencia-
lidades desejáveis para bem acompanhar,
ajudando de forma mais efectiva quem
está em crise e também aprendermos,
nós próprios, a viver com situações que causam envolvimento
emocional.
Devemos procurar actuar tendo em consideração os seguintes
aspectos:
• capacidade de reflexão para ser capaz de dizer a palavra certa
no momento certo;
• capacidade de não ser rígido para discernir expectativas e
tomar as iniciativas que entender serem boas para responder
às solicitações – exige um clima de segurança psicológica que
só é possível se existir uma aceitação incondicional;
• autoconfiança para podermos ser capazes de nos distanciar-
mos o necessário de situações potencialmente invasivas;
• consciência profissional indispensável para inspirar confiança
e dar segurança à pessoa com quem estamos em relação;
• honestidade, sinónimo de transparência, fundamental ao
estabelecimento de uma relação autêntica.
Há pormenores
que dão um
bem-estar cujo
alcance desconhecemos.
V I S e m I ná r I o d e É t I ca
divulgação��
ordem dos enfermeiros
• Capacidades interpessoais:
– empatia, a capacidade de se colocar no lugar do outro e
de ver o mundo como ele vê;
– receptividade, que passa pelo saber ouvir, ser sensível às
palavras, ao que não se diz, ao peso do sofrimento, aos
desejos e às emoções;
– abertura à experiência do outro, capacidade de escutar e
ser escutado;
– aceitação e consideração pelas vivências.
• Capacidades sociais:
– estar à vontade com os outros;
– estar em harmonia consigo;
– manter diálogo / respeitar os silêncios;
– os silêncios. Os silêncios permitem fazer eco das emoções
que exprimem, perceber o significado que têm para si,
orientar-se a ritmo próprio para a etapa seguinte. Romper
o silêncio é arriscar a interromper um trabalho produtivo
que está a ser feito interiormente.
Nos momentos de grande tristeza, basta garantir a presença
na situação difícil.
Conclusão
Em cuidados paliativos temos a oportunidade de ir para além
dos cuidados técnicos, reencontrando, por vezes, toda a inten-
sidade da relação interpessoal; relação esta que representa um
dos mais belos aspectos da nossa profissão.
Os cuidados paliativos representam uma nova “descoberta”
para aqueles que acreditam na qualidade de vida e na quali-
dade do cuidar. Muitos anos após a criação do primeiro centro
de cuidados paliativos (St. Cristopher’s Hospice), assiste-se a
um crescimento progressivo do interesse por parte dos pro-
fissionais de saúde e do público em geral face às seguintes
questões:
ser urgente fazer qualquer coisa quando já não há mais nada
a fazer;
ajudar a pessoa doente incurável a viver no máximo conforto
físico e psíquico até à sua morte;
•
•
não aceitar a morte como uma falha da medicina, mas sim
como uma lei da natureza.
É essencial que esta tomada de consciência seja seguida de uma
intervenção organizada, eficaz e de qualidade, onde os cuidados
paliativos constituam uma estratégia global para que o doente,
seja qual for o lugar que escolheu para os seus últimos dias,
possa beneficiar de cuidados adaptados ao seu estado.
Bibliografia
ABIVEN, M. – Pour la pratique... on retiendra.... «La Revue du
Praticien». Paris. (Février, 1986) 508-512.
COLLIÈRE, Marie Françoise – Promover a Vida. Lisboa: Sindicato
dos Enfermeiros Portugueses, 1989. 385 pp.
DELISLE, Isabelle – Les Derniers Moments de la Vie. Quebec:
Editions du Renoveau Pédagogique, 1993. 135 pp.
GIACQUINTA, B. – Helping families face the crisis of cancer.
«American Journal of Nursing». 1988.
HERTH, Kaye – Hope in the family caregiver of terminally ill
people. «Journal of Advanced Nursing».18 (1993) 538-548.
KAPLAN, H.; SADOCK, B. – Compêndio de psiquiatria dinâmica.
Porto Alegre: Artes Médicas, 1984. 464 p.
MARIN, I.; HIGGINS, R. W. – L’accompagnement des familles. «La
Revue du Praticien». Paris. (Février, 1986) 486-492.
MONGE, Miguel Ángel – Ética, Salud, Enfermedad. Madrid:
Editiones Palabra S. A., 1991. 280 p.
PACHECO, Francisco – A morte a que chegámos: Algumas
reflexões éticas. Vol. 23. Porto: Divulgação. Jul. 1992. pp.
24-28.
– PARKES, C. M. – Psychologie du mourant. Soins palliatifs
terminaux. Vol. 36. Février 1996. pp. 479-485.
– PINTO, Feytor Pde. – Entre a vida e a morte, a razão da es-
perança. «Servir». Lisboa. 39: 1 (Jan. / Fev. 1991) 8-22.
SIMONTON, Carl [et al.]– Guérir envers et contre tout. Paris:
E.P.I., 1990. 335 pp.
SFAP (Sociedade Francesa de Acompanhamento e de Cuidados
Paliativos) – Desafios da Enfermagem em Cuidados Palia-
tivos. Loures: Lusociência – Edições Técnicas e Científicas
lda., 2000. oe
•
V I S e m I ná r I o d e É t I ca
divulgação ��
ordem dos enfermeiros
Armandina Antunes
Enfermeira Especialista
Enfermeira-chefe do Hospital Santa Marta, Lisboa. Mestre em Ciências de Enfermagem
Sendo a morte algo tão natural quanto a vida, a maioria de nós
foi educado de alguma forma afastado da mesma. Tanto pais
como outros educadores, numa tentativa de protecção, afastam
as crianças e os jovens de situações menos bonitas ou mesmo
penosas, como são as situações de doença e morte.
Se temos certo que tudo o que nasce vem a morrer, também é
quase certo que, actualmente, mais depressa, e naturalmente, se
conversa sobre a concepção da criança que está para nascer do
que se aborda o tema sobre o avô que está perto da morte.
Se estas são as memórias da maioria da população, os enfer-
meiros, fazendo parte desta mesma população, muitas vezes
deparam-se, perto dos 20 anos e em plena formação de enfer-
magem, com a definição de que a morte é “apenas” uma fase
do ciclo vital e que morrer é tão natural quanto nascer. Para
além desta certeza que, afinal, parece que faz pouco sentido se a
ligarmos com a representação anterior da morte, este tema faz
parte do currículo escolar muito em torno da morte biológica,
havendo a noção de que na maioria das vezes pouco se vai para
além desta abordagem.
Ainda a referir que, numa grande parte dos casos, a imagem
que muitas vezes passa é de que a postura mais correcta para
um profissional de enfermagem é a de alguém que “não perde a
compostura”, não demonstra sentimentos. Passa a ideia de que
o enfermeiro é alguém muito “direito, com uma bata imacula-
damente branca” onde a pessoa não é tocada, alimentando-se
a imagem de que a expressão de sentimentos poderá estar
associada a imaturidade.
Assim se vai construindo um enfermeiro cujo objectivo é prestar
cuidados ao indivíduo e à família ao longo do ciclo vital, onde
naturalmente o final de vida constitui um período importante no
acompanhamento da pessoa. Acresce que este acompanhamento
deverá ser realizado com a pessoa e respectiva família que, na
maioria dos casos, estão muito pouco preparadas para esta vi-
vência, o que só aumenta as dificuldades para este cuidado.
Mais atentos a estas situações, verifica-se que, numa atitude
muitas vezes de defesa, se foge das mesmas, quer seja negando
a proximidade da morte da pessoa ou negando para si próprio
que determinado indivíduo morreu, quer seja afastando-se de
um cuidado mais próximo àquele que vive o seu final de vida
e respectiva família.
Assistimos ao longo do século passado, até aos nossos dias, a
um crescendo de situações de morte nos hospitais, longe da
família, afastados do seu meio natural, muitas vezes em grande
solidão, muitas vezes na ilusão de que a família do moribundo
está onde terá tudo o que precisa.
De referir que ainda existe a ideia de que o moribundo deverá
estar num local sossegado e também que os outros doentes
– “companheiros” de quarto – se sentirão incomodados pelo
facto de terem por perto alguém que poderá morrer a qualquer
momento. Daqui resulta que o moribundo é por vezes afastado
Lidar com a morte na equipa de enfermagem
ARQ
UIV
O O
E
V I S e m I ná r I o d e É t I ca
divulgação��
ordem dos enfermeiros
para um quarto onde pode estar mais sossegado, ou simples-
mente colocado atrás de um biombo, resultando que, na maioria
dos casos, a pessoa acaba por viver, talvez o mais importante
momento da sua vida, sozinha.
No que reporta à família e à gestão da situação, importa di-
zer que, aparentemente, tudo está sob controlo quando não
há choro, gritos, expressão de qualquer sentimento, portanto,
espera-se que a família seja informada por alguém que não eu
próprio e, de preferência, que não volte ao serviço.
Entretanto, nas equipas onde, por vezes, se vivenciam estas
situações, pelo menos alguns sentem-no e fazem-no de forma
muito intensa. Não é comum falar desta temática, nem de cada
situação em particular, o que aparentemente seria promotor de
uma gestão mais eficaz das situações.
Após este curto enquadramento ao tema, gostaria de apresentar
alguns resultados de um estudo de investigação feito a partir
dos seguintes pressupostos: (1) duma forma geral, lidamos mal
com as situações de morte; (2) se conseguirmos viver melhor
estas situações, cuidaremos melhor de cada pessoa doente que
está em final de vida e da respectiva família; (3) se conhecermos
como é que os enfermeiros pensam e vivenciam estas situações,
teremos mais ferramentas e mais disponibilidade para apoiar as
equipas num sentido de um menor sofrimento e melhor acom-
panhamento do doente terminal e família.
O estudo intitula-se Vivências da morte – Estudo sobre o nível de
ansiedade e os mecanismos utilizados nas situações de morte de
um doente, tendo sido definas duas variáveis dependentes: (1) a
ansiedade desencadeada pelas situações de morte de um doente
e o acompanhamento dos respectivos familiares, trabalhada
através de metodologia quantitativa e (2) os comportamentos
referidos perante situações de morte: em termos pessoais, pe-
rante a equipa, perante o corpo e perante a família, trabalhada
com metodologia qualitativa.
Foi aplicado um questionário a uma população de 301 enfer-
meiros (todos os enfermeiros da instituição) de um hospital
central, tendo sido devolvidos 161, o que corresponde à nossa
amostra.
Destes, 125 são do sexo feminino (77%) e 36 (23) do masculino,
com idades compreendidas entre 20 e 54 anos, apresentando
uma média de 31,7 anos, moda de 22 anos e desvio padrão de
9,2 anos. Este é um grupo muito jovem – 57% têm menos de 30
anos. Naturalmente e em relação ao tempo de profissão, 50,3%
têm até cinco anos de profissão, sendo a média de oito anos, a
moda de cinco anos e o desvio padrão de nove anos.
Relativamente à avaliação da ansiedade, foram aplicados: (1)
o questionário de auto-avaliação de Spielberger – STAI forma
Y-1, que avalia os níveis de ansiedade-estado e ansiedade-traço
e (2) a escala de auto-avaliação da ansiedade de Zung. Neste
instrumento, era feito apelo à memória, solicitando-se que in-
dicasse como se sente na maioria das vezes em que se depara
com a morte de doentes. Dos resultados, evidencia-se que os
níveis de ansiedade apresentados pela população, em qualquer
das formas de avaliação, situam-se maioritariamente – acima
de 53% – num nível de ansiedade média.
Na continuidade da análise, não foram provadas quaisquer
relações entre a ansiedade e qualquer das características da
população ou vivências anteriores, experiências pessoas ou
profissionais, como a idade e o tempo de profissão, os lutos
pessoais, a prática de religião ou outra.
De referir que o facto do instrumento de colheita de dados ter
sido aplicado fazendo apelo à memória foi considerado uma
limitação importante, sugerindo-se que, com a aplicação do
mesmo instrumento aquando da vivência de morte de um doen-
te e do acompanhamento dos familiares, viéssemos a observar
resultados bem diferentes.
No que respeita à representação da morte para este grupo
de enfermeiros, as suas respostas encerram afirmações que
sugerem a morte como o terminus – fim –, referindo, ainda, os
sentimentos desencadeados e a consideração da morte como
uma etapa do ciclo de vida. No que reporta ao terminus, este é
V I S e m I ná r I o d e É t I ca
divulgação ��
ordem dos enfermeiros
sugerido como fim da vida, de um percurso, muito à semelhança
de um caminho que percorremos e que agora chegou ao fim,
mas também como o fim do sofrimento, ligado naturalmente
às nossas experiências enquanto enfermeiros, que acompanham
pessoas em grande sofrimento.
Relativamente aos sentimentos, estes são de perda, enquanto
privação de alguém de quem se gosta ou simplesmente de uma
pessoa, de dor ou de não-aceitação, enquanto incompreensível,
revolta e sensação de impotência perante o facto. Da mesma
forma, refere Savater, “Fatalmente necessária, perpetuamente
eminente, intimamente intransmissível, solitária… o que sabe-
mos sobre a morte é muito verdadeiro mas não no-la torna
mais familiar nem menos incompreensível”. Qualquer destes
sentimentos, e em conjunto, estão muito associados ao pro-
cesso de luto.
Enquanto etapa do ciclo de vida,
esta foi considerada como algo na-
tural, mesmo como condição essen-
cial e intimamente ligada à vida.
Quando questionamos os enfer-
meiros sobre as suas vivências
de morte em termos pessoais, (o
termo “pessoais” encontrava-se sublinhado), para além dos
familiares e amigos, 19% da população refere-se a doentes
também como perdas pessoais. De salientar que, se por um
lado, constituiu surpresa o facto de se descrever a morte dos
doentes como perdas pessoais, por outro lado, esta referência
pode ser um indicador de existência de relação estreita entre o
prestador e o destinatário dos cuidados. Tal suposição conduzirá
a sentir a morte do doente de uma forma um tanto inadequada
– ou seja, não consideramos como objectivo do Cuidar que o
envolvimento com os doentes seja de um nível transpessoal que
leve a considerar a sua morte como perda pessoal.
Quando questionados sobre o que pensa / sente perante o
corpo do doente, exprimem maioritariamente expressões de
perda, referindo-se às dificuldades sentidas e a sentimentos de
compaixão, sofrimento, tristeza e vazio. No que respeita a pen-
samentos, fazem-no acima de tudo no falecido, nomeadamente
nas suas vivências e tipo de vida que terá tido, mas também
na sua própria morte e na dos familiares, tal como é esperado
por qualquer revisão da literatura – a vivência da morte faz-nos
pensar na nossa própria morte, mas também nos traz à memória
aqueles que perdemos.
Perante a família, os enfermeiros designam em primeiro lugar
expressões de não-aceitação, onde a dificuldade é a palavra-
-chave, tanto no que se refere à informação como ao apoio
devido. Referem-se ainda ao respeito, tanto em relação à crise
que aquela família está a viver, como ao respeito por qualquer
demonstração de dor, como choro, gritos ou outros. Ainda nas
afirmações mais referidas, encontramos as que têm a ver com
constrangimento, pesar e pena, o
que nos encaminha para a esfera da
compaixão, do cuidar compassivo.
No que reporta ao que sente /
pensa em termos pessoais, à seme-
lhança das anteriores, referem-se
maioritariamente a sentimentos
de tristeza pela perda presente, de
impotência perante o inevitável,
de frustração por não se ter conseguido atingir o objectivo. É
comum os profissionais de saúde (Kubler-Ross, 1998) encararem
a morte como o fracasso dos seus esforços e, de certa forma,
da sua missão.
Na categoria sentimentos, relatam ainda o respeito pelo mo-
mento, mas também pela pessoa. Referindo-se a pensamentos,
descrevem afirmações que sugerem ser o melhor para o doente
e ter-se cumprido a missão, numa tentativa de racionalização
do sucedido, permitindo, assim, algum distanciamento, mas
também de um balanço que, associado ao sentimento de impo-
tência, poderá ser desculpabilizador. Por outro lado, também se
pensa nas vivências do doente, aparentemente numa tentativa
de realização de um balanço de vida (neste caso do outro), mas
que não surpreende nestas situações.
...a vivência da morte faz-nos
pensar na nossa própria morte,
mas também nos traz à memória
aqueles que perdemos.
V I S e m I ná r I o d e É t I ca
divulgação�0
ordem dos enfermeiros
Perante a equipa, os enfermeiros referem sentir frustração e
tristeza, descrevendo afirmações onde clarificam que não tive-
ram capacidade para resolver a situação. Por outro lado, pensam
que também surgiu o fim do sofrimento para aquela pessoa,
pensando assim na morte como algo positivo.
Questionados sobre que factores interferem com o seu com-
portamento e de que forma o influenciam, dos relacionados
com o doente referem que a presença de sofrimento dificulta
o lidar com a situação de acompanhamento de alguém que
está a sofrer, mas também facilita a aceitação da morte por
pôr cobro a esse sofrimento. Em relação à idade, a morte de
uma criança, de um jovem ou adulto jovem, por serem sentidas
como perdas antes do tempo, são tidas como dificultadoras,
tanto para lidar com a situação como para aceitar a morte.
Por outro lado, a morte de alguém mais velho, dado este ser
considerado um estado de simpatia para a morte, facilita a
aceitação da mesma.
Dos factores relacionados com a família, a não-aceitação da
morte por parte destes naturalmente dificulta o lidar com a
situação. O facto de a família ter conhecimento anterior da
situação facilita a sua abordagem e gestão da mesma. Por
contraponto, o facto de não ter conhecimento anterior difi-
culta o lidar com a situação. Referem ainda que a existência
de relação anterior com os familiares foi entendida tanto
como facilitadora, permitindo utilizar ferramentas que advêm
do conhecimento da pessoa e família, assim como, em outras
situações, como dificultadora, pelo envolvimento com a família,
passando a ideia de um sofrimento conjunto.
No que respeita a factores relacionados com o próprio, à ca-
beça surgem afirmações que se referem a convicções pessoais
– aceitação ou não da morte –, assim como a formação tanto
pessoal como profissional, no sentido de se considerar que a
sua falta condiciona a dificuldade de lidar com as situações
de morte dos doentes. Também referidas são as vivências,
enquanto experiências pessoais e profissionais, assumindo-se
como uma necessidade o experimentar e a noção de se aprender
com a vivência e reflexão do vivido.
Dos factores relacionados com a equipa, estes enfermeiros refe-
rem, em primeiro lugar, o apoio dos colegas como facilitador para
lidar com a situação. Sendo os que estão mais próximos, melhor
compreenderão a situação, tal como refere um dos colegas: “Penso
que o diálogo com os elementos da equipa que vivem a “ocorrên-
cia” da morte de um doente é a forma mais “fácil” de cada um
libertar de si todos os medos, receios, todas as angústias e dúvidas
acerca da sua postura perante a morte do doente”. Por oposição, a
falta de apoio dos colegas e também a fuga da equipa ao assunto,
seja não se falando do mesmo ou fazendo “brincadeiras” em torno
deste, tornam mais difícil lidar com a situação.
Outro grupo de questões colocadas à população em estudo
diz respeito aos comportamentos adoptados. Assim, perante
o corpo, referem-se mais vezes ao respeito enquanto atitude,
seguindo-se de preparar o corpo, quer em relação ao aspecto
meramente instrumental – preparar o corpo; cumprir as normas
– até ao cuidado último àquela pessoa que também, nalgumas
situações, assume um valor primordial do cuidar. De acordo com
Hennezel (1999), os cuidados ao corpo – que incluem a prepara-
ção da múmia e a apresentação do corpo – têm relevo particular
para os profissionais: “têm um cuidado especial na preparação
do corpo e no tentar restituir à pessoa, que cuidaram com todo
o carinho e respeito de que são capazes, uma aparência tão
bela quanto possível”. O rito dos últimos cuidados constitui a
ocasião de prestar uma derradeira homenagem. Também foram
referidos comportamentos de afastamento, no sentido de se
entender que aquele corpo já não é a pessoa. Referem ainda
que perante o corpo rezam, quer seja em benefício do doente,
quer da família.
Dos comportamentos perante a família sobressai o apoiar,
enquanto o estabelecer de relação, permitindo perceber quais
as necessidades e responder em consonância. Bastante referida
é também a fuga, tentando que seja outro a ir falar com a fa-
mília, refugiando-se em “desculpas” como a carga de trabalho,
as funções etc., mas, acima de tudo, evitando o contacto com
a família. Perante esta, outro aspecto considerado reporta ao
esclarecimento, quer seja em relação à notícia da morte, quer
aos procedimentos a efectuar, que para a maioria das pessoas,
V I S e m I ná r I o d e É t I ca
divulgação ��
ordem dos enfermeiros
nesse momento, são de grande complexidade. Ainda referida é
a demonstração de disponibilidade, no sentido do “estar com”.
Menos, mas ainda assim descrito, foi o proporcionar despedida
que, não sendo muito comum nas instituições hospitalares,
assume uma importância maior para a família, nomeadamente
na concretização da notícia da morte.
Em termos pessoais, os comportamentos mais referenciados têm
a ver com afastamento, quer no sentido do não envolvimento
– esta situação não é comigo –, quer esquecendo rapidamente
– não pensar no assunto. Associado a uma ideia do que é es-
perado do profissional, bastante referenciado é o autocontrolo,
mantendo a calma, e o agir com firmeza. Como é entendido por
Gameiro (1999) o autocontrolo corresponde à “capacidade de
a pessoa actuar no sentido de minimizar o impacto do aconte-
cimento stressante, reduzindo a sua intensidade ou diminuindo
a sua duração”. Referem ainda que há que encarar a situação
como natural, muito ligado à sensação de inevitabilidade do
acontecimento.
Dos comportamentos perante a equipa, referem–se ao apoio
através da discussão do assunto ou simplesmente dando apoio.
Na continuidade das respostas anteriores, mantém-se a ideia
do profissionalismo enquanto autocontrolo, claramente numa
tentativa de racionalização e afastamento da mesma, seguido
do evitamento do assunto e da importância de não demonstrar
sentimentos. A relação entre autocontrolo e não demonstrar
sentimentos faz-nos ressaltar o contraste com a perspectiva de
Lazure (1994), na construção da relação de ajuda – em que uma
das capacidades é a congruência (“ao progredir na expressão da
sua congruência, a enfermeira permite-se, cada vez mais, ser ver-
dadeiramente ela própria, isto é, viver e exprimir os seus próprios
sentimentos através da comunicação verbal e não verbal”).
Quando convidados a apresentar sugestões sobre actividades a
desenvolver para melhor lidar com a morte, surge inicialmente
a ideia da necessidade de incremento da formação, sugerindo
que deveria ser feita mais, em quantidade, mas também com
recurso a metodologias activas. Por outro lado, é sugerido o apoio
especializado, nomeadamente integrando psicólogos durante as
discussões em equipa, que constituem outras das actividades
sentidas como úteis. Referem ainda como importante reforçar o
apoio da equipa, promovendo a entreajuda enquanto expectativa
e, simultaneamente, uma obrigação solidária. Alguns enfermeiros
consideram que a gestão destas situações se fará, acima de tudo,
trilhando um caminho individual, recusando que qualquer apoio
/ ajuda externos venham a melhorar a forma como se lida com
a morte dos doentes.
Da experiência e das reflexões realizadas, acrescentaria que
muito temos caminhado, mas existe ainda um longo caminho
no sentido de melhor gerir os nossos sentimentos, por forma a
que o acompanhamento destes doentes e destas famílias seja
aquele que desejamos. Como nota final, gostaria ainda de deixar
outra reflexão. Na maioria dos nossos contextos hospitalares,
estamos aparentemente muito formatados para nos sentirmos
gratificados com as recuperações espectaculares, às vezes quase
“milagrosas”, a que assistimos e que a técnica proporciona.
Estas situações são faladas, divulgadas, amiúde até à exaustão.
Por outro lado, o acompanhamento de uma pessoa à qual foi
proporcionado o apoio devido, com a qual estivemos prestando
os cuidados que necessitavam, também nos gratifica. Atrevo-me
a questionar se estas experiências não poderiam, ou deveriam,
ser igualmente divulgadas, faladas em todas as reuniões, até no
sentido de “aprendermos” a sentir-nos mais gratificados, con-
trariando os sentimentos de frustração tantas vezes referidos
quando um doente morre. Fica o desafio. oe
ARQ
UIV
O O
E
V I S e m I ná r I o d e É t I ca
divulgação��
ordem dos enfermeiros
Aaldert Mellema*
Enfermeiro
Em primeiro lugar, deixem-me transmitir-vos as saudações que
trago da Holanda e agradecer à Ordem dos Enfermeiros o convite
para discutir as questões da eutanásia, que tantos problemas
levanta aos enfermeiros holandeses.
A minha apresentação divide-se em três partes: na primeira,
debruçar-me-ei sobre as questões que envolvem o fim de vida;
na segunda, abordarei a problemática da eutanásia e, na última,
falar-vos-ei sobre um estudo importante, feito na Holanda, sobre
o que pensam os enfermeiros da eutanásia.
Antes de avançar, é importante referir que, na Holanda, aceitamos,
há já muitos anos, que a eutanásia é uma realidade a encarar de
frente. Decidimos, por esta razão, que deveríamos ter uma posição
oficial legal sobre a questão e não apenas uma posição moral. Na
Holanda, pensamos assim: se algo realmente existe, temos de fazer
o possível para que exista de forma legal e temos de agir com o
máximo de cuidado para que tudo ocorra da melhor forma possível.
Não é portanto mais que uma questão de encarar a realidade.
Considera-se que a eutanásia é um assunto entre o doente e o
médico. Mas se os enfermeiros se envolvem de qualquer forma
nesta decisão, este envolvimento deve também ocorrer de uma
forma legal. Esta é uma base muito importante da discussão sobre
o assunto. Devo dizer-vos que, de acordo com os resultados da
grande investigação que fizemos o ano passado sobre o papel dos
enfermeiros nas questões do fim de vida, os enfermeiros não se
sentiam confortáveis com o papel que lhes estava reservado nesta
problemática que junta enfermeiros e doentes.
Não vou aborrecer-vos com os pormenores técnicos da investi-
gação. Basta dizer-vos que esta investigação foi encomendada
pelo governo e foi o resultado de pressões feitas pela minha
associação e por outra associação de profissionais da saúde.
Vou tentar dizer-vos muito brevemente qual é a história da
questão.
Conhecia-se um caso ocorrido no norte da Holanda, em 1973:
um médico de clínica geral praticou eutanásia com a sua própria
mãe de 95 anos que se encontrava em estado terminal. Depois
de o fazer, dirigiu-se à polícia para contar o que se passara. Claro
que a história se tornou depois num grande caso de tribunal,
captando a atenção mundial. Tudo isto se passou há mais de
30 anos. O médico de clínica geral foi absolvido, mas, em resul-
tado deste caso, um conjunto de pessoas muito importantes e
proeminentes na sociedade holandesa criou um grupo de luta
pela legalização da eutanásia.
A partir de então, este grupo tornou-se muito influente em todas
as decisões acerca da eutanásia. Provavelmente não ficarão sur-
preendidos se eu vos disser que não há enfermeiros envolvidos
neste grupo e que continuamos a tentar lidar com este facto.
Foi depois proposta uma lei sobre a eutanásia no parlamento e
as posições sobre o assunto chegavam à Assembleia da República
de cada vez que um caso era julgado em tribunal, de cada vez
que um profissional da saúde era absolvido.
o papel dos enfermeiros nas decisões de fim de vida
ARQ
UIV
O O
E
* Delegado internacional da organização de enfermeiros holandesa NU'91.
V I S e m I ná r I o d e É t I ca
divulgação ��
ordem dos enfermeiros
Estas questões foram debatidas a propósito de uma espécie de
referendo acerca das regras de cuidado que deviam ser tidas
em conta e deveriam ser muito rigorosas. Durante os anos
80, esta foi a discussão dominante. Como todos se lembrarão,
os anos 80 foram também marcados na Holanda pelo auge
da crise provocada pela sida. Nesta década foram discutidos,
portanto, muitos casos de eutanásia, sendo um dos critérios
apontados em defesa da mesma o facto de haver um sofri-
mento insuportável e sem fim previsível. A meio dos anos 90,
este critério foi alargado para incluir também o sofrimento
mental e esta foi uma alteração revolucionária. Um dos casos
famosos foi o de uma mãe que depois de perder os três filhos
ficou tão depressiva que solicitou a eutanásia. Eu imagino
que todos consigam fazer uma ideia do debate público que
se seguiu a este caso, na Holanda. Mas o sofrimento mental
insuportável – seja isso o que for – foi incluído nesta emenda
à lei e temos, desde 2001, uma lei formal sobre a eutanásia na
Holanda. Creio que fomos os primeiros do mundo a ter uma lei
sobre este acto e, durante todo o processo que a ela conduziu
, tivemos muito em atenção o que desejávamos, mas também
o que não desejávamos.
Há três partes nesta lei, incidindo uma delas sobre a existência
de um conselho regulador dos procedimentos e das formas de
actuação na eutanásia. Existem regulamentos muito rigorosos
para os médicos mas não existem regulamentos para os enfer-
meiros, uma vez que formalmente estes não eram envolvidos
no acto. Embora se considerasse ser esta uma questão que dizia
apenas respeito aos médicos e aos doentes, a realidade pro-
fissional era muito diferente. Se os enfermeiros não estavam
envolvidos no processo, estavam frequentemente muito pró-
ximos. Sobre regulamentos falarei um pouco mais adiante.
Claro que atraímos muita atenção internacional, especialmente
a da Itália e a da imprensa do Vaticano Esta chegou a falar de
práticas nazis na Holanda, o que não estimulou a compreen-
são mútua. Mas atraímos também a atenção moderadamente
positiva da Alemanha e da Bélgica. Na verdade, cerca de um
ano e meio depois, também a Bélgica se viu dotada de uma
lei sobre a eutanásia.
As reacções dos Estados Unidos e da Inglaterra (Reino Unido)
foram mistas. Mas em especial a do Reino Unido foi curiosa: além
de comentarem a questão, deram-nos uma espécie de conselho
segundo o qual deveríamos dedicar-nos mais aos cuidados pa-
liativos antes de nos virarmos para a eutanásia. Disseram-nos
que deveríamos expandir o conceito dos cuidados paliativos e
isto foi uma coisa que a associação de enfermeiros levou muito
a sério.
A eutanásia foi uma das razões de a Holanda não ter uma ima-
gem internacional muito positiva. Primeiro, foi a posição muito
leniente relativamente a drogas leves, depois a Holanda passou
a ser o país onde se praticava a eutanásia. Esta imagem não nos
impediu, no entanto, de seguir a realidade e acompanharmos a
parte diária.
Quando abordamos este assunto, confundimos frequentemente
duas questões diferentes: a eutanásia, que implica causar o fim
da vida com recurso a medicação; e o suicídio assistido, isto é,
a ajuda dada a um doente no sentido de este terminar a sua
própria vida. Existe, por outro lado, uma área cinzenta, que todos
conhecem através da prática profissional, provavelmente tão bem
quanto eu, que a conheci durante a minha prática de cuidados
intensivos. Refiro-me à administração de terapêutica analgésica
com o intuito de apressar o fim da vida. Não estou certo de já
terem falado sobre esta área cinzenta, como eu lhe chamo, mas A
RQU
IVO
OE
V I S e m I ná r I o d e É t I ca
divulgação��
ordem dos enfermeiros
esta é uma área que causa muito descontentamento na nossa
comunidade de enfermeiros, na Holanda.
Como enfermeiros, têm de estar muito certos do que estão exac-
tamente a fazer. Devo dizer que encontrámos algumas surpresas
na investigação que fizemos.
Alguns aspectos são muito óbvios. Por exemplo, ninguém tem
dúvidas de que o processo tem de ser voluntário, de que, mesmo
havendo mais pessoas envolvidas, só o médico pode praticar a
eutanásia. Por outro lado, o doente tem de estar consciente e,
portanto, tem de estar a sofrer uma dor insuportável. Têm de
lhe ser dadas alternativas e o doente tem de tomar uma decisão
por si próprio.
Esta é uma questão muito controversa: o
que é realmente uma dor insuportável? O
mesmo acontece em relação aos cuidados
paliativos, pois como se define claramente
o que são cuidados paliativos? Como se
define o sofrimento sem previsão de fim,
sem esperança? O que significa isto para
um bebé? O que poderá ser um deficiente profundo? É por esta
razão que, mesmo existindo regulamentos, há muitos aspectos
que têm de ser discutidos e que têm de ser avaliados. Muitos des-
tes aspectos estão dentro do âmbito de competências próprias
dos enfermeiros porque, enquanto “advogados” dos doentes, os
enfermeiros podem explicar-lhes aquilo que se passa e aquilo
em que vão ser envolvidos.
Os regulamentos que mencionei incluem, por exemplo, doentes
que sofrem de Alzheimer, crianças e pessoas com deficiência
mental. É por esta razão que mesmo aqueles que são a favor de
uma lei da eutanásia muito aberta não estão satisfeitos com a
lei existente, pois há muitas situações que ficam fora do âmbito
da mesma.
A questão central é, portanto, qual o papel desempenhado pelos
enfermeiros nas decisões sobre o fim da vida, sobre a respectiva
implementação nos hospitais, em lares da terceira idade e nos
locais onde se prestam cuidados de saúde primários. Alguns dos
resultados são muito óbvios, mas outros são surpreendentes.
Como poderão ler, na maior parte dos casos, o enfermeiro não
é a primeira pessoa a quem o doente recorre. A pessoa a quem o
doente se dirige para solicitar a eutanásia é o médico. Nos lares
da terceira idade e nos hospitais, há geralmente uma consulta
mútua – os enfermeiros e os médicos falam acerca dos casos
que têm entre mãos.
Nos locais onde se prestam cuidados de saúde primários, que são
também os locais onde ocorre o maior número de pedidos de
eutanásia, a equipa é consultada em menos de 50% dos casos,
ou seja, esta prática é muito menos frequente. As questões mo-
rais foram levantadas e os enfermeiros mostraram-se mais per-
turbados por não concederem o desejo
de eutanásia do que pelo facto de este
desejo ser manifestado. Esta constatação
surpreendeu-nos muito, porque não fazia
parte da actividade profissional que nós
conhecíamos.
Mesmo na Holanda, a eutanásia não é um
direito legal do doente. O doente nunca pode forçar um médico
ou um enfermeiro a intervir em resposta a um pedido de eu-
tanásia. É concedido o desejo ao doente por alguém que esteja
disposto a fazê-lo, mas de acordo com as regras existentes. Numa
certa percentagem de situações, os enfermeiros administram os
medicamentos com vista à prática da eutanásia e, nestes casos,
eles são legalmente responsáveis pelo acto.
Consideramos esta percentagem – 12 por cento, se não estou em
erro – demasiado chocante, pois se um enfermeiro for submetido
a lei penal, ele ou ela serão condenados por não disporem de
uma base legal para o fazerem.
Que pensam então os enfermeiros? De acordo com a nossa in-
vestigação, a maior parte dos enfermeiros pensa que a consulta à
equipa não é necessária. Trata-se de um resultado surpreendente,
tanto mais que a investigação que fizemos envolveu um grande
número de enfermeiros. Ora, nós partimos do princípio de que
Como se define o sofrimento
sem previsão de fim,
sem esperança?
V I S e m I ná r I o d e É t I ca
divulgação ��
os enfermeiros querem ser sempre consultados e, na verdade,
mais de 50% dos enfermeiros interrogados não quer.
Do grupo de enfermeiros abrangido pelo estudo, 12% admitiu
ter praticado eutanásia e 13,15% respondeu que a eutanásia
devia ser tarefa dos enfermeiros. A maioria entende que as
acções preparatórias não fazem parte das intervenções dos
enfermeiros, nem a preparação da seringa (54,1%) nem a pre-
paração da própria eutanásia. Uma minoria (45%) respondeu
que os enfermeiros deveriam fazer parte do comité nacional
de controlo dos procedimentos da eutanásia. Muitos afirmam
que, quando a enfermeira prepara e administra, a responsa-
bilidade é do médico. Percebemos assim que os enfermeiros
têm insuficiente conhecimento das leis e do sistema legal, das
orientações e das directivas institucionais relativas à eutanásia.
Percebemos também que nem sempre os médicos e os enfer-
meiros trabalham juntos.
Os doentes, por vezes, pressionam os médicos a agir, facto que
os enfermeiros consideram problemático. Tem-se a noção de que
os cuidados à família e aos amigos podem ser melhores.
De entre as conclusões, destaca-se a de que num em cada cinco
casos, os enfermeiros não concordam com a decisão do médico
em acelerar o fim da vida. A comunicação sobre as decisões
quanto ao fim da vida parece também insuficiente. As directivas
e protocolos sobre cuidados paliativos são igualmente insuficien-
temente desenvolvidos, o que causa opacidade relativamente à
medicação.
Recomendou-se que fossem clarificados critérios e protocolos e
que ficassem mais demarcadas as actividades dos enfermeiros.
Parece importante desenvolver a comunicação entre todos os
profissionais e aumentar os conhecimentos relativos a aspec-
tos legais, às directivas das instituições e aos actos e sistema
legais.
Involuntariamente, os enfermeiros estão envolvidos e podem
sempre recusar tomar parte na eutanásia. Mas têm de estar
informados sobre o procedimento e têm de estar envolvidos nos
processos de tomada de decisão. Não há, ainda assim, garantias
formais para os enfermeiros. Se o médico agir irresponsavel-
mente, os enfermeiros têm de dar conhecimento.
Não se trata de tomar posições pessoais sobre a eutanásia mas de
monitorizar o processo, atendendo ao papel e ao envolvimento
dos enfermeiros.
Foi igualmente recomendado que o governo procedesse a um
enquadramento legal, na convicção de que os enfermeiros têm
de estar legalmente protegidos quando estão envolvidos nos
procedimentos. É relativamente a este aspecto que a organi-
zação profissional tem de agir, de tomar posição. Também na
Holanda! oe
ordem dos enfermeiros
ARQ
UIV
O O
E
V I S e m I ná r I o d e É t I ca
divulgação��
ordem dos enfermeiros
Delfim Oliveira
Presidente do Conselho de Enfermagem
Começo por felicitar todos, sem excepção, pelas excelentes apre-
sentações, que nos permitem reflectir sobre o que fazemos, o que
não fazemos e o que no futuro deveríamos ser capazes de fazer
pela, e com a, pessoa em fase final de vida.
É-nos reservado pouco tempo para os comentários, o que nos im-
pede de fazermos uma apreciação de cada uma das intervenções.
Vou, portanto, deixar o comentário da apresentação do colega ho-
landês Aaldert Mellema para a Senhora Enfermeira Lucília Nunes, na
qualidade de presidente do Conselho Jurisdicional, reservando-me
para o eventual debate. É evidente que a problemática da morte,
que aqui quisemos, e muito bem, chamar de final de vida, não é
uma questão arrumada. É, pelo contrário, uma preocupação dos
enfermeiros, confirmada pelo elevado número de participantes.
Tal como afirmou o colega Noberto, há dificuldade em falar da
morte ou do final de vida – oculta-se, não se pensa nela. Esta
dificuldade é transversal à nossa sociedade, que só muito recen-
temente se abriu mais à discussão desta matéria. Mas a morte é
ainda uma questão tabu.
Somos o resultado desta educação, culturalmente validada, que
influencia a pessoa-enfermeiro. Por razões várias, entre as quais o
contexto cultural, uma socialização profissional marcada por uma
cultura biomédica, em que a morte significava o insucesso e, ainda,
o modelo organizacional vigente cujo centro foi, e ainda é nalguns
casos, a própria organização e não a pessoa-cidadão, tem sido difícil
aos enfermeiros dar o salto qualitativo, desejável e coerente com
o nosso mandato social, decorrente do Código Deontológico e que
aqui já nos foi recordado através da citação do Artigo 87.
Na sua intervenção, desafia-nos, individualmente e colectivamente,
pelas três questões iniciais que coloca: o que resta fazer quando
nada mais há a fazer? O que muda? Em que sentido há que redefinir
condutas e posições nestes momentos difíceis em que profissionais
de saúde, doentes e famílias se enfrentam esta realidade?
Os cuidados de enfermagem tomam por foco de atenção a pro-
moção dos projectos de saúde que cada pessoa vive e persegue,
do qual faz parte a fase final de vida. A boa prática de enfermagem
assenta no mais completo respeito pelos valores, costumes, pelas
religiões e todos os demais princípios previstos no código deonto-
lógico, particularmente na assistência às pessoas em fase final de
vida e respectivas famílias. Os enfermeiros têm presente que “bons
cuidados” significam coisas diferentes para diferentes pessoas, pelo
que se requer sensibilidade para lidar com estas diferenças, perse-
guindo-se os mais elevados níveis de satisfação dos assistidos.
Temos, contudo, vindo a evoluir paulatinamente no sentido da
mudança desejada. Abandonaram-se os quartos de isolamento
dos moribundos, mas falta ainda criar as condições para dar
dignidade ao momento final de vida, que ocorre cada vez mais
nas instituições (hospitais). Há que permitir a presença dos
conviventes significativos, que são também alvo dos nossos
cuidados.
cuidado no final de vida*– comentário de delfim oliveira
ARQ
UIV
O O
E
* A escassez de tempo disponível condicionou o comentário proferido na ocasião. Este texto reflecte a natureza original do comentário que estava previsto ser apre-sentado.
V I S e m I ná r I o d e É t I ca
divulgação ��
ordem dos enfermeiros
A colega Lurdes Martins, que abordou o tema dos cuidados pa-
liativos, referiu que o grande objectivo dos cuidados paliativos é
“proporcionar um bem-estar físico e serenidade para o doente
bem morrer”. Tal como o colega anterior, acentua a necessidade
de uma formação especial, reconhecendo como insuficiente a
que é ensinada na formação inicial.
Não poderia estar mais de acordo com a sua afirmação. Saliento
mesmo o que ela própria expressou: o doente é o grande mestre.
A verdadeira formação faz-se a partir dos contextos, preferen-
cialmente se as questões forem problematizadas e reflectidas
no seio da equipa. É este o palco privilegiado para aquisição
das competências necessárias para assistir estes doentes, até
porque cada caso é um caso.
O doente em fase final de vida (“doente terminal” – con-
forme está expresso no nosso código) e a respectiva família
têm necessidades acrescidas. Pela sua vulnerabilidade, ne-
cessitam de que os enfermeiros advoguem os seus direitos
e procurem assegurar a sua satisfação em relação ao seu
projecto de saúde. Para isso, é preciso conhecê-los, saber
como o vivenciam.
Cuidar da família faz parte integrante dos cuidados à pessoa
que está a morrer. Não pode haver “bons cuidados” sem a in-
clusão da família em todo este processo, porque o doente não
existe isoladamente.
Estas pessoas têm necessidades especiais e particulares. Pode
estar calmo, orientado e capaz de participar nas decisões e
no planeamento dos cuidados, ou, pelo contrário, pode estar
com dores, ter medo, ser incapaz de comunicar, pelas vias nor-
mais. Em qualquer caso, têm necessidades sociais, espirituais
e religiosas. Isto assume particular importância nesta fase da
vida, sobretudo quando a morte é entendida como mais um
momento de passagem.
Há sempre mais alguma coisa a fazer quando julgamos que está
tudo feito se respondermos à pergunta o que é que eu posso
fazer por si?...
Uma vez questionei-me acerca do que podia fazer por um do-
ente, meu conhecido, que viveu no hospital os últimos dias da
sua vida. Ocorreu-me logo “o que é que tu gostarias de fazer?
A resposta logo se fez ouvir “Gostava de ir ao cinema!”.“Que
tipo de filmes gostavas de ver?”, perguntei. “Filmes de guerra”,
respondeu.
Pudemos melhorar a sua qualidade de vida apenas com um
computador portátil e alguns DVD. Mais: na primeira sessão,
levamos uns chocolatinhos e gelados de miniatura, alegando que
substituíam as pipocas, o que permitiu que ingerisse algumas
calorias. O que foi importante porque como vomitava constan-
temente, não tinha vontade de se alimentar.
Desde essa altura que o recurso a um data show e a um portátil
são hipótese para ajudar a diminuir o isolamento e contribuir
para a satisfação de necessidades sociais e espirituais, que no
hospital pareciam difíceis de realizar. Afinal, é possível fazer me-
lhor. Não impedimos o desenlace, mas, certamente, oferecemos
mais qualidade vida.
É a vivência destas situações que vão determinar a opção
estratégia, os recursos a mobilizar na relação terapêutica, “a
nova descoberta” à qual se referia a colega, num processo de
formação permanente. O enfermeiro distingue-se pela forma-
ção e experiência que lhe permite compreender e respeitar os
outros. Procura abster-se de juízos de valor relativamente à
pessoa cliente dos cuidados de enfermagem.
A nossa colega Armandina Antunes começa por nos relembrar
que cada vez mais se morre no hospital e que os enfermeiros
ainda não lidam bem com as situações de morte. Deu-nos a
conhecer um estudo em que se media o nível de ansiedade dos
enfermeiros e analisava os respectivos comportamentos.
É de salientar que o seu estudo reafirma a ideia que os enfermei-
ros não são imunes à perda e ao luto. Necessitam tomar cons-
ciência disto e permitir a si próprios a oportunidade de “sofrer”
compreendendo melhor para ser capaz de prestar cuidados ao
doente e pessoas significativas, mantendo-se saudável.
V I S e m I ná r I o d e É t I ca
divulgação��
ordem dos enfermeiros
Para os jovens enfermeiros, estas vivências necessitam, certa-
mente, de ser discutidas com colegas mais experientes, com
a equipa de saúde, eventualmente até com um psicólogo, ou
mesmo um sacerdote. Mas os colegas mais velhos também não
são imunes. Porque viveram, ou estão a viver, a morte dos seus
familiares, pais, cônjuges… precisam também de ser ajudados,
para serem capazes de cuidar com o mínimo de sofrimento e
não responder fugindo ou negligenciando os cuidados, como
uma forma de defesa.
Há, ainda, outra história que gostaria de relatar, de uma doente
que padecia de uma doença do neurónio motor (Esclerose
Lateral Amiotrófica – ELA). Era uma doente que dependia de
suporte ventilatório que, mantendo íntegras a sensibilidade e
a consciências, não conseguia sequer deglutir a própria saliva.
Estava completamente dependente no plano físico, mas possuía
vontade e desejos de natureza individuais marcados.
Consciente da sua doença, não raras vezes verbalizou a sua
vontade de morrer. Passou por uma fase em que recusava os
tratamentos mais invasivos e medicamente recomendados
(por exemplo, cateter central, traqueotomia). Foi uma doente
que a todos marcou, mas também ajudou muito a reflectir e a
aprofundar a verdadeira natureza dos cuidados de enfermagem,
quer de manutenção e suporte, quer de compensação ou mesmo
estimulação. Provocou muito choro, muito desespero por não
sabermos como responder à sua situação singular, mas abriu
horizontes e gerou novas formas de cuidar.
Tudo começou com seu primeiro internamento, quando ainda se
deslocava numa cadeira de rodas, e foi estimulada a participar
numa festa para os doentes. Um simples pedido de um lápis
“para fazer um risco nos olhos” colocou-nos pela frente um
enorme desafio. Como fazer entender a equipa da necessidade
de entender a individualização dos cuidados?
De acordo com o nosso quadro conceptual, cada pessoa procura
o equilíbrio em cada momento, de acordo com os desafios que
cada situação lhe coloca. E cada pessoa deseja atingir o estado
de equilíbrio que se procura no controlo do sofrimento, no bem-
-estar físico e no conforto psicológico, emocional e espiritual.
Então, como fazer com que as intervenções de enfermagem
sejam individualizadas para uma pessoa, valorizando, em par-
ticular, os cuidados de manutenção do conforto, bem como
preservando a sua dignidade?
Esta doente 'viveu connosco' um ano e meio. Celebrou as bo-
das de prata do seu casamento, festejou o seu aniversário e
acompanhou os momentos particulares da sua própria família
e dos seus amigos. Foi homenageada, pela sua obra social, pela
sociedade civil, e ainda foi capaz de doar o seu corpo, num gesto
filantrópico pouco comum, sem poder falar ou escrever, socor-
rendo-se de um enfermeiro para, na sua presença, comunicar a
sua decisão à equipa, à família e às autoridades, apenas com o
movimento dos olhos. Após a sua morte, é a família que solicita
à equipa de enfermagem que a vá maquilhar, à semelhança do
que quotidianamente faziam, ao longo deste ano e meio, depois
de não ter sido compreendido o mesmo pedido que havia sido
feito no seu primeiro internamento.
A morte inesperada é um acontecimento diário num serviço de
urgência, não raras vezes violento, cujas imagens e cujos relatos
de experiências vividas pelo colega António Manuel tão bem
ilustram. Não deixa de ser inquietante a forma brutal como é
ARQ
UIV
O O
E
V I S e m I ná r I o d e É t I ca
divulgação ��
ordem dos enfermeiros
vivida a morte nos serviços de urgência, por todos os actores
doentes, pelas famílias e pelos profissionais.
Ainda não há qualquer tipo de referenciação destas situações
para os centros de saúde, mas acredito que um dia os enfer-
meiros de família vão ser informados da morte de um membro
dessa família, para que possam acompanhar o processo de luto
evitando que este se transforme num processo de luto patológico
dos restantes familiares.
Contudo, é necessário agir para que se inicie um processo de luto
“normal”, já que a sua duração não é previsível no tempo, criando
as condições mínimas para tal. Neste sentido, deve garantir-se
a informação precisa e sincera às questões que a família coloca,
sobretudo se o doente está a ser reanimado ou foi para o bloco
fazer uma cirurgia.
Neste sentido, embora tenha feito referências apenas a reali-
dades internacionais, o que impede hoje os enfermeiros portu-
gueses de permitir, que os familiares ou pessoas significativas
se despeçam do corpo (para a família é sempre o pai a mãe, o
Ricardo ou a Joana, e não o corpo ou o cadáver, como por vezes
ainda se ouve) e perceber a dura realidade da morte? Numa
época onde já foram demonstrados os benefícios significativos
no processo do luto dos pais a quem foi permitido pegar ao colo
no corpo do seu filho morto! A entrega dos pertences, os objectos
pessoais do falecido, tais como, a aliança de casamento, chupeta
da criança ou algo que seja significativo, é um gesto que deve
ser instituído como uma boa prática.
Por último e porque julgo fazer todo o sentido para a enferma-
gem portuguesa deixo-vos com a Carta dos Direitos da Pessoa
Moribunda.
Tenho direito a ser tratado como um ser humano, até à hora da minha morte.
Tenho direito à esperança, independentemente de qual possa ser a sua direcção.
Tenho direito a ser cuidado por todos os que consigam manter um sentido de esperança, independentemente de qualquer
mudança que surja.
Tenho direito a expressar, à minha maneira, os meus sentimentos e emoções acerca da minha morte.
Tenho direito a participar nas decisões que digam respeito aos meus cuidados.
Tenho direito a esperar por um atendimento médico e de enfermagem continuados mesmo que os objectivos de “cura”
tenham que ser mudados para objectivos de “conforto”.
Tenho direito a não morrer sozinho.
Tenho direito a não ter dores.
Tenho direito a que me respondam honestamente a todas as questões.
Tenho direito a não ser enganado.
Tenho direito, bem como a minha família a sermos ajudados a aceitar a minha morte.
Tenho direito a morrer em paz e com dignidade. Tenho direito à minha individualidade, e a não ser julgado pelas minhas
decisões que podem ser contrárias às crenças de outros.
Tenho direito a discutir e aumentar as minhas vivências espirituais e/ou religiosas, independentemente do que isso possa
significar para outros.
Tenho direito a esperar que a inviolabilidade do meu corpo seja respeitada após a morte.
Tenho direito a ser cuidado por pessoas conhecedoras e sensíveis, que reconhecerão as minhas necessidades e que terão
alguma satisfação em me ajudarem a enfrentar a minha morte.
Esta Carta de Direitos foi criada em Lansing, num workshop sobre “O Doente Terminal e a Pessoa que o Ajuda”, patrocinado
pelo Southwestern Michigan Inservice Education Council, e orientado por Amelia J. Barbus, professora associada de enferma-
gem, Waine State University, Detroit.
* De Donovan, M. 1., & Pierce, S. G. (1976). Cancer care nursing. New York: Appleton-Century-Crofts, p. 33
Recordando que nas situações de fase final de vida, quando os outros chegam, os enfermeiros já lá estavam, e, quando os outros
partem, os enfermeiros continuam. oe
V I S e m I ná r I o d e É t I ca
divulgação�0
ordem dos enfermeiros
Lucília Nunes
Presidente do Conselho Jurisdicional
Muito boa tarde. Acabámos de ouvir cinco comunicações, e, se
me permitem, consumirei cinco minutos, em torno de cinco pa-
lavras – ou seja, vou escolher uma palavra-chave para cada uma
das comunicações que foi realizada, partindo de expressões que
foram ditas em cada uma delas.
Para a primeira, relativa aos deveres para com o doente terminal,
do Enfermeiro Norberto Silva, escolheria a palavra “princípios”.
Os princípios que foram apontados da bioética, dos documentos
internacionais, da ética na enfermagem.
De entre os princípios, eu destacava a particular importância aos
princípios gerais da profissão, em geral, e ao princípio do respeito
pela dignidade da pessoa humana, em particular.
Na segunda comunicação, sobre a morte vista da urgência, do En-
fermeiro António Manuel, escolhi a ideia das “histórias”. Histórias
narradas, histórias do vivido, daquilo que nos toca, às vezes mais
pacíficas, outras vezes muito violentas. Histórias de que falamos,
contamos de testemunho, de tradição oral – e, já agora, porquê?
Porque é preciso pensar. É preciso pensar sobre os vividos, partilhar
e crescer. Não há outra maneira de se tornar mais pessoa, melhor
enfermeiro, do que pensar sobre o agido e sobre aquilo que virá
a agir, e a partir do pensado, melhorar a acção.
Da terceira comunicação, relativa ao final de vida e cuidado palia-
tivo, da Enfermeira Lurdes Martins, escolhia a ideia de “interrogar
sobre a vida”. Todos nós sabemos que a singularidade é complexa.
Não há relação directa entre o que é cientificamente sofisticado
e aquilo que é importante para as pessoas. O paliativo, que não
é necessariamente sofisticado do ponto de vista científico e
técnico, é muitíssimo diferenciado do ponto de vista humano,
existencial e pessoal.
Da quarta comunicação, sobre o lidar com a morte na equipa, da
Enfermeira Armandina Antunes, escolhi a palavra “bata branca”.
Tanto pelo sentido do estar por detrás do uniforme, de se sentir
protegido ou escudado pela bata branca, como pela ideia de que
a postura mais correcta é a de alguém que “não perde a compos-
tura”, não demonstra sentimentos, permanece “imaculadamente
branco”, sem ser tocado. Todavia, detrás, ou melhor, dentro da
bata, existem sempre pessoas profissionais, cuja vivência da
morte caminha para conseguir viver melhor e cuidar melhor de
cada pessoa em final de vida e da respectiva família.
Da quinta e última comunicação, da temática sobre a participa-
ção dos enfermeiros nas decisões do final da vida, do Enfermeiro
Aaldert Mullema, selecciono a ideia de “escolhas”. Escolhas no
final da vida, escolhas que significam recusas e opções de afir-
mação, que significam necessariamente procurar gerir o meu
agir ético em tolerância activa face às opções dos outros, que às
vezes não são as minhas, e se (ou quando) eu não puder aceitá-
-las, que utilize aquilo que o código e que o direito ao exercício
da objecção de consciência prevêem.
Muito obrigada aos cinco comunicadores. oe
ARQ
UIV
O O
E
cuidado no final de vida– comentário de Lucília nunes
V I S e m I ná r I o d e É t I ca
divulgação ��
ordem dos enfermeiros
Prof. Doutora Maria Isabel Renaud
Professora catedrática de Ética (1988) no Departamento de Filosofia da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa
A fragilidade e a vulnerabilidade fazem parte da condição hu-
mana. Mas o que é que se entende por condição humana? A pala-
vra “condição” evoca a existência humana em geral. Esta maneira
de falar do homem “em geral” significa que o que se afirma nesta
generalidade abrange a existência de cada ser humano na sua
individualidade mais concreta, isto é, na sua singularidade.
A expressão “em geral” não quer dizer “mais ou menos”, “aproxi-
madamente” ou “para a maior parte deste seres humanos”, mas
para todos eles considerados na sua identidade singular.
Assim, inerentes à condição humana, dizem respeito a cada um de
nós, sem que ninguém lhes possa escapar. É isto que deveríamos
analisar mais de perto. Na verdade, poderíamos já parar aqui, porque
temos todos uma certa experiência da fragilidade humana; a fortiori,
enfermeiras e enfermeiros que lidam diariamente com a doença ou
o sofrimento já sabem por experiência o que é ser frágil.
Mas ter uma certa experiência concreta da fragilidade ainda
não é compreender o que ela é na sua extensão maior. É por
isso que, na base da experiência que enfermeiras e enfermeiros
têm – ou quê todos nós podemos ter – da fragilidade, convém
reflectir sobre ela.
Mas a reflexão implica uma certa distância dos factos. Comente-
mos esta afirmação com alguns exemplos. Viver um período de
luto dá a experiência do luto, mas não faz ainda compreender o
que o luto é; compreender o que acontece na experiência do luto
não é a mesma coisa que ter a experiência vivida do luto.
Do mesmo modo, fazer a experiência do amor e da amizade não
é a mesma coisa que compreender o que acontece psicologica-
mente nesta experiência afectiva.
E poderíamos multiplicar os exemplos antes de aplicar esta verdade
à questão da vulnerabilidade: podemos ter uma certa experiência
mais ou menos profunda da fragilidade sem compreender onde está
a sua raiz, o seu fundamento. É por isto que a filosofia e a ética são
necessárias. Na Grécia antiga, antes de Sócrates e de Platão, por
exemplo, a fragilidade era explicada com narrativas míticas: as três
Parcas estão, com os seus fios, a tecer a trama de cada existência
e quando o fio se rompe a mulher ou o homem morre.
Eis uma explicação que, embora mitológica para nós, não deixou
de ser uma explicação para eles válida. E hoje, será que são melho-
res as explicações das bruxas ou dos que interpretam as cartas?
Então para onde nos viramos para encontrar uma explicação mais
adequada?
A aposta da filosofia consiste em dizer que é do lado da razão que
se encontra a melhor garantia da interpretação da existência. Dizer
isto pode parecer banal, mas é-o tão pouco que assistimos hoje
à recrudescência das respostas irracionais, como se pode ver num
jornal qualquer, com todos os anúncios relativos às capacidades
– ou pseudocapacidades – dos videntes etc.
A resposta racional não significa, todavia, que as respostas do
mito não tinham sentido. No caso que nos interessa, os fios
da finitude e fragilidade humana
ARQ
UIV
O O
E
V I S e m I ná r I o d e É t I ca
divulgação��
ordem dos enfermeiros
que tecem as Parcas constituem a trama da existência. Ora, os
fios podem partir, isto é, fazer morrer os homens. A fragilidade
da existência humana está deste modo ligada, já no mito das
Parcas, à morte.
A morte está inscrita na condição humana e aparece como a
raiz da fragilidade desta. Ora, na experiência humana concreta,
a fragilidade evoca a possibilidade de receber ou perder algo de
importante, tal como a saúde, as capacidades intelectuais etc.,
o que mostra que, espontaneamente, não relacionamos ime-
diatamente a fragilidade com a morte, mas antes com os que
nos aparecem ligados à própria vida (a beleza de um rosto sem
rugas, um corpo elegante e ainda não marcado pela menopausa,
a força dos músculos bem treinados, a capacidade da memória
etc.). Noutros termos, a fragilidade é a fragilidade dos bens da
vida que podemos perder.
Além disso, não se trata somente dos bens da vida física, mas
de todas as formas de vida: a vida mental, a vida afectiva, a vida
psicológica (é, por exemplo, uma grande fragilidade poder perder
a capacidade da alegria), a vida ética, a vida em comunidade
(quando se rompem os laços do tecido social), a vida afectiva
(quando outros nos fazem sofrer), a vida espiritual (a qual está
de tão perto ligada à capacidade de dar sentido à sua vida).
Se existem tantos bens ligados à vida, se a fragilidade se delineia
no horizonte de todos estes bens, percebemos que a fragilidade
da condição humana adquire uma extensão inicialmente não per-
cebida nas experiências parciais que tínhamos dela. Além disso, ao
lembrarmo-nos de que a morte diz respeito a todas as formas de
vida, é a morte, como perda da vida e de todas as formas terrestres
da vida humana, que se situa no horizonte da nossa fragilidade.
O animal não sente a sua fragilidade; pode sentir-se ameaçado
e defender-se; ele vive, não a fragilidade da sua vida animal, mas
a percepção correcta ou incorrecta da ameaça, que o leva a fugir
ou a atacar.
Este exemplo faz-nos entender que a experiência da fragilidade,
como anterior ao risco ou às ameaças, implica a presença de uma
mente capaz de se distanciar da experiência imediata para se
projectar no futuro. É esta projecção de mim, mesmo num futuro
possível ou certo (quanto à morte), que distingue a vivência da
fragilidade de uma ameaça presente.
Uma das características mais profundas da mente humana reside
na capacidade de integrar conscientemente o passado no presente
e de projectar o presente no futuro; mas, também, acrescentar-
-se-á, justamente, a capacidade de interpretar o presente à luz
do passado e de antecipar o futuro no presente.
As instâncias do presente, do passado e do futuro desdobram a
consciência da fragilidade e da vulnerabilidade. Assim, não é a
mesma coisa fazer a experiência da fragilidade antes ou depois
de um violento acidente de viação.
Do mesmo modo, para os agentes da saúde, por exemplo, os
fisioterapeutas que tratam hemiplégicos ou tetraplégicos vítimas
de desastre, a consciência da fragilidade pessoal torna-se mais
aguda neste confronto não só com a fragilidade teórica do outro,
mas perante a sua efectiva perda de capacidades.
A doença ou a perda de capacidades que o outro apresenta diante
de mim reenvia-me para a consciência acrescida da minha própria
fragilidade. É por isso, aliás, que enfermeiras ou enfermeiros que
trabalham num serviço de medicina paliativa sofrem um desgaste
psicológico e afectivo tão marcado, que devem ser, eles próprios,
objecto de uma particular atenção para não sucumbirem psi-
cologicamente ao peso das dificuldades inerentes aos cuidados
que ministram.
Se o termo de fragilidade tem a mesma etimologia que a palavra
“fractura”, a fragilidade introduz a vertente da possibilidade: frágil
é aquilo que pode fracturar-se. Tal como vulnerável é aquilo ser
ferido (vulnus, vulneris, em latim).
Percebemos que a fragilidade humana implica pelo menos duas
coisas: a presença da mente humana, capaz de antecipar men-
talmente o que pode acontecer; em seguida, o saber quanto à
morte própria e à morte dos outros que constitui o horizonte
V I S e m I ná r I o d e É t I ca
divulgação ��
ordem dos enfermeiros
mais largo de todas as experiências de fragilidade. Na verdade,
este saber acerca da morte transforma a dimensão de possibili-
dade inerente à fragilidade.
Quero dizer que se se tratasse só de uma possibilidade que nunca
acontece, não passaríamos nunca da possibilidade para a reali-
dade. Por exemplo, sinto-me frágil quando conduzo o carro por-
que sei que poderia ter um acidente; mas posso eventualmente
passar toda a minha vida a guiar sem nunca ter um desastre.
Trata-se, nesta experiência, de uma possibilidade que, felizmente,
não se traduz em realidade. Mas não se pode
dizer a mesma coisa do corpo humano; pode-
mos não apanhar nenhuma doença concreta,
poderei escapar à gripe das aves que se anun-
cia, com o seu cortejo de mortes esperadas,
mas sei que nunca poderei escapar às marcas
do envelhecimento (ainda que com todas as
operações plásticas possíveis, que só teriam
como efeito esticar a pele do meu rosto até já não poder sorrir).
Trata-se, portanto, de uma fragilidade (a caducidade) que se
transformará em realidade. Noutros termos, já sei agora que, a
viver muitos anos, me tornarei caduca, doente, dependente.
Estas reflexões preliminares permitem-nos traçar o caminho da
nossa análise, que começa por uma reflexão sobre o “saber” da fra-
gilidade ou a fragilidade conhecida e prevista, que continuará com
uma breve descrição da “experiência concreta” e pessoal da fragili-
dade, para acabar com o “acompanhamento” da fragilidade.
1. O saber da fragilidade
O que caracteriza esta fase ou esta maneira de viver a fragilidade
é o seu aspecto teórico. Está certo que, já na infância, a criança
faz uma certa experiência da morte e da fragilidade, quer ao ver
os pais adoecerem ou os avós desaparecerem definitivamente da
vista. É a inquietação e a incompreensão que afectam, então, a
eclosão deste saber. Onde está a avó? Onde está o avô? Porque
é que não volta? Isso supõe que, para as crianças, é normal que o
que está vivo continue a viver sempre. Não é a vida que levanta o
problema, mas a sua cessação. Na maior parte dos casos, a criança
toma conhecimento da existência da morte por causa da morte
do outro. Esta morte torna-se então objecto de um saber, saber
que a criança irá interiorizar, mas de modo teórico.
A teoria oferece, aliás, um certo refúgio contra a angústia, que não
deixaria de surgir pela transformação do saber numa experiência
de maior proximidade com a morte. Noutros termos, saber que
se vai morrer não é muito incomodativo quando se sabe que se
trata de uma verdade meramente teórica à qual não corresponde
nada de imediatamente previsível.
Do mesmo modo, o tempo da juventude é
marcado pela relativamente fácil aceitação
dos riscos, como se as ameaças contra a
integridade física não ocupassem a linha de
frente da consciência. A morte, isso é para os
velhos, pensa-se então, e velhos são já todos
os adultos que têm mais de trinta e cinco ou
quarenta anos. É notável, também, que os jovens tenham a maior
dificuldade em distinguir as diferenças de idade entre quarenta e
sessenta e cinco anos, como se todas essas faixas etárias consti-
tuíssem a única categoria: a dos adultos idosos.
Longe está o tempo em que os monges viviam com uma caveira
sempre presente na sua mesa de trabalho, como se vê, por exem-
plo, nas pinturas de São Jerónimo ou de São Antão. Este hábito
parece-nos mórbido, porque toda a cultura presente nos afasta da
ideia da morte, em proveito de uma vida que é preciso cultivar e
desenvolver em todas as suas dimensões. Em contrapartida, é-nos
muito difícil integrar a ideia da morte no nosso projecto de vida,
ainda que esta ideia se faça cada vez mais presente, à medida em
que nos aproximamos da terceira idade.
Uma dificuldade surge, então, para o adulto: como viver com a ideia
da própria fragilidade e da morte certa sem recalcar este saber,
mas também sem o tornar obsessivo? É estranho. Já se ouviram a
este respeito duas teses opostas. Por um lado, é porque a existên-
cia humana é finita que o tempo das realizações humanas é tão
precioso, como se fosse apenas sob o horizonte da sua finitude e
... mas sei que nunca poderei
escapar às marcas
do envelhecimento...
V I S e m I ná r I o d e É t I ca
divulgação��
ordem dos enfermeiros
mortalidade que a existência recebesse o seu preço, o seu valor
existencial e a sua dignidade; nesta perspectiva, é um além da
finitude que tornaria a existência incompreensível.
Em oposição a esta tese, existe a filosofia escolástica, assim como
o pensamento cristão. Consideram que sem a vida que, de um
modo ou de outro, permanece “depois” da morte, embora de um
modo absolutamente não representável, a finitude desta vida não
faz sentido. À primeira tese, podemos perguntar se é o carácter
caduco das nossas ligações afectivas – amizade e amor – que as
torna tão preciosas. Mas na morte de um ente próximo, não será
que a nossa primeira questão é, a seu respeito: onde está ela,
onde está ele agora? O que perdura das nossas relações afectivas
mais profundas? Aqui intervém a segunda tese: é a abertura a um
além da morte que constitui o preço mais elevado desta vida. O
que é suposto nesta afirmação torna-se então claro: o desejo de
viver só tem sentido se a morte não lhe põe um fim irremediável
e absoluto. Uma vez mais, é preciso dizer que entre estas ideias
meramente teóricas e o seu impacto efectivo na existência con-
creta existe uma distância que hoje já não é automaticamente
percorrida.
Se a ideia da morte traz consigo a da fragilidade no seu momento
mais radical, não é contudo verdade que todo o saber da fragi-
lidade se condensa exclusivamente no da morte futura. Mas é
quase necessário fazer uma experiência concreta de fragilidade
para que a consciência desta se torne efectiva. Ora, a experiência
concreta não se limita ao confronto com catástrofes ou acidentes.
Por exemplo, tantos sabem que fumar favorecerá o aparecimento
do cancro do pulmão, o que não afasta muitas e muitos jovens do
cigarro; ou o número e a gravidade dos desastres de motos não
parecem tornar mais prudentes os motociclistas.
A ideia está presente, mas não pensamos nela precisamente na
altura em que deveria ter um impacto sobre os comportamen-
tos concretos. Os antigos retiros religiosos insistiam, de modo
muitas vezes aterrorizador, no medo do inferno. A finalidade era
precisamente a de tornar eficaz a mera ideia do castigo, tendo
em vista afastar a pessoa da tentação. Enunciada nos nossos
termos, esta ideia devia operar, ao nível da imaginação afectiva,
a ligação entre a ideia e o comportamento. Ora, quando se trata
de fragilidade e de vulnerabilidade é preciso constatar que estas
ideias não possuem por si próprias, na maior parte dos casos,
a força suficiente para alterar os comportamentos, quer sejam
eles comportamentos de prevenção, de ajuda, de retenção ou de
intervenção.
2. A experiência da fragilidade
Para compreender realmente a experiência da fragilidade, seria
necessário descrever o que é uma experiência em geral, tarefa
primordialmente filosófica. A experiência está longe de se limi-
tar ao que se entende habitualmente por experiência diária. Do
ponto de vista da forma, a experiência modifica parcialmente a
Weltanschauung, a visão do mundo de quem a vive. É o olhar
sobre o real, sobre a natureza, sobre outros seres humanos, sobre
Deus, sobre o sentido da vida, que está em questão e em movi-
mento na experiência. É possível, portanto, que um determinado
acontecimento presenciado por várias pessoas constitua uma
experiência para alguns e que deixe outros indiferentes, nem se-
quer minimamente afectados. Entendida neste sentido filosófico,
a experiência transforma o nosso posicionamento interior face
aos grandes desafios da existência.
O que é que nos leva a “experienciar” mais do que experimentar
− a fragilidade? Não é possível determinar teoricamente quais as
situações existenciais que nos fazem passar da teoria à prática.
Para alguns, será uma experiência da doença, doença do corpo
ou da mente (por exemplo, uma depressão nervosa). Para outros,
será o lento caminhar para uma idade mais avançada ou a tomada
de consciência da perda das forças devido à idade. Mas também
pode ser o contacto próximo com a pessoa que está à beira da
morte que nos faz também sentir a nossa fragilidade, como se a
“simpatia” com esta pessoa − no sentido etimológico de simpatia,
que é um “sofrer com” – nos reenviasse para nós próprios.
Se a experiência da fragilidade é, então, uma “situação” que nos
afecta ou na qual estamos mergulhados quase involuntariamente,
surge o desafio: como é que vamos reagir? É preciso aqui distinguir
duas espécies de experiência de fragilidade: aquela que vivemos
V I S e m I ná r I o d e É t I ca
divulgação ��
ordem dos enfermeiros
sob o impacte de um sofrimento próprio (físico, mental ou espiri-
tual) que nos atinge, por assim dizer, directamente, e a experiência
induzida em nós pelo espectáculo ou pelo acompanhamento do
sofrimento vivido por outros. Não há dúvida de que a vulnerabili-
dade e o sofrimento constituem uma experiência da finitude.
Quando fala da finitude, a filosofia coloca-se espontaneamente na
dimensão ontológica da existência, isto é, na análise daquilo que
faz com que a existência humana seja aquilo que ela é. Assim, a
existência é finita (e as várias metafísicas no decurso dos séculos
tentam compreender o fundamento da finitude. Mas hoje é mais
uma “ética” da finitude que parece necessário desenvolver. O
que pode ser uma ética que incide na experiência da finitude ou,
reciprocamente, como é que se apresenta a vivência da finitude
ao ser submetida ao olhar ético?
Se a ética se interessa pelos actos humanos, a primeira questão
que se nos depara é a incidência da finitude nesses próprios ac-
tos. Como é que o ser humano vai activamente situar-se diante
da sua finitude? É, portanto, a reacção da pessoa à descoberta
da sua atitude ou ao confronto com ela e, mais precisamente,
com a proximidade da morteque importa olhar de frente. Mas é
preciso distinguir entre a finitude de quem vive numa situação de
sofrimento e a do seu acompanhante.
A aceitação da própria fragilidade, da vulnerabilidade sentida, por
assim dizer, na própria carne, não se faz automaticamente; ela
requer um assentimento, um consentimento que constitui uma
verdadeira actividade. Mas, enquanto acto próprio, este consen-
timento exige a nossa liberdade. Pode, com efeito, ser recusado;
não é, então, a situação de fragilidade que desaparece, mas é o
acto de reconciliação com ela que não está presente.
A consequência directa não se faz esperar: é a transformação desta
experiência de finitude, de fragilidade ou de sofrimento numa
experiência do absurdo. Para tais pessoas, a recusa torna-se então
rebelião, revolta contra o absurdo de uma existência que, tudo
somado, não valia e não vale a pena ser vivida. Não queremos
assim dizer que a existência não contém zonas ou segmentos
marcados – aparente ou realmente – pelo absurdo, mas que é a
totalidade da existência que aparece sob o véu do absurdo quando
cada um de nós não consegue reconciliar-se com a sua finitude,
isto é, quando a descoberta viva e dolorosa da nossa finitude não
é objecto de um acto de aceitação interior. Este acto é um acto
de natureza espiritual, um acto interior e livre, difícil, que não se
realiza automaticamente e que pode ser recusado. Mas quem tem
a capacidade de pouco a pouco o efectuar, encontra, em geral, a
paz consigo.
Quais são as razões que nos levam a esta aceitação de uma situa-
ção existencial que não podemos alterar? Será a mera resignação?
É possível, mas pode ser muito mais do que ela. Trata-se quase de
uma aposta sobre o sentido global da existência, porque muitas
vezes esta reconciliação interior tem de ser feita precisamente
quando este sentido global parece escapar à nossa sensibilidade
e à nossa razão. Mas dado que o ser humano vive a sua solidão
em comunhão com outros, é a presença dos outros que aqui se
torna também fundamental. O acompanhamento desempenha,
mais do que nunca, uma função primordial na vivência concreta
da vulnerabilidade humana.
A passagem da ideia teórica da fragilidade para a sua experiência
concreta implica que não me bloqueie interiormente, numa es-
pécie de denegação activa desta fragilidade. Ora, esta denegação
activa acontece de modo quase inconsciente – e bem compre-
ensível – no caso dos jovens, de que foram questão mais acima.
Poderíamos dizer que o peso da fragilidade forte faz com que,
para não ser aniquilado, o ser humano se bloqueie interiormente,
pensando que a doença ou a proximidade da morte é para os ou-
tros, não para ele próprio. A experiência concreta é então negada
e, por assim dizer, espontaneamente rejeitada. O confronto com
o acontecimento concreto que nos põe inevitavelmente diante da
nossa finitude e faz sentir a fragilidade na carne torna-se então
um tanto mais difícil.
O resultado importante ao qual chegamos merece, contudo, ser
sublinhado: a experiência viva da fragilidade e da finitude não é
necessariamente geradora de autodestruição interior ou de de-
sespero, ainda que seja, para o ser humano, o índice premonitório
da sua mortalidade.
V I S e m I ná r I o d e É t I ca
divulgação��
ordem dos enfermeiros
3. O acompanhamento da fragilidade
Ao considerar o caminho percorrido, observo um facto estranho:
a análise da fragilidade enquanto “saber” fez-nos entrar na “ex-
periência” da fragilidade e, do mesmo modo, a breve descrição
desta experiência viva já abriu a questão do acompanhamento
das pessoas vulneráveis.
Até agora, a nossa análise limitou-se à experiência da finitude vivida
pessoalmente enquanto experiência minha. Resta-nos encarar o
contacto imediato com a doença e a morte de uma pessoa, à me-
dida em que nos tornamos próximos do outro. Ora, a este respeito, a
primeira tese a desenvolver tem um enunciado lapidar, que merece
um comentário: quem se torna próximo, torna-se inevitavelmente
frágil e vulnerável.
Todos, cristãos ou não crentes, temos presente no espírito a pará-
bola do Bom Samaritano, que se encontra somente num Evangelho,
o de Lucas. Ora, este texto, que poderia ser considerado como
um grande texto da ética fundamental, também mostra que o
próximo não é, em primeiro lugar, aquele que de facto está numa
situação de proximidade comigo, mas o outro de que me aproximo
activamente. Esta interpretação tem o mérito de mostrar que a
proximidade não é uma situação, de facto, mas um acto, o que
não deve ser necessariamente compreendido de modo espacial,
mas de modo “interior”: aproximo-me interiormente quando me
deixo afectar pela presença do outro, frágil, doente ou moribundo,
e quando esta experiência de ser afectada suscita em mim uma
resposta activa.
O resultado principal ao qual chegámos merece ser repetido: quem
se torna próximo torna-se inevitavelmente frágil e vulnerável.
Compreendemos, então, que a experiência da fragilidade contém
algo de eminentemente ético: enquanto experiência, não significa
“passividade”, como se a experiência nos atingisse de fora como a
doença que nos apanha desprevenidos, mas actividade, aceitação
de uma relação. É verdade, contudo, que sentir-se frágil não é ne-
cessariamente uma experiência ética, tal como no caso em que,
de facto, somos passivamente vítimas físicas ou mentais do acon-
tecimento que nos atinge de fora. Mas esta experiência torna-se
ética quando, de certo modo, aceitamos tornar-nos próximos deste
acontecimento, interiorizando assim aquilo que, contra a nossa von-
tade (e, neste sentido, de fora), nos agrediu. Em termos filosóficos,
diremos então que o que era acontecimento tornou-se acto ético.
Esta tarefa é difícil e, para a levar a bom termo, é muito provável
que precisemos da ajuda de alguém que se aproxime de nós.
O filme Mar Adentro é duplamente ilustrativo desta dificuldade.
O tetraplégico Ramon não recebeu esta ajuda de fora senão por
parte de pessoas que “se aproximaram” efectivamente dele, mas
sob os auspícios da morte e não da vida. Por outro lado, ele não
teve a capacidade de se tornar “próximo” da sua própria situação,
senão para lhe fugir em direcção à morte. A nossa ideia não é
criticá-lo (será que, com efeito, no lugar dele, teríamos tido mais
força?), mas perceber que a assunção da fragilidade exige sempre
um acto ético e não consiste somente numa passividade face aos
eventos que, por definição, acontecem, sem termos, em geral, a
capacidade de os prever.
Que me seja permitido fazer um parêntese teológico, retomando
a parábola do Bom Samaritano. Os exegetas consideram esta pa-
rábola como uma narrativa que mostra como Jesus e como Deus
agem para com o ser humano; assim, o Bom Samaritano é a própria
figura de Deus descrita de maneira narrativa. Se, tal como dissemos,
o acto de se aproximar torna frágil quem se aproxima a então de
Deus ao tornar-se próximo do ser humano mostra a sua máxima
fragilidade; ora, esta ideia paradoxal é hoje em dia retomada pelos
teólogos que reinterpretam a partir dela a omnipotência divina.
Ser omnipotente, para Deus, não significará fazer tudo o que quer
num capricho irracional, mas ter a capacidade infinita de se tornar
próximo. É por isto que alguns teólogos afirmam que a omnipotência
(ou toda-potência) divina é, ao mesmo tempo, omni-im-potência
(ou toda-impotência). A figura de Cristo no caminho da cruz exprime,
então, adequadamente, esta assunção activa, por parte de Deus, da
fragilidade, que é somente o reverso da sua proximidade com o ser
humano. Mas, acrescentam os teólogos, é preciso ser todo-poderoso
para ter a capacidade de ir assim tão longe nesta via de aproximação.
A toda-potência, quando se refere ao amor verdadeiro, assume a
fragilidade de uma aparente toda-impotência, a qual implica, antes
de mais nada, o total respeito pela liberdade do outro.
V I S e m I ná r I o d e É t I ca
divulgação ��
ordem dos enfermeiros
Mais do que um simples parêntese, esta passagem pela teologia
sublinha a força da ideia segundo a qual, não reside na perfeita
solidão (de quem se torna autarcicamente dono de si) , mas na
capacidade de assumir a fragilidade que provém do facto de
estar exposto à resposta livre de um outro ser. Nos termos de
Levinas, diremos que, em virtude de uma estranha reviravolta, a
verdadeira potência implica a aceitação de uma real fragilidade
e que a fragilidade assumida gera − ou mesmo é − uma autên-
tica potência, uma força espiritual. Aliás, esta conclusão está em
perfeita sintonia com a conclusão anterior, relativa à experiência
própria da fragilidade.
Mas será possível descrever melhor a fragilidade de quem (se pro-
põe acompanhar os doentes que, pela doença ou pelo sofrimento)
faz a experiência viva da fragilidade e da finitude humana? Tantas
vezes os seres humanos que enfermeiras e enfermeiros ou fami-
liares imediatos desejam ajudar estão confrontados com a prova
final da vida, com o seu cortejo de dores físicas − reumatismo,
perda da audição e enfraquecimento da visão, dificuldades respi-
ratórias, osteoporose etc. Ouvimos então surgir esta reflexão: será
mesmo que vale a pena viver se é para chegar a tantos sofrimen-
tos? Porque é que o Criador não programou uma vida sem dor,
um pouco como no mito do paraíso terrestre? Esta reflexão, que,
na verdade, tem sentido somente para quem se move na órbita
da fé, esquece que a narrativa de Adão e Eva não diz como é que
os nossos primeiros pais teriam acabado os seus dias no termo
da sua mais ou menos longa existência. Esta narrativa não tem
como sentido mais profundo responder a tais perguntas. Ela diz-
-nos somente que Deus não é o autor do mal moral. Então somos
reenviados para nós próprios para tentarmos descobrir o melhor
modo de acompanhar o sofrimento que invade em muitos casos
o final da vida humana.
Quase queria parar à beira desta exigência, porque se trata de
algo tão pessoal que cada um tem de buscar em si a resposta.
Em si sozinho? Talvez seja isto precisamente o erro. Poderíamos,
com efeito, recuperar a ideia da narrativa de vidas passadas, isto
é, a narrativa de pessoas que conhecemos e que já faleceram,
mas que, de uma certa maneira, nos deixaram o exemplo do seu
confronto com a morte. Não foram necessariamente pessoas
extraordinariamente santas, mas pessoas cujo percurso de vida,
até ao fim, nos encheu de paz e suscitou positivamente a nossa
admiração. Destas pessoas, podemos falar de tal modo que se
tornam para nós objecto de uma narrativa que nós fazemos de-
las, e esta narrativa acaba por nos inspirar e nos dar força. Estas
pessoas, de quem nós próprios elaborámos a narrativa existencial,
permitem-nos também acompanhar os outros, como se projec-
tássemos esta narrativa como possibilidade, para o moribundo, de
encontrar também o seu caminho de paz e de activa aceitação da
sua finitude. Não será mesmo assim que os que nos precederam
também continuam a ajudar-nos pelo seu exemplo? É verdade
que entre todos os exemplos possíveis, há um certo número de-
les que são exemplos negativos, exemplos para não imitar. Mas
o conjunto dessas narrativas particulares, que correspondem a
casos que conhecemos pessoalmente ou de que ouvimos falar
por amigos e colegas, acabam por constituir aquilo que arriscaria
chamar o nosso pequeno “evangelho” − pessoal. Para os cristãos,
este pequeno evangelho será um prolongamento do grande evan-
gelho, que também contém tantas narrativas que nos convidam a
inserirmo-nos nelas mesmas. Para os não cristãos, tratar-se-á de
um conjunto de casos que nos podem dar força para acompanhar
os que sofrem, sem sentirmos sozinhos o peso do seu sofrimento
e da sua angústia.
E, assim, julgo que podemos concluir. A fragilidade de quem acom-
panha a fragilidade do outro que sofre não precisa, ela também
não, de ser destrutiva ou de gerar a depressão nervosa. Pelo con-
trário, só pode ajudar e acompanhar quem resiste ao mergulho na
depressão e na autodestruição. A simpatia com o doente não se
mede pelo modo como sofremos sensivelmente com quem sofre.
Pois sofrer com quem sofre é uma actividade e atitude activa que
me integra numa cadeia de solidariedade que vem de mais longe
do que de mim própria (e que me leva mais longe também, que
esta pessoa entregue ao meu cuidado. Talvez seja isso o âmago
da intersubjectividade ética. Talvez seja também esta longa cadeia
de intersubjectividade ética que, mediante as narrativas das vidas
que evocámos acima, nos dê a maior força interior para acompa-
nhar, do melhor modo possível, a fragilidade do outro, tanto dos
outros que amo como dos que foram confiados a meu cuidado
profissional. oe
V I S e m I ná r I o d e É t I ca
divulgação��
ordem dos enfermeiros
Lucília Nunes, Manuela Amaral, Rogério Gonçalves, Sérgio Deodato
Membros do Conselho Jurisdicional
Neste VI Seminário, realizado dia 11 de Outubro de 2005, o
Conselho Jurisdicional pretendeu promover a reflexão ético-
-deontológica em torno do final de vida, temática escolhida
pela pertinência, pela relevância e pela importância que lhe é
atribuída nas questões colocadas face a esta circunstância da
prestação de cuidados. Associámo-nos à Semana Nacional de
Cuidados Paliativos, que decorreu de 8 a 14 de Outubro.
Na perspectiva da enfermagem, proteger e respeitar a dignidade
da pessoa surge como princípio fundamental. Valorizamos a
qualidade de vida no processo de morrer, a importância da
rede social e familiar de apoio à pessoa que vai morrer e con-
sideramos imperativo ético uma rede de cuidados continuados
e paliativos, assim como o acompanhamento psicológico e
espiritual.
Os enfermeiros têm deveres para com o doente terminal,
previstos no Código Deontológico, de “defender e promover o
direito do doente à escolha do local e das pessoas que deseja
o acompanhem na fase terminal da vida; de respeitar e fazer
respeitar as manifestações de perda expressas pelo doente em
fase terminal, pela família ou pessoas que lhe sejam próximas
e de respeitar e fazer respeitar o corpo após a morte.”
Relendo o Regulamento do Exercício Profissional dos Enfermei-
ros, enfermagem “tem como objectivo prestar cuidados de
enfermagem ao ser humano, são ou doente, ao longo do ciclo
vital, e aos grupos sociais em que ele está integrado, de forma a
que mantenham, melhorem e recuperem a saúde, ajudando-os
a atingir a sua máxima capacidade funcional tão rapidamente
quanto possível.” (4.º, 1.)
Parece-nos claro que existe uma configuração dos cuidados de
enfermagem como um prolongamento e uma substituição da-
quilo que as pessoas não podem, temporariamente, assegurar por
si próprias ou lhes é assegurado por aqueles que os cercam.
Sendo certo que aos enfermeiros compete a prestação de cuidados
ao longo do ciclo vital, decorre que acompanhamos as pessoas, as
famílias e os conviventes significativos nos processos de morrer.
E só nos últimos decénios se foi estabelecendo a noção de que
“há muito que fazer quando já nada se pode fazer”, isto é, há
muito a fazer do ponto de vista do acompanhamento, quando
nada existe a fazer do ponto de vista curativo.
Por isso se definem cuidados paliativos “enquanto acções em-
preendidas em diferentes planos (médico, psicológico, social,
espiritual) junto de um doente, após um diagnóstico de doença
incurável em estado terminal. São, pois, essencialmente, cuidados
de conforto global e que apelam a meios proporcionados”.
Neste contexto, o objectivo dos cuidados é obter melhor quali-
dade de vida e preservar, não a integridade corporal ou a saúde,
ARQ
UIV
O O
E
VI Seminário cJ – Final de vida
conclusões
V I S e m I ná r I o d e É t I ca
divulgação ��
ordem dos enfermeiros
mas a dignidade humana, que é essa possibilidade, para cada
pessoa, de, por intermédio da sua consciência, agir livremente e
autodeterminar-se.
Este tópico foi abordado na conferência Autonomia e Morte.
A autonomia da pessoa é hoje aceite como um princípio ético
basilar e deve ser discutida tendo como pano de fundo o sentido
da vida na relação com o Outro − analisar um possível direito
de dispor da vida (utilizando a eutanásia ou o suicídio assistido)
sem equacionar esta dimensão distorce a reflexão, limitando-a
ao subjectivismo isolado (aquilo que cada um poderá pensar
livremente, mas não humanamente).
De outra perspectiva, diríamos que o agir livre no âmbito da auto-
nomia individual consubstancia-se numa liberdade responsável. Os
actos, decididos livremente na consciência de cada um, originam
consequências para o próprio e para os outros, na medida das
relações estabelecidas. Deste modo, o exercício da liberdade não
ocorre de forma ilimitada, mas tendo em conta os limites impostos
pela desumanidade das consequências que podem originar.
Se falamos de uma autonomia cujo exercício se desenvolve
afastado da normal relação com os outros, sem ter em conta as
consequências nos outros com os quais vivemos, então não será
uma verdadeira autonomia.
Discutir se a autonomia individual permite a tomada de decisões
que, não tendo consequências (aparentes) para os outros, podem
prejudicar ou terminar a vida, inclui a reflexão sobre os actos que
provoquem a morte, como o suicídio, o suicídio assistido ou a
eutanásia. É nesta perspectiva da autonomia e da liberdade do agir
que a abordagem do eventual direito a morrer, enquanto titula-
ridade individual para livremente decidir dispor de si, não tendo
em conta o sentido que damos à vida humana, pode levar-nos a
conclusões que contemplem o exercício desse direito com base
numa liberdade sem fundamento verdadeiramente humano.
Nesta perspectiva, o exercício da autonomia não configura um
direito a morrer. Pode, todavia, distinguir-se do direito de morrer
com dignidade, que consideramos um direito humano.
Sendo a morte uma realidade biológica universal, ocorre em
qualquer momento da vida − realizando o percurso pela “Morte
no ciclo vital”, passando pela perspectiva pediátrica, do adoles-
cente e jovem adulto, do adulto e idoso, compreendemos que
existe tempo de morrer desde o tempo de nascer, pela finitude
e pela precariedade própria do ser humano.
ARQ
UIV
O O
E
V I S e m I ná r I o d e É t I ca
divulgação�0
ordem dos enfermeiros
Sob a temática “Da finitude e da fragilidade humana”, na
conferência final, reflectiu-se sobre a inscrição da morte na
existência humana.
A presença dos outros na solidão de cada um aligeira o peso da
fragilidade. Temos a noção de que a experiência da fragilidade
nos afecta e nos desafia a reagir ou a agir no sentido de aceitar.
Pois que não aceitar a fragilidade humana seria viver o absurdo
− tenha-se, todavia, em conta que o tempo de morrer não é
nenhuma banalidade…
Da normalidade que era, antigamente, falar da morte, pas-
sou-se à vergonha e ao pudor que tornaram o falar da morte
quase indecoroso. Hoje, entende-se que a morte faz parte da
vida e é preciso conferir qualidade e dignidade aos processos
de morrer.
No enquadramento deontológico, os deveres dos enfermeiros,
no “respeito do direito da pessoa à vida durante todo o ciclo
vital” reportam-se a “atribuir à vida de qualquer pessoa igual
valor, pelo que protege e defende a vida humana em todas as
circunstâncias; respeitar a integridade biopsicossocial, cultural
e espiritual da pessoa; participar nos esforços profissionais para
valorizar a vida e a qualidade de vida; recusar a participação
em qualquer forma de tortura, tratamento cruel, desumano ou
degradante”. (Artigo 82)
Os enfermeiros assumem a defesa e protecção da vida e da
qualidade de vida, recusando posições extremadas como o são
a eutanásia e a distanásia (obstinação terapêutica).
Se se considera não existir diferença ética relevante entre não
aplicar uma terapia que pode prolongar artificialmente a vida
e retirar um tratamento que se tornou desproporcionado ou
inútil, é porque a pessoa se encontra incursa num processo
que, segundo o conhecimento actual, levará à morte. Assim,
não se determina o encurtamento ou a interrupção da vida
− limita-se a suspender tratamentos artificiais, inúteis e / ou
desproporcionados, que, na maior parte dos casos, provocam
sofrimento inútil ao doente.
Os enfermeiros acompanham os processos de morte dos doen-
tes e seus familiares em situações de emergência, urgência ou
de “morte anunciada”, vivenciando os sentimentos de perda e
luto, de tristeza no decurso dessa relação de cuidados.
Compete-lhes proporcionar acompanhamento e suporte, ha-
vendo uma preocupação efectiva dos enfermeiros em promover
a qualidade de vida no tempo de vida que resta, em garantir
cuidados básicos e paliativos, com respeito pela dignidade de
cada pessoa e no cumprimento das regras da ética e da deon-
tologia profissional.
Tendo o enfermeiro o dever de trabalhar em “articulação e
complementaridade” com os outros profissionais, realça-se a
importância dos processos de formação, de reflexão e debate
no seio das equipas que prestam cuidados no decurso do pro-
cesso de morte.
No sentido da valorização da qualidade de vida e do acompa-
nhamento, entende-se que, nos cuidados paliativos, há um novo
valor para a vida, que faz com que os gestos terapêuticos e de
conforto adquiram um significado próprio. Que se revalorize o
tempo de vida. oe
ARQ
UIV
O O
E