Post on 16-Dec-2018
FACULDADE CÁSPER LÍBERO
Renato Delmanto Barros
‘Voz do Brasil’: proposta de jornalismo
de interesse do cidadão que virou peça de
relações públicas do governo
SÃO PAULO
2015
RENATO DELMANTO BARROS
‘Voz do Brasil’: proposta de jornalismo
de interesse do cidadão que virou peça de
relações públicas do governo
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu,
Mestrado em Comunicação, linha de
pesquisa B: Produtos Midiáticos –
Jornalismo e Entretenimento, da Faculdade
Cásper Líbero, para obtenção do título de
mestre.
Orientadora: Profa. Dra. Simonetta
Persichetti
SÃO PAULO
2015
Delmanto Barros, Renato
Voz do Brasil: proposta de jornalismo de interesse do cidadão que virou peça
de relações públicas do governo / Renato Delmanto Barros. – Sao Paulo, 2015.
144 f. : il. ; 30cm.
Orientadora: Profa. Dra. Simonetta Persichetti
Dissertação (mestrado) – Faculdade Cásper Líbero, Programa de Pós-Graduação
Stricto Sensu – Mestrado em Comunicação
1. Jornalismo. 2. Notícia. 3. Retórica. 4. Relações Públicas. I. Persichetti,
Simonetta. II. Faculdade Cásper Líbero, Programa de Mestrado em Comunicação. III.
Voz do Brasil: proposta de jornalismo de interesse do cidadão que virou peça de
relações públicas do governo.
À minha esposa, Priscilla, que caminha comigo
há tantos anos e me colocou no bom caminho;
e ao meu pai, Sylvio Homero, por me ensinar a ter
uma visão crítica e compreensiva sobre o mundo.
AGRADECIMENTOS
À minha família, que suportou com paciência todo o período de pesquisa e, principalmente,
os muitos momentos de ausência durante o mestrado;
À minha orientadora, Profª. Dra. Simonetta Persichetti, que ajudou na definição do foco,
conseguiu encontrar suporte teórico para minha ideia e não me deixou desistir da jornada;
Aos professores do Mestrado, pelas aulas ministradas e pelas excelentes oportunidades
abertas ao diálogo e à reflexão. O retorno à condição de aluno foi uma experiência
gratificante para mim;
Aos integrantes da banca: Dra. Simonetta Persichetti, Dr. Carlos Eduardo Lins da Silva e
Dr. Dimas A. Kunsch, que me honram por ter aceitado o convite e pelas ótimas
contribuições dadas na qualificação;
Aos jornalistas Carlos Marchi e Eugênio Bucci, personagens importantes da história da Voz
do Brasil, que se dispuseram gentilmente a dar entrevistas para esta pesquisa e relembrar
suas experiências dentro do governo;
Ao prof. Dr. Carlos Costa, pelo apoio e intervenção que foram decisivos para o início deste
Mestrado;
Ao prof. Dr. Júlio César Barbosa, um dos primeiros a conhecer minha ideia de pesquisa e
que sugeriu a análise retórica como um caminho a ser seguido;
Aos colegas professores da Coordenadoria de Jornalismo da Faculdade Cásper Líbero, pelo
incentivo recebido desde o primeiro momento para que eu me dedicasse à pesquisa;
Aos meus colegas de Mestrado, que contribuíram, cada um a sua maneira, com sugestões
para a pesquisa, e pela agradável convivência nesses dois anos;
Ao pessoal da Secretaria da Pós-Graduação e da Biblioteca da Cásper Líbero, sempre
solícitos e dispostos a ajudar;
Aos amigos e colegas que direta ou indiretamente contribuíram para o desenvolvimento
desta pesquisa: Claudio Niwcles Arantes, Helena Jacob, Pedro Serico Vaz, Filomena
Salemme, Eugênio de Menezes, Ricardo Gandour, Mena de Almeida, Vivian Paixão,
Catharina Barros;
A Deus, que me dá forças para combater o bom combate.
“Guarde sempre na lembrança que esta estrada não é sua.
Sua vista pouco alcança, mas a terra continua”
Sidney Miller
RESUMO
A dissertação analisa a primeira parte do programa radiofônico Voz do Brasil – que
veicula informações do Poder Executivo Federal –, com base nas características
específicas do jornalismo e do trabalho de relações públicas. Produzido pela Secretaria
de Comunicação da Presidência da República, o programa tem transmissão obrigatória
por todas as emissoras de rádio do país e foi criado há 80 anos, pelo governo Getúlio
Vargas. Ao longo de quase toda a sua história, o programa foi identificado como
veículo porta-voz do governo – independentemente do regime político vigente no país
(alternância de ditaduras com períodos democráticos). Esta pesquisa procurou extrair
elementos que indicassem, de forma objetiva, que o conteúdo veiculado na Voz do
Brasil apresenta características de peça de comunicação institucional do governo – a
despeito da existência de diretrizes que definem preceitos jornalísticos e preveem o
compromisso com os interesses do cidadão e a defesa do direito à informação. Esta
análise apoia-se nos conceitos de jornalismo e notícia (de Nelson Traquina e outros
autores), nos critérios de noticiabilidade (apontados por Mauro Wolf) e na comparação
do conteúdo do programa com as notícias veiculadas nas edições correspondentes de
jornais de grande circulação. Com base ainda na análise retórica do programa, a partir
das ideias de Tereza Halliday e de Chaïm Perelman, e nas teorias sobre as relações
públicas propostas por Dan Lattimore, Paulo Nassar e outros, concluímos que a Voz do
Brasil é um produto “jornalístico” a serviço das relações públicas do governo federal.
Palavras-chave: Jornalismo. Notícia. Retórica. Relações Públicas.
ABSTRACT
The dissertation aims to investigate the official radio show Voz do Brasil (Voice of
Brazil) – specifically the part that features news from the federal government –, based
on journalism and public relations’ concepts. Produced by the Communication
Secretariat of the Brazilian Presidency, the radio show is mandatory for all
broadcasting stations in the country. Created under the Getúlio Vargas government, 80
years ago, along almost its entire history the radio show has been presented as the
government’s “spokesman” – regardless of the country’s political regime, alternating
dictatorships with democratic periods. The goal of this research was to identify
elements that could indicate that Voz do Brasil is part of the institutional
communication apparatus of government. It happens despite the existence of
guidelines that provide the commitment to the citizens’ interests and their right to
information. The analysis was based on the theory of journalism (supported by Nelson
Traquina and other authors) and the criteria of newsworthiness and news-value
(pointed by Mauro Wolf). In order to verify the accomplishment of these criteria, we
made a comparison between the radio show and the news published by three national
newspapers. We also used rhetorical analysis (based on Tereza Halliday and Chaïm
Perelman), and public relations concepts (proposed by Dan Lattimore and Paulo
Nassar) to conclude that Voz do Brasil is a “journalistic” product serving as a public
relations tool for the federal government.
Keywords: Journalism. News. Rhetoric. Public Relations.
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 – Capa da Folha de S.Paulo – 08 jul 1980 ........................................................ 56
Figura 2 – Capas dos jornais – 12 jun 2003 .................................................................... 58
Figura 3 – Capas dos jornais – 05 fev 2014 .................................................................... 61
Figura 4 – Capas dos jornais – 19 mar 2015.................................................................... 67
Figura 5 – Capas dos jornais – 07 jun 2013 .................................................................... 70
Figura 6 – Capas dos jornais – 08 jun 2013 .................................................................... 71
Figura 7 – Capas dos jornais – 14 jun 2013 .................................................................... 72
Figura 8 – Sites da imprensa internacional – Junho 2013 .............................................. 73
Figura 9 – Capas dos jornais – 16 jun 2015 .................................................................... 74
Figura 10 – Capas dos jornais – 17 jun 2013 .................................................................. 75
Figura 11 – Capas dos jornais – 18 jun 2013 .................................................................. 75
Figura 12 – Capas dos jornais – 19 jun 2013 .................................................................. 77
Figura 13 – Capas dos jornais – 20 jun 2013 .................................................................. 80
Figura 14 – Capas dos jornais – 21 jun 2013 .................................................................. 82
Figura 15 – Capas dos jornais – 20 set 2014 ................................................................... 92
LISTA DE TABELAS
Tabela 1 – Pauta da Voz do Brasil – 04 fev 2014 .................................................... 62
Tabela 2 – Pauta da Voz do Brasil – 18 mar 2015 .................................................... 68
Tabela 3 – Pauta da Voz do Brasil – 20 jun 2013 ..................................................... 81
Tabela 4 – Temas tratados pela Voz do Brasil em maio 2014 ................................... 97
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 12
CAPÍTULO 1: A história da Voz do Brasil ............................................................ 19
Contexto histórico do rádio no Brasil ........................................................... 19
O populismo de Getúlio Vargas .................................................................... 21
O Estado Novo e a obrigatoriedade da Hora do Brasil ................................ 23
O fim da ditadura Vargas e a Voz do Brasil .................................................. 26
O ocaso do populismo: JK, Jânio e Jango ..................................................... 30
O regime militar e uma nova herança autoritária .......................................... 32
A Nova República e a “nova” Voz do Brasil ................................................ 39
Consolidação da democracia e a mesma Voz do passado ............................. 46
Uma proposta jornalística para a Voz do Brasil ............................................ 49
A Voz do Brasil depois de 2007 .................................................................... 51
CAPÍTULO 2: Critérios de noticiabilidade na Voz do Brasil ................................. 53
A “notícia” na Voz do Brasil ......................................................................... 53
O “protesto” do papa Joao Paulo II ............................................................. 55
A manifestaçao que virou “pauta de reivindicações” ................................... 57
O conceito de noticiabilidade ....................................................................... 59
O “apagao” elétrico de 2014 ........................................................................ 60
A polêmica saída do ministro da Educação em 2015 .................................. 65
As manifestações de rua em junho de 2013.................................................. 69
CAPÍTULO 3: Análise retórica da Voz do Brasil .................................................. 84
As origens da retórica na Grécia antiga ....................................................... 84
Retórica enquanto arte de convencer ........................................................... 86
A busca da legitimação pelo discurso .......................................................... 88
O uso do argumento pragmático ................................................................. 89
O argumento da autoridade ......................................................................... 91
Espaço público e manipulação .................................................................... 96
A priorização de temas na Voz do Brasil .................................................... 97
CAPÍTULO 4: Comunicação pública ou relações públicas? .............................. 103
Uma definição para comunicação pública ................................................ 104
Distinções entre jornalismo e relações públicas ....................................... 106
A origem das relações públicas ................................................................ 107
A Voz do Brasil como “mídia da fonte” .................................................. 109
CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................ 112
REFERÊNCIAS ................................................................................................. 114
APÊNDICES ....................................................................................................... 119
Apêndice A – Entrevista com Carlos Marchi – 15 jul 2015 ..................... 119
Apêndice B – Entrevista com Eugênio Bucci – 27 jul 2015 ..................... 135
12
INTRODUÇÃO
O presente trabalho sobre a Voz do Brasil surgiu da preocupação de escolher
um objeto de pesquisa que permitisse a análise de um produto editorial do ponto de vista
jornalístico, mas que esta pudesse ser ampliada com conceitos dos processos de
comunicação institucional. Como professor de graduação em Jornalismo da Faculdade
Cásper Líbero desde 2005, profissional de imprensa por mais de 20 anos (com
experiências em revista, jornal, TV e internet) e especializado em comunicação
corporativa nos últimos 10 anos, a análise da primeira parte do programa de rádio Voz do
Brasil, vinculada ao Poder Executivo Federal, atenderia a essa expectativa acadêmica.
A Voz do Brasil é transmitida de segunda a sexta-feira, das 19h às 20h,
compulsoriamente por todas as emissoras de rádio do país, veiculando “notícias” sobre o
governo federal. É o programa radiofônico mais antigo do Brasil, tendo sido criado em
1935, durante o governo do presidente Getúlio Vargas. Passou a ter transmissão
obrigatória após o golpe de Estado do próprio presidente Vargas, que deu início à
ditadura do Estado Novo (1937-1945). O programa integrava o projeto de propaganda
oficial do governo Vargas, que tinha um de seus pilares no rádio – àquela época ainda um
meio nascente no país. O projeto de comunicação de Vargas guardava forte inspiração
nos modelos de propaganda dos regimes nazista e fascista, vigentes na Alemanha e na
Itália, respectivamente.
Ao longo de quase toda sua história, a Voz do Brasil desempenhou o papel de
porta-voz do governo, funcionando como uma ferramenta de relações públicas oficial, em
vez de ser um produto jornalístico de informação à sociedade a respeito dos temas ligados
ao Poder Executivo federal. Tradicionalmente, o programa submeteu-se aos desígnios dos
governantes, independentemente do regime político que estivesse vigente no país – ao
longo de toda a existência da Voz do Brasil, houve no país uma alternância de fases de
regimes ditatoriais e de democracia. Nos períodos de ditadura – notadamente na primeira
era Vargas1 e no período do regime militar (1964-1985) – essa característica se acentuou,
o que conferiu à Voz do Brasil a pecha de “herança autoritária”. Essa “tradiçao” do
programa somente foi rompida em dois períodos específicos, que serão relatados neste
trabalho: entre 1985 e 1986, no início da chamada Nova República, quando José Sarney
1 Deposto ao final da ditadura do Estado Novo (1945), Vargas voltaria a ser presidente, eleito
democraticamente, cinco anos depois, período conhecido como segunda era Vargas.
13
era presidente da República e o jornalista Carlos Marchi esteve no comando da Voz do
Brasil; e entre 2003 e 2006, no primeiro governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva,
quando o jornalista e professor Eugênio Bucci presidiu a Radiobrás, empresa então
responsável pela produção do programa.
Bucci relatou sua experiência no livro Em Brasília, 19 horas (2008)2, cuja
leitura foi a primeira inspiração para esta pesquisa. A obra indica, no seu subtítulo (“A
guerra entre a chapa-branca e o direito à informação no primeiro governo Lula”), a
dificuldade enfrentada pela equipe do programa ao tentar implantar um projeto de
jornalismo. Naquele período, foram tornados públicos diversos documentos contendo as
propostas editoriais para as emissoras de rádio e TV controladas pela estatal e,
especificamente, para a Voz do Brasil. Tanto o livro quanto esses documentos permitiram
que se tivesse nessa pesquisa uma visão geral da relação entre a linha editorial do
programa e o governo federal.
Para a contextualização histórica do programa, foi fundamental o livro A hora
do clique – análise do programa ‘Voz do Brasil’ da Velha à Nova República, de Lilian
Maria Perosa (1995). A obra permitiu uma compreensao da “convivência” da Voz do
Brasil com os diversos regimes que marcaram a história política do Brasil desde os anos
1930. Graças à extensa pesquisa feita pela autora, foi possível identificar o primeiro
período da história do programa em que se tentou praticar o jornalismo – entre 1985 e
1986, no primeiro ano do governo do presidente José Sarney, na chamada “Nova
República”. Devido à parca documentaçao existente em relaçao àquela fase, as
informações contidas no livro de Lilian Perosa foram complementadas com uma
entrevista com o jornalista Carlos Marchi, que presidiu àquela época a Empresa Brasileira
de Notícias (então responsável pela Voz do Brasil) e foi um dos responsáveis pelo projeto
editorial idealizado sob a inspiração do primeiro governo civil pós-regime militar,
elaborado após a eleição de Tancredo Neves (1910-1985).
Esta dissertação traz no primeiro capítulo a história do programa,
identificando as características de cada fase política vivida pelo país e as relações da Voz
do Brasil com cada um desses contextos políticos – incluindo um detalhamento dos dois
períodos em que foram adotados critérios jornalísticos no programa.
No segundo capítulo, analisamos os critérios de noticiabilidade adotados pelo
programa, a partir da análise comparativa de alguns programas selecionados com as
2 O título do livro faz referência ao jargão usado durante muitos anos na abertura do programa.
14
edições correspondentes de três jornais de grande circulação – O Estado de S.Paulo,
Folha de S.Paulo e O Globo (RJ) –, com o objetivo de verificar se o programa oficial
adota critérios de seleção de notícias distintos dos jornais impressos. O programa foi
acompanhado diariamente durante 30 meses (entre 2013 e 2015), e desse período foram
selecionadas edições que melhor corroborassem a hipótese, aqui sugerida, de que o
conteúdo veiculado, em vez de praticar o jornalismo, presta-se ao papel de peça de
comunicação institucional do governo.
No terceiro capítulo, desenvolvemos uma análise do conteúdo do programa
do ponto de vista retórico, principalmente na questão do uso da retórica em busca de
legitimação perante a sociedade. Conforme essa análise, o conteúdo do programa
demonstra estar a serviço dos interesses específicos do governo, em detrimento dos
interesses dos cidadãos.
O quarto capítulo apresenta os conceitos de comunicação pública e de
relações públicas, e as características que fazem a Voz do Brasil ser uma “mídia” do
próprio governo federal.
Nas considerações finais, concluímos que a Voz do Brasil é um produto de
relações públicas do governo, a despeito da existência de regras e diretrizes que pautam o
trabalho de seus jornalistas. O mais recente documento contendo essas diretrizes foi
publicado em 2013: trata-se do Manual de Jornalismo da EBC – Empresa Brasil de
Comunicação, estatal vinculada à Secretaria de Comunicação da Presidência da
República e que, atualmente, é responsável pela produção da Voz do Brasil. O documento
defende o direito à informação dos cidadãos e vaticina que todos os jornalistas da
empresa devem ter um “compromisso com a verdade”.
Desde o princípio, esta pesquisa se propôs a analisar apenas a parte inicial do
programa, com cerca de 25 minutos de duração, que é de responsabilidade do Poder
Executivo. O restante do horário de transmissão obrigatória é dedicado às duas casas do
Parlamento, ao Poder Judiciário e ao Tribunal de Contas da União. Os conteúdos que não
são de responsabilidade da Presidência da República, dos Ministérios e dos órgãos da
administração direta não foram considerados como objeto de estudo.
Sendo a Voz do Brasil um produto de comunicação vinculado à Presidência
da República, e em razão de a “genealogia” do programa mesclar conceitos das ciências
da comunicação com conceitos da política, optamos por definir algumas noções que serão
adotadas neste trabalho: entre elas jornalismo e notícia, relações públicas, comunicação
15
pública, retórica, poder e Estado. Esses conceitos visam facilitar o entendimento das
análises desenvolvidas nas próximas páginas.
Jornalismo e notícia – o jornalismo é entendido aqui como o ofício de
informar à sociedade a respeito de fatos que sejam de interesse geral dos cidadãos. Ao
longo do século 20, diversos autores – entre eles Lippman, Galtung & Ruge, Golding &
Elliott, Gans, Gaillard, Hohemberg, Traquina, Wolf, Chaparro e Lage – se dedicaram a
definir critérios de noticiabilidade, assim como os valores-notícia (características de um
fato em si) que justificam a sua seleção por veículos jornalísticos. Em suas definições –
muitas vezes complementares – esses autores sugerem como valores-notícia que
credenciam os eventos como “notícias” atributos como novidade (um fato inédito),
raridade (o inesperado, como o exemplo alegórico do homem que morde o cão),
relevância (importância do fato ou dos personagens), proximidade geográfica (se
acontece próximo do público do veículo), negatividade (a questão das bad news e das
good news), entre outros.
Para efeitos desta dissertação, adotamos o conceito de Nelson Traquina
(1993), de que a matéria-prima do jornalismo é a notícia, ou seja, os acontecimentos ou
as informações que sao transformados em notícia pelo “sistema jornalístico”. Numa
perspectiva histórica, as notícias eram os acontecimentos com “direito à existência
pública”, que eram selecionados pelos jornalistas para aparecerem nos veículos
(conforme o processo do gatekeeper), o que os transformava em temas de discussão da
opinião pública (aqui no conceito de agenda setting).
Para avaliar o processo de seleção de notícias pelos veículos, optamos pelos
conceitos de noticiabilidade (newsworthiness) apresentados por Mauro Wolf (2012).
Dentre as várias possibilidades de análise propostas pelo autor – e embasadas por outros
autores – adotamos os critérios “substantivos”. Esses critérios podem ser verificados com
base no (a) grau hierárquico dos envolvidos; (b) impacto do fato sobre o interesse
nacional; (c) quantidade de pessoas que o acontecimento envolve (direta ou
indiretamente); e (d) relevância em relação aos desenvolvimentos futuros de uma
determinada situação. Acreditamos que esses critérios permitem uma avaliação menos
subjetiva do que seriam temas de interesse da sociedade.
O desenvolvimento de novas tecnologias e a enorme difusão de informações
proporcionada pelas plataformas antes inexistentes (notadamente as mídias sociais e as
redes de compartilhamento) vêm transformando o papel do jornalismo, mas este não é o
16
foco deste trabalho. Aqui, pretendemos resgatar a liturgia que caracteriza o ofício do
jornalista (e que contribui para a credibilidade da profissão): o compromisso com a
acuidade, com a veracidade e com a integridade.
Comunicação pública – para a análise desenvolvida nesta pesquisa sobre a
Voz do Brasil, optamos por um conceito de comunicação pública sugerido por Jorge
Duarte, Eugênio Bucci e outros autores. Neste trabalho, a comunicação pública é
entendida como aquela que se ocupa da “viabilização do direito social coletivo e
individual ao diálogo, à informação e expressão” (DUARTE, 2012), ou simplesmente
“toda comunicaçao que tematiza um assunto de interesse público” (BUCCI, 2015).
Trabalhamos com duas dimensões da comunicação pública: a primeira a
define como aquela para a qual concorre o dinheiro público – na forma de recursos,
equipamentos, equipes de funcionários ou efetivamente o controle ou participação
acionária de algum ente público. Já a segunda dimensão define que comunicação pública
é aquela que, obrigatoriamente, deve observar os princípios constitucionais,
principalmente o da impessoalidade. Dessa forma um veículo de comunicação pública
não pode ter como objetivo servir a interesses de governantes ou autoridades de turno,
mas aos interesses do Estado e do cidadão.
Relações públicas – dentre as muitas definições existentes, adotamos aqui um
conceito baseado, principalmente, nos autores Lattimore (2009), Kunsch (2003) e Nassar
(2007), que consideram como relações públicas ações de comunicação patrocinadas por
entidades ou organizações com o objetivo de ter uma visibilidade pública, uma melhor
imagem ou conseguir a inserção na esfera pública. Lattimore propõe uma distinção entre
o campo específico das relações públicas e o do jornalismo: pois os jornalistas não
representam as organizações sobre as quais escrevem, enquanto os profissionais de
relações públicas, sim. Para o autor, isso influencia a maneira como os profissionais de
relações públicas enquadram ideias e a indpendência na apresentação dos fatos. No
entanto, isso não significa que o trabalho de relações públicas dispense o profissional de
respeitar preceitos éticos – ao contrário, o bom trabalho de relações públicas não admite a
disseminação de informações inverídicas, seja de maneira proposital, seja involuntária.
Sant’Anna (2004) sugere que as relações públicas estao englobadas num
conceito mais amplo de comunicação institucional – que inclui o conjunto de conteúdos
disponibilizados pelas organizações e instituições à opinião pública. A comunicação
17
institucional possibilita que sejam desenvolvidos por esses entes jurídicos canais próprios
de conteúdo, o que o autor define como mídia das fontes. Essas mídias distribuem
informações que sao tratadas “editorialmente” por profissionais vinculados a essas
organizações, que se utilizam de processos “jornalísticos” semelhantes aos dos veículos
de imprensa. No entanto, diferentemente da imprensa, essas mídias das fontes têm o
objetivo de defender os interesses das entidades ou organizações às quais estão
vinculadas – conceito que se encaixa na análise do programa Voz do Brasil.
Retórica – partindo dos fundamentos de Aristóteles, o conceito de retórica
adotado nesta pesquisa tem como base os estudos de Tereza Halliday (1987, 1988) e de
Chaim Perelman (2005). Num processo dialógico entre os dois autores, optamos por uma
definição de retórica como um processo comunicacional que busca a legitimação de uma
organização ou entidade a partir de discursos institucionais, conteúdos oficiais e
propagandas. Halliday mostra que empresas e instituições constroem seus discursos
retoricamente, para atender a objetivos específicos, como construir “simbolicamente” a
realidade. Já Perelman (2005) propõe um “nova retórica”, na qual a “verdade” nao
decorre de um raciocínio lógico corroborado por “evidências” empíricas, mas da
deliberação do público em aceitá-las como tal. Isso é um fator relevante a ser considerado
na análise do conteúdo da Voz do Brasil, visto que se trata de um programa com
transmissão obrigatória por todas as emissoras de rádio do país.
Poder – o fato de a Voz do Brasil estar vinculada à Presidência da República
e de ter sido criada como instrumento de divulgação do governo Vargas, inspirada em
regimes autoritários (fascismo e nazismo), leva-nos a adotar, primeiramente, um conceito
de poder no sentido político (a partir de Norberto Bobbio e outros autores). Entretanto,
sendo o objetivo de nossa análise o uso do programa como peça de comunicação
governamental, optamos por adotar os conceitos propostos por John B. Thompson
(2013), que tratam o poder como “a capacidade de intervir no curso dos acontecimentos e
em suas consequências”.
Se atualmente costuma-se associar o poder à política – ou às “ações de
indivíduos agindo em nome do Estado” –, isso se deve ao fato de os Estados terem se
tornado, particularmente, centros importantes de concentração do poder que têm se
utilizado dos meios de informação e comunicação. Com esse intuito, os detentores do
poder usam a comunicação para provocar reações de determinado teor na opinião pública
18
– como sugerir caminhos e decisões, induzir a crer e a descrer em determinada tese ou
pessoa etc.
Estado e autoritarismo – neste trabalho, optamos por um conceito de Estado
baseado na definição de Weber: instituição política que, dirigida por um governo, detém
o monopólio da força física, em determinado território, subordinando a sociedade que
nele vive. A distinção entre Estado e governo é particularmente relevante na análise aqui
desenvolvida: pois a Voz do Brasil é diretamente ligada à estrutura do Estado, mas, ao
longo de quase toda a sua história, foi tratada como peça de comunicação a serviço dos
governos de turno, aos quais esteve submetida.
De Bobbio, emprestamos o conceito de autoritarismo, já que a Voz do Brasil
foi criada no governo de Getúlio Vargas, apenas dois antes do golpe que instituiu a
ditadura do Estado Novo (1937-1945). Em outro período de sua história, durante o
regime militar (1964-1985), o programa foi usado como “porta-voz” da ditadura, o que
acabou gerando, na sociedade, a percepção de que é uma “herança autoritária”. Bobbio
define autoritarismo como o regime que privilegia a autoridade governamental e diminui
“de forma mais ou menos radical o consenso”, colocando em posiçao secundária as
instituições representativas. Em outras palavras, é um contraponto à democracia.
Conforme veremos ao longo dessa dissertação, a Voz do Brasil tornou-se um
instrumento usado por grupos instalados no interior do Estado (notadamente em regimes
autoritários, mas também nos períodos democráticos) para disseminar sua ideologia ou
defender seus interesses.
19
CAPÍTULO 1
A história da ‘Voz do Brasil’
Contexto histórico do rádio no Brasil
A primeira transmissão de rádio no Brasil ocorreu no dia 6 de abril de 1919,
em Recife (PE). Naquela data, os cientistas amadores Oscar Moreira Pinto, Augusto
Pereira e João Cardoso Alves inauguraram a Rádio Clube de Pernambuco, usando um
transmissor importado da França. Apesar dessa primeira transmissão, a data oficial de
início da radiodifusão no Brasil é 7 de setembro de 1922, quando o presidente da
República, Epitácio Pessoa, discursou na abertura da Exposição Internacional do Rio de
Janeiro, como parte das comemorações do centenário da Independência do Brasil.
A fala presidencial foi veiculada por um transmissor de 500 watts de potência
instalado no alto do Morro do Corcovado. Por iniciativa das companhias Rio de Janeiro
and São Paulo Telephone Company, Westinghouse International Company e Western
Electric Company, foram instalados 80 receptores no Rio de Janeiro, em Niterói e em São
Paulo. O jornal carioca A Noite, na edição do dia seguinte, descreveu o impacto dessa
experiência sobre a população:
À noite, no recinto da Exposição, em frente ao posto de Telephone
Público, por meio do telephone alto-falante, a multidão teve uma
sensação inédita. A ópera Guarany, de Carlos Gomes, que estava sendo
cantada no Theatro Municipal, foi alli, distinctamente ouvida bem como
os applausos aos artistas (ORTRIWANO, 1985, p.13).
Após essa cerimônia, o sistema de radiodifusão seguiu funcionando por
alguns dias, com a transmissão de óperas encenadas no Teatro Municipal do Rio de
Janeiro. No entanto, como não havia um sistema de transmissão regular nem aparelhos
receptores vendidos a preços acessíveis, o rádio deixou de funcionar poucos dias depois
do fim da Exposição Internacional.
A popularização do rádio no Brasil deve muito ao médico e antropólogo
carioca Edgard Roquette-Pinto (1884-1954). Aos 22 anos, ele iniciou uma carreira de
professor de Antropologia, Etnografia e Arqueologia do Museu Nacional, no Rio de
Janeiro. Naquela época, começou a se dedicar à divulgação científica, por meio de livros,
exposições e novas tecnologias, como o cinema e o rádio. Roquette-Pinto tornou-se um
entusiasta da experiência radiofônica a partir da Exposição Internacional. Em 20 de abril
de 1923, fundou a Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, que iniciou suas transmissões
20
regulares no dia 1º de maio daquele ano e é considerada a primeira emissora educativa do
país. A programação era composta por música, notícias e diversos cursos – “aulas de
silvicultura prática, lições de história natural, física, química, italiano, francês, inglês,
português, geografia e até palestras seriadas” (RANGEL, 2010, p.13). O próprio
Roquette-Pinto era quem apresentava o Jornal da Manhã. Ele criaria ainda a Rádio
Escola Municipal do Rio de Janeiro, em 1934 e, em 1936, doou ao Governo Federal a
Rádio Sociedade – ato que deu origem ao Serviço de Radiodifusão Educativa, do qual o
próprio Roquette-Pinto seria diretor até 1943. Em 1946, a Prefeitura do Rio de Janeiro
renomeou a rádio como Rádio Roquette-Pinto – sem o aval do próprio homenageado.
O entusiasmo de Roquette-Pinto pelo meio rádio e o seu empreendedorismo
no setor o transformaram em “patrono” desse meio no Brasil, um “título” informal que se
deve a manifestações públicas feitas em diversas ocasiões ao longo de sua vida:
O rádio é o jornal de quem não sabe ler; é o mestre de quem não pode
ir à escola; é o divertimento gratuito do pobre; é o animador de novas
esperanças; o consolador dos enfermos; o guia dos sãos, desde que o
realizem com espírito altruísta e elevado (OLIVEIRA & COSTA,
2012, p.10).
Além da notável dedicação e dos esforços de Roquette-Pinto, o envolvimento
de outros empreendedores – como os empresários Paulo Machado de Carvalho, que
adquiriu a Rádio Record de São Paulo em 1931, e Assis Chateaubriand, que inaugurou a
Rádio Tupi do Rio de Janeiro em 1935 – contribuíram significativamente para a
popularização do rádio no Brasil.
O político gaúcho Getúlio Vargas identificou no novo meio uma ferramenta
que poderia ser útil para disseminar seu estilo populista. Em 1930, Vargas era governador
do Rio Grande do Sul quando disputou a presidência da República com o paulista Júlio
Prestes. A chamada República Velha tinha sido marcada pela “política do café-com-
leite”, em que paulistas e mineiros revezavam-se no poder central.3 Naquele ano, Prestes
rompeu o acordo e decidiu candidatar-se à sucessão do também paulista Washington
Luís. Aliado aos mineiros e a grupos nordestinos igualmente insatisfeitos com essa
oligarquia, Getúlio disputou a eleição em março, mas foi derrotado por Prestes.
Denúncias de fraudes na eleição e o assassinato do paraibano João Pessoa (candidato a
vice-presidente na chapa de Vargas) provocaram uma crise institucional no país.
3 A expressão vem do café, que era produzido em São Paulo, e da tradição pecuária mineira que produzia
leite e queijos.
21
Washington Luís foi deposto e preso em 24 de outubro de 1930 pelos ministros militares,
que empossaram Vargas na presidência no dia 3 de novembro.
Em 1932, o governo de Vargas enfrentou a Revolução Constitucionalista,
quando os governos de São Paulo, Minas Gerais, Rio Grande do Sul e lideranças políticas
da parte sul do Mato Grosso se rebelaram contra o poder central. As tropas
constitucionalistas acabaram derrotadas, mas o movimento aumentou a pressão sobre o
governo, que acabou por convocar uma Assembleia Constituinte. Em 1934, foi
promulgada uma nova Constituição e Vargas foi eleito presidente (CPDOC, 1997b).
A nova Constituiçao, “apesar de ser a mais liberal e progressista que (o país)
jamais tivera, era ainda uma pérola do autoritarismo e do elitismo”, pois o voto excluía os
analfabetos (que representavam cerca de dois terços da população), aumentou o poder de
intervenção do Estado na política e na economia, e permitiu a nacionalização de empresas
estrangeiras e a criação de monopólios nacionais (GONTIJO, 1996, p.19).
O populismo de Getúlio Vargas
Uma das principais características do varguismo era a política populista, com
a qual o mandatário se aproximava da população, principalmente das camadas mais
pobres. A crise econômica decorrente da quebra da Bolsa de Valores de Nova Iorque em
1929, que descapitalizou a elite produtora de café no Brasil, gerou uma série de protestos
de operários nas grandes cidades do país. Vargas teve a capacidade de incorporar ao seu
discurso o apelo popular e conseguir elaborar um discurso político que fosse
compreendido pela população insatisfeita. Não se tratava de uma mera questão
semântica: o povo que protestava queria “comida, casa e trabalho, e nao alimentaçao,
moradia e emprego” – e, nesse sentido, o governo Vargas soube “compreender a
importância da decodificaçao de um discurso elitista por outro de apelo popular”.
(GONTIJO, 1996, p.18).
No projeto populista de poder de Vargas, os meios de comunicação ganharam
relevância. Dentre eles, o rádio foi escolhido como um dos alicerces de seu plano de
integração nacional. A estratégia de Vargas era profissionalizar o setor, dando concessões
de emissoras à iniciativa privada, e incentivando o desenvolvimento da indústria nacional
para baratear o custo dos aparelhos receptores – antes importados. Para garantir a
sobrevivência das emissoras privadas, Vargas assinou um decreto, em 1932, que
autorizava a veiculação de anúncios comerciais no rádio. O objetivo do governo com
essas medidas era fazer com que o meio se popularizasse rapidamente. Essa meta foi
22
atingida: entre 1937 e 1942, o número de receptores cresceu de 357.921 para 659.762
(CAPELATO, 1999, p.176).
Em julho de 1935, foi criado o programa Hora do Brasil, por sugestão de
Lourival Fontes, então diretor do Departamento de Propaganda e Difusão Cultural
(DPDC).4 Embrião da atual Voz do Brasil, o programa tinha um papel estratégico nesse
projeto de comunicação varguista. A missão do programa era ser o divulgador oficial dos
atos do governo, principalmente dos discursos do presidente. Já o objetivo “extraoficial”
da Hora do Brasil era transmitir “uma prestaçao de contas do governo ao povo, em que a
narração pura e simples dos atos e iniciativas da autoridade se torna o melhor e mais
convincente elogio do regime” (TOTA, 1987, p.37).
O primeiro programa, com a abertura da ópera O Guarani, de Carlos
Gomes, foi transmitido dos estúdios da Rádio Guanabara, no Rio de
Janeiro, e apresentado pelo locutor Luiz Jatobá. Nessa ocasião, entraram
em cadeia oito emissoras (PEROSA, 1995, p.44).
A consciência de Vargas a respeito da importância do meio rádio ficou clara
na mensagem que o presidente enviou ao Parlamento em 1° de maio de 1937, propondo
que a União viabilizasse a instalação de receptores de rádio com alto-falantes instalados
“mesmo nas pequenas aglomerações”, para dar condições que a populaçao pudesse
usufruir
momentos de educação política e social, informes úteis aos seus
negócios e toda sorte de notícias tendentes a entrelaçar os interesses
diversos da Nação. A iniciativa mais se recomenda quando
considerarmos o fato de não existir no Brasil imprensa de divulgação
nacional. São diversas e distantes as zonas do interior e a maioria delas
dispõe de imprensa própria, veiculando apenas as notícias de caráter
regional (PEROSA, 1995, p.46).
A tendência autoritária de Vargas só seria conhecida a partir do golpe que
daria origem à ditadura do Estado Novo, em novembro de 1937. Mas a simpatia, ainda
que velada, do governo com os regimes nazista da Alemanha e fascista da Itália
começava a ser demonstrada no projeto de comunicação e de propaganda política oficial
que estava sendo implantado. A própria criação da Hora do Brasil trazia essa inspiração:
Lourival Fontes trouxe aquela filosofia de propaganda do Mussolini.
Ele foi à Itália numa delegação de futebol, foi recebido por Mussolini e
andou estudando tudo aquilo. Voltou de lá apaixonado pelo regime
4 O Departamento de Propaganda e Difusão Cultural (DPDC) foi criado pelo governo provisório no dia 10
de julho de 1934, às vésperas da promulgação da Constituição de 1934. O órgão substituiu o Departamento
Oficial de Propaganda (DOP), criado logo após a Revolução de 1930. O DPDC se propunha a estudar a
utilização do cinema, do rádio e de outros meios de comunicação de massa na propaganda governamental.
Após o golpe que instituiu o Estado Novo, em 1937, o órgão foi sucedido pelo Departamento de Imprensa e
Propaganda – DIP (CPDOC, 1997b).
23
fascista, principalmente em relação à propaganda (PEROSA, 1995,
p.40).5
O Estado Novo e a obrigatoriedade da Hora do Brasil
Com o golpe de Estado de novembro de 1937, Getúlio Vargas revogou a
Constituição e teve início o período ditatorial do Estado Novo. Durante a ditadura
Vargas, o governo ampliou a repressão policial aos opositores, implantou um rígido
controle sobre a produção artística e submeteu à censura todos os meios de
comunicação, pois os considerava estratégicos para a consolidação do regime e para o
controle social (CARNEIRO, 1997, p.333). A Hora do Brasil foi então transformada
em uma das principais ferramentas da ditadura Vargas para atingir seus objetivos de
comunicação. E, em 1938, o programa passou a ter veiculação obrigatória por todas as
emissoras do país. O Departamento de Propaganda e Difusão Cultural foi substituído
pelo Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), órgão responsável por difundir a
ideologia do Estado Novo e a imagem do presidente, além de coordenar todo o
programa oficial de radiodifusão e censura aos meios de comunicação e às produções
artísticas. Lourival Fontes foi mantido na direção do DIP, e a produção da Hora do
Brasil passou a ser de responsabilidade do novo órgão. Criado por um decreto
presidencial em 27 de dezembro de 1939, o DIP nasceu com a finalidade de
centralizar, coordenar, orientar e superintender a propaganda
nacional interna ou externa e servir permanentemente como
elemento auxiliar de informação dos ministérios e entidades públicas
e privadas, na parte que interessa à propaganda nacional (TOTA,
1987, p. 34).
Entre as funções específicas do DIP, destacavam-se:
c) fazer censura do teatro, do cinema, de funções recreativas e
esportivas de qualquer natureza, de radiodifusão, de literatura social
e política, e da imprensa, quando a esta forem cominadas as
penalidades previstas pela lei; (...)
p) organizar e dirigir o programa de radiodifusão oficial do governo
(PEROSA, 1995, p.40).6
5 Em 1935, Lourival Fontes defendeu a ideologia fascista em entrevista ao Diário da Noite: “O fascismo é
um regime que caminha para o povo e que se antecipa e realiza, no campo das conquistas e da cooperação
social, os imperativos mais avançados da dignificaçao, valorizaçao e igualdade do trabalhador”. Além do
diretor do DIP, outro integrante do primeiro escalão do Estado Novo assumidamente simpático aos regimes
nazi-fascista era Filinto Muller, chefe da polícia política responsável pela repressão aos opositores
(CPDOC, 1997b). 6 O interesse estratégico da ditadura Vargas no rádio pode ser medido pela censura prévia do DIP: somente
em 1940, quando havia apenas 78 emissoras no país, a Divisão de Rádio do órgão analisou 3.770
programas e 1.615 quadros (ou sketches, na linguagem da época). Desses, foram proibidos 108 programas,
sob a alegaçao de que eram “contrários às determinações legais”. Além disso, o órgao previamente analisou
483 peças de teatro e 2.416 gravações musicais (PEROSA, 1995, p.44).
24
Mesmo que não assumidamente, o DIP trazia a inspiração dos modelos
fascista e nazista de propaganda. Conforme esse modelo, o rádio passou a ter um
papel fundamental na formação de uma opinião pública convergente com o regime,
seguindo inspiração do próprio ministro da Propaganda nazista, Joseph Goebbels:
Com o rádio, destruímos o espírito de rebelião. O rádio deve ser
propaganda. E propaganda significa combater em todos os campos
de batalha do espírito, gerar, multiplicar, destruir, exterminar,
construir e abater. A nossa propaganda é inspirada naquilo que
chamamos raça, sangue e nação alemães (GIOVANNINI, 1987,
p.185).7
Estilo semelhante foi adotado pelo DIP na comunicação de governo;
conseguiu trabalhar a imagem de Vargas como um político ligado às massas, que
governava defendendo os direitos da população mais carente. A despeito do contexto
político vigente, no qual havia repressão aos adversários do regime e censura sobre os
meios de comunicação, a propaganda oficial conseguiu consolidar entre a população a
imagem de Vargas como o “pai dos pobres”. No Estado Novo,
a propaganda política tinha características particulares: uso de insinuações
indiretas, veladas e ameaçadoras; simplificação das idéias para atingir as
massas incultas; apelo emocional; repetições; promessas de benefícios
materiais ao povo (emprego, aumento de salários, barateamento dos gêneros
de primeira necessidade); promessas de unificação e fortalecimento nacional
(CAPELATO, 1999, p.167).
Vargas foi o primeiro político brasileiro a usar a propaganda e os meios de
comunicação como parte de um projeto de poder e peça de legitimação do regime. E
foi também o primeiro político a identificar a importância política do rádio, usando-o,
conforme Ortriwano (1985, p.17), dentro de um modelo autoritário.
A propaganda política é estratégica para o exercício do poder em
qualquer regime, mas naqueles de tendência totalitária ela adquire
força muito maior porque o Estado, graças ao monopólio dos meios
de comunicação, exerce censura rigorosa sobre o conjunto das
informações e as manipula. O poder político, nesses casos, conjuga o
monopólio da força física e da força simbólica. Tenta suprimir, dos
imaginários sociais, toda representação do passado, presente e futuro
coletivos que seja distinta daquela que atesta a sua legitimidade e
cauciona seu controle sobre o conjunto da vida coletiva
(CAPELATO, 1999, p.169).
Na Alemanha nazista, a propaganda era vista não só como instrumento de
persuasão em torno dos objetivos do regime, mas era usada como uma verdadeira
7 Joseph Goebbels (1887-1945), ministro da Propaganda de Hitler, foi o principal idealizador do programa
de comunicação do regime nazista.
25
ferramenta de “hipnose” coletiva das multidões, com o objetivo de “submeter a
população, preparar as massas para as grandes tarefas nacionais e favorecer uma
revoluçao espiritual e cultural”. Capelato destaca que o próprio Hitler e o seu ministro
Goebbels destacavam a importância da propaganda e os objetivos dela esperados:
Segundo os preceitos de Hitler expressos em Mein Kampf:8 “A arte
da propaganda consiste em ser capaz de despertar a imaginação
pública fazendo apelo aos sentimentos, encontrando fórmulas
psicologicamente apropriadas que chamam a atenção das massas e
tocam os corações”. Goebbels também expôs o que se deveria
esperar da propaganda: “(...) é boa a propaganda que leva ao sucesso
(...). Esta não deve ser correta, doce, prudente ou honorável (...)
porque o que importa não é que uma propaganda impressione bem,
mas que ela dê os resultados esperados” (CAPELATO, 1999, p.168).
Na ditadura Vargas, nem todos os ideólogos ou adeptos do Estado Novo se
assumiam simpatizantes do nazi-fascismo. Mas os integrantes do governo buscaram
inspiração no regime alemão para desenvolver o projeto de comunicação varguista – e
aperfeiçoar-se na arte de, usando mensagens políticas, “envolver” as multidões em
torno de um governo totalitário que se mantinha no poder por meio da força.
Nesse tipo de discurso, o significado das palavras importa pouco,
pois, como declarou Goebbels, “nao falamos para dizer alguma
coisa, mas para obter um determinado efeito”. No Estado Novo, o
efeito visado era a conquista do apoio necessário à legitimação do
novo poder, oriundo de um golpe (CAPELATO, 1999, p.172).
A repressão política e a censura aos meios de comunicação sufocavam a
oposição ao regime e permitiram que a propaganda oficial do Estado Novo alcançasse
um nível de produção e organização até então sem precedentes no país. Inspirados
pelo exemplo alemão, os responsáveis pela comunicação varguista transformaram a
Hora do Brasil num dos principais veículos de divulgação do governo e,
principalmente, do presidente:
Os discursos de Vargas, proferidos em inaugurações, comemorações e
visitas, assim como o de seus ministros e assessores, forneciam o conteúdo
básico da propaganda. Havia controle direto sobre os veículos de
comunicação: jornais, rádios, cinema. A partir de 1940, 420 jornais e 346
revistas não conseguiram registro no DIP. Os que insistiram em manter sua
independência ou se atreveram a fazer críticas ao governo tiveram sua
licença cassada (CAPELATO, 1999, p.173).9
8 Mein Kampf, ou “Minha Luta”, em traduçao livre, é o título do livro de Adolf Hitler que resume as suas
ideias em relação ao antissemitismo e ao nacional-socialismo, também conhecido como a “bíblia nazista”.
Escrito em dois volumes – o primeiro produzido quando Hitler esteve na prisão, antes de assumir o poder, e
o segundo escrito fora da prisão e editado em 1926. 9 O jornal O Estado de S.Paulo foi um dos alvos da ditadura varguista. Em março de 1940, policiais
invadiram a sede do jornal e alegaram ter encontrado armas sobre o forro do prédio, que serviriam a uma
26
O fim da ditadura Vargas e a Voz do Brasil
O processo de desarticulação do Estado Novo começou em 1942, com o
envolvimento oficial do Brasil na II Guerra Mundial. O rompimento com a Alemanha
nazista e a aliança com os países aliados contribuíram para o enfraquecimento do
regime ditatorial. “Como justificar a manutençao da ditadura, se soldados brasileiros
lutavam na Europa em prol da democracia?” (PANDOLFI, 1999, p.11). O DIP
também teve seu poder reduzido em decorrência do alinhamento do governo federal
contra os países do Eixo. Em 1942, o diretor do órgão, Lourival Fontes, e outros
ministros de Vargas mais simpáticos às ditaduras alemã e italiana foram exonerados
diante de pressões dos movimentos antifascistas.
A derrota alemã e o fim da II Guerra Mundial, em 8 de maio de 1945,
foram determinantes para o fim do Estado Novo no Brasil. Getúlio Vargas foi
deposto pelo Exército no dia 29 de outubro de 1945, e exilado em sua cidade natal,
São Borja (RS).
Com a deposição de Vargas em 1945, o DIP foi cercado pela polícia do
Exército e os funcionários foram presos. O redator Américo Luiz da
Silva, da Hora do Brasil, redigiu o noticiário de deposição sob a mira
do capitão Pitalunga. Outro redator, Manoel Antunes Macieira,
praticamente decretou o desaparecimento da memória do DIP. Nervoso,
segundo depoimento do jornalista Henrique Brandenburguer – redator
do Departamento desde 1941 –, ele pôs fogo em preciosos documentos
do órgão (PEROSA, 1995, p.55).
Em 2 de dezembro daquele ano, foram realizadas eleições presidenciais e
o marechal Eurico Gaspar Dutra foi eleito pela coligação PSD-PTB. Dutra tomou
posse em 31 de janeiro de 1946, mas como ainda estava em vigor a Constituição de
1937 (promulgada por Vargas no início do Estado Novo), foi convocada uma
Constituinte para elaborar uma nova Carta. Os constituintes elegeram o político
catarinense Nereu Ramos como vice-presidente (pois a Carta varguista não previa
esse cargo).
Com o clima de redemocratização no país, o presidente Dutra passou a ser
pressionado por empresários do setor de radiodifusão para acabar com a Hora do
Brasil, pois o programa era visto como uma obsoleta herança fascista do Estado
Novo. Dutra, que havia sido ministro da Guerra durante nove anos do governo Vargas
reedição da revolução de 1932. Durante 5 anos, o jornal esteve sob intervenção, só retornando ao controle
da família Mesquita em dezembro de 1945, após a queda de Vargas.
27
– e que, portanto, também havia se beneficiado da propaganda oficial feita pela Hora
do Brasil,
concordou em princípio com a ideia, para logo abandoná-la ante os
argumentos dos setores político-partidários que viram no programa
um importante meio de propaganda em favor do próprio governo.
Receando desagradar os opositores da Hora do Brasil, Dutra admitiu
fazer mudanças no programa que refletissem a fase democrática
experimentada pelo país naquele momento (PEROSA, 1995, p.57).
As principais mudanças foram a alteração de nome do programa para Voz
do Brasil, a ampliação do número de apresentadores para três e a designação de 10
minutos do programa para notícias do Poder Legislativo.10
No entanto, o programa manteve, durante o mandato de Dutra, as mesmas
características de veículo porta-voz do governo. Apesar de abrir espaço para a
cobertura da Assembleia Constituinte – desde a sua instalação, em 1945, até a
promulgação da nova Constituição, em 18 de setembro de 1946, inclusive dando voz a
parlamentares comunistas11 –, o programa seguiu a linha ideológica do novo
presidente. Eleito pelas mesmas forças políticas que apoiavam Vargas (os partidos
PSD e PTB), e pelos militares que haviam derrubado a ditadura do Estado Novo,
Dutra tinha algumas diferenças em relação a seu antecessor, principalmente em
relação às ideias nacionalistas e à participação política dos trabalhadores.
O presidente Dutra era mais influenciado por empresários; abriu a
economia para o capital estrangeiro e reduziu a força das estatais. No seu governo, foi
criada a Escola Superior de Guerra (ESG), no Rio de Janeiro, que se tornaria um
importante centro de formação político-militar anticomunista. Também, durante seu
governo, o Partido Comunista voltou à ilegalidade (em 1947), e seus parlamentares
tiveram os mandatos cassados – entre eles os 15 deputados federais –, foi dissolvida a
Confederação dos Trabalhadores do Brasil (CTB) e foram rompidas as relações
diplomáticas com a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Segundo
Lilian Perosa (1995, p.60), todos esses episódios foram narrados “sob o ponto de vista
oficial” pela Voz do Brasil.
Além da cobertura alinhada aos interesses do governo, o programa ignorou
as inovações adotadas naquela época no meio radiofônico – especialmente por
emissoras comerciais em programas como o Repórter Esso, da Rádio Nacional
10 O horário destinado a notícias do Congresso Nacional na Voz do Brasil decorria da aprovação de um
projeto de lei de autoria do deputado Angelo Mendes de Moraes. 11 Eleitos pelo Partido Comunista Brasileiro, que havia estado na ilegalidade até 1945.
28
(lançado em 1941), e o Grande Jornal Falado Tupi, da Rádio Tupi (lançado em
1942), que contribuíram para o desenvolvimento da linguagem jornalística
radiofônica, que deixou de ser “apenas a leitura no microfone das notícias dos jornais
impressos” (ORTRIWANO, 1985, p.21).
Já a Voz do Brasil manteve o estilo formal, com uma leitura linear e
monótona de “textos densos, muitas vezes ininteligíveis ao ouvinte comum”
(PEROSA, 1995, p.63). O conteúdo do programa era composto, principalmente de
decretos governamentais e discursos do presidente e dos ministros. Também foi
mantida, no governo Dutra, a obrigatoriedade de transmissão por todas as emissoras
do país. Essa obrigatoriedade da transmissão persiste até hoje e é alvo de uma
campanha por parte de entidades do setor, iniciada em 1995.12
Em outubro de 1950, Getúlio Vargas foi novamente eleito presidente pela
coligaçao “Aliança das Forças Populistas”, com a qual retomou a política de
reaproximaçao com as massas e assumiu bandeiras nacionalistas como a do “Petróleo
é Nosso”. A Voz do Brasil novamente desempenhou um papel importante nesse
propósito do presidente, que enfrentaria um novo contexto político, principalmente
com uma cobrança maior por parte do Parlamento e da imprensa. Além da Voz do
Brasil, Vargas contava com um único grande aliado na imprensa, o jornalista Samuel
Wainer (1910-1980), proprietário do jornal Última Hora.13
Nesse contexto, os conteúdos veiculados pela Voz do Brasil
priorizaram nomes em detrimento dos fatos. Explicável, portanto,
que episódios como a criação da Petrobrás (1953), e a revisão do
salário mínimo, no mesmo ano, foram sempre abordados como
dádivas do governo ou, melhor dizendo, de Getúlio Vargas. O
12 A campanha foi iniciada pela Rádio Eldorado, vinculada ao Grupo Estado, e teve a adesão de 850 emissoras e
entidades como a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e TV (Abert). Os empresários do setor alegavam
que a Voz do Brasil era um resquício do regime autoritário e que o noticiário oficial dos Poderes da República não
atraía o interesse dos ouvintes, principalmente nos grandes centros urbanos. Argumentavam também que a
obrigatoriedade limita a liberdade de prestar serviços aos ouvintes, dar notícias e cobrir eventos esportivos. O fim da
obrigatoriedade segue sendo um pleito do setor, embora algumas emissoras retransmitam o programa em horários
alternativos, amparadas por liminares judiciais. Atualmente, tramitam no Congresso o Projeto de Lei nº 595/2003 e
a Medida Provisória 648/2014, que nao propõem o fim da obrigatoriedade, mas “flexibilizam” o horário de
transmissão do programa. 13 O jornal Última Hora foi lançado em 1951, com o apoio de Getúlio Vargas, que viabilizou um empréstimo do
Banco do Brasil ao jornalista Samuel Wainer, um ex-repórter dos Diários Associados. O jornal nasceu com o
objetivo de ser um veículo de defesa do governo Vargas. A despeito disso, o veículo desenvolveu um estilo editorial
revolucionário para a época, com o uso de fotos e títulos em linguagem informal, o que o transformou num sucesso
de público. No entanto, o posicionamento político da Última Hora e a ligação de Wainer com Vargas fizeram com
que o jornalista passasse a ser alvo de denúncias da oposição. Carlos Lacerda acusava o jornalista (filho de uma
família de judeus da Bessarábia, atual Ucrânia) de ter emigrado para o Brasil criança – o que feria a legislação
brasileira, que não permitia que estrangeiros fossem proprietários de veículos de imprensa. Wainer foi investigado
por uma CPI no Congresso Nacional, o que contribuiu para agravar a crise política do segundo governo Vargas
(WAINER, 1988).
29
mesmo ocorreu no horário do Legislativo, em que a própria estrutura
do programa, voltada principalmente para a divulgação dos discursos
da tribuna, favoreceu intensamente o personalismo político. Não
foram poucas as vezes que, nesse espaço, o principal adversário
político de Vargas, Carlos Lacerda, importante líder da UDN, do Rio
de Janeiro, realizou mordazes e agressivos ataques ao projeto
nacional-desenvolvimentista do presidente (PEROSA, 1995, p.65).
As condições políticas e a conjuntura econômica minaram o projeto de
Vargas. A inflação era crescente, o que corroía o poder de compra dos salários e
comprometia a eficácia dos programas sociais do governo. Parte da imprensa fazia
forte oposição, buscando escândalos no governo que pudessem ser denunciados. Na
imprensa, os principais opositores de Vargas eram os Diários Associados, de Assis
Chateaubriand (1892-1968), o Correio da Manhã, de Paulo Bittencourt (1895-1963),
e a Tribuna da Imprensa, de Carlos Lacerda (1914-1977).14
No dia 5 de agosto de 1954, Lacerda sofreu um atentado na Rua Tonelero, no Rio
de Janeiro, no qual morreu o major Rubens Florentino Vaz, que fazia a segurança pessoal do
jornalista e deputado federal. Um dos envolvidos no atentado era o gaúcho Climério Euribes,
integrante da guarda pessoal do presidente, compadre do chefe da guarda Gregório Fortunato
(um homem de confiança de Vargas) e afilhado de Lutero Vargas, filho do presidente que era
deputado federal. A exploração do atentado pela oposição e pela imprensa gerou uma crise
política para o governo: foi instaurado um Inquérito Policial Militar (IPM) para apurar o caso,
para garantir que não houvesse interferência do governo. Suspeito de estar envolvido, o filho do
presidente prestou depoimento ao IPM em 13 de agosto, depois gravou um depoimento com
sua defesa para a Rádio Nacional. No texto, que foi revisado pelo ministro da Justiça, Tancredo
Neves, Lutero Vargas dizia que era vítima de uma trama engendrada por “maus brasileiros,
trabalhados por ódios pessoais mesquinhos” e jurava nao ter direta ou indiretamente nenhuma
responsabilidade, “por açao ou omissao” no atentado (NETO, 2014, p.320).15
Naquele mesmo dia, conforme Perosa (1995, p.66), a Voz do Brasil
reproduziu o discurso de Lutero Vargas. Ao veicular a fala de um personagem da política
com mandato legislativo, mas que não possuía nenhum vínculo institucional com o
14 À exceção do jornal Última Hora, os principais órgãos de imprensa faziam oposição a Vargas. Mesmo
projetos desenvolvimentistas como a criação da Petrobrás e do Banco Nacional do Desenvolvimento
Econômico (atual BNDES), a ampliação da Companhia Siderúrgica Nacional em Volta Redonda (RJ) e a
proposta de criação do sistema brasileiro de eletrificação, a futura Eletrobrás, sofreram ataques da
imprensa. Quando da assinatura do decreto presidencial que criou a Petrobrás, em 1953, apenas o jornal de
Samuel Wainer destacou a notícia na primeira página; os outros veículos criticaram a iniciativa de Vargas
em seus editoriais. Assis Chateaubriand definiu o projeto como um “capricho caro” do presidente e o
Correio da Manhã, como “aventura de nacionalistas rasteiros” (NETO, 2014, p.265). 15 Lutero Vargas acabou não sendo indiciado no Inquérito Policial Militar que apurou o atentado. Em
outubro de 1954, reelegeu-se deputado federal com 120 mil votos.
30
governo federal (a não ser o fato de ser filho do presidente), o programa prestou-se à
defesa incondicional do governo – mesmo diante das evidências que apontavam o
envolvimento de correligionários de Vargas no atentado.
A crise política causada pelo atentado na Rua Tonelero culminou com o
suicídio de Getúlio Vargas em 24 de agosto de 1954. A carta-testamento deixada pelo
presidente foi lida na íntegra pelo locutor da Voz do Brasil.
Tal qual ocorrera com o presidente Dutra após o fim do Estado Novo, logo
que o vice-presidente Café Filho assumiu o cargo, ainda sob um clima de grande
comoção nacional com o suicídio de Vargas, o novo mandatário passou a ser pressionado
pelos empresários do setor de radiodifusão para extinguir a Voz do Brasil.
Cedendo às pressões, ele baixou um decreto extinguindo o programa
oficial. A Agência Nacional distribuiu a notícia aos órgãos de
divulgação. No entanto, foi necessário recolher essa notícia das
redações dos jornais e emissoras de rádio e televisão; pois Café Filho
precisou fazer um pronunciamento à Nação e só lhe foi possível, nesse
período, através da Voz do Brasil (PEROSA, 1995, p.68).
O ocaso do populismo: JK, Jânio e Jango
Café Filho foi substituído pelo mineiro Juscelino Kubitschek (1956-1960).
No governo JK, a Voz do Brasil tornou-se instrumento de divulgaçao do “Plano de
Metas” e da proposta de crescer “50 anos em 5”. O político mineiro também tinha um
estilo populista (tanto que era chamado de presidente “bossa nova”), mas preferiu
substituir o nacionalismo característico da era Vargas pelo “desenvolvimentismo”. Nesse
sentido, além de implementar a indústria automobilística nacional (entre outras), o
governo teve como principal legado a construção da nova Capital Federal, Brasília,
“inaugurada” em abril de 1960. JK usou a Voz do Brasil para fazer um “afago” ao povo
carioca na despedida do Palácio do Catete, no Rio de Janeiro:
A tranquilidade de consciência pelo dever cumprido se reúne a tristeza do
adeus a esta encantadora cidade do Rio de Janeiro, que, com inexcedível
generosidade, hospedou o Governo durante quase dois séculos. (...) Estou
certo de que, embora de longe, o magnetismo da vossa cidade continuará
a imprimir caráter particular a decisões fundamentais para os rumos do
Brasil e que os vossos centros de cultura prosseguirão jorrando a luz que
dirige a marcha do Brasil para o seu grande destino.16
Em 1960, o governador de São Paulo, Jânio Quadros, foi eleito com uma
votação recorde (quase seis milhões de votos) para suceder JK. Também com estilo
16 Discurso de JK trasmitido pela Voz do Brasil em 19 de abril de 1960. In Biblioteca da Presidência da
República. Disponível em <http://www.biblioteca.presidencia.gov.br/ex-presidentes/jk/discursos-1/1960/
18.pdf/download>. Acesso em 12 fev 2015.
31
populista, Jânio tinha como principal “bandeira” o combate à corrupçao (o símbolo de
sua campanha era uma vassoura usada, metaforicamente, para varrer a corrupção), Jânio
teve uma carreira política meteórica, iniciada como vereador na cidade de São Paulo até
chegar a presidente.17
Com uma grande habilidade para usar recursos publicitários em suas
campanhas políticas, como presidente, Jânio aproveitou-se da Voz do Brasil e inculcou-
lhe o mesmo “estilo autoritário, moralista e extremamente personificado”, um
“populismo de direita, militarista, antiparlamentar”, conforme Maria Victoria Benevides.
O presidente “virava” notícia graças a medidas polêmicas ou decretos às vezes insólitos,
que eram utilizados como recursos publicitários: eram “decisões pessoais do presidente
da República para questões disparatadas e insólitas, obviamente deslocadas da órbita
governamental” (BENEVIDES, 1981, p.24).
Todas essas medidas eram noticiadas pela Voz do Brasil. Entre as decisões
polêmicas de Jânio, estavam a proibição do funcionamento de jóqueis clubes nos dias úteis, o
banimento das brigas de galo, do uso de lança-perfume nos bailes de Carnaval e também a
proibição de maiôs “cavados” nos concursos de beleza. Apesar de sua orientação política à
direita, Jânio condecorou, em agosto de 1961, Che Guevara com a Ordem do Cruzeiro do Sul.
Na Voz do Brasil, o presidente era retratado como uma espécie de “salvador da pátria”:
Imerso nessa cadeia ideológica provinciana, o programa oficial, embora
altamente centralizado, ficou fragmentado em pequenas ordens,
proibições, reclamações ou simples avisos, carregados de uma aura
onipresente de quem se apresentou, sem o menor pudor, como o
messias após o caos (PEROSA, 1995, p.76).
Seis meses após tomar posse, Jânio renunciou ao mandato, e o vice-
presidente, João Goulart, assumiu o posto somente após a instituição do regime
parlamentarista pelo Congresso Nacional. Mesmo com poderes limitados, Jango,
como era popularmente conhecido, seguiu com um plano de reformas de base, que
propunha transformações nos sistemas agrário, financeiro, eleitoral etc.
Em 1962, foi aprovado pelo Congresso Nacional o Código Brasileiro das
Telecomunicações, que provocou mudanças no formato da Voz do Brasil. O decreto
que regulamentou o Código, assinado por Jango em 1963, determinava que o
17 Jânio Quadros foi eleito suplente de vereador aos 30 anos e assumiu uma vaga na Câmara Municipal de
São Paulo em 1948, após a cassação dos mandatos dos políticos do Partido Comunista Brasileiro, por
determinação do presidente Dutra. Em 1951, foi eleito deputado estadual com a maior votação da época,
depois prefeito de São Paulo (1953), governador (1955) e presidente (1960).
32
programa tivesse 30 minutos reservados ao Poder Executivo e Judiciário e os outros
30 minutos à Câmara e ao Senado.18
Mais uma vez a Voz do Brasil foi usada como veículo oficial de divulgação
das propostas do presidente. Em meio a uma crise política e institucional, decorrentes da
reação contrária de setores mais conservadores às reformas propostas por Jango, em 13
de março de 1964, ocorreu um grande comício na Central do Brasil, no Rio de Janeiro,
organizado pelo Comando Geral dos Trabalhadores (CGT) e pela Assessoria Sindical da
Presidência. O objetivo de Jango era pressionar o Congresso a votar as reformas de base,
e o comício teve ampla cobertura jornalística da Voz do Brasil. No entanto, o episódio
despertou o receio dos militares – e de parcelas de civis mais à direita – quanto a uma
possível radicalização do governo à esquerda. Em 31 de março, o governo Jango foi
deposto por um golpe e teve início o período da ditadura militar.19
Na edição do dia 1º de abril de 1964, a Voz do Brasil mudou a orientação e
abandonou a defesa das reformas sociais. O programa anunciou, de forma solene, a
“revoluçao” (a palavra “golpe” seria prudentemente evitada nos 21 anos seguintes) e
destacou que o objetivo do movimento dos militares era deter a “ameaça comunista” que
pairava sobre o Brasil e garantir o retorno do país à “normalidade democrática”
(CASTRO, 2010).
O programa oficial entraria num longo período de controle absoluto de seu
conteúdo pelos militares no poder.
O regime militar e uma nova herança autoritária
O regime militar começou com uma junta composta pelos chefes das três
armas, que editaram o primeiro Ato Institucional da ditadura (AI-1) em 9 de abril de
1964. O texto justificava o golpe como sendo uma “revoluçao”:
É indispensável fixar o conceito do movimento civil e militar que acaba
de abrir ao Brasil uma nova perspectiva sobre o seu futuro. O que houve
e continuará a haver neste momento, não só no espírito e no
comportamento das classes armadas, como na opinião pública nacional,
é uma autêntica revolução. A revolução se distingue de outros
18 Decreto nº 52.795, de 31 de outubro de 1963. Disponível em <www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/
Antigos/D52795compilado.htm>. Acesso em 21/07/2014. 19 O golpe militar foi deflagrado na madrugada do dia 31 de março de 1964. No dia seguinte, sem apoio da
parcela de oficiais militares “legalistas”, que permitiria uma resistência militar ao golpe, e dos movimentos
sindicais, que dariam apoio popular e político à resistência, o presidente João Goulart viajou para Porto
Alegre, e em seguida exilou-se no Uruguai.
33
movimentos armados pelo fato de que nela se traduz, não o interesse e a
vontade de um grupo, mas o interesse e a vontade da Nação.20
Apesar de o AI-1 ter adotado medidas autoritárias – como instituir a eleição
indireta para presidente e dar poderes aos militares para cassar mandatos de políticos e
exonerar funcionários públicos “desde que tenham atentado contra a segurança do País, o
regime democrático e a probidade da administraçao pública” – foi no governo seguinte,
do general Castello Branco (1964-1967), que foram adotadas as medidas que
endureceram o regime. O Ato Institucional nº 2 fechou o Congresso após as eleições de
outubro de 1965 e implantou o bipartidarismo; dissolveu organizações sindicais como o
Comando Geral dos Trabalhadores (CGT), as ligas camponesas e a União Nacional dos
Estudantes (UNE); e decretou a Lei de Imprensa, que visava controlar o fluxo de
informação nos veículos, assim como regular o trabalho dos jornalistas profissionais.
Nesse contexto, a Voz do Brasil teve reforçada sua “vocaçao” de porta-voz oficial.
Já no governo Costa e Silva (1967-1969), a preocupação com a legitimidade
do poder central levou à criação da Assessoria Especial de Relações Públicas (AERP)21.
Entre outros objetivos, o órgao deveria “captar os interesses e as aspirações” e “auscultar
os anseios nacionais” e, com base neles, sugerir as ações governamentais; realizar
campanhas educacionais para fortalecer o caráter nacional; trabalhar em prol da “criaçao
de um sentimento de aglutinaçao nacional”; e contribuir para o “incremento de uma sadia
mentalidade de segurança nacional”, entre outros (CAPARELLI, 1986, p.34).
Apesar de criada no fim do governo Costa e Silva, a AERP entrou,
efetivamente, em operação e ganhou força no governo do general Emílio Garrastazu
Médici (1969-1974). Assim que assumiu a presidência, Médici incluiu a comunicação
entre as “principais diretrizes” de seu governo, apresentadas em reuniao ministerial no dia
6 de janeiro de 1970. Determinava o general-presidente:
Objetivando informar a opinião pública, motivar a vontade coletiva para o
esforço nacional de desenvolvimento e contribuir para o prestígio
internacional do Brasil, será estabelecido um Sistema de Comunicação
Social, com base na atuação dos órgãos do Poder Executivo. Princípios de
verdade, legitimidade, integração de esforços, eficiência e impessoalidade
regerão a comunicação social do governo. O órgão de direção central do
sistema será a Assessoria Especial de Relações Públicas (AERP). Integrar-
se-ão ao sistema os órgãos de relações públicas dos ministérios e do
20 Ato Institucional nº 1, de 9 de abril de 1964. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ AIT/
ait-01-64.htm>. Acesso em 12/02/2015. 21 A AERP foi criada pelo Decreto n° 62.119, de 15 de janeiro de 1968, sendo vinculada ao Gabinete da
Casa Militar da Presidência.
34
Estado-Maior das Forças Armadas, bem como órgãos similares da
administração indireta (MOREIRA, 1998, p.75)
Considerado de linha dura, o governo Médici foi marcado pela violenta
repressão aos opositores, pela censura aos meios de comunicação e pela tortura adotada
nos órgãos de segurança. A AERP passou a ter papel estratégico na criação de uma
imagem positiva do presidente junto à populaçao, que o distinguisse da “realidade”
autoritária e repressiva do governo. Para tal propósito, foram colocadas em prática
algumas das conclusões do I Seminário de Relações Públicas do Poder Executivo,
realizado no final de 1968, ainda no governo Costa e Silva, que visavam humanizar a
imagem do presidente, trabalhando uma “propaganda ideológica para que as pessoas se
encontrassem na figura de seu governante” (NAVES, 2012, p.2).
A AERP transformou-se, assim, no principal instrumento de promoção
institucional da imagem do governo e especialmente do presidente Médici, a partir do
aproveitamento integral da figura do presidente, no seu aspecto humano,
moderado e compreensivo, para caracterizar toda a campanha orientada no
sentido da valorização do homem, a única suscetível de criar uma imagem
efetiva e imediata do governo (CHAPARRO, 2011, p.43).
Com este mandato, a AERP produziu e difundiu os slogans ufanistas que
marcaram essa fase do regime militar, como “Brasil: ame-o ou deixe-o” e “Ninguém
segura este país”. O tricampeonato de futebol conquistado pela Seleçao Brasileira em
1970 também foi usado pela AERP para trabalhar a imagem do presidente – que
apreciava o futebol – e que explica, em parte, a popularidade do general Médici, a
despeito da tortura e da guerrilha que ocorriam no país naquele período.
Como tinha mandato para negociar as verbas de propaganda oficial com os
veículos privados, a AERP tornou-se o órgão mais forte da comunicação oficial,
gerenciando um orçamento generoso. Essa verba foi usada pelo coronel Otávio Costa,
chefe da AERP no governo Médici, para tentar evitar a comparação da agência com o
DIP da era Vargas, criando
uma nova modalidade de propaganda política no Brasil, que se
amparava nos modernos recursos oferecidos pelos meios de
comunicação de massa e que absorvia e recriava padrões de
comportamento, crenças, instituições e outros valores espirituais e
materiais tidos como conformadores da sociedade brasileira. Um tipo de
propaganda que subsistiria por muito tempo (FICO, 1997, p.50).
A propaganda oficial trabalhava a ideia de desenvolvimento, de “milagre
econômico” e tendia a despolitizar a comunicaçao.
35
A AERP tinha como principal foco a despretensão política em suas
propagandas. Abusava de sentimentalismo como o amor e a
solidariedade e nao fazia referências políticas. Isso para que a “massa”,
que os militares consideravam despreparada para o voto, se contentasse
com os rumos que o país estava tomando. Para eles, não era um povo de
vontade coletiva. Essas propagandas educativas situavam os
governantes em uma “autoridade moral”, que era o que mantinha o seu
status quo. A ideia era de uma democracia camuflada pelo “milagre
econômico”, dessa forma, a justificativa seria a de que, para existir um
desenvolvimento, se fazia necessária a presença de um governo forte: o
militarismo (NAVES, 2012, p.2).
No governo Médici, a TV se tornou o principal canal de veiculação das
propagandas do governo, devido à grande penetração que o meio ganhara desde meados
dos anos 60, o que se explica pelo aumento das concessões feitas à inicitiva privada.22 A
propaganda oficial mostrava grandes projetos de integração nacional, como a hidrelétrica
de Itaipu, a rodovia Transamazônica e Ferrovia do Aço, que contribuíam para construir,
nas propagandas exibidas pela televisão, a imagem de um Brasil grande.
Apesar do foco na TV, o rádio manteve-se como peça importante para a
propaganda governamental, devido à sua capilaridade, principalmente no interior do país.
A propaganda oficial era veiculada tanto em horários gratuitos requisitados da
programação das emissoras de rádio e TV, quanto pela Agência Nacional, que distribuía
as “notícias” do governo para as emissoras e as veiculava na Voz do Brasil (que na época
era um programa vinculado à Agência).23
Embora não fosse responsável pela produção da Voz do Brasil, a AERP se
preocupava com a audiência do programa oficial. Uma pesquisa de opinião encomendada
pelo órgão, em 1971, apontou que apenas 8% dos brasileiros ouviam frequentemente a
Voz do Brasil, enquanto 51% nunca a tinham ouvido e 41% só raramente. A pesquisa
limitou-se às zonas rurais do país, onde o governo supunha que a penetração do programa
fosse maior (PEROSA, 1995, p.95). Nenhuma grande transformação estrutural ocorreu
no conteúdo da Voz do Brasil durante o governo Médici; houve apenas a substituição da
ópera O Guarani, na vinheta de abertura, pelo Hino da Independência, tocado em tom
solene, e a adoção da frase de abertura “Em Brasília, dezenove horas”.
22 Durante os primeiros 14 anos de existência da TV no Brasil (1950-1964), foram concedidas à exploração
da iniciativa privada 33 canais; nos 14 anos seguintes (1964-1979), quando o país vivia sob o regime
militar, o número de concessões foi de 112 (CAPARELLI, 1986, p.23). 23 Depois de 20 anos subordinada ao Ministério da Justiça e Negócios Interiores, a Agência Nacional foi
transferida para o Gabinete Civil da Presidência, em fevereiro de 1967, por meio de decreto de Castello
Branco. Esse decreto determinou também a criação dos setores de Redação, Estúdio e Televisão, o que fez
com que a Agência Nacional assumisse o papel de principal órgão distribuidor das informações oficiais.
36
Quando assumiu a presidência, o general Ernesto Geisel (1974-1979)
enfrentou um período de desgaste do regime em razão da crise econômica – que
esvaziava o discurso do “milagre econômico” usado por Médici. Sob a influência do
ministro-chefe da Casa Civil, o general Golbery do Couto e Silva, o governo Geisel deu
início a um lento processo de abertura política, que se arrastaria por todo o seu governo.
Convocado para assumir a AERP, o coronel José Maria de Toledo Camargo
passou a usar o rádio com maior frequência para a propaganda oficial, com o objetivo de
atingir os lugares mais remotos do país. Na campanha “Este é um país que vai pra
frente”, os conteúdos eram renovados a cada 15 dias e, “somente na etapa inicial dessa
campanha, cinco mil discos foram distribuídos para 800 estações de rádio e cerca de três
mil serviços de alto-falante” (MOREIRA, 1998, p.77).
A Voz do Brasil, especificamente, prestava-se ao projeto de abertura
engendrado pelo general Golbery. Esse projeto previa uma distensao política “lenta,
gradual e segura”. Na data simbólica de 31 de março de 1974 (décimo aniversário do
golpe militar), o programa transmitiu a íntegra de um discurso de Geisel sobre as bases
do projeto de abertura, no qual o general-presidente assumia que almejava “uma
democracia que nos propicie a paz interna, a justiça social e o fortalecimento da
segurança nacional” (PEROSA, 1995, p.117).
A segurança nacional à qual se referia o presidente passava por uma
reorganização do sistema radiofônico brasileiro, com a distribuição de novas concessões
de emissoras em frequência modulada (FM), até então usada apenas experimentalmente
no país. O Plano Básico de Canais FM, lançado pelo Ministério das Comunicações em
1975, concedeu incentivos à indústria para fabricar receptores com a “nova” faixa de FM,
que possuía melhor qualidade sonora e, portanto, era mais adequada à programação
musical que ao jornalismo. O projeto pretendia ainda fazer com que o Brasil tivesse mais
de mil emissoras em FM no final da década de 70.24
Em 15 de dezembro de 1975, o presidente Geisel sancionou a lei que criou a
Empresa Brasileira de Radiodifusão, Radiobrás. Com sede em Brasília, a estatal passou a
ser responsável pela produção da Voz do Brasil e pela gestão de todas as emissoras de
rádio e TV pertencentes ao governo federal. A centralização do comando dos veículos
24 A distribuição das emissoras em FM à iniciativa privada foi inspirada no “estilo de ocupação militar”.
“Seguindo um planejamento anual, o Ministério das Comunicações selecionava, em cada região, primeiro
as cidades com mais de 500 mil habitantes, depois aquelas com 300 mil, 200 mil etc., para distribuir os
canais de radiodifusão” (MOREIRA, 1998, p.79).
37
oficiais de comunicação em Brasília também estava alinhada à doutrina de segurança
nacional. A lei que criou a estatal determinava que
as emissoras da Radiobrás deverão operar dentro de elevados padrões
técnicos e propiciar a cobertura necessária para atender sobretudo as
regiões de baixa densidade demográfica e reduzido interesse
comercial, e as localidades julgadas estrategicamente importantes para
a integração nacional.25
Apesar de anunciar a integração nacional como um de seus principais objetivos, a
Radiobrás e, especificamente, a Voz do Brasil prestaram-se ao papel de veículos chapa-branca,
conforme o jargão jornalístico.26 Além disso, o fato de a estatal concentrar seus funcionários na
Capital Federal fez com que a empresa se tornasse um “cabide” de empregos para
correligionários dos detentores do poder. Segundo Bucci, essa característica atravessou o
período militar e sobreviveu nos governos civis que o sucederam.
Criada pela ditadura militar em 1976, (...) sua função propagandística
sobreviveu à ditadura, invadindo sem cerimônia o período
precariamente democrático que se seguiu a 1985. Fixou-se, desde
então, o costume de que o partido do governo, qualquer que fosse ele,
poderia aparelhar a Radiobrás (BUCCI, 2008, p.26).
Pressionado por setores da sociedade civil que pediam a abertura política – em
protesto contra episódios como o assassinato, em 1975, do jornalista Wladimir Herzog no DOI-
Codi paulista –, o governo Geisel usou novamente a Voz do Brasil para anunciar a
promulgação da Emenda Constitucional nº 11, em 13 de outubro de 1978, que revogava todos
os Atos Institucionais que ferissem a Constituição Federal – o que na prática permitiu a volta de
exilados ao país, o livre exercício dos direitos políticos e a redemocratização política.
No último governo militar, comandado pelo general João Baptista Figueiredo
(1979-1985), já em meio ao processo de “abertura”, foi criada a Secretaria de
Comunicação Social (Secom) – e a Agência Nacional transformou-se na Empresa
Brasileira de Notícias (EBN). A Secom passou a ser responsável pela unificação do
sistema de comunicação do governo e, principalmente, de suas verbas. A nova estrutura e
essa estratégia de comunicação do governo foram documentadas nas Diretrizes Setoriais
do Presidente João Figueiredo para a Secom, que previam que o programa Voz do Brasil
seria “reformulado, para dar-lhe mais vitalidade e melhores condições de audiência”. No
entanto, a Secom teve vida curta e foi extinta em abril de 1981. A Radiobrás passou a ser
25 Lei nº 6.301/75, parágrafo 1º, artigo 1º. Disponível em < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/
L6301.htm>. Acesso em 12 fev 2015. 26 Expressão que define veículos de comunicação alinhados aos interesses dos governos, uma metáfora que
faz referência à frota oficial de automóveis, que é emplacada com chapas de cor distinta dos particulares.
38
vinculada ao Ministério das Comunicações, enquanto a EBN (e a Voz do Brasil)
respondia ao Ministério da Justiça. Sob essa nova estrutura, o programa tentou
assumir características de um radiojornalismo mais dinâmico, ao estilo
das emissoras privadas. Para tanto, foram introduzidas vinhetas
(pequenas ilustrações musicais intranoticiário), a participação direta
do repórter na apresentação da notícia e gravações de entrevistas ou
depoimentos com membros do governo. Além disso, a apresentação
do noticiário ficou atribuída a dois locutores, um homem e uma
mulher, para suprimir o tom linear de uma única locução masculina
(PEROSA, 1995, p.126).
Essas “inovações”, no entanto, estavam limitadas pelo que Lilian Perosa
(1995, p.126) define como “limitações históricas e burocráticas” do programa, a principal
delas ligada ao fato de sua equipe de produção ser formada, predominantemente, por
jornalistas e por profissionais de outras áreas sem o domínio da linguagem radiofônica. O
ministro da Justiça, Ibrahim Abi Ackel, anunciou em discurso na própria Voz do Brasil os
princípios da “nova” comunicaçao do governo: pretendia “tornar possível e fácil o acesso
dos meios de comunicação e de crítica aos atos do governo”. No entanto, o discurso
ministerial gerou desconfianças, pois ao anunciar o propósito da EBN de nao “dirigir,
distorcer ou condicionar a informaçao”, deixava escapar a sugestão de que isso
costumava ocorrer na Voz do Brasil.
Na prática, esse propósito acabou negado pelo próprio conteúdo veiculado na
Voz do Brasil, que preservou o estilo de subserviência às autoridades. A diferença era
que, no governo Figueiredo, as “proibições” passaram a ser tratadas como “orientações”
de ministros e de outros integrantes do governo.
Durante a campanha presidencial de 1985, na qual o candidato da oposição,
Tancredo Neves (da Aliança Democrática), disputaria com o candidato oficial Paulo
Maluf (PDS) os votos do Colégio Eleitoral, tanto a Voz do Brasil quanto a EBN
receberam a “orientaçao” de concentrar a cobertura apenas na candidatura oficial.
Dois repórteres e um fotógrafo da EBN foram contratados para
acompanhar diariamente o candidato do PDS. Os próprios funcionários
encararam a orientação com ironia e comentaram que a agência deixou
de ser EBN – Empresa Brasileira de Notícias – e passou a ser EBM –
Empresa Brasileira do Malufismo (PEROSA, 1995, p.127).
A Voz do Brasil não veiculou, antes da eleição indireta, em janeiro de 1985,
nenhuma notícia sobre o candidato da oposição. No entanto, jornalistas da EBN em Brasília e
dos escritórios regionais foram mobilizados para acompanhar todos os comícios de Tancredo
Neves. Os relatos desses comícios funcionavam como uma espécie de “monitoramento” da
39
campanha: detalhavam o desempenho do candidato, os principais políticos presentes em cada
evento, a quantidade de público, o número de bandeiras vermelhas etc. Os jornalistas faziam
um trabalho de “patrulha” da chapa da oposiçao, visto que nenhuma dessas informações teve
aproveitamento na Voz do Brasil (PEROSA, 1995, p.127).
A Nova República e a “nova” Voz do Brasil
Com a eleição de Tancredo pelo Colégio Eleitoral em 15 de janeiro de 1985,
a EBN e a Voz do Brasil tiveram de se adaptar aos novos ares da República, que voltaria
a ser comandada por um civil após 21 anos de presidentes militares. Tancredo montou o
novo ministério, mesclando forças progressistas (do PMDB autêntico e de partidos mais à
esquerda) e conservadoras (quadros oriundos do PDS que o apoiaram na eleição). Na
véspera da posse, 14 de março de 1985, o presidente eleito foi internado no Hospital de
Base de Brasília e submetido a uma cirurgia. Quem assumiu o cargo foi o vice-presidente
da chapa, José Sarney. Tancredo morreu 38 dias após a eleição e Sarney completou o
mandato até 1990, no período conhecido como Nova República.
As mudanças pelas quais passariam a EBN e a Voz do Brasil, a partir do
início da Nova República, tiveram inspiração nas ideias de um grupo de professores da
Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília (UnB). Coordenado por Venício
Lima, Murilo César Ramos, Salomão Amorim e Luiz Gonzaga Motta, esse grupo vinha
se dedicando, desde a segunda metade dos anos 70, a pensar políticas de comunicação
pública adequadas a um governo democrático.
Ao grupo acadêmico juntaram-se alguns jovens jornalistas de Brasília, que faziam
oposição à entao diretoria do sindicato da categoria, que consideravam “pelega”. Entre eles,
estavam Helio Doyle, Armando Rollemberg e Carlos Marchi. A chapa deles ganhou a eleição
sindical em 1976, tendo como candidato a presidente o veterano Carlos Castello Branco (1920-
1993), o Castelinho, reconhecido colunista político do Jornal do Brasil. Também se juntaram
ao grupo parlamentares de oposição ao governo militar, como a deputada Cristina Tavares
(1934-1992), da ala “autêntica” do PMDB. Desse grupo diverso, nasceram as ideias que
inspirariam um novo modelo de comunicação oficial.
A gente fazia reuniões bastante produtivas. E essas reuniões começaram
a se encaminhar para projetos. Talvez essa seja a grande diferença entre
a Voz do Brasil que sempre se fez e a Voz do Brasil que se fez naquele
período, porque [o programa] era parte desse projeto maior. A gente
entendia que a comunicação institucional, acima de tudo, tinha de ser
pública, não estatal. Esse era um fundamento essencial. Não era um
serviço que a gente prestaria ao governo, era um serviço que a gente
40
prestaria à sociedade. Portanto, tinha aí engatado e subentendido o
compromisso da absoluta verdade, da não mistificação, da não
demagogia (MARCHI, 2015).27
Carlos Marchi, jornalista carioca que estava radicado em Brasília há anos e
que participava desse grupo, havia se integrado à campanha de Tancredo Neves em
meados de 1984. Escolhido para a presidência da EBN após a vitória da Aliança
Democrática, em janeiro de 1985, indicou os outros três diretores da empresa para
viabilizar a implantação do novo projeto editorial: o professor Luiz Gonzaga Mota, da
UnB, foi escolhido para o cargo de diretor de Planejamento, que não existia antes; já o
diretor responsável pelo conteúdo jornalístico seria Luiz Roberto Serrano; e, como diretor
Financeiro, Marchi convidou Emerson Almeida, que havia trabalhado nessa área no
Ministério da Educação (MEC).
A despeito dessa diretoria comprometida com o projeto, o processo de
mudança editorial na EBN não foi fácil, pois havia resistências às transformações na Voz
do Brasil por parte do próprio governo – o projeto de comunicação da Nova República e
as mudanças na Voz do Brasil haviam sido pensados para serem implantados num
governo Tancredo Neves. Com a doença e a morte do presidente eleito, a equipe da EBN
teve de se submeter a José Sarney, político oriundo do partido governista, que
representava a oligarquia nordestina e tinha perfil bem mais conservador, conforme
depoimento de Luiz Gonzaga Mota a Fernando Oliveira Paulino:
Embora Tancredo fosse um político conservador, ele era um político
tolerante, que era muito próprio da política mineira daquela época. Você
era conservador, mas tolerava. E, na área da cultura, dizia-se que você
era de esquerda; na área de política, de centro; e na área da economia,
conservador. Então como ele era, mesmo no conservadorismo, um
pouco avançado na área da cultura, o Tancredo se abriu muito
(PAULINO, 2009, p. 108).
A EBN era vinculada ao Ministério da Justiça, para o qual Tancredo Neves
havia indicado Fernando Lyra (1938-2013), político de perfil progressista e que apoiava o
projeto de renovação da Voz do Brasil. Apesar do apoio do ministro Lyra – que era amigo
de Marchi havia anos –, a direçao da empresa logo percebeu que nao seria fácil “fazer
jornalismo com independência dentro de um governo, ainda mais um governo
pluripartidário”. O primeiro embate da nova direçao da EBN com outros setores do
governo ocorreu após a demissao de 10 jornalistas que eram considerados “malufistas”,
logo no início da gestao de Carlos Marchi. “Nós os ‘justiçamos’ em praça pública”, relata
27 Entrevista concedida ao autor, em 15 jul 2015, reproduzida na íntegra nos Apêndices desta dissertação.
41
o jornalista. Fernando César, assessor de Sarney e que conhecia o presidente da EBN dos
tempos de redação do Jornal do Brasil, telefonou para ele com um pedido do Planalto
para que voltasse atrás nas demissões. Marchi negou-se a readmiti-los. “Sarney nao era
propriamente um presidente, era um ‘subpresidente’ que tinha eventualmente assumido o
governo, e Tancredo ainda estava vivo”, lembra.
Além do Sarney, eu comecei a receber telefonemas de colegas meus
jornalistas, principalmente os que cobriam a Câmara e que eram muito
ligados a todos os partidos. (...) Isso foi um fator de intenso desgaste,
até que a gente venceu a parada, não os readmitimos. Mas ficou uma
cicatriz (MARCHI, 2015).
Em relação ao projeto editorial em si, a equipe de Marchi contava com o
apoio incondicional do ministro da Justiça, conforme depoimento ao próprio programa,
em 19 de março de 1985:
De uma empresa de notícias se espera mais: a notícia expressando
fielmente os fatos acontecidos em um país livre e soberano e não a
informação a serviço do governo ou de seu partido, mas a notícia real
que o público tem direito de saber e o governo de prestar contas sem
escamoteações, subterfúgios, interesses inconfessados ou objetos de
servilismo (PEROSA, 1995, p.140).
Na comemoração dos 50 anos da Voz do Brasil, em 22 de julho de 1985, o
próprio presidente Sarney fez um pronunciamento em defesa do programa:
“Modernizada, reformulada, a Voz do Brasil tem estabelecido um amplo
diálogo do governo com a sociedade e cumpre um importante papel
para a Nova República, estabelecendo um largo canal de comunicação
entre o governo e o povo” (PEROSA, 1995, p.141).
Sob a gestão de Carlos Marchi, o programa resgatou a introdução da ópera O
Guarani como tema de abertura e passou a usar uma linguagem menos pomposa no
noticiário. “O novo projeto tratou logo de suprimir o tom marcial dos locutores, herança
do DIP, e adotou uma narração mais natural, procurando instaurar uma linguagem mais
descontraída e direta” (PEROSA, 1995, p. 142).
Mas as principais mudanças adotadas na gestão Marchi foram no conteúdo:
para combater o estilo “chapa-branca”, foi adotado um sistema de pautas e uma rotina de
reuniões de avaliação do programa entre diretores, repórteres e editores. O projeto
editorial estava alinhado com os princípios democráticos da Nova República. Em um
artigo escrito para o Jornal de Brasília, Marchi definiu o conteúdo da Voz do Brasil como
“um jornalismo oficial com dignidade”:
“Temos que libertar o jornalista em seu trabalho. Dar-lhe condições de
operar sem limitações, o que antigamente era norma. Por exemplo: o
42
repórter da EBN deve perguntar e não se omitir nas entrevistas, como se
não tivesse aquele direito. Deve escrever tudo. Não deve ignorar as
críticas eventualmente feitas a setores do governo, desde que partam de
oposição responsável. Enfim, deve liberar sua competência e
criatividade”.28
Entretanto, ao colocar em prática a proposta de abrir espaço para líderes da
oposição, a Voz do Brasil passou a receber críticas de dentro do governo, principalmente
os militares. Um exemplo desse embate se deu quando foi feita pela EBN uma entrevista
com o governador do Rio de Janeiro, Leonel Brizola, que fazia oposição a Sarney. Antes
de decidir se a entrevista seria incluída na Voz do Brasil, Marchi distribuiu, via telex, a
matéria aos jornais, para checar a repercussão que teria. Logo que a matéria foi
distribuída, Marchi recebeu um telefonema informando que o general Ivan Mendes de
Almeida, ministro-chefe do Serviço Nacional de Informações (SNI), tinha ido reclamar
da EBN com o próprio presidente da República. Sarney teria respondido ao chefe do SNI
que “o pessoal” da EBN era “meio rebelde” – mas o general não ficou convencido.
Ciente de que o projeto talvez não tivesse vida longa, Marchi decidiu colocar a entrevista
na Voz do Brasil, pois seria o seu álibi: se Sarney o demitisse, ele poderia dizer que havia
sido demitido por ter feito bom jornalismo.
No início de 1986, passando por uma crise econômica devido a uma inflação
alta, Sarney promoveu uma reforma ministerial. Fernando Lyra foi substituído na pasta
da Justiça por Paulo Brossard (1924-2015), político gaúcho mais conservador. Diante das
incertezas e “completamente desprotegido”, o presidente da EBN buscou uma
“blindagem” para o seu projeto jornalístico:
Quando o Fernando Lyra saiu, a gente pensou: “Nao teremos mais
tempo, a gente tem que correr para implantar dignamente um projeto”.
Sabia que não poderia levar até o fim (o projeto), mas a gente queria
implantar uma série de coisas que fossem difíceis de serem revertidas
depois, que criassem história, que criassem vínculo (MARCHI, 2015).
Uma dessas estratégias de blindagem foi reforçar o papel de agência noticiosa
da EBN, por meio de parcerias editoriais com agências oficiais de outros países – como
Portugal, Espanha, Argentina e Angola. Marchi sabia que essa não era a diversidade de
conteúdos ideal, mas permitiria que a EBN “se desvinculasse da via hegemônica do
jornalismo dos Estados Unidos”. Conseguiu convencer o chefe do Departamento de
Promoção Comercial do Itamaraty, o embaixador Paulo de Tarso Flecha de Lima, de que
28 O artigo “EBN: a Voz do Brasil vai ser ouvida”, de autoria de Carlos Marchi, foi publicado pelo Jornal
de Brasília em 26 mar 1985 (PEROSA, 1995, p.141)
43
esses acordos eram importantes para o comércio internacional do país. O diplomata
passou a defender o projeto editorial da EBN e, indiretamente, contribuiu para que a
equipe que comandava na empresa fosse preservada.
Desde antes da saída de Fernando Lyra do ministério, já havia um movimento
dentro do governo para que a EBN fosse transferida para o Ministério das Comunicações,
comandado pelo baiano Antônio Carlos Magalhães (1927-2007), o ACM, uma das
principais lideranças oriundas do PDS que dava suporte à Aliança Democrática. O aval
de Flecha de Lima ao projeto da EBN também foi importante porque o embaixador era
muito próximo do ministro. “E quando o ACM começou a avançar sobre a gente, o Paulo
de Tarso nos protegia, dizendo que estávamos trabalhando em conjunto” (MARCHI,
2015).
Apesar do perfil mais conservador de Paulo Brossard, não foi isso que levou à
saída de Marchi do governo. Uma das medidas administrativas adotadas na EBN para
engajar os seus jornalistas havia sido a elaboração de um plano de carreira para aqueles
que atuavam na chamada área “fim” da empresa (os jornalistas), definindo faixas salariais
e regras de entrada na equipe jornalística da estatal. A nova equipe do Ministério queria
fazer indicações de jornalistas para a EBN, ignorando essas regras de entrada. Esse
embate durou até a saída de Marchi da EBN, sem que ele tenha atendido aos pedidos do
ministro.
Mesmo após a reforma ministerial de janeiro de 1985, quando boa parte dos
profissionais de orientação mais à esquerda deixou o governo, não houve uma maior
pressão sobre o conteúdo da Voz do Brasil, ou tentativas de interferência na pauta do
programa. Nem quando foi lançada a principal bandeira do governo Sarney, o Plano
Cruzado,29 que congelou os preços e salários para tentar conter a hiperinflação, a Voz do
Brasil foi pressionada a mudar a forma como cobria os assuntos do governo:
Na época, todo mundo acreditava no Plano Cruzado – a cobertura da
imprensa da época foi muito favorável, porque as pessoas estavam
sufocadas pela inflação, pelos males da economia, e queriam uma saída,
queriam acreditar que aquela saída era boa, exequível. Eu não me
lembro de nenhuma pressão; pouquíssimas vezes eu recebi um
telefonema do Planalto para cobrir ou deixar de cobrir alguma coisa”
(MARCHI, 2015).
29 O Plano Cruzado foi anunciado em 28/02/1986 pelo então ministro da Fazenda, Dilson Funaro. O plano
econômico tinha características heterodoxas (inspiradas em John Keynes), pois adotava como medidas de
combate à hiperinflação o congelamento de preços, salários e da taxa de câmbio, entre outras.
44
Se historicamente a Voz do Brasil sempre foi um produto que atraiu o
interesse dos políticos no poder, o programa não era o principal foco da equipe de
Marchi. Na verdade, eles queriam implantar seu projeto jornalístico em toda a EBN,
fazendo com que a empresa fosse reconhecida internacionalmente como uma agência
noticiosa brasileira de credibilidade, não apenas como a produtora da Voz do Brasil.
Tanto que Marchi chegou a propor ao presidente da República um projeto para acabar
com o programa de rádio:
O Sarney deu pulo da cadeira e disse: “Você nao é do Nordeste, você nao
sabe o que que é a Voz do Brasil no Nordeste. Leva esse projeto para o
Congresso e mostra para um deputado do interior do Nordeste e pergunta o
que ele acha. Ele vai pular na sua carótida” (MARCHI, 2015).
O projeto de transformação da EBN em uma agência de notícias internacional
incluiu ainda uma “utopia inovadora”, segundo Marchi: a proposta para que os grandes
jornais brasileiros se tornassem sócios da estatal, pois assim poderiam se beneficiar dos
conteúdos fornecidos por outras agências internacionais:
A ideia era incorporar os jornais à EBN, como acionistas da empresa, e
permitir que eles fossem abastecidos com as notícias nacionais
produzidas pela agência – e com notícias internacionais enviadas de
outros países. A intenção era livrar os jornais brasileiros da dependência
das grandes agências internacionais (MARCHI, 2015).
Os jornais receberam a ideia com enorme desconfiança. “Ao primeiro
contato, o Estadão reagiu como um leão ferido e me brindou com um editorial”, relembra
Marchi. O editorial criticava o projeto de internacionalização da EBN e questionava os
reais propósitos da estatal em querer a participação da iniciativa privada. O editorial
chamava a EBN de “agência Tass cabocla”, numa referência à agência oficial soviética,
criticava a obrigatoriedade da Voz do Brasil e não reconhecia as mudanças implantadas
no programa durante a gestão de Carlos Marchi, afirmando que isso não passava
de mero engodo para disfarçar o que tal programa oficial sempre foi:
um instrumento de propaganda do governo, uma intromissão indevida
do poder público em um campo de atividade que é exclusivo da
iniciativa privada em quaisquer democracias que se prezem e — last but
not least — um exemplo de “cabide de empregos” governamentais.30
30 O editorial “Uma Agência Tass cabocla?!?” foi publicado pelo jornal O Estado de S.Paulo no dia
24/06/1986 e questionava o fato de a proposta de participação societária dos jornais pretender dar maior
credibilidade à agência oficial, o que significaria que as empresas estatais de notícias de outros países
nao mereciam credibilidade. “Nisso (Carlos Marchi) está perfeitamente certo, pois qual a credibilidade,
por exemplo, que merece a Agência Tass dos soviéticos, ou que merecia a ADN dos nazistas?”,
perguntava o jornal.
45
As críticas da imprensa se somaram às críticas de dentro do próprio governo.
Ao longo do primeiro ano da Nova República, os repórteres foram orientados e
incentivados pela direção da EBN a serem imparciais nos contatos com as autoridades.
Mas como muitos órgãos do governo estavam acostumados à tradição subserviente da
Voz do Brasil, e não a uma postura crítica dos repórteres, isso acabou se tornando um
problema. Os jornalistas da Voz do Brasil perceberam que tinham mais liberdade e
começaram a afrontar ministros em entrevistas. Choviam reclamações.
E entao, eu que tinha dito antes para as pessoas que “valia tudo” para
fazer jornalismo, tive que chegar para eles e dizer para maneirarem,
porque não podia ser assim (MARCHI, 2015).
Os embates da direção da EBN com a equipe do ministro Brossard, os
desgastes com outros órgãos públicos (devido às coberturas feitas), somados ao
episódio da demissão dos 10 jornalistas no início da gestão (que não havia sido
esquecido) e às desconfianças do SNI de que a equipe da EBN era formada por
comunistas (que vinham desde a entrevista de Brizola), culminaram com a saída de
Marchi da estatal, cerca de seis meses depois da nomeaçao de Brossard. “Era uma
guerrilha (...) e eu sabia que não poderia enfrentar isso nem no governo Tancredo,
quanto mais no governo Sarney” (MARCHI, 2015).
No entanto, o projeto implantado na EBN, no início da Nova República,
não acabou com a saída de Carlos Marchi, até porque foi mantido pelos seus
sucessores imediatos – depois de um breve período comandada pelo porta-voz do
governo, Frota Neto, a EBN foi presidida pelo jornalista Ruy Lopes, de boa
reputação no mercado, que havia sido chefe da Sucursal de Brasília da Folha de
S.Paulo, e que assumiu a estatal com o objetivo de modernizá-la tecnicamente.
Lopes permaneceu menos de um ano no cargo, pois as pressões sobre a EBN e a Voz
do Brasil aumentaram conforme o governo perdia a batalha contra a inflação
(PEROSA, 1995, p.148).
Ruy Lopes foi substituído por Getúlio Bittencourt (1952-2009), outro
conhecido repórter de Brasília, mas que não conseguiu evitar que a Voz do Brasil, sob sua
gestão, cedesse às vontades do governo.
Getúlio comandou a empresa na fase em que o presidente Sarney
empregou todos os métodos para assegurar a dilatação de seu mandato,
e não vacilou em engajar a primeira meia hora da Voz do Brasil na
campanha de promoção dos cinco anos de mandato acalentados por
Sarney (PEROSA, 1995, p.149).
46
Isso nao significava que o programa tivesse voltado a ser totalmente “chapa-
branca”; ainda se praticava um certo jornalismo na Voz do Brasil. Tanto que Getúlio
Bittencourt foi sumariamente demitido em 1988, por causa da veiculação de uma
entrevista exclusiva do brigadeiro Paulo Roberto Camarinha. O chefe do Estado Maior
das Forças Armadas fez duras críticas à política econômica do governo nos microfones da
Voz do Brasil. Sarney teria ficado tão irritado que, além de demitir o presidente da EBN,
decretou a incorporação da empresa pela Radiobrás (PEROSA, 1995, p.149).31
Consolidação da democracia e a mesma Voz do passado
No governo de Fernando Collor de Mello (1990-1992), o jornalista Marcelo
Netto assumiu a presidência da Radiobrás. Amparado na popularidade de “caçador de
marajás”, quando era governador de Alagoas, Collor liderou as pesquisas durante a
campanha presidencial e se utilizou de forma muito eficaz do que hoje é chamado de
marketing político. O jornalista Ricardo Setti, que cobriu as eleições de 1989 para o
Jornal do Brasil, definiu a campanha de Collor como um “videoclipe político”:
Para o grande teórico da comunicação Marshall MacLuhan, como se
sabe, o meio é a mensagem. Para Fernando Collor de Mello, a
campanha é a mensagem. Basta seguir o candidato em sua busca pelos
votos pelo país para perceber que são os símbolos emitidos pela
campanha, muito mais que os discursos, que comunicam a mensagem
de Collor (SETTI apud CONTI, 1999, p.191).
Logo que assumiu a Presidência, Collor e sua equipe econômica
surpreenderam o país com o Plano Collor,32 mais uma tentativa oficial de combater a
inflação, que chegava a 80% ao mês no fim do governo Sarney. O anúncio do plano
foi feito em uma conturbada entrevista coletiva no dia seguinte à posse do presidente,
pela ministra da Economia, Zélia Cardoso de Melo, e por dois membros da equipe
econômica, Antônio Kandir e Ibrahim Eris.
Os três não conseguiram se fazer entender. Não diziam o que
pretendiam nem quais eram os fundamentos do plano. A ministra falava
em “transferência de titularidade” com a naturalidade de quem diz “hoje
está calor”. Eris, o presidente do Banco Central, nascido e criado na
Turquia, dizia “os torneiras” e “as critérias” (CONTI, 1999, p.324).
31 O decreto nº 96.212, de 22 jun 1988 extinguiu a Empresa Brasileira de Notícias, que havia sido criada em
1979 e alterou o nome da Radiobrás de Empresa Brasileira de Radiodifusão para Empresa Brasileira de
Comunicação S.A. O decreto definiu ainda que a Radiobrás seria subordinada ao ministro chefe da Casa Civil. 32 As medidas do Plano Collor incluíam a volta do cruzeiro como moeda e uma desvalorização do cruzado,
congelamento de preços e salários, criminalização dos aumentos não autorizados e bloqueio de todos saldos
bancários do país acima do valor correspondente a 1.250 dólares.
47
A Voz do Brasil daquele dia demonstrou que, a partir de então, seria adotado
um novo estilo editorial. O programa não apenas abriu espaço para que o próprio
presidente anunciasse as medidas do plano econômico, mas incorporou o mesmo discurso
maniqueísta do presidente, conforme anunciado pelo locutor:
Após traçar um perfil da atual situação do país no primeiro dia de trabalho
com todo o seu ministério, o presidente Fernando Collor enumerou o
conjunto de medidas e afirmou que, antes de tudo, é preciso fazer um
saneamento moral na área econômica33 (PEROSA, 1995, p.170).
Em sua fala na Voz do Brasil, Collor enumerou seis medidas adotadas, entre
elas a criminalização do abuso do poder econômico, que levaria à cadeia gerentes e donos
de empresas que escondessem mercadorias, a demissão e prisão de servidores públicos
que lesassem o fisco e a taxação das grandes fortunas e dos ganhos em bolsa de valores.
Individualizando as complexas questões sociais, Color extraiu delas o
caráter político inerente, e a luta de concepções sociopolíticas e
econômicas diferenciadas e conflitivas (...) ficaram diluídas no âmbito
de subjetividades moralistas e, portanto, mistificadoras de todo um
processo histórico real e dinâmico que é a luta pela sobrevivência e pela
liberdade desenvolvida pelos homens (PEROSA, 1995, p.171).
Entretanto, em seu pronunciamento na Voz do Brasil, Collor não falou no
confisco da poupança. Preferiu ressaltar a retórica populista, por exemplo, ao explicar a
taxaçao de ganhos no mercado financeiro: “O assalariado pagava o imposto de renda
sobre seu salário de fome e o patrão obtinha os seus ganhos especulativos sem recolher
um centavo aos cofres da Uniao” (PEROSA, 1995, 171).
Desde o primeiro dia do governo Collor, a Voz do Brasil tornou-se novamente
um veículo estratégico para a comunicação oficial, principalmente devido à sua
capilaridade no interior do país, sendo compulsoriamente retransmitida pelas 2.231
emissoras de rádio existentes àquela época. Marcelo Netto decidiu “popularizar” a
linguagem do programa, começando pela substituiçao do tradicional “Em Brasília, 19
horas” por “Em Brasília, sao sete horas da noite”. A introduçao de O Guarani deu lugar a
um arranjo de Aquarela do Brasil, de Ary Barroso, e o texto do noticiário passou a ser
mais informal, para ser compreendido por todos os brasileiros e, assim, evitar que os
aparelhos de rádio fossem desligados quando o programa começasse.
As mudanças adotadas na Voz do Brasil durante o governo Collor não foram
apenas estéticas. O programa abdicou de qualquer tentativa de fazer jornalismo isento e
passou a ser “fonte de informaçao obrigatória” sobre os temas ligados ao governo,
33 Grifo nosso.
48
tratando a palavra governamental como “elemento prioritário da notícia”, conforme
definiu Tairo Arrial, gerente de Radiodifusão da Radiobrás à época:
Como apêndice do poder, a Radiobrás e, por conseguinte, a Voz do
Brasil, propagou, com a precisão e o detalhamento inerentes a um órgão
de comunicação oficial, a ideologia do governante em exercício, agora
em formato radiojornalístico mais dinâmico, mas ainda unilateral na sua
abordagem. O pensamento divergente não seria autorizado, até porque a
“personalizaçao do poder” voltou à ordem do dia, como forma de suprir
o “desgoverno” herdado de Sarney (PEROSA, 1995, p.170).
Como muitas das estatais da época, a Radiobrás era considerada um cabide de
empregos. No governo Collor, a empresa passou por um processo de desestruturação
dentro do plano anti-estatista do presidente, que provocou uma redução de salários e
sucateamento de equipamentos e instalações. A empresa teve dois presidentes na era
Collor – Marcelo Netto (1990-1991) e Ruy Pontes (1991-1992) –, e nesse período 439
funcionários foram dispensados e outros 32 pediram demissão – “alguns porque foram
constrangidos a isso” (BUCCI, 2008, p.95).
Collor sofreu o processo de impeachment e foi afastado da Presidência em 22
de setembro de 1992, sendo substituído pelo vice-presidente, Itamar Franco, que
completou o mandato até 1995. Mineiro, com um estilo mais discreto que Collor, Itamar
colocou na presidência da Radiobrás Luiz Otávio de Castro Souza. A Voz do Brasil
perdeu o estilo personalista da gestão anterior, mas a estatal ainda enfrentava desafios de
ordem administrativa, herdados de seu antecessor.
A companhia entrou num período errante e errático. A inconstância
virou a regra. Entre 1990 e 1998, cinco presidentes se sucederam na
Radiobrás, com cinco linhas administrativas inteiramente distintas.
(...) Por volta de 1992, o descontrole atingiu o ápice. Os integrantes
do Conselho Fiscal tinham renunciado e o Conselho Administrativo
se dissolvera. Praticamente não havia prestação de contas (BUCCI,
2008, p.95).
A crise administrativa não permitia grandes investimentos na Voz do Brasil. A
crise da estatal perdurou no primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso (1995-1999),
que sucedeu Itamar Franco. Bucci (2008, p.97) destaca o importante papel, no processo de
saneamento administrativo da empresa, exercido pelo jornalista Carlos Zarur, o primeiro
profissional formado nos quadros da Radiobrás a assumir a presidência da estatal, no segundo
mandato de Fernando Henrique Cardoso (1999-2003). Apenas durante esse segundo mandato
de FHC é que a empresa superou as dificuldades financeiras e começou a ter condições de se
dedicar mais às “atividades fim”. No entanto, como era subordinada à Secretaria de
49
Comunicação Social da Presidência da República (Secom), a Radiobrás ainda se ressentia dos
“pedidos” que costumavam chegar do Palácio do Planalto.
Esse cenário só mudaria em 2003, a partir da posse de Luiz Inácio Lula da Silva na
Presidência e a indicação do jornalista Eugênio Bucci para comandar a Radiobrás.
Em janeiro de 2003, encontrei uma organização que mantinha a cabeça
baixa diante do governo, qualquer que fosse o governo. Lembro-me
bem de que as secretárias reagiam esbaforidas a qualquer telefonema da
Secom: interrompiam reuniões, batiam na porta do banheiro, corriam
pelos corredores para chamar imediatamente quem quer que fosse. (...)
Aquelas pessoas ainda tinham a ideia de que o chefe de todas elas era
alguém que não trabalhava ali, apenas telefonava para dar ordens
(BUCCI, 2008, p.98).
Uma proposta jornalística para a Voz do Brasil
Ao assumir a presidência da Radiobrás, em janeiro de 2003, no primeiro
governo petista, Eugênio Bucci propôs a adoção de mudanças editoriais, visando
extinguir o jornalismo “chapa-branca” da Voz do Brasil e de outros veículos
controlados pela estatal, como a TV Nacional de Brasília, a Rádio Nacional do Rio de
Janeiro e a Agência Brasil de notícias. Professor e doutor em Comunicação, Bucci
debatia nos meios acadêmicos e na imprensa questões ligadas à ética e ao direito à
informação. Em 1994, quando da segunda campanha de Lula à Presidência, Bucci foi
escalado para escrever o capítulo “A razao da comunicaçao” no documento que
elencava 13 motivos para se votar no petista. Em seu texto, intitulado “Um país que
dialogue”, Bucci dizia que o candidato representava “a marcha cidada, inclusive nos
campos do direito à informação, que vem sendo tão desprezado, e do direito à livre
expressao do pensamento” (BUCCI, 2008, p.197).
Sem que esse direito seja atendido, a democracia não funciona, uma vez
que o debate público pelo qual se formam as opiniões entre os cidadãos
se torna um debate viciado. (...) Quando o poder age no sentido de
subtrair do cidadão a informação que lhe é devida, está corroendo as
bases do exercício do jornalismo ético, que é o bom jornalismo, e
corroendo a sociedade (BUCCI, 2000, p.33).
À frente da Radiobrás, Bucci tentou pôr em prática as ideias que havia
defendido ao longo de sua carreira acadêmica. Apesar de a estatal ser encarregada, por
lei, de noticiar os atos do governo, isso era entendido no governo e na própria Radiobrás
como o dever de fazer promoçao das “realizações” das autoridades.
Nós entendíamos de outro modo. Para nós, ela deveria apenas informar, sem
omitir fatos relevantes e sem fazer propaganda, pois a mesma lei não
incumbia à Radiobrás as funções de assessoria de imprensa, de porta-voz, de
50
publicidade governamental – essas funções pertenciam diretamente à
Presidência da República e às suas secretarias (BUCCI, 2008, p.30).
Procurou-se implantar um modelo de jornalismo que tivesse como premissa o
direito à informação do cidadão e isenção na cobertura. Mas, de maneira similar ao que
ocorreu com Carlos Marchi no início do governo Sarney, o projeto adotado por Bucci
para a Voz do Brasil também sofreria resistências na própria Radiobrás e no governo.
O projeto ia contra a cultura do Estado, dos partidos, da Radiobrás e
também de boa parte da esquerda. O bloqueio cultural era uma
unanimidade que afirmava e reafirmava sem descanso: uma estatal com
emissoras de radiodifusão existia para defender o governo e preservar a
imagem dos governantes (BUCCI, 2008, p.21).
O projeto editorial adotado na estatal e na Voz do Brasil foi formalizado
publicamente em 2005, nos Documentos sobre o Jornalismo da Radiobrás. O texto definia que
informaçao é um direito do cidadao tao importante quanto a educaçao e a saúde. “E um direito
de todos, independentemente das inclinações ideológicas de cada um”.
Nossos jornalistas, comunicadores e todos aqueles que atuam no
processamento da informação que oferecemos ao público têm o
dever de evitar o partidarismo, a pregação religiosa, o tom
promocional e qualquer finalidade propagandística. (...) Nós
noticiamos fatos novos que façam diferença na vida do cidadão. Não
produzimos comentários opinativos, textos autorais nem análises ou
interpretações. Não é nosso papel. Noticiamos e explicamos os
acontecimentos (RADIOBRÁS, 2005, p.4).
Em 2006, foi publicado o Manual de Jornalismo da Radiobrás, o primeiro
documento do gênero em 30 anos de história da estatal. Organizado pelo jornalista Celso
Nucci,34 o Manual consolidava as diretrizes e os procedimentos a serem adotados pelos
jornalistas da empresa. O próprio Eugênio Bucci, no texto de apresentação do Manual,
ressaltava que, até 2003, as equipes da Radiobrás estavam habituadas a produzir conteúdos com
“vícios do discurso chapa-branca”, e ressaltava que já tinham assimilado esse conceito.
Gradativamente, a Radiobrás conseguiu se adequar à nova idade da
democracia no Brasil, contribuindo para imprimir mais
transparência à gestão da coisa pública. (...) No regime
democrático, o que define a qualidade das notícias produzidas por
uma empresa pública — sobre a qual não pesa nenhuma atribuição
legal de fazer assessoria de imprensa para o governo ou de fazer
relações públicas para as autoridades. (BUCCI, 2006, p.11).
34 Celso Nucci havia sido chefe de Eugênio Bucci na Editora Abril por mais de 10 anos, e assumiu a
assessoria especial da presidência da Radiobrás, em agosto de 2003. Segundo Bucci, era o maior
especialista em planejamento editorial que conhecera (BUCCI, 2008, p.251).
51
A defesa do direito à informação incomodou alguns setores do governo,
que consideravam que a Radiobrás (e a Voz do Brasil, especificamente) não deveria
noticiar certos assuntos que não eram de interesse do Planalto.35 Entre as queixas
vindas de outras áreas do governo até Bucci, estava aquela de que deveria ser
instalado nas redações um “filtro governista”. “Queriam que a Radiobrás agisse com
Lula do mesmo modo que agia antes [com os outros presidentes]”.
Uma democracia pode perfeitamente conviver com empresas
públicas encarregadas da prática do jornalismo – empresas públicas
porque de propriedade pública, que recebem financiamentos
públicos –, mas nessas empresas os representantes do governo não
podem interferir nem na gestão administrativa nem na gestão
editorial. Quanto mais democrático é um Estado, mais o Poder
Executivo se afasta da função de editar conteúdos jornalísticos
(BUCCI, 2008, p.79).
Eugênio Bucci permaneceu na Radiobrás até abril de 2007. Em 2008, foi criada a
Empresa Brasil de Comunicação – EBC Serviços, que sucedeu a Radiobrás em suas
atribuições. A nova direção da empresa, no entanto, não revogou as diretrizes adotadas na
gestão de Bucci até 2013, quando foi lançado o novo Manual de Jornalismo da EBC.
A Voz do Brasil depois de 2007
Criada por iniciativa do então ministro-chefe da Secretaria de Comunicação Social
da Presidência, Franklin Martins, um jornalista com grande experiência na cobertura política, a
EBC reuniu as emissoras pertencentes à Radiobrás e à Fundação Roquette-Pinto (ligada ao
Ministério da Educação e controladora da Rádio MEC). A Voz do Brasil manteve-se como um
veículo relevante da nova empresa, mas o principal projeto do ministro foi a criação, em
dezembro de 2007, da TV Brasil, uma emissora pública com transmissão em rede nacional. A
emissora foi criada para “atender à antiga aspiraçao da sociedade brasileira por uma televisao
pública nacional, independente e democrática” (EBC SERVIÇOS, sd) e para cumprir um
preceito constitucional de formar um “sistema nacional de televisao”, junto com a televisao
privada (ou comercial) e a televisão estatal (a serviço do governo).
Grosso modo, a televisão comercial, de massa, estaria mais voltada para
o entretenimento e um pouco de jornalismo, sustentada por inserções
comerciais; a estatal, sustentada pelo governo, estaria mais voltada para
a divulgação dos feitos oficiais, do governo de plantão, com alguma
prestação de serviços de utilidade pública e programas educacionais; e a
pública, equidistante das duas, sustentada pela sociedade, estaria
35 Entre os temas noticiados pela Voz do Brasil nesse período que geraram polêmica no governo estão a
greve de agentes da Polícia Federal em 2004 e a queda do então ministro da Fazenda, Antonio Palocci, em
março de 2006, em meio a um escândalo de violação de sigilo bancário.
52
voltada para os interesses dos cidadãos em sua dimensão mais humana.
Nas outras duas, ele seria o consumidor, o eleitor, o telespectador
apenas (MENDONÇA, 2007).
Sob a gestão da EBC, a Voz do Brasil não teve imediatamente uma nova
diretriz editorial, apesar de não terem sido revogadas as políticas elaboradas
anteriormente para a Radiobrás – pois não foi esclarecido ao público se aqueles
documentos ainda estavam em vigor, visto que a estatal já não existia mais. Em abril de
2013, a EBC lançou o Manual de Jornalismo, no qual o então presidente da empresa,
Nelson Breve, definiu jornalismo como um serviço público, sem o qual a sociedade “nao
consegue exercer seus direitos de cidadania”.
Seu texto defendia ainda que os jornalistas da estatal deveriam atuar com
independência, mas alertava que essa tarefa nao era fácil e que estava “sempre sujeita a
tentações e interpretações subjetivas”. Num arroubo que parece inspirado em Descartes
do senso comum (a defesa da razão, da evidência e da certeza), Nelson Breve argumenta
ser imprescindível aos jornalistas da EBC
a adoção de regras de conduta muito claras, precisas e transparentes
para que o resultado do trabalho de apuração, edição e divulgação das
informações seja realmente o que a sociedade espera e necessita: a
verdade, somente a verdade, nada a mais ou a menos que a verdade
(BREVE, 2013, p.7).
Como o Manual de Jornalismo da EBC prega que a empresa deve praticar uma
comunicaçao “que visa em primeiro lugar o interesse público” e que o jornalista tem a missao
de representar a sociedade “onde estiver, reportando com fidelidade, precisao e honestidade os
fatos e acontecimentos de interesse público” (EBC SERVIÇOS, 2013, p.7), esta dissertação
analisará, nos próximos capítulos, o conteúdo veiculado pela Voz do Brasil entre 2013 e 2015
para verificar se os conceitos de jornalismo defendidos em seu Manual são colocados em
prática.
Como veremos, levando-se em conta que se trata de um programa com
transmissão obrigatória por todas as emissoras do país, alguns acontecimentos de grande
impacto sobre a sociedade não foram abordados com o mesmo destaque que em jornais de
grande circulação, a despeito dos preceitos definidos pelo Manual de Jornalismo da EBC.
53
CAPÍTULO 2
Critérios de noticiabilidade na ‘Voz do Brasil’
A “notícia” na Voz do Brasil
Diversos autores vêm se dedicando a estudar o campo do jornalismo –
investigando as teorias do jornalismo, a história do jornalismo, a análise do discurso, a
produção da notícia, as teorias da narrativa. Não se pretende aqui, neste trabalho, um
aprofundamento das teorias da notícia, mas optamos por um dos conceitos de jornalismo,
compreendido como o ato de informar à sociedade a respeito de fatos que sejam de
interesse geral dos cidadãos, para analisar o programa Voz do Brasil.
Essa compreensão – presente nas pesquisas de Lippman, Galtung & Ruge,
Golding & Elliott, Gans, Gaillard, Hohemberg, Traquina, Wolf, Chaparro e Lage – é
também adotada pela Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), no Código de Ética da
profissao. Esse documento, elaborado em 2007, considera que “o acesso à informaçao de
relevante interesse público é um direito fundamental” dos cidadaos e que “a produçao e a
divulgação da informação devem se pautar pela veracidade dos fatos e ter por finalidade
o interesse público”. Para exercerem esse ofício, conforme a Fenaj, os jornalistas não
podem admitir que o exercício desse direito seja impedido por algum outro tipo de
interesse. O Código de Ética determina ainda que o compromisso fundamental do
jornalista deve ser “com a verdade no relato dos fatos”, e que seu trabalho deve ser
pautado “na precisa apuraçao dos acontecimentos e na sua correta divulgaçao”.
Numa perspectiva histórica do estudo do jornalismo, considerando os
conceitos de gatekepper e a teoria do agendamento (agenda setting), as notícias podem
ser entendidas como a existência pública dos acontecimentos, processo que se dá por
meio da atividade jornalística. As notícias contribuem, também, para a “construçao de
significações sobre acontecimentos e ideias e para o agendamento de temas na lista de
preocupações do público” (SOUSA, 2002, p.198). Para Molotch & Lester (1993, p.34), as
notícias nos apresentam fatos importantes “a que nós não assistimos diretamente dão
como observáveis e significativos acontecimentos que seriam remotos de outra forma”.
Tuchman (1993, p. 262) afirma que os relatos noticiosos “sao documentos públicos que
colocam o mundo à nossa frente”.
54
Vários autores reconhecem também a relevância do jornalismo para a
construção da democracia. Nas sociedades democráticas, o acesso à informação, mais que
um direito, pode ser entendido como uma necessidade “que emana dos próprios
fundamentos do sistema” (SOUSA, 2002, p.198). Traquina ressalta especialmente o papel
da imprensa como fiscalizadora dos poderes constituídos, por meio de uma relação
“simbiótica”, em que o jornalismo desempenha um papel de adversário do poder político
– tanto que passou a ser chamado de Quarto Poder.
A democracia não pode ser imaginada como sendo um sistema de
governo sem liberdade e o papel central do jornalismo, na teoria
democrática, é de informar o público sem censura. Os pais fundadores
da teoria democrática têm insistido, desde o filósofo Milton,36 na
liberdade como sendo essencial para a troca de ideias e opiniões, e
reservaram ao jornalismo não apenas o papel de informar os cidadãos,
mas também, num quadro de checks and balances (a divisão do poder
entre poderes) a responsabilidade de ser o guardião (watchdog) do
governo (TRAQUINA, 2005, p.22).
O autor destaca ainda que
tal como a democracia sem uma imprensa livre é impensável, o
jornalismo sem liberdade é farsa ou tragédia. O que é o jornalismo num
sistema totalitário (...) é fácil de definir: o jornalismo seria a propaganda
a serviço do poder instalado (TRAQUINA, 2005, p.23).
Diante desses pressupostos e considerando-se o histórico da Voz do Brasil
como porta-voz do governo, cabe a pergunta: seria possível praticar o jornalismo no
programa, visto que esse ofício implica numa função de fiscalização dos poderes
constituídos a partir de um compromisso com o interesse público? E qual seria o conceito
de “notícia” adotado pela Voz do Brasil, que justificaria que determinado acontecimento
ou informação fosse selecionado para estar no programa?
Para avaliar o processo de seleção de notícias em veículos jornalísticos,
optamos pelos conceitos ligados à noticiabilidade e aos valores-notícias dos
acontecimentos. Dentre os atributos propostos para se avaliar a noticiabilidade,
encontramos a novidade (quando o fato é inédito, portanto noticiável), raridade (quando
acontece o inesperado, conforme o exemplo alegórico clássico de que um cachorro que
morde um homem não é notícia, mas se o homem morde o cão será noticiado), relevância
36 O poeta e filósofo britânico John Milton (1608-1674) dedicou sua vida à defesa das liberdades civis,
políticas e religiosas, razão pela qual é frequentemente citado em temas ligados à liberdade de expressão e
ao direito à informação. Não se encontra nos seus escritos passagem que se refira expressamente à
“liberdade de informação”, visto que essa terminologia não era adotada na sua época. No entanto o conceito
se faz presente na sua obra Areopagítica: “Dai-me liberdade para saber, para falar e para discutir
livremente, de acordo com a consciência, acima de todas as liberdades” (Give me the liberty to know, to
utter, and to argue freely according to conscience, above all liberties).
55
(a importância do acontecimento para a sociedade ou a posição hierárquica dos
personagens envolvidos), proximidade geográfica (se o fato ocorre próximo ao público
do veículo), negatividade (a questão das bad news e das good news), entre outros.
Nesta dissertação, para avaliar o processo de seleção de notícias pela Voz do
Brasil e pelos jornais analisados, optamos pelos conceitos de noticiabilidade apresentados
por Mauro Wolf (2012) e outros autores, especificamente os critérios “substantivos”, que
permitem uma avaliação menos subjetiva do que seriam temas de interesse da sociedade,
vis-à-vis os interesses do Poder Executivo federal e dos órgãos da administração direta.
Para tal análise, foi feito o acompanhamento das edições da Voz do Brasil durante 30
meses,37 com o objetivo de se identificar exemplos que melhor exemplificassem a
hipótese aqui apresentada, que os interesses do governo se sobrepõem aos da sociedade.
Apesar de a pesquisa se limitar ao período entre 2013 e 2015, buscamos duas
referências anteriores desse padrão de seleção de notícias pela Voz do Brasil – pois as
consideramos emblemáticas para a análise aqui desenvolvida e por terem sido
documentadas em outros trabalhos. A primeira delas, relatada por Lilian Perosa (1995,
p.124), ocorreu em 1980, durante a primeira visita do papa João Paulo II ao Brasil,
quando o país ainda vivia sob o regime militar. Na ocasião, o principal líder da igreja
católica reproduziu em sua fala um protesto da população de Teresina, capital do Piauí.
O “protesto” do papa João Paulo II
Era o dia 8 de julho de 1980. Durante uma rápida escala de seu voo no
Aeroporto de Teresina, o papa João Paulo II foi recebido por cerca de 100 mil pessoas,
que o aguardavam debaixo de um sol escaldante. No meio da multidão, foi levantada uma
faixa que trazia os dizeres: “Sto Padre, o povo passa fome”. Uma manifestaçao como
essa, naquela época de ditadura militar, era passível de enquadramento na Lei de
Segurança Nacional (LSN). Embora as redações não mais estivessem sujeitas à censura
prévia, os jornalistas temiam ser enquadrados na Lei de Imprensa e na própria LSN.
Portanto, a cobertura da imprensa sobre a visita papal dificilmente reproduziria aquele
protesto popular. No entanto, após rezar a oração do Pai Nosso, o próprio João Paulo II
falou à multidao: “Pai Nosso, o povo passa fome”. A frase pronunciada pelo pontífice
transformou-se em uma espécie de “alvará” para que a imprensa a publicasse com
37 O acompanhamento do programa se deu entre janeiro de 2013 e junho de 2015, com o objetivo de
identificar edições em que houvesse fatos amplamente noticiados pelos demais veículos de imprensa, e que
permitissem a comparação do programa radiofônico oficial com os três jornais impressos de circulação
nacional escolhidos para compor esta análise.
56
destaque – e que, no caso da Folha de S.Paulo, fosse publicada a foto da faixa para
“justificar” a principal manchete daquela edição.
Figura 1 – Capa da Folha de S.Paulo – 09 jul 1980
Fonte: Jornal Folha de S.Paulo de 09 de julho 1980
Já o programa Voz do Brasil daquela data ignorou a fala papal. Conforme
Lilian Perosa, a justificativa foi que o programa – assim como todos os demais
veículos ligados ao governo federal e controlados, na época, pela Empresa Brasileira
de Notícias (EBN) – somente veiculavam informações que tivessem caráter “oficial”.
Deve-se entender esse “oficial” como o endosso de alguma autoridade do governo
federal ao acontecimento. Portanto, segundo a autora, o fato jornalístico por si só (no
caso, o protesto estampado na faixa e a fala do papa) não bastava para a sua
divulgação:
Sua veracidade e, portanto, sua credibilidade, estariam
condicionados à sua confirmaçao pela “autoridade governamental”.
A palavra oficial, nesse caso, determinaria o fato. O fato sem a
palavra oficial não existiria, portanto, não seria publicável
(PEROSA, 1995, p.123).
57
A manifestação que virou “pauta de reivindicações”
Em 11 de junho de 2003, quando já estava há seis meses à frente da
Radiobrás e buscava implantar conceitos jornalísticos na Voz do Brasil, Eugênio
Bucci vivenciou o que posteriormente definiu como tentativa de “tapear” a nação no
programa radiofônico. Naquele dia, entidades sindicais de vários Estados
organizaram uma manifestação contra a reforma previdenciária, na Esplanada dos
Ministérios, em Brasília. O protesto contou com a participação de cerca de 20 mil
funcionários públicos. Aquela era a primeira manifestação popular contra o governo
Lula, que tinha suas origens justamente no movimento sindical. “O protesto serviu
também para expor as divergências internas do partido do presidente”, pois alguns
parlamentares do PT “entraram em marcha em apoio aos manifestantes, agravando
as fissuras internas do PT e da base aliada” (BUCCI, 2008, p.154).
No programa Voz do Brasil, a manchete daquele dia foi: “Os remédios de uso
contínuo devem ficar mais baratos”, com direito a uma informaçao complementar: “Os
diabéticos e os hipertensos estao entre os beneficiados”.
As duas chamadas principais, sobre os remédios que “deveriam”
ficar mais baratos, não noticiavam nenhum benefício direto para o
ouvinte. Tudo se reduzia a uma intenção do ministro da Saúde,
Humberto Costa, que anunciara, naquele dia, que o governo estaria
preparando uma lista de medicamentos para serem vendidos a
preços menores. Mas isso, de acordo com o próprio governo, só
aconteceria no final daquele ano – e não aconteceu nunca (BUCCI,
2008, p.151).
Em relação ao protesto dos servidores federais, a Voz do Brasil anunciou
a notícia da seguinte maneira: “Sindicalistas entregam ao governo propostas para a
reforma da Previdência”. Conforme Bucci, a reivindicação dos servidores foi
relatada no programa como um episódio “diplomático”: ao ser perguntado pela
apresentadora como a proposta havia sido recebida pelos ministros, o repórter , de
forma bem informal, respondeu ao apresentador: “Olha, muito bem”. Em seguida, o
repórter reproduziu os argumentos do ministro da Secretaria-Geral da Presidência,
“como se lesse um texto sem querer dar a impressao de que lia” (BUCCI, 2008,
p.152).
A Voz do Brasil daquele dia ainda abriu o microfone para que o então
presidente do PT, José Genoino, emitisse sua opinião sobre o episódio: “A manifestação
58
de servidores públicos contra a reforma da Previdência faz parte do processo
democrático, mas a retirada da proposta do governo é inegociável”.38
As “reportagens” apresentadas naquela noite nao estavam à altura da
palavra reportagem. (...) O ouvinte que insistisse em acreditar no
programa saía dele sem ter uma visão mínima do que tinha se passado
em Brasília naquele 11 de junho. Depois, era um texto mal-
intencionado. À indigência jornalística vinha se somar o propósito de
mentir, de esconder os acontecimentos (BUCCI, 2008, p.153).
Nos principais jornais do dia seguinte, a imagem dos servidores públicos
ocupando a Esplanada dos Ministérios foi estampada na primeira página, com títulos que
destacaram as diferenças existentes entre o governo e os sindicatos:
Estado: “Servidores agridem líderes do PT e da CUT”
Folha: “Servidores fazem maior ato contra Lula”
Globo: “Ato de 20 mil divide sindicatos e PT”
Figura 2 – Capas dos jornais – 12 jun 2003
Fontes: Jornais O Estado de S.Paulo, Folha de S.Paulo e O Globo de 12 de junho de 2003
A Voz do Brasil daquela data, na avaliação de Bucci (2008, p.154), agredia o
cidadão no seu direito à informaçao, “pela conduta premeditada da equipe responsável
pela produçao do horário reservado ao Poder Executivo”. O episódio foi usado por Bucci
como símbolo do tratamento da notícia que deveria ser evitado no programa e acelerou as
38 Do ponto de vista formal, não caberia a um veículo de comunicação ligado à Presidência dar espaço para
o presidente de uma sigla – mesmo que ele fosse do mesmo partido que o presidente da República, pois ele
não exercia nenhuma função na administração direta federal.
59
mudanças feitas na equipe – que passou a ter apresentadores e editores “sem vícios” –,
para que se pudessem adotar novos princípios editoriais no programa, voltados para o
direito à informação.
O conceito de noticiabilidade
O conceito de noticiabilidade (newsworthiness, no termo em inglês) orienta o
trabalho jornalístico, permitindo uma avaliação dos acontecimentos com base em um
conjunto de critérios de relevância que definem a aptidão de cada evento para virar notícia.
Esses critérios se aplicam nas diferentes etapas da produção jornalística: pauta, apuração,
reportagem e edição. Na avaliação do conteúdo da Voz do Brasil, adotamos o que Wolf
(2012) define como critérios substantivos de avaliação das notícias, que se articulam
com base em dois fatores básicos: a importância e o interesse do acontecimento.
Num mundo ideal – sem a influência de fatores externos, nem das convicções
pessoais dos jornalistas, nem das estruturas organizacionais e hierárquicas das empresas
de comunicação – a avaliação da noticiabilidade poderia ser baseada nos chamados
valores-notícia.
Os valores-notícia são a qualidade dos eventos ou da sua construção
jornalística, cuja ausência ou presença relativa os indica para
inclusão num produto informativo. Quanto mais um acontecimento
exibe essas qualidades, maiores são as suas possibilidades de ser
incluído (GOLDING-ELLIOTT, 1979, p.114).39
Esses valores-notícia são regras práticas que abrangem um corpus de
conhecimentos profissionais em uma redação, e justificam as linhas-guia que orientam “o
que deve ser enfatizado, o que deve ser omitido, onde dar prioridade na preparação das
notícias a serem apresentadas ao público” (GOLDING-ELLIOTT, 1979, p.114).
Wolf (2012, p.186) destaca que o contexto profissional-organizacional-
burocrático das empresas exerce uma influência decisiva nas escolhas dos jornalistas – da
mesma forma que influencia as relações entre repórteres e editores, e as relações entre
jornalistas e executivos das empresas de comunicação nas quais trabalham.
A fonte de recompensas do jornalista não está entre os leitores, que
são manifestamente os seus clientes, mas entre seus colegas e
superiores. Em vez de aderir a ideais sociais e profissionais, o
39 Do original em inglês: “News values are qualities of events or of their journalistic construction, whose relative
absence or presence recommends them for inclusion in the news product. The more of such qualities a story
exhibits, the greater its chances of inclusion” (tradução do autor).
60
jornalista redefine os próprios valores no nível mais pragmático do
grupo redacional (BREED, 1999, p.84).40
No caso da Voz do Brasil, o fato de o programa estar vinculado
hierarquicamente à estrutura da Presidência da República permitiu a disseminação
de uma espécie de consenso, baseado em uma falsa premissa: por ser estatal e
controlar emissoras de rádio e TV, a empresa existia para defender o governo e para
preservar a imagem das autoridades. Formalmente, não há na Voz do Brasil qualquer
orientação para que o programa se preste a este papel (BUCCI, 2008, p.33). Ao
contrário, as políticas e manuais que já foram tornados públicos – incluindo o
Manual de Jornalismo da EBC, lançado em 2013 e ainda em vigor – defendem a
imparcialidade no trabalho jornalístico. Um exemplo é o texto introdutório do
Manual, assinado pelo então presidente da estatal, Nelson Breve:
A liberdade de expressão e o direito à informação são princípios
fundamentais da democracia e razão essencial da existência da
imprensa. Portanto, o jornalista é um servidor da sociedade. Ele
tem a missão de ser os olhos, ouvidos e demais sentidos do povo,
onde estiver, reportando com fidelidade, precisão e honestidade os
fatos e acontecimentos de interesse público (BREVE, 2013, p.7).
No entanto, não é isso que se nota no programa, conforme alguns
exemplos compilados entre 2013 e 2015, que serão analisados a seguir.
O “apagão” elétrico de 2014
No dia 4 de fevereiro de 2014, uma terça-feira, houve uma falha no
fornecimento de energia elétrica em boa parte do país. O problema ocorreu no
início da tarde em uma linha de transmissão no Estado do Tocantins e, em
decorrência de uma reação em cadeia, parte do sistema interligado de transmissão
nacional foi desligado, por razões de segurança. Esse “apagao”, na linguagem
popular adotada pela imprensa, atingiu 11 Estados, nas regiões Sul, Sudeste, Norte
e Centro-Oeste.
A falta de energia afetou, diretamente, seis milhões de clientes das empresas
distribuidoras de energia (entre residências, estabelecimentos comerciais e outras
instituições), ou cerca de 11 milhões de pessoas. Nos grandes centros, a falta de energia
40 Do original em inglês: The newsman’s source of rewards is located not among the readers, who are manifestly
his clients, but among his colleagues and superiors. Instead of adhering to societal and professional ideals, he
redefines his values to the more pragmatic level of the newsroom group (tradução do autor).
61
provocou problemas nos transportes públicos, notadamente nos metrôs e trens urbanos, assim
como no trânsito, pois afetou o funcionamento dos semáforos.
A notícia foi destacada como manchete de primeira página, nos três jornais
aqui analisados, nas edições do dia seguinte:
O Estado de S.Paulo: “Apagao atinge 11 Estados e analistas veem sistema frágil”
Folha de S.Paulo: “Apagao atinge 11 Estados, e 6 milhões ficam sem luz”
O Globo: “Sistema opera no limite e apagao pode se repetir”
Figura 3 – Capas dos jornais – 05 fev 2015
Fontes: Jornais O Estado de S.Paulo, Folha de S.Paulo e O Globo de 05 de fevereiro de 2014
Além das manchetes, o “apagao” mereceu dos jornais uma ampla
cobertura nas páginas internas, que relataram os impactos sociais e políticos do
episódio e buscaram explicações para o incidente. O impacto, principalmente nas
grandes cidades, foi tamanho que o Ministério de Minas e Energia convocou uma
entrevista coletiva para o final daquela tarde, em Brasília.
Apesar da atenção que o próprio ministério responsável pela gestão do
setor elétrico brasileiro deu ao episódio, o programa Voz do Brasil daquela data,
transmitido ao vivo das 19h00 às 19h25, não considerou a notícia do apagão entre as
três manchetes destacadas no teaser de abertura do programa – que optou por temas
ligados a políticas públicas do governo (como a agricultura e a saúde pública) .41
41 As manchetes foram as seguintes: (1) “Mais de R$ 5 bilhões foram investidos, nos últimos 10 anos, para a
compra de quatro milhões de toneladas de produtos da agricultura familiar”; (2) “Um bilhao e 300 milhões de reais
vão ser dados de incentivo fiscal, esse ano para projetos e pesquisas de combate ao câncer e de apoio às pessoas com
62
O assunto “apagao” só foi tratado decorridos 14 minutos de transmissão –
portanto, mais da metade do programa. A primeira participação ao vivo da repórter que
acompanhou a entrevista coletiva do Ministério das Minas e Energia abordou um tema
correlato tratado pelos porta-vozes: o impacto do baixo nível de água nos reservatórios do país
sobre o sistema de geração nacional.42
Somente em sua segunda participação no programa é que a repórter falou sobre a
falha no fornecimento de energia:
- O Operador Nacional do Sistema (...) afirmou que houve um curto-circuito
em uma parte da linha de transmissão no Estado do Tocantins que
comprometeu 8% da carga do país. O secretário executivo do Ministério de
Minas e Energia, Márcio Zimmermann, afirmou que o Operador Nacional do
Sistema irá fazer uma avaliação sobre o fato, que não foi causado pela alta do
consumo de energia no país. E diz que, sempre que acontece uma ocorrência
como esta, há desligamento da carga para evitar problemas mais sérios. A
interrupção na transmissão de energia foi às duas horas e três minutos desta
tarde e, de acordo com o Operador Nacional do Sistema, a energia começou
a ser restabelecida 35 minutos depois. [fala da repórter Priscila Machado]43
O relato acima durou exatos 55 segundos, sem qualquer réplica ou questionamento
por parte dos apresentadores do programa, como recomendaria a prática do bom jornalismo e o
compromisso com o direito à informação. Por exemplo, os ouvintes não foram informados
quanto tempo demorou para que a energia fosse totalmente restabelecida, já que a jornalista
informou em seu relato apenas que “a energia começou a ser restabelecida 35 minutos depois”
do incidente.44
Além disso, uma análise da distribuição do tempo daquela edição da Voz do Brasil
entre os 14 assuntos incluídos na pauta também indica uma priorização de temas de interesse
do governo federal, em detrimento da notícia do “apagao”, conforme mostra a tabela:
Tabela 1 – Pauta da ‘Voz do Brasil’ – 04 fev 2014
Ordem de
apresentação Assunto Duração
1 Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) 3min01seg
deficiência”; e (3) “Brasil deve receber esse ano, no Carnaval, quase 6,5 milhões de turistas. A expectativa é injetar
mais de R$ 6 bilhões na economia do país”. Ainda que sejam pautas ligadas a políticas públicas (1 e 2) e ao
potencial turístico do país (3), as notícias destacam temas de interesse do governo, e não da população, e destacam
grandes cifras, que, nos casos 2 e 3, ainda não haviam se materializado. 42 A primeira participação da repórter Priscila Machado durou 1 minuto e 28 segundos. 43 A transcrição integral dos programas Voz do Brasil analisados nesta dissertação estão disponíveis em
<http://conteudo.ebcservicos.com.br/programas/a-voz-do-brasil/transcricoes_tpl>. Acesso em 01 jul 2015. 44 O texto publicado pela Folha no dia seguinte informou que “no fim da tarde (...), em Sao Paulo e no Rio, havia
indústrias sem luz e semáforos apagados”.
63
2 Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura 2min50seg
3 Dia Mundial do Câncer e apoio a pessoas com deficiência 3min8seg
4 Desembarque de cubanos para o Programa Mais Médicos 47seg
5 Receitas com turismo previstas para o Carnaval 2014 1min57seg
6 Reforma do Cristo Redentor no Rio de Janeiro 52seg
7 Nível de água nos reservatórios das hidrelétricas 1min28seg
8 Interrupção no fornecimento de energia 55seg
9 Indicadores da produção industrial do país 39seg
10 Posse do ministro Aloizio Mercadante na Casa Civil 2min07seg
11 Agência-Barco da Caixa Econômica na Ilha de Marajó 2min17seg
12 Programa Rotas de Integração Nacional na Ilha de Marajó 39seg
13 Caravana da Secretaria da Micro e Pequena Empresa 36seg
14 Serviço Aéreo Fácil tira dúvidas sobre direitos de
passageiros 45seg
Fonte: Cronometragem feita pelo próprio autor com base no arquivo em áudio da EBC Serviços.45
Wolf propõe uma análise da noticiabilidade a partir do que chama de
“admissões implícitas” ou de “considerações relativas”. Sao elas: (a) as características
substantivas das notícias ou seu conteúdo, uma categoria de considerações que diz
respeito a quanto o evento é apto a se transformar em notícia; (b) a disponibilidade de
material e os critérios relativos ao produto informativo, que se refere ao conjunto dos
processos de produção e de realização do trabalho jornalístico; (c) o público, ou seja, a
imagem que os jornalistas têm a respeito daqueles que serão destinatários das notícias; e
(d) a concorrência, que diz respeito às relações entre os meios de comunicação de massa
presentes no mercado (WOLF, 2012, p.207).
Para efeitos desta análise, optamos por trabalhar com os critérios substantivos
propostos pelo autor. Esses critérios articulam-se com base em dois fatores principais: a
importância e o interesse gerado pela notícia. Para que sejam avaliados esses fatores,
Wolf (2012, p.208-214) sugere que a análise das notícias seja baseada a partir de quatro
variáveis: (1) o grau hierárquico dos envolvidos no acontecimento; (2) o impacto do fato
sobre a nação e interesse nacional; (3) a quantidade de pessoas que o acontecimento
envolve (direta ou indiretamente); e (4) a relevância do fato em relação aos
desenvolvimentos futuros de uma determinada situação.
45 A íntegra dos conteúdos em áudio dos programas analisados nesta dissertação estão disponíveis em
<http://conteudo.ebcservicos.com.br/programas/a-voz-do-brasil/programas>. Acesso em 01 jul 2015.
64
Na primeira variável, o autor indica que quanto mais o acontecimento
envolver ou interessar membros da elite política ou econômica, mais chance terá de se
tornar notícia. “A hierarquia governamental é visível (...) e auxilia os jornalistas em sua
avaliçao de importância” (GANS, 1979, p.147). O valor/notícia “importância” de um
evento é definido com base em fatores como o grau de poder institucional, a visibilidade
dos personagens (a capacidade de serem “reconhecidos” pelo público em geral) e o peso
das organizações envolvidas. Se analisado com base nessa variável, o “apagao” deveria
ter tido destaque na Voz do Brasil, visto que se tratou de um tema de gestão do Ministério
das Minas e Energia e de interesse direto do governo, a ponto de ter merecido uma
entrevista coletiva naquele mesmo dia, com a participação de representantes do alto
escalão do ministério.
Na variável “impacto sobre a naçao e sobre o interesse nacional”, Galtung e
Ruge (1993, p.63) sugerem a análise com base no valor/notícia “significatividade”, ou
seja, o potencial do acontecimento em influir ou incidir sobre os interesses do país. A
cobertura sobre o “apagao”, feita pelos jornais impressos analisados, destacou os efeitos
sobre o sistema elétrico: além do O Globo, que destacou na manchete o risco de novo
“apagao” devido à suspeita de o sistema operar “no limite”, a Folha de S.Paulo informou
que a presidente da República havia convocado uma reunião de emergência (informação
que não foi dada pela Voz do Brasil) e o Estado de S.Paulo questionou o fato de o
Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) descartar uma sobrecarga do sistema, sem
mesmo saber as reais causas da pane.
A terceira variável, “quantidade de pessoas que o acontecimento (de fato ou
potencialmente) envolve”, correlaciona-se diretamente com a anterior – pois há uma
complementaridade entre o interesse social de um episódio e o número de pessoas
atingidas. Gans (1979, p.151) diz que quanto mais elevado for o número de pessoas
envolvidas, mais importante será a notícia. No caso do “apagao”, o fato de ter deixado
sem luz cerca de 11 milhões de pessoas – e de ter afetado outros milhões de moradores
das grandes cidades (usuários ou não de transportes públicos) – já justificaria um
destaque maior na Voz do Brasil.
Na quarta variável, “relevância e significatividade do acontecimento quanto à
evoluçao futura de uma determinada situaçao” (GANS, 1979, p.152), avalia-se a capacidade de
uma cobertura manter o interesse do público e, portanto, merecer uma cobertura prolongada.
No caso do “apagão” em si, a notícia nao teria uma “cauda longa”, visto que a pane foi
solucionada em algumas horas, mas o contexto do setor elétrico nacional tem esse potencial (no
65
que se refere à insegurança jurídica dos contratos com os geradores de energia, falta de
investimentos em infraestrutura (atraso nas licitações e licenças de novas obras) e o decorrente
risco de um novo “apagao”. Tanto que foi destacado pelos jornais impressos.
Na cobertura feita pela Voz do Brasil, o “apagao” foi tratado como assunto de
menor relevância. O programa omitiu algumas informações passadas pelo próprio Ministério
das Minas e Energia e pelo Operador Nacional do Sistema – como o fato de o problema ter
afetado seis milhões de unidades consumidoras em 11 Estados (o programa citou apenas que o
curto-circuito “comprometeu 8% da carga do país”). A reportagem do programa também
evitou o uso do termo “apagao”, preferindo “interrupçao na transmissao”. Vale pontuar que
essa opção semântica do programa não está incorreta; está mais em conformidade com a norma
padrão da língua portuguesa do que “apagao”, pois evita o uso de uma gíria que começou a ser
incorporada ao repertório dos brasileiros a partir de meados dos anos 1980, em substituição à
expressão em inglês até então usada nesses casos de falta generalizada de energia (blackout).
No entanto, se analisado conforme os conceitos de noticiabilidade aqui adotados, o
programa deveria ter destacado o problema do “apagão”, em vez de privilegiar temas de
abrangência e repercussão limitadas – tanto geograficamente quanto no quesito relevância.
A polêmica saída do ministro da Educação em 2015
Em março de 2015, o ministro da Educação, Cid Gomes, compareceu ao
Plenário da Câmara dos Deputados depois de ser convocado pela Casa para se
explicar sobre declarações que havia feito a respeito dos parlamentares. A
convocação do ministro foi aprovada pelo Plenário da Câmara, que se transformou
em uma Comissão Geral para receber o ministro da Educação. Conforme o
regimento da Casa, caso ele não comparecesse, poderia sofrer processo por crime de
responsabilidade. Ex-governador do Ceará e no cargo de ministro há cerca de três
meses, Cid Gomes disse, durante uma visita à Universidade Federal do Pará
(UFPA), no dia 27 de fevereiro, que
tem lá [no Congresso] uns 400 deputados, 300 deputados que,
quanto pior, melhor para eles. Eles querem é que o governo esteja
frágil porque é a forma de eles achacarem mais, tomarem mais,
tirarem mais dele, aprovarem as emendas impositivas. [ministro
Cid Gomes, em pronunciamento na UFPA] (SOUZA, 2015)
Da tribuna do Plenário, o ministro disse que “partidos de oposiçao têm o
dever de fazer oposiçao” e que os “partidos de situaçao têm o dever de ser situaçao
ou entao larguem o osso, saiam do governo”. Essa frase causou uma reação dos
66
parlamentares no plenário, que resultou em uma discussão com os deputados. O
ministro dirigiu-se ao presidente da Câmara, deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ):
– Eu fui, Sras. e Srs. Deputados, acusado de mal-educado. O
Ministro da Educação é mal-educado. Pois muito bem, eu prefiro ser
acusado por ele [apontando para o presidente da Casa, Eduardo
Cunha] de mal-educado do que ser, como ele, acusado de achaque!
[ministro Cid Gomes, no Plenário da Câmara]46
Houve uma sequência de reações dos parlamentares; o deputado Leonardo
Picciani (PMDB-RJ) falou ao microfone: “Esse cidadão não vai vir aqui debochar da cara
dos representantes da população brasileira!”; o deputado Sergio Zveiter (PSD-RJ)
chamou o ministro de “palhaço”. O ministro tentou revidar, mas teve seu microfone
desligado por determinação do presidente da Câmara – alegando que a palavra estava
com o parlamentar. Depois disso, o ministro abandonou a tribuna do Plenário. O
deputado Eduardo Cunha encerrou a Comissão Geral e anunciou que iria processar o
ministro.
– Não vou admitir que alguém que seja representante do Poder
Executivo não só agrida esta Casa, como agrediu a todos os seus
Parlamentares, como vem aqui e reafirme a agressão, inclusive
chegando ao ponto de querer dominar. Então, a Procuradoria vai
processar. A Presidência vai processar. (...) Esta Casa vai se dar ao
respeito, dependendo desta Presidência e, pelo que estou
depreendendo, da maioria dos Parlamentares que não se sentem
achacadores e não vão levar essa ofensa para casa. [deputado
Eduardo Cunha, no Plenário da Câmara]
Minutos depois, o próprio presidente da Câmara foi quem primeiro anunciou
a demissão do ministro aos deputados presentes no Plenário – após ter sido informado
pelo ministro da Casa Civil, Aloizio Mercadante.
A demissão do ministro da Educação, após a acalorada discussão no
Parlamento, virou manchete nos jornais do dia seguinte.
Estado: “Ministro é demitido depois de bate-boca no Congresso”
Folha: “Após bate-boca na Câmara, Eduardo Cunha anuncia queda de
ministro”
Globo: “PMDB ameaça sair da base, e Cid Gomes deixa governo”
46 Transcrição da Sessão Plenária da Comissão Geral da Câmara dos Deputados, realizada no dia 18 mar 2015, está
disponível em <http://www.camara.leg.br/internet/sitaqweb/TextoHTML.asp?etapa=3&nuSessao=036.1.55.O&nu
Quarto=36&nuOrador=1&nuInsercao=0&dtHorarioQuarto=15:10&sgFaseSessao=CG%20%20%20%20%20%20
% 20%20 &Data=18/03/2015&txApelido=CID%20GOMES&txFaseSessao=Comissão%20Geral%20%20%20%
20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20&dtHoraQuarto=15:10&txEtapa=Sem%20redação%20fi
nal>. Acesso em 01 jul 2015.
67
Figura 4 – Capas dos jornais – 19 mar 2015
Fontes: Jornais O Estado de S.Paulo, Folha de S.Paulo e O Globo de 19 de março de 2015
Nos textos publicados nas primeiras páginas, os jornais contextualizaram a
saída do ministro e a crise entre os poderes Executivo e Legislativo que ela simbolizava.
A Folha definiu o fato de o presidente da Câmara anunciar a saída do ministro antes do
próprio Palácio do Planalto como um “episódio inusitado e constrangedor para o
governo”. O Estado de S.Paulo informou que o ministro foi demitido em razão do bate-
boca com o presidente da Câmara e que, devido ao episódio, o PMDB ameaçava romper
com o governo. Já O Globo destacou que “a demissao foi comunicada a Cunha, e
anunciada em plenário, antes mesmo de Cid chegar ao Planalto”.
Para a Voz do Brasil, daquele dia, o principal assunto foi a assinatura do
Projeto de Lei de combate à corrupção, anunciado em cerimônia no Palácio do Planalto.
Na pauta do programa, o tema mereceu duas matérias, ocupando um tempo total de mais
de sete minutos, trazendo trechos dos discursos da presidente da República e do ministro
da Justiça, José Eduardo Cardoso. Para o jornal O Globo, o episódio envolvendo o
ministro na Câmara “ofuscou a divulgaçao do pacote anti-corrupção de Dilma”,
anunciado pela presidente naquele mesmo dia, no Palácio do Planalto.
Na pauta do programa Voz do Brasil, a notícia da demissão do ministro Cid
Gomes apareceu como segundo assunto, portanto foi considerado um conteúdo relevante.
No entanto, a notícias não detalhou as circunstâncias que provocaram a saída – sequer foi
citado que o ministro havia comparecido ao Congresso, quanto mais que houve um bate-
boca com os parlamentares. Além disso, a notícia sobre a saída do ministro ocupou
68
apenas 11 segundos do programa (a menor duração dentre todos os assuntos incluídos na
pauta daquela edição da Voz do Brasil) e foi dada da seguinte forma pelos apresentadores:
– O ministro da Educação, Cid Gomes, entregou hoje o seu pedido de
demissão à presidenta Dilma Rousseff. [locutor Luciano Seixas]
– A presidenta agradeceu a dedicação do ministro que estava à frente à pasta.
[locutora Kátia Sartório]
Tabela 2 – Pauta da ‘Voz do Brasil’ – 18 mar 2015
Ordem de
apresentação Assunto Duração
1 Pacote Anti-Corrupção 1 4min14seg
2 Pacote Anti-Corrupção 2 3min06seg
3 Demissão do ministro da Educação, Cid Gomes 11seg
4 Venda de bebida a menores vira crime 2min55seg
5 Leilão da Ponte Rio-Niterói 5min16seg
6 Programa de cisternas 57seg
7 Recadastramento no Bolsa Família 1min
8 Prêmio Bloomberg de combate ao tabaco 1min08seg
9 Força Nacional de Segurança no RN 44seg
10 Assentamento de famílias do Maranhão 28seg
11 Prazo final para declaração da RAIS 46seg
Fonte: Cronometragem do próprio autor com base no conteúdo da EBC Serviços.
Conforme declarado no site da EBC Serviços, o objetivo da Voz do Brasil é levar
“aos cidadaos dos mais distantes pontos do país” notícias de seu interesse sobre o Poder
Executivo. Mas, apesar da proposição de veicular notícias que sejam de interesse do cidadão, a
análise do conteúdo do programa revela a influência exercida pela estrutura da estatal sobre o
trabalho jornalístico, o que faz prevalecer os interesses do poder constituído. O processo
jornalístico nas redações é submetido a “restrições ligadas à organizaçao do trabalho, sobre as
quais se constroem convenções profissionais” (WOLF, 2012, p.195). A noticiabilidade,
portanto, está estreitamente ligada aos processos rotineiros e à padronização das práticas
jornalísticas, que por sua vez são influenciados pela estrutura organizacional das empresas de
comunicação.
Os sistemas que regem o fazer jornalístico nas empresas funcionam a partir de uma
ideologia dominante, que é socializada entre os que lá trabalham. No processo de avaliação da
69
noticiabilidade, “a relevância de um acontecimento é determinada e comensurada com base nas
exigências organizacionais do aparato” (WOLF, 2012, p.265).
No caso da Voz do Brasil, essa influência do aparato se fazia onipresente desde os
tempos do DIP da era Vargas, quando todos os jornalistas sabiam o que se podia e o que não se
podia noticiar. Durante o regime militar, certos nomes de políticos e de personalidades eram
rigorosamente censurados no programa – entre eles, nomes tão díspares como o do ex-
presidente Juscelino Kubitschek (1902-1976) e o do arcebispo de Olinda e Recife Dom Hélder
Câmara (1909-1999). Já no fim do período militar, “o programa nao ficou ileso às investidas
grotescas do regime autoritário”, como a ordem para que fosse suprimida nos textos da Voz do
Brasil a patente do general Golbery do Couto e Silva, sempre que o então ministro da Casa
Civil fosse mencionado, ou para que os redatores acatassem os desejos da esposa do presidente
Joao Figueiredo, dona Dulce Figueiredo, e jamais a tratassem como “primeira-dama” na Voz do
Brasil. Também, naquela fase, o programa foi proibido de se referir à residência oficial do
presidente como Granja do Torto, “para evitar trocadilhos” (PEROSA, 1995, p.108).
Mas orientações dessa ordem não foram exclusivas dos regimes autoritários.
Mesmo durante os períodos em que o país experimentou a democracia, a Voz do Brasil
submeteu-se aos desígnios dos governantes, independentemente de sua orientação política.
Bucci lembra que o programa jamais tivera a atribuiçao legal de “bancar a advogada dos
governantes” perante o público.
Nenhum órgão de radiodifusão sob gestão do Estado pode virar defensor de
um “ponto de vista” em detrimento de outros pontos de vista, mesmo que
seja o ponto de vista do presidente da República. Quem oficialmente defende
os governos são os porta-vozes, os ministros, a base de sustentação do
governo no Congresso (BUCCI, 2008, p.259).
As manifestações de rua em junho de 2013
As manifestações de rua realizadas no mês de junho de 2013 começaram a ganhar
vulto no dia 6 de junho, com protestos em quatro capitais que haviam sido, inicialmente,
organizados pelo Movimento Passe Livre (MPL) contra o aumento de 20 centavos nas tarifas
do transporte público. A cidade de São Paulo presenciou, naquele dia, cenas de depredação no
fim dos protestos. As capas dos jornais do dia seguinte destacaram essas cenas de violência – o
Estado de S.Paulo deu a manchete para o assunto, enquanto na Folha e no O Globo, as cenas
de depredação ilustraram a foto principal da página, com chamadas de texto secudárias:
Estado: “Protesto contra tarifa acaba em depredaçao e caos em SP”
Folha: “Vandalismo marca ato por transporte mais barato em SP”
Globo: “Protestos contra passagens de ônibus em quatro capitais”
70
Figura 5 – Capas dos jornais – 07 jun 2013
Fontes: Jornais O Estado de S.Paulo, Folha de S.Paulo e O Globo de 07 de junho de 2013
Os protestos voltaram a ocorrer nos dias 7, 11 e 13 de junho, sendo replicados em
outras capitais. Aos poucos, as manifestações passaram a ter a participação mais ativa de
grupos black blocs47, que se tornaram os principais responsáveis pela destruição de carros de
polícia, mobiliário urbano (pontos de ônibus, telefones, lixeiras) e de lojas. As cenas de objetos
incendiados nas ruas tornaram-se comuns naquele mês de junho, nos telejornais, nos jornais
impressos, revistas, sites de notícias da internet e redes sociais.
No dia 7 de junho, houve uma grande manifestação em São Paulo, que
interrompeu o trânsito em um dos corredores de tráfego mais movimentado da capital (a
Marginal do Rio Pinheiros, na zona sul). Uma estação de metrô foi depredada e houve conflito
dos manifestantes com a polícia. No dia seguinte, os jornais paulistas destacaram o episódio –
e, apesar das cenas impactantes, o carioca O Globo não tratou do assunto em sua capa.
Estado: “Protesto fecha Marginal e lentidao chega a 226km”
Folha: “Manifestantes causam medo, param marginal e picham ônibus”
47 Grupo de jovens vestidos com roupas pretas e com rostos cobertos com lenços, que foram responsáveis
por algumas das depredações durante as manifestações e foram alvo de repressão pela Polícia.
71
Figura 6 – Capas dos jornais – 08 jun 2013
Fontes: Jornais O Estado de S.Paulo, Folha de S.Paulo de 08 de junho de 2013
Conforme aumentava a violência dos protestos, e os enfrentamentos entre os
manifestantes e a polícia militar, os jornais ampliavam o destaque nas suas primeiras páginas.
No dia 12 de junho, os jornais de São Paulo voltaram a destacar as depredações e os atos de
vandalismo das manifestações.48
Vale destacar ainda que, nas edições do dia 14 de junho, embora as cenas de
violência tenham ocorrido na cidade de São Paulo, também o jornal carioca O Globo
destacou na primeira página os episódios nas ruas. Dessa forma, o jornal atestou a relevância
nacional que o tema começava a ganhar, extrapolando a questão do reajuste das tarifas de
transporte público e se tornando um assunto que atendia aos critérios de noticiabilidade do
jornal. As manchetes das edições de 14 de junho foram:
Estado: “Confronto fere mais de 100; paulistano vive dia de caos”
Folha: “Polícia reage com violência e SP vive noite de caos”
Globo: “Confronto se agrava em SP, com mais prisões e feridos”
48 No Estado, a manchete de 12 de junho foi: “Maior protesto contra tarifa tem bombas e depredaçao”; já a
Folha destacou: “Contra tarifa, manifestantes vandalizam o centro de SP”.
72
Figura 7 – Capas dos jornais – 14 jun 2013
Fontes: Jornais O Estado de S.Paulo, Folha de S.Paulo e O Globo de 14 de junho de 2013
As manifestações ocorreram às vésperas do início da Copa das Confederações,
evento que tradicionalmente é organizado um ano antes do Mundial de Futebol pelo país-
sede da Copa, reunindo seleções representantes de todos os continentes. O torneio teve
início no dia 15 de junho, em Brasília. Os protestos não perderam força, mesmo após a
redução das tarifas de transporte, e os manifestantes ampliaram o leque de reivindicações,
pedindo melhores condições de saúde e educação. As pessoas nas ruas questionavam os
gastos oficiais com as obras voltadas para a Copa do Mundo e pediam serviços públicos
com o mesmo “padrao Fifa”, numa referência às exigências para a construção e reforma de
novos estádios, feitas pelo órgão que administra o futebol mundialmente.49
O fato de os protestos ocorrerem simultaneamente ao evento esportivo da Fifa
atraiu também a atenção da imprensa internacional para os protestos no Brasil. Alguns
desses veículos destacaram o fato de a população brasileira ter “acordado” para os
problemas do país e ocupado as ruas, conforme mostram os três exemplos abaixo:
New York Times (EUA): “Protests Widen as Brazilians Chide Leaders”
Le Monde (França): “Au Brésil, manifestations contre la vie chère à l'approche
du Mondial”
The Economist (Reino Unido): “The streets erupt” 50
49 Os manifestantes pediam ainda a prisão de políticos corruptos condenados pelo mensalão do PT, eram contra a
aprovação do Projeto de Emenda Constitucional que limitava as investigações do Ministério Público (PEC-37) e
contra as greves que paralisavam os serviços de ônibus e metrô em São Paulo (CARLOS, 2015, p.15). 50 A matéria do Le Monde foi publicada no dia 17 de junho; as do NYT e da Economist foram publicadas em 18 de
junho. Em traduçao livre: “Protestos se espalham enquanto brasileiros repreendem políticos” (NYT); “No Brasil,
manifestações contra os altos custos da Copa do Mundo” (Le Monde); e “A explosao das ruas” (Economist).
73
Figura 8 – Sites da imprensa internacional – Junho 2013
Fontes: New York Times de 18 de junho, Le Monde de 17 de junho e The Economist de 18 de junho.
Mesmo extrapolando as reivindicações para temas de responsabilidade do
governo federal (como saúde e educação) e ganhando, cada vez mais, destaque na
imprensa nacional e internacional, os protestos somente foram abordados pelo
programa Voz do Brasil no dia 18 de junho, doze dias depois da primeira grande
manifestação.
No evento de abertura da Copa das Confederações, no sábado, 15 de
junho, a presidente da República foi vaiada pelo público presente ao Estádio Mané
Garrincha, em Brasília, no momento em que sua imagem apareceu no telão. Do lado
de fora do estádio, houve confronto entre manifestantes e a polícia, que deixou 39
feridos e 29 detidos.51
O episódio virou manchete nos jornais do dia seguinte, que trouxeram
também as primeiras análises sobre uma semana de protestos pelo país, com títulos
como: “A semana em que Sao Paulo ardeu” (Folha) e “Ritual de Passagem – A
questão da tarifa de ônibus extrapolou os centavos e culminou em repressão, feridos
e centenas de presos” (Estado). Nas manchetes, foi dado destaque às vaias à
presidente da República:
Estado: “Torcida vaia Dilma na festa de abertura em Brasília”
Folha: “Estreia do Brasil tem vaia a Dilma, feridos e presos”
Globo: “Torneio começa com vaias a Dilma e vitória da seleçao”
51 Conforme reportagem da Agência Brasil, 29 pessoas foram detidas pela polícia do Distrito Federal e o
Corpo de Bombeiros fez 39 atendimentos de emergência, entre eles três manifestantes com ferimentos de
bala de borracha e quatro policiais.
74
Figura 9 – Capas dos jornais – 16 jun 2013
Fontes: Jornais O Estado de S.Paulo, Folha de S.Paulo e O Globo de 16 de junho de 2013
Na segunda-feira, 17 de junho, os jornais apontavam a disposição do
governo do Estado de São Paulo em negociar com os manifestantes – e seu
comprometimento em não reprimir com violência os protestos. A Folha destacou, na
capa, uma foto do confronto entre manifestantes e policiais do lado de fora do
Maracanã, durante um jogo da Copa das Confederações. A Folha ainda revelou que
a presidente da República havia desistido de fazer discurso no jogo de abertura do
torneio, temendo justamente ser hostilizada pelos torcedores. Em O Globo, embora a
manchete tenha sido voltada à reinauguração do Maracanã, a capa trouxe foto do
confronto no Rio e a preocupação com os novos protestos que estavam marcados
para ocorrer em São Paulo.
Estado: “Protesto ganha apoio e governo busca diálogo”
Folha: “Governo de SP pede e terá reuniao com manifestantes hoje”
Globo: “O Brasil e o mundo de olho em Sao Paulo”
75
Figura 10 – Capas dos jornais – 17 jun 2013
Fontes: Jornais O Estado de S.Paulo, Folha de S.Paulo e O Globo de 17 de junho de 2013
Diante do compromisso do governo paulista de não reprimir com violência as
manifestações, novos protestos ocorreram na segunda-feira, 17 de junho. Mais de 240 mil
pessoas foram às ruas em 12 capitais, sendo que uma das imagens mais emblemáticas
ocorreu em Brasília, com a ocupação do teto do Congresso Nacional pelos manifestantes, e
que foi reproduzida nas capas dos três jornais analisados.
Estado: “Protesto se espalha pelo país e políticos viram alvo”
Folha: “Milhares vao às ruas ‘contra tudo’; grupos atingem palácios”
Globo: “O Brasil nas ruas – Convocados pelas redes sociais, protestos
mobilizam pelo menos 240 mil pessoas em 11 capitais”
Figura 11 – Capas dos jornais – 18 jun 2013
Fontes: Jornais O Estado de S.Paulo, Folha de S.Paulo e O Globo de 18 de junho de 2013
76
Somente no dia 18 de junho, as manifestações foram incluídas na pauta da
Voz do Brasil. O programa destacou que as manifestações eram legítimas e faziam parte
da democracia. A Voz do Brasil reproduziu trechos de um discurso da presidente da
República e de uma entrevista do ministro da Secretaria-Geral da Presidência, Gilberto
Carvalho, que havia se reunido com representantes de alguns dos movimentos
representados nas manifestações. Com 3min30seg de duração, a matéria foi o primeiro
tema da pauta do programa:
– As vozes das ruas querem mais cidadania, mais saúde, mais educação,
mais transporte, mais oportunidades. A afirmação é da presidenta Dilma
Rousseff, que reconheceu as manifestações em todo o país como
legítimas e parte da democracia. [apresentadora Kátia Sartório]
– A presidenta diz que as pessoas que foram ontem às ruas deram uma
mensagem direta ao conjunto da sociedade, sobretudo aos governantes
de todas as instâncias. [apresentador Luciano Seixas]52
A presidente Dilma Rousseff tratou do tema durante a cerimônia de anúncio do
projeto de lei do novo Código de Mineração, no Palácio do Planalto, diante de uma audiência
formada por políticos e empresários. Em matéria publicada no dia seguinte, a Folha
considerou que, até aquele momento, a presidente vinha “buscando se manter distante de uma
avaliação mais aprofundada sobre as manifestações” e contextualizou a decisao presidencial
como tendo sido tomada em conjunto com a equipe de marketing do governo:
Dilma incluiu as manifestações em seu discurso sobre o novo Código
de Mineração após avaliar com o marqueteiro João Santana que era
preciso se posicionar para não dar a imagem de que seu governo está
na defensiva. “O meu governo, que quer ampliar o acesso à educaçao
e à saúde, compreende que as exigências da população mudam.
Mudam quando nós mudamos também o Brasil” (FOLHA DE
S.PAULO, 2013b, p.C7).
Na Voz do Brasil, a fala da presidente foi editada em blocos, destacando os
trechos que tentavam “responder” às reivindicações dos manifestantes. O discurso
presidencial foi redigido cuidadosamente, utilizando-se do recurso da repetição para
ressaltar determinadas expressões (como a expressão “mensagem direta das ruas”).
Percebe-se também que, em alguns desses trechos, a fala é interrompida pelos aplausos
dos presentes, indicando a presença de uma plateia amistosa no Palácio do Planalto:
– Essa mensagem direta das ruas é por mais cidadania, por melhores
escolas, por melhores hospitais, postos de saúde, pelo direito à
participação. Essa mensagem direta das ruas mostra a exigência de
transporte público de qualidade e a preço justo. Essa mensagem direta
das ruas é pelo direito de influir nas decisões de todos os governos, do
52 As transcrições da Voz do Brasil reproduzidas aqui foram retiradas do site da EBC Serviços. Disponível em
<http://conteudo.ebcservicos.com.br/programas/a-voz-do-brasil/transcricoes_tpl>. Acesso em 6 jun 2015.
77
Legislativo e do Judiciário. Essa mensagem direta das ruas é de repúdio
à corrupção e ao uso indevido do dinheiro público. [aplausos] Essa
mensagem direta das ruas comprova o valor intrínseco da democracia,
da participação dos cidadãos em busca de seus direitos. E eu queria
dizer aos senhores: a minha geração sabe quanto isso nos custou
(PORTAL DO PLANALTO, 2013).
Na noite daquele mesmo dia 18 de junho, manifestantes em São Paulo
tentaram invadir a sede da Prefeitura, no centro da cidade, provocando um confronto
violento com a Guarda Civil Metropolitana. Esse episódio e os saques de lojas ocorridos
no centro mereceram o destaque principal dos jornais do dia seguinte, em detrimento da
fala presidencial.
Estado: “SP tem noite de caos, com ataque à Prefeitura e onda de saques”
Folha: “Ato em SP tem ataque à prefeitura, saque e vandalismo; PM tarda a agir”
Globo: “Capitais já baixam tarifas de ônibus; protestos continuam”
Figura 12 – Capas dos jornais – 19 jun 2013
Fontes: Jornais O Estado de S.Paulo, Folha de S.Paulo e O Globo de 19 de junho de 2013
A inclusão do tema das manifestações na pauta da Voz do Brasil apenas
depois de passados 12 dias do início dos protestos, indica a adoção de critérios peculiares
de noticiabilidade no programa, se comparado seu conteúdo ao dos jornais da grande
imprensa. O programa ignorou, por exemplo, o critério de “importância”, no que se refere
ao impacto do fato sobre o interesse nacional e a quantidade de pessoas envolvidas.
A Voz do Brasil abordou o assunto apenas quando a presidente da República
veio a público com um “discurso” cuidadosamente elaborado – e, além disso, pronunciado
em um ambiente “controlado”, cercada de aliados e distante da população insatisfeita. Isso
78
nos leva a deduzir que, ao dispensar os critérios de noticiabilidade, o programa não apenas
abriu mão dos preceitos de seu Manual de Jornalismo, mas tentou construir uma imagem
de um governo aberto ao diálogo, a partir de técnicas das relações públicas.
A administração da visibilidade através da mídia é uma atividade
perseguida não somente nos períodos intensivos de campanhas
eleitorais, ela faz parte também da própria arte de governar. A condução
de um governo exige um contínuo processo de tomada de decisões
sobre o que, a quem e como se pode tornar público. A tarefa de tomar e
executar essas decisões pode ser confiada em parte a uma equipe
especializada de assessores, responsáveis pela administração da relação
entre governo e a mídia (THOMPSON, 2013, p.181).
No caso das notícias sobre as manifestações veiculadas pela Voz do Brasil, o
critério de seleção esteve mais ligado à agenda governamental do que ao desenrolar dos
acontecimentos. Nos dias que se seguiram à primeira menção no programa, o assunto
seguiu na capa dos jornais, mas só voltaria a ser abordado pela Voz do Brasil quando
algum representante do governo tinha algo a declarar – e não em decorrência de novos
acontecimentos.
Debord, ao analisar a postura do poder espetacular, alerta para o uso da
desinformação por parte das autoridades:
Contrariamente à pura mentira, a desinformação, e é nisto que o
conceito é interessante para os defensores da sociedade dominante, deve
fatalmente conter uma certa parte de verdade, mas deliberadamente
manipulada por um hábil inimigo. O poder que fala de desinformação
não acredita estar ele mesmo absolutamente sem defeitos, mas sabe que
poderá atribuir a toda a crítica precisa esta excessiva insignificância que
está na natureza da desinformação; e que deste modo não terá de
reconhecer nunca um defeito particular. Em suma, a desinformação
seria um mau uso da verdade (DEBORD, 1997, p.52).
O fato de a Voz do Brasil ter ignorado uma notícia de interesse nacional
durante vários dias – ou de tê-la reproduzido apenas quando amparada por algum
posicionamento oficial – pode indicar uma tentativa de convencer o público de que os
acontecimentos nas ruas não seriam exatamente como foram. Ou que a percepção do
público a respeito das manifestações estava errada – a despeito das evidências concretas,
como o comércio fechado, as escolas com atividades canceladas, o trânsito comprometido
pelos protestos e as cenas de depredações e de repressão policial.
Uma postura assim poderia ser interpretada como um “discurso de
propaganda”, conforme Ramonet:
Um discurso de propaganda é um discurso que tenta, criando fatos, ou
então ocultando-os, construir um tipo de verdade falsa, o que está longe
de ser o desígnio de nossos próprios sistemas informacionais. (...)
79
Propriamente falando, o discurso de propaganda é um discurso de
censura, mas a censura, em compensação, não é necessariamente da
ordem da propaganda. Esta consiste em suprimir, amputar, proibir um
certo número de aspectos dos fatos, ou mesmo o conjunto dos fatos, em
ocultá-los, em escondê-los (RAMONET, 1999, p.48).
No dia seguinte à primeira referência da Voz do Brasil aos protestos, dia 19
de junho, o programa tangenciou o tema, ao noticiar que o governo federal havia
proposto uma desoneração para as empresas de transporte público – o que poderia
provocar, indiretamente, uma queda no valor das tarifas. O anúncio foi feito no programa
pelo ministro da Fazenda, Guido Mantega:
– Fizemos várias reduções em toda a cadeia de transportes, começando
pelos mais importantes. A desoneração da folha de pagamento do setor
de transporte, que beneficiou tanto o transporte coletivo quanto o
transporte metroviário. Recentemente, fizemos também a redução do
PIS e Cofins sobre passagens para todo o sistema. [ministro Guido
Mantega]
Naquele mesmo dia, o prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, e o
governador do Estado, Geraldo Alckmin, anunciaram a redução do preço das
passagens de ônibus e metrô. No Rio de Janeiro, o prefeito Eduardo Paes também
reduziu as tarifas. A notícia ocupou a manchete dos principais jornais do dia seguinte.
O anúncio da redução das tarifas foi comemorado pelas multidões reunidas naquela
data em locais públicos, para assistir ao jogo entre Brasil e México pela Copa das
Confederações – e esses governantes que tomaram as iniciativas foram vaiados
quando a imagem deles foi exibida no telão, durante a notícia da redução das tarifas.
A Voz do Brasil não deu a notícia da redução das tarifas nas capitais – o
que é justificável por se tratar de um programa com informações do governo federal,
enquanto essas medidas foram tomadas nos âmbitos municipais e estadual. Mas ao
tentar divulgar as iniciativas federais que contribuiriam para a redução das tarifas – a
desoneração para o setor de transportes – o programa não fez qualquer referência aos
protestos. No programa, a medida foi relatada como uma demonstração de
antecipação do governo diante das demandas populares (pois já havia um projeto
semelhante em tramitação no Congresso):
– O governo federal já tinha se antecipado às desonerações de tributos,
previstas em um projeto aprovado na Câmara e que vai ser apreciado
agora no Senado. De acordo com o ministro, a isenção total ou parcial
de impostos permite uma redução de aproximadamente 10% nas tarifas
de trens e metrô e de mais ou menos 7% nas tarifas de ônibus. [repórter
Ricardo Carandina]
80
Os jornais do dia seguinte destacaram que o preço das passagens havia
baixado nas duas capitais por pressão das manifestações.
Estado: “Haddad e Alckmin cedem, tarifa volta a R$ 3 e MPL mantém ato”
Folha: “Protestos de rua derrubam tarifas”
Globo: “Protestos derrubam aumentos em Sao Paulo e no Rio de Janeiro”
Figura 13 – Capas dos jornais – 20 jun 2013
Fontes: Jornais O Estado de S.Paulo, Folha de S.Paulo e O Globo de 19 de junho de 2013
Apesar da redução das tarifas, os protestos no dia 20 de junho foram mantidos
e reuniram cerca de um milhão de pessoas em várias capitais, sendo marcados pela
violência. Em Brasília, os manifestantes tentaram invadir o Palácio do Itamaraty e, no
Rio de Janeiro, a Prefeitura foi alvo dos manifestantes. A situação levou a presidente da
República a cancelar uma viagem que faria ao Japão.
Na edição daquela quinta-feira, a Voz do Brasil não noticiou as manifestações
que ocorreram em Brasília e em outras capitais.53 O programa optou por abordar
novamente a desoneração do setor de transportes, que havia sido citada no programa do
dia anterior. Para tal, introduziu a informação no contexto dos protestos, mas sem se
referir aos protestos daquele dia e sem trazer qualquer informação nova ou factual:
– Manifestações estão acontecendo em todo o país, e uma das principais
reivindicações é o preço das passagens de ônibus, trens, metrôs.
[apresentadora Kátia Sartório]
– Pois é, Kátia. Ontem, divulgamos, aqui na Voz do Brasil, que o
governo federal já implementou medidas para reduzir os custos das
empresas de transporte público. [apresentador Luciano Seixas]
53 Vale destacar que a tentativa de invasão do Itamaraty ocorreu no início da noite, no momento em que o
programa entrava no ar, o que pode ter inviabilizado a inclusão dessa informação na Voz do Brasil.
81
– A ideia, Luciano, é baixar o preço das passagens aqui no país. E,
agora, vamos saber, ao vivo, com o repórter Ricardo Carandina, mais
detalhes sobre todas essas medidas. [apresentadora Kátia Sartório]
Em sua participação ao vivo, o repórter esclareceu algumas medidas que
haviam sido adotadas pelo governo: a redução a zero do imposto sobre combustíveis
(Cide), implantada em junho de 2012; a eliminação da contribuição previdenciária de
20% sobre a folha de pagamento das empresas; e a isenção de PIS/Cofins para empresas
de transporte. E voltou a se referir à fala do ministro da Fazenda, na véspera:
– De acordo com o ministro da Fazenda, Guido Mantega, essas medidas
permitem uma redução no custo (...) das passagens de ônibus de
aproximadamente 7%. E no caso das passagens de trens, a redução
poderia chegar a 10%. Com isso, as passagens poderiam ser reduzidas
ou pelo menos ter reajustes menores.54 [repórter Ricardo Carandina]
Além de cancelar a viagem ao Japão, a presidente convocou uma reunião de
emergência para o dia seguinte, em Brasília, com os principais assessores e ministros. Os
jornais destacaram o intuito da reunião, que era elaborar um plano de resposta à crise:
Na reunião, a presidente vai fazer um balanço dos protestos e analisar se
faz ou não um pronunciamento em cadeia nacional de rádio e TV. (...)
Assessores presidenciais disseram ontem reservadamente que o governo
estava “atônito” e “perplexo” com as manifestações em todo o país, mas
monitorava a evolução dos protestos para tomar medidas de emergência
em caso de necessidade (FOLHA DE S.PAULO, 2013a).
A Voz do Brasil daquele dia ignorou o cancelamento da agenda internacional
da presidente e também a convocação da reunião de emergência. A notícia não foi
incluída entre os 13 assuntos da pauta daquela edição da Voz do Brasil:
Tabela 3 – Pauta da Voz do Brasil – 20 jun 2013
Ordem Assunto
1 Balanço parcial da vacinação contra a paralisia infantil
2 Desoneração do setor de transportes
3 Pesquisa Antaq sobre vias fluviais na Amazônia
4 Visita ao Centro Aberto de Mídia da Copa das Confederações
5 Inscrições no programa Pronatec Copa
6 Rua de Fortaleza é eleita a “mais enfeitada” para a Copa
7 Começam as Conferências Municipais de Assistência Social
8 Programa de Integração Educação Profissional-Básica
54 A matéria sobre a desoneração dos transportes públicos ocupou 2’51”, sem fazer qualquer referência ao
cancelamento da viagem da presidente da República.
82
9 Um milhão de alunos matriculados em cursos a distância do MEC
10 Taxa de desemprego em abril ficou em 5,8%
11 Fim do prazo de inscriçao no plano “Viver sem Limites"
12 Três cidades do Ceará no programa “Crack, é possível vencer”
13 Último dia para inscrições no programa "Atletas nas Escolas"
Fonte: Fonte: Análise do próprio autor, com base no conteúdo da EBC Serviços.
Já os jornais do dia seguinte não só noticiaram os protestos, como destacaram
o cancelamento da viagem e a convocação da reunião de emergência:
Estado: “Um milhao vai às ruas, violência cresce e Dilma chama reuniao”
Folha: “Protestos violentos se espalham pelo país e Dilma chama reuniao”
Globo: “Sem controle – Em noite de novos conflitos, depredações e saques,
Itamaraty e prefeitura do Rio sao atacados”
Figura 14 – Capas dos jornais – 21 jun 2013
Fontes: Jornais O Estado de S.Paulo, Folha de S.Paulo e O Globo de 21 de junho de 2013
Os protestos perduraram ainda por algumas semanas, embora tivessem
perdido força com o passar do tempo. A “cobertura” das manifestações de 2013 pela Voz
do Brasil, aqui analisada, representa bem o padrão de alinhamento do programa à agenda
governamental, assim como o compromisso com os interesses do governo, em detrimento
dos interesses do cidadão e da defesa do direito à informação.
83
Ao optar por um discurso oficial que guarda apenas uma relação tangencial
com os acontecimentos nas ruas, a Voz do Brasil ignorou critérios de noticiabilidade e
não praticou o jornalismo defendido em seu próprio Manual de Jornalismo – segundo o
qual os fatos de interesse público devem ser reportados “com fidelidade, precisao e
honestidade”.
Ao assumir como seu o discurso das autoridades, a Voz do Brasil adota uma
“retórica da legitimaçao”, ou seja, um recurso utilizado por instituições e organizações
para “enfrentar grupos com visões e interesses diversos ou por vezes incompatíveis aos
seus ou para obter identificaçao junto a seus públicos” (HALLIDAY, 1987, p.91). O uso
de recursos retóricos pela Voz do Brasil para desenvolver esse discurso de propaganda
será objeto de análise no próximo capítulo.
84
CAPÍTULO 3
Análise retórica da ‘Voz do Brasil’
As origens da retórica na Grécia antiga
O primeiro documento do qual se tem notícia a respeito da “arte” retórica é
atribuído a Córax de Siracusa, no século 5 a.C. Ele redigiu um “manual” que servia de
base para as argumentações de qualquer cidadão perante os tribunais gregos. O
documento era um guia para as pessoas dedicadas ao ofício de escrever esses discursos e
arguições a serem apresentados perante a Justiça. Philippe Breton, um autor
contemporâneo que é uma referência em relação ao estudo da retórica, considera que
Córax foi “o primeiro professor de retórica, de certa forma seu inventor”. No seu manual,
do qual restam apenas vestígios e referências de outros autores (como Cícero e
Quintiliano), Córax propõe
um conjunto de procedimentos de natureza técnica que permitem
argumentar de maneira mais eficaz diante dos tribunais. O retórico
nasce ao mesmo tempo num contexto judiciário e no cerne de uma
reflexão sobre os métodos que permitem sistematizar a eficácia da
palavra (BRETON, 1999, p.48).
O sistema judicial da Grécia antiga permitia que tanto o queixoso quanto os
acusados se defendessem a si mesmos diante de juízes e dos júris populares. Esse
processo garantiria a avaliaçao da “autenticidade” de causa cada um. O tratado escrito por
Córax trabalhava o conceito de que todo discurso, para ser convincente, necessitava ser
“organizado”. Ele desenvolveu, entao, um “roteiro” do discurso retórico, baseado no
“domínio da situaçao” por parte de quem o proferisse.
O orador, diante dos juízes ou dos cidadãos reunidos em assembleia
política, deveria, em primeiro lugar, (...) procurar “acalmar por meio
de palavras insinuantes e lisonjeiras a agitaçao da assembleia”. Será
esse o papel do exórdio. Em seguida, depois de ter obtido a atenção,
ele expõe o tema da deliberação, passa à discussão, intercala-a de
digressões, que confirmam suas provas; por fim, na recapitulação ou
conclusão, resume seus motivos e reúne todas as suas forças para
arrebatar um público já abalado (BRETON, 1999, p.49).
Definida por Breton como “primeira retórica”, o tratado de Córax era
“ensinado” aos retores especializados na preparaçao de discursos jurídicos, a partir de
“fórmulas feitas, de exórdios preparados, que só esperavam para ser usados nesta ou
85
naquela circunstância”. Essa fórmula permitia que se inventassem “lugares”55 ou
“argumentos típicos” que podiam ser empregados em qualquer defesa ou arguiçao –
como sugere Breton: “No exórdio, começar por dizer que não se é orador, elogiar o
talento do adversário”.
É à composição de um caderno de exórdios e perorações que o orador
ateniense se dedicava mais cuidadosamente: pois a falta da peroração
significava comprometer o sucesso de todo o discurso; hesitar no
começo era expor-se a ser retirado da tribuna (BENOÎT apud
BRETON, 1999, p.50).
A contribuição de Córax à arte retórica foi grande. Mesmo que estivesse,
primordialmente, preocupada com a eficácia (jurídica ou política) do discurso, com sua
capacidade de convencer, essa primeira retórica surgiu como uma “alternativa possível à
violência das relações sociais”, pois as decisões eram tomadas pela maioria, com base em
uma discussao coletiva. Nesse sentido, “a retórica, como instrumento do debate, assume
todo o seu sentido” (BRETON, 1999, p.50).
Pouco mais de um século depois de Córax, na mesma Grécia, Aristóteles (384
a.C.-322 a.C.) avançou com os estudos sobre a arte retórica, ao questionar a “mecânica
sofística, com seus lugares pré-fabricados, seus procedimentos e, em suma, seu cinismo a
serviço do poder” (BRETON, 1999, p.50). Aristóteles definiu retórica como “a arte de
procurar, em qualquer situaçao, os meios de persuasao disponíveis”. Para Aristóteles,
nenhuma outra arte possui essa função, pois as outras têm a possibilidade de “instituir e
de persuadir” apenas sobre o objeto que lhes é próprio, enquanto a retórica parece ser
capaz de, “no que concerne a qualquer questao, descobrir o que é próprio para persuadir”
(ARISTÓTELES, 2000, p.26).
Para Aristóteles, a retórica fazia parte da vida democrática, pois os cidadãos
da polis usavam a força da argumentaçao em vez da “argumentaçao” da força para
convencer os demais em favor de terminada ideia. Mas uma característica relevante o
distingue de Córax: com Aristóteles, a retórica se apoia numa ética que não privilegia a
eficácia – o que a ajudou a se tornar uma técnica “completa”.
O objeto da retórica antiga era, acima de tudo, a arte de falar em
público de modo persuasivo; referia-se, pois, ao uso da linguagem
falada, do discurso, perante uma multidão reunida em praça pública,
com o intuito de obter a adesão desta a uma tese que se lhe
apresentava (PERELMAN, 2005, p.6).
55 Philipe Breton alerta que desse conceito de “lugares” usado pelos retores é que surgiu a expressão “lugar-
comum”.
86
Aristóteles acentua, com veemência, que a função da retórica não é persuadir
a qualquer custo. Essa arte não se reduz aos expedientes guiados, exclusivamente, pelo
objetivo de vitória nos embates políticos ou forenses – uma acusação comumente feita
contra os sofistas da época. O pensador grego pretendia evitar que qualquer
encadeamento de proposições pudesse ganhar o estatuto de “argumentaçao dialética,
apenas baseada na retórica de quem a proferisse.
Em outros termos, a preocupação do pensamento filosófico no sentido
de não legitimar todas e quaisquer manifestações do intelecto humano –
mas apenas as resultantes de determinado método, que possibilite o
controle de sua pertinência – também estava, de algum modo, presente
na reflexão aristotélica (COELHO, 2005, p.XIII).
A matriz proposta por Aristóteles perdurou por séculos como paradigma do
estudo da retórica. No entanto,
de comunicação pragmática para resolver os negócios humanos, na
Antiguidade, a retórica adquiriu má fama quando, no século XIX,
banalizou-se como “verniz de estilo” e passou a ser associada ao uso
floreado de figuras de linguagem. (...) Acentuou-se daí a sua
desvirtuação, que os maus políticos do nosso tempo acabaram por
exacerbar, reforçando uma das acepções populares de “retórica”,
registrada pelos dicionários: “discurso de forma primorosa, porém vazio
de conteúdo” (HALLIDAY, 1988, p.122).
Retórica enquanto arte de convencer
Apenas no século XX, os estudos sobre a retórica foram incorporados às
pesquisas sobre Comunicação, sob a rubrica de rhetorical criticism (crítica retórica).
Filósofos e estudiosos passaram a estudar a retórica tanto sob seu aspecto formal quanto
sob o aspecto de instrumento de persuasão. Um pesquisador se destaca nos estudos sobre
retórica no século passado: o filósofo de origem polonesa radicado na Bélgica Chaïm
Perelman (1912-1984), que propôs o que definiu como “nova retórica”.
Perelman percebe que considerar irracional a aplicação do direito
importa renunciar a qualquer filosofia prática e abandonar a disciplina
da conduta humana ao sabor de emoções e interesses, quer dizer,
confiá-la à violência. Insatisfeito com a afirmação da irracionalidade da
aplicação do direito, Perelman elege como projeto teórico a pesquisa de
uma “lógica dos julgamentos de valor”. Daí nascerá a nova retórica
(COELHO, 2005, p.XV).
A preocupação básica de Perelman é entender os meandros pelos quais os
valores se introduzem no processo de argumentação. Para Coelho, a nova retórica pode
ser considerada o “discurso do método” de uma racionalidade que nao consegue evitar os
debates, portanto se abre ao diálogo.
87
Já não se trata de privilegiar a univocidade da linguagem, a
unicidade a priori da tese válida, mas sim de aceitar o pluralismo,
tanto nos valores morais como nas opiniões. A abertura para o
múltiplo e o não-coercivo torna-se, então, a palavra-mestra da
racionalidade (COELHO, 2005, p.XX).
A nova retórica incorpora o processo comunicacional à arte de persuadir
e convencer por meio do discurso. Uma das propostas de Perelman que o distingue
de Aristóteles é a ampliação do conceito de auditório (poderíamos aqui adotar
“audiência”), diante das possibilidades dos meios de comunicaçao. Perelman
trabalha o conceito de “auditório universal”, pois quando uma argumentação se
dirige apenas a um “auditório particular”, o orador acaba adaptando suas teses “ao
modo de ver de seus ouvintes”, ou seja, pode colocar em risco seus argumentos e
ficar exposto a questionamentos de outras pessoas, que não fazem parte daquele
grupo. Isso enfraquece sua argumentação.
Uma argumentação dirigida a um auditório universal deve
convencer o leitor do caráter coercivo das razões fornecidas, de sua
evidência, de sua validade intemporal e absoluta, independente das
contingências locais ou históricas. “A verdade”, diz-nos Kant,
“repousa no acordo com o objeto e, por conseguinte, com relação a
tal objeto, os juízos de qualquer entendimento devem estar de
acordo” (PERELMAN, 2005, p.35)
Apenas uma asserçao assim pode ser afirmada, ou seja, expressa “como
um juízo necessariamente válido para todos”. Esse processo pressupõe a “adesao do
espírito” da audiência, mas essa depende de uma “verdade coerciva”:
O indivíduo, com sua liberdade de deliberação e de escolha, apaga-
se ante a razão que o coage e tira-lhe qualquer possibilidade de
dúvida. No limite, a retórica eficaz para um auditório universal
seria a que manipula apenas a prova lógica (PERELMAN, 2005,
p.36).
No entanto, a argumentação dirigida a um auditório ampliado não
consegue convencer a todos, o que leva os retores a “desqualificar o recalcitrante,
considerando-o estúpido ou anormal”. Esta era uma prática comum entre os
pensadores medievais, mas que se pode encontrar em alguns pensadores modernos.
Mas a adesao da maioria da audiência a esse procedimento só será possível “se o
número e o valor intelectual dos proscritos não ameaçarem tornar ridículo
semelhante procedimento” (PERELMAN, 2005, p.37).
88
A busca da legitimação pelo discurso
Para analisarmos o conteúdo da Voz do Brasil, além dos conceitos de
Perelman, recorremos às ideias de Halliday (1987, 1988), cuja obra estuda os discursos
institucionais de organizações e empresas, enquanto “atos retóricos” em busca de
legitimação perante a sociedade. Halliday lembra que a nova retórica proposta por
Perelman superou as “conotações negativas” derivadas do mau uso dessa arte por “retores
irresponsáveis” e permitiu o retorno a seu sentido denotativo de ação comunicativa que
visa influenciar o ambiente à sua volta.
Desde a Antiguidade, a prática retórica consiste no uso da
argumentação como instrumento de gestão dos negócios humanos –
uma arte e uma estratégia, antípoda do uso da força para resolver
conflitos (HALLIDAY, 1998).
Conforme a autora, a base da legitimação de governos e organizações está na
aceitação deles por parte da sociedade. No caso de empresas – especificamente seu tema
de estudo – refere-se a um conceito específico de “fronteiras” (uma metáfora tirada da
Teoria dos Sistemas e aplicada às organizações enquanto sistemas sociais), ou seja, um
conjunto de “valores, normas e ideologias” existentes na sociedade que deixa ou nao essa
organização atuar.
“Deixar funcionar” significa aceitar o ramo de negócios, a conduta e os
objetivos da organização com base na convicção de que esses três
aspectos da existência organizacional são compatíveis com as
necessidades e/ou interesses da sociedade (HALLIDAY, 1987, p.12).
A partir dessa “aceitaçao”, empresas e organizações tentam construir sua
legitimidade por meio do discurso, recorrendo ao que Habermas (1975, p.112) define
como “interpretações, apresentações narrativas, ou... explanações sistematizadas e
cadeias de argumentos”.
Atos retóricos são atos de comunicação verbal e não-verbal (...) que
visam manter ou mudar percepções, crenças e comportamentos. Atos
administrativos são decisões implementadas para tornar a organização
persona grata junto aos setores do ambiente externo dos quais ela
depende para sobreviver. Servem de apoio aos atos retóricos e são
também investidos de significados (HALLIDAY, 1998).
Como procuraremos demonstrar nas próximas páginas, o conteúdo da Voz do
Brasil apresenta, em diversas oportunidades, a opção por determinadas abordagens dos
acontecimentos que, se comparados com a cobertura de outros veículos de imprensa a
respeito dos mesmos temas, demonstram uma tentativa de legitimação do governo federal.
89
O uso do argumento pragmático
Perelman denomina “argumento pragmático” aquele que permite “apreciar
uma coisa consoante suas consequências, presentes ou futuras”. Este tipo de argumento
permite, por exemplo, que alguém que tenha sido acusado de algum malfeito possa
transferir o valor das consequências de seu ato para as causas – rompendo o vínculo
causal e lançando a culpa para outra pessoa ou para as circunstâncias. “Se conseguir
inocentar-se terá, por esse próprio fato, transferido o juízo desfavorável para o que
parecerá, nesse momento, a causa da açao”. Esse argumento nao requer qualquer
justificaçao para ser aceito pelo senso comum. “O ponto de vista oposto, cada vez que é
defendido, necessita, ao contrário, de uma argumentaçao” (PERELMAN, 2005, p.303).
Um exemplo do uso do argumento pragmático na retórica da Voz do Brasil
está no programa do dia 24 de janeiro de 2013. O principal destaque daquela edição foi o
anúncio de uma redução das tarifas de energia – que havia sido feito na noite anterior, em
pronunciamento em rede nacional de TV, pela presidente da República. A matéria da Voz
do Brasil trouxe, além de um trecho do pronunciamento da presidente, entrevistas com o
ministro das Minas e Energia, com o presidente da Empresa de Pesquisa Energética
(EPE) e com três consumidores.
Se comparado com os jornais do dia seguinte (que repercutiram as medidas
anunciadas), o conteúdo da Voz do Brasil buscou simplificar a explicação para o
financiamento da medida (que se daria por meio do adiantamento de receita devida pelo
Consórcio Binacional da Usina Hidrelétrica de Itaipu ao Tesouro Nacional). A repórter
do programa reproduziu o discurso oficial, que justificava a necessidade de uso de
recursos do Tesouro em decorrência da recusa de concessionárias de Estados governados
pela oposição em “bancar” a reduçao da tarifa de energia:
– O ministro de Minas e Energia, Edison Lobão, reuniu a imprensa para
detalhar as medidas e destacou que os programas sociais, como o Luz
para Todos e Tarifa Social, vão ser mantidos. Edison Lobão disse que o
Tesouro Nacional vai bancar quase R$ 8,5 bilhões para conseguir a
diminuição da tarifa. São créditos gerados pela usina hidrelétrica de
Itaipu, já que quatro companhias de energia não aceitaram a proposta do
governo para renovar concessões de parte de algumas usinas
hidrelétricas (…) [mas] esclareceu que mesmo a populaçao dos Estados
onde as concessionárias não aderiram ao plano vão ter redução nas
contas de luz. [repórter Mara Kenupp]56
56 As concessionárias de energia estaduais que não aderiram à proposta foram as empresas dos Estados de
São Paulo, Santa Catarina, Minas Gerais e Paraná.
90
Já os jornais do dia seguinte optaram por uma explicação mais detalhada
sobre como essa conta seria paga: para a Folha, tratava-se de um “buraco”, pois o valor
representava mais que o dobro do que havia sido previsto; o Estado alertou que esse
montante teria de ser coberto por meio de um “subsídio”; enquanto O Globo dizia que o
financiamento da medida era resultado de uma “manobra fiscal”.
Folha: Para garantir o desconto maior na conta de luz (...) o governo
federal vai ter de desembolsar R$ 8,5 bilhões neste ano. O valor é duas
vezes e meia o previsto inicialmente. Para cobrir o buraco, a União vai
usar receitas de Itaipu. A usina foi construída por Brasil e Paraguai, mas
financiada com recursos brasileiros. Há dívida de US$ 15 bilhões, a ser
paga até 2023. A estratégia é antecipar esses valores e receber. No
entanto, segundo o Ministério da Fazenda, a forma como isso será feito
ainda nao está definida. Uma das possibilidades é vender esse “crédito”
para o BNDES.
Estado: A união teve de ampliar os subsídios cobertos pela Conta de
Desenvolvimento Energético (CDE), encargo que incide sobre a tarifa
de luz e subsidia programas do governo, que agora terão de ser
financiados pelo Tesouro.
Globo: Para garantir a tarifa menor, o Tesouro fará aporte de R$ 8,46 bi,
que deverá ser viabilizado por manobra fiscal envolvendo operação de
triangulação com o BNDES.57
Diferentemente dos jornais, que buscaram explicar os impactos financeiros da
medida sobre as reservas do Tesouro Nacional – já que iriam consumir recursos sem o
respectivo lastro –, a Voz do Brasil adotou o que Perelman chama de “manobra dilatória”
(uma expressão emprestada do repertório jurídico)58 ao selecionar, para “abrir” a
reportagem, um trecho do discurso da presidente que relacionava a medida à “garantia”
do fornecimento de energia, negando o risco de racionamento:
Isso significa que o Brasil vai ter energia cada vez melhor e mais barata,
significa que o Brasil tem e terá energia mais que suficiente para o
presente e para o futuro, sem nenhum risco de racionamento ou
qualquer tipo de estrangulamento, no curto, no médio ou no longo
prazo. [presidente Dilma Rousseff]
Diferentemente da retórica otimista da presidente da República, o risco de
racionamento tornou-se uma possibilidade real no final de 2014, devido à crise hídrica
que o país enfrentou, principalmente nas regiões Sudeste e Nordeste. Além disso,
conforme os jornais haviam alertado, o “rombo” nas contas públicas do governo federal
revelou-se um desafio para o novo governo que assumiria o mandato em janeiro de 2015.
57 Fonte: Jornais Folha de S.Paulo, O Estado de S.Paulo e O Globo de 25 de janeiro de 2013. 58 No vocabulário jurídico, essa manobra é o ato de tardar, adiar ou prorrogar a execução de determinados
processos.
91
O argumento da autoridade
Outro argumento retórico que pode ser usado para “comprovar” determinada
tese é o chamado “argumento da autoridade”. Esse tipo de argumentaçao se aproveita dos
atos ou juízos de uma pessoa ou grupo de pessoas que ocupam certas posições
hierárquicas para justificar determinada medida. Dentre os modos de raciocínio retórico,
o argumento de autoridade é um dos que foi mais intensamente atacado pelos
pesquisadores, por ter sido muito usado nos meios hostis à livre pesquisa científica, “de
uma maneira abusiva, peremptória”, ou seja, como se as autoridades invocadas fossem
infalíveis (PERELMAN, 2005, p.348).
Perelman alerta para o risco de, mesmo sendo a doutrina do consentimento do
britânico John Locke a base dos regimes democráticos, a “vontade da maioria” pode ser
imposta a todos com base apenas na intimidação exercida pelo poder da autoridade – cuja
reputaçao é ancorada na “instrução, eminência, poder, ou alguma outra causa”. Assim
qualifica-se de imprudente qualquer contestação aos argumentos das autoridades.
Outra maneira que os homens [que estão no poder] usam para guiar
outros, forçá-los a submeter-se a seus julgamentos e acolher a opinião
em debate consiste em exigir que o adversário admita o que eles alegam
como uma prova, ou para assinalar uma melhor (LOCKE, 1999, p.303).
Perelman complementa:
Apenas a existência de uma argumentação, que não seja nem
coercitiva nem arbitrária, confere um sentido à liberdade humana,
condição de exercício de uma escolha racional. Se a liberdade fosse
apenas adesão necessária a uma ordem natural previamente dada,
excluiria qualquer possibilidade de escolha; se o exercício da
liberdade não fosse fundamentado em razões, toda escolha seria
irracional e se reduziria a uma decisão arbitrária atuando num vazio
intelectual (PERELMAN, 2005, p.581).
Ao pautar seu conteúdo por uma interpretação seletiva das informações,
baseada na hierarquia e na “agenda” das autoridades, a Voz do Brasil recorre ao
expediente do argumento da autoridade. Um exemplo é a forma como foram noticiados,
em 2014, os resultados da Pesquisa Nacional de Análise de Domicílios (Pnad), realizada
pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Todos os anos, em meados do mês de setembro, o instituto divulga os
indicadores sociais do país, que são usados para comparar o desenvolvimento nacional
com o de outros países. Em 2014, a divulgação desse índice ocorreu no dia 18 de
setembro, em meio à campanha eleitoral para a Presidência da República. Os dados foram
92
destacados na manchete dos jornais do dia seguinte, que ressaltaram o aumento na
desigualdade, interrompendo uma tendência verificada há duas décadas.
Estado: “Desemprego cresce e desigualdade para de cair”
Folha: “Sob Dilma, queda da desigualdade trava no país”
Globo: “Desemprego e desigualdade aumentam, mas renda sobe”
Figura 15 - Capas dos jornais – 19 set 2014
Fontes: Jornais O Estado de S.Paulo, Folha de S.Paulo e O Globo de 19 de setembro de 2014
Os dados da Pnad costumam merecer uma atenção especial por parte da
imprensa, que chega a publicar cadernos especiais (caso do Estado e do O Globo em
2014) sobre os avanços ou recuos do país nos aspectos sociais, em relação ao ano
anterior. Nas matérias publicadas em 2014, os jornais basearam-se nos dados do IBGE e
nas informações de técnicos do próprio instituto para tentar explicar a seus leitores os
motivos da piora dos indicadores sociais. Para o Estado,
o Índice Gini59, que mede a concentração de renda, piorou. (...) A
explicação para o que o IBGE considera estagnação está na disparidade
de ganhos entre pobres e ricos. O rendimento do trabalho emendou o
nono ano seguido de crescimento em 2013, mas 324 mil brasileiros
entraram para a extrema pobreza.
59 O Índice Gini é um parâmetro adotado internacionalmente para medir a desigualdade social, que foi
desenvolvido em 1912 pelo estatístico italiano Corrado Gini (1884-1965).
93
A Folha baseou sua análise na avaliação de especialistas de fora do governo,
embora tenha mantido espaço na chamada de capa para o posicionamento da presidente
da República, que “minimizou” os resultados:
Para especialistas, há esgotamento de fatores que levaram a bons
resultados desde 1990, como emprego em alta e programas para
transferir renda. A presidente Dilma (PT) minimizou os dados da
pesquisa. Disse haver flutuação normal na estagnação da queda da
desigualdade e taxa de desemprego pontual.
O jornal O Globo destacou, num subtítulo, dois pontos de melhoria
(“Saneamento melhora e cresce acesso à internet”), mas destacou que a inflação
“corroeu” os ganhos dos mais pobres:
O freio na economia e a inflação mais alta fizeram a desigualdade
avançar em 2013, o que não ocorria há 20 anos. A pesquisa (...)
mostrou ainda que o desemprego subiu de 6,1% para 6,5%, com 6,693
milhões de desempregados. Apesar disso, a renda dos trabalhadores
aumentou 5,7%. O ganho foi maior para os 10% mais ricos. Entre os
10% mais pobres, o avanço foi de só 3,5%. Isso explica a piora na
distribuição de renda.
Enquanto os jornais buscaram contextualizar os indicadores sociais – com
base nos próprios dados do IBGE – a Voz do Brasil adotou um discurso que destacou
apenas os avanços verificados no campo social. No teaser de abertura do programa, a
apresentadora anunciou:
– Aumento da escolaridade, da renda do brasileiro e também do acesso
à água, à rede de esgoto e à internet, queda no analfabetismo e no
número de crianças e adolescentes que trabalham. Esses são alguns
dados da pesquisa divulgada hoje pelo IBGE. [apresentadora Kátia
Sartório]
Na introdução da reportagem propriamente dita, que foi o primeiro tema da
pauta daquela edição do programa, também prevaleceu o discurso ressaltando os aspectos
positivos da pesquisa:
– Divulgada hoje pelo IBGE a Pesquisa Nacional por Amostra de
Domicílios Brasil referente ao ano de 2013, com informações sobre
população, migração, educação, trabalho, rendimento e domicílios para
todo o Brasil, grandes regiões, estados e regiões
metropolitanas. [apresentadora Kátia Sartório]
– Entre os dados, a pesquisa mostra que a população do país foi
estimada em 201,5 milhões de pessoas, e traz também um aumento da
escolaridade, da renda da população brasileira e também do acesso à
água, à rede de esgoto e à internet. [apresentador Luciano Seixas]
Na sequência da reportagem, foram apresentadas falas dos ministros
Marcelo Neri, da Secretaria de Assuntos Estratégicos, da ministra Tereza Campello,
94
do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, e de Henrique Paim, titular da pasta
da Educação:
– O crescimento das boas ocupações, ocupações com carteira, e
redução das ocupações desprotegidas, isso confere proteção ao
trabalhador, mas eu diria que o dado mais representativo é o
aumento do salário real, 5,7% real em um ano. Então eu diria que
esse talvez seja o principal indicador de melhora da qualidade.
Certamente o que está por trás disso é a melhora educacional
brasileira dos últimos anos. [ministro Marcelo Neri]
– Eu acho que o dado mais importante para o Ministério do
Desenvolvimento Social é a redução de mais de 11% em um ano do
trabalho infantil. Isso é resultado de um trabalho de longo tempo de
política pública de combate ao trabalho infantil. As crianças hoje
trabalham cada vez menos, então estão cada vez mais na escola e o que
é que nós precisamos fazer? Continuar melhorando não só a fiscalização
do trabalho para reduzir a zero o trabalho infantil no Brasil, como
também para que a gente mude essa cultura de que o trabalho infantil é
bom. Não é bom. É criança na escola. [ministra Tereza Campello]
– Essa tendência de queda [no analfabetismo], ela se dá em todas as
faixas etárias. Isso é muito importante destacar. (...) Significa dizer
que nós fechamos a torneira, especialmente de 15 a 29 anos, ou
seja, o Brasil não está mais produzindo analfabetos. Essa é uma
conversação muito importante e fundamental, o que demonstra que
há um acerto nas políticas de alfabetização das crianças e dos
jovens. [ministro Henrique Paim]
A Voz do Brasil recorreu ao “discurso da autoridade” para justificar a
abordagem adotada, amparada na “patente” dos ministros entrevistados. Além disso,
esses discursos adotam expressões que ressaltam as opiniões pessoais em detrimento dos
dados técnicos da pesquisa. Diz o ministro Marcelo Néri: “eu diria que o dado mais
representativo...” e depois “esse talvez seja o principal indicador...” Já a ministra
Tereza Campello arrisca: “eu acho que o dado mais importante...” e o ministro da
Educaçao diz que “é muito importante destacar”.60 Ou seja, a autoridade tenta impor
determinada interpretação dos dados com base na “reputaçao” do seu cargo ou no seu
currículo como titular da pasta.61
A opção da Voz do Brasil pelo “argumento da autoridade” fica clara ainda no
fato de o programa ter dedicado 11 minutos ao tema, mas ter ignorado alguns dados
relevantes da própria pesquisa. Na entrevista coletiva organizada pelo IBGE, no Rio de
Janeiro, a gerente do instituto responsável pela pesquisa, Maria Lucia Vieira, tratou
60 Grifos nossos. 61 No caso do ministro Marcelo Néri, a reputação pessoal reforça ainda mais o argumento da autoridade,
pois se trata de um economista com reconhecida carreira acadêmica, PhD pela Universidade de Princeton
(EUA), fundador e diretor do Centro de Políticas Sociais da Fundação Getúlio Vargas (FGV-RJ) e ex-
presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, o Ipea, um dos principais centros de pesquisas
sobre avanços sociais do país, ligado ao governo federal.
95
abertamente das questões que foram evitadas pela Voz do Brasil – como o aumento da
taxa de desemprego. Também o press-release divulgado pela IBGE, sobre os resultados
do Pnad, abordou o tema:
A população desocupada cresceu 6,3% em relação a 2012, e a ocupada
cresceu 0,6%. A taxa de desocupação se elevou de 6,1% para 6,5% em
2013 (foi o ano com a segunda menor taxa na série harmonizada de
2001 a 2013). O trabalho com carteira assinada, no entanto, continuou a
crescer, subindo 2,3% em relaçao a 2012. (…) O trabalho das crianças e
adolescentes recuou 10,6% em relação a 2012, o equivalente a menos
379,8 mil crianças e adolescentes com idade entre 5 e 17 anos no
mercado de trabalho (IBGE, 2014).
Na Voz do Brasil, optou-se por colocar um trecho do depoimento da gerente
do Pnad, Maria Lucia Vieira, mas que tratava do aumento da taxa de escolaridade:
– Observou-se também um aumento muito importante na taxa de
escolarização para as crianças de quatro a cinco anos, é o que mais vem
crescendo. Isso pode ser algum reflexo da inserção da mulher no
mercado de trabalho, que as crianças precisam ir mais cedo para as
escolas, para as creches. [gerente do Pnad, Maria Lucia Vieira]
Do ponto de vista retórico, a participação dos jornalistas da Voz do Brasil
também reproduz o ufanismo do discurso oficial:
– O nível de instrução e os anos de estudo do brasileiro aumentaram de
2012 para 2013 e a taxa de analfabetismo 0,4%, com quase 298 mil
pessoas aprendendo a ler e escrever no Brasil. [repórter Paulo La
Salvia]
– A pesquisa também revela que o Brasil registrou a menor taxa
histórica de trabalho infantil. Em um ano, houve queda de 15% no
número de crianças entre 5 e 13 anos que trabalhavam. [repórter
Priscila Machado]
Ao adotar o argumento da autoridade, representado pela fala dos ministros e
pela “seleçao” de trechos dos técnicos do IBGE, a Voz do Brasil tentou construir um
discurso que, mostrando apenas parte da realidade, destacasse os dados que
interessavam ao governo.
Não é o caso aqui de se analisar se o fato de a divulgação da pesquisa ter
ocorrido em meio à campanha eleitoral para presidente poder ter causado alguma
influência sobre a cobertura da Voz do Brasil – pois uma possível influência eleitoral
sobre o programa não é o escopo desta pesquisa.62
62 A análise da amostra de programas nos leva a concluir que, durante a campanha eleitoral, foram evitadas
na Voz do Brasil abordagens que destacassem a figura da presidente candidata à reeleição. Evitou-se,
também, citar os nomes de certos programas sociais do governo, já que esses programas sociais foram
citados como plataforma de campanha da presidente no horário eleitoral. Com isso, a Voz do Brasil evitou
o descumprimento da legislação sobre a propaganda política – que ocorre entre os meses de julho e outubro
nos anos em que há eleições.
96
Espaço público e manipulação
Entre as atribuições formais da Voz do Brasil está aquela que a define com a
missão de apresentar aos cidadãos as notícias referentes ao Poder Executivo Federal.
Conforme Kenneth Burke, a retórica possui uma função reparadora num mundo repleto
de facções e interesses conflitantes – em que os processos de comunicação substituíram o
contato face a face estudado pelos gregos. Promover “a identificaçao entre as pessoas é a
razao de ser da retórica” (Burke, 1969, p.25).
Como produto informacional do governo federal, o programa se prestaria ao
que Habermas define como instrumento de formação de opinião a respeito do governo:
“Opinion” assume em inglês e em francês o sentido nada complicado
do termo latino opinio, a opinião, o juízo sem certeza, não plenamente
demonstrado. (...) Para nosso contexto, contudo, o outro significado de
opinion é mais importante, ou seja, “reputation”, a reputaçao, a
consideração, aquilo que se coloca na opinião dos outros. Opinion no
sentido de uma concepção incerta, que primeiro ainda teria de passar
pelo teste da verdade, liga-se a opinion no sentido de um modo de ver
da multidão, questionável no cerne (HABERMAS, 2003, p.110).
O noticiário da Voz do Brasil, nesse contexto, teria então a função de
construir a reputaçao do governo, por meio da veiculaçao de “notícias” sobre os atos do
poder central. No entanto, esses atos sao “retóricos”, e as notícias embutem outros
significados – que podem ser “trabalhados” no discurso. Para Halliday (1988, p.124), as
situações retóricas “são construções simbólicas da realidade – um composto de realidade
objetiva mais a interpretação de quem as vivencia”.
Habermas lembra que a publicidade é uma ferramenta para se criar “uma aura
de good will” para certas autoridades e governos, pois
[a publicidade] possibilita a peculiar ambivalência de uma dominação
sobre a dominação da opinião não-pública: serve à manipulação do
público na mesma medida que à legitimação ante ele. O jornalismo
crítico é suprimido pelo jornalismo manipulativo (HABERMAS,
2003, p.210).
Bourdieu alertava para a capacidade de o poder simbólico “constituir o dado
pela enunciação, de fazer ver e fazer crer, de confirmar ou de transformar a visão de
mundo”. No auge de seu exercício, o poder simbólico é “quase mágico” e permite
obter o equivalente daquilo que é obtido pela força (física ou
econômica), graças ao efeito específico de mobilização, só se exerce se
for reconhecido, quer dizer, ignorado como arbitrário. (...) O que faz o
97
poder das palavras e das palavras de ordem, poder de manter a ordem
ou de a subverter, é a crença na legitimidade das palavras e daquele que
as pronuncia (BOURDIEU, 1989, p.14).
São tênues as linhas que separam a informação parcial, a informação
manipulada e a desinformação. Breton alerta que, nem sempre, o que parece informação
segura para o público o é de fato.
Efetivamente, a desinformação é uma ação que consiste em fazer
validar, por um receptor que se quer intencionalmente enganar, certa
descrição do real favorável ao emissor, fazendo-a passar por uma
informação segura e verificada. Toda a habilidade técnica da
desinformação reside justamente no mecanismo que permite travestir
uma informaçao falsa numa informaçao “verdadeira” que seja
perfeitamente crível e que oriente a ação daquele que a recebe num
sentido que lhe é desfavorável (BRETON, 1999, p.53).
Debord sugeria que a desinformação não é a simples negação de um fato que
nao convém às autoridades, mas deve necessariamente “conter uma certa parte da
verdade, mas deliberadamente manipulada” (DEBORD, 1997, p.52). Para Golding e
Elliott (1979, p.12), manipulaçao é uma “distorçao deliberada das notícias com fins
políticos ou pessoais (...), devido à influência do preconceito, da conspiração ou dos que
detêm o poder político e comercial”.
Na Voz do Brasil, não se percebe claramente uma tendência à manipulação,
tal qual sugerem os autores acima. Mas é possível identificar a prevalência de
determinados temas de interesse do governo, conforme análise feita a partir da pauta dos
programas veiculados no mês de maio de 2014, que veremos a seguir.63
A priorização de temas na Voz do Brasil
Nos 21 programas veiculados durante o mês de maio de 2014, os temas mais
destacados pela Voz do Brasil podem ser considerados diretamente de interesse do governo.
Foram eles: educação, infraestrutura, políticas sociais, saúde, segurança e agricultura.
Tabela 4 – Temas tratados pela Voz do Brasil em maio 2014
Tema Número de citações
Educação 27
Infraestrutura 26
63 A escolha do período foi aleatória: evitou-se propositalmente o período de campanha eleitoral (entre
julho e outubro de 2014) e o período imediatamente posterior às manifestações de junho de 2013, para que
a análise não fosse “contaminada” por episódios pontuais da conjuntura.
98
Políticas sociais 21
Saúde 21
Segurança 16
Agricultura 15
Cidadania 13
Cultura 10
Economia 10
Ambiental 8
Relações internacionais 7
Turismo 7
Direitos humanos 6
Emprego 5
Moradia 5
Esporte64 3
Previdência social 2
Outros 9
Fonte: Análise do próprio autor, com base no conteúdo da EBC Serviços.
Quando trata desses temas, a Voz do Brasil tende a ressaltar programas
governamentais relacionados a eles e procura destacar grandes cifras ou números
envolvidos em cada um deles. Destacaremos, a seguir, alguns desses exemplos, que
mostram como a retórica é usada para construir uma imagem positiva do poder público
federal – ou para dar-lhe legitimidade. Para efeitos desta análise, os projetos e ações
governamentais foram agrupados em temas afins, definidos a nosso critério.65
No programa do dia 6 de maio de 2014, foram anunciados recursos
destinados ao saneamento básico em municípios com menos de 50 mil habitantes, em 26
Estados da Federação. Percebe-se, no conteúdo da Voz do Brasil, que a retórica
governamental, reforçando as grandes cifras, é reproduzida nas falas dos jornalistas do
64 Em razão da proximidade da Copa do Mundo, o tema esporte foi citado 18 vezes pelo programa; no
entanto, 15 dessas citações se referiam à itinerância da taça do torneio, aberta à visitação pública em
diversas capitais brasileiras. Optamos por expurgar essas notícias, por se tratarem de um tema sazonal que
não contribui para a análise desejada. 65 São exemplos desses critérios: o programa “Minha Casa, Minha Vida” foi classificado no tema moradia;
“Mais Médicos”, em saúde; “Pronatec”, em educação; e o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC),
em infraestrutura.
99
programa, de forma que o discurso oficial acaba incorporado às intervenções dos
repórteres e apresentadores, com direito à repetição dos valores e das cifras:66
– Ao todo, são mais de R$ 2,8 bilhões para as cidades, recursos que
fazem parte da terceira etapa das ações de saneamento do Programa de
Aceleração do Crescimento, o PAC 2. [apresentador Luciano Seixas]
– Os R$ 2,8 bilhões investidos em projetos (...) vão beneficiar cerca
de 5,3 milhões de brasileiros. Na cerimônia de assinatura do convênio,
o ministro da Saúde, Arthur Chioro, falou da importância do
investimento em saneamento básico para a saúde da população.
[repórter Carolina Rocha]
Do ponto de vista jornalístico, chama a atenção o fato de os repórteres e
apresentadores da Voz do Brasil se prestarem ao papel de “promotores” das autoridades,
reforçando a retórica dos discursos oficiais:
– O investimento vai aumentar o atendimento à população e contribuir
para alcançar as metas estabelecidas do Plano Nacional de Saneamento
Básico. A presidenta Dilma Rousseff disse que com os recursos
anunciados hoje já são quase R$ 7 bilhões destinados para a construção
de redes de água e esgoto em cidades com até 50 mil habitantes.
[repórter Carolina Rocha]
No fechamento da reportagem, a jornalista informou que os municípios que
assinaram o convênio seriam os responsáveis pela licitação e pelo monitoramento das
obras. Portanto, nenhuma das obras teria início imediatamente. A reportagem tampouco
apresentou um “balanço” de quantas obras de saneamento contempladas nos “quase R$ 7
bilhões já destinados” para este fim haviam saído do papel e estavam efetivamente em
fase de construçao. Conforme os “cânones” do ofício de jornalista, esse tipo de
questionamento deveria constar em uma reportagem como esta.
No dia 13 de maio de 2014, o principal destaque do programa foi para a visita
que a presidente da República fez às obras da transposição do Rio São Francisco, nos
estados da Paraíba, Piauí e Pernambuco. Novamente, foram destacadas as grandes cifras
envolvidas no empreendimento. A Voz do Brasil escalou três repórteres para a cobertura,
que foi anunciada pela apresentadora a partir dos “benefícios” que a transposiçao
proporcionaria à população nordestina:
– O Projeto de Integração do Rio São Francisco vai levar água para os
municípios do Nordeste que sofrem com a seca e deve beneficiar 12
milhões de pessoas. [apresentadora Kátia Sartório]
66 Grifos nossos.
100
No entanto, na intervenção do primeiro repórter, enviado especial à Paraíba,
foi informado que esse benefício estava previsto para começar a ser usufruído pela
população nordestina apenas após um ano e meio:
– De acordo com o Ministério da Integração Nacional, mais de 120
municípios paraibanos vão ser atendidos e mais de 2 milhões de
pessoas serão beneficiadas quando toda a obra for concluída, até o
final de 2015. [repórter João Pedro Neto, na Paraíba]
Na participação de outro repórter, no Ceará, revelou-se que as obras de dois
trechos do projeto no Estado não estavam finalizadas; além disso, o jornalista incorporou
ao seu texto uma “literalidade” do discurso presidencial que faz uma relaçao de causa e
efeito puramente retórica:
– O trecho de 140 quilômetros, que vai da captação do Rio São
Francisco em Cabrobó, Pernambuco, até Jati, tem 65% das obras
executadas. O trecho de 39 quilômetros, que começa em Jati e vai até
Brejo Santo, tem 25% de execução. (...) A presidenta disse que a
integração do São Francisco vai trazer de volta nordestinos que
foram embora fugindo da seca. [repórter Ricardo Carandina, no
Ceará] 67
Em Pernambuco, acompanhada por outro repórter da Voz do Brasil, a
comitiva presidencial visitou uma estação de bombeamento que começara a ser
construída dois meses antes.
– A água que vai passar pelos canais vai chegar não só nos grandes
centros urbanos aqui do Nordeste. Vai também abastecer centenas de
pequenas e médias comunidades do semiárido nordestino. Ao todo,
serão mais de 12 milhões de pessoas beneficiadas. (...) O valor total do
Projeto de Transposição do Rio São Francisco chega a mais de R$ 8
bilhões. [repórter Leandro Alarcon, de Pernambuco]
Nesta cobertura da Voz do Brasil, as intervenções dos jornalistas reforçam o
discurso governamental, não apenas ao retransmitir as informações passadas pelas
autoridades e as suas interpretações (o “discurso da autoridade”, proposto por Perelman),
mas principalmente por não questionar a veracidade dessas informações e a efetividade
da realização desse projeto. Boa parte dos números informados no programa referem-se a
etapas do projeto ainda a serem implementadas, portanto sem benefício imediato para a
população.
A opção da Voz do Brasil por assumir a retórica governamental é notada em
diversas matérias veiculadas no mês analisado, conforme exemplos selecionados a seguir.
67 O projeto de transposição do São Francisco prevê a construção de um total de mais de 700 quilômetros
de canais de concreto, que passam por vários Estados do Nordeste e que não têm data prevista para serem
concluídos. As obras visitadas pela comitiva presidencial no Ceará, portanto, equivalem apenas a cerca de
25% do total do projeto.
101
Em algumas delas, a notícia de alguma iniciativa ou obra do governo sempre incorpora o
valor “total” do investimento, nao apenas do trecho em questão que está sendo anunciado
ou inaugurado. O conteúdo do programa deixa a impressão de que o importante é passar a
mensagem de que o montante total é expressivo – ainda que não esteja finalizado, que o
valor não tenha sido, efetivamente, desembolsado, ou ainda que não haja garantia
orçamentária de que será realizado. Os trechos a seguir foram retirados das intervenções
dos jornalistas do programa, ao longo do mês de maio de 2014:
– A BR-381 será duplicada. A presidenta Dilma Rousseff assinou, nesta
segunda-feira (12), em Ipatinga (MG), ordem de serviço para as obras
do trecho que liga Belo Horizonte a Governador Valadares. Vão ser
investidos R$ 2,5 bilhões em toda a rodovia. [12/maio]
– Foi inaugurado trecho de 855 quilômetros da Ferrovia Norte-Sul,
entre as cidades de Anápolis (GO) e Palmas (TO). A obra recebeu
investimentos de mais de R$ 4 bilhões. [22/maio]
– Para a safra, que se inicia no próximo dia 1º de julho e se estende até
30 de junho de 2015, o governo federal anunciou, nesta segunda-feira,
crédito recorde. O Plano Safra da Agricultura Familiar vai destinar R$
24,1 bilhões para investimentos no setor, aumento de 14% em relação
ao período anterior. [26/maio]
– Nesta segunda-feira, a presidenta Dilma Rousseff também lançou o
segundo Plano Safra específico para a região do semiárido, que vai
receber R$ 4,6 bilhões entre 2014 e 2015. [26/maio]
Outro recurso utilizado pelo programa para reproduzir a retórica do governo é
ampliar a abrangência das iniciativas e dos programas oficiais, destacando o total de
pessoas beneficiadas – mesmo que não o sejam imediatamente, ou que estejam ainda nos
planos oficiais, mas sem prazo definido para tal. Esse recurso impede a aferição das
promessas anunciadas pelas autoridades, por parte dos cidadãos e da imprensa:
– Mais de 3,2 mil alunos da Paraíba e do Piauí receberam o certificado
de cursos do Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e
Emprego (Pronatec). O programa já matriculou 6,9 milhões de alunos
no país. A meta é matricular 8 milhões até o final de 2014. [16/maio]
– O investimento na aquisição das 147 máquinas para as cidades
mineiras superou R$ 52 milhões. (...) Ao final deste semestre, o
governo federal vai ter investido quase R$ 5 bilhões em todo o país
na aquisição de mais de 18 mil máquinas, beneficiando mais de 91%
dos municípios brasileiros. [30/maio]
A Voz do Brasil recorre ainda ao recurso retórico de ampliar o escopo da
notícia, incorporando a ela um período bem mais longo (passado ou futuro) de
abrangência, de forma a “inflar” os resultados já obtidos ou previstos pelos programas e
ações governamentais.
– Mais de R$ 160 milhões foram liberados para a instalação de cisternas
em seis estados brasileiros. O recurso é do programa Água para Todos,
102
que já beneficiou 2,9 milhões de brasileiros com cisternas de
consumo. [20/maio]
– O Programa Brasil Sorridente completa dez anos. Neste período, a
Política de Saúde Bucal do Ministério da Saúde permitiu o acesso
gratuito a tratamentos odontológicos a cerca de 80 milhões de
usuários do SUS. [28/maio]
Conforme mostrado nos exemplos acima, o conteúdo da Voz do Brasil
incorpora recursos retóricos próprios do discurso oficial, que acabam por comprometer a
isenção que se espera de um produto jornalístico. Disso decorre a imagem de veículo
porta-voz do governo – ou “chapa-branca” –, que marca quase toda a sua história.
Mais que isso, a despeito das diretrizes que regem o trabalho dos jornalistas
da EBC – que definem o interesse do cidadão como objetivo primeiro do trabalho
jornalístico, assim como o compromisso com a verdade –, os exemplos compilados nesta
pesquisa demonstram se tratar de um produto de comunicação institucional, a serviço das
relações públicas do governo.
103
CAPÍTULO 4
Comunicação pública ou relações públicas?
Conforme visto nos capítulos anteriores, ao longo de quase toda a sua
história, a Voz do Brasil prestou-se ao papel de porta-voz do governo federal, ou parte de
um projeto oficial de relações públicas – à exceção de dois períodos específicos aqui
analisados. Essa característica se deu a despeito da existência de diretrizes que definem o
modelo de “jornalismo” que deveria ser adotado no programa – diretrizes formalizadas e
tornadas públicas desde o ano de 2005.
O atual Manual de Jornalismo da EBC, lançado em 2013, é definido como
um “código de conduta” dos jornalistas que trabalham na estatal, entre eles a equipe
responsável pela produção da Voz do Brasil:
Mais do que um conjunto de regras e normas de comportamento, trata-
se de um compromisso social da empresa e seus jornalistas com a busca
da verdade, com a precisão, com a clareza, com o respeito aos fatos e
aos direitos humanos, com o combate aos preconceitos, com a
democracia e com a diversidade de opiniões e de pontos de vista
(BREVE, 2013, p.8).
O Manual trabalha com uma definição de jornalismo muito semelhante aos
conceitos propostos por diversos estudiosos da comunicação – e que também foi adotada
aqui nesta dissertação.
A EBC considera que jornalismo é espaço público por onde são
transferidas informações relevantes, com potencial para alterar a
realidade, que se sucedem no tempo e no espaço, objeto de interesse da
coletividade e abrangidos pelos seus critérios de cobertura. Essas
informações têm de ser transmitidas com honestidade, fidelidade,
precisão e responsabilidade. Devem ser mediadas por um processo
ético, rigoroso, criterioso, isento, imparcial, sem preconceito e
independente (EBC SERVIÇOS, 2013, p.21).
O documento determina ainda que essas informações devem estar amparadas
por contextualizações e análises “confiáveis” e que sejam apresentadas ao público com
uma linguagem clara e objetiva,
que permita elucidação e esclarecimento de seus significados, de suas
causas e de seus efeitos na sociedade. E, dessa forma, ofereçam aos
indivíduos e sujeitos sociais melhores condições de agir e tomar
decisões para transformar a realidade em benefício dos interesses
coletivos (EBC SERVIÇOS, 2013, p.21).
104
O Manual tenta “traduzir” na forma de princípios éticos e operacionais as
regras que pautam o trabalho dos jornalistas da EBC.68 O texto traz referências de outros
documentos semelhantes disponíveis no Brasil (incluindo os produzidos anteriormente
pela própria Radiobrás) e em outros países. Nesse processo, foram identificados temas
transversais que permeiam todos esses documentos e manuais, como a busca da verdade,
a fidelidade aos interesses da sociedade e o respeito aos direitos humanos e à democracia.
Com base nesses pilares, o Manual se propõe a ser “orientador e promotor do
desenvolvimento das boas práticas de comunicação pública no Brasil” (EBC SERVIÇOS,
2013, p.13).
Uma definição de comunicação pública
Nas sociedades democráticas, a comunicação pública é entendida como
aquela proporcionada pelos entes púbicos, que ajuda o cidadão a ter pleno conhecimento
sobre os seus direitos. Ampliando essa “deontologia”, Jorge Duarte ressalta que esse
conceito de comunicação pública é válido mesmo nos casos em que o cidadão não tenha
procurado por essa informação:
A comunicação pública ocorre no espaço formado pelos fluxos de
informação e de interação entre agentes públicos e atores sociais
(governo, Estado e sociedade civil – inclusive partidos, empresas, terceiro
setor e cada cidadão individualmente) em temas de interesse público. (...)
A comunicação pública ocupa-se da viabilização do direito social
coletivo e individual ao diálogo, à informação e expressão. Assim, fazer
comunicação pública é assumir a perspectiva cidada na comunicação
envolvendo temas de interesse coletivo (DUARTE, 2012, p. 59).
Wilson da Costa Bueno prefere a terminologia “comunicaçao de interesse
público”, e defende uma distinçao entre ela e a comunicação de governo propriamente dita:
Há diferenças importantes entre a visão moderna de comunicação
pública e comunicação dita política ou governamental. A comunicação
de interesse público visa abranger as ações e atividades que têm como
endereço a sociedade, independente de sua origem (pública ou privada).
(BUENO, 2012, p.136).
Eugênio Bucci complementa essa definição alertando que, para que seja
“pública”, a comunicaçao deve, necessariamente, preencher dois requisitos: o primeiro é
ser uma comunicaçao “para a qual concorrem recursos públicos – dinheiro, trabalho,
equipamentos”; e o segundo, decorrente do primeiro, é “observar os princípios
68 Com um texto bastante adjetivado, o Manual de Jornalismo da EBC possui 79 páginas, nas quais as
diretrizes estão classificadas tanto por especificações técnicas do trabalho jornalístico – como pauta,
apuração, entrevistas e edição –, quanto por temas que devem ser abordados no conteúdo (por exemplo,
educação, saúde, política, economia, ciência e tecnologia, meio ambiente, movimentos sociais etc.).
105
constitucionais, entre eles e principalmente o da impessoalidade”, assim como
contemplar o direito à informação dos cidadãos. Sem atender a esses requisitos, conclui:
“ou ela agride a Constituiçao ou é ilegal” (Bucci, 2015a).69
Conforme esse entendimento, o programa Voz do Brasil e a estatal
responsável pela sua produção deveriam estar voltadas para atender ao direito dos
cidadãos de serem informados a respeito dos temas de seu interesse – já que toda a sua
estrutura é mantida com recursos públicos.
Uma empresa pública de comunicação como a Radiobrás, que controla
emissoras e agências de notícias, só tem razão de ser se atender o direito
à informação. (...) Qualquer prática fora desse imperativo constitui uma
usurpação (BUCCI, 2006, p.12).
Em um ambiente democrático, a comunicação pública pode dar uma
importante contribuição para a mediação do debate público – juntamente com a atuação
da imprensa livre. Isso não acontece nos regimes autoritários, em que a atuação da mídia
é controlada pelos governos – sejam os aparatos de comunicação oficiais, sejam os
veículos de imprensa privados.
Na ditadura, o objetivo da comunicação ligada ao governo era angariar
a obediência e a concordância passiva do público. Na democracia, ao
contrário, o sentido da comunicação pública é estimular a participação
crítica dos cidadãos nas instâncias de poder. Para a ditadura, a
divergência é um problema. Para a democracia, a divergência é a
solução (BUCCI, 2006, p.12).
Apesar de a Voz do Brasil ter sido submetida a períodos autoritários ao
longo de sua história – e tenha começado a “moldar” seu estilo editorial durante a
ditadura de Getúlio Vargas, como parte do aparato de comunicação do Estado Novo –,
o programa já registra mais da metade de sua existência sob o regime democrático, o
que lhe deveria proporcionar condições para a prática de uma comunicação de interesse
público.
Instrumentos formais para tal não lhe faltam: as atuais diretrizes da EBC,
vigentes desde 2013, orientam os seus jornalistas da estatal a se empenharem para fazer
com “independência” a cobertura jornalística e a “dar ao cidadao elementos para formular,
com autonomia, sua visao crítica sobre a realidade” (EBC SERVIÇOS, 2013, p.55). Como
demonstrado nos capítulos anteriores, não é isso que se pratica na Voz do Brasil.
O que pode justificar a discrepância entre a diretriz e a prática editorial adotada
na Voz do Brasil é a sua subordinação direta à estrutura do Poder Executivo. Esse fator pode
69 Entrevista concedida ao autor, em 21 jul 2015, reproduzida na íntegra nos Apêndices desta dissertação.
106
abrir espaço para que haja uma “contaminação” do conteúdo do programa pela agenda
privada dos governantes, em vez de abrigar apenas a agenda pública (do Estado). Thompson
considera que instituições estatais acabam permitindo que a agenda privada se sobreponha à
agenda de interesse público, pois “os indivíduos normalmente exercem poder em muitos
contextos que pouco ou nada têm a ver com o Estado” (THOMPSON, 2013, p.38).
Bucci é mais explícito ao definir essa subordinação:
O programa Voz do Brasil é “do” governo federal. A relaçao com o
governo é quase de uma prestaçao de serviço; o “cliente” é o governo,
ainda que formalmente não seja assim, é isso que acontece: o cliente é o
governo federal. Aquele é um horário “do” governo federal. (...) O
objeto da notícia, o narrador da notícia e a fonte da notícia são o
governo” (BUCCI, 2015a).
Apesar desse “pertencimento” à estrutura do Poder Executivo federal, e de
sua vocação histórica para fazer relações públicas para o governo, a equipe do
programa é formada basicamente por jornalistas. Esses profissionais deveriam,
portanto, seguir as diretrizes editoriais preconizadas para o exercício do trabalho
“jornalístico” na Voz do Brasil. Como veremos a seguir, há distinções conceituais entre
os jornalistas e os profissionais de relações públicas – assim como entre os objetivos
específicos de cada uma dessas profissões.
Distinções entre jornalismo e relações públicas
Para Lattimore, a diferença básica entre o jornalista e o profissional de
relações públicas se deve aos papéis assumidos por cada um deles perante as empresas
nas quais atuam e o impacto que esse papel provoca no trabalho final.
Os jornalistas não representam as organizações sobre as quais escrevem,
mas os profissionais de relações públicas o fazem, e isso pode
influenciar a objetividade e a forma como enquadram ideias e
apresentam os fatos (LATTIMORE, 2012, p.27).
Um dos principais objetivos dos jornalistas é informar à sociedade a respeito
de fatos que sejam de interesse do cidadão. Já o profissional de relações públicas
identifica na imprensa uma forma de divulgar os temas de seu interesse (ou de interesse
da empresa ou instituição que representa), conferindo-lhes “a legitimidade que a
organizaçao pode nao obter com a propaganda paga” (LATTIMORE, 2012, p.179).
O jornalismo nao lida prioritariamente, portanto, com a “divulgaçao”
de relatos. Ao contrário, sua justificativa é descobrir segredos que
não se quer divulgar. Seu objetivo primordial não é difundir aquilo
que governos, igrejas, grupos econômicos ou políticos desejam
contar ao público, embora também se sirva disso, mas aquilo que o
107
cidadão quer, precisa e tem o direito de saber, o que não
necessariamente coincide com o que os outros querem contar
(BUCCI, 2002, p.42).
Lattimore considera que essas sao “responsabilidades” que os jornalistas
assumem diante da sociedade e do sujeito da matéria, pois
eles concebem a si próprios como os olhos e ouvidos do público,
vigiando instituições públicas, e consideram que seu trabalho é buscar
a verdade, colocá-la em perspectiva e publicá-la para que as pessoas
possam tratar de suas questões estando bem informadas
(LATTIMORE, 2012, p.179).
O vínculo direto com a Presidência da República não permite à Voz do
Brasil praticar o jornalismo, tal qual aqui definido, pois faltam-lhe alguns pressupostos
básicos, como um espaço para a interlocução necessária entre as partes envolvidas –
visto que, no programa, apenas a voz do governo tem espaço. Para Bucci (2015a), trata-
se de comunicação governamental, institucional – que poderia ser definida também
como um “proselitismo”, ainda que disfarçado.
Assim, mesmo que sejam abordados no programa temas de interesse do
cidadão (como a prestação de serviços que sejam de competência exclusiva do
governo), existe uma linha tênue que separa essa característica de um proselitismo
“assumido”. Na Voz do Brasil, a prestação de serviços (que é própria da comunicação
pública) é tratada editorialmente e presta-se aos objetivos de gerar visibilidade às
autoridades.
Devido às suas características de canal de informações sobre o governo, a
Voz do Brasil representa um ambiente propício para que as autoridades se “mostrem”
para a sociedade da forma como julgarem mais adequada. O programa acaba sendo um
alvo dos governantes, quando se veem diante da necessidade de construir uma imagem
positiva ou reverter uma imagem negativa. É isso que tem caracterizado o programa ao
longo de quase toda a sua história.
A origem das relações públicas
O conceito de relações públicas surgiu no início do século XX, nos Estados
Unidos. O pioneiro foi um jovem jornalista, Ivy Lee (1877-1934), que depois de trabalhar
para a campanha democrata à Prefeitura de Nova Iorque, em 1903, decidiu criar a
primeira agência de relações públicas daquele país. À época, existia no meio jornalístico
um personagem conhecido como “agentes de imprensa”. Esses agentes haviam surgido
na segunda metade do século anterior e atuavam como organizadores de atrações
108
circenses itinerantes e também como divulgadores desses espetáculos para a então
imprensa emergente. Não raras vezes, os agentes de imprensa recorriam a expedientes
pouco éticos para dar publicidade a seus eventos – alguns dos textos preparados por esses
agentes podem ser considerados “floridos e exagerados, o que os distanciava da verdade e
os aproximava do charlatanismo” (NASSAR, 2007, p.39).70
Ivy Lee esforçou-se para se diferenciar dos agentes de imprensa, lançando um
manifesto público sobre a forma de atuação de sua nova agência de relações públicas:
Este não é um serviço de imprensa secreto. Todo o nosso trabalho é
feito às claras. Nosso objetivo é divulgar notícias. Isto não é uma
agência de propaganda. Se acharem que o nosso material ficaria
melhor na seção de classificados, não o usem. (...) O trabalho que
desenvolvemos em nome de empresas comerciais e de instituições
públicas consiste em fornecer para a imprensa e para o público dos
Estados Unidos matéria informativa, rápida e precisa, sobre todo
assunto cujo valor e interesse se faça merecedor de reconhecimento
por parte deles (NASSAR, 2007, p.43).
Apesar dessa declaração de propósitos, Lee não é uma unanimidade entre
os pesquisadores da história das relações públicas, sendo criticado por alguns deles.71
Outros pioneiros da profissão, como Edward Bernays (1891-1995), também são
acusados de manipulação da informação no trabalho de relações públicas.
Bernays nasceu na Áustria e era sobrinho de Sigmund Freud. Radicado nos
Estados Unidos desde criança, entrou para a área de relações públicas quando já tinha
desenvolvido uma carreira de sucesso no jornalismo. Ele defendia a “teoria da
persuasão”, segundo a qual os públicos podem ser convencidos sobre determinado
assunto se a mensagem sustentar os mesmos valores e interesses deles. O trabalho de
Bernays consistia em acentuar algumas tendências na mídia e “capitalizá-las” conforme
os interesses de seus clientes. Essa teoria foi consolidada no livro de sua autoria que é
considerado a primeira obra existente sobre relações públicas, Crystallizing public
opinion, publicado em 1923 (TYE, 2001, p.24).72
70 O mais famoso agente de imprensa foi Phineas Barnum (1810-1891), que utilizava em seus comunicados
uma linguagem “hiperbólica” para chamar a atençao dos jornalistas, repleta de “disfunções”, como o
desvituarmento da realidade, uma de suas especialidades. Quando Barnum morreu, o jornal London Times
o definiu como “um enganador inofensivo” (NASSAR, 2007, p.39). 71 Chaparro (1996, p.135), por exemplo, considera o manifesto de Ivy Lee “hipócrita”, pois antes de se
tornar relações públicas, Lee havia sido um jornalista conceituado e possuía amigos nos postos de direção
da imprensa. “Na prática, atuando como fonte, inventou técnicas e procedimentos de influência nas
decisões jornalísticas, para divulgar informações, tendo em vista o objetivo principal de construir a nova
imagem pública de Rockfeller”, uma referência ao empresário que se tornou cliente de Lee em 1914. 72 No mesmo ano em que publicou seu primeiro livro, Bernays assumiu a recém-criada cátedra de relações
públicas da Universidade de Nova Iorque (NASSAR, 2007, p.45).
109
Na época, ele [Bernays] considerava as relações públicas como
sendo mais ou menos um sinônimo de propaganda, que ele definia
como “a manipulaçao consciente e inteligente dos hábitos e opiniões
organizados das massas”. Ao longo de toda a sua carreira, Bernays
descreveu as relações públicas como a ciência de criar
circunstâncias, montar eventos que fossem calculados para se
destacar como notícias, mas que ao mesmo tempo não parecessem
encenados. “Eventos de mídia” encenados eram claramente uma
característica definidora da agência que Bernays começou em 1919
(LATTIMORE, 2012, p.44).
Essa técnica de “criar” eventos para a mídia acabou sendo definida nas
relações públicas como spin. Em propaganda, o termo spin representa o fornecimento de
uma interpretação tendenciosa de um evento ou campanha com o objetivo de persuadir a
opinião pública a favor ou contra algo ou alguém. Já nas relações públicas, spin implica o
uso de táticas enganosas e manipuladoras, com o objetivo de influenciar a opinião
pública. Os encarregados dessas tarefas no trabalho de relações públicas são
denominados spin doctors (HARCUP, 2014, p.286).
Aqui neste trabalho, entendemos manipulação como a distorção deliberada de
uma determinada informação. Embora possam ser identificados indícios de manipulação
em algumas opções editoriais adotadas na Voz do Brasil, principalmente na cobertura de
assuntos de interesse do governo, não se pretendeu, nesta pesquisa, desenvolver-se uma
análise do programa sob a ótica da manipulação.73
A Voz do Brasil como “mídia da fonte”
Enquanto veículo de comunicação oficial, a Voz do Brasil tem sido usada
como mídia alternativa de distribuição de conteúdos sobre os atos do governo. No
complexo cenário atual de produção e difusão da informação, em que a imprensa
perdeu a hegemonia de definir o que é notícia e de pautar a agenda do debate na
esfera pública, o cidadão passou a ser impactado por diversos conteúdos, oriundos das
mais diversas fontes – como blogs, perfis “influenciadores” das redes sociais, veículos
criados diretamente no ambiente digital e o que chamamos de mídia tradicional .
Entre essas fontes encontram-se novos veículos informativos diretamente
ligados a organizações públicas ou privadas. Sao “mídias” a serviço dessas
73 No caso da Voz do Brasil, seria necessário, para essa abordagem, uma análise das origens da
manipulação, suas implicações em um veículo de comunicação, assim como dos interesses e objetivos,
institucionais ou particulares, escusos ou involuntários, que a caracterizariam no programa de rádio. No
nosso entendimento, isso poderia render uma outra pesquisa acadêmica específica com esse fim.
110
organizações ou instituições, que veiculam conteúdos do interesse delas ou que
contribuam para a construção de uma imagem pública. Chico Sant’Anna define
esses conteúdos como “jornalismo corporativo” e esses veículos como “mídias das
fontes”:
São mídias difusoras de um jornalismo corporativo, mantidas e
administradas por atores sociais que até então desempenhavam
apenas o papel de fontes de informação. (...) Deter uma visibilidade
pública é o objetivo desses grupos. Estar inserido na esfera pública é
a meta (SANT’ANNA, 2004, p.107).
Essas “mídias das fontes” reproduzem algumas etapas do processo de
produção jornalística, de tal forma que as informações veiculadas ao público são
“coletadas, selecionadas, tratadas editorialmente, filtradas e difundidas” por
empresas que possuem seus próprios interesses corporativos (SANT’ANNA, 2004,
p.107).
Utilizada como “mídia da fonte”, a Voz do Brasil dedica-se a “informar” o
público sobre os atos do Poder Executivo, no entanto traveste como “notícias”
informações muitas vezes de interesse institucional do governo federal – e que não
respeitam as regras definidas pelo Manual de Jornalismo da EBC.
A natureza jurídica da EBC e a subordinação da Voz do Brasil à
Presidência da República não permitem que seja praticado o jornalismo no programa.
Conforme demonstrado ao longo desta dissertação, as tentativas, nesse sentido,
sucumbiram às pressões do campo político-institucional.74
A característica de peça de relações públicas oficial poderia ser motivo
de questionamento por parte da sociedade, já que se trata de um veículo financiado
com recursos públicos. Se considerada ainda a obrigatoriedade de transmissão por
todas as emissoras do país, em um regime democrático como o brasileiro, o mérito
desse questionamento passa a ser outro: por que a Voz do Brasil deve continuar
existindo?
Para Bucci, a obrigatoriedade mina qualquer autoridade natural ou moral
que o programa possa reivindicar. Afinal, a Voz do Brasil foi criada na década de
1930, em uma sociedade que era integrada pelo rádio, cujo horário nobre era às 19
horas, com o objetivo de garantir ao governo o controle sobre os meios de
comunicação.
74 No sentido de Bourdieu.
111
Todas aquelas condições que tornavam a Voz do Brasil
compreensível, ainda que inaceitável, desapareceram. Hoje, além de
inaceitável, a Voz do Brasil é incompreensível. Incompreensível do
ponto de vista ético, do ponto de vista funcional, do ponto de vista
institucional (BUCCI, 2015a).
Quando o governo se incumbe da função de informar a população sobre os
atos do governo, corre-se o risco de os interesses institucionais se sobreporem aos
interesses dos cidadãos. Em um regime democrático, se isso acontecer, estaremos
diante de um trabalho de relações públicas – não de jornalismo nem de comunicação
pública.
112
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Numa sociedade democrática, a imprensa desempenha um papel
importante na vigilância dos poderes constituídos, do uso de recursos e da ges tão da
coisa pública, e na fiscalização da atuação das corporações privadas. O jornalismo
tem a sua origem ligada aos movimentos democráticos, que defendiam a ideia de que
o poder emana do povo e deve ser exercido em nome dele.
Desde o século XIX, a imprensa foi considerada, por boa parte dos teóricos
da democracia, como um dos principais sustentáculos da esfera pública. Sem a imprensa,
dificilmente as sociedades contemporâneas conseguiriam se informar sobre as questões
coletivas, o que poderia inviabilizar um debate público autônomo em relação ao Estado.
Surgido com a tarefa de mediar o debate público, o jornalismo contribui para
formar cidadãos e permitir a eles o acesso às informações necessárias para que formem as
próprias opiniões, tenham livre arbítrio e possam livremente eleger seus governantes.
Para garantir uma independência editorial em relação aos poderes
constituídos, a imprensa tradicionalmente optou pela existência como empresa privada.
Essa característica garante a independência em relação ao poder político – e permite que
a imprensa informe aos cidadãos sobre os assuntos que interessam a eles e sobre os quais
eles têm o direito de serem informados – mesmo que isso não seja do interesse dos
governantes de turno.
Não cabe ao Estado exercer esse papel que é próprio da imprensa. Se o
aparato oficial se volta para essa função, o debate público passa a ter uma mediação
“viciada”. Além disso, a estrutura estatal não fornece os fundamentos para o
exercício do jornalismo – o máximo que consegue fazer é um trabalho de relações
públicas ou de comunicação institucional do governo.
Procuramos demonstrar, nesta dissertação, que a Voz do Brasil prestou-se,
durante quase toda a sua história, ao papel de porta-voz do governo federal, sendo em
muitas oportunidades parte de um projeto oficial de relações públicas – à exceção de
apenas dois períodos específicos demonstrados no Capítulo 1.
Essa característica de porta-voz se deu a despeito da existência de
diretrizes que definem o modelo de “jornalismo” a ser seguido pelos profissionais
que trabalham na Voz do Brasil. Conforme demonstrado neste trabalho, essas
diretrizes foram formalmente estabelecidas desde o ano de 2005, e ainda está
vigente um Manual de Jornalismo, lançado em 2013. O compromisso com a verdade
113
preconizado pelo Manual não se sustenta quando analisamos o conteúdo da Voz do
Brasil conforme critérios de noticiabilidade, especialmente em episódios de alto
impacto para a população e de grande interesse da sociedade em geral, conforme
mostrado no Capítulo 2.
Também a diretriz do Manual para que a Voz do Brasil transmita
informações com honestidade, fidelidade e precisão, por meio de um processo ético,
isento e independente, foi contrastada com os recursos retóricos aos quais o programa
recorre para legitimar determinadas ações do governo. As informações veiculadas
pelo programa são embaladas por recursos retóricos e visam ressaltar a agenda de
interesse do governo – seja na abordagem do conteúdo, seja na priorização de temas
destacados no programa, tal qual demonstrado no Capítulo 3.
Enquanto peça de relações públicas do Poder Executivo, a Voz do Brasil
produz um conteúdo que se assemelha mais a press-releases radiofônicos do que a
notícias sobre atos do governo federal – embora esse conteúdo seja apresentado no
programa como se fosse “notícia”. Ao moldar seus conteúdos aos interesses do governo,
a Voz do Brasil deixa de fazer comunicação de interesse público e, devido à sua
vinculação à estrutura do poder central, não dá aos seus profissionais espaço para o
exercício do jornalismo, como se mostrou no Capítulo 4.
A Voz do Brasil, que nos seus cânones se propõe a praticar um jornalismo de
interesse do cidadão, prestou-se, ao longo de quase toda sua história, ao serviço de
legitimação ideológica das forças políticas no poder.
Tornou-se, assim, peça de relações públicas do Poder Executivo federal.
114
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119
APÊNDICES
Apêndice A - Entrevista de Carlos Marchi concedida ao autor – 15 jul 2015
Pergunta – O Sr. foi presidente da EBN no primeiro ano da Nova República. O Sr.
trabalhou na campanha do candidato Tancredo Neves e aí foi indicado para a EBN?
Como se chegou àquele projeto editorial para a Voz do Brasil?
Carlos Marchi – Realmente carece contar uma pequena história, porque a nossa chegada
à EBN veio no bojo de uma história muito mais ampla do que até a própria EBN. Em
janeiro de 1984, estava começando a campanha das Diretas, um dia eu estava de plantão
no Jornal do Brasil, em Brasília, estava sozinho, era um domingo, comecei a ligar para as
pessoas – a gente fazia isso nos plantões de domingo, quando não tinha nenhuma notícia
evidente no ar –, a gente ligava para os políticos para garimpar alguma coisa, para ver se
“pescava” alguma informaçao nova e precisa.
Naquele domingo, eu liguei para um amigo meu, o governador do Ceará na época, o
famoso Totó, Luiz Gonzaga Mota, e logo no começo da ligação ele disse: (com voz
sussurrante) “Marchi, eu nao posso falar muito com você porque eu tô afônico, entao nao
vai dar pra gente conversar muito”. Uma hora depois, quando eu desliguei o telefone, eu
tinha uma interrogação na cabeça: ele tinha me dito muitas coisas que eu julgava não
entender, porque, acima de tudo, se ele estava afônico e, no preâmbulo, ele tinha dito que
não podia falar muito, por que ele tinha ficado uma hora no telefone comigo?
Eu voltei a ligar para ele e disse claramente: “Totó, você me disse alguma coisa que eu
não consegui perceber”. Ele disse: “Nao, pois é, você sabe essa coisa de telefone como
é...”, e aí começou a dizer algumas coisas por sinais, e eu entendi, por esses sinais, que
ele estava tentando acenar para mim para uma aproximação entre Tancredo Neves e
alguns governadores mais liberais do PDS. Eu liguei em seguida para o Roberto
Magalhães, que era um desses governadores, e ele, embora sem dizer nem 30% do que
disse o Totó, sinalizou com algumas simpatias nesse sentido.
Eu me enchi de coragem e mandei a manchete do dia seguinte do Jornal do Brasil – e isso
aconteceu nas vésperas do comício das Diretas de Sao Paulo: “Tancredo prepara sua
candidatura pela via indireta”. Evidente que a manchete foi uma bomba e, no dia do
comício, quando Tancredo chegou ao palanque – e ele não poderia deixar de ir – foi
cercado por jornalistas e toda a imprensa só perguntava uma coisa: e aquela manchete do
JB? Aí o Tancredo disse que aquela manchete era obra de um mentiroso, irresponsável e
leviano. Quando eu olhei para trás, estava a redação toda do JB olhando pra mim, olhava
120
para a televisão, olhava pra mim, pensando assim: esse cara é um mentiroso, inventou a
manchete.
Nesse momento, o Jornal do Brasil já estava sob domínio do senhor Paulo Maluf – fui
entender esse processo agora, quando fui escrever o livro do Castelinho, e entendi os
meandros do Jornal do Brasil, e agora eu sei, o Jornal do Brasil já estava praticamente
vendido ao Maluf – e eu fiquei muito mal no Jornal do Brasil, porque eu cobria a
oposição. Passei mais uns meses e, no final das contas, o Rio tinha desautorizado minhas
matérias. Mas como as minhas matérias eram boas, elas iam para o Rio sem a minha
assinatura, ou então em nome do chefe de reportagem, que na época era o Abdias Silva.
Eu estava defenestrado no Jornal do Brasil.
Em junho, dois amigos meus me perguntaram se seu queria ser assessor de imprensa do
Tancredo. Tancredo já estava montando a sua estrutura.
Pergunta – Entre esses dois momentos, o senhor não teve um contato com Tancredo?
Marchi – Não, absolutamente nenhum. Esses dois amigos se chamavam Fernando Lira,
que era muito meu amigo pessoal, e o outro, que era um pouquinho menos amigo,
chamava-se Fernando Henrique Cardoso. Os dois me levaram pessoalmente ao Tancredo.
Eu me lembro até hoje do dia em que entrei na sala do Tancredo; o Fernando Lira que era
mais falastrao foi na frente e disse: “Dr. Tancredo, estamos trazendo aqui o Carlos
Marchi para ser seu assessor, do qual já tínhamos falado com o senhor. Esse é o Carlos
Marchi”.
E aí o Tancredo, que estava em pé diante da mesa, ajeitando alguns papéis, disse:
“Fernando, eu conheço o Carlos Marchi há mais de 15 anos, você nao precisa me
apresentar ele”. Eu cheguei e parei em frente da mesa e ele continuava ajeitando os
papéis, não olhava para mim. E atrás dele, o Fernando Lira e o Fernando Henrique
enfileirados, empertigados.
E aí eu disse ao Tancredo: “Dr. Tancredo, o Sr. já me conhece bem, mas eu vou fazer o
Sr. me conhecer um pouco melhor: eu quero dizer que eu sou aquele jornalista
irresponsável, leviano e mentiroso que fez aquela manchete do Jornal do Brasil no dia tal
de janeiro”. Ele disse assim: “Que manchete?” Eu falei: “Aquela manchete: ‘Tancredo
prepara sua candidatura pela via indireta’, que lhe deu tantos problemas.” Ele falou: “Eu
não me lembro”. E nao olhava pra mim. Virava papel, tirava daqui, botava pra lá, tirava
daqui, botava pra lá. Eu insisti: “Bom, eu acho que, se eu vier trabalhar com o Sr., nao
tem como eu trabalhar sem tratar desse assunto cara a cara, com toda a crueza que esse
121
assunto merece”. Eu me lembro que olhei, de soslaio, para o lado e vi que o Fernando
Henrique estava assim: (sussurrando) “Para, porra! Nao provoca, nao provoca! Chega!”
(Gesticula com a mão, fazendo o sinal de negação com as duas mãos.)
Os políticos têm um timing que só eles sabem mensurar. O Dr. Tancredo finalmente
botou as maos na mesa e aí sim olhou nos meus olhos e falou assim: “Deixa eu te falar:
vamos parar de falar de bobagem e vamos falar do que é sério. Isso daqui vai ser uma
guerra; você está disposto a entrar numa guerra?” Eu falei: “Claro, se nao tivesse nao
estava aqui”. E ele falou: “Entao é isso o que interessa, vamos juntos”. E eu comecei a
trabalhar com Tancredo a partir daquele momento.
Na verdade, nós já trazíamos – eu vou já te dizer quem é o “nós” – uma tendência a juntar
forças e a celebrar acordos político-ideológicos amplos para enfrentar a ditadura, já era de
um tempo atrás.
Em 1975-76, nós começamos a montar, em Brasília, um monte de jornalistas jovens, um
grupo para tomar o sindicato, que na época era uma coisa extremamente importante do
ponto de vista da democracia.
Pergunta – Mas era pelego o Sindicato?
Marchi – Era pelego e nós, jovens, começamos a montar uma oposição sindical. Éramos
eu, o Helio Doyle, o Armando Rollemberg, Andrei Almeida, enfim vários outros amigos.
Ali se juntavam, num caldeirão, muitas tendências de esquerda: nessa época, eu era do
Partidão, o Andrei também era do Partidão, o Helio Doyle era da ala vermelha, do PC do
B, o Armandinho Rollemberg não era exatamente uma coisa definida, mas ele estava
naquela linhagem que mais adiante desaguaria no PT, assim como o Helio, enfim, nós
fizemos uma frente e tomamos o Sindicato, tendo como candidato a presidente o
Castelinho. A gente sentiu que os jovens não podiam assumir aquilo, porque não teria
credibilidade entre a categoria, para ganhar os votos indecisos.
Essa experiência já tinha nos dado uma força muito grande. A gente ganhou o sindicato e,
logo em seguida, em 1980, houve a reeleição do sindicato e eu fui ser vice-presidente da
Fenaj, nesse mesmo acordão de forças unidas. Em 1983, eu saí da Fenaj e voltei pro
jornalismo, no Jornal do Brasil. Em 1984, começou a acontecer isso, então essa tendência
de juntar forças era muito óbvia, já estava mais ou menos encaminhada. (10:50)
Nesse momento, em que a gente começou a juntar forças em torno do processo de
redemocratização, a gente perdeu metade desses companheiros: o pessoal que estava
122
tendendo para o lado do PT se foi, virou petista, até porque o PT já estava fundado, assim
mesmo nós éramos um grupo mais que ponderável.
Eu me lembro que a gente começou a trabalhar de uma forma muito ampla e muito
generosa; eu era muito ligado ao pessoal de comunicação da UNB – e a gente juntou
muitos professores da UnB, o Murilo Cesar Ramos, o Salomão Amorim, o Venício Lima.
E esses professores acionaram outras universidades, a Bahia estava muito próxima da
gente, o pessoal de São Paulo começou a se aproximar muito rapidamente, o pessoal de
Santa Catarina, o pessoal de Curitiba, tudo em Universidades federais. Nós começamos a
trabalhar a ideia de um projeto de comunicação institucional para um governo
democrático.
Isso tudo tinha um patrocínio acima da gente, que era uma figura notável sob todos os
sentidos, que era a deputada Cristina Tavares, que tinha uma grande liderança no PMDB
da época, no PMDB autêntico. Ela conseguiu cobertura em todos os sentidos para essa
generosa união que se fazia. Cobertura em termos de alguma proteção, pois era preciso na
época, uma certa institucionalidade dentro do Congresso, a gente começou a trabalhar
junto de Comissões técnicas do Congresso, começou a se reunir no Congresso, pois um
problema pra gente era um local de reunião. Nós éramos todos relativamente pobres,
tínhamos casas pequenas, não podíamos fazer reunião com 50 pessoas. Ela acionava isso,
e a gente começou a fazer reuniões, por exemplo, no apartamento de deputada dela, um
apartamento imenso, com uma sala muito grande.
A gente fazia reuniões bastante produtivas nesse sentido. E essas reuniões começaram a
se encaminhar para projetos. Talvez essa seja a grande diferença que você vai captar entre
a Voz do Brasil que sempre se fez e a Voz do Brasil que se fez naquele período, porque
[ela] era parte desse projeto maior. A gente entendia que cada comunicação institucional,
acima de tudo, tinha de ser pública, não estatal. (14:00) Esse era um fundamento
essencial pra gente. Não era um serviço que a gente prestaria ao governo, era um serviço
que a gente prestaria à sociedade.
Portanto, a gente tinha aí engatado e subentendido o compromisso da absoluta verdade,
da não mistificação, da não demagogia. A gente sabia que isso era pouco praticável
quando a política se explicitasse, quando a gente tivesse no poder – ia ser um negócio
extremamente complicado. Mas a gente pretendia estender isso até onde desse. A gente
sabia que era por um tempo, era apenas uma coisa que a gente ia plantar, sabia que não
era para todo o sempre, mas a ideia era essa: estender o mais que fosse possível.
123
Evidente que a gente contava com o governo Tancredo – a gente não contava com o
governo Sarney. Esse foi o primeiro tombo que a gente levou.
No governo Tancredo, a gente tinha uma previsão razoável de como essas coisas iriam se
desenvolver, porque a gente tinha por trás da gente Fernando Lira, o Fernando Henrique,
que começava a crescer politicamente, a Cristina Tavares, o grupo jovem dos autênticos
(do PMDB) – eles todos nos dariam cobertura – e vários outros deputados que nem eram
tão autênticos assim nos ajudaram muito. Eu me lembro, por exemplo, do Carlos Santana,
que veio da Arena e era do PDS, e nos ajudou intensamente.
Bom, isso tudo veio se desenvolvendo ao longo da campanha do Tancredo. Quando
chegou no final da campanha, a gente já tinha praticamente um projeto pronto. Então, a
gente fez uma das coisas mais pragmáticas que a política pode produzir: a gente fez uma
grande reunião na casa da Cristina (Tavares) – eu me lembro que, como não cabia todo
mundo sentado nas cadeiras, nos sofás, tinha gente sentada no chão todo –, fechou o
projeto que foi entregue ao Tancredo – projeto do que seria essa comunicação setor por
setor –, e o setor crucial era o Ministério das Comunicações.
E fizemos mais do que isso; a Cristina abriu a reuniao dizendo assim: “Hoje, cada um vai
dizer aqui o que quer ser no novo governo, para nao dar briga lá na frente”. Ficou uma
timidez, um constrangimento, porque dá a impressão de que você está querendo arrumar
um emprego, e não era isso. Mas era uma forma política de a gente chegar na frente, de a
esquerda chegar na frente – porque ali era todo mundo de esquerda.
Vários se candidataram a cargos, por exemplo, no controle da radiodifusão – no Dentel
da época –, muita gente estava de olho na Radiobrás, evidentemente que tinha as
assessorias de comunicação de cada ministério, que tinham de seguir determinado
parâmetro, determinado padrão, mas um negócio delicado, porque que dependia da
confiança do ministro – o ministro levaria seu assessor -, mas de qualquer maneira a
gente queria impor certos padrões de comportamento. Tinha um pessoal que queria cuidar
de publicidade especificamente e eu fui o único que disse assim: “Eu quero a EBN”. As
pessoas olharam para mim, porque a EBN era “bucha”, era o cabo do guarda-chuva.
Ninguém queria a EBN, porque não dava muito prestígio, não dava dinheiro. Mas eu
sabia que o outro lado estava minado e não podia dizer.
Pergunta – Minado por quê?
Marchi – Mais ou menos por (volta de) outubro, final de outubro, eu arriscaria dizer que
era o dia 25 ou 26 de outubro de 1984, eu estava em casa, morava no Lago Norte, e tocou
124
meu telefone, eu atendi, eram 6 horas da manhã. Era o Aécio (Neves). \e o Aécio disse
assim: “O que você está fazendo?” Pô, cara, nao deve ser muito difícil adivinhar... às 6
horas da manha. Ele era um garoto, era meio o “mascote” da campanha. Ele falou assim:
“Vai para o escritório. Queria te contar um negócio”. Senti que era alguma coisa
importante e fui. Cheguei lá, não tinha ninguém, só o segurança da noite, a gente entrou
ficou lá no fundo e me disse: “Tem um negócio que eu preciso falar pra porque eu não
aguento segurar. Mas você tem que jurar pra mim que você não vai dizer nem um
milímetro do que eu vou te contar. E eu quero que você interprete isso como uma coisa
de absoluta confiança. Se você quiser perder a minha confiança, você conte isso a
alguém.”
Nesse momento, ele me falou: “Eu nao dormi essa noite. Eu estou vindo de casa, e vou te
contar um negócio: Vô fechou com o Antônio Carlos (Magalhaes)”.
Pergunta – O que era crucial...
Marchi – Ganhamos a eleição. Naquele dia, eu passei a saber que nós tínhamos ganhado
a eleiçao e eu tinha que chegar todo dia com aquela cara de “bunda” olhando pros lados,
dizendo “nossa, estamos lutando amargamente por um final honroso”, mas eu sabia que a
gente ia chegar.
Então, quando as discussões se encaminharam para, por exemplo, ter o controle do
Ministério das Comunicações, eu já sabia que isso não era possível. Era evidente que
aquele acordo, naquela noite, abrangia o Ministério das Comunicações.
Pergunta – Ele virou ministro das Comunicações do governo Sarney...
Marchi – Evidente. Mas era mais do que óbvio que a primeira coisa que ele pediria ao
Tancredo seria o Ministério das Comunicações. Eu, como pedi a EBN, acabei sendo um
dos poucos... Eu fique nesse movimento. Eu falei com todo o entorno do Tancredo – eu
nao liguei pro Tancredo e disse “eu quero ser presidente da EBN” – e eu tinha um projeto
na mão, que a gente tinha feito e que seria trabalhado.
Pergunta – E que vinha desse grupo de jornalistas e professores...
Marchi – Que vinha desse grupo.
Pergunta – O Sr. ainda tem esse documento?
125
Marchi – Eu não tenho mais cópia disso. Eu me lembro que o nosso documento foi
fechado com o Salomão, professor da UnB, o Murilo Cesar Ramos e o Venício Lima. Eu
cheguei pro Fernando Lira, que no finalzinho a gente já sabia que ia ser ministro da
Justiça – isso encaminhou uma facilitação pra mim, porque a EBN era subordinada ao
Ministério da Justiça, não sei por que, era uma coisa absurda, mas era isso –, e aí eu
fiquei muito tranquilo em relação aos meus passos. Mas quem trabalhou muito por mim
foi o Fernando Henrique.
E eu me lembro que, na antevéspera da posse, no dia 13, eu encontrei com o Fernando
Henrique nao sei aonde e me disse: “O teu decreto já está assinado. Nao fala pra
ninguém”. Depois eu descobri que o Tancredo, naquele dia 13, tinha assinado 4 decretos
de nomeação: o primeiro deles, por ordem de importância, era o do presidente da
Petrobrás, os outros dois eu não me lembro, e o quarto era a minha nomeação.
Curiosamente, essa nomeação assinada pelo Tancredo foi publicada no Diário Oficial e
eu tomei posse na EBN com um decreto assinado pelo Tancredo, que nunca foi
presidente da República. Para se ver o que é a institucionalidade de um processo de
redemocratização.
Pergunta – Como foi o início do seu trabalho, após a posse de Sarney?
Marchi – Eu tomei posse, e comecei a implantar o projeto. Eu aprendi politicamente
como é que se fazia isso. Eram quatro diretores na EBN e eu me lembro que eu queria
levar, evidentemente, os outros três. Estabeleceu-se, nos primeiros dias da Nova
República, um processo que se chamava nihil obstat 75 da Aliança Democrática; as
nomeações eram feitas da seguinte maneira: tinha um papelzinho, com pouquíssimos
dados – nome do indicado, cargo, indicação e, embaixo, o que referendava aquilo era um
carimbinho redondinho [faz gesto indicando um diâmetro com cerca de 2 centímetros],
com uma “A” e um “D” dentro, Aliança Democrática. E em cima daquilo, como se fosse
o carimbo de um médico que faz uma receita, a rubrica do Marco Maciel. Com dez dias
de governo, meu amigo, sem aquilo, você não entrava em lugar nenhum, não passava.
Eu ainda não tinha percebido, mas naquele momento já tinha começado a briga Frente
Liberal-PMDB, Ulysses (Guimarães) e Aureliano (Chaves), ou quem fosse o líder,
Antônio Carlos (Magalhães).
75 Do latim, “nada impede”. Nihil obstat era uma autorização dada pelos censores da Igreja Católica, sem a
qual não poderiam ser publicados livros.
126
Só que eu decidi as nomeações da EBN no primeiro e no segundo dia, eu arranjei
padrinhos para os outros diretores. E os diretores foram Luiz Roberto Serrano, que tinha
o apadrinhamento de Ulysses e, portanto, era inquestionável, eu vinha indicado pelo
próprio Tancredo, eu indiquei o diretor financeiro, pois sem financeiro eu não vou, que
era um sujeito seríssimo, que trabalhava na área financeira do MEC, Emerson Almeida.
Quem me indicou o Emerson foi um tio de minha então mulher [apelidado de Biju], que
era um funcionário de longuíssima data do MEC, que eu conhecia de dentro de casa, e
que foi ser meu assessor de “putarias”, aquele que indicava o “vai dar merda”, ele
chegava pra mim e dizia assim: “nao assina isso, porque vai dar merda”. Ou entao: “Isso
aqui você pode assinar”. Nos três primeiros dias eu consegui nomear. No quarto, foi o
Luiz Gonzaga Mota, que era professor da UnB, que era do grupo de pensadores e foi ser
diretor de Planejamento, um cargo que eu criei, que não tinha na EBN, para pensar a
modernização da EBN. O Luiz Gonzaga Mota, eu disse que ele tinha sido indicado pelo
Carlos Santana – o Carlos Santana ligou para não-sei-quem e disse: “E meu mesmo”.
Carlos Santana nunca tinha visto o Luiz Gonzaga Mota na vida...
Isso facilitou muito o nosso projeto.
Pergunta – Quer dizer que o Sr. conseguiu logo de cara ter a aprovação desses nomes e
montar a equipe?
Marchi – Sim, e aí a gente começou a montar uma redação da utopia – como o Eugênio
(Bucci) de certa forma conseguiu fazer. Só que para o Eugênio foi mais fácil porque o
partido dele era hegemônico. No meu caso não era.
Mas a gente abriu o projeto na mesa e disse: “Vamos por aqui”.
Claro que a gente tinha um grande inimigo, que era a absoluta incapacidade de gestão,
porque, de todo mundo ali, ninguém nunca tinha gerido “porra” nenhuma. Nós éramos
repórteres de jornal. Mas eu tinha, do meu lado, o fabuloso Biju, que era o tio da minha
mulher, que conhecia todas as “putarias” de dentro do MEC.
Por exemplo, num dos primeiros dias, eu dei uma assim de grande gestor público. Eu
recebi a direção do Bradesco, os pagamentos dos funcionários da EBN eram feitos pelo
Bradesco, e tinha uma malandragem que o Biju me apontou: com aquela “puta” inflaçao
da época, a EBN mandava o cheque pro Bradesco e o pagamento era feito seis dias
depois. Veio a direção do Bradesco conversar comigo, pois era uma conta importante,
eram 1.200 funcionários, e eles disseram é tal, primeiro pagamento, para não atrasar, o
pagamento de março, e eu falei: “Muito bem, entao”. Tinha aquele monte de folhas e
127
papéis, eu assinei tudo, entreguei pra eles e no finalzinho fiz menção de que acabou a
reuniao, e o diretor do Bradesco em Brasília falou assim: “Mas o Sr. esqueceu do
cheque”. Eu falei assim: “O cheque vai na véspera do pagamento, para dar o tempo de
ser compensado”. Quer dizer: o dinheiro sai da EBN aqui, entra na conta dos funcionários
ali. E ele respondeu: “Mas assim nao é possível”. E eu falei: “Entao o Bradesco acabou
de perder a Folha de pagamento da EBN”. “Daremos um jeito, daremos um jeito”. No
mês seguinte, como o Banco do Brasil não podia aceitar, a gente botou num banco
estatal, não sei se o Banerj ou o Banco do Rio Grande do Sul.
E a gente então começou a implantar o tal projeto.
Já trabalhei em muitas redações boas, no Jornal do Brasil, o Globo, no Estadão duas
vezes, mas aquela redação da EBN foi uma das melhores que eu já vi até hoje. Por
exemplo, a diretora de Redação era a Rosvita Saueressig, que tinha uma cultura
jornalística preciosa e, segundo, ela sabe ser vigorosa e rigorosa ao mesmo tempo; tinha
um menino que está hoje em Santa Catarina, César Valente, que era muito bom também;
o chefe de reportagem era o Zanoni Antunes.
Ao mesmo tempo em que a gente começou a fazer bom jornalismo, a gente começou a
bater nos muros da política.
Pergunta – Essa “redaçao da utopia” foi montada, começou a ser implantado novo
projeto, houve alguma resistência dentro do corpo de funcionários da EBN?
Marchi – Tinha (na EBN) muito burocrata, muita gente que não trabalhava, e nós
começamos a atacar isso de forma inábil. Também éramos todos garotos novos, não
sabíamos direito como tocar a coisa. Um dos nossos compromissos era reduzir o quadro
(de funcionários) da EBN em geral, mas reduzir principalmente o quadro administrativo.
A EBN tinha, em números redondos, 1.200 funcionários, eram 400 na área fim e 800 na
área meio.
Então eu comecei, de todas as maneiras, a tentar me desfazer desses funcionários da área
meio. Primeiro fizemos um programa de demissão incentivada, não me lembro
exatamente como era, não existia na época esses programas estruturados como são hoje,
mas a gente pagava a mudança se o cara fosse mudar de cidade, tinha algumas vantagens
que permitiam o incentivo.
Depois a gente começou a ceder funcionários para outros órgãos, mas o outro órgão
pagava o salário, e assim eu aliviava a conta. Quando eu saí (da EBN, em 1986), estava
meio a meio.
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O primeiro muro em que a gente bateu foi assim: nós pegamos uns 10 nomes de pessoas
que eram notoriamente malufistas e justiçamos em praça pública. Demitimos. Ficou
claramente explicitado – e eu tenho que reconhecer hoje – que houve um certo
sentimento de revenge, que era uma bobagem naquele momento. E o presidente era o
Sarney, que era das hostes adversárias.
Eu me lembro que recebi um telefonema do Fernando Cesar (assessor do Sarney), que do
ponto de vista do valor político valia menos que eu, porque eu era próximo do Tancredo,
e ele nao teria coragem de me dizer: “Marchi, reveja essas demissões”. Porque Sarney
não era propriamente um presidente, ele era um subpresidente que tinha eventualmente
assumido o governo, e Tancredo estava vivo naquele momento. Fernando César tinha
sido meu colega de Jornal do Brasil durante muito tempo, éramos amigos. Ele me ligou e
disse: “O presidente está pedindo para que você reveja essas demissões”. Eu disse: “Eu
não posso voltar atrás, Fernando. Você sabe o valor político-ideológico que isso tem na
praça, todo mundo sabe o que a gente fez”. Ele insistiu, eu resisti, e no dia seguinte eu
recebi uma ligação do Sarney, pedindo para rever as demissões. E eu resisti novamente.
Eu comecei a ver que fazer jornalismo com independência dentro de um governo, ainda
mais um governo pluripartidário, era muito complicado.
Além do telefone do Sarney, eu comecei a receber telefonemas de colegas meus
jornalistas, principalmente os que cobriam a Câmara e que eram muito ligados a todos os
partidos: “Pô, que bobagem, você está tirando o fulano, bota ele de volta, para com isso,
etc.” Isso foi um fator de intenso desgaste, até que a gente venceu a parada, nao os
readmitimos, mas ficou uma cicatriz, que depois seria devidamente cobrada pelo Sarney.
E foram se sucedendo os fatos.
A segunda batida foi quando, um belo, dia o Serrano entrou na sala e disse assim: “Nós
temos uma entrevista do Brizola; a gente bota no ar ou não?” Eu disse: “Faça o seguinte:
distribui a matéria antes para os jornais, para ver a repercussão que vai ter, e aí a gente
descobre se vai botar na Voz do Brasil ou nao”. E a gente botou a matéria na rede, via
telex, e cinco minutos depois tocou meu telefone, a minha linha direta – tinha um telefone
que só tinha um botão, e eu descobri que aquilo era uma linha direta com o porta-voz do
Planalto – e era o Fernando César, para me dizer: “Você acabou de soltar uma entrevista
com o Brizola”. Eu disse assim: “E de interesse do público brasileiro”. “Mas Brizola é
oposiçao!” Eu disse: “O que a gente reclamava é que antigamente eles nao davam espaço
pra gente, agora a gente nao pode fazer a mesma coisa”. E ele falou: “Mas você nao
entende: assim que você botou no ar, o general Ivan Mendes de Almeida destacou a folha
129
– o general Ivan Mendes de Almeida era o ministro do SNI (Serviço Nacional de
Informações) –, levou para o presidente e você precisa ver a cara com que ele botou a
folha na frente do presidente. Com o EBN entre parênteses grifado em vermelho e o
nome Brizola também. E aí seguiu-se uma conversa entre ele e o presidente, e o
presidente disse: “Esse pessoal que está lá (na EBN) é meio rebelde, tal...” Eu comecei a
pensar que o nosso projeto ia durar menos do que a gente tinha imaginado. Depois desse
telefonema, eu liguei para o Serrano e falei: “Ponha o Brizola no ar na Voz do Brasil,
porque vai ser o nosso álibi. Se ele demitir a gente, podemos dizer que demitiu porque
fizemos bom jornalismo”. O Serrano ficou até meio assustado na hora,
E assim a gente foi, de topada em topada, com pressão dos dois lados. Uma das primeiras
coisas que a gente fez foi estruturar um quadro de salários, porque era uma bagunça,
passamos a ter um quadro de carreira em que se tinha repórter 1, 2, 3 e 4, e tinha redator
1, 2, 3 e 4. E esse plano de carreira aprovado pela gente dizia que ninguém poderia entrar
como repórter 4, tinha que entrar como repórter 1. Isso, de certa maneira, começou a frear
as indicações.
A gente começou a lidar com uma questão que era previsível: os repórteres começaram a
sentir que liberdade para fazer as coisas. Eles começaram a se mostrar senhores dessa
liberdade; em seguida eles começaram a se achar administradores dessa liberdade. E
começaram a afrontar ministros em entrevistas. Choviam reclamações. E então, eu que
tinha dito antes para as pessoas que “vale tudo” pra fazer jornalismo, tive que chegar para
eles e dizer para maneirarem, porque não podia ser assim. As pessoas têm que começar a
se acostumar com as situações. Mas o ser humano, nesse sentido, é inadministrável.
Quando você diz a ele “Você tem liberdade”, ele sai para enfrentar o mundo, enfrentar os
moinhos de vento.
Foram firmados acordos, mais ou menos amplos com a Telan (argentina), a portuguesa
Nope (que, durante o governo socialista de Mario Soares, era comandada pelo jornalista
Carlos Caceres Monteiro, que ele havia conhecido nos tempos de sindicalismo, e que
trazia muita notícia dos países africanos de língua portuguesa), com a Efe espanhola, com
a France Presse, com a Ansa). Não era a diversidade ideal, mas era uma diversidade que
permitia que a EBN se desvinculasse da via hegemônica do jornalismo dos EUA.]
Se você me perguntar se eu comuniquei a alguém (do governo) o que eu estava fazendo,
vou dizer que sim, ao Fernando Lira, mas ele era meu amigo e eu falava pra ele que era
uma boa – e era isso que ele queria saber. Pois não havia cultura no Brasil do que era uma
agência de notícias estatal. Nenhuma.
130
Alguns setores, principalmente os setores militares, começaram a ver com alguma
preocupaçao, e a todo tempo chegavam “sinais”, boa parte deles originários do SNI,
dessa desconfiança inicial plantada com o Ivan Mendes, de que a gente era um bando de
comunistas que tinha tomado a parte do governo.
Pergunta – Eles seguramente tinham as fichas de vocês e sabiam quem era do Partidão,
etc.
Marchi – Sim, mas Serrano não tinha sido de partido nenhum, nem o Luiz Gonzaga
Mota, que era professor da UnB, o Emerson muito menos, e isso, de certa maneira, dava
o mínimo de confiança para manter o projeto.
Pergunta – Mas o que de fato acabou com esse projeto na EBN?
Marchi – O que derrubou a gente foi, primeiro, esse ato desastrado de ter demitido esses
10, porque esses 10 tinham uma penetração muito grande na imprensa de Brasília. Eu me
lembro de que tinha um cara chamado Marcone Formiga que tinha uma coluna no
Correio Braziliense – para quem mora em Brasília, todos os jornais são importantes,
Estadão, Folha, O Globo, mas o Correio Braziliense é o primeiro que você lê, é o
primeiro impacto, é o primeiro a chegar na casa das pessoas – e essa coluna era o
“Ancelmo Goes” da época no Correio, e esse Marcone Formiga se especializou em
publicar notinhas contra a gente – incontáveis vezes ele publicou uma nota assim: “O
presidente da EBN, Carlos Marchi, está com os dias contados...”
Chegou dezembro (de 1985), houve a reforma do ministério e o Fernando Lira saiu.
Quando o Fernando Lira saiu, a gente pensou: “Nao teremos mais tempo, a gente tem que
correr para implantar dignamente um projeto digno do nome”. Sabia que nao poderia
levar até o fim, mas a gente queria implantar uma série de coisas que fossem difíceis de
reverter depois, que criassem história, que criassem vínculo.
E para isso, eu tinha muito apoio do Carlos Santana, que era ministro da Saúde e que,
como tinha vindo do PDS e da Arena, enchia muito os ouvidos do Sarney em favor da
gente. Mas quando houve a reforma do ministério, o que havia de esquerda no governo
pulou fora. E ainda se tinha os olhares gananciosos do pessoal do PFL, da Frente
Liberal...
Pergunta – Eles queriam levar a EBN para o Ministério das Comunicações, segundo
relato de Lilian Perosa...
131
Marchi – Eu me lembro de uma vez, que o assessor do ACM, um cara liso, muito
escorregadio, indefinível, me ligou e disse: “O ministro gostaria de te ver, de te conhecer
melhor, conversar”. E entao marcamos uma data e eu fui lá. Cheguei e nao esperaram
nem dois minutos para me introduzir no gabinete do ministro e pensei: “Pô, estou
importante...”
Eu entrei, estava o ACM lá numa mesa falando ao telefone, ele acenou para mim um
aceno largo, e ficou falando no telefone quase uma hora. Quando desligou, chegou até
mim e disse assim: “Mas e aí, fulano me falou que você queria falar comigo. O que você
manda?” Aquela altura eu já estava me lixando e disse: “Ministro, tem um engano aqui.
Ele me disse que o Sr. queria falar comigo.” Na maior cara de pau, o que ele queria é que
eu engatasse alguma conversa do tipo “me protege, me dá uma força”. Evidentemente
que essa coisa não se cristalizou ali, naquele momento.
Eu fui embora pensado: “Esse cara está de olho na EBN mesmo”.
O Lira já tinha saído em dezembro e a gente começou a correr o ano de 1986
completamente desprotegido. É claro que eu saí buscando outro tipo de proteção, porque
quando está no governo você tem que ter esse tipo de proteção, se não você não fica.
E um dos guarda-chuvas que eu encontrei mais interessante naquele momento foi
conseguir vender para o Itamaraty a ideia de que esses acordos (com agências de notícias
estrangeiras) eram interessantíssimos para o comércio internacional brasileiro. Na época,
o chefe do Departamento de Promoção Comercial era o embaixador Paulo de Tarso Flexa
de Lima comprou completamente o meu projeto. Ele disse: “Você vai ser o meu grande
aliado”. E tinha um detalhe: o Paulo de Tarso era mais que amigo do ACM. E quando o
ACM começou a avançar sobre a gente, o Paulo de Tarso nos protegia, dizendo que
estávamos trabalhando em conjunto. Até a crise final.
Quando desatou a crise final, entrou um ministro chamado Paulo Brossard, que o meu
amigo Zanoni (Antunes), chefe de reportagem, chamava de Souza Pinto, porque o nome
dele era Paulo Brossard Souza Pinto. Paulo Brossard é gaúcho, e gaúcho sempre trabalha
em “patota”, quando um gaúcho assume um cargo de direção, vai trazendo os amigos do
Sul, um atrás do outro, não sabe trabalhar em equipe. (...)
Pergunta – O livro de Lilian Perosa vincula a sua saída da EBN à gestão do Brossard no
ministério, dizendo que ele um ministro mais conservador que o Lira. Você concorda?
Marchi – Não tinha nada a ver com a qualidade do trabalho jornalístico que a gente
estava fazendo. Brossard é um cara extremamente conservador; eu cobri ele durante anos
132
e anos no Senado, depois na vida lá em Brasília. Quando ele tomou posse, fomos na
cerimônia, e eu fui cumprimentá-lo e ele foi absolutamente seco; ele me conhecia do
Senado, há muito tempo, ele podia ter dito: “nao quero falar com você agora” ou entao
“oh, meu amigo, venha cá me dê um abraço”; mas ele nao fez nem uma coisa nem outra,
ele foi extremamente seco. Eu pensei: “Bom, nao temos espaço”. E a gente durou ainda
muito tempo com ele, seis ou sete meses. Eu saí em junho ou julho.
E aí a coisa começou a se dar aos trambolhões. Mas não teve nenhuma relação com ser
mais conservador ou menos conservador, até porque quem me substituiu não jogou fora o
nosso projeto.
Pergunta – Houve alguma pressão do ponto de vista jornalístico para a EBN cobrir o
Plano Cruzado, lançado em fevereiro de 1986?
Marchi – O que houve no Plano Cruzado que eu me lembro muito bem é que nós
acreditávamos naquele governo como quem acredita na ressureição de Jesus Cristo. Ele
era a única saída para o Brasil, nós acreditávamos que podia e que tinha que dar certo.
Então, na época, todo mundo acreditava no Plano Cruzado – se pegar a cobertura da
imprensa da época, foi muito muito favorável, porque as pessoas estavam sufocadas pela
inflação, pelos males da economia e queriam uma saída e queriam acreditar que aquela
saída era boa, exequível.
Eu não me lembro de nenhuma pressão, pouquíssimas vezes eu recebi um telefonema do
Planalto para cobrir ou deixar de cobrir alguma coisa. Tinha aquele episódio do Brizola,
em que a gente acabou vencendo a parada, porque líderes oposicionistas continuaram
saindo na Voz do Brasil aqui e acolá, e a gente acabou se envolvendo em uma outra
discussão que não me interessava muito: eu queria notabilizar a EBN como agência
noticiosa brasileira , não como produtora da Voz do Brasil, tanto que cheguei a levar ao
Sarney um projeto para acabar com a Voz do Brasil. E o Sarney deu pulo da cadeira, e
dizia assim: “Você nao é do Nordeste, você nao sabe o que que é a Voz do Brasil no
Nordeste. Leva esse projeto pro Congresso e mostra para um deputado do interior do
Nordeste e pergunta para ele o que ele acha. Ele vai pular na sua carótida”. E ele entao
me desencorajou completamente – “Nao faça isso!” No tocar do projeto, nós dávamos
muito mais atenção à agência noticiosa do que à Voz do Brasil.
Pergunta – Na sua opinião, como o conceito de conceito de comunicação pública e
compromisso com o interesse do cidadão foi posto em prática na EBN daquela época?
133
Marchi – Havia muito a ideia – e eu confesso que eu partilhava dessa ideia naquela
época, mas hoje acho que o mundo mudou – a respeito do papel do Estado como
distribuidor de informações. Eu tinha uma noção muito estrita quando falava em
distribuição de informações, e não tinha base teórica para falar disso.
Na verdade, eu tinha feito Comunicação na UFRJ numa época muito difícil, 1970-71, e
praticamente não se tinha aula, era um inferno, o Dops estava lá todo dia (o Dops era do
lado da escola, e a escola era isolada na Praça da República), e eu tinha aula de
Matemática 1 e Matemática 2, e eu me perguntava o que eu estava estudando ali, eu
estava lá porque queria aprender a fazer jornal. E eu acabei abandonando a escola, até
porque no segundo ano eu fui ser repórter especial do Globo e pensei “O que eu posso
querer mais?”. Assim me faltou essa base teórica, e eu procurei suprir, ao longo dos anos,
mas quando eu encontrei esse grupo – já eram meus amigos, mas eu não me sentava com
eles para discutir Teoria da Comunicação, a gente lia McLuhan e Althusser, mas lia
atabalhoadamente, de forma rasa. Eu confesso que eu era discípulo dessas pessoas, eles
tinham muita base teórica – eu me lembro do Othon (Jambeiro Barbosa), que era
professor da Bahia, conhecia muito de Teoria da Comunicação –, então a gente
embarcava um pouco na canoa deles.
E a gente fazia uma espécie de “meio termo”, que era muito interessante: eu e outros
colegas trazíamos o pragmatismo político, o dia a dia da política, como é que se
realizavam as coisas, como é que se abordavam as pessoas, como é que se ganhava
espaço, e eles traziam a teoria.
A gente fazia uma média disso e é evidente que um professor desses não poderia ter sido
presidente da EBN, porque ele não conhecia o jogo político.
Eu acho muito interessante se você pudesse conversar com o Murilo (Cesar Ramos).
Advindo do Partidão, eu tinha muito ainda aquela ideia de dar excelência estatal, de que o
Estado pode fazer tudo; eu acreditava que a EBN, num dado momento, poderia concorrer
com a Agência JB, com a Agência Estado e com a Agência Globo, que na época era
nascente – a Agência Folha nem existia nessa época.
A agência Estado caiu matando na gente. Eu me lembro de que houve um editorial “A
Tass Cabocla”.
E eu me lembro, que cedinho em casa, o Fernando Cesar me ligou e disse: “Você viu o
editorial do Estadao?”, e eu nao tinha visto e ele completou “a Tass cabocla”. Eu disse
pra tirar da mesa do presidente, mas ele me disse que o Sarney já tinha lido em casa e que
era a primeira coisa que ele comentou quando chegou ao Palácio.
134
Então, era uma guerrilha e a gente achava que não podia enfrentar isso – eu sabia que não
poderia enfrentar isso nem no governo Tancredo, quanto mais no governo Sarney.
A gente tinha muito essa noção de que o Estado poderia suprir essas coisas, até que eu
entendi, hoje, que absolutamente o Estado não pode ser provedor de informações, não
pode ser um distribuidor de informações, porque não tem isenção para fazer isso. A gente
era muito stalinista. A gente era muito contaminado por essa coisa estatista...
Pergunta – Ao lado de uma até certa ingenuidade, de achar que não haveria interferência
política...
Marchi – A gente sabia que ia haver, mas a gente achava que era possível a gente resistir,
e que principalmente que era possível montar uma blindagem – que poderia ter sido o
acordo com a Abrajori, ou negociar com jornais. Eu me lembro que tentei negociar com
jornais, mas, por exemplo, o Estadão não queria sentar na mesa comigo para conversar.
Tentei marcar uma visita ao Estadão, para falar com o meu amigo Antônio Carlos
Pereira, chefe dos editorialistas, e ele me disse que eles não tinham interesse em
conversar comigo. Foi aí que agente sentiu que o buraco era mais embaixo.
135
Apêndice B – Entrevista de Eugênio Bucci ao autor – 27 jul 2015
Pergunta – Qual o conceito de comunicação pública com o qual o Sr. trabalha?
Eugênio Bucci – O conceito de comunicaçao pública está melhor explicado no livro “O
Estado de Narciso”, que tem um capítulo inteiro dedicado a debulhar essa conversa toda,
em que há vários conceitos diferentes, há linhas diferentes, e ali eu chego à seguinte
conclusão: Nós precisamos de um conceito que “corte” um lado e outro e que diferencie
uma comunicação (pública) das demais. Os conceitos existentes são muito flexíveis:
“comunicaçao pública é toda comunicaçao que tematiza um assunto de interesse público”
– então o Programa do Ratinho poderia ser considerado comunicação pública; esse é o
problema: tem várias investidas diferentes, passando pelo espaço público político, e
acabamos não saindo do lugar.
E vendo tudo isso, e pensando no ambiente institucional em que isso se dá no Brasil, eu
proponho um conceito em dois níveis: nós obrigatoriamente temos, no primeiro nível,
que a comunicação pública é aquela para a qual concorre o dinheiro público – de algum
jeito. Porque, se não, toda comunicação é pública. Devemos lembrar que a televisão é
concessão pública, então eu tenho um caminho para dizer que toda comunicação da TV,
por ser prestação de um serviço público, assim definido na Constituição, poderia se
chamar de comunicação pública. Então eu chego, nesses termos, àquele paradoxo do Tim
Maia: “Tudo é tudo e nada é nada”. E entao o conceito nao me serve para nada.
Como eu recorto algo que seja identificável e tenha a capacidade de ser igual a si mesmo
e diferente do que o cerca? É definindo, nesse primeiro plano, que a comunicação pública
é aquela para a qual concorre especificamente o recurso público, equipes públicas, de
funcionários públicos, equipamento público, etc. Tem participação (do poder público) ali.
Eu não posso também dizer que uma ONG faça comunicação pública, embora isso seja
de interesse público, porque de novo eu chego no Tim Maia: “Tudo é tudo e nada é
nada”. E eu nao consigo estabelecer uma diferença entre a campanha “Criança
Esperança” e a “Voz do Brasil”. Pois aí o conceito nao me adianta.
É aquele para o qual concorre o dinheiro público. Sendo isso, a comunicação pública leva
consigo, é marcada por certas obrigações, certos deveres, ela deve observar certos
princípios, pois afinal de contas ela é feita com recursos, todos, públicos. Então a
comunicação pública se define também pelo dever de observar os princípios
constitucionais, entre eles e principalmente o da impessoalidade – e claro que também o
da legalidade, o da economicidade, etc.
136
Pergunta – Isso está na Constituição?
Bucci – O princípio da impessoalidade está na Constituição.
Pergunta – Não especificamente em relação à comunicação, mas em relação às estatais...
Bucci – Isso, mas mesmo para a comunicação, e em várias passagens da Constituição
existem observações e determinações ou princípios em que há claramente a adaptação do
princípio da impessoalidade para aquela prática pública, por exemplo o impedimento de
que propaganda ou a comunicação de governos façam a identificação da pessoa que é o
governante. Isso é a aplicação do princípio da impessoalidade na comunicação pública.
Então, o que define a comunicação pública é o fato de que ela usa recursos públicos –
dinheiro, trabalho, equipamentos – e ela, por isso, se obriga a observar os princípios
constitucionais. Fora do que, ela agride a Constituição ou ela é ilegal. Simplesmente. E o
que acontece no Brasil é um festival de ilegalidades – em todos os sentidos. Então, o que
orientou a elaboração dos Documentos da Radiobrás foram essas noções.
Pergunta – E os Seminários sobre TV Pública desenvolvidos em Brasília, foram
anteriores a esses Documentos?
Bucci – Os seminários de Televisão pública são posteriores. E deu-se o contrário; não
estou aqui nem faltando pelo excesso nem por escassez de modéstia. Porque, no primeiro
Seminário de Televisão Púbica, dos oito grupos de discussão quatro eram dirigidos por
gente da Radiobrás. Naquela altura, já existiam os princípios do jornalismo da Radiobrás,
já existiam os protocolos, e coisas que se desenvolveram. A Radiobrás era uma das
organizadoras daquele Seminário, era o Ministério da Cultura e a Radiobrás.
Pergunta – Diante desse conceito de comunicaçao pública, o Sr. diz no livro (“Em
Brasília, 19 horas”) que a TV Pública é algo que nao é possível de existir. Vale para rádio
também?
Bucci – Vale, vale. Eu falo de radiodifusão. E acho que não existe. Nós temos alguns
“ensaios” disso, a TV Cultura e a Rádio Cultura, atualmente, um pouco – e depois que eu
saí –, a TV Brasil – que é hoje uma televisão melhor do que a que existia no meu tempo,
é mais bem feita, tem mais alcance nacional, tem um conteúdo mais independente do que
eu consegui fazer, e é hoje, possivelmente, a melhor experiência que nós temos depois da
137
TV Cultura – que eu ainda reputo como sendo a principal experiência de rádio e televisão
pública no Brasil.
Pergunta – Voltando à Radiobrás, o Sr. pode concluir, a partir da sua experiência, que
era possível fazer um jornalismo na empresa e na Voz do Brasil especificamente?
Bucci – Acho que não, mas isso precisa ser circunstanciado. A primeira coisa que precisa
ser dita: é possível fazer jornalismo numa empresa pública? Existe uma grande discussão
a respeito. E a minha resposta é sim.
O conceito de empresa pública é um pouco “alargado”, porque ela pode ser uma estatal,
como pode ser uma empresa da sociedade, mas com características de ser pública por não
ser comercial, e por ser de uma gestão aberta, com um Conselho, com uma gestão
fiscalizada pelos poderes públicos, por diversos instrumentos, entre eles o próprio
Ministério Público, pelas casas legislativas. São critérios que afiançam essa questão.
O que me leva a dizer que é possível fazer jornalismo numa organização desse tipo: além
da BBC, da Radio France, que são experiências conhecidas e com passado incontestável,
existem experiências muito boas e contemporâneas na National Public Radio, NPR, que
pratica um jornalismo de altíssimo nível.
Eles não são empresas estatais, mas eles são claramente empresas públicas, garantidas
por regimes públicos, ou seja, por regramentos de ordem pública – inclusive a lei – e com
um lugar na radiodifusão assegurado nos Estados Unidos pelo marco regulatório daquele
mercado que é de responsabilidade do FCC, uma agência reguladora que já tem 80 anos.
Então, embora a proprietária das emissoras associadas à National Public Radio não seja a
figura do Estado, são os regramentos públicos que decidem e que estruturam o lugar de
existência dessas organizações. E elas se beneficiam, eventualmente, de recursos públicos
dos mais diversos e não têm finalidade comercial – o que é fundamental.
Definitivamente, elas não são organizações com fins de lucro e tudo o mais. E ali se faz
jornalismo. Portanto, nós podemos dizer que é possível fazer jornalismo (numa empresa
pública), não em função de um wishful thinking ou de uma utopia, mas em função da
experiência real que mostra isso. A BBC é uma claríssima expressão de empresa pública,
em todos os sentidos.
Agora, poderíamos fazer jornalismo na Voz do Brasil? Não! Mas aquilo poderia ser muito
melhor do que tem sido. O primeiro passo para isso, como eu sempre preconizei, é que
ela não pode ser obrigatória. Mas a Voz do Brasil tem um problema: é um tipo de
comunicação completamente anacrônica, suas premissas já foram revogadas há muito
138
tempo, ela não deveria mais existir nessa forma. E o problema é o seguinte: na Voz do
Brasil, o objeto da notícia, o narrador da notícia e a fonte da notícia é o governo.
Não há, de saída, a interlocução necessária para que se estabeleça o jornalismo, não há o
pressuposto necessário. Portanto, não se pode falar em jornalismo ali, e, na melhor das
hipóteses, poderia haver um proselitismo mais civilizado, uma prestação de serviço um
pouco mais desinteressada, mais voltada ao direito do cidadão à informação.
A gente tentou forçar nessa linha, com consciência sobre isso, mas não foi possível.
Alguma coisa ficou, mas...
Pergunta – Com qual a definição de jornalismo o Sr. trabalha?
Bucci – Em relação ao conceito de jornalismo, até por necessidade das nossas escolas, eu
trabalhei nisso – e em dois ou três textos meus eu tento investigar em que termos nós
podemos estabelecer um conceito de jornalismo.
Por que precisamos fazer essa discussão no Brasil? Porque o Brasil não teve coragem de
fazer a diferenciação entre jornalismo e assessoria de imprensa. O que é um grande
embaraço para o desenvolvimento das duas atividades. Nenhuma outra sociedade
democrática, uma sociedade livre, sociedade de mercado, isso se verifica da mesma
maneira.
São duas atividades diferentes.
Então o maior problema de se falar de jornalismo hoje, na cultura jornalística do Brasil, é
[o fato de] as escolas acharem que assessoria de imprensa é jornalismo. Nas diretrizes
curriculares do MEC, a assessoria de imprensa é descrita como uma especialização do
jornalismo, como o jornalismo econômico. E quando eu falo de um conceito de
jornalismo, eu também não quero aqui falar o que já foi falado, pois o conceito de
jornalismo é óbvio, em todo lugar. Mas no Brasil ele é fator de confusão.
Pergunta – Só no Brasil ou em outros países também?
Bucci – Não, eu nunca achei. Diploma obrigatório é praticamente só no Brasil – no Chile
tem, por causa de uma reescritura de algo que havia na ditadura, e temos os países que
não são democráticos. Acho que na Venezuela tem... Em todo lugar, jornalista é um
profissional e o assessor de imprensa é outro. No Brasil, o jornalista e o assessor de
imprensa estão no mesmo sindicato.
O Código de Ética do Sindicato dos Jornalistas tem passagens hilariantes. O artigo 12,
por exemplo: “O jornalista deve, ressalvadas as especificidades da assessoria de
139
imprensa, ouvir sempre, antes da divulgação dos fatos, o maior número de pessoas e
instituições envolvidas na cobertura jornalística”. Ouvir os dois lados, ouvir as pessoas
afetadas por um fato é o primeiro dever do jornalista, porque ele tem o dever da verdade,
da transparência, e o dever da liberdade. Como é que o artigo 12 que fala dos deveres do
jornalista, diz que “o jornalista deve... a nao ser quando nao deve”. Entao o assessor de
imprensa não tem que ouvir os dois lados...
Pergunta – Pode mentir, portanto...
Bucci – Não, eles não estão dizendo isso. Eles estão dizendo que não precisa ouvir os
outros lados. O assessor de imprensa não precisa mentir. O assessor de imprensa pode
fazer um trabalho excepcional, superimportante para a democracia, para o esclarecimento
da sociedade, ético. Só que é outra profissão. Esse é o ponto fulcral da nossa discussão.
Na nossa cultura jornalística, assessoria de imprensa é uma especialidade do jornalismo, é
uma forma de jornalismo – e muita gente fala isso com as melhores das intenções, não é
gente interessada em lesar o direito à informação, falam sinceramente, acreditam nisso.
Como é que o jornalista (que atua como assessor de imprensa), que tem o dever de ouvir
os vários lados, fica dispensado desse dever – que é o primeiro dos deveres listados no
artigo 12.
E tem o artigo 7o: “O jornalista nao pode realizar cobertura jornalística para o meio de
comunicação em que trabalha sobre organizações públicas, privadas ou não-
governamentais, da qual seja assessor, empregado, prestador de serviço ou proprietário”.
Olha o que está escrito: um jornalista que trabalha para a Folha de S.Paulo não pode fazer
uma matéria sobre o PMDB, se ele for assessor do PMDB. Ele não pode fazer uma
matéria sobre o PMDB, mas ele pode ser jornalista num veículo jornalístico e assessor de
imprensa. Ele não pode fazer matéria, mas ele pode defender os interesses. E eles
emendaram isso depois: “...nem utilizar o referido veículo para defender os interesses
dessas instituições”.
O mais importante que está dito neste artigo nao é o que diz que “nao pode”, mas o que
tacitamente ele autoriza que o jornalista trabalhe para outra organização. Isso não
aconteceria em nenhum lugar do mundo; isso é óbvio. Mas no Brasil não é óbvio. Nós
precisamos discutir esse assunto, precisamos aprofundar esse conceito de jornalismo,
porque nós vivemos num país que não sabe a diferença ente assessoria de imprensa e
jornalismo. As escolas não sabem; o MEC não sabe – as diretrizes curriculares do MEC
estabelecem que assessoria de imprensa é uma especialização do jornalismo. Essas
140
diretrizes foram aprovadas faz 3 ou 4 anos, não é uma coisa dos anos 60. É por isso que
temos de fazer a discussão do conceito de jornalismo.
Mas nesse país, com essa cultura, a Voz do Brasil é “jornalismo”. Eles falam: “Agora, o
repórter fulano de tal...” Eu trabalhei lá. Só que ele nao está fazendo uma reportagem, ele
vai entrevistar um ministro que manda demitir ele.
É o governo falando do governo, a partir de fontes do governo. E o que é pior: para o
governo. Porque a Voz do Brasil é feita para o governo escutar e ficar contente. Essa é a
receita. Pois a Voz do Brasil fala coisas que os rincões não entendem. Esse é um dado
curioso: o ouvinte da Voz do Brasil é o “aspone” do governante, do ministro, que diz a ele
“Saiu na Voz do Brasil, ministro, saiu legal, o Sr. saiu muito bem...” O ministro vai ficar
contente e vai achar que as pessoas estão ouvindo e estão entendendo. Mas as pessoas
nao sabem o que é “escoamento da safra de graos”. Esse é o problema. Para saber se dá
para fazer jornalismo, é preciso saber o que é jornalismo. Então, nesse país, nessa
situação, essa é que é a discussão. Não daria para fazer jornalismo nessa Voz do Brasil.
Aí a gente chega na questão institucional. A Radiobrás é uma estatal, é responsável pela
Voz do Brasil, e aqui cabe fazer uma distinção porque as pessoas acham que estatal é
governamental, mas não é. As Forças Armadas são estatais, o Supremo Tribunal Federal
é estatal, a TV Câmara é estatal. O problema é que, na Radiobrás, a Presidência da
República decide quem é o Conselho de Administração, que é um órgão obrigatório em
toda estatal.
Pergunta – Esse Conselho tem mandato?
Bucci – O Conselho tem mandato. Mas o real poder de gestão é do Conselho de
Administração e a equipe é designada pelo governo, com mandato – e essa é uma
inovação que não havia antes – mas é uma empresa inteiramente dependente em mais de
um sentido – não apenas econômico – do governo federal. Hierarquicamente,
culturalmente...
E o programa Voz do Brasil é “do” governo federal. A relaçao com o governo é quase de
uma prestaçao de serviço; o “cliente” é o governo, ainda que formalmente nao seja assim,
é isso que acontece: o cliente é o governo federal. Aquele é um horário “do” governo
federal, assim como existe uma parte do horário, depois, do Poder Legislativo e os
minutos do Poder Judiciário. A Voz do Brasil, portanto, é um programa do Poder
Executivo, não é a Radiobrás que faz aquilo, é uma atividade do governo – a Radiobrás
presta um serviço para o governo.
141
Pergunta – O que fazer com isso?
Bucci – A Voz do Brasil poderia até continuar, mas ele não poderia jamais ser
obrigatória. A obrigatoriedade acaba com a autoridade natural, com a autoridade moral
que ela poderia ter, e ela não teria de ter tudo isso de duração. Aquilo foi pensado num
mundo, nos anos 30, em que o Brasil era integrado pelas emissoras de rádio. E naquele
tempo as rádios comerciais eram fraquíssimas, as emissoras surgiram como rádio-clube,
rádios mais ou menos comunitárias, e aquilo era do governo, tudo era do governo. Era o
jeito de você integrar o país. Às sete horas da noite era o horário nobre do rádio, o rádio
reinava, o Estado era autoritário, era um mundo completamente diferente.
Todas aquelas condições que tornavam a Voz do Brasil compreensível, ainda que
inaceitável, desapareceram. Hoje, além de inaceitável, a Voz do Brasil é incompreensível.
Incompreensível do ponto de vista ético, do ponto de vista funcional, do ponto de vista
institucional, e também incompreensível do ponto de vista discursivo, pois as pessoas não
entendem o que eles falam.
Eu não sei se o cenário é de se pensar uma comunicação pública com a Voz do Brasil. Ela
tem que desaparecer. Ou fica. É um programa que quem quiser usa, quem não quiser não
usa. A Voz do Brasil não serve para nada. Só serve para deixar a autoridade contente. E
qual autoridade fica mais contente? É o baixo clero. Por isso aquilo é irrevogável.
Pergunta – Como foi criada a missão da Radiobrás?
Bucci – A Radiobrás fazia proselitismo abertamente, e era usada pessoalmente pelo poder
em caráter pessoal. Um caso exemplar é as câmeras da Radiobrás gravando as festas da
dona Dulce Figueiredo, que não tinha nenhum interesse público, nenhuma função
pública. Assim como existia a cozinha, a piscina do Palácio do Planalto, existia a
Radiobrás, e era a agência de fotografia do governante, uma história espantosa.
Ora, esse uso [da coisa pública] não encontra justificativa em nenhum lugar. Então o
nosso truque foi: a lei não diz que é para fazer isso; a lei não diz que é para fazer
publicidade do governo; a lei não diz que é para ser porta-voz do governo; a lei não diz
que é para fazer assessoria de imprensa ou relações públicas. A lei diz que ela tem que
explorar emissoras de rádio – e o que define o papel das emissoras de rádio está na
Constituição, que não diz isso. Então, não temos que fazer o que a lei não diz que nós
temos que fazer.
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Eu falei: o uso que está sendo dado não encontra amparo na lei. Então eu usei leis – às
vezes até a ditadura – para afirmar o princípio da impessoalidade. Isso aqui tem que ser
de interesse público, assim como uma escola tem que ser de interesse público, um
hospital tem que ser de interesse público, qualquer instituição pública tem que ser de
interesse público e não pode fazer propaganda pessoal.
Isso instaurou ali dentro uma zona de conflito, que foi terrível, e que só poderia terminar
da forma como terminou.
Pergunta – Mas o Sr. saiu da Radiobrás em 2007 e as diretrizes definidas em sua gestão
não foram revogadas, certo?
Bucci – Nada, é uma coisa incrível. A abertura da Voz do Brasil até hoje é a mesma, que
nós fizemos. Os marcos ficaram lá. E até recentemente – eu estive lá em algumas
ocasiões –, as balizas eram basicamente essas. Se tentou ir mais longe – e eu acredito que
tentaram mesmo.
Pergunta – Então por que o projeto não avançou?
Bucci – A Radiobrás tem sido pensada como uma extensão do aparato de comunicação
do partido / governo. Isso aparece naquele documento da Secom que vazou no começo do
ano (2015); aquilo é uma confissão de um modo de pensar e está tudo ali. Ou seja: a Voz
do Brasil, a propaganda, os blogueiros progressistas – conceito que apareceu
recentemente –, sao “armas” ou uma estratégia militar que você aciona num momento ou
no outro. É assim que ela é pensada.76
Pergunta – E o Sr. já disse em outra oportunidade que isso não é coisa de um partido
específico...
Bucci – Não é coisa de um partido: é uma unanimidade suprapartidária. Nunca ninguém
chegou no governo e fez alguma coisa diferente. E não acredito que vá mudar agora.
Acho que é uma agenda que vai crescer. É um dos sintomas ou uma das evidências
ultrajantes do atraso brasileiro. É um tremendo de um atraso você ter na televisão um
governo gastando rios de dinheiro – no [livro] O Estado de Narciso eu levanto algumas
76 Documento vazado à imprensa em março de 2015, intitulado “Onde estamos”, supostamente de autoria
do então titular da Secom, Thomas Traumann. Disponível em
<https://drive.google.com/file/d/0B7o7oCE5m YbIanZsYjN3eXg5MWs/view?pli=1>. Acesso em 31 mar
2015.
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dessas cifras – para falar que o governo é legal e que se preocupa com as crianças, com os
aposentados, com os trabalhadores. Isso tinha de ser interrompido, isso é uma distorção
que afeta a reprodução do poder, e conspira contra a alternância do poder.
Pergunta – Quando chegou à Radiobrás em 2003, o Sr. tinha esperança de mudar esse
quadro?
Bucci – Eu tinha a esperança. Mas foi-se desenhando no horizonte um desencanto muito
grande, não é um vexame menor o que vem por aí, mas eu achava que havia jeito de dar
uma nivelada por cima na vida institucional e me cabia ajudar parte da comunicação. Eu
acreditava que a gente poderia fazer mais do que fez, mas a agenda não era aquela, e não
deu certo. Alguma coisa, você mesmo constatou, vai ficando; um pouco da cultura a
gente conseguiu mudar – tanto que não teve uma regressão, mas é difícil. Eu acho que
isso vai vir numa outra onda, em outro momento. Parece que algumas manifestações,
algumas correntes de manifestantes contra o governo têm uma proposta de extinção da
publicidade governamental. Eu acho boa essa ideia, porque o Estado não tem necessidade
de se comunicar; o Estado e o governo têm o dever prestar contas, mas devem de prestar
contas para a sociedade; quem faz propaganda de uma causa é o partido. E essa separação
é fundamental para o funcionamento da democracia, porque se o Estado vira um partido,
o resultado é desastroso – temos tantos exemplos – o Estado não tem que ditar o modo de
vida, é uma coisa tão simples, tão básica, mas aqui nós estamos fazendo o contrário.
Ainda.