Post on 14-Dec-2018
Expansão urbana, café e imigração: a Companhia Construtora de Santos e a
organização operária (1914 – 1930)
BRUNO BORTOLOTO DO CARMO*
FERNANDO ROCHA AGUIAR**
O objetivo do presente artigo é discutir o papel da Companhia Construtora de
Santos frente ao desenvolvimento urbano da cidade e ao intenso período de organização
operária, no qual o setor da construção civil era visto como um dos mais combativos. Nesse
sentido, destaca-se o pioneirismo de Simonsen no que se refere aos métodos de
relacionamento com os trabalhadores e suas instituições. A abertura do mercado de trabalho
para a mão de obra imigrante era reivindicada pelas potências industriais que buscavam criar
as condições necessárias para o estabelecimento de uma elite local que aspirasse aos padrões
de civilidade e urbanismo compatíveis aos dos países da Europa. O acumulo de capital
proporcionado pela exportação do café bancou as principais transformações urbanas, como,
por exemplo, a passagem do estilo neoclássico, identificado com o império, para o ecletismo,
símbolo da riqueza da burguesia ascendente na Primeira República.Em meio a esse processo,
o artigo procura, por fim, analisar o processo de construção do edifício da Bolsa Oficial de
Café e as implicações econômicas, sociais e políticas que tiveram de ser administradas pela
Companhia Construtora de Santos.
***
A instalação do regime republicano, no final do século XIX, impulsionou a
inserção do Brasil na economia capitalista, que dependia quase que exclusivamente da
exportação do café.
A substituição da mão de obra escrava pela assalariada, processo que foi
estimulado pelas potências industriais como a Inglaterra, resultou em uma conjuntura
econômica propícia ao desenvolvimento urbano e a cidade de Santos teve fundamental
importância nesse processo devido, sobretudo, ao porto que escoava toda produção de café
das fazendas paulistas para o mercado exterior.
Houve uma explosão demográfica na cidade durante a transição dos séculos XIX
e XX. Em 1889 Santos contava com 15 mil habitantes (GITAHY, 1992: p. 36); esse
* É Pesquisador do Museu do Café e mestrando em História Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC – SP) **É Pesquisador do Museu do Café e graduado em História pela Universidade Católica de Santos (UNISANTOS)
númeropassa a 89 mil habitantes em 1913. O senso deste último ano informava que destes 89
mil habitantes, 55,6% eram homens e 44,4% eram mulheres. Os brancos compreendiam
86,8% da população total, enquanto o resto da população, somente de 13,2% incluía 7,8% de
mestiços; 3,5% de negros; 1,3% de índios e 0,6% de imigrantes japoneses (chamados de
amarelos pelo senso). Os imigrantes representavam 42,5% do total da população da cidade em
1913. As principais colônias eram, por ordem de tamanho: a portuguesa, a espanhola, a
italiana, a turca e a japonesa. Em cada cem habitantes santistas, vinte e cinco eram
portugueses, nove espanhóis, três italianos e um turco ou japonês. (Idem,1992: p. 41 e 42)
A imigração contribuiu significativamente para a alta porcentagem de analfabetos
adultos. Para cada 100 portugueses em Santos, 66,62 eram analfabetos. Para espanhóis, 61,72
eram analfabetos e para os italianos, 60,64. Nesse período apenas 38% das crianças em idade
escolar frequentavam a escola. (GITAHY, 1992: p. 47)
Grande parte desses imigrantes, portanto, eram trabalhadores braçais não
especializados, empregados nas grandes obras públicas municipais ou do Estado como a
construção do porto pela Cia Docas e as grandes obras de saneamento e urbanização. Por
outro lado, uma parte considerável exercia funções qualificadas para a execução dos edifícios
da elite, como os marceneiros, pedreiros, marmoristas, escultores, etc.
Não podemos deixar de citar a contribuição do Liceu de Artes e Ofícios de São
Paulo como centro de formação da mão-de-obra operária qualificada, recebendo os imigrantes
qualificados ou semi qualificados e formando as primeiras turmas de trabalhadores brasileiros
para as novas necessidades industriais.
Toda essa população trabalhadora morava em cortiços ou em chalés localizados
nas periferias da cidade. Como se pode ver, a especulação imobiliária favoreceu as
construtoras que erguiam as moradias da nova elite e os pequenos proprietários que lucravam
com a construção e os aluguéis dos cortiços.
Todo esse processo de construção de uma cidade europeizada pode ser constatado
no código de posturas instaurado ainda em 1897. Segundo o artigo 20 do referidoCódigo, as
novas construções deveriam expressar: “respeitar á hygiente e segurança das obras ou
edificações e do embellesamento da cidade e dos seus arrabaldes.”. Proibiam-se construções
rústicas dentro do perímetro da cidade, assim como a construção de sacadas de ferro ou
madeira nos prédios assobradados, o que junto com a vedação do uso de argamassa de barro e
beirais sobre o passeio foi definitivo para suprimir a arquitetura colonial (CARRIÇO, 2006).
Surgimento do movimento operário
É nesse momento que o movimento operário santista começa a se organizar. As
primeiras greves datam do final do século XIX e as entidades de classe inicialmente possuíam
um caráter mutualista, pois buscavam auxiliar operários vítimas de acidentes, apoiaras
famílias, etc. No começo do século XX começam a surgir diversos sindicatos organizados por
categorias e as primeiras federações que englobavam diversos segmentos. Os setores mais
organizados eram notadamente os da construção civil reunidos na Sociedade Primeiro de
Maio, fundada em 1904, e o dos trabalhadores do porto, organizados na Sociedade
Internacional União dos Operários, fundada naquele mesmo ano. (Idem, 1992: p. 61). Apartir
desse momento, essas instituições passam a se caracterizar não mais por um viés
assistencialista, mas sim pela organização de greves com reivindicações claras aos patrões
como a luta pela jornada de trabalho de 8 horas, contra a carestia de vida, etc. Posteriormente,
em 1907, os trabalhadores da construção civil em parceria com os trabalhadores do porto
fundaram a FOLS (Federação Operária Local de Santos)(Idem, 1992: p. 65)
Entretanto, havia uma peculiaridade decisiva que colocava os trabalhadores da
construção civil à frente: a necessidade da indústria em profissionais especializados em seus
segmentos de ofício. Ao contrário do setor não qualificado, onde as empresas possuíam
facilidade de manter a produção por meio da contratação de fura-greves, o setor da construção
civil empregava boa parte do trabalho qualificado (pedreiros, carpinteiros, pintores,
marmoristas, etc.). Os chamados “artistas” não podiam ser encontrados com facilidade, ao
contrário dos trabalhadores não qualificados, e isso correspondia a um poder de barganha
considerável para o atendimento de reivindicações. Outro fator que contribuiu para a
combatividade dos trabalhadores da construção civil era a falta de vínculo permanente entre
patrões e empregados. Estes trabalhadores exerciam uma atividade profissional episódica,
com frequentes mudanças de empregadores, de local de trabalho e, por vezes, de residência
(TEIXEIRA,2003: p. 61-62).
Por outro lado, a ausência de articulação patronal em razão da concorrência entre
as construtoras e pedreiras era um fator que facilitava a articulação dos trabalhadores. Mas
como se davam essas relações na prática? Uma das principais táticas das organizações
operárias era a deflagração de greves parciais, onde uma determinada empresa era boicotada,
resultando no aumento de produção nas demais firmas, uma vez que estas assumiam os
serviços da empresa boicotada ou forneciam materiais para tocar os empreendimentos. As
construtoras assumiam contratos com prazos fixos de entrega e recebiam o pagamento
somente após a conclusão das obras. Portanto, qualquer atraso significava que o empreiteiro
teria que iniciar o pagamento das dívidas assumidas com os fornecedores de material por
meio de um capital acumulado anteriormente. Um longo período de greve poderia resultar na
quebra de contrato ou na falência da firma. Era imprescindível que os patrões resolvessem as
questões trabalhistas o mais rápido possível (Idem, 2003: p. 57).
Roberto Simonsen e o surgimento da Companhia Construtora
Após um bom período de crescimento do setor da construção civil, a crise
ocasionada pela Primeira Guerra Mundial afetou diretamente o patronato e consequentemente
os trabalhadores. A alta dos preços dos materiais de construção, a crise do mercado
internacional e a estagnação da taxa de natalidade contribuíram para a queda do número de
construções. Para os trabalhadores isso se refletiu no rebaixamento dos salários, que em
algumas situações chegou a quase 40%, perda dos direitos anteriormente conquistados, como
a jornada de 8 horas, o aumento do custo de vida e desemprego generalizado (Idem, 2003: p.
63-64).
É em meio essa conjuntura econômica/política que Roberto Cochrane Simonsen,
engenheiro que trabalhou no setor público, funda em 1912 a Companhia Construtora de
Santos. Na contramão da crise, a empresa expandiu seus negócios em meio ao período de
guerra. Tal desenvolvimento deve-se, sobretudo, ao apoio e aos favores dispensados pelo
poder municipal como a concessão de serviços de obras públicas por um período de cinquenta
anos, isenção de impostos e a não abertura de concorrências públicas. A construção do bairro
da Vila Belmiro, por exemplo, se concretizou por iniciativa do Prefeito de Santos na época,
1914, Belmiro Ribeiro, que aliás era um dos acionistas da Companhia Construtora de Santos.
Com o fim da guerra, a Companhia entrava numa fase de maior desenvolvimento. O poder
que a Companhia acumulou dava-lhe condições de redefinir as relações entre patrões e
empregados no ramo da construção civil (Idem, 2003: p. 66-67).
A greve dos canteiros, realizada em 1913, por exemplo, foi vitoriosa em todas as
pedreiras da cidade, exceto as da Companhia Construtora, que reagiu com demissões,
contração de inúmeros fura-greves, e solicitação de repressão aos grevistas, resultando em
mortos, feridos, 75 operários presos e um processo forjado pela polícia para expulsar cinco
dos supostos líderes do movimento. Nesse mesmo ano, Roberto Simonsen depôs como
testemunha nos processos de extradição contra o estivador espanhol Adolpho Antas e o
carroceiro da mesma nacionalidade, Manuel Fernandes(Idem, 2003: p. 78).
A partir de 1916 esse cenário começou a mudar com o aumento do número de
empreendimentos na construção civil, a reorganização das entidades operárias e as greves
vitoriosas que reivindicavam a manutenção da jornada de 8 horas de trabalho,
restabelecimento do pagamento no dia 5 de cada mês e da tabela mínima de salários. As
greves parciais, ou seja, restritas a algumas construtoras, tinhamcomo objetivo de acirrar a
concorrência entre as empresas, visto que algumas ficavam com obras paradas devido à greve
e as demais continuavam seus serviços.
Em vista da ascensão das greves, a Companhia Construtora passou a figurar como
um polo de resistência do empresariado da construção civil. Roberto Simonsen buscou o
apoio de outros construtores da cidade para confeccionar “listas negras” de operários
“indesejáveis” declarando “não admitir em seus trabalhos operário algum que tenha sido
dispensado por qualquer um dos signatários como grevista, ou que tenha como tal
abandonado os seus serviços”(Idem, 2003: p. 92). Nesse mesmo momento, por iniciativa de
Simonsen foi criado o Centro dos Construtores e Industriais de Santos (CCIS). Além da
preocupação com a unidade patronal, o empresariado da construção civil visava quebrar o
poder que os sindicatos possuíam no mercado de trabalho. No início da década de 1900 os
sindicatos conquistaram a força necessária para obrigar as empresas a contratarem
exclusivamente trabalhadores sindicalizados. Essa ação visava conter a contratação de fura
greves pelas empresas.
Descontentes com essa situação, os construtores, agora organizados no CCIS,
criaram um sistema de cadastro de operários obrigatório, sem o qual os trabalhadores não
teriam acesso ao mercado de trabalho. A iniciativa tinha o objetivo de mapear os
trabalhadores “indesejáveis” e garantir o controle das empresas sobre os funcionários.
Esse tipo de cadastro já era efetuado pela Companhia Construtora com o auxílio
do delegado regional de polícia, Bias Bueno, que também exercia a função de advogado e
conselheiro da empresa. Sua função era manter a ordem, proteger a propriedade, controlar a
seleção e contratação dos trabalhadores e arbitrar nos processos de demissão, facilitando o uso
de processos forjados na delegacia contra grevistas.
Visto isso, não é de se surpreender que os trabalhadores se negassem a realizar
esse cadastro. O próprio Simonsen admitiu que esse procedimento encontrou forte resistência
e por isso passou a utilizar argumentos e meios mais conciliatórios para que os operários se
cadastrassem “voluntariamente” no CCIS. (Idem, 2003: p. 94-95).
Numa visão mais ampla, o patronato estimulava as tensões entre as
nacionalidades, especialmente entre trabalhadores brasileiros negros, recém-libertos, e os
imigrantes portugueses e espanhóis que trabalhavam no porto. Utilizavam muitos deles como
fura-greves e fundavam organizações operárias com o objetivo de divisão entre os
trabalhadores.
A Greve de 1917 e o apelo de Simonsen contra as greves
Em 1917 os operários da construção civil reorganizaram seu sindicato, criaram o
jornal “A Obra” e contribuíram decisivamente para o surgimento da UGT (União Geral dos
Trabalhadores). Durante a greve geral decretada em São Paulo, os trabalhadores da
construção civil de Santos lideraram um movimento de solidariedade indicando a
possibilidade de greve geral que na prática, porém, acabou se restringindo ao setor da
construção civil paralisando todas as obras em Santos. A pauta de reivindicação exigia o
reconhecimento do direito de reunião e propaganda; fim do trabalho extraordinário ou
acréscimo adicional de 50%; fim da admissão de menores de 14 anos em serviço de
carregamento de argamassa ou serviços pesados; manutenção da jornada de 8 horas; controle
dos preços dos gêneros de primeira necessidade; libertação dos grevistas presos e abolição do
cadastramento da CCIS. Os construtores deveriam responder às reivindicações por meio de
nota na imprensa (Idem, 2003: p. 96-97).
Quando atingiu sua maior intensidade, o Centro dos Construtores e Industriais de
Santos lançou um apelo aos operários, assinado por Roberto Simonsen, tentando sensibilizá-
los diante da situação precária vivida pelo setor. O apelo chamava a atenção para o
desequilíbrio entre o baixo crescimento da indústria da construção civil e, por outro lado o
crescimento de outros setores da indústria que tiveram seus produtos altamente valorizados
por conta da guerra. Portanto, a realização de greves neste período somente agravaria mais a
situação para os construtores e consequentemente para os operários. Indicava ainda que os
salários em Santos eram 30% mais elevados do que os da capital e que a jornada de 8 horas
era respeitada pelos construtores em geral e que a campanha contra o cadastro obrigatório no
CCIS era injustificada pois a entidade não tinha um caráter de repressão e sim de conciliação,
e que o cadastro era uma garantia ao “bom operário” e apenas os “maus elementos” seriam
avessos ao cadastramento.
Um dia depois deste apelo o CCIS anunciou a fundação da Câmara de Trabalho
que tinha o claro objetivo de esvaziar os sindicatos, uma vez que prestava serviços como
assistência e seguro para os operários, escolas técnicas e cooperativas. A Câmara também
abria espaço para a representação dos operários que elegiam um representante para cada
grupo de 80 trabalhadores. Tudo, porém, supervisionado pela direção do CCIS.
A proposta foi prontamente rejeitada pela UGT. As entidades patronais
solicitaram então a ação da polícia para que os operários voltassem ao trabalho, resultando na
prisão de diversos operários, entre eles quatro da Companhia Construtora. O visado
sindicalista Manuel Perdigão também foi preso e o Estado iniciou o processo de sua expulsão
do país. O jornal A Tribuna, por outro lado noticiou que o retorno ao trabalho foi
“voluntário”, fruto da boa receptividade às novas propostas da Câmara de Trabalho. (Idem,
2003: p. 98-99).
Mesmo com o grande esforço de Simonsen, a Câmara de Trabalho1 não foi
efetivamente instalada e o CCSI não logrou êxito em agrupar grande parte dos construtores
santistas. Para isso deve-se o alto grau de organização operária no rechaço às propostas
patronais e a desconfiança dos pequenos construtores que unidos não contavam com o número
de trabalhadores que a Companhia Construtora de Santos possuía. Esses construtores,
portanto, não aderiram à proposta, devido à possibilidade de monopólio das decisões por parte
de Simonsen.
Estudo de caso: construção da Bolsa Oficial de Café de Santos
Agora retornemos à questão inicial, com relação às construções na cidade de
Santos. No dia 16 de janeiro de 1923 Roberto Simonsen, enviou ao Governo do Estado de São
Paulo um relatório completo a respeito da conclusão de uma das principais obras feitas na
cidade de Santos naquela década. Estava concluído o Palácio da Bolsa Oficial de Café. Foi
uma obra bastante complexa, que visava desde sua concepção impactar o centro da cidade de
Santos, com ares de edifício-monumento da burguesia cafeeira.
Nesse documento, Roberto Simonsen expõe – entre diversos pontos – a razão pela
qual os orçamentos iniciais e finais da obra haviam sido tão discrepantes.
1 Biógrafos de Simonsen defendem que a Câmara de Trabalho teria sido uma entidade precursora da Justiça do Trabalho instaurada por Vargas nos anos 1930, entretanto, devemos compreender que enquanto o Estado implantou um sistema tripartite onde o governo era o mediador entre as partes, a Câmara do Trabalho estabelecia um diálogo direto entre patrões e empregados. Entretanto, Simonsen considerava equivocada a ideia de resolução das divergências entre patrões e empregados por meios políticos, pois qualquer ingerência do poder público nas relações de trabalho ocasionaria em travamento da produção e o acirramento do conflito entre as partes.
Quando elaboramos o primeiro orçamento approximado, a situação geral dos negocios apresentava as mais favoraveis expectativas. O cambio brasileiro achava-se a 18 e 3/8 (Fevereiro de 1920); esperava-se uma baixa geral em todos os preços de producção e uma forte corrente immigratória, que baixaria, em muito, os salarios no Brasil (RELATÓRIO FINAL, 1923: p.2).
Aliado a estas condições favoráveis ao patronato, a construção do edifício da
Bolsa Oficial de Café, assim como outras grandes obras realizadas pela Construtora2 nesse
período, serviram como laboratório de experimentação das novas diretrizes e inovações
técnicas da indústria. Por isso, muitas das construções desse período tinham elementos
decorativos desligados dos componentes construtivos, caminhando inclusive na contramão do
movimento modernista, que acontecia concomitantemente. Isso acontecia por que a tradição
dos artífices representadas por instituições de classe como o Liceu de Artes e Ofícios
valorizava mais o desenho operário (drawing) do que o esboço aliado a concepção e invenção
(design), fazendo com que o conhecimento arquitetônico fosse decomposto em partes que em
princípio seriam pensadas unitariamente (BELLUZZO, 1988).
Figura 1 - pilares de peristilo, junho de 1921. Álbumda construção da Bolsa Oficial de Café.
2A partir de 1919 grandes empreendimentos como bancos, palacetes, hotéis, teatros e edifícios públicos começaram a ser construídos. Quase todos assinados pela construtora de Simonsen.
Essa dissociação da prática construtiva dos ornamentos é característica dos
edifícios ecléticos do período, refletindo-se no palácio da Bolsa Oficial de Café. O
desligamento entre forma e técnica construtiva tem, no caso desse edifício, um caráter
peculiar: além de possuir elementos de adornos característicos das construções ecléticas, foi o
primeiro edifício de concreto armado da cidade de Santos, técnica construtiva de ponta e
muito utilizada pelo modernismo.
Entretanto, a tentativa de se estabelecer uma relação industrial com a mão-de-obra
operária da construção civil criou uma categoria que se unificou. O trabalho com cantaria,
estuques de gesso, marmoraria, serralheria, etc., etc., eram entendidos como altamente
especializados. Nesse contexto, a Associação Operária União de Artes Ofícios e Anexos
acaba ganhando grande preponderância, mesmo que efêmera, no período estudado; em outras
palavras, se por um lado procurava-se uma massificação do conhecimento do artífice para que
se tivesse uma produção em série sem uma atividade de criação por parte do trabalhador, por
outro se criou uma mão de obra especializada altamente requisitada nos tipos de construções
que a elite desejava no período.
Nos anos de 1919 e 1920, a União de Artes, Ofícios e Anexos foi a entidade mais
ativa da cidade. Mesmo com grandes atividades como produção de boletins, jornais,
ampliação das aulas para os trabalhadores, manifestações no primeiro de maio e de
solidariedade à outros movimentos, a categoria não participou das greves que agitaram a
cidade. Em vista da última repressão e da conjuntura pós-guerra que ainda era desfavorável
economicamente ao setor da construção civil, essas entidades operárias entenderam que o
momento deveria primar pela reorganização e fortalecimento da categoria.
Em 1920, porém, a construção civil obteve um grande impulso para o seu
desenvolvimento na cidade. Como consequência, sobravam construções e faltavam braços.
Essa conjuntura propiciou ao movimento operário o poder de barganha para reivindicar e
conquistar direitos anteriormente negados. A principal bandeira da categoria exigia a
reposição salarial que caíra durante a conjuntura de guerra. Após algumas greves parciais que
foram vitoriosas, os trabalhadores por meio da indicação de greve geral exigiram o pagamento
dos dias parados, a libertação dos grevistas presos e a reposição salarial. Nessa situação o
CCIS foi obrigado a reconhecer o sindicato como interlocutor legítimo dos trabalhadores e a
atender a todas as reivindicações. Impulsionados com a vitória a categoria procurou fortalecer
a mobilização dos trabalhadores portuários fundando o Sindicato dos Trabalhadores da Docas.
Todavia, apesar dessas grandes vitórias, as conjunturas de repressão que se
seguiram, principalmente em virtude do posicionamento do presidente Arthur Bernardes em
relação ao movimento tenentista e ao movimento operário em geral, sempre eram
extremamente violentas e desagregadoras. A década de 1920 viu a indústria da construção
civil enriquecer e isso foi fundamental para o CCIS desarticular os sindicatos dos
trabalhadores por meio das antigas propostas de Simonsen. O grande volume de obras tornou
os pequenos construtores em médios e grandes empresários do setor e novas construtoras
proliferavam na cidade. Nesse sentido a conjuntura que não era favorável para a criação da
Câmara do Trabalho em 1916-1917 agora era perfeitamente possível.
Em 1924 a Companhia Construtora de Santos figurava como a maior do país,
responsável por obras em 36 cidades e contando com 15 mil operários. Simonsen foi pioneiro
na implantação de medidas assistenciais como: bonificação de acordo com o tempo de
trabalho a quem possuía filhos pequenos ou aqueles que produziam acima da média;
alojamento para operários e supervisores; subsídios a clubes esportivos dos empregados;
criação de cooperativas para fornecimento de gêneros alimentícios a preços reduzidos. A
construtora era cobiçada pela garantia de “recebimento em dia” e de ali poderem “fazer
carreira” e manterem uma certa estabilidade, muito diferente das demais empresas que
possuíam uma rotatividade enorme de trabalhadores e um atraso constante nos salários.
A imprensa tradicional apresentava Simonsen como o patrão preferido de todo
trabalhador cuja cordialidade garantiu a manutenção de um período de 8 anos sem greve na
Companhia Construtora de Santos. Na verdade devemos compreender que essa “paz” não se
deve apenas às políticas de benefícios, mas principalmente à vigilância e controle dos
trabalhadores.
Como já foi dito, Roberto Simonsen alcançou boa parte de seu prestígio ao longo
das décadas de 1910 e 1920 com construções, principalmente, voltadas para a administração
pública. Com a aproximação das comemorações do Centenário da Independência, que
aconteceriam no ano de 1922, sua circulação nesse meio lhe rendeu participação em
praticamente todos os monumentos inaugurados na cidade de Santos para a ocasião, seja da
esfera municipal – Praça da Independência ePantheon dos Andradas – assim como na
Estadual com a construção do Palácio da Bolsa de Café.
Figura 2 - Início da concretagem do Palácio, março de 1921. Álbum da construção da Bolsa Oficial de Café.
A grande quantidade de canteiros de obras na cidade era noticiada com grande
excitação pelo jornal Correio Paulistano, que em setembro de 1921 escreveu sobre a rua
Visconde de S. Leopoldo, que contava com grande quantidade de “[...] terra revolvida, onde,
por entre uma confusão de calhaus e ferramentas, se notava a animadora desordem das
grandes obras [...]”. Na sequência o redator fala sobre a “febre reconstructora” que tomou a
cidade:
Uma pequena resenha dará uma idéa, ainda que muito ligeira, da febre reconstructora que agita a terra vizinha. A avenida Pinheiro Machado está sendo calçada e ajardinada, o mesmo se dando em relação á avenida Bernadino de Campos. Parallelamente ás praias, a rua Floriano Peixoto tem o seu drenamento e calçamento em adeantadaconstrucção. A Villa Balnearia que só enche, cada dia, de novos e lindos “bungalows”, a Prefeitura já dotou de todos os melhoramentos urbanos. E’ um bairro encantador. (CORREIO PAULISTANO, 1921: p.6)
Na rua XV de Novembro, Frei Gaspar e Tuiutiiniciaram-se os trabalhos de
fundação e levantamento do esqueleto do futuro Palácio da Bolsa Oficial de Café.
Estabeleceram-se diversos canteiros em terreno da Rua São Francisco e a obra; para esse
trabalho, a Construtora convidou a firma dos irmãos Longobardi para o trabalho das pedras
que seriam destinadas à obra.
“Proseguiram os trabalhos de preparo e assentamento da cantaria. Devido ás grandes obras desta natureza que se estão fazendo em São Paulo, tem os nossos contractantesAntonio e José Longobardiluctado com difficuldades para obterem não só a pedra necessaria como pessoal em numero sufficiente, e sem sermos pessimistas acreditamos que os salarios dos operarios-canteiros terão dentro em pouco subido a tal preço que será difficil aos Snrs. Longobardi manterem o preço do seu contracto.” (RELATÓRIOS DE CONSTRUÇÃO, 1920-1923:p. 258)
Na verdade, o primeiro revés da Companhia Construtora na obra do Palácio da
Bolsa veio ainda no período de demolições e início das fundações, em agosto de 1920. Em
relatório ao Estado, Simonsen relatou que o custo dos materiais – em sua maioria, importados
– aumentava e, naquele momento, “[...] o custo da mão de obra foi consideravelmente elevado
pela decisão do Centro dos Constructores, de 1º de Maio p.p. quando, apezar de vehemente
protesto desta Companhia, approvouaquelle Centro a tabella de salarios proposta pela
Associação Operaria União de Artes Officios e Annexos.” (Idem, 1920-1923: p. 157).
Além disso, as“grandes obras desta natureza” são clara referência à intensa
movimentação da construção civil para os preparativos da comemoração do Centenário em
1922, o que dava um grande poder a trabalhadores organizados como eram os da União.
Entretanto, essa não era a única razão para que os salários subissem. A especialização do
serviço fez com que alguns detalhes do palácio fossem confiados a artistas de criação, mesmo
que não fosse um trabalho totalmente artesanal e criativo em sua essência. Foi o caso das
esculturas presentes na fachada da Rua XV de Novembro, esquina com a Rua Frei Gaspar.
Sendo da maximaimportancia para a harmonia e grandiosidade do Palacio, que o portico principal á rua 15 de Novembro seja estudado por mão demestre nos seus menores detalhes, aproveitamos o facto de termos trazido a Santos o notavelesculptorAntonioSartorio para a execução do Monumento dos Andradas, para obtermos do competentissimo artista uma proposta muito vantajosa para o estudo e preparo dos modelos para toda a parte esculptural desse portico. Approvada por vós essa proposta, lavrámos a 29 de Janeiro o contracto, de que junto enviamos copia, com o sr.Sartorio. (Idem, 1920-1923:p. 198)
O trabalho das esculturas foi desenvolvido pelo italiano AntonioSartorio em seu
atelier em Paris; foram enviados modelos em tamanho reduzido ao Brasil e a execução dos
originais presentes no Palácio pelo também italiano De Giusti. O fato dos registros de autoria
dos trabalhos de escultura, seja na sua concepção ou execução, é um dado bastante relevante.
Diversos trabalhos nos canteiros eram de bastante minúcia e requeriam muita habilidade e não
tinham seus autores ou executores reconhecidos como tal.
Figura 3 - Escultura desenvolvida por Van Emelen para a torre do Palácio, sem data. Álbum da construção da Bolsa Oficial de Café.
Ao longo da obra podia-se observar um crescimento de trabalhadores destacados,
além de turnos duplos para que a obra pudesse ser concluída em tempo hábil. Aos poucos, os
108 operários foram subindo para 127, chegando até 250 trabalhadores que trabalhavam entre
o turno diurno e noturno (Idem, 1920-1923:p. 217, 258 e 342). Dentro desses canteiros
estavam os que o próprio Simonsen reconheceu como “hábeis” e “capazes”, por isso a
dificuldade em aumentar o número de trabalhadores:
A preparação da cantaria de granito roseo que constitue o revestimento do andar terreo do edificio, é um trabalho moroso por sua natureza e que não póde ser confiado senão a habeis canteiros. Temos tido difficuldade de augmentar a turma que trabalha neste serviço, por falta de operarios capazes, entretanto esperamos
para o proximomez maior produccção de serviço com a entrada de novos canteiros. (Idem, 1920-1923: p. 327).
O anonimato desses “hábeis canteiros” frente aos nomes de Sartorio e De Giusti,
ou também no caso das esculturas da torre creditadas ao escultor belga Henri Van Emelen que
aparecem na documentação nos faz levantar a questão quanto a razão da distinção desses
trabalhadores no discurso de Simonsen. Tal distinção refletia-se não só no crédito dos nomes
que eram exaltados na documentação, mas também nos vencimentos dos trabalhadores.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Na verdade, no discurso de Simonsen é possível notar que – em uma visão
estritamente econômica de mercado – a qualificação era um entrave à produção, tanto é que a
indústria foi paulatinamente substituindo profissionais qualificados por trabalhadores não
qualificados. Na construção civil isso se refletiu principalmente na arquitetura das
edificações: os ornamentos, a riqueza de detalhamento e técnica do ecletismo foi aos poucos
dando lugar à retidão simplificada do Art-déco.
Além disso, apesar do poder de barganha dentro de um cenário inchado de
diversas construções e baixa mão de obra, o discurso de Simonsen recompensava apenas os
artífices que tinham algum prestígio dentro da sociedade e não apenas pelo nível de
especialização do trabalho. Simonsen foi pioneiro em não se valer exclusivamente do discurso
da repressão, mesmo o fazendo sempre que teve oportunidade, mas de propor novas táticas de
organização empresarial frente a um movimento operário muito bem organizado. Nesse
sentido as ideias técnicas do taylorismo aliadas à uma concepção assistencialista de pacto
entre capital e trabalho foram fundamentais para que sua empresa figurasse somo um exemplo
bem sucedido de administração perante à indústria.
Por outro lado, a grande expansão do operariado urbano, antes e depois da guerra,
não é suficiente para explicar o avanço do movimento operário. Sua força depende do seu
grau de organização e não do tamanho de seus componentes.
Na análise de Sheldon Leslie Maran, a chave da compreensão desse fenômeno foi
a mudança de atitude do trabalhador estrangeiro em relação à sua participação no trabalho
organizado. Seu sonho de ascender socialmente e retornar rico à terra natal havia se
desvanecido. A maioria aceitava tornar o Brasil sua terra permanente. Atormentados pela
inflação, passaram a considerar seu envolvimento no trabalho organizado como um meio
necessário para sua sobrevivência. (MATOS, 1980)
O final da década de 1920 é fundamental para desarticulação operária, visto que
um Estado forte começa a se desenhar e a assimilar as propostas trabalhistas anteriormente
reivindicadas. A política dualista do Estado Vargas instituiu, de um lado, algumas garantias
trabalhistas que já haviam, em parte sido conquistadas pelos trabalhadores, e do outro
aparelhou e reprimiu os sindicatos e as representações operárias, de modo a garantir o
controle estatal das questões trabalhistas.
FONTES E BIBLIOGRAFIA
BELLUZZO, Ana Maria de Moraes. Artesanato, Arte e Indústria. Tese de Doutorado
apresentada a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo de São Paulo (FAU-SP) orientado pela
Professora Doutora Aracy A. Amaral, 1988.
CARRIÇO, José Marques. O Plano de Saturnino de Brito para Santos: urbanismo e
planejamento urbano entre o discurso e a prática, 2006. Disponível em:
http://www.novomilenio.inf.br/santos/h0076g.htm, acesso em: 23 de julho de 2014.
COMPANHIA CONSTRUCTORA DE SANTOS. Relatório final de construção do Palácio
da Bolsa Oficial de Café, 1923.
CORREIO PAULISTANO, Setembro de 1921.
GITHAY, Lúcia Caira. Ventos Do Mar: Trabalhadores Do Porto, Movimento Operario E
Cultura Urbana Em Santos, 1889-1914. São Paulo: Unesp, 1992.
MATOS, Paulo.1877/1920 – 43 anos de ação operária em Santos, 1980. Disponível em:
http://www.novomilenio.inf.br/santos/h0156t.htm
PROCURADORIA GERAL DO ESTADO DE SÃO PAULO. Relatórios de Construção do
Palácio da Bolsa Oficial de Café, 1920 – 1923.
SILVA, Fernando Teixeira. Operários sem patrões: trabalhadores da cidade de Santos no
entreguerras. São Paulo: Unicamp, 2003.