Post on 08-Feb-2019
Umberto Bara Bresolin
Execuo extrajudicial para satisfao de crdito
pecunirio com garantia imobiliria
Tese de doutorado
rea de concentrao: Direito Processual
Orientador: Prof. Associado Ricardo de Barros Leonel
Faculdade de Direito da Universidade de So Paulo
So Paulo
2012
2
UMBERTO BARA BRESOLIN
Execuo extrajudicial para satisfao de crdito
pecunirio com garantia imobiliria
v.1
Tese apresentada Faculdade de Direito
da Universidade de So Paulo para
obteno do ttulo de Doutor em Direito
rea de concentrao: Direito
Processual
Orientador: Prof. Associado
Ricardo de Barros Leonel
So Paulo
2012
3
Nome: BRESOLIN, Umberto Bara
Ttulo: Execuo extrajudicial para satisfao de crdito pecunirio com garantia
imobiliria
Tese apresentada Faculdade de Direito da
Universidade de So Paulo para obteno do
ttulo de Doutor em Direito
Aprovado em:
Banca Examinadora
Prof. Dr. ________________________ Instituio: _________________________
Julgamento: _____________________ Assinatura: _________________________
Prof. Dr. ________________________ Instituio: _________________________
Julgamento: _____________________ Assinatura: _________________________
Prof. Dr. ________________________ Instituio: _________________________
Julgamento: _____________________ Assinatura: _________________________
Prof. Dr. ________________________ Instituio: _________________________
Julgamento: _____________________ Assinatura: _________________________
Prof. Dr. ________________________ Instituio: _________________________
Julgamento: _____________________ Assinatura: _________________________
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Resumo
Bresolin UB. Execuo extrajudicial para satisfao de crdito pecunirio com garantia
imobiliria [tese]. So Paulo: Universidade de So Paulo, Faculdade de Direito, 2012. 244 f.
A tese tem por objetivo demonstrar a legitimidade da execuo extrajudicial dos crditos
dotados de garantia imobiliria. O modelo de execuo por quantia certa contra devedor
solvente adotado pelo Cdigo de Processo Civil brasileiro, altamente centralizado na figura do
juiz, continua a padecer de falta de efetividade mesmo aps as reformas. Tanto a atual
perspectiva terica da relao entre execuo, jurisdio e Estado, quanto a perspectiva
concreta do regramento de variados sistemas de execuo colhidos no direito estrangeiro,
permitem afirmar que deve ser superado o mito de que a execuo deva ser sempre, necessria
e exclusivamente, conduzida pelo juiz. Tais perspectivas revelam o fenmeno da minimizao
da participao do juiz no desempenho dos atos de execuo, que se desdobra nas tcnicas de
desjudicializao da execuo e da execuo extrajudicial. As manifestaes da primeira
tcnica ainda so tmidas no direito brasileiro, que, no entanto, dotado de significativo
modelo de execuo extrajudicial para satisfao de crditos pecunirios dotados de garantia
imobiliria, construdo a partir das caractersticas comuns da execuo extrajudicial
hipotecria e da execuo extrajudicial pertinente alienao fiduciria de bem imvel em
garantia. Trata-se de instrumento de natureza tpica de execuo forada, que opera por meio
executivo sub-rogatrio e conduz expropriao do bem imvel objeto da garantia, sem
necessitar de emprego de fora fsica. No se vislumbra inconstitucionalidade no mecanismo.
Os exames de seu procedimento (aspecto endgeno) e de sua interao com outros
instrumentos de tutela exercitveis perante o Poder Judicirio (aspectos exgenos) permitem
concluir que tal modelo de execuo extrajudicial til, adequado e equilibrado para tutelar o
credor sem, de outro lado, violar direitos fundamentais do devedor; razo pela qual merece
integrar, legitimamente, o arcabouo de instrumentos predispostos satisfao coercitiva das
crises de adimplemento de obrigaes de pagamento de quantia.
Palavras-chave: Desjudicializao. Execuo extrajudicial. Hipoteca. Alienao Fiduciria.
5
Rsum
Bresolin U B. Excution extrajudiciaire pour la satisfaction de crdit pcuniaire avec garantie
immobilire (thse). So Paulo: Universit de So Paulo, Facult de Droit, 2012. 244 f.
Le but de cette thse est de dmontrer la lgitimit de lexcution extrajudiciaire des crdits dots
de garantie immobilire. Le modle dexcution par somme certaine contre un dbiteur solvable
adopt par le Code de Procdure Civile brsilien, trs centralis dans la figure du juge, continue
subir le manque deffectivit, mme aprs les rformes. Lactuelle perspective thorique de la
relation entre lexcution, la juridiction et ltat comme la perspective concrte du rglement de
plusieurs systmes dexcution pris dans le droit tranger, permettent daffirmer que lon doit
surmonter le mythe que lexcution doit toujours tre ncessairement et exclusivement conduite
par le juge. Telles perspectives rvlent le phenomne de la minimisation de la participation du
juge dans la dmarche des actes dexcution, qui se dploie en techniques de djudiciarisation de
lexcution et de lexcution extrajudiciaire. Les manifestations de la premire technique sont
encore timides dans le droit brsilien, qui est cependant dot dun modle remarquable
dexcution extrajudiciaire pour la satisfaction de crdits pcuniaires munis de garantie
immobilire, construit partir des caractristiques communes de lexcution extrajudiciaire
hypothcaire et de lexcution extrajudiciaire pertinent lalination fiduciaire dun bien
immeuble en garantie. Il sagit dun instrument de nature typique de lexcution force, oprant
par un moyen excutif subrogatoire et menant lexpropriation du bien immeuble objet de
garantie, sans avoir besoin de lemploi de force physique. On nenvisage pas
linconstitutionnalit dans la dmarche. Les examens de la procdure (aspect endogne) et de son
interaction avec dautres instruments de tutelle mis em oeuvre devant le Pouvoir Judiciaire
(aspects exognes) permettent quon conclut que tel modle dexcution extrajudiciaire est utile,
convenable et quilibr pour la tutelle du crancier sans par contre, violer les droits
fondamentaux du dbiteur; cest la raison par laquelle il mrite intgrer dune faon lgitime, la
structure dinstruments prdisposs la satisfaction corcitive des crises daccomplissement
dobligations de paiement de somme.
Mots-cls: Djuridiciarisation. Excution extrajudiciaire. Hypothque. Alination Fiduciaire.
6
SUMRIO
1 Introduo ....................................................................................................................... 9
1.1 Tema a ser desenvolvido e suas limitaes ............................................................. 9
1.2 Justificativa da escolha e da importncia do tema ................................................. 12
1.3 Contribuio original da tese cincia jurdica brasileira ..................................... 20
2 Execuo por quantia, crise e questionamentos. Colocao do problema .............. 24
2.1 Execuo: conceito e escopo ................................................................................. 24
2.2 Modelo executivo brasileiro do Cdigo de Processo Civil .................................... 28
2.3 Execuo equilibrada: mxima satisfatividade e mnimo sacrifcio ...................... 31
2.4 Crise: falta de efetividade da execuo .................................................................. 32
2.5 Questionamentos acerca do monoplio judicial da execuo e da variabilidade
dos instrumentos em funo das particularidades do direito material.............................. 36
2.6 A hiptese da execuo extrajudicial para satisfao de crdito pecunirio com garantia imobiliria como instrumento legtimo ................................................................ 39
3 Estado, Jurisdio e Execuo. Contextualizao do problema .............................. 41
3.1 Estado e Jurisdio ................................................................................................. 41
3.1.1 Meios alternativos de soluo de controvrsias (ADRs) ....................................... 43
3.2 Estado e Execuo ................................................................................................. 47
3.2.1 Execuo, imperium e emprego de fora fsica ....................................................... 48
3.3 Execuo e Jurisdio ............................................................................................ 50
3.3.1 Natureza jurdica da execuo civil .......................................................................... 50
3.4 Execuo e Poder Judicirio .................................................................................. 54
4 Sistemas diversos de execuo, em funo de seu agente .......................................... 56
4.1 Agente de execuo: conceito ................................................................................ 56
4.2 Classificao dos sistemas de execuo em funo de seu agente ........................ 57
4.2.1 Sistemas de execuo, de acordo com a posio do agente na estrutura de poderes do Estado: sistemas pblico, privado (quase-privado) e misto ................................ 58
4.2.2 Sistemas de execuo, de acordo com a relao entre o agente de execuo e o juiz: agente subordinado e no-subordinado ........................................................................ 65
5 Minimizao da participao do juiz nos atos de execuo ...................................... 69
5.1 Execuo desjudicializada ..................................................................................... 69
5.1.1 Desjudicializao da execuo no direito portugus ............................................... 71
5.1.2 Notas sobre a desjudicializao da execuo em outros ordenamentos europeus ..................................................................................................................................... 76
5.1.3 Manifestaes de desjudicializao da execuo no direito brasileiro .................. 78
5.2 Execuo extrajudicial ........................................................................................... 84
7
5.2.1 Execuo extrajudicial hipotecria no direito norte-americano ............................. 85
5.2.2 Notas sobre a execuo extrajudicial de crdito dotado de garantia imobiliria em outros ordenamentos estrangeiros ...................................................................................... 92
5.2.3 Notas sobre manifestaes de execuo extrajudicial e mecanismos
assemelhados no direito brasileiro ............................................................................................ 95
5.3 Tendncia de afastar o juiz da realizao dos atos executivos .............................. 99
5.3.1 Atribuio de competncia executiva aos Tribunais Arbitrais? ........................... 100
6 Garantias e instrumentos para satisfao do crdito imobilirio inadimplido .... 103
6.1 Consideraes sobre crdito imobilirio, segurana e reflexos econmicos. ...... 103
6.2 Apontamentos sobre os sistemas de financiamento imobilirio .......................... 107
6.3 Sistema Financeiro da Habitao (SFH) .............................................................. 108
6.4 Garantia hipotecria ............................................................................................. 109
6.5 Execuo extrajudicial hipotecria (art. 29 e ss. do Decreto-lei 70/66) .............. 111
6.5.1 Agente de execuo ................................................................................................. 112
6.5.2 Procedimento da execuo extrajudicial hipotecria ............................................ 114
6.5.3 Os problemas do valor mnimo para a alienao do bem hipotecado e do deficiency judgment ............................................................................................................ 119
6.6 Execuo judicial hipotecria (Lei 5.741/71) ...................................................... 123
6.6.1 Procedimento da execuo judicial hipotecria ..................................................... 124
6.7 Enfraquecimento da hipoteca ............................................................................... 127
6.8 Sistema Financeiro Imobilirio (SFI) .................................................................. 128
6.9 Alienao fiduciria em garantia de imvel ........................................................ 130
6.10 Execuo extrajudicial do imvel objeto de alienao fiduciria (art. 26 e ss. da
Lei 9.514/97) .................................................................................................................... 134
6.10.1 Agente de execuo ................................................................................................. 134
6.10.2 Procedimento de execuo extrajudicial na alienao fiduciria em garantia de imvel .................................................................................................................................. 136
6.11 Execuo judicial para satisfao do crdito garantido por alienao fiduciria de
imvel 143
7 Modelo brasileiro de execuo extrajudicial para satisfao de crdito com garantia imobiliria. .......................................................................................................... 145
7.1 Identificao e utilidade do modelo ..................................................................... 145
7.2 Pressupostos da execuo extrajudicial ............................................................... 146
7.2.1 Possibilidade jurdica ............................................................................................... 147
7.2.2 Interesse de agir ....................................................................................................... 148
7.2.3 Legitimidade ad causam ativa e passiva ................................................................ 149
7.2.4 Propositura de demanda perante o rgo competente (pressuposto de existncia) ................................................................................................................................. 153
8
7.2.5 Capacidade do demandante, personalidade do demandado e ausncia de fatores externos impeditivos (pressupostos de desenvolvimento vlido e regular). ........................ 154
7.3 Procedimento da execuo extrajudicial .............................................................. 155
7.3.1 Fase postulatria: demanda do credor e comunicao do devedor ...................... 157
7.3.2 Fase instrutria: os leiles pblicos ........................................................................ 159
7.3.3 Fase satisfativa: pagamento ao credor, transferncia de domnio e entrega de eventual saldo ao devedor ....................................................................................................... 161
7.4 Natureza executiva do instrumento ...................................................................... 162
7.4.1 Hiptese de tutela diferenciada? ............................................................................. 164
8 Constitucionalidade da execuo extrajudicial ........................................................ 167
8.1 Questionamentos sobre a constitucionalidade da execuo extrajudicial............ 167
8.2 Inocorrncia de autotutela .................................................................................... 170
8.2.1 Legitimidade da prtica de atos executivos pelo agente de execuo
extrajudicial ............................................................................................................................. 174
8.3 Observncia do devido processo legal ................................................................. 176
8.3.1 Razoabilidade da execuo extrajudicial ............................................................... 177
8.3.2 Escopo dos atos executivos. Contraditrio realizado em processo diverso e,
no mnimo, a posteriori ........................................................................................................... 181
8.3.3 Preservao do acesso Justia. Inverso do nus de demandar em juzo. ........ 184
8.4 Preservao do monoplio da ltima palavra e do monoplio da fora.
Hipteses de interveno obrigatria do Juiz. .................................................................. 186
8.4.1 Monoplio da ltima palavra .................................................................................. 186
8.4.2 Monoplio da fora (imperium) .............................................................................. 188
9 Equilbrio da execuo extrajudicial ........................................................................ 189
9.1 Aspectos endgenos ............................................................................................. 189
9.1.1 Efetiva comunicao ao devedor ............................................................................ 189
9.1.2 Direito potestativo do devedor de purgar a mora em razovel lapso temporal ... 192
9.1.3 Publicidade e segurana nas hastas pblicas .......................................................... 194
9.1.4 Valor mnimo para arrematao e extino da dvida ........................................... 198
9.2 Aspectos exgenos: a interao com o Poder Judicirio ..................................... 203
9.2.1 Defesa do devedor at a expropriao .................................................................... 205
9.2.2 Defesa do devedor depois da expropriao ............................................................ 212
9.2.3 Inaplicabilidade do art. 53 do Cdigo de Defesa do Consumidor ........................ 216
9.2.4 Atos de desalojamento do ocupante ....................................................................... 219
10 Concluses ................................................................................................................... 221
Bibliografia ......................................................................................................................... 226
9
1 Introduo
1.1 Tema a ser desenvolvido e suas limitaes
Procura-se sustentar, na tese, a legitimidade da execuo extrajudicial dos crditos
dotados de garantia imobiliria.
Trata-se de mecanismo que costuma causar perplexidade, pois, execuo
extrajudicial que , pode proporcionar a satisfao coercitiva do credor por meio de
procedimento que nasce e pode se extinguir sem ligao com os tribunais.
Tal caracterstica suscita os mais diversos questionamentos, de ordem terica e de
ordem prtica, sobretudo por distanciar-se muitssimo do monoplio judicial da execuo
que caracteriza o modelo executivo consagrado pelo Cdigo de Processo Civil ptrio. Seria
possvel a um no-juiz praticar atos de execuo? Quais razes justificariam a adoo de
tal tcnica? Sua natureza seria mesmo de execuo forada? Padeceria o instrumento de
inconstitucionalidades? Como os atos devem ser desempenhados, no curso do
procedimento da execuo extrajudicial em si mesmo considerado (aspectos endgenos),
para permitir-se a satisfao do credor sem exagerado sacrifcio do devedor? Como se deve
dar a interao entre tal mecanismo e o Poder Judicirio (aspectos exgenos)?
Para enfrentar e dar resposta a questionamentos de tal ordem, necessrio partir-se
da contextualizao do tema em panorama mais amplo, e a isto se dedica a primeira parte
do trabalho.
Principia-se por traar as linhas gerais da execuo por quantia certa contra devedor
solvente no Cdigo de Processo Civil brasileiro, altamente centralizada na figura do juiz, e
apontar a falta de efetividade de que continua a padecer, mesmo depois das recentes
reformas processuais. Na busca de solues para o problema, questiona-se a suficincia do
monoplio judicial da execuo e cogita-se da utilidade de instrumentos de tutela que,
10
atendendo s particularidades do direito material em crise, prescindam, para a satisfao
coercitiva do credor, da necessria interveno do juiz.
As respostas a tais indagaes no podem ser buscadas sem breves consideraes a
respeito da relao entre execuo, jurisdio, Poder Judicirio e Estado; tampouco podem
ser adequadamente perseguidas sem a referncia a variados sistemas de execuo, colhidos
no direito estrangeiro contemporneo, classificados em funo da insero do agente de
execuo na estrutura de poderes do Estado e de sua subordinao em relao ao juiz.
As reflexes que podem ser feitas a partir de tais elementos permitem identificar o
fenmeno de minimizao da participao do juiz no desempenho dos atos de execuo,
manifestado por duas tcnicas distintas, de desjudicializao da execuo e de execuo
extrajudicial.
Para melhor compreender o fenmeno, mas sem perspectiva de esgotamento do
tema, so tecidas notas sobre a execuo desjudicializada, representada, sobretudo, pelo
modelo portugus institudo aps as reformas legislativas havidas em 2008; e sobre a
execuo extrajudicial, tomando-se como referncia, especialmente, a execuo
extrajudicial hipotecria largamente praticada nos Estados Unidos da Amrica.
Com os olhos voltados ao direito brasileiro, so trazidos breves comentrios sobre
as tmidas manifestaes de desjudicializao; bem como, de outro lado, sobre as
manifestaes mais intensas de execuo extrajudicial, tcnica adotada por expressiva
quantidade de diplomas legais, para diversas situaes de direito material, sempre com o
escopo de sanar crises de adimplemento e proporcionar a satisfao do credor por meio de
atos realizados fora do mbito do Poder Judicirio.
Referidos assuntos, abordados nos captulos iniciais, tm por escopo, to-somente,
apontar as coordenadas em que se insere o ncleo central da tese. No se buscar, em tais
captulos, nem anlise profunda, nem crtica conclusiva. O objetivo de enfrent-los to
somente o de demonstrar e assim concluir a primeira parte da tese - que, atualmente, e
em muitas partes do mundo, est superado o mito de que a execuo deva ser necessria e
exclusivamente conduzida pelo juiz, como se esta fosse a nica formatao que garantisse o
11
respeito ao devido processo legal e proporcionasse o desejvel equilbrio entre os
interesses contrapostos do exeqente e do executado.
Firmada tal premissa, passa-se a estudar, na segunda parte do trabalho, de maneira
mais minudente, a execuo extrajudicial para satisfao de crdito pecunirio com
garantia imobiliria.
Discorre-se, em primeiro lugar, para melhor compreenso das peculiaridades da
relao jurdica material carente de tutela, sobre aspectos do financiamento imobilirio e
suas garantias, notadamente a hipoteca e a alienao fiduciria de imvel. Na sequncia,
analisam-se, separadamente, as principais caractersticas dos instrumentos para a satisfao
coercitiva postos disposio do credor na hiptese de inadimplemento e descrevem-se as
linhas gerais da execuo extrajudicial hipotecria, da execuo judicial hipotecria (pela
importncia de sua comparao com a anterior) e da execuo extrajudicial da alienao
fiduciria de bem imvel em garantia.
Passam a ser examinadas, ento, as caractersticas comuns das disciplinas da
execuo extrajudicial hipotecria e da execuo extrajudicial da alienao fiduciria de
bem imvel em garantia, caractersticas comuns estas que compem o que consideramos
ser o modelo brasileiro de execuo extrajudicial para satisfao de crdito pecunirio
com garantia imobiliria.
No cuida o trabalho de analisar, de maneira particularizada e exaustiva, as
peculiaridades das espcies representadas pelos procedimentos descritos no Decreto-lei
70/66 ou na Lei 9.514/97. Pelo contrrio, privilegia-se abordagem generalizante, pela
perspectiva do aludido modelo, que transcende diferenas pontuais e permite extrair, como
objeto de estudo, no plano processual, a tcnica de satisfao coercitiva de crdito
pecunirio dotado de garantia imobiliria sem o necessrio concurso da autoridade
judiciria.
Aprofunda-se a tese, pois, na investigao de tal modelo de execuo extrajudicial,
tendo em vista os fundamentos assentados nos captulos anteriores.
12
Para melhor compreender referido modelo, busca-se enquadrar seus pressupostos
aos mesmos que a doutrina tradicional atribui execuo judicial e analisar seu
procedimento em funo das mesmas fases em que se pode dividir a execuo judicial.
Examina-se, ainda, a constitucionalidade da execuo extrajudicial em tela, passando em
revista as principais crticas que a ela costumam ser dirigidas e as respostas que podem
lhes ser dadas.
Os aspectos mais sensveis do modelo, seja em ateno aos atos de seu
procedimento (aspectos endgenos), seja em vista de sua relao com o Poder Judicirio
(aspectos exgenos), so destacados e analisados, sempre com o propsito de sua
compatibilizao aos paradigmas impostos pelo devido processo legal.
Conclui-se, ao final, que tal modelo de execuo extrajudicial, verdadeira espcie
de execuo forada adaptada s particularidades de certas relaes jurdicas de direito
material, representa instrumento juridicamente til, adequado e equilibrado para tutelar o
credor sem, de outro lado, violar direitos fundamentais do devedor.
1.2 Justificativa da escolha e da importncia do tema
to conhecida quanto verdadeira a constatao de que a cincia processual tende
a ocupar-se mais dos fenmenos ocorridos no processo ou fase de conhecimento do
que das manifestaes que ocorrem in executivis1.
Grande foi o esforo da doutrina para enquadrar o estudo da execuo civil aos
cnones dogmticos da cincia do direito processual civil2.
No basta, contudo, dedicar tratamento cientfico execuo civil. Superada a
chamada fase da autonomia do direito processual, preciso compreend-la e examin-la
1 R. PERROT, Les enjeux de lexcution des decisions judiciaries en matire civile, in L excution des
dcisions de justice en matire civile, 1998, p. 9. 2 No direito brasileiro, merece destaque a obra Execuo civil, de C. R. DINAMARCO, publicada pela primeira
vez em 1.973.
13
luz de viso instrumentalista, para que se legitime como instrumento de pacificao de
pessoas e eliminao de conflitos com justia 3
.
Nesse contexto, em poca de forte preocupao com a efetividade e intensa
valorizao da tempestividade da tutela jurisdicional4, redobrou-se a ateno com a
atividade executiva, conhecido calcanhar de Aquiles do processo5. A opinio corrente era a
de que a execuo estava desequilibrada, em benefcio do executado, exageradamente
protegido. Dificilmente proporcionava ao exeqente a satisfao de seu crdito, muito
menos dentro de um prazo razovel. Os efeitos deletrios da execuo lenta e pouco
efetiva, vale destacar, atingem no apenas o exeqente que, no mnimo, demora muito
para ter satisfeito o seu direito-, como maculam a imagem da Justia e trazem
conseqncias danosas para a economia.
A preocupao, a propsito, estava longe de ser exclusividade ptria. Cortes
Internacionais reconheceram a efetividade da execuo como corolrio do direito
fundamental a um julgamento justo (fair trial); na Europa e na Amrica, comparavam-se
sistemas e buscavam-se alternativas para que o crdito pecunirio inadimplido fosse
coercitivamente satisfeito no menor tempo possvel, sem, de outro lado, violar direitos
fundamentais do devedor6.
No direito brasileiro, a soluo haveria de passar no apenas pela reformulao das
regras que disciplinavam a execuo, mas, principalmente, por uma releitura do artigo 620
do Cdigo de Processo Civil, releitura que atendesse ao princpio da proporcionalidade e
capacitasse a execuo a proporcionar a efetividade que dela se espera.
Quanto reformulao das regras, sobrevieram as sucessivas reformas do Cdigo
de Processo Civil (no que concerne execuo, merecem especial destaque as Leis
3 A observao de C. R. DINAMARCO, que, a partir da terceira edio da obra supra referida (1.993),
adaptou-a para revisitar os institutos e conceitos executivos luz das novas tendncias do direito
processual (Execuo civil, 1994, p. 28). 4 A ponto de ser alada categoria de garantia constitucional (Art. 5, LXXVIII, CF).
5 Nas palavras de C. A. CARMONA, a execuo transformou-se em tormento a que o credor submetido
impiedosamente, sujeitando-o a toda sorte de azares, mortificaes e incidentes que eternizam o processo e
fazem tardar a tutela jurisdicional (apresentao do livro de D. K. BAUMHL, A nova execuo civil: a
desestruturao do processo de execuo, 2006, p.xiii). 6 V., dentre tantos estudos a respeito: COUNCIL OF EUROPE, The enforcement of court decisions:
recommendation Rec (2003) 17 and explanatory memorandum legal issues, 2004, e K. HENDERSON et al..
Regional best practices: enforcement of court judgments. Lessons learned from Latin America, 2004.
14
11.232/2005 e 11.382/2006), e, atualmente, cogita-se de um novo Cdigo de Processo
Civil. Caminhou-se, e continua a se caminhar, no sentido de dotar o Estado-Juiz de um
instrumento mais eficiente para a satisfao das crises de adimplemento.
O problema, no entanto, no reside tanto (ou no reside apenas) nas deficincias do
processo, compreendido como instrumento estatal de soluo de controvrsias7, seno nas
deficincias do prprio Estado e, notadamente, do Poder Judicirio.
Vivenciamos, sabido, momento mundial de grande valorizao dos meios
alternativos de resoluo de litgios, usualmente designados pela sigla ADR (alternative
dispute resolution), impulsionados pelas crises do Poder Judicirio e do Processo, a ponto
de se pensar em inverso dos paradigmas na Justia reduzindo-se, no novo cenrio, o
papel da jurisdio estatal ao seu ncleo duro de julgar quando haja dissdio8, ou
combinando-a com outras tcnicas ditas alternativas9.
No atual contexto, e sempre atentando para a enorme diversidade de relaes
jurdicas travadas no plano material as quais, embora possam ser agrupadas, sob
perspectiva jurdica, em funo da espcie de obrigao que encerram (na hiptese em
exame, obrigao de pagamento de quantia), so, sob vrios outros aspectos, muitssimo
diferentes entre si -, ganha enorme relevo a cogitao a respeito de se possvel, ao menos
em certas situaes, minimizar a participao do juiz tambm no desempenho dos atos de
execuo, ou mesmo elimin-la, reservando-se a interveno do magistrado s hipteses
nas quais alguma controvrsia lhe for apresentada para dirimir ou nas que exigirem o
emprego efetivo da fora.
Tal cogitao aponta para duas tcnicas que, embora tenham fortssimo ponto de
contato ambas afastam, da execuo, o juiz devem ser distinguidas.
7 J advertia J. C. BARBOSA MOREIRA, a respeito da efetividade da tutela jurisdicional, que no deve o
processualista incidir na ingenuidade de pensar que pode desatar todos os ns com meros instrumentos
prprios de seu ofcio (Notas sobre o problema da efetividade do processo, Temas de direito processual,
1984, p. 206). 8 P. COSTA E SILVA, A nova face da Justia: os meios extrajudiciais de resoluo de controvrsias, 2009, pp.
30-31. 9 M. TARUFFO, Un'alternativa alle alternative: modelli di risoluzione dei conflitti, in RePro, n. 152, 2007, pp.
328-330.
15
A execuo desjudicializada no deixa de ser judicial, posto que realizada nos
Tribunais, mas com reduzida participao do juiz: em algum grau, em algum momento no
curso de seu procedimento, haver necessrio concurso do juiz. Desdobra-se numa mirade
de hipteses, e abrange desde o emprego, para a realizao de atos de execuo, de agentes
de execuo no pertencentes aos quadros do Poder Judicirio, at a atribuio, em
variados graus, de autonomia e iniciativa aos agentes para realizar atos de execuo sem
prvia ordem judicial.
A execuo extrajudicial, por seu turno, desenvolve-se fora dos Tribunais, pode
iniciar-se e culminar na entrega do bem da vida ao exeqente sem que, em momento
algum, o juiz tenha sido necessariamente chamado a intervir: o afastamento do magistrado
potencialmente total e sua participao apenas ocorre em carter eventual, sobretudo na
hiptese de algum litgio lhe ser apresentado para dirimir ou ainda, como regra, para
autorizar o uso da fora para remover a resistncia do devedor recalcitrante.
A primeira tcnica, de desjudicializao da execuo, atribudos os respectivos
atos, sob os mais diversos regimes e com diferentes intensidades, a agentes de execuo,
vem sendo empregada, de um modo geral e guardadas as peculiaridades com que se
apresenta em cada pas, de maneira cada vez mais intensa na Europa Continental.
O mais recente e emblemtico exemplo de desjudicializao o de Portugal, que,
j desde 2003, mas com especial intensidade a partir de 2008, restringiu as competncias
primrias do tribunal de execuo a um mnimo possvel10
e atribuiu o desempenho dos
atos de execuo ao agente de execuo, profissional liberal em regra escolhido pelo
exeqente e que desempenha suas atividades com razovel autonomia em relao ao juiz,
mas sem romper o vnculo entre o Tribunal e o processo em que se desenvolve a execuo.
As poucas manifestaes deste fenmeno no Direito Brasileiro so muito tmidas e
pouco examinadas. Em que pesem as recentes reformas processuais terem previsto
mecanismos que, dependendo da largueza que se d ao conceito, podem at ser apontados
como reveladores de alguma desjudicializao da execuo11
, certo que o modelo
10 P. COSTA E SILVA, A reforma da aco executiva, 2003, p. 12.
11 Referimo-nos Lei 11.382/2006, especialmente participao de agentes particulares na alienao do bem
penhorado (art. 685-C e 689-A, CPC).
16
desenhado pelo Cdigo de Processo Civil tem como caracterstica marcante a conduo da
execuo pelo juiz, que determina os atos a praticar e os controla de maneira intensa e
prxima.
Desjudicializao mais profunda pretendida na reforma da execuo fiscal, na
qual se pretende atribuir ao fisco, independentemente de ordem judicial, autorizao para
identificar bens penhorveis no patrimnio do devedor e para realizar constrio
preparatria em mbito administrativo12
.
A segunda tcnica, execuo extrajudicial, tambm verificada no direito
estrangeiro, sobretudo para satisfao de crditos dotados de garantia imobiliria. Destaca-
se o direito Norte Americano como a principal referncia de execuo extrajudicial
hipotecria. O mecanismo, admitido na grande maioria dos Estados, recentemente foi
objeto de profundas discusses - sobretudo por sua estreita relao com os desdobramentos
da chamada crise do sub-prime -, o que motivou reflexes interessantes sobre aspectos de
seu procedimento e alternativas para que se mantenha eficiente como instrumento de
satisfao do credor sem, de outro lado, prejudicar excessivamente o devedor.
O Direito ptrio contempla, e h no pouco tempo, diversos mecanismos que
ressalvadas as peculiaridades de cada um e as particularidades das situaes materiais que
procuram tutelar se desencadeiam em razo do inadimplemento de obrigao de
pagamento de quantia e tm por escopo a satisfao do credor por meio de atos de invaso
da esfera patrimonial do devedor e alienao de bem predeterminado, independentemente e
at mesmo contra a vontade deste ltimo, atos esses integrantes de procedimento que pode
ter seu curso totalmente fora do mbito do Poder Judicirio, vale dizer, pode iniciar-se e se
encerrar, com a entrega do bem da vida ao credor, sem que, em momento algum, o juiz
tenha sido chamado a intervir.
A mais relevante figura de execuo extrajudicial no Direito Brasileiro pode ser
identificada, a nosso ver, no modelo representado pelas caractersticas comuns dos
procedimentos disciplinados pelos artigos 29 e seguintes do Decreto-lei 70/66 e 26 e
seguintes da Lei 9.514/97, voltados satisfao de crditos dotados de certas modalidades
12 PL 5080/2009.
17
de garantia imobiliria, respectivamente, hipoteca e alienao fiduciria. Trata-se de
instrumento de grande relevncia social, intimamente relacionado ao financiamento
imobilirio na medida em que empregado, no mais das vezes, em razo de contratos
firmados com o objetivo de aquisio de imveis e largo emprego prtico.
Muitos estudiosos, no entanto, vem tal tcnica com reservas. Nas bem colocadas
palavras de C. A. CARMONA13
a expresso execuo extrajudicial sempre causou horror aos processualistas. Como conciliar a ideia
de um processo justo e quo (o devido processo legal, na expresso preferida dos brasileiros) com a
possibilidade de expropriao fora do controle direto do juiz?
Expressiva parcela da doutrina ptria considera mesmo inconstitucional a execuo
extrajudicial.
O repdio idia das execues desjudicializadas e, sobretudo, das extrajudiciais,
pode se explicar, ao menos em parte, por razes jurdicas, polticas, culturais e histricas.
Na conscincia jurdica nacional ainda esto fortemente arraigadas a concepo de
monoplio estatal da jurisdio e a crena de que, num Estado Democrtico de Direito,
deva a execuo ser necessariamente conduzida pelos juzes, de certo modo abaladas pelas
tcnicas referidas. Se o instituto da arbitragem j no foi de fcil aceitao, mais difcil
ainda conceber que a atividade de execuo, em ltima anlise legitimada pela autoridade
do Estado, possa ser desempenhada, em alguma medida, por particulares.
O ambiente poltico em que emergiram os diplomas legais que regulamentaram a
alienao fiduciria em garantia de bens mveis (art. 66 da Lei 4.728/65 e Decreto-lei
911/69) e a execuo extrajudicial hipotecria (Decreto-lei 70/66) motivou crticas no
sentido de que os instrumentos seriam igualmente antidemocrticos, reflexo do
autoritarismo do regime militar, e que caracterizariam verdadeiros privilgios outorgados
s poderosas instituies financeiras.
13 apresentao do livro de E. H. YOSHIKAWA, Execuo extrajudicial e devido processo legal, 2010, p.xi.
18
Do ponto de vista cultural, parece prevalecer, no meio social ptrio, certa tendncia
de proteo do devedor, fazendo com que muitos vejam com pouca simpatia instrumentos
cleres e eficazes de invaso patrimonial e satisfao do crdito14
.
Tambm razes histricas podem ser invocadas para justificar a desconfiana a
respeito da juridicidade de tais figuras. Examinada em sua evoluo, a estatalizao da
execuo - que se ops autotutela -, assim como sua patrimonializao, sem dvida
representou decisivo passo no sentido da humanizao da execuo e na busca de seu
equilbrio: a conduo da execuo por autoridade desinteressada e imparcial, amparada
pelo imperium do Estado e, muitas vezes, investida de jurisdio, possibilitou, de um lado,
o desempenho dos atos de agresso do patrimnio do devedor sem abusos por parte do
credor e, de outro, permitiu a satisfao do credor no detentor de fora prpria15
.
Questiona-se, por esse vis, se o afastamento do Juiz da prtica dos atos de execuo no
representaria involuo, retorno aos tempos de autotutela, de prevalncia do mais forte e
de solapamento de garantias conquistadas pelo devedor ao longo dos tempos.
Em sua aplicao concreta, identificam-se na jurisprudncia, depois de algumas
vacilaes iniciais, as tendncias de se decidir pela constitucionalidade da execuo
extrajudicial16
e de reconhecer a legalidade de seu procedimento, desde que observados
certos contornos e limites.
Pretendemos demonstrar, na tese, que a execuo extrajudicial, representada
especificamente pelo referido modelo aplicvel aos crditos dotados de garantia imobiliria
14 Trata-se da cultura do no pagamento, referida por K. HENDERSON et al. como fenmeno comum em
pases latino-americanos, caracterizada pela aceitao social do inadimplemento e do repdio aos meios de
satisfao coercitiva do dbito, situao oposta que se verificaria na Dinamarca, onde o inadimplemento,
segundo o autor, socialmente inaceitvel e as execues, menos freqentes (Regional best practices:
enforcement of court judgments. Lessons learned from Latin America, 2004, pp. 20-21). Embora o estudo em
questo tenha se limitado a Argentina, Mxico e Peru, parece-nos que o fenmeno da cultura do no
pagamento tambm se manifestaria no Brasil. Ressalva-se, no entanto, que a impresso subjetiva e carece
de comprovao emprica. Situao anloga, na qual conhecidos economistas brasileiros apontaram, em
ensaio, suposta tendncia do Poder Judicirio Brasileiro em favorecer o devedor, mereceu contundente
crtica de J. C. BARBOSA MOREIRA, justamente por terem se valido de argumento emprico sem apoio
emprico (Dois cientistas polticos, trs economistas e a justia brasileira, Temas de direito processual,
2007, esp. p. 412). 15
C. R. DINAMARCO, Execuo Civil, 1994, pp. 29-34. 16
O assunto, no entanto, acaba de voltar baila, diante do recente reconhecimento da repercusso geral da
questo da constitucionalidade da execuo extrajudicial do Decreto-lei 70/66 (STF, AI 771.770 RG, Rel.
Min. Dias Toffoli, j. 04.03.2010), devendo o mrito ser apreciado por ocasio dos julgamentos, ora em curso,
dos Recursos Extraordinrios 556.520, de relatoria do Min. Marco Aurlio, e 627.106, relator Min Dias
Toffoli. Ver nota 590 abaixo.
19
muito embora, tal qual a tcnica de desjudicializao, por si s no seja suficiente para
resolver o problema da falta de efetividade da execuo - , no mnimo, capaz de contribuir
para a persecuo da mxima satisfatividade sem, de outro lado, invadir desnecessria ou
exageradamente o patrimnio do devedor e nem ofender garantias insculpidas na
Constituio Federal.
Demais disso, numa perspectiva meta-jurdica e tendo em vista sobretudo os
financiamentos imobilirios campo de maior incidncia da tcnica de execuo
extrajudicial, a qual, contudo, a ele no se restringe -, a execuo extrajudicial que ora se
examina revela mecanismo que, se conhecido, respeitado e bem aplicado, tende a ser til
sociedade, no apenas por permitir o fluxo de retorno e a higidez do sistema de crdito;
mas por proporcionar celeridade na retomada do imvel, evitando que se deteriore, e
tambm por propiciar ambiente idneo e de baixo custo para novas alienaes, por valor
adequado, para novos interessados, do imvel objeto da garantia, pelo qual o devedor
deixou de pagar17
.
Por isso, a nosso ver, aludida modalidade de execuo extrajudicial justifica-se sob
o aspecto jurdico e merece integrar, legitimamente, o arcabouo de instrumentos
predispostos satisfao das crises de adimplemento de obrigaes de pagamento de
quantia.
certo que a existncia de instrumentos apropriados para a rpida recuperao do
crdito pecunirio inadimplido, por meio de tcnicas adequadas s particularidades do
direito material e que, de outro lado, no invadam injusta e desproporcionalmente o
patrimnio do devedor, de destacada relevncia no ordenamento jurdico de um pas.
Seus reflexos, por certo, se espraiam para alm do fenmeno estritamente jurdico,
so salutares para a economia e para a sociedade como um todo.
17 A importncia de que a disciplina da execuo extrajudicial, no mbito dos financiamentos imobilirios,
no se restrinja ao conflito entre credor e devedor, mas seja examinada para alm da dicotomia entre sistemas
defaulter-friendly, que denotam maior preocupao com os devedores, e os tidos por lender-friendly, que
privilegiam a satisfao dos crditos; de modo a levar em conta interesses mais amplos da sociedade,
destacada por Y. LAGOS, Fixing a broken system: reconciling state foreclosure law with economic realities,
in Tennessee Journal of Law and Policy, 7, 2011, pp. 90-94.
20
Da a importncia de que sejam investigados.
1.3 Contribuio original da tese cincia jurdica brasileira
Embora de h muito vigente no direito ptrio a execuo extrajudicial hipotecria
disciplinada pelo Decreto-lei 70/66, mesmo no sendo recente a execuo extrajudicial
relacionada alienao fiduciria de bem imvel regida pela Lei 9.514/97, e a despeito das
alentadas obras que se dedicaram ao exame das respectivas modalidades de garantia sob o
prisma do direito material, poucos estudos cientficos ocuparam-se de investigar
especificamente o instrumento pelo qual se satisfaz coercitivamente o respectivo crdito
vale dizer, a figura processual da execuo extrajudicial para satisfao de crdito com
garantia imobiliria-.
Vieram a lume, nas ltimas dcadas, artigos jurdicos que, com a profundidade que
lhes prpria, dedicaram-se ao tema. Versaram, de incio, sobre a execuo extrajudicial
hipotecria, e, sobretudo a partir da segunda metade da dcada de noventa, sobre a
execuo extrajudicial relacionada alienao fiduciria em garantia de bem imvel.
Em sua grande maioria, tais artigos sustentaram, com argumentos ora mais ora
menos slidos, a inconstitucionalidade da execuo extrajudicial. Por concepo que,
como todas, fruto de sua poca, entendia-se que a atribuio ao juiz do desempenho dos
atos de execuo representava conquista histrica que assegurava sua humanizao e seu
equilbrio. A perspectiva de afastar, da execuo, o juiz, era normalmente vista como
retrocesso aos tempos de autotutela como e ameaa ao devido processo legal.
Dentre as obras acadmicas mais alentadas sobre o tema, merecem destaque as
dissertaes de mestrado elaboradas por E. H. YOSHIKAWA18
, defendida na Faculdade de
Direito da Universidade de So Paulo, e por V. L. DENARDI19
, apresentada na Pontifcia
Universidade Catlica de So Paulo. Ambas contrrias execuo extrajudicial, a primeira
18 Publicada, em verso comercial, sob o ttulo Execuo extrajudicial e devido processo legal, em 2010.
19 Publicada, em verso comercial, sob o ttulo Execuo judicial e extrajudicial no Sistema Financeiro da
Habitao: Lei 5.741/1971 e Dec.-lei 70/1966, em 2010.
21
de forma categrica20
, a segunda, que cuida exclusivamente da execuo extrajudicial
hipotecria, conclamando a novas reflexes para ajustes procedimentais na disciplina
preconizada pelo Decreto-lei 70/6621
.
Merecem especiais menes, ademais, a dissertao de mestrado de lavra do
advogado brasileiro S. GARSON, intitulada Desjudicializao da Execuo Hipotecria
como Meio Alternativo de Recuperao de Crditos, defendida em 2006, na Faculdade de
Direito da Universidade de Coimbra, em Portugal; e a obra de S. J. MARTINS, denominada
Execues Extrajudiciais de Crditos Imobilirios, publicada em 2007, que passou em
revista as execues extrajudiciais da Lei de Condomnios e Incorporaes, do Decreto-lei
70/66 e da Lei 9.514/97. Ambas favorveis execuo extrajudicial, a primeira invocando
subsdios do direito luso e espanhol para defender a viabilidade da desjudicializao da
execuo hipotecria22
e a segunda enquadrando a execuo extrajudicial como verso
moderna da autotutela23
.
Deve ser destacada, ainda, a tese de doutoramento de F.P. RIBEIRO, intitulada
Desjudicializao da execuo civil, defendida na Pontifcia Universidade Catlica de
So Paulo aos 7 de agosto de 2012, quando o presente trabalho j caminhava para ser
concludo. Na alentada tese, sustenta a autora que a tutela executiva pode ser realizada
fora do mbito do Poder Judicirio e prope a desjudicializao da execuo com base
em um relevante estudo de direito estrangeiro, principalmente o portugus24
,
propugnando que seja a atividade executiva, no que concerne s obrigaes de pagamento
de quantia certa fundada em ttulo judicial ou extrajudicial, delegada ao tabelio de
protestos, sugerindo projeto de lei para implementao de tal proposta.
20 As execues extrajudiciais so inconstitucionais, por ofensa ao devido processo legal, ao modelo
processual brasileiro, pois: (a) representam delegao a terceiros (inclusive o prprio credor) da atividade
executiva, de natureza jurisdicional, sujeita ao monoplio dos rgos estatais pertencentes ao Poder
Judicirio (= reserva de jurisdio); (b) configuram modalidade de autotutela, que permite ao credor ser
juiz em causa prpria, privando a parte contrria da possibilidade de um tratamento justo (E. H.
YOSHIKAWA, Execuo extrajudicial e devido processo legal, 2010, p. 138). 21
Conclui V. L. DENARDI ser inconstitucional a execuo extrajudicial hipotecria, pela ausncia de
garantias necessrias para a imparcialidade do agente fiducirio e por desrespeito ao princpio do devido
processo legal (Execuo judicial e extrajudicial no Sistema Financeiro da Habitao: Lei 5.741/1971 e
Dec.-lei 70/1966, 2010, p. 208), mas prope que todos se debrucem sobre o tema para novas reflexes e, se
for o caso de no suprimir do ordenamento, ao menos adequar o procedimento aos preceitos constitucionais
para que no seja instrumento de arbitrariedades e injustias (ob. cit., p. 129). 22
S. GARSON, A desjudicializao da execuo hipotecria como meio alternativo de recuperao de
crditos, Dissertao (Mestrado), 2006, esp. pp. 138-144. 23
S. J. MARTINS, Execuo extrajudicial de crditos imobilirios, 2007, p. 55. 24
F.P. RIBEIRO, Desjudicializao da execuo civil, Tese (Doutorado), 2012, p. 261.
22
A tese ora apresentada difere consideravelmente dos referidos estudos cientficos
retro apontados.
Em primeiro lugar, por sua atualidade. No irrazovel pensar, sobretudo nesta
segunda dcada do Sculo XXI, estarmos vivenciando momento de verdadeira inverso
dos paradigmas na Justia, no qual os Tribunais Estatais, onde se expressa o Poder
Judicirio, representam no mais o nico, e sim mais um dos caminhos para o acesso
Justia25
, essencialmente de retaguarda. Especificamente no campo da execuo civil, os
trabalhos acadmicos contemporneos no podem prescindir de consideraes sobre o que
se convencionou chamar de desjudicializao da execuo cujo exemplo mais marcante
o da verdadeira revoluo operada em Portugal na primeira dcada do sculo XXI e
conseqente afastamento do juiz do desempenho dos atos de execuo, afastamento este
que se radicaliza na figura da execuo extrajudicial.
Ao lado desse aspecto, assiste-se no direito brasileiro, sobretudo por fora das
recentes reformas do Cdigo de Processo Civil, ruptura de aspectos formais atinentes
execuo civil; quer no que tange ao processo - generalizando-se o emprego do processo
sincrtico, no qual a execuo representa apenas fase em que se busca a satisfao de
deciso judicial que reconhea a existncia de obrigao de fazer, no fazer, entregar coisa
ou pagar quantia (art. 475-N, I, CPC) -, quer no que concerne aos meios executivos,
incentivando-se a aplicao de meios executivos coercitivos sobretudo na persecuo da
tutela especfica; tudo na caminhada em direo efetividade do processo.
Neste cenrio, ganha fora a busca por instrumentos de execuo que sejam
adequados s particularidades da relao jurdica de direito material, correspondendo
aquele investigado na tese, segundo pensamos, a um desses instrumentos, vocacionado a
dar efetividade satisfao de crditos pecunirios dotados de garantia imobiliria
decorrentes dos negcios jurdicos aos quais se aplica, notadamente os de financiamento
imobilirio.
25 P. COSTA E SILVA, A nova face da Justia: os meios extrajudiciais de resoluo de controvrsias, 2009,
pp. 19-21.
23
Em segundo lugar, verifica-se o atributo de originalidade na presente tese pela
forma de abordagem. Pensamos ser necessrio compreender o tema da execuo
extrajudicial em contexto mais amplo. Para superar o mito de que, num Estado
democrtico de Direito que respeite o devido processo legal, a conduo da execuo
deva ser necessariamente atribuda somente ao juiz, reputamos ser imprescindvel
revisitar, sob tica contempornea e luz de elementos colhidos tambm no direito
estrangeiro, os conceitos de jurisdio e de execuo, bem como reexaminar sua relao
com o Estado, com o Poder Judicirio e com as figuras dos juzes.
Em terceiro lugar, tambm original a presente tese pela delimitao do objeto da
investigao. Circunscreve-se, para anlise mais detida, aquilo que se identifica, no plano
processual, como modelo brasileiro de execuo extrajudicial para satisfao de crdito
com garantia imobiliria. Descrevem-se as linhas gerais de seus pressupostos e de seu
procedimento relacionando-as ao modelo tradicional de execuo judicial para satisfao
de quantia certa contra devedor solvente do Cdigo de Processo Civil-, examina-se sua
interao com a Jurisdio Estatal e interpreta-se sua disciplina de modo a se concluir pelo
o equilbrio de tal instrumento, adequado para sanar com eficincia as crises de
adimplemento verificadas no mbito das relaes jurdicas de direito material a que se
aplica.
Por todos esses aspectos, a tese oferece contribuio original cincia jurdica
brasileira.
24
2 Execuo por quantia, crise e questionamentos. Colocao do
problema
2.1 Execuo: conceito e escopo
Numa primeira aproximao da noo de execuo, registra C. R. DINAMARCO que
executar dar efetividade e execuo efetivao26
. Sob esta expresso, compreendida
em seu sentido mais amplo, enquadram-se fenmenos os mais diversos, desde os situados
fora do universo jurdico, at aqueles que, no mundo do direito, identificam-se com a
observncia de algum preceito jurdico decorrente da lei ou do contrato27
.
No nos interessa examin-la sob espectro to largo, assim como tambm no nos
interessa a denominada execuo imprpria28
, tcnica relacionada notadamente atos de
documentao e registro para produo de efeitos de certos provimentos decorrentes de
tutela constitutiva29
.
Pretendemos cuidar, isto sim, da execuo forada ou, mais propriamente, de
certo aspecto da execuo forada-, voltada satisfao de crdito pecunirio dotado de
garantia imobiliria, com o escopo de demonstrar a adequao e o equilbrio da tcnica de
persegui-la de modo extrajudicial.
26 Instituies de direito processual civil, v. IV, 2009, p. 31.
27 Dentre os primeiros, observa C. R. DINAMARCO que executa-se um projeto de vida, um projeto econmico
ou arquitetnico, executa-se uma composio musical, executam-se idias e programas em geral (...); na
segunda categoria, emprega-se o vocbulo execuo tanto para designar os atos com que o sujeito cumpre
por vontade prpria e espontnea um dever ou obrigao (a execuo dos contratos), como aqueles com que
o Estado-juiz lhe impe os resultados que ele prprio deveria ter produzido e no produziu (execuo por
sub-rogao) (Instituies de direito processual civil, v. IV, 2009, p. 34). Na mesma linha, observa J.
LEBRE DE FREITAS que o termo execuo engloba realidades to diversas como grande parte do exerccio
da funo administrativa, a distribuio dos legados duma herana, um acto de registro civil, comercial ou
predial ordenado por sentena, o cumprimento duma obrigao contratual, a celebrao de um contrato
prometido (A aco executiva depois da reforma da reforma, 2009, p. 9, nota 7). 28
Denomina-se execuo imprpria, segundo E. T. LIEBMAN, a atividade desenvolvida por rgos pblicos
no pertencentes ao poder judicirio e consistentes na transcrio ou inscrio de um ato em um registro
pblico, com escopo de dar publicidade a tal ato (Processo de execuo, 1980, p. 6). 29
Como cedio, a tutela constitutiva, apta a debelar as crises de situao jurdica, proporcionada pela
prpria sentena de procedncia, que j traz em si mesma a sua prpria efetivao e o resultado desejado
produzido por ela prpria, sem necessidade nem cabimento de uma execuo forada e sem contar, em
momento algum, com a disposio do obrigado a obedecer ou a cumprir (C. R. DINAMARCO, Instituies
de direito processual civil, v. I, 2009, p. 155). No entanto, determinados efeitos s se alcanam por fora da
prtica de atos subseqentes o exemplo tpico o registro, nos Cartrios de Registro Civil, das sentenas de
anulao de casamento, separao, divrcio, interdio, etc. -, estes referidos como de execuo imprpria.
25
Em sentido tradicional, compreende-se execuo forada como conjunto de
medidas com que o Estado invade o patrimnio do obrigado e dele extrai o bem ou bens
necessrios satisfao do direito do credor, independentemente da vontade daquele ou
mesmo contrariamente a ela 30
, que opera por meio de atos executivos31
congregados em
meio executivo32
sub-rogatrio isto , aqueles que dispensam o concurso da vontade do
executado atos executivos que, consoante a conhecida lio de E. T. LIEBMAN, tem por
finalidade conseguir por meio do processo, e sem o concurso da vontade do obrigado, o
resultado prtico a que tendia a regra jurdica que no foi obedecida33
.
Pressupe a execuo a existncia inadimplemento de obrigao, tido por
pressuposto prtico, e de ttulo executivo que documente obrigao lquida, certa e
exigvel, este o pressuposto jurdico (legal) da execuo34
.
certo que, com a valorizao da tutela especfica para o adimplemento das
obrigaes de fazer e no fazer, modernamente parece prevalecer o entendimento de que a
execuo indireta, perseguida sobretudo por meio executivo coercitivo quais sejam, os
que buscam agir sobre a vontade do executado, por instrumentos de presso psicolgica,
para tentar vencer sua resistncia em persistir no inadimplemento-, merece ser
contemplada no conceito de execuo forada35
.
30 C. R. DINAMARCO, Instituies de direito processual civil, v. IV, 2009, pp. 54-55.
31 Caracterizam-se os atos executivos, segundo lio de A. ASSIS, por sua virtualidade de provocar
alteraes no mundo natural (Manual da execuo, 12. ed., 2009, p. 95), de modo a adequar o mundo
ftico ao estado de conformidade ao direito previamente reconhecido no ttulo executivo. 32
Meios executivos ou executrios constituem a reunio dos atos executivos endereada, dentro do
processo, obteno do bem pretendido pelo exeqente (A. ASSIS, Manual da execuo, 12. ed., 2009, p.
138). 33
Processo de execuo, 1980, p. 4. 34
Certo que no so apenas estes os pressupostos da tutela executiva. Voltaremos ao tema por ocasio do
exame do modelo de execuo extrajudicial v. item 7.2 e ss. 35
A execuo forada quando o Estado-juiz atua sobre os bens, mas tambm forada quando ele atua
sobre o esprito do obrigado, ou seja, sobre sua vontade (C. R. DINAMARCO, Instituies de direito
processual civil, v. IV, 2009, p. 35). A questo, vale referir, foi objeto de controvrsia doutrinria. Dentre os
que recusavam execuo especfica a natureza de execuo forada, merece destaque o entendimento de S.
SATTA, para quem s se poderia falar de execuo forada acaso o exeqente postulasse a responsabilidade
patrimonial decorrente do inadimplemento de uma obrigao, fenmeno que no ocorreria na execuo
especfica, esta relacionada no propriamente a obrigaes mas a situaes jurdicas absolutas (Diritto
processuale civile, 1950, pp. 377-378). Criticando tal entendimento, prestou G. A. MICHELI importante
contributo para a adoo de conceito unitrio de execuo forada, como meio de tutela extrnseca de
direitos, como um remdio contra a inobservncia da vontade da lei, que abarca tanto a execuo por
equivalente (pecuniria) quanto a execuo especfica (Dellunit del concetto di esecuzione forzata, in
Rivista di diritto processuale, v. VII, 1952, esp. pp. 299-300). Abordando o tema de forma ampla, bem
observou G. MONTELEONE que a execuo forada fenmeno que se desencadeia para superar a vontade e
26
Para alcanar o resultado prtico almejado e proporcionar a satisfao do
exeqente, pela efetiva entrega do bem da vida a que faz jus, parte-se do direito,
previamente reconhecido em ttulo executivo judicial ou extrajudicial e violado pelo
executado, e praticam-se os atos necessrios para adequar o mundo ftico (sensvel),
transformando-o para que resulte, tanto quanto possvel, conforme ao direito36
.
sobejamente conhecida a lio de que na execuo, pois, prepondera atividade prtica - ao
contrrio da cognio, em que prevalece atividade lgica para conformar a realidade
ftica aos ditames jurdicos37
.
Avulta na execuo o emprego, efectivo ou potencial, da fora por parte dum
rgo do Estado, dotado de jus imperii38
, permitindo-se assim passar da declarao
concreta da norma jurdica para sua atuao prtica39
.
No que interessa mais de perto ao presente trabalho - que se ocupa, como j se
anunciou, da satisfao de crdito pecunirio importa ainda destacar que, com o escopo
de debelar a crise de adimplemento decorrente da inobservncia de obrigao de
pagamento de quantia certa, se manifesta a execuo por meio de atos de fora estatal que,
independentemente do concurso da vontade do executado e mesmo contra esta (meios sub-
rogatrios), atingiro seu patrimnio para dele extrair um bem, transform-lo em dinheiro
e assim pagar o credor.
Dito de outro modo, no desempenho dos meios executivos sub-rogatrios que
caracterizam a execuo por quantia, impe-se extinguir o direito de propriedade do
executado sobre o bem constrito, transform-lo em pecnia exceto se for penhorado
dinheiro, ou se o credor optar por adjudicar o bem e atribuir a propriedade do dinheiro
(ou do bem adjudicado) ao exeqente.
a ao de quem se ope ao quanto estabelecido no ttulo executivo e, sob este aspecto, inexistiria diferena
entre a execuo pecuniria (expropriao forada) e a execuo especfica (Riflessioni sulla tutela esecutiva
dei diritti di credito, in Studi in onore di Enrico Tullio Liebman, v.3, 1979, pp. 2333-2335). 36
P. CALAMANDREI, Instituciones de derecho procesal civil, 1943, pp. 90-91. 37
Dentre tantos, v. E. T. LIEBMAN, Processo de execuo, 1980, pp. 43-44. Para F. CARNELUTTI, a anttese
que se pode estabelecer entre execuo e cognio a que se poderia estabelecer entre razo e fora (Sistema
di diritto processuale civile, v. I, 1936, p.180). 38
Sobre a relao entre execuo, imperium e fora fsica, v. item 3.2.1 abaixo. 39
J. LEBRE DE FREITAS, A aco executiva depois da reforma da reforma, 2009, p. 9, nota 6.
27
Como se v, a tcnica executiva por excelncia40
de que se cogita para
proporcionar a satisfao do credor a expropriao41
, seja para transformar em dinheiro o
bem sobre o qual recai a responsabilidade executiva42
(expropriao liqidativa), seja para
entreg-lo ao credor (expropriao satisfativa)43
: o Estado, amparado em sua autoridade,
em carter imperativo, pe fim aos direitos do executado sobre o bem constrito e o
transfere de modo coativo ao patrimnio do terceiro arrematante ou do exeqente
adjudicante, diante da manifestao volitiva desses ltimos44
.
Adianta-se desde logo que esta tcnica de expropriao, to ntida na execuo
forada que se processa em juzo, a nosso ver tambm se manifesta na execuo
40 A expresso de A. ASSIS, Manual da execuo, 12. ed., 2009, p. 635.
41 To ntima a tcnica de expropriao execuo forada para recebimento de quantia que o Cdigo de
Processo Civil Italiano disciplina esta ltima sob a rubrica da expropriao forada (Livro III, Ttulo II).
S. SATTA, a propsito, assim descreve a relao direta que h entre responsabilidade patrimonial,
expropriao, execuo forada e, em seu entendimento, obrigao: a responsabilidade patrimonial exprime
a sujeio dos bens integrantes do patrimnio do devedor expropriao (situao jurdica dos bens), o que
corresponderia, de outro lado, ao poder do credor de, por meio da execuo, fazer expropriar os bens do
devedor para a satisfao de seu crdito (possibilidade do credor de alcanar o que lhe devido mediante os
bens do devedor), ambos os elementos estariam indissociavelmente unidos no conceito de obrigao;
concluindo que somente se pode falar de execuo forada, em sentido prprio, quando h expropriao
(Diritto processuale civile, 1950, p. 379. Sobre a inaplicabilidade de tal conceito s execues especficas,
para S. SATTA, v. nota 35 acima). 42
Responsabilidade executiva, no sentido aqui empregado, est a aludir situao de sujeio atuao da
sano executiva, mais particularmente destinao dos bens do executado satisfao do direito do credor
(E. T. LIEBMAN, Processo de execuo, 1980, p. 85). Trata-se de fenmeno de natureza processual, segundo
tradicional lio de F. CARNELUTTI (Lezioni di diritto processuale civile, 1929, p. 86). 43
Da falar a doutrina italiana em dupla expropriao: a primeira, liqidativa (transformao do bem
penhorado em dinheiro, extinguindo-se a propriedade do executado sobre tal bem e transferindo-o ao
patrimnio do arrematante), que s ocorre se o bem penhorado no for dinheiro ou se o credor no optar pela
adjudicao; e a segunda, que ocorre em toda a execuo por quantia exitosa, satisfativa (entrega do dinheiro
ou do bem adjudicado - ao exeqente). Referindo-a, C. R. DINAMARCO, Instituies de direito processual
civil, v. IV, 2009, pp. 565-566. 44
Muito j se discutiu sobre a natureza jurdica da expropriao, estando por certo superada a tese de que
seria contratual; seja na antiga vertente defendida, dentre outros, por PEREIRA E SOUSA e LOBO, de que o
juiz representaria o executado num contrato de compra e venda no o representa, no h manifestao de
vontade do executado -, seja nas verses de F. CARNELUTTI, de que haveria representao legal no
poderia o representante legal atuar contra os interesses do representado e de G. CHIOVENDA, de que se
expropriaria a faculdade de dispor do bem, para que ento o juiz operasse a venda a autoridade do rgo
no se limita a expropriar a faculdade de dispor, e sim alcana o momento subseqente de transferir o bem -.
Passando-as em revista, conclui E. T. LIEBMAN por sua natureza processual e executiva, destacando a
preponderncia do ato unilateral do rgo estatal (em seu entendimento, jurisdicional) soberano e investido
de autoridade para retirar o bem do patrimnio do executado e transferi-lo, cuja eficcia, no entanto, fica
condicionada ato do particular licitante que arremata ou executado que adjudica de aceitar a transferncia
(LIEBMAN, Processo de execuo, 1980, pp.143-151). Sobre o ponto, v. ainda A. ASSIS, que, procurando
equilibrar os dois atos aludidos por E. T. LIEBMAN, conclui que na alienao forada se descortina negcio
jurdico entre o Estado, que detm o poder de dispor, e o adquirente (Manual da execuo, 12. ed., 2009, p.
770).
28
extrajudicial para a satisfao de crdito pecunirio dotado de garantia imobiliria45
,
permitindo-se concluir que esta ltima , em verdade, modalidade de execuo forada.
2.2 Modelo executivo brasileiro do Cdigo de Processo Civil
Modelo processual corresponde a um dado sistema processual compreendido,
segundo C. R. DINAMARCO46
, como
conglomerado harmnico de rgos, tcnicas e institutos jurdicos regidos por normas
constitucionais e infraconstitucionais capazes de propiciar a sua operacionalizao segundo o
objetivo externo de solucionar conflitos -, caracterizado no tempo e no espao e considerado a partir
dos elementos que concretamente o identificam e diferenciam de outros.
Resulta a descrio do modelo, pois, de uma construo terica, para a qual se
elegem nunca de maneira completamente objetiva os elementos em funo dos quais
realiza agrupamento por semelhanas, para permitir tratamento generalizante, tendo como
norte, sempre, a utilidade para a compreenso do fenmeno em exame.
Voltando os olhos ao modelo executivo brasileiro do atual Cdigo de Processo
Civil47
depois das significativas reformas empreendidas pelas Leis 11.232/2005 e
11.382/2006, aponta C. R. DINAMARCO ser possvel deline-lo em funo de dois
elementos estruturais: (i) o processo em que os atos executivos se desencadeiam e (ii) os
meios executivos que preponderam para a consecuo da satisfao do exeqente48
. A
estes, no que interessa mais de perto ao objeto deste estudo, acrescentamos mais dois
elementos cuja anlise, a nosso ver, tambm ajudam a caracterizam o modelo executivo
brasileiro: (iii) a intensidade da participao do juiz e (iv) a variabilidade dos
instrumentos em funo das particularidades do direito material.
45 V. item 7.4 abaixo.
46 Instituies de direito processual civil, v. I, 2009, p. 175.
47 Existem, contudo, outros modelos de execuo no direito brasileiro, contemplados na legislao
extravagante, com caractersticas diversas daquele desenhado pelo Cdigo de Processo Civil. O que mais nos
interessa, e ser oportunamente examinado em detalhes, o modelo de execuo extrajudicial para satisfao
de crditos dotados de certas modalidades de garantia imobiliria, representado pelas caractersticas comuns
dos procedimentos disciplinados pelos artigos 29 e seguintes do Decreto-lei 70/66 e 26 e seguintes da Lei
9.514/97. 48
Instituies de direito processual civil, v. IV, 2009, pp. 51-54.
29
Quanto ao processo, aps as aludidas reformas que, neste particular, romperam a
opo adotada quando do advento do Cdigo de Processo Civil de 197349
- amparando-se a
pretenso exigida em ttulo executivo extrajudicial, a atividade executiva ter lugar em
processo autnomo, nos moldes do Livro II do referido Cdigo de Processo Civil. De outro
lado, os atos de execuo se desempenharo no prprio processo tratando-se assim de um
nico processo, sincrtico, do qual a execuo representa apenas fase em que proferida
deciso judicial que reconhea a existncia de obrigao de fazer, no fazer, entregar
coisa ou pagar quantia (art. 475-N, I, CPC). Em se tratando de outras espcies de ttulos
executivos judiciais (art. 475-N, II a VII, CPC), iniciar-se- processo autnomo para a
execuo, que, contudo, seguir o procedimento do cumprimento de sentena
regulamentado no Captulo X do Ttulo VIII do Livro I do Cdigo de Processo Civil.
No que concerne aos meios executivos, caso a obrigao inadimplida seja de
pagamento de quantia, para sua satisfao preponderam os meios executivos sub-
rogatrios. Diferentemente, nas obrigaes de fazer, no fazer e entregar coisa,
prevalecem os meios coercitivos50
.
Acerca da intensidade da participao do juiz, caracteriza-se o modelo brasileiro pela
fortssima interveno do juiz, que assume posio central no procedimento51
; vale dizer: os
atos de execuo dependem de proviso judicial52
. No regime das execues do Cdigo de
Processo Civil ptrio, o juiz quem impulsiona e dirige a execuo respeitado, por certo, o
princpio da demanda-; juiz quem determina a realizao dos atos executivos, os quais, via de
49 Como cedio, A. BUZAID propugnou pela unidade do processo de execuo, assumindo-a como uma
das caractersticas do Cdigo de Processo Civil de 1973 (Exposio de motivos do Cdigo de Processo Civil
de 1973, n 21); refletindo concepo que deita razes na actio iudicati romana, perpassa a tradio histrica
luso-brasileira e cristaliza-se no entendimento de que a execuo processo plenamente autnomo e
independente, que comea pela citao (...) (E. T. LIEBMAN, Processo de execuo, 1980, p. 49). 50
Insista-se que a correlao entre meio executivo e espcie de obrigao inadimplida mesmo de
prevalncia. Embora no preponderem, podem ter lugar meios coercitivos em execuo para satisfao de
obrigao de pagamento de quantia (v.g., a multa de que trata o art. 475-J do CPC); assim como podem ser
aplicados meios sub-rogatrios em execues especficas (p. ex busca e apreenso, remoo de pessoas ou
coisas, desfazimento de obras - art. 461, 5, CPC -, imisso na posse -461-A, 2, CPC). 51
Como se ver adiante, dentre as classificaes possveis (item 4 abaixo), o modelo brasileiro figura dentre
os sistemas pblicos de execuo, com agente vinculado ao Poder Judicirio e subordinado ao juiz. Sobre as
modestas manifestaes de desjudicializao aps a Lei 11.382/2006, v. item 5.1.3 abaixo. 52
A. ASSIS, Manual da execuo, 12. ed., 2009, p. 98.
30
regra, so praticados por oficiais de justia ao juiz subordinados53
; o juiz, enfim, quem
preside a execuo54
, podendo-se dizer, assim, que o monoplio judicial da execuo uma
das caractersticas marcantes do modelo brasileiro consagrado no Cdigo de Processo Civil.
Por fim, no que diz respeito variabilidade dos instrumentos em funo das
particularidades do direito material, certo que, sob perspectiva mais ampla, diferenciam-
se os meios executivos preponderantes em funo da categoria de obrigao - pagar
quantia, fazer ou no fazer, entregar coisa -55
. Voltando os olhos s obrigaes de pagar
quantia, tambm algumas diferenciaes podem ser notadas, dentre as quais: a natureza do
ttulo aponta, atualmente, para diferentes procedimentos de execuo56
; a presena da
Fazenda Pblica como devedora modifica o procedimento e a tcnica executiva, aplicando-
se, como regra a requisio de pagamento mediante precatrio (arts. 730 e 731 do CPC)57
;
de outro lado, a presena da Fazenda Pblica credora, para cobrar dvida ativa, determina a
aplicao de procedimento prprio disciplinado em legislao extravagante58
; a natureza de
prestao alimentcia do crdito exeqendo pode justificar a adoo do meio coercitivo de
priso civil (art. 733 do CPC) e do meio sub-rogatrio de desconto em folha (art. 734 do
CPC); os alimentos devidos como indenizao por ato ilcito, por seu turno, autorizam ao
juiz que ordene ao devedor a constituio de capital, cuja renda assegure o pagamento do
53 Art. 577 do CPC. Com maior ou menor intensidade, tambm podem participar da execuo outros
auxiliares da justia, tais como o escrivo, o porteiro, o leiloeiro e o depositrio, sempre subordinados ao
juiz. Sobre auxiliares da justia, v nota 94 abaixo. 54
Por considerar que o juiz exerce poderes extensos na execuo, por ter a lei deixado ao juiz vrios e
grandes espaos para o uso de liberdades discricionrias, revelados pelo prprio dever de impulso oficial
do processo (art. 262, CPC), pelos poderes de decidir sobre aumento de prazo para cumprimento da
obrigao, de deliberar sobre a arrematao global (art. 691, CPC), sobre o lano vil (art. 692), sobre a
suspenso da arrematao quando o produto da alienao bastar para o pagamento do credor (art. 692,
pargrafo nico), conclui A. ASSIS pela indispensabilidade do controle judicial no curso do ato executivo.
Arremata o processualista gacho que a lei no autoriza pronunciamentos dos auxiliares do juzo quanto ao
direito das partes, razo pela qual dever mesmo o juiz presidir a realizao dos atos executivos (Manual
da execuo, 12. ed., 2009, pp. 99-100). E. R. MALACHINI, no entanto, de h muito sustenta que o Cdigo de
Processo Civil de 1973, ao contrrio do anterior, no exige a presena do juiz para a realizao de hastas
pblicas, atribuio do porteiro ou do leiloeiro (Desnecessidade da presena do juiz ao ato de arrematao,
no sistema do Cdigo de Processo Civil, in RePro, n. 31, p. 17). 55
A propsito dos meios executivos, sabido que variam segundo a natureza do direito a ser satisfeito, isto
, do resultado a ser proporcionado ao credor, sendo predispostos de forma diversa se for o caso de entrega
de quantia, ou de coisa, ou ainda a imposio e/ou efetivao de um fazer ou um no fazer. E, mesmo em
cada uma dessas modalidades de obrigao, h variaes ditadas por particularidades extradas da relao
material (F. L. YARSHELL, Tutela jurisdicional, 2006, p. 173). 56
Como j se viu, a sentena condenatria se executa ou se cumpre, na expresso preferida pelo legislador
em processo sincrtico; enquanto outros ttulos devem ser executados em processo autnomo. 57
No se submetem ao regime de precatrios, no entanto, os pagamentos de obrigaes definidas em leis
como de pequeno valor que as Fazendas referidas devam fazer em virtude de sentena judicial transitada em
julgado (art. 100, 3, CF, redao dada pela EC 62/2009). 58
Trata-se da execuo fiscal, disciplinada pela Lei 6.830/80.
31
valor mensal da penso (art. 475-Q do CPC); a situao de insolvncia do devedor d
origem ao desencadeamento de tcnica prpria de concurso universal (art. 748 e ss. do
CPC) e mesmo o objeto sobre o qual recai a penhora pode justificar alguma disciplina
especfica59
.
O modelo acima delineado, importa dizer, mantido no projeto de novo Cdigo de
Processo Civil60
.
2.3 Execuo equilibrada: mxima satisfatividade e mnimo sacrifcio
Mais do que em qualquer outra atividade de composio de conflitos, na execuo
que aflora de maneira mais intensa a oposio dos interesses de exeqente e executado.
Aqui j no basta resolv-lo em plano puramente lgico. Para comp-lo, necessrio, ao
revs, promover a transformao do mundo fsico61
.
Inadimplida a obrigao de pagamento de quantia, que aqui nos interessa mais de
perto, h que se retirar compulsoriamente algum bem da esfera patrimonial do devedor
que, nessa medida, desfalcada, embora legitimamente-, eventualmente transform-lo em
pecnia e promover o pagamento ao credor, para proporcionar-lhe a satisfao, com o
efetivo recebimento da quantia no solvida voluntariamente pelo devedor.
na execuo que se pode sentir, por assim dizer, o peso do poder de autoridade,
que pode legitimar inclusive, e se necessrio, o emprego de fora fsica.
59 V., dentre outras, as disposies sobre penhora de crditos e de outros direitos patrimoniais (arts. 671 e ss.
do CPC); penhora, depsito e administrao de empresa e outros estabelecimentos (arts. 677 e ss. do CPC) e
usufruto de mvel ou imvel (arts. 716 e ss. do CPC). Reputa C. R. DINAMARCO serem especiais as
execues regidas por tais dispositivos, diferenciando-se da execuo por quantia certa ordinria pela
natureza dos bens penhorados, pelos atos subseqentes a serem desenvolvidos ao longo do processo e pelos
modos como feita a alienao (Instituies de direito processual civil, v. IV, 2009, p. 612). 60
Especificamente no que tange bipartio em processo sincrtico com fase de cumprimento de sentena e
processo autnomo de execuo, v. arts. 490 e ss. do PLS 166/2010, ou 500 e ss. do PL 8046/2010, e Livro
III; sobre a presidncia do juiz sobre a execuo, v. art 708 do PLS 166/2010, ou 741 do PL 8046/2010. 61
A. ASSIS, Manual da execuo, 12. ed., 2009, p. 94.
32
Pela natureza drstica da execuo, busca-se e a evoluo histrica do instituto
muitssimo ilustrativa neste sentido equilbrio para perseguir a integral satisfao do
credor sem, de outro lado, sacrificar demasiadamente o devedor.
Balizam tal equilbrio os chamados limites da execuo, classificados em naturais e
polticos. Os primeiros compreendem, v.g., inexistncia absoluta de bens no patrimnio do
devedor, a frustrar a execuo por quantia; o perecimento da coisa a ser entregue, a
impossibilitar a execuo para entrega de coisa, etc. Os segundos se desdobram em
intangibilidade da pessoa do devedor, como decorrncia da patrimonializao da
execuo, que probe a priso civil por dvida, salvo a do responsvel pelo
inadimplemento voluntrio e inescusvel de obrigao alimentcia62
; em garantia de
subsistncia de patrimnio mnimo, de que so reflexo as impenhorabilidades absolutas e
relativas dispostas nos artigo. 649 e 650 do Cdigo de Processo Civil, e na menor
onerosidade possvel, sintetizada na conhecida frmula do artigo 620 do Cdigo de
Processo Civil: quando por vrios modos o credor puder promover a execuo, o juiz
mandar que se faa pelo modo menos gravoso para o devedor63
.
Interessante notar que, na execuo, inexiste um ponto de equilbrio universal e
atemporal. Muito pelo contrrio, tal ponto est sempre relacionado aos valores sociais,
polticos e econmicos vigentes em determinado momento histrico.
2.4 Crise: falta de efetividade da execuo
Sob as luzes da instrumentalidade do processo, impe-se ao estudioso, no atual
estgio de desenvolvimento da cincia processual, que tenha os olhos voltados aos
objetivos perseguidos pelo processo, que lhe so externos; que se preocupe com os
62 Art. 5, LXVII, CF. A priso civil do depositrio infiel, aparentemente permitida pela letra do dispositivo
constitucional em questo, proibida por fora da Smula Vinculante n 25, do SUPREMO TRIBUNAL
FEDERAL. De outro lado, acerca da discusso sobre a possibilidade de priso como meio coercitivo para a
efetividade da execuo especfica, v. A. F. NASCIMBENI, Multa e priso civil como meios coercitivos para
obteno da tutela especfica, 2005, esp. pp. 181-244. 63
Decompondo a referida frmula, assevera C. R. DINAMARCO que a execuo deve se pautar por duas
balizas fundamentais, antagnicas mas necessariamente harmoniosas, que so (a) a do respeito
integridade patrimonial do executado, sacrificando-o o mnimo possvel e (b) a do empenho a ser feito para
a plena realizao do exeqente (Menor onerosidade possvel e efetividade da tutela jurisdicional, in Nova
era do processo civil, 2009, p. 293).
33
resultados prticos que o processo produz na vida das pessoas, com a aptido do
instrumento para dar tutela a quem tiver razo luz do direito material e, assim, pacific-
las com justia64
.
Persegue-se, com cada vez mais intensidade o processo efetivo65
, compreendido,
nas palavras de J. R. BEDAQUE, como aquele que, observado o equilbrio entre os valores
segurana e celeridade, proporciona s partes o resultado desejado pelo direito
material66
.
A lio tambm deve ser aplicada execuo67
, em que o equilbrio a ser buscado
contrape, sempre na medida do possvel, de um lado, a mxima satisfatividade que a
execuo deve proporcionar ao credor, e, de outro, o mnimo sacrifcio (ou sacrifcio
apenas no quanto razovel e necessrio) ao patrimnio do devedor frmula acima
examinada ; tudo isso em processo que seja to clere quanto possvel.
O exame da execuo por tal perspectiva, no entanto, revela cenrio assaz
preocupante. A constatao a de que a execuo estava desequilibrada, em benefcio do
devedor, exageradamente protegido. Dificilmente proporcionava ao credor a satisfao de
seu crdito, muito menos dentro de um prazo razovel assegurado pela Constituio68
.
Padecia, pois, de falta de efetividade.
64 Acerca dos escopos sociais do processo, v. C. R. DINAMARCO, A instrumentalidade do processo, 1987, p.
220 e ss. 65
Ou eficiente, no entendimento de J. G. GONALVES FILHO, para quem o gnero eficincia compreende
celeridade e efetividade:o princpio da eficincia est ligado a essa idia de rapidez, presteza, utilidade,
economicidade e acerto de situaes, devendo tudo isto nortear a conduo dos processos. Assim, o
princpio constitucional da eficincia no processo civil um gnero que se sudivide em quatro aspectos, ou
subprincpios, cada qual revelando uma das facetas do valor eficincia no processo civil; so eles: o
princpio da celeridade, o princpio da efetividade, o princpio da economicidade (ou economia processual)
e o princpio da segurana jurdica (O princpio constitucional da eficincia no processo civil, Tese
(Doutorado), 2010, pp.37-38). Para o referido autor, efetividade corresponde real utilidade do instrumento
para atingir seu propsito especfico (ob. cit., p. 38); celeridade est atrelada idia de tolerar apenas a
demora necessria e inevitvel, no se compadecendo com delongas indevidas (ob cit., p. 45); segurana
diz com a previsibilidade, reduo de incertezas e riscos e, por fim, economicidade significa fazer mais
com menos (sempre que possvel). Diminuir custos, diminuir etapas, diminuir esforos (...) sempre que essas
diminuies no implicarem leso a direitos fundamentais das partes envolvidas (ob cit. pp. 58-59). 66
Efetividade do processo e tcnica processual, 2006, p.49. 67
No por outra razo, dez anos depois de publicar a obra Execuo civil (primeira edio de 1973), C. R.
DINAMARCO, a partir da terceira edio da aludida obra (1993), adaptou-a para revisitar os institutos e
conceitos executivos luz das novas tendncias do direito processual (Execuo civil, 1994, p. 28).
Lembrando que o princpio da eficincia, aplicvel a qualquer atividade estatal, inclusive ao processo ou
fase de execuo, v. J. G. GONALVES FILHO, O princpio constitucional da eficincia no processo civil, Tese
(Doutorado), 2010, p. 374. 68
Art. 5, LXXVIII, CF.
34
Em fins da dcada de noventa, j observava L. GRECO que, se a garantia da
proteo jurisdicional dos direitos dos cidados deve ser progressivamente mais rpida e
eficaz, e se essa garantia pressupe procedimentos executrios que de fato realizem,
com essa mesma rapidez e eficcia, a entrega dos bens que so reconhecidos no ttulo
executivo, desanimador verificar que justamente na tutela jurisdicional satisfativa o
processo civil brasileiro apresenta o mais alto ndice de ineficcia69
.
A crise de falta de efetividade da execuo, vale registrar, no problema
exclusivamente brasileiro.
No comeo da dcada de noventa, L. P. COMOGLIO destacou ser a execuo um
componente essencial do direito constitucional efetividade da tutela judiciria e
denunciou que, no entanto, na prtica, a execuo, tal qual disciplinada, no estava
conforme ao princpio constitucional de efetividade70
.
No ano de 2003, o Conselho da Europa, organizao internacional de cooperao
es