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ETNOICTIOLOGIA DOS PESCADORES
DA BARRA DO SUPERAGI,
GUARAQUEABA/PR:
aspectos etnotaxonmicos, Etnoecolgicos e utilitrios
rika Fernandes-Pinto
So Carlos
2001
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SO CARLOS CENTRO DE CINCIAS BIOLGICAS E DA SADE
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ECOLOGIA E RECURSOS NATURAIS
EETTNNOOIICCTTIIOOLLOOGGIIAA DDOOSS PPEESSCCAADDOORREESS DDAA
BBAARRRRAA DDOO SSUUPPEERRAAGGII,, GGUUAARRAAQQUUEEAABBAA//PPRR::
AASSPPEECCTTOOSS EETTNNOOTTAAXXOONNMMIICCOOSS,, EETTNNOOEECCOOLLGGIICCOOSS EE
UUTTIILLIITTRRIIOOSS
Ps-graduanda: rika Fernandes-Pinto Orientador: Dr. Jos Geraldo W. Marques Dissertao apresentada ao Programa de Ps-graduao em Ecologia e Recursos Naturais do Centro de Cincias Biolgicas e da Sade da Universidade Federal de So Carlos (UFSCar) como parte dos requisitos para obteno do ttulo de Mestre em Ecologia e Recursos Naturais.
- SO CARLOS - 2001
Ficha Catalogrfica
Fernandes-Pinto, rika ETNOICITIOLOGIA DOS PESCADORES DA BARRA DO SUPERAGI, GUARAQUEABA/PR: ASPECTOS ETNOTAXONMICOS, ETNOECOLGICOS E UTILITRIOS/ rika Fernandes-Pinto, So Carlos: UFSCar, 2001 158p. ilust. Dissertao (Mestrado) - Universidade Federal de So Carlos, 2001 1. Guaraqueaba; 2. Pescadores artesanais; 3. Etnobiologia e Etnoecologia; 4. Etnoictiologia; 5. Recursos pesqueiros.
AAGGRRAADDEECCIIMMEENNTTOOSS
Universidade Federal de So Carlos (UFSCar), atravs do Programa de Ps-Graduao
em Ecologia e Recursos Naturais (PPG-ERN), pela oportunidade. CAPES (Coordenadoria de
Aperfeioamento de Pesquisa de Nvel Superior) pela bolsa de estudos concedida. WWF (World
Wildlife Foundation), atravs de seu programa Natureza e Sociedade, pelo apoio concedido para
realizao do trabalho de campo.
Ao apoio logstico do Centro de Estudos do Mar (CEM) da Universidade Federal do Paran,
especialmente ao Laboratrio de Ictiologia. Ao IBAMA, na pessoa de Guadalupe Vivekananda,
diretora do Parque Nacional do Superagi, pelo apoio para a realizao do trabalho de campo.
Pousada Sobre as Ondas, por ter fornecido a hospedagem na Barra do Superagi. Aos amigos que
me acolheram em suas casas durante minhas estadas em So Carlos, especialmente Carlos
Henke ("Bixo") e Lus Augusto Mestre, Jos Mouro e Ana Th.
Ao meu orientador, Jos Geraldo W. Marques, por sua dedicao, seus ensinamentos, pela
oportunidade e por seu exemplo profissional. Ao finalmente "Dr." Marco Fbio Maia Corra, eterno
"desorientador", pela identificao cientfica dos peixes e valiosas contribuies para o texto, pelo
exemplo, amizade e apoio nos momentos difceis. Pedro Carlos Pinheiro, eterno "co-
desorientador", por minha iniciao na ictiologia, apoio e amizade. Franco Amato pelo auxlio na
elaborao do mapa da rea de estudo.
Nivaldo Nordi, que quebrou inmeros "galhos", pela prontido em ajudar, abertura e
disponibilidade em utilizar o material e infra-estrutura do Laboratrio de Ecologia Humana (UFSCar),
pelas "etno-conversas" e por sua amizade. Aos colegas do Laboratrio de Ecologia Humana da
UFSCar, Elisa Madi, Ana Th, Sineide Montenegro, Jos Mouro e Marcelo Cavallini, pela
agradvel e divertida convivncia, apoio e discusses, apesar das minhas muitas passagens
relmpago. Natlia Hanazaki, Nivaldo Peroni e Renato Silvano do NEPAM/UNICAMP pela troca
de informaes, material bibliogrfico e pela amizade. Eraldo Costa-Neto, pela bibliografia cedida
e Francisco Jos Souto ("Franz"), da UEFS/BA, pelo incentivo.
todos os moradores da comunidade de Barra do Superagi, que me receberam com
muita boa vontade, amizade e desprendimento. Aos pescadores que partilharam sua sabedoria
comigo e aos que me permitiram participar de suas atividades. Ao Carioca (Valdeir da Silva
Teixeira), Denise e Flavinho, pela hospitalidade, informaes, auxlio e principalmente pela amizade.
Roberto Xavier, por ter me apresentado a etnobiologia, que mudou os rumos de minha
carreira profissional e da minha vida pessoal. s amigas Sonia Nicolau e Cimone Rozendo,
companheiras nas "misses impossveis", pelo apoio, incentivo e sugestes.
s minhas colegas do rafting, Mirela, Patrcia, Sirlene, Laine, Nayara, Rossana e Tatiana,
cuja companhia permitiu que eu no enlouquecesse neste perodo, pelo apoio e pelas conquistas.
Silvana Meira, minha amiga-irm e meu suporte emocional virtual, pelas palavras exatas nas horas
certas.
Ao meu pai, Jos Adriano Pinto, por ter se encantado com a regio de Guaraqueaba
quando eu era pequena e me propiciado viver este mundo de forma livre e intensa. Pelas sugestes
nos textos, apoio incondicional e discusses. ele e Elisabete Ferreira ("Bete"), por terem me
aceitado em sua casa, permitindo que eu tivesse um pouco da paz de esprito necessria para
terminar este trabalho.
minha me, Maria Tereza Fernandes Abraho, por mais uma vitria, pelo exemplo de
fora e coragem, pelo apoio incondicional e por sempre cantar "mezinha do cu" quando eu mais
preciso. s minhas irms, Juliana e Ruth Fernandes Pinto e ao novo anjinho da casa, Gabriel, que
j chegou fazendo barulho.
Christoph Jaster, com quem partilhei "rebojos" e "tormentas", mas tambm "calmarias" e
"noites de luar". Pela companhia nas idas para o campo, auxlio na reviso de textos infindveis, por
ouvir meus "etnodevaneios". Agradeo enormemente por ter tido voc ao meu lado durante este
tempo e pela certeza de poder contar com a sua amizade por todos os tempos. Ao Rapa Nui e ao
Rapa Iti que sempre nos conduziram no mar com segurana e nos proporcionaram momentos de
muita alegria e diverso.
Ao Pai-do-Mato e Me-d'gua, que nos protegeram em todas as empreitadas floresta
adentro e nas travessias noturnas mar afora. s ardentias, por sempre iluminarem nossos
caminhos...
este nenezinho, que meio de surpresa comeou a crescer dentro de mim. Se no
planejado, de forma alguma menos desejado. Luis Renato Angelis, meu companheiro nesta nova
empreitada, pelo enorme presente que foi encarregado de me conceder. Por fazer meus olhos
brilharem e pela certeza de muitas coisas boas pela frente.
Ao forr, que no deixou de tocar...
RREESSUUMMOO
A regio de Guaraqueaba, litoral norte do Paran, engloba uma grande diversidade de
ecossistemas e abriga cerca de 60 comunidades humanas, para as quais a pesca est entre as
principais atividades econmicas. Nas ltimas trs dcadas esta regio tem passado por uma srie
de transformaes econmicas, sociais e culturais, com influncias diretas sobre as relaes entre
os pescadores artesanais e o ambiente. Como conseqncia, apesar da grande interao entre a
populao e os ecossistemas circundantes, o conhecimento do universo local est ficando cada vez
mais restrito e as comunidades esto passando por uma descaracterizao de sua forma tradicional
de vida, num processo aparentemente irreversvel. O presente trabalho teve por objetivo principal
estudar os modelos cognitivos dos pescadores da regio de Guaraqueaba, com nfase em
aspectos etnotaxonmicos e no conhecimento etnoecolgico sobre peixes, e aspectos conexivos
voltados para as formas de apropriao e uso dos recursos pesqueiros, tomando a comunidade da
Barra do Superagi como estudo de caso. Os resultados obtidos demonstraram que pescadores
desta comunidade possuem uma etnotaxonomia consistente e complexa, envolvendo nomeao,
identificao e classificao dos peixes de seu ambiente. Na classificao dos pescadores mais
idosos, a categoria "peixes" extensa e elstica e os sistemas envolveram classificaes
hierrquicas, seqenciais e cclicas. O conhecimento sobre distribuio espacial e temporal das
espcies cticas foi bastante detalhado. O ambiente pode ser categorizado de acordo com vrios
critrios, que determinariam a distribuio diferenciada dos peixes nos habitats e pocas do ano.
Possuem tambm um conhecimento complexo e detalhado sobre os hbitos alimentares dos peixes
e das interaes trficas entre diferentes grupos de organismos, elaborando cadeias trficas com
at seis nveis. Pescadores do Superagi atualmente realizam prticas pesqueiras voltadas
principalmente para o ambiente marinho-costeiro e relacionadas com poucos recursos,
especialmente camares e alguns peixes. Mantm uma estrita dependncia dos comerciantes da
vila para escoamento da produo e do Municpio de Paranagu para comercializao final. O peixe
a principal fonte de protena para a maioria da populao. Uma srie de tabus foram
reconhecidos, regulando comportamentos e a utilizao alimentar dos recursos pesqueiros,
principalmente aqueles relacionados aos perodos de "resguardo". Vrios recursos foram citados
como de uso medicinal, reforando a "hiptese da universalidade zooterpica".
AABBSSTTRRAACCTT
The Guaraqueaba's region, North coast of Paran State, includes a high diversity of ecosystems
and cover about 60 human communities, for which fishing is among the main economic activities. In
the last three decades this area has been going through a economic, social and cultural
transformations, with direct influences in the relationships between artisanal fishermen and the
environment. As consequence, in spite of the great interaction between the population and the
surrounding ecosystems, the knowledge of the local universe is being more and more restricted and
the communities are suffering a "descharacterization" of their traditional way of life in an apparently
irreversible process. The main goal of this work is to study the cognitive model of the fishermen of
Guaraqueaba's region, emphasizing the "ethnotaxonomic" aspects and "ethnoecological"
knowledge about fishes and connective aspects linked to the appropriation forms and use of the
fishing resources, taking Barra do Superagui's community as case study. The results obtained
demonstrated that the fishermen of this community have a consistent and complex "ethnotaxonomy",
involving nomination, Identification and classification of the fish in their environment. According to the
oldest fishermen, the "fish" category is extensive and elastic and the systems involved hierarchical,
sequential and cyclical classifications. The knowledge about spatial and temporal distribution of the
fish species were quite detailed. The environment can be classified according several criterias, that
determine the differentiated of fishes in the habitats and seasons of the year. They also have a
complex and detailed knowledge about feeding habits of the fishes and of the trofic interactions
among different groups of organisms, elaborating trofic chains with until six levels. Fishermen of
Superagi accomplish fishing practices dedicated mainly to the coastal marine ecosystem and
related with few resources, which include shrimps and some kind of fishes. They keep a strict
dependence of the villa's merchants to drainage their production and of Paranagu city for the final
commercialization. The fish is the main source of protein for the majority population. Many taboos
are recognized, regulating behaviors and the feeding use of the fishing resources, mainly those
related to protection periods called "resguardo". Several resources were mentioned as of medicinal
use, reinforcing the "zootherapical universality hypothesis."
SSUUMMRRIIOO
DEDICATRIA ............................................................................................................... AGRADECIMENTOS ...................................................................................................... RESUMO ........................................................................................................................ ABSTRACT .................................................................................................................... . SUMRIO ....................................................................................................................... LISTA DE TABELAS ....................................................................................................... I LISTA DE FIGURAS ....................................................................................................... II
INTRODUO ......................................................... ......................................................... 1 METODOLOGIA ......................................................... ...................................................... 9
CAPTULO 1 - GUARAQUEABA: PAISAGENS E PESSOAS ............................................ 14 1. CARACTERIZAO GERAL .................................................................................. 14 2. ASPECTOS FSICOS E BIOLGICOS ...................................................................... 16 3. ASPECTOS SCIO-ECONMICOS, HISTRICOS E CULTURAIS ................................ 20 4. SITUAO ATUAL ............................................................................................... 23 5. RELAES ENTRE A POPULAO E OS RECURSOS NATURAIS ............................... 26 5.1. A ATIVIDADE PESQUEIRA ..................................................................... 26 5.2. A ATIVIDADE AGRCOLA E PECURIA ..................................................... 27 5.3. EXTRATIVISMO E USO DAS PLANTAS NATIVAS ....................................... 29 5.4. CAA E USOS DA FAUNA SILVESTRE ..................................................... 31 6. OS MECANISMOS LEGAIS DE PROTEO AMBIENTAL ............................................ 32 7. SOBRE A APLICAO DA DENOMINAO "CAIARA" POPULAO DE
GUARAQUEABA ............................................................................................................... 34 8. BARRA DO SUPERAGI: CARACTERIZAO DA COMUNIDADE ESTUDADA ................ 37
CAPTULO 2 ASPECTOS ETNOTAXONMICOS ............................................................ 40 1. INTRODUO .................................................................................................. 40 2. RESULTADOS E DISCUSSO ............................................................. ................ 42
2.1. PADRO DE INCLUSIVIDADE E EXCLUSIVIDADE ..................................... 43 2.2. NOMENCLATURA ................................................................................. 47 2.3. Classificao Etnobiolgica: "Os peixes da mesma gerao".......... 52
2.3.1. CLASSIFICAO HIERRQUICA ............................................. 52 2.3.2. CLASSIFICAO SEQENCIAL ............................................... 57 2.3.3. CLASSIFICAO CCLICA ....................................................... 59 2.3.4. PADRO DE SOBREPOSIO HIERARQUIA/ ECOLOGIA ............. 60
CAPTULO 3 ASPECTOS ETNOECOLGICOS ............................................................... 61 1. INTRODUO ..................................................................................................... 61 2. RESULTADOS E DISCUSSO ............................................................................... 61 2.1. DISTRIBUIO ESPACIAL HORIZONTAL ................................................. 61 2.2. DISTRIBUIO ESPACIAL VERTICAL ..................................................... 70 2.3. VARIAO TEMPORAL ......................................................................... 73 2.4. ECOLOGIA TRFICA ............................................................................ 77 2.9. PREDAO NATURAL .......................................................................... 82
CAPTULO 4 - ASPECTOS UTILITRIOS .......................................................................... 88
1. INTRODUO ..................................................................................................... 88 2. RESULTADOS E DISCUSSO ......................................................................... ...... 89
2.1. A ATIVIDADE PESQUEIRA ..................................................................... 89 2.1.1. A PESCA NA BARRA DO SUPERAGI ..................................... 90 2.2. UTILIZAO COMERCIAL ..................................................................... 95 2.2.1. FORMAS DE TRATAMENTO E ESCOAMENTO DA PRODUO ..... 95 2.2.2. RECURSOS COMERCIALIZADOS E VALOR COMERCIAL ............. 98 2.3. UTILIZAO ALIMENTAR ............................................................. ......... 102 2.3.1. IMPORTNCIA NA ALIMENTAO ............................................ 102 2.3.2. PREFERNCIAS ALIMENTARES .............................................. 103 2.3.3. QUALIDADE DA CARNE ......................................................... 104 2.3.4. FORMAS DE PREPARO .......................................................... 107 2.3.5. TABUS E RESTRIES ALIMENTARES .................................... 110 2.3.6. A QUESTO DOS "RESGUARDOS" ......................................... 115 2.4. UTILIZAO MEDICINAL ....................................................................... 121 2.4.1. RECURSOS UTILIZADOS ........................................................ 121 2.4.2. MATRIAS-PRIMAS, ELABORAO DOS MEDICAMENTOS E
PRESCRIES ....................................................................................................... 126 2.4.3. EXEMPLOS SELECIONADOS .................................................. 127 2.4.4. SIMPATIAS ........................................................................... 130 2.4.5. OBTENO DOS RECURSOS ................................................. 131 2.4.6. CONHECIMENTO TRADICIONAL E UTILIZAAO ATUAL DOS
ZOOTERPICOS ..................................................................................................... 133 2.4.7. HIPTESE DA UNIVERSALIDADE ZOOTERPICA E HIPTESE DA
FARMCIA ............................................................................................................. 134 2.5. OUTROS USOS ................................................................................... 135
CONCLUSES ................................................................................................................. 136 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ................................................................................... 140 ANEXO ............................................................................................................................ 149
I
LLIISSTTAA DDEE TTAABBEELLAASS
CAPTULO 2
TABELA 2.1 Padro de inclusividade/exclusividade na categoria "peixes": exemplos para a classificao dos pescadores antigos da comunidade de Barra do Superagi ....................... 43
TABELA 2.2 - Caracteres e critrios utilizados por pescadores da Barra do Superagi para nomear os peixes de seu ambiente ......................................................................................... 50
TABELA 2.3 - Critrios utilizados para identificao das etnoespcies da "famlia dos bagres" por pescadores da Barra do Superagi ................................................................................... 55
TABELA 2.4 - Exemplos de genricos politpicos e nmero de especficos relacionados por pescadores da Barra do Superagi .......................................................................................... 56
CAPTULO 3
TABELA 3.1 - Grandes divises hidrogrficas percebidas por pescadores da Barra do Superagi e ictiofauna associada ............................................................................................ 62
TABELA 3.2- Zonao do ambiente aqutico e microhabitats associados s reas marinha, estuarina e fluvial reconhecidos por pescadores da Barra do Superagi e ictiofauna correspondente ........................................................................................................................ 63
TABELA 3.3 - Principais tipos de manchas de fundo ou substratos reconhecidos por pescadores da Barra do Superagi e ictiofauna associada ..................................................... 66
TABELA 3.4 - Microhabitats associados aos principais tipos de manchas de fundo reconhecidos por pescadores da Barra do Superagi ............................................................. 66
TABELA 3.5 - Caractersticas hidrolgicas relacionadas com a salinidade reconhecidas e categorizadas por pescadores da Barra do Superagi e ictiofauna associada ....................... 69
TABELA 3.6 - Percepo de pescadores da Barra do Superagi sobre a distribuio vertical dos peixes na coluna d'gua .................................................................................................... 70
TABELA 3.7 - Categorias reconhecidas por pescadores da Barra do Superagi com relao distribuio temporal da ictiofauna ........................................................................................ 75
TABELA 3.8 Animais relacionados como predadores naturais de recursos pesqueiros por pescadores da Barra do Superagi .......................................................................................... 82
CAPTULO 4
TABELA 4.1 - Valorao do pescado segundo categorias micas estabelecidas por pescadores do Superagi ........................................................................................................ 99
TABELA 4.2 - Valor de comercializao dos principais recursos pesqueiros citados por pescadores da Barra do Superagi (valores em R$ por kg, entre maro/1999 e maro/2000) 100
TABELA 4.3 - Categorias micas estabelecidas por moradores da Barra do Superagi segundo o nvel de preferncia de consumo de peixes ........................................................... 103
TABELA 4.4 - Critrios considerados para a categorizao dos recursos pesqueiros segundo a qualidade da carne por moradores da Barra do Superagi .................................................. 105
II
TABELA 4.5 - Tipos de tabus alimentares e peixes e outros recursos pesqueiros relacionados por moradores da Barra do Superagi ............................................................... 111
TABELA 4.6 - Recursos pesqueiros relacionados com a medicina popular por moradores da Barra do Superagi ..................................................................................................................
121
TABELA 4.7 - Recursos pesqueiros relacionados na medicina popular por moradores da Barra do Superagi .................................................................................................................. 122
LLIISSTTAA DDEE FFIIGGUURRAASS
FIGURA 1 - Pescador idoso identificando exemplares de peixe coletados durante as atividades de pesca .................................................................................................................. 12
CAPTULO 1
FIGURA 1.1 - Mapa de localizao da regio de Guaraqueaba: divisas e sede municipal, PR-405, limites da APA e do PARNA do Superagi e comunidade da Barra do Superagi (LAB.SIG-SPVS) ....................................................................................................................... 15
FIGURA 1.2 - Vista geral da regio continental e estuarina de Guaraqueaba ......................... 17
FIGURA 1.3 - Manguezal na regio de Guaraqueaba .............................................................. 17
FIGURA 1.4 - Escola Municipal em uma das comunidades estuarinas da APA de Guaraqueaba .......................................................................................................................... 24
FIGURA 1.5 - Canoas de "um pau s" utilizadas na pesca estuarina na regio de Guaraqueaba .......................................................................................................................... 26
FIGURA 1.6 - Criao de bfalos na regio de Guaraqueaba ................................................. 28
FIGURA 1.7 - Violeiro tocando em viola de caxeta utilizada para a prtica do fandango na regio de Guaraqueaba .......................................................................................................... 30
FIGURA 1.8 - Menino com periquitos na regio de Guaraqueaba ........................................... 32
FIGURA 1.9 - Faixa de praia e trapiche de desembarque na comunidade da Barra do Superagi ................................................................................................................................. 38
CAPTULO 2
FIGURA 2.1 - "Morera" (Famlia Muraenidae), exemplo de excluso total da categoria "peixes" por pescadores da Barra do Superagi ..................................................................... 45
FIGURA 2.2 - "Baiacu" (Famlia Tetraodontidae), exemplo de excluso circunstancial da categoria peixes por pescadores da Barra do Superagi ........................................................ 46
FIGURA 2.3 - Exemplos do sistema de classificao seqencial registrados entre pescadores da Barra do Superagi .......................................................................................... 58
FIGURA 2.4 - Classificao cclica da tainha reconhecida por pescadores da Barra do Superagi com base no ciclo reprodutivo e migratrio ............................................................ 60
III
CAPTULO 3
FIGURA 3.1 - Ambiente denominado "ressaca", representado pela faixa do mar sujeita a ondas, de acordo com a percepo de pescadores da Barra do Superagi ........................... 64
FIGURA 3.2 - Ambiente denominado "baixio", representado por depsitos arenosos que ficam aparentes nos perodos de mar baixa .......................................................................... 68
FIGURA 3.3 - Categorias de distribuio temporal dos peixes reconhecidas por pescadores da Barra do Superagi ............................................................................................................. 77
FIGURA 3.4 - Fragmento de uma cadeia trfica elaborada segundo o conhecimento de pescadores da Barra do Superagi .......................................................................................... 72
FIGURA 3.5 - Fragmento de uma teia alimentar elaborada de acordo como conhecimento de pescadores da Barra do Superagi mostrando peixes que se alimentam de camaro ........... 79
FIGURA 3.6 - Bigus (Phalacrocorax brasilianus), espcie predadora natural de peixes e outros recursos pesqueiros ...................................................................................................... 86
CAPTULO 4
FIGURA 4.1 - Principais recursos pesqueiros capturados nas pescarias na costa na Barra do Superagi, Guaraqueaba ....................................................................................................... 91
FIGURA 4.2 - Bote equipado com "trangones" para a captura de camares na Barra do Superagi, Guaraqueaba ....................................................................................................... 91
FIGURA 4.3 - Pescaria de mar aberto da cavala/sororoca com rede de nylon malha 10 cm na costa prxima Praia Deserta na Ilha do Superagi ............................................................... 92
FIGURA 4.4 - Espinhu utilizado para captura de bagres e outros peixes de fundo ................. 93
FIGURA 4.5 - Cerco fixo de taquara utilizado para captura de tainha e outros peixes .............. 94
FIGURA 4.6 - Pescaria de praia da pescada-galhetera na Ilha do Superagi ........................... 94
FIGURA 4.7 - Peixes in natura conservados no gelo em caixas de isopor na Barra do Superagi ................................................................................................................................. 95
FIGURA 4.8 - Moradora da Barra do Superagi "consertando" peixes ..................................... 96
FIGURA 4.9 - "Descascadeiras" na Barra do Superagi ........................................................... 97
FIGURA 4.10 - Pedaos de raia secando ao sol na comunidade da Barra do Superagi, Guaraqueaba .......................................................................................................................... 107
FIGURA 4.11 - Morador da Barra do Superagi consumindo camares secos ......................... 108
FIGURA 4.12 - Tainhas assando na brasa na comunidade da Barra do Superagi .................. 109
FIGURA 4.13 - "Mata-mo", exemplo de tabu total para consumo no Superagi ...................... 114
FIGURA 4.14 - Acar, peixe que deve ter seu consumo evitado durante o resguardo quando presentes caractersticas morfolgicas especiais .................................................................... 120
FIGURA 4.15 - Percentual das categorias taxonmicas dos recursos pesqueiros utilizados na medicina popular na Barra do Superagi ................................................................................. 121
FIGURA 4.16 Recursos pesqueiros mais citados na medicina popular por moradores da Barra do Superagi e porcentagem relativa de citao ........................................................... 125
IV
FIGURA 4.17 - "Cavalinhas-do-mar" secas utilizadas na medicina popular no Superagi ........ 129
FIGURA 4.18 - Couro de "peixe-porco" utilizado na medicina popular da Barra do Superagi . 129
FIGURA 4.19 - Recursos exgenos de aplicao medicinal comercializados em Paranagu ... 132
1
IINNTTRROODDUUOO
Ecologia e etnoecologia podem ser definidas, em um sentido geral, como o estudo das
relaes entre organismos e a totalidade de fatores fsicos, biolgicos e sociais com os quais
interagem. Uma das diferenas entre estas abordagens o ponto de referncia de onde partem
as explicaes para as inter-relaes: na ecologia a maioria dos autores estuda as relaes
entre organismos no humanos; no caso da etnoecologia, o enfoque central est nas pessoas
em interao com os sistemas (GRAGSON & BLOUNT, 1999).
O conhecimento que vrios grupos humanos tem acumulado sobre o seu habitat e os
recursos biticos e abiticos que utilizam e com os quais interagem, chamado na literatura
especializada de conhecimento ecolgico tradicional ou local.
A etnobiologia e a etnoecologia, de forma geral, estudam as interaes entre os seres
humanos e os componentes do ambiente, buscando entender como a natureza percebida,
conhecida, utilizada, categorizada e classificada por diversas culturas humanas. No existe
consenso entre os diversos autores na conceituao destes termos e etnobiologia , muitas
vezes, mais utilizada nos estudos dos sistemas de classificao etnobiolgica.
O termo "etnoecologia" foi utilizado pela primeira vez na literatura cientfica por CONKLIN
em 1954, em um estudo com os Hanunoo das Filipinas. A conceituao do termo ainda no
chegou a um consenso, bem como a delimitao dos campos de pesquisa abordados.
NAZAREA (1999) definiu etnoecologia como "um modo de olhar" as relaes entre seres
humanos e o mundo natural, com nfase no papel da cognio em moldar comportamentos.
MARQUES (1999) props a linha da Etnoecologia Abrangente, considerada como um campo de
pesquisa (cientfica) transdisciplinar que estuda os pensamentos (conhecimentos e crenas),
sentimentos e comportamentos que intermediam as interaes entre as populaes humanas
que os possuem e os demais elementos dos ecossistemas que as incluem, bem como os
impactos ambientais da decorrentes.
At recentemente a maioria das discusses sobre manejo e sustentabilidade dos
recursos naturais centravam-se em questes ambientais, econmicas ou tecnolgicas. A
maioria dos estudos considerava isoladamente os aspectos scio-econmicos e ambientais,
raramente ocupando-se das relaes culturais, causas e condies que influenciam a inter-
relao homem/natureza. Esta viso tem contribudo para muitas deficincias nos processos
2
legislativos e fiscalizatrios, resultantes da falha no reconhecimento das complexidades
culturais e tnicas. Em geral, as polticas ambientais no levam em considerao a importncia
e utilizao dos recursos naturais pelas populaes locais, sendo estas informaes essenciais
para o controle e a fiscalizao das atividades de caa, pesca e extrativismo.
A partir da dcada de 1980 surgiu internacionalmente um interesse em incorporar as
populaes nativas no manejo das reas naturais protegidas nas quais habitam. Tambm
passou-se a valorizar a perspectiva cultural, onde o conhecimento tradicional e as pessoas que
o possuem, antes vistas como obstculo ao desenvolvimento, passaram a ser consideradas
essenciais a ele (HANBURY-TENISON, 1991).
Nos ltimos anos, informaes etnobiolgicas obtidas junto a populaes humanas tm
representado uma importante ferramenta para estudos conservacionistas, auxiliando no
conhecimento da fauna, flora e ecologia dos ambientes e indicando vrios elementos teis para
o desenvolvimento de uma regio. As pesquisas sobre uso de recursos biolgicos esto sendo
apontadas como prioritrias para a biologia da conservao, ao identificar as condies que
promovem padres de uso dos recursos (NAS, 1992). Alm disto, estes trabalhos tm
contribudo para que a biodiversidade seja devidamente valorizada, no s do ponto de vista
ecolgico, mas tambm do econmico e cultural, contribuindo para a implantao de planos de
manejo e de conservao das espcies embasados em uma realidade social.
A manuteno da diversidade biolgica tornou-se, em anos recentes, um dos objetivos
mais importantes da conservao. Para a cincia moderna, a variabilidade biolgica
entendida como produto da prpria natureza, sem a interveno humana. Vrios estudos, no
entanto, tm mostrado que a biodiversidade pode tambm ser produto da ao das sociedades
e culturas humanas, em particular das sociedades tradicionais no-industriais. O que os
cientistas chamam de biodiversidade, traduzida em longas listas de espcies de plantas e
animais, descontextualizadas do domnio cultural, muito diferente da biodiversidade em
grande parte construda e apropriada, material e simbolicamente, pelas populaes tradicionais
(DIEGUES & ARRUDA, 2001).
O Brasil, alm de apresentar uma das maiores taxas de diversidade biolgica do
planeta, um dos pases de maior diversidade cultural. Existem mais de quinhentas reas
indgenas reconhecidas pelo Estado, habitadas por cerca de duzentas sociedades indgenas
culturalmente diferenciadas. Acrescentam-se a estas as sociedades tradicionais no-indgenas,
3
hoje reconhecidamente representadas pelos aorianos, babaueiros, caiaras,
caipiras/sitiantes, campeiros, jangadeiros, pantaneiros, pescadores artesanais, praieiros,
sertanejos/vaqueiros, varjeiros (ribeirinhos no amaznicos), caboclos/ribeirinhos amaznicos e
quilombolas (DIEGUES & ARRUDA, op. cit.).
Em uma publicao recente o Ministrio do Meio Ambiente afirma que "o conhecimento,
as inovaes e prticas das comunidades locais e populaes indgenas com modo de vida
tradicional so essenciais para a conservao e utilizao sustentvel da diversidade biolgica
e esto se perdendo em propores alarmantes. Salienta que fundamental realizar
inventrios do conhecimento, usos e prticas das sociedades tradicionais indgenas e no-
indgenas, pois estas so, sem dvida, depositrias de parte considervel do saber sobre a
diversidade biolgica hoje conhecida (DIEGUES & ARRUDA, op. cit.).
A busca da compreenso do fenmeno de interao entre seres humanos e os peixes,
em particular, objeto de estudo da etnoictiologia (MARQUES,1995). Os primeiros estudos
realizados especificamente nesta rea foram os de MORRIL (1967), que trabalhou com os
pescadores Cha-cha do Caribe e os de ANDERSON JR. (1967), com os Boat People,
pescadores artesanais de Hong-Kong. Internacionalmente destacam-se ainda os trabalhos de
AKIMICHI (1978), que estudou aspectos ecolgicos do conhecimento sobre peixes do povo Lau
e de JOHANNES (1978 e 1981), que relacionou o conhecimento tradicional de pescadores da
Oceania com o manejo e a conservao dos recursos.
No Brasil, os estudos em etnoictiologia iniciaram-se com o trabalho de MARANHO
(1975) com pescadores da Praia de Icara no Cear, que descreveu os esquemas cognitivos
por eles utilizados na navegao e as tcnicas e tomadas de deciso frente s informaes
dadas por sinais naturais como condies do mar, do tempo, movimento das ondas, entre
outros.
Comunidades martimas foram tambm estudadas por FORMAN (1967 e 1970), que
analisou o conhecimento de pescadores de jangada na costa do Nordeste brasileiro. MARQUES
(1991) documentou um sistema etnoictiolgico muito detalhado entre pescadores do Complexo
Lagunar Munda-Manguaba em Alagoas, realizando um dos mais significativos e abrangentes
estudos da etnoictiologia brasileira. O autor analisou principalmente o conhecimento dos
pescadores sobre etnotaxonomia, distribuio espacial e temporal e ecologia trfica.
Posteriormente este mesmo autor estudou o comportamento dos peixes segundo a percepo
4
dos pescadores (MARQUES, 1994). COSTA-NETO (1998) avaliou a etnoictiologia dentro do
contexto do desenvolvimento e sustentabilidade no litoral norte da Bahia. MOURO (2000)
estudou os modelos cognitivos de pescadores artesanais do esturio do Rio Mamanguape na
Paraba, com relao classificao dos peixes e compreenso de aspectos de sua ecologia
e comportamento.
Com relao a comunidades caiaras, MUSSOLINI (1980) descreveu o conhecimento de
pescadores de So Paulo sobre ecologia da tainha (Mugil platanus), relatando detalhes de seu
comportamento migratrio. SILVA (1988) analisou aspectos da classificao dos recursos
naturais, especialmente peixes, para pescadores de Piratininga no Rio de Janeiro. As
comunidades pesqueiras da Ilha de Bzios e da Baa de Sepetiba foram estudadas por
BEGOSSI (1989 e 1992), BEGOSSI & FIGUEIREDO (1995) e PAZ & BEGOSSI (1996), com relao a
escolhas alimentares e restries ao consumo de peixes, suas relaes com a medicina
popular, etnotaxonomia e conhecimento dos pescadores sobre aspectos da ecologia e
comportamento das espcies cticas. O uso do pescado na alimentao da populao da Ilha
de Bzios foi estudado por BEGOSSI & RICHERSON em 1992, aplicando a teoria do
forrageamento timo e em 1993, utilizando as teorias de nicho ecolgico. A relao entre os
pescadores e os intermedirios na comercializao do pescado na Ilha de Bzios foram
retratados em BEGOSSI (1996). Uso do pescado, incluindo tabus e preferncias alimentares,
tambm foi estudado por SEIXAS & BEGOSSI (1996) em Ilha Grande (RJ) e na Ilha de So
Sebastio (SP). As estratgias pesqueiras de pescadores na Ilha de Bzios foram relatadas em
BEGOSSI (1996a e 1996b). KANT-LIMA (1997) avaliou vrios aspectos relacionados ao saber dos
pescadores de Itaipu (RJ). HANAZAKI (1997) estudou a atividade de pesca e a dieta alimentar
em comunidades de Ubatuba (SP) e HANAZAKI & BEGOSSI (2000) analisaram a pesca e a
dimenso do nicho para consumo alimentar entre pescadores de Ponta da Almada (SP).
Trabalhos etnoictiolgicos com pescadores ribeirinhos foram realizados por BEGOSSI &
GARAVELLO (1990), com comunidades do mdio Rio Tocantins, sobre os sistemas de
classificao usados pelos pescadores, definindo os critrios e as formas de utilizao.
Posteriormente, nestas mesmas comunidades, BEGOSSI & BRAGA (1992) analisaram as
restries alimentares relacionadas ao consumo de peixes e a utilizao dos mesmos na
medicina popular.
5
MARQUES (1995a e b) descreveu a etnoictiologia de pescadores do baixo Rio So
Francisco, atravs da abordagem da etnoecologia abrangente. A pesca e o uso dos peixes por
comunidades ribeirinhas do Alto Juru (AM) foram estudados por BEGOSSI et al. (1999).
No Rio Piracicaba, SILVANO & BEGOSSI (1998) estudaram a pesca artesanal e os efeitos
da poluio e dos desmatamentos das margens sobre os estoques pesqueiros; MADI & BEGOSSI
(1997) analisaram o consumo de pescado pela populao da Rua do Porto e a relao dos
tabus alimentares com a poluio das guas do rio e SILVANO & BEGOSSI (2000) avaliaram a
composio dos desembarques pesqueiros.
Na Represa de Trs Marias (MG), TH (1998) estudou o conhecimento etnoecolgico
dos pescadores e estimou a produo pesqueira e MADI (1999) analisou os usos e critrios de
escolha do pescado por famlias de pescadores.
Comunidades indgenas do alto Rio Negro foram estudadas por RIBEIRO (1995); a
comunidade dos Wayana por VELTHEN (1990); a pesca dos ndios Kayap por PETRERE Jr.
(1990) e a etnoictiologia dos ndios Desna por RIBEIRO & KENHRI (1996).
Os estudos na rea da etnoictiologia tm mostrado que os conhecimentos adquiridos
por comunidades tradicionais pesqueiras so aprofundados, ricos em detalhes e muitas vezes
concordantes com as observaes cientficas, envolvendo relaes taxonmicas e vrios
aspectos da biologia e ecologia de diferentes espcies de peixes.
O conjunto de informaes terico-prticas que os pescadores apresentam sobre o
comportamento, hbitos alimentares, reproduo e ecologia dos peixes oferece uma grande
fonte de conhecimentos praticamente desconhecida pela cincia ocidental sobre como
manejar, conservar e utilizar os recursos naturais de maneira mais sustentvel. Este
conhecimento, que est baseado na experincia, em muitas regies est to ameaado de
extino quanto os prprios recursos biolgicos.
A rea de Proteo Ambiental (APA) de Guaraqueaba, localizada no litoral norte do
Estado do Paran, engloba uma grande diversidade de ecossistemas e abriga cerca de 60
comunidades humanas, constitudas principalmente por pescadores artesanais e agricultores
familiares.
6
A populao local pode ser entendida como populao tradicional segundo a
conceituao estabelecida por DIEGUES (1993)1, caracterizando-se por manter uma grande
integrao com os ecossistemas circundantes. A pesca artesanal est entre as principais
atividades econmicas, juntamente com a agricultura e o extrativismo.
Diversas transformaes econmicas, ambientais, sociais e culturais vm acontecendo
nas ltimas trs dcadas no litoral do Paran, com influncias sobre as relaes entre os
moradores locais e seu ambiente. Ocorreram mudanas no panorama do desenvolvimento
regional e ordenao territorial do litoral, como a criao de unidades de conservao (e
conseqentes restries ambientais), a expanso turstica e influncias da economia de
mercado, modificaes nas tcnicas e prticas de pesca e, ainda, modificaes das
caractersticas ambientais.
Conforme constatado por diversos autores (COUTO et al., 1990; LIMA, 1996; LIMA at al.,
1998; KARAM & TOLEDO, 1997 e FERNANDES-PINTO, 1998), estas mudanas tm refletido no fato
de que o conhecimento do universo local est ficando cada vez mais restrito e as comunidades
esto sofrendo uma descaracterizao de sua forma tradicional de vida, num processo que,
apesar de lento, parece irreversvel.
As relaes das populaes de Guaraqueaba com os recursos naturais, de uma forma
geral, e a atividade pesqueira em particular, tm sido negligenciadas no planejamento e manejo
das unidades de conservao da regio, com implicaes tambm para a cultura e as
condies de vida locais. O conhecimento de como o uso dos recursos acontece e em que
contexto ocorre, pode fornecer informaes valiosas para o gerenciamento das unidades.
Considerando-se ainda que, nesta regio, mais de 70% da populao tm na pesca a sua
principal fonte de renda (CORRA et al., 1997), emerge tambm como prioritria a avaliao do
grau de dependncia desta com relao aos diferentes tipos de recursos cticos.
Partindo-se do princpio de que o conhecimento dos pescadores artesanais de
Guaraqueaba sobre os peixes representa um importante recurso e uma ferramenta essencial
1 Populaes tradicionais so entendidas como grupos sociais que tm um modo de vida diferente das populaes urbano-industriais e que, via de regra, mantm com os recursos naturais uma relao de dependncia pautada no respeito aos ciclos naturais. O manejo dos recursos ocorre atravs de um complexo de conhecimentos adquiridos pela tradio herdada dos mais velhos, resultando na adequao de uso e manuteno dos ecossistemas naturais (DIEGUES, 1993).
7
para o manejo e conservao da regio e que o mesmo encontra-se localmente ameaado de
extino, considera-se o seu resgate e registro como de fundamental importncia.
Desta forma, o presente trabalho tem como objetivo principal estudar os modelos
cognitivos dos pescadores da regio de Guaraqueaba, com nfase em aspectos
etnotaxmicos e do conhecimento etnoecolgico sobre peixes e aspectos conexivos voltados
para as formas de apropriao e uso dos recursos pesqueiros, tomando-se a comunidade de
Barra do Superagi como estudo de caso. Os objetivos especficos sero detalhados em cada
captulo.
Este trabalho pretende contribuir para a compreenso das populaes tradicionais da
APA de Guaraqueaba como parte integrante do ecossistema em que esto inseridas e
fornecer subsdios para o planejamento ambiental da regio e para futuras propostas
conservacionistas embasadas na realidade das populaes locais.
MMEETTOODDOOLLOOGGIIAA
O trabalho de campo foi realizado na comunidade da Barra do Superagi, Municpio de
Guaraqueaba, no perodo compreendido entre maro de 1999 e dezembro de 2000, atravs
de idas mensais ao campo com durao de aproximadamente sete dias.
Os dados foram inicialmente obtidos atravs de entrevistas casuais e no estruturadas2
com 54 moradores da comunidade. As finalidades destas entrevistas foram identificar os temas
gerais e as categorias micas3 reconhecidas pela populao nos aspectos relacionados
ictiofauna local e obter uma lista de nomes vernaculares para os peixes.
A transgeracionalidade do conhecimento etnoictiolgico local foi analisada
entrevistando-se pessoas de diferentes idades. Alm disso, a homogeneidade do
2 Considerou-se como entrevistas casuais aquelas realizadas informalmente, sem um contexto de entrevista; entrevistas no-estruturadas como aquelas realizadas sem um roteiro, mas onde o contexto de entrevista existe e a pessoa est informada disto; e entrevistas semi-estruturadas, aquelas que seguem um roteiro temtico pr-estabelecido. 3 Os conceitos "mico" e "'tico" derivam lingisticamente de "fonmico" e "fontico" e so usados na etnobiologia como pontos de vista diferenciados para analisar as informaes. A perspectiva "mica" considera a abordagem interna da populao em estudo, as categorias por elas nomeadas e descritas. A perspectiva "tica" a viso externa, que considera as categorias e interpretaes dos pesquisadores e da cincia oficial.
8
conhecimento foi testada entrevistando-se pessoas de ambos os sexos, de diferentes classes e
papis sociais.
A partir dos temas identificados, trabalhou-se com entrevistas semi-estruturadas, onde
o nmero de entrevistados variou de acordo com o assunto, sendo abordados moradores
reconhecidos como "especialistas" e indicados por outros membros da comunidade. No geral,
foram realizadas um total de 60 entrevistas semi-estruturadas, com 38 moradores locais. A
diferenciao social e cultural existente atualmente na Barra do Superagi dificultou a anlise
de alguns temas, especialmente etnotaxonomia.
Uma anlise preliminar da variao intracultural com relao nomeao dos peixes
permitiu diferenciar um grupo mais ou menos homogneo, formado pelos pescadores mais
antigos, com idade superior a 65 anos e que nasceram e sempre moraram na regio de
Guaraqueaba. De forma a facilitar a anlise e na medida em que a principal proposta deste
trabalho realizar um resgate do conhecimento tradicional, optou-se por separar as
informaes provenientes deste grupo (n=11) no estudo da classificao etnobiolgica.
Na parte de etnotaxonomia, as entrevistas semi-estruturadas foram conduzidas
procurando obter a descrio de cada peixe nomeado e identificar possveis agrupamentos.
Perguntas cruzadas foram utilizadas para averigar eventuais nomes esquecidos, a partir das
categorias micas relacionadas. Para efeito de anlise das informaes foram considerados
apenas os nomes citados por mais de um pescador e as referncias para os nomes
considerados sinnimos foram agrupadas. Foi considerado como nome principal aquele citado
pelo maior nmero de pescadores e os demais, tratados como sinonmias.
A anlise dos padres classificatrios considerou o universo amostral de todos os
peixes "conhecidos" pelos entrevistados e no apenas aqueles coletados. Para analisar a
classificao hierrquica adotou-se neste estudo o modelo estabelecido por BERLIN (1973 e
1992). Os demais padres classificatrios seguiram o proposto por MARQUES (1991).
Foram adotadas tcnicas da observao participante para a descrio das prticas
pesqueiras atuais e a "tcnica da turn" proposta por SPRADLEY & MCCURDY (1972), realizando-
se excurses guiadas pelos pescadores, principalmente para o reconhecimento dos diferentes
tipos de habitat. Alguns eventos observados foram documentados fotograficamente, bem como
os atores sociais, as atividades de pesca e os recursos pesqueiros.
9
Para a anlise da importncia comercial do pescado, alm das entrevistas com os
pescadores e com os comerciantes da comunidade, foram realizadas visitas sazonais aos
mercados populares localizados nos centros comerciais prximos comunidade estudada.
As entrevistas foram realizadas apenas pela autora e registradas por escrito e/ou
eletromagneticamente. Todas as informaes levantadas foram transcritas e codificadas
segundo o assunto relacionado, a partir dos temas e categorias micas previamente
identificadas, sendo ento organizadas em um banco de dados.
Optou-se por uma abordagem essencialmente qualitativa e de anlise de discursos,
recorrendo-se quantitativa em situaes especficas. Os valores de freqncia relativa
calculados representam o percentual de entrevistados que citaram espontaneamente um
determinado recurso.
Os dados foram analisados segundo o modelo de "unio das diversas competncias
individuais" (HAYS in MARQUES, 1991) e a anlise dos discursos utilizou uma nova tcnica
denominada anlise do discurso do sujeito coletivo, proposta por LEFVRE et al. (2000)4.
Os controles foram feitos atravs da verificao de consistncia e de validade das
respostas, recorrendo-se a entrevistas repetidas em situaes sincrnicas (quando uma
pergunta feita a pessoas diferentes em tempos prximos) e diacrnicas (quando uma
pergunta j feita anteriormente repetida mesma pessoa em tempos distintos).
Exemplares de peixes e outros recursos pesqueiros foram adquiridos durante o
acompanhamento das atividade de pesca, sendo registrado o nome vernacular correspondente
citado pelos pescadores. Estes exemplares foram posteriormente apresentados a moradores
idosos da comunidade para confirmao da identificao (FIGURA 1).
4 Esta metodologia consiste em agregar discursos individuais e obter discursos coletivos atravs de quatro figuras metodolgicas bsicas: ancoragem (marcas lingsticas), idia-central (a essncia de cada discurso), expresses-chave (transcries literais) e discursos do sujeito coletivo, resgatando o total dos discursos existentes sobre um tema ou objeto.
10
FIGURA 1 - Pescador idoso identificando exemplares de peixe coletados durante as atividades de pesca.
Recorreu-se, complementarmente, a identificaes cruzadas (quando exemplares
identificados por um pescador eram submetidos a outros para confirmao) e identificaes
repetidas (quando exemplares j identificados por um pescador eram novamente submetidos
mesma pessoa, decorrido um certo espao de tempo, para nova identificao).
Alm dos exemplares coletados durante o acompanhamento das atividades pesqueiras,
outros foram doados por comerciantes de pescado da comunidade. Os peixes foram
congelados e transportados para o Laboratrio de Ictiologia do Centro de Estudos do Mar
(CEM/UFPR). A identificao cientfica foi feita por especialistas na ictiofauna da regio, com
base na seguinte bibliografia: FIGUEIREDO, 1977; FISHER, 1978; FIGUEIREDO & MENEZES, 1978 e
1980; MENEZES & FIGUEIREDO, 1980 e 1985; MENEZES, 1983; CORRA, 1987; BARLETTA &
CORRA, 1992 e CERVIGN et al., 1992 e por comparao com exemplares depositados na
11
coleo ictiolgica do CEM. Os exemplares foram fixados em formol a 10%, conservados em
lcool a 70% e depositados na coleo ictiolgica da referida instituio.
Para os peixes cujos exemplares no foram coletados, procurou-se estabelecer uma
relao com as identificaes populares consideradas no trabalho de CORRA (1987) e
correspondncias tentativas a partir de "pistas taxonmicas" das descries fornecidas pelos
pescadores. As identificaes cientficas para os peixes citados ao longo do texto encontram-se
listadas no ANEXO.
Os resultados foram apresentados na forma de captulos, sendo o primeiro referente
caracterizao da regio estudada; o segundo, a aspectos etnotaxonmicos; o terceiro, ao
conhecimento etnoecolgico e o quarto, a aspectos utilitrios da relao entre pescadores da
Barra do Superagi e os peixes de seu ambiente. O tempo verbal utilizado no texto foi o
presente etnogrfico. Procurou-se manter literalmente os depoimentos dos pescadores, sem
adequaes e correes ortogrfica, de forma a aproximar o mximo possvel o texto escrito do
discurso passado oralmente.
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CAPTULO 1 - GGUUAARRAAQQUUEEAABBAA:: PPAAIISSAAGGEENNSS EE PPEESSSSOOAASS
1. CARACTERIZAO GERAL
O municpio de Guaraqueaba situa-se no litoral norte do Paran, entre as coordenadas
UTM X 718.000 e 800.000 e Y 7.176.000 e 7.250.0005. A rea de Proteo Ambiental (APA)6
de Guaraqueaba, unidade de conservao criada em 1985 com cerca de 314 mil ha, engloba
integralmente este municpio, alm de partes dos municpios vizinhos de Antonina, Paranagu
e Campina Grande do Sul (FIGURA 1.1).
A estrada PR-405 a nica via de acesso virio regio, em um trecho de 78 km de
estrada no pavimentada. Esta estrada foi aberta por volta de 1970, mas permaneceu
intransitvel durante muitos anos. A dificuldade de acesso virio resultou num relativo
isolamento poltico-geogrfico que, associado baixa densidade demogrfica (cerca de 4
hab/km2) contribuiu para o bom estado atual de conservao ambiental e cultural da rea.
A regio de Guaraqueaba, de uma forma geral, apresenta uma srie de
particularidades climticas, hidrogrficas, topogrficas, ecolgicas, histricas, scio-
econmicas e culturais que a distingue de outras regies do Paran e do Brasil.
A APA de Guaraqueaba abriga um rico patrimnio natural, compreendendo, em sua
extenso continental, costeira e estuarina, uma grande diversidade de ambientes, sobre os
quais atualmente incidem uma srie de mecanismos legais federais e estaduais visando sua
proteo. Permeando este rico mosaico de ecossistemas encontram-se diversas comunidades
que revelam uma diversidade scio-cultural to importante quanto a diversidade fsica e
biolgica, representando uma cultura peculiar e diferenciada.
5 Projeo Universal Transversa de Mercator - Meridiano Central -51oW.Gr. Datum SAD-69. 6 As reas de Proteo Ambiental (APA) representam uma categoria de Unidade de Conservao de manejo sustentado, instituda em 1981 e regulamentada em 1990. Constitudas por reas pblicas e/ou privadas, tm o objetivo de disciplinar o processo de ocupao de terras e promover proteo dos recursos biticos e abiticos dentro de seus limites, de modo a assegurar o bem estar das populaes humanas que a vivem, resguardar ou incrementar as condies ecolgicas locais e manter paisagens e atributos culturais relevantes (IBAMA, 2002).
13
FIGURA 1.1 - Mapa de localizao da regio de Guaraqueaba: divisas e sede municipal, PR-405, limites da APA e do PARNA do Superagi e comunidade da Barra do Superagi (LAB.SIG-SPVS).
14
2. ASPECTOS FSICOS E BIOLGICOS7
A parte continental da APA de Guaraqueaba constituda por vastas serras (como a
Serra da Virgem Maria, Serra Negra, da Utinga e do Itaqui), reas de plancie litornea e
planalto.
A parte estuarina formada pelas baas das Laranjeiras, dos Pinheiros e de
Guaraqueaba e pelas Enseadas do Benito e Itaqui, fazendo parte do Complexo Estuarino-
Lagunar que se estende de Iguape a Paranagu (FIGURA 1.2). Grandes baixios (depsitos de
areia e lodo) so encontrados em toda a regio, impondo limites e uma estreita dependncia
dos ciclos de mar para a navegao.
As baas so margeadas por extensas reas de manguezais, que ocupam cerca de 18
mil ha na regio, ainda em bom estado de conservao (FIGURA 1.3). Vrios rios drenam para
estas reas, sendo os principais o Rio Guaraqueaba, o Serra Negra, o Tagaaba, o Medeiros
e o Itaqui.
Nas baas tambm encontram-se vrias ilhas sedimentares de diversos tamanhos, que
surgiram lentamente ao longo dos ltimos sete mil anos, atravs de sucessivas deposies
marinhas. As maiores so a Ilhas das Peas, a Ilha Rasa e a Ilha artificial do Superagi8.
Na parte exposta formam-se praias e na plataforma continental surgem pequenas ilhas
ocenicas granticas, como a da Figueira.
A linha de costa de todo o litoral paranaense encontra-se em contnua alterao, pela
ao da eroso e sedimentao de material, num processo extremamente dinmico e que
aparenta ter carter cclico.
7 Texto escrito com base principalmente no "Zoneamento Ecolgico-Econmico da APA de Guaraqueaba", convnio IPARDES & IBAMA (1997). 8 Em 1953, a abertura do Canal do Varadouro transformou em ilha o brao do continente at ento denominado "Pennsula do Superagi", permitindo a comunicao marinha entre o litoral sul de So Paulo e o do norte do Paran.
15
FIGURA 1.2 - Vista geral da regio continental e estuarina de Guaraqueaba.
FIGURA 1.3 - Manguezal na regio de Guaraqueaba.
16
O clima regional, segundo a classificao de KOEPPEN, do tipo "CFA", definido como
subtropical mido mesotrmico. A temperatura mdia anual gira em torno de 20oC e a umidade
relativa do ar em 85%, com pouca variao ao longo do ano. A pluviosidade elevada (mdia
de 2.400 mm anuais e 207 dias de chuva por ano), com precipitaes regulares bem
distribudas entre os meses, sem estao seca definida. Os maiores ndices pluviomtricos
ocorrem no vero (dezembro a maro) e os menores no final do outono e durante o inverno
(abril a agosto).
A APA de Guaraqueaba faz parte do Domnio da Floresta Ombrfila Densa (Floresta
Atlntica) e representa atualmente, junto com a poro de Iguape e Canania no litoral sul de
So Paulo, a maior e mais bem preservada rea contnua de remanescente deste tipo florestal
e de seus ecossistemas associados9. A vegetao na regio apresenta dois ambientes
fisionmica e ecologicamente distintos: as reas de formaes pioneiras e a regio da floresta
ombrfila densa propriamente dita.
As formaes pioneiras so os ambientes de primeira ocupao, que se instalam sobre
reas onde ocorrem deposies sedimentares ao longo do litoral. Abrangem tipos distintos de
vegetao, diferenciados pela intensidade com que so influenciados pela gua do mar, dos
rios ou pela ao combinadas de ambos. As formaes pioneiras de influncia marinha so
representadas pela vegetao de dunas e de restinga; as de influncia flvio-marinha, pelos
manguezais e reas de transio; e as de influncia fluvial, pelos brejos e caxetais.
As regies de Floresta Ombrfila Densa, em funo da situao topogrfica e das
condies edficas locais, so formadas por diferentes tipos florestais, subdivididos de acordo
com a faixa altimtrica em de Terras Baixas ou das Plancies Quaternrias (at altitudes de 40-
50 metros acima do nvel do mar - a.n.m.); Sub-Montana ou do incio das encostas (de 40-50 a
500-700 m a.n.m.); Montana (500-700 a 1000-1200 m a.n.m.) e Alto-Montana (a partir de 1000-
1200 m a.n.m.).
Ao longo das vrzeas dos grandes rios estabelecem-se, ainda, reas de Floresta
Ombrfila Densa das Plancies Aluviais.
A maior parte das reas de floresta na APA de Guaraqueaba, especialmente a da
9 Este bioma, que se estendia ao longo de toda a costa brasileira, sofreu grande presso antrpica ao longo da histria e atualmente encontra-se reduzido a menos de 8% de sua cobertura original, sendo considerado um dos ecossistemas mais ameaados do planeta (FUNDAO SOS MATA ATLNTICA & INPE, 1993).
17
plancie e a sub-montana, sofreram interveno humana em diferentes nveis a partir de
meados do sculo passado, principalmente pela extrao seletiva de madeira e a abertura de
roas. possvel observar nesta regio todos os estgios sucessionais da vegetao
secundria, desde comunidades pioneiras de primeira ocupao at florestas secundrias bem
desenvolvidas, passando por capoeiras e capoeires e formando um verdadeiro mosaico
vegetacional. A APA representa atualmente um ambiente florestal extenso e relativamente
contnuo que, associado diversidade de ecossistemas existentes, fazem desta regio um
importante reduto natural, ocorrendo um grande nmero de espcies vegetais e animais.
Com relao fauna de vertebrados terrestres, foram registradas para a regio cerca
de 70 espcies de mamferos, 340 espcies de aves, 50 de rpteis e 35 de anfbios. A regio,
no entanto, carece de levantamentos e estudos mais aprofundados e sistemticos, tendo-se
pouco conhecimento da abundncia e distribuio das espcies, bem como de aspectos da sua
biologia e ecologia. Ressalta-se a ocorrncia de muitas espcies endmicas da Floresta
Atlntica e outras raras e/ou ameaadas de extino em outras regies do Estado do Paran e
do Brasil.
Quanto ictiofauna, no litoral do Paran foram registradas um total de 313 espcies
pertencentes a 92 famlias, sendo 289 espcies e 80 famlias de Actinopterygii e as demais, de
Chondrichthyes. Dentre os Actinopterygii, a famlia Myctophidae a que apresenta maior
registro de nmero de espcies na regio da plataforma continental (37 espcies) e Sciaenidae
e Carangidae, nas regies costeiras (com 22 e 17 espcies, respectivamente) (CASTELLO et al.,
1994).
Para o sistema estuarino da Baa de Paranagu foram registradas 173 espcies de
Actinopterygii e 28 de Chondrichthyes. As famlias mais abundantes foram Mugilidae, Ariidae,
Sciaenidae, Gerreidae, Atherinidae, Clupeidae, Carangidae, Serranidae e Tetraodontidae
(CORRA, 1987 e 2001).
A composio especfica desta regio apresenta uma similaridade maior com a fauna
de guas quentes tropicais ou carabicas (CORRA, 1987). Por tratar-se de uma rea
intermediria entre rios e o oceano, a regio est diretamente relacionada com migraes de
vrias espcies cticas (CASTELLO et al., 1994). A temperatura e a salinidade da gua
(associada pluviosidade e s mars) parecem ser os principais fatores determinantes da
distribuio da ictiofauna (CORRA, 1987).
18
De modo geral, os trabalhos sobre recursos pesqueiros realizados no litoral do Paran
mostraram que o conhecimento sobre composio e diversidade ctica evoluiu rapidamente
para os ambientes estuarinos da regio. Contudo, aspectos do ciclo biolgico (reproduo,
crescimento, alimentao), da dinmica das populaes naturais, da estrutura e dos padres
de distribuio espacial e temporal, permanecem ainda pouco conhecidos (CORRA, 1995).
3. ASPECTOS SCIO-ECONMICOS, HISTRICOS E CULTURAIS10
Os primeiros indcios da ocupao humana e da utilizao dos recursos naturais no
litoral do Paran foram constatados atravs de vestgios arqueolgicos denominados
"sambaquis" ou "casqueiros" (formados por depsitos de restos alimentares, principalmente
conchas de moluscos e, em alguns casos, utenslios diversos e urnas funerrias). Estima-se
que existam mais de 100 espalhados pela regio de Guaraqueaba e os mais antigos datam de
at 6.000 anos.
Os grupos indgenas que habitavam a regio no incio do contato com os primeiros
colonizadores europeus estavam representados por Carij e Tupiniquim, com uma populao
estimada entre seis e oito mil. Estes grupos, alm de pesca, caa e coleta de frutos, cultivavam
algumas plantas e eram exmios ceramistas. As causas do despovoamento indgena no litoral
paranaense no so bem conhecidas, sendo que referncias diversas apontam para o
aprisionamento de ndios como escravos, o processo de miscigenao e o abandono da regio.
A colonizao portuguesa iniciou-se por volta de 1530, como conseqncia do
povoamento de So Vicente no litoral de So Paulo, de onde partiram expedies para
aprisionamento de ndios e busca de ouro. Entre 1630 e 1640 foram descobertas vrias jazidas
de ouro na regio de Guaraqueaba, o que levou instalao de muitos mineiros na rea,
intensificando a ocupao e a miscigenao. O ciclo do ouro comeou a declinar no sculo
XVII, com a descoberta de minas mais produtivas no interior do pas.
O primeiro povoado de Guaraqueaba foi a Vila do Ararapira, fundada em 1767. Por
volta de 1770, missionrios de Canania criaram uma reduo agrcola-religiosa na regio do
Superagi. A partir do final do sculo XVIII comearam a instalar-se grandes fazendas com
mo-de-obra de escravos negros. Vrias localidades se desenvolveram, espalhadas por toda a
10 Texto escrito principalmente com base nos trabalhos de BEHR (1991), SPVS (1994) e FERNANDES-PINTO & NICOLAU (2001).
19
regio.
Em 1835 foi construda a capela de Bom Jesus dos Perdes de Guaraqueaba e em
torno desta foram surgindo as primeiras edificaes que deram origem ao povoado de
Guaraqueaba, que se tornou municpio em 1880.
Na segunda metade do sculo XIX, imigrantes de vrios pases europeus e de outras
partes do mundo vieram para a regio do litoral do Paran, tendo-se registro de italianos,
suos, alemes, franceses, letos, mouros, rabes, entre outros. Em 1852 foi fundada na regio
do Superagi uma colnia de imigrantes principalmente suos mas tambm franceses,
alemes e italianos.
Nessa poca, as populaes humanas da regio formavam pequenos ncleos
baseados nas relaes de parentesco e desenvolviam principalmente a agricultura. A ocupao
das terras era minifundista e a posse era estabelecida a partir do seu uso. As atividades
produtivas caracterizavam-se por uma relativa auto-suficincia, por utilizarem fora de trabalho
familiar e estarem organizadas a partir das habilidades pessoais e dos laos histricos com as
produes. O modo de vida estava baseado na utilizao conjugada de uma grande
diversidade de recursos e de diferentes ambientes, dependendo de um profundo conhecimento
dos ecossistemas da regio, sua fauna e flora, atravs de um processo histrico passado e
aperfeioado de gerao a gerao. O transporte fazia-se essencialmente por via fluvial e
martima e o porto de Guaraqueaba centralizava as atividades comerciais do litoral
paranaense.
O apogeu econmico da regio ocorreu entre o final do sculo XIX e incio do XX.
Excedentes da produo agrcola, principalmente banana e arroz, alm de produtos
extrativistas, eram comercializados nos municpios vizinhos e exportados para a Argentina e
Paraguai.
Em meados do sculo XX, o crescimento populacional e econmico de Antonina e
Paranagu e a ligao terrestre atravs destes municpios do litoral ao planalto paranaense
do incio a um processo de estagnao econmica em Guaraqueaba. Alm disso, a abertura
de novas fronteiras agrcolas no interior do Estado leva ao declnio da importncia da produo
agrcola local, que se volta basicamente para a subsistncia familiar, conjugando-se com a
pesca.
O nmero de habitantes diminuiu consideravelmente entre a dcada de 1930 e 1950,
20
sendo que a partir desta data at os dias atuais, permanece estvel.
No final da dcada de 1950 e ao longo da de 1960, instaurou-se na regio de
Guaraqueaba um intenso processo de apropriao de terras por grandes grupos econmicos,
principalmente empresas agropecurias, gerando vrios conflitos e excluindo parte dos
produtores locais (sem vnculo legal com as propriedades) do acesso terra. Este processo,
conjugado ao declnio da importncia comercial da atividade agrcola, gerou como
conseqncia uma migrao de parcelas da populao para centros urbanos (Paranagu e
Curitiba) e o deslocamento de outras para reas mais propcias para a pesca, onde esta
atividade intensificou-se. O processo de especulao imobiliria aumentou ainda mais na
dcada de 1970, com a abertura da estrada PR-405.
Na dcada de 1980, uma "avalanche" de leis federais e estaduais e de Unidades de
Conservao criadas na regio em um curto espao de tempo vo contribuir para limitar ainda
mais o processo de trabalho artesanal e o modo de vida tradicional.
Uma boa parte das atividades historicamente exercidas pelos moradores foram sendo
sistematicamente proibidas ou regulamentadas por rgos externos, em geral sem a
participao da populao local e sem levar em considerao a realidade social da regio. Para
os moradores locais, aps um ciclo de perda de suas terras, d-se um novo processo, desta
vez de tomada dos direitos de uso dos recursos naturais, no sendo reconhecidas suas
necessidades de sobrevivncia.
Com relao ao uso dos recursos naturais, os efeitos deste processo se fazem sentir na
especializao das comunidades no uso de determinados recursos. Uma srie de conexes
com a flora e fauna so perdidas ou enfraquecidas, como exemplo de muitas atividades
relacionadas com a cultura material e o uso de plantas e animais na medicina tradicional.
Por outro lado, atividades que encontram um mercado legal ou ilegal, vo se
fortalecendo, como a extrao do palmito, por exemplo, que passou a ser realizada em toda a
regio e o aumento da explorao de alguns recursos pesqueiros como camares e ostras.
Resumidamente, o quadro passa a apontar para uma situao de concentrao das pessoas
da regio, convivendo em reas cada vez menores e utilizando de forma mais intensa
determinados recursos naturais.
21
4. SITUAO ATUAL11
Estima-se que na regio da APA de Guaraqueaba existam atualmente cerca de 60
comunidades espalhadas pela poro continental e nas ilhas do esturio, totalizando
aproximadamente 10.000 habitantes.
As principais atividades desenvolvidas pela populao ativa so a pequena lavoura, a
pesca, o extrativismo (principalmente de palmito, Euterpe edulis), o pequeno comrcio, os
servios pblicos (sendo a Prefeitura Municipal de Guaraqueaba o principal empregador) e
uma remanescente prtica de artesanato ou, mais adequadamente, produo de objetos
utilitrios.
Nos ltimos anos tm aumentado a importncia de atividades como prestao de
servios temporrios (pedreiro, carpinteiro, transporte de material, etc.) e servios voltados
para o turismo e para os veranistas (servios em pousadas e restaurantes, acompanhamento
de pesca esportiva e comrcio de iscas, guias para trilhas, caseiros, barqueiros, etc.).
A APA de Guaraqueaba considerada uma das regies mais pobres do Estado do
Paran, segundo os ndices que so utilizados como padres para avaliao econmica, com
uma economia formal de pequeno crescimento e baixos nveis de qualidade de vida.
No existe saneamento bsico nem coleta de resduos slidos. Atualmente quase todas
as vilas possuem energia eltrica e a maioria no conta com sistema de tratamento de gua. O
acesso aos cuidados mdicos precrio e a maioria das vilas no tem posto de sade ativo.
Os ndices de mortalidade infantil na regio esto entre os mais altos do pas, sendo as
parasitoses uma das principais causas.
A maioria das escolas atende a alunos da primeira quarta srie em turmas
multisseriadas e enfrentam problemas de manuteno da estrutura fsica, falta de material
escolar adequado e de qualificao dos professores (FIGURA 1.4). Cerca de 65% da populao
considerada semi-analfabeta.
11 Texto baseado principalmente nos trabalhos de IPARDES (1989); SPVS (1992a e b); IBAMA & SPVS (1995) e KARAM & TOLEDO, 1997.
22
FIGURA 1.4 - Escola Municipal em uma das comunidades estuarinas da APA de Guaraqueaba.
A regio tem srios problemas fundirios e de conflitos pela posse da terra. A
sobreposio de ttulos de propriedade leva a uma situao em que a rea dos imveis
declarados junto ao INCRA quase o dobro da rea total do municpio. A grande maioria dos
pequenos proprietrios locais no tm ttulo de propriedade das reas que ocupam.
A maior parte dos imveis declarados so de propriedade de no residentes no local
(fazendeiros de Curitiba e outros municpios), gerando um quadro em que atualmente mais de
95% da rea da APA no pertence populao que nela habita e dela vive.
O intenso processo de transformaes econmicas, sociais e culturais, que
Guaraqueaba vem passando nas ltimas dcadas, teve influncias diretas nas relaes entre
a populao e os recursos naturais. Atualmente a regio marcada por uma srie de
problemas de gesto, desenvolvimento e conservao, com graves conflitos fundirios, entre
as atividades econmicas e entre as prticas humanas e a fiscalizao.
A introduo de novos processos sociais, decorrentes da "modernizao" e
"desenvolvimento" da sociedade vem provocando alteraes nos hbitos, valores e modo de
vida da populao local, nas suas concepes de natureza e conseqentemente, na forma de
utilizao do espao e dos recursos naturais. O quadro atual aponta para uma crescente
descaracterizao scio-cultural das comunidades e esta situao reflete-se em um novo
desafio frente questo ambiental e cultural da regio.
A constituio de uma APA visa conciliar a preservao dos recursos naturais e a
manuteno e melhoria das condies de vida das populaes que habitam a rea. No entanto,
23
na prtica a realidade observada bastante complexa e a conciliao do desenvolvimento com
a conservao dos recursos apresenta-se como um grande desafio, ainda carente de exemplos
de sucesso.
5. RELAES ENTRE A POPULAO E OS RECURSOS NATURAIS
5.1. A ATIVIDADE PESQUEIRA
A pesca no Complexo Estuarino da Baa de Paranagu descrita como essencialmente
artesanal e de subsistncia, com a comercializao dos excedentes de produo nos mercados
regionais (KRAEMER, 1982; CORRA, 1987; SPVS, 1992; ROUGEULLE, 1993; IPARDES, 1989a e
b e 1995; IBAMA/SPVS, 1995 e 1996).
A atividade pesqueira na regio pode ser dividida em dois segmentos produtivos
distintos: pesca estuarina e pesca marinha/costeira (SPVS, 1992). A pesca estuarina
realizada principalmente pelas comunidades das regies internas das baas e utiliza-se de
apetrechos de pesca diversificados. realizada com pequenas canoas monxilas ("canoa de
um pau s"), produzidas localmente, movidas a remo ou impulsionadas por motores de centro
de baixa potncia (5 a 11 Hp) (FIGURA 1.5). A pesca marinha/costeira realizada por
comunidades praieiras localizadas nas barras de acesso regio estuarina. Utiliza
embarcaes maiores confeccionadas com tbuas e motores mais potentes (15 a 30 Hp).
FIGURA 1.5 - Canoas de "um pau s" utilizadas na pesca estuarina na regio de Guaraqueaba.
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Nos ltimos anos ocorreram muitas mudanas na atividade, tanto com relao aos
apetrechos, tcnicas e embarcaes utilizados, quanto s espcies capturadas. As poucas
informaes disponveis sobre a pesca artesanal no litoral do Paran e informaes obtidas
junto aos pescadores apontam, por um lado, uma diminuio no volume de pescado capturado
e intensificao da explorao de outros recursos pesqueiros (como camares, ostras e
caranguejo) e por outro, para o agravamento da situao scio-econmica das comunidades
pesqueiras tradicionais (IPARDES, 1989; CUNHA et al., 1989; SPVS, 1992; CORRA et al., 1997;
KARAM & TOLEDO, 1997).
A legislao pesqueira atual incidente na regio foi reunida e revista por CORRA
(2000). Segundo o autor, esta apresenta um carter eminentemente regulamentar, carecendo
de dispositivos controladores. No so estimulados estudos de biologia e avaliao de estoque
pesqueiro. Os controles de desembarque no esto sendo realizados e no se tem estatsticas
sobre a produo. Contribuem ainda para o descontrole do setor, as freqentes criaes,
extines e fuses, com transferncia das responsabilidades entre os rgos governamentais e
sobreposies do poder do estado e da unio. A legislao no exige nem relaciona requisitos
bsicos para o exerccio da pesca.
5.2. A ATIVIDADE AGRCOLA E PECURIA
Os solos da regio de Guaraqueaba apresentam, em geral, uma baixa aptido
agrcola. O sistema tradicional de cultivo era o "pousio", chamado na regio de "roa de
coivara". O Cdigo Florestal proibiu o corte de estgios avanados de sucesso florestal e o
uso de terras de vrzeas de rios (os mais propcios para agricultura na regio). Nas
comunidades continentais, a diminuio da atividade agrcola foi causada por imposies
legais, influncias de mercado, limitaes do uso das terras e conseqentemente, a
impossibilidade de utilizar o sistema tradicional de cultivo (IPARDES & IBAMA, 1997).
A rea ocupada com agricultura pouco significativa, mesmo nas localidades onde a
produo relevante. Atualmente, a atividade voltada principalmente para subsistncia, com
poucas culturas comerciais (IPARDES & IBAMA, 1997).
Os principais produtos plantados so mandioca, banana, arroz, milho e feijo. A
bananicultura tem maior representatividade na regio em termos de rea ocupada e envolve
grande parte das comunidades continentais. Espcies frutferas como goiaba, jaboticaba,
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carambola, laranja-grande e laranja-mimosa tambm so cultivadas. O cultivo da mandioca
(Manihot esculenta) foi muito importante no passado, mas hoje est voltado principalmente
para o consumo familiar e para a produo de farinha (IPARDES & IBAMA, op. cit.).
A pecuria na regio representada principalmente pela bubalinocultura extensiva nas
grandes e mdias propriedades (FIGURA 1.6). J nas pequenas propriedades comum a
criao de galinhas, patos ou porcos para consumo familiar (IPARDES & IBAMA, op. cit.).
FIGURA 1.6 - Criao de bfalos na regio de Guaraqueaba.
5.3. EXTRATIVISMO E USO DAS PLANTAS NATIVAS
Resultados de estudos etnobotnicos em comunidades continentais da APA de
Guaraqueaba encontram-se relatados em LIMA (1992); SPVS (1992b e 1995), LIMA (1996) e
LIMA et al. (2000) e nas comunidades adjacentes ao Parque Nacional do Superagi em MATER
NATURA (1998). Estes trabalhos demonstraram que as populaes que habitam a APA de
Guaraqueaba possuem grande conhecimento sobre as espcies da flora regional e utilizam-
nas com diversas finalidades (uso medicinal, para alimentao, desdobro de madeira, artefatos
de pesca, uso comercial, artesanato, uso silvicultural, ornamental, agrcola, rao animal,
mgico-religioso, uso veterinrio, obteno de fibras e cercas vivas, entre outros).
Cerca de 320 espcies de plantas foram citadas como de uso medicinal nas
comunidades continentais da APA de Guaraqueaba e aproximadamente 240 espcies, nas
26
comunidades adjacentes ao Parque Nacional do Superagi. Destacaram-se o cip-milome
(Aristolochia spp.), o hortel (Mentha sp.), a goiabeira (Psidium guajava) e o quebra-pedra
(Phyllanthus spp.).
A cultura material desta regio representada por muitos tipos de objetos utilitrios,
produzidos pela populao a partir dos recursos naturais locais, como balaios e cestos (de
taquara e cip), esculturas em madeira (usando principalmente a caxeta e representando
elementos da fauna da regio, miniaturas de "farinheiras" e embarcaes, etc.), instrumentos
musicais (violas, rabecas e pandeiros, utilizados na prtica do "fandango" - FIGURA 1.7),
utenslios para uso domstico (peneiras, gamelas, etc.), cabos de ferramentas manuais,
gaiolas, esteiras, chapus, piles, redes de dormir, equipamentos das "casas de farinha ou
farinheiras" (como tipiti, prensas, cochos, etc.), apetrechos de caa e pesca (redes, canoas,
remos, armadilhas de pesca, "cvos", etc.), as prprias casas e ranchos, coberturas de palha,
entre outros. Em algumas vilas estas produes ainda persistem, particularmente nas mais
isoladas e com menor insero na economia de mercado.
FIGURA 1.7 - Violeiro tocando em viola de caxeta -prtica do fandango na regio de Guaraqueaba.
27
A extrao de madeiras nativas j foi uma importante atividade no passado, mas,
atualmente, principalmente em funo da legislao em vigor, declinou bastante. Segundo
levantamento de LIMA et al. (2000), a populao de Guaraqueaba reconhece cinco categorias
de uso para as espcies madeireiras da regio: tbuas, vigas, cerne, fabricao de mveis,
cabo de ferramentas. Dentre as madeiras mais citadas esto as da guaricica (Vochisia
bifalcata), do guapuruvu (Schizolobium parahybae) e do guanandi (Calophyllum brasiliensis).
O extrativismo do palmito (Euterpe edulis) uma atividade muito importante na regio
atualmente. Segundo dados da SPVS (1995), mais da metade da populao de Guaraqueaba
obtm a maior parte da sua renda desta atividade.
O beneficiamento d-se, em geral, nas fbricas instaladas na prpria regio, algumas
delas legais e muitas outras clandestinas. A falta de controle da atividade e a existncia de
inmeras fbricas no regulamentadas dificultam a avaliao da real importncia da atividade e
do impacto por ela causado nos ecossistemas naturais. O palmito considerado uma espcie-
chave da Floresta Atlntica, por fornecer alimento para uma grande parcela da fauna.
5.4. CAA E USOS DA FAUNA SILVESTRE
A importncia da fauna silvestre, a extenso e os impactos da atividade de caa na
APA de Guaraqueaba, bem como para a maioria das regies de Floresta Atlntica, no bem
conhecida. A atividade de caa em Guaraqueaba foi discutida por ANDRIGUETTO FILHO et al.
(1998), KRGER & NORDI (1998) e KRGER (1999).
ANDRIGUETTO-FILHO et al. (op.cit.) observaram 19 espcies utilizadas como alimento na
regio. Posteriormente, KRGUER (1999) realizou um diagnstico geral da atividade, registrando
45 espcies como alvo de caa, com finalidade alimentar (para o qu foram citadas 36
espcies), para xerimbabos (criaes em cativeiro ou em condies semi-domsticas, para o
qu foram relacionadas 20 espcies) e comercial (14 espcies).
Alm destas, o uso de animais silvestres na medicina local foi relatado para a
comunidade do Tromom por FERNANDES-PINTO & CORRA (1998); para as comunidades
adjacentes ao Parque Nacional do Superagi por FERNANDES-PINTO et al. (1998) e MATER
NATURA (1998); e para comunidades continentais de Guaraqueaba por LIMA et. al. (2000).
Os animais mais citados dentre os mamferos foram paca (Agouti paca), tatu (Famlia
Dasypodidae), cateto (Pecari tajacu), veado (Mazama spp.), porco-do-mato (Tayassu pecari),
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quati (Nasua nasua) e capivara (Hydrochaeris hydrochaeris) e, dentre as aves, macuco
(Tinamus solitarius) e jacu (Penelope obscura). Os mtodos de caa mais utilizados so
praticados com mundu, trepeiros, armadilhas com laos, covos e armas de fogo de diversos
calibres.
Existem evidncias de que a atividade de caa, apesar de proibida, continue sendo
praticada ao longo de toda a regio da APA de Guaraqueaba. No entanto, esta parece ser de
pequena escala e necessita de mais estudos para a correta avaliao de sua importncia para
a subsistncia das populaes locais e impactos decorrentes (FIGURA 1.8).
FIGURA 1.8 - Menino com periquitos na regio de Guaraqueaba.
6. OS MECANISMOS LEGAIS DE PROTEO AMBIENTAL
No final da dcada de 1970 e incio da dcada de 1980 a acelerada devastao dos
ltimos remanescentes de Floresta Atlntica gerou uma enorme presso nacional e
internacional, levando o governo brasileiro a reconhecer a importncia de criar mecanismos
legais para garantir a preservao das reas restantes. Desta forma, a dcada de 1980 foi
marcada pela incidncia de numerosos instrumentos de conservao, que incidiram direta e
29
indiretamente sobre Guaraqueaba.
Alm das vrias legislaes federais (como o Cdigo Florestal, a Lei de Proteo
Fauna e o Decreto Mata Atlntica, entre outros) e estaduais (como a Legislao de uso e
ocupao do solo e o Macrozoneamento do litoral do Paran), o bom estado de conservao
dos ecossistemas naturais da regio do litoral norte do Paran levou criao de vrias
Unidades de Conservao. Atualmente h em torno de dez unidades federais e estaduais12.
Nos ltimos anos, tm-se tambm somado a estas as Reservas Particulares do
Patrimnio Natural (RPPN) e outras reas de reserva no oficiais, adquiridas por entidades
ambientalistas, universidades e particulares (que atualmente j somam pelo menos seis na
regio).
A legislao ambiental que atualmente incide sobre a regio da APA de Guaraqueaba
extensa e numerosa, sendo que com freqncia vrios instrumentos jurdicos sobrepem-se
em uma mesma rea.
As leis implementadas so, de uma forma geral, altamente restritivas com relao ao
uso dos recursos naturais e as unidades de conservao foram criadas sem participao da
populao local e sem levar em conta suas origens e relaes com o ambiente. Estes fatores,
dentre outros, tm gerado ao longo dos ltimos anos conflitos com as comunida