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Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH • São Paulo, julho 2011 1
Etimologia dos etnônimos atribuídos aos Guarani do Paraguai e da
Cordilheira Chiriguana
PROTASIO PAULO LANGER
os nomes dos bichos não são os bichos
os bichos são:
macaco gato peixe cavalo
macaco gato peixe cavalo
vaca elefante baleia galinha
[...]
[...]
[...]
[...]
só os bichos são bichos
[...]
nome não, nome não
nome não, nome não
(Arnaldo Antunes, Nome Não.)
Resumo:
No presente trabalho buscamos captar as representações acerca dos etnônimos
produzidos e aplicados, aos guarani falantes da cordilheira andina, por duas frentes de
conquista: uma com sede em Assuçao - PY e outra proveniente do Peru (Cusco e
Charcas). A proposta é estabelecer um diálogo entre história, onomástica e
representações no intuito de perceber como os guarani falantes de um modo geral, e os
da Cordilheira Chiriguana, em particular, foram entulhados de significados que ajudam
a entender tanto o status humano desses grupos aos olhos dos ―outros‖ – espanhóis,
incas etc. – quanto as peculiaridades relacionais tramadas por uma e outra frente de
conquista. Nesse sentido, buscamos entender o ato de nomear como um ato inerente à
conquista, na medida em que os nomes revelam mais sobre quem os atribuiu do que
sobre os seres nomeados. Além do mais acompanhar a nomeação das etnias permite
perceber o quanto os nomes estão suscetíveis à incorporações e ressignificações que
podem partir tanto das entidades nomeadas quanto de quem as nomeou.
Palavras Chave: Guarani falantes; Chiriguanas; etnônimos.
Abstract
In this work, we intend to capture the representations as for the Ethinonymous
produced and applied to the speakers of Guarani from the Andean Piedmont by two
conquering powers: one whose headquarter is in Asunción/PY and the other is from
Peru (Cuzco and Charcas). The proposal is to establish a dialogue among history,
onomastics and these representations with an aim to notice how the speakers of guarani
from the piedmont were filled with meanings that help them understand both their
human status in this group based from the view of ―others‖ – the Spanish, the Incan, etc.
– and their relationship peculiarities created by either one or the other conquering
power.
Keywords: Guarani speakers; Chiriguanas; Ethnonyms.
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1) Introdução
Os povos guarani falantes da cordilheira andina representaram, ao longo de mais
de três séculos, um desafio aos projetos seculares e religiosos que propugnavam sua
assimilação à lógica do sistema colonial hispânico. Situados ao pé da cordilheira, esses
grupos atacavam as fortalezas incas e aniquilavam expedições militares que Cusco
enviava para proteger seus súditos da fronteira oriental. A partir da conquista do império
inca, pela via do Pacífico, e da ―aliança‖ hispano-guarani, na bacia do Rio da Prata,
paulatinamente duas frentes de conquista se projetam em direção à cordillera
chiriguana1 e, por volta de 1549, se encontram nas contiguidades daquela serra. Porém,
mais de duas décadas antes dessa data, os expedicionários ibéricos do Rio da Prata, e
logo em seguida, os conquistadores do Peru, são informados da existência de guarani
falantes nas imediações de uma Serra de Prata. Na década de 1530 e 40, na medida em
que as duas frentes (uma platina procedente de Assunção e outra andina procedente de
Charcas, ou La Plata) se aproximavam, o conhecimento e as expectativas sobre como
inserir os guarani da cordilheira na lógica colonial se ampliam.
No presente trabalho buscamos captar as representações inerentes aos diversos
etnônimos produzidos e aplicados, aos guarani falantes da cordilheira, por uma e outra
frente de conquista, também, por sucessivas gerações de historiadores; ou seja, por
agentes exteriores a eles próprios. De acordo com Viveiros de Castro: ―[...] a
objetivação etnonímica incide primordialmente sobre os outros, não sobre quem está em
posição de sujeito. Os etnônimos são nomes de terceiros, pertencem à categoria do
‗eles‘, não à categoria do ‗nós‘.‖2 Com efeito, o foco desse artigo não são as
autodesignações; aqueles nomes que via de regras são traduzidos por ―ser humano‖,
―gente‖ e seus intensificadores, ―de verdade‖ e ―realmente‖3. A idéia é tecer um diálogo
1 A Cordillera chiriguana era um ―vasto território de unos 100.000 Km2 ocupado por los Chiriguano y
que formaba una unidad geográfica entre la fisografia de piedemonte y subandino. Era un territorio
desconocido y marginal, llamado por los cronistas jesuitas ‗Mediterráneo de la América Austral‘‖.
(PIFARRÉ, Francisco. Historia de un pueblo. La Paz: Ed. CIPCA, 1989. p. 37). No período colonial
situava-se no entremeio da rica província de Charcas, nos Andes e Santa Cruz de la Sierra, no Chaco.
O territórrio outrora conhecido como Cordillera chiriguana está dividido em três departamentos
bolivianos: Santa Cruz (provincia Cordillera), Chuquisaca e Tarija.
2 VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo ameríndio. Mana
[online]. 1996, vol.2, n.2, p. 126
3 Idem
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entre história, onomástica e representações no intuito de perceber como os guarani
falantes da cordilheira foram entulhados de significados que ajudam a entender tanto o
status humano desse grupo aos olhos dos ―outros‖ – espanhóis, incas etc. – quanto as
peculiaridades relacionais tramadas por uma e outra frente de conquista.
As fontes disponíveis, compostas de diversos gêneros literários – crônicas,
poemas, relatórios e memoriais – permitem captar os sentidos atribuídos aos guarani-
falantes da cordilheira por meio de dois tipos de discurso definidor: um deles define o
significado inerente ao etnônimo, ou seja, pela decomposição etimológica declara o
―sentido exato‖ do nome; o outro, evoca supostos traços e adjetivos intrínsecos ao grupo
nomeado. Portanto, o estudo dos etnônimos coloniais referentes aos guarani da
cordilheira permite perceber as categorias de pensamento, os sistemas classificatórios,
em fim, o universo representacional e simbólico colonial cristão cuja única perspectiva,
em relação aos povos nativos, era a submissão a programas de redução
político\civilizacional.
Todorov apresentou com propriedade as relações de poder e as conseqüências
inerentes ao ato de nomear. Colombo nomeava e, mesmo sabendo o nome indígena,
renomeava acidentes geográficos, localidades, povos e pessoas com nomes
―adequados‖; capazes de expressar aquilo que as ―coisas‖ realmente são. E foi assim
que o almirante cunhou o etnônimo índios com o qual designou todos os povos do
continente que ele supunha ser a Índia. Ao analisar a atitude intelectual de Colombo no
ato de atribuir nomes, Todorov ensina que – ao contrário do que o almirante pensava –
os nomes dizem mais sobre quem os atribui do que sobre os seres nomeados. Por outro
lado, esse exemplo explicita o quanto os nomes estão suscetíveis à incorporações e
ressignificações que podem partir tanto das entidades nomeadas quanto de quem as
nomeou.
No paradigma intelectual/científico moderno, interpretar ou ―decifrar" os
significados ocultos nos étimos tem se revelado, simultaneamente um desvendamento e
um exercício de construção e atribuição de sentidos. Tal como Colombo declarava os
sentidos inerentes aos nomes, a começar pelo seu próprio4, outros conquistadores
asseveravam significados pautados em antigas representações lapidadas pelo imaginário
4 TODOROV, Tzetan. A conquista da América: a questão do outro. Trad. Beatriz Perrone Moisés. São
Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 26-27.
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colonial. O leque de nomes atribuídos aos guarani falantes da cordilheira, se situa nesse
linha do pensamento colonial.
De certo modo o presente trabalho se aproxima e corrobora as observações de
Eni P. Orlandi, sobre o ato de nomear, exercido pelos conquistadores/colonizadores.
Para a autora essa atividade ocupa o ―núcleo da atenção e os esforços de documentação
dos europeus, face ao índio [...]. Para os europeus dessa época, ―conhecer‖ é ―saber os
nomes‖, é dar os nomes, é nomear‖5.
2) Etnônimos de origem platina
A começar pelo nome que denomina toda uma família lingüística, guarani
tornou-se um termo usual a partir da expedição de Sebastian Caboto que, em1526,
explorava o estuário do Rio da Prata. Provavelmente o primeiro a grafar uma das
variantes desse nome foi Luís Ramíres que, em correspondência ao seu pai, em 1528,
em dois momentos se refere aos guarenís. Na citação a seguir observa-se que naquele
ano os espanhóis já tinham ricas informações sobre a abrangência dos territórios que
esses ocupavam. Embora não afirme claramente, pode estar subentendido que, Ramírez
sabia que aqueles que habitavam a sierra (Cordillera Chiriguana) eram também
guarenís. Se essa não é a interpretação adequada, é certo que Ramíres sabia que esta
generación confinava com a cordilheira:
Aquí con nosotros está otra generación que son nuestros amigos, los cuales se
llaman guarenís y por otro nonbre chandris. Estos andan derramados por ésta
tierra y por otras muchas, como corsarios, a causa de ser enemigos de todas éstas
otras naciones y de otras muchas que adelante diré. […]. Estos señorean gran
parte de ésta India y confinan con los que habitan en la sierra [grifos nossos].
Estos traen mucho metal de oro y plata en muchas planchas y orejeras y en
achas, con que cortan la montaña para senbrar6.
Em poucos anos guarani tornou-se um filtro que em meio à ―babel‖ étnica e
lingüística do Paraguai quinhentista discriminava aqueles que falavam um idioma e
5 ORLANDI, Eni P. Terra a vista!: discurso do confronto: velho e novo mundo. São Paulo: Cortez, 1990,
p. 90.
6 RAMÍREZ, Luís. Carta de Luis Ramírez a seu pai desde o Brasil (1528). Introdução, edição, transcrição
e notas: Juan Francisco Maura. Lemir (Departamento de Filología Hispânica da Universidade de
Valencia), <http://parnaseo.uv.é/Lemir/Textos/Ramirez.pdf> 2007. p. 51
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apresentavam sistemas sócio-econômicos e simbólicos semelhantes. Nas palavras de
Noelli, o termo passou a referir diversos grupos que ―[...] tinham em comum a língua, a
cultura material, as tecnologias, as formas de subsistência, os padrões de assentamento e
adaptativos, a organização sócio-política, a religião e os mitos. Entre eles havia,
contudo, variações dialetais, de adaptabilidade e de etnicidade‖7.
Gonzalo Fernández de Oviedo y Valdés, que nunca esteve no Rio da Prata, mas
contava com inúmeros informantes, foi, provavelmente, quem primeiro propôs uma
explicação para o nome Guarani. Para ele, a origem estaria numa arma até então
desconhecida pelos espanhóis:
Tengo averiguado con muchos testigos de vista, que ciertos indios que en el Rio de la Plata se
llaman los guaranias usan cierta arma, y no todos los indios son hábiles para ella sino los que he
nombrado: ni se sabe si este nombre guarania es del hombre ó de la misma arma, la qual
exercitan en la caça, para matar los venados, y con la misma mataban á los españoles, y es desta
forma. Toman una pelota redonda de un guijarro pelado, tamaño como el puño, é aquella piedra
átanla una cuerda […]8.
Essa arma descrita por Oviedo – conhecida até hoje nos pampas platinos como
boleadora ou boleadeira – também foi descrita por Luís Ramíres. Este, porém, não
indica como tal arma se denomina e tampouco diz que os índios que a usavam eram
guareníes, e sim, quirandies: ―Estos quirandies […] pelean con arcos y flechas y con
unas pelotas de piedra redondas como una pelota y tan grandes como el puño, con una
cuerda atada que la guia los cuales tiran tan certeros que no hierran a cosa que tiran‖9.
Isso significa que em 1535, quando a primeira parte da sua monumental crônica
foi publicada, Oviedo estava a par das expedições ao Rio da Prata, mas seus informantes
foram menos assertivos que Ramíres. No mesmo ano de 1535 os espanhóis do Rio da
Prata continuavam sendo castigados com aquelas bolas de pedra. Ulrich Scmidel, que
participou da expedição de Pedro de Mendoza ao Rio da Prata, diz ter lutado contra os
7 NOELLI, Francisco da Silva. Os indígenas do Brasil Meridional. In: MELLO, Amilcar D'Avila de.
Expedições: Santa Catarina na era dos descobrimentos geográficos. Florianópolis: Editora
Expressão, 2005,v. 1, p. 126.
8 FERNANDEZ DE OVIEDO Y VALDÉS, Gonzalo [1535]. Historia general y natural de las Indias,
islas y Tierra-Firme del mar océano. Primeira Parte. Edit. D. Jose Amador de Los Rios. MADRID:
Real Academia de la Historia, 1855. , Libro V, Cap. XXXV, p. 225.
9 RAMÍREZ, Luís. Carta de Luis Ramírez a seu pai desde o Brasil (1528). Introdução, edição, transcrição
e notas: Juan Francisco Maura. Lemir (Departamento de Filología Hispânica da Universidade de
Valencia), <http://parnaseo.uv.é/Lemir/Textos/Ramirez.pdf> 2007. p. 50
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carendies que além das armas convencionais (arco, flechas, lança) também usavam ―[...]
unas bolas de piedra aseguradas a un cordel largo; son del tamaño de las balas de plomo
que usamos en Alemania. Con estas bolas enredan las patas del caballo o del venado
[…]. Fue también con estas bolas que mataron a nuestro capitán y a los hidalgos[…]‖10
.
A partir da década de 1570 outros escritores falam sobre o significado da palavra
guarani. Juan López de Velasco, cosmógrafo e cronista oficial de Felipe II, ao falar dos
povos do Rio da Prata, afirmava que: ―los otros son los indios labradores guaraníes, que
quiere decir guerreros, porque van muy lejos de su tierra a guerrear‖11
. Como se vê, o
autor não faz uma análise dos étimos, mas apenas afirma e atribui um significado. Não
sabemos quem inaugurou essa analogia, mas, o certo é que ela foi corroborada em
diversos textos literários e administrativos. O poeta e clérigo Martín del Barco
Centenera, que na década de 1570 participou de expedições no Rio da Prata, e em
seguida atuou em Cochabamba e Chuquisaca, em seu célebre poema, La Argentina o La
conquista del Río de la Plata, canta, com os versos a seguir, a origem dos Guarani e o
significado desse nome:
Muy largos tiempos y años se gastaron,
y muchos descendientes sucedieron
desde que los hermanos se apartaron.
De Tupí en el Brasil permanecieron
Tupíes, y destotros que pasaron
Guaraníes se nombran, y así fueron
guerreros siempre aquestos en la tierra
que el nombre suena tanto como guerra12
Numa nota explicativa à margem desses versos, o poeta sugere uma nova
analogia semântica: ―Guaraní significa una mosca muy importuna que hay en aquella
tierra, a la manera del tábano, que chupa la sangre, y por serles tan importuna la guerra a
los indios la llaman del nombre de esta mosca‖. A palavra guarani significaria guerra, e
10 SCHMÍDEL, Ulrich. [1567] Viaje al Río de la Plata. Notas biblio y biográficas por Bartolomé Mitre.
Prólogo, traducción y anotaciones por Samuel A. Lafone Quevedo. Buenos Aires: Cabaut y Cía.,
Editores, 1903. p. 150. Disponível em: http://www.cervantesvirtual.com/
11 LÓPEZ DE VELASCO, Juan [1574]. Descripción general hecha por Juan López de Velasco sobre las
Indias, límites, hidrografía e islas. Ed. Madrid 1894, p. 555
12 BARCO CENTENERA, Martín del. La Argentina: poema histórico. Edición digital: Alicante:
Biblioteca Virtual Miguel de Cervantes, 2002. Canto primeiro, Versos 217-224. Disponivel em:
http://www.cervantesvirtual.com
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um inseto hemofágico, tão inconveniente quanto, teria recebido esse nome por analogia.
De todas essas formulações nenhuma foi proposta por conquistadores que atuaram in
loco entre os guarani falantes nas primeiras décadas da conquista. Além do mais, o
respaldo lingüístico é duvidoso; ou melhor, os autores não arrolam dados etimológicos.
Embora haja uma certa unanimidade sobre o ethos guerreiro conquistador, dos
guarani e tupi falantes do período pré-colonial e colonial13
, na língua guarani essa
interpretação foi colocada sob suspeição. Os elementos para defender essa proposição
não permitem vislumbrar uma relação semântica entre guarani e guerra, guerreiro e
muito menos ―boleadeira‖. O Vocabulário de Montoya registra 4 palavras para o
verbete Guerra e a que foneticamente mais se assemelha é guarinĩ. Para o verbete
guerreiro a palavra que mais se aproxima é guarinĩhára14
.
Pedro de Angelis – que no século XIX compilou uma rica coleção de
documentos sobre o Rio da Prata, editou e compôs um Índice Geográfico e Histórico
para a Argentina, de Ruy Diaz de Gusmán – também diverge desse viés interpretativo
ao passo que apresenta uma nova alternativa:
Casi todos los que han investigado la etimología del nombre Guaraní , lo han mirado como una
corrupción de la palabra guariní , que en este idioma significa ―guerra‖. Pero nosotros
preferimos la siguiente interpretación: Gua, pintura; ra, manchado; ni, señal del plural: Guaraní,
―los manchados de pintura, o los que se pintan‖; aludiendo a la acostumbre de estos pueblos de
pintarse el cuerpo. (p. 233)
Ao ser indagado sobre o significado dos étimos que compõem essa palavra,
Bartomeu Melià revelou:
Nunca he sabido lo que significa guaraní, pero por analogía con guarajú, que serían la gente, la
parcialidad áurea o perfecta, la partícula ni, indicaría pluralidad, los de aquí, pero tal vez un
13 O ethos guerreiro dos povos filiados à família lingüística tupi-guarani é quase um consenso tanto entre
os cronistas coloniais quanto entre os guaraniólogos e tupinólogos atuais. Sobre esse tema há uma
copiosa bibliografia na qual se destacam: FERNANDES, Florestan. A função social da guerra na
sociedade tupinambá. 2. ed. São Paulo: Pioneira, 1970; SUSNIK, Branislava. El Índio Colonial de
Paraguay: El Guarani Colonial. v.1. Museo Etnográfico ―Andres Barbero‖, Asunción, 1965;
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Araweté: Os Deuses Canibais. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editores, 1986.
14 MONTOYA, Antonio Ruiz de [1640]. Vocabulario de la lengua guaraní. Transcripción y
transliteración
por Antonio Caballos. Introducción por Bartomeu Melià. Asunción: CEPAG, 2002.
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grado de intensidad y autenticidad: la gente auténtica. Hay que estudiarlo un poco más a
fondo15.
Outro etnônimo frequentemente aplicado aos mesmos grupos, era Cario (Carijó,
Caryo). Como observa Combès16
, a partir de meados do século XVI Carió tornou-se
sinônimo de guarani e, do mesmo modo, abrangente que referia tanto os grupos do
litoral sul do Brasil (Carijós), quanto os da cordilheira andina - Carios de la sierra (Irala,
1555). Qual seria o significado etimológico desse nome? Para Meliá esse problema se
apresenta mais difícil que o anterior de modo que apenas arrisca discretas conjecturas:
―Para los Cario es todavía más difícil. En todo Montoya no encuentro un cari, y lo que
más se acerca es carai + o(ga): la casa del hechicero o del chamán. ¿Qué etimología se
suele dar de Carijó? Por ahí se podría vislumbrar algo‖ 17
.
Pedro de Ángelis entende que o sentido se revela quando a palavra é tomada nos
seguintes termos:
Esta voz Cario se compone de ca, que es avispa, y de rio, o más bien rea, que es campero,
silvestre, o que vive en el campo: es decir, gente arisca como las abejas silvestres; con las que
pudo también haberseles comparado por el aguijón que traían pendiente de sus labios, a modo de
avispas. Probablemente los españoles creyeran que, tratándose de nación, debían dar a este
nombre la terminación masculina, y de careas hicieron careos , y carios .]18
O Vocabulário de Montoya confirma que ka é vespa. Quanto ao segundo termo,
não consegui confirmá-lo nos dicionários. De qualquer modo, a vespa não é um inseto
15 MELIÁ, Bartomeu. Mensagem pessoal por correio eletrônico - enviado: quarta-feira, 1 de dezembro de
2010, 10:48. Para Susnik guará é ―[…] um concepto socio-político que determina una cierta región
bien definida, delimitada generalmente por ríos. SUSNIK, Branislava. El rol de los indígenas en la
formación y en la vivencia del Paraguay, II, CEADUC, Asunción, 1983, p. 32. Também no
vocabulário de Montoya, região é traduzido por guára.O sufixo ni segue sem uma tradução
convincente.
16 COMBÉS, Isabelle. Diccionario etnico. Santa Cruz la vieja y su entorno en el siglo XVI. Coleccion
Scripta Autochtona. No. 4. Cochabamba: Instituto de Misionologia; Editorial Itinerarios; Misiones
Franciscanas Conventuales - MFC, mayo 2010. 406p. - 4 vol., p. 86.
17 MELIÁ, Bartomeu. Mensagem pessoal por correio eletrônico - enviado: quarta-feira, 1 de dezembro de
2010, 10:48
18 GUZMÁN, Ruy Díaz de. Historia Argentina del descubrimiento, población y conquista de las
provincias del Río de la Plata. IN: DE ANGELIS, Pedro. Colección de obras y documentos relativos a
la Historia Antigua y Moderna de las provincias del Río de La Plata. Tomo Primero, Buenos Aires,
Imprenta del Estado, 1835, Apendice A, p. XVI ou p. 200.
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domesticado, ou seja, é sempre silvestre. Vale destacar que esta é segunda ocorrência
em que a imagem de um inseto agressivo é usada para metaforizar os guarani. Essa
interpretação tem o mérito de trabalhar com a língua guarani e valorizar elementos da
cultura material para compor uma explicação (o tembetá é comparado ao ferrão). As
fontes históricas, todavia, não corroboram essa explicação.
Há que se considerar que, por se tratar de uma denominação referente a grupos
guarani falantes, os pesquisadores tendem a buscar os significados nessa mesma família
lingüística. Todavia, não seria absurdo supor que tanto guarani quanto cario derivem de
nomes atribuídos por povos circunvizinhos, de outras famílias lingüísticas e que os
guarani falantes tenham, enfim, submetido essas denominações a novas formas
fonéticas e semânticas. Isso tornaria a tarefa, de desentranhar os significados, ainda
mais complexa e, talvez, inatingível.
Guarani e Cario eram os nomes próprios mais costumeiramente aplicados aos
guarani-falantes do Rio da Prata, pelos espanhóis conquistadores. As diversas
parcialidades étnicas filiadas a essa família lingüística iam sendo nomeadas, geralmente,
com topônimos relativos ao guará (região) que habitavam (Itatim=itatines;
Guairá=guairáes). Desde as primeiras incursões espanholas Rio [Paraguay] arriba ou
tierra adentro, qualquer grupo guarani falante é distinguido com essa informação que,
muitas vezes, é agregada ao próprio nome, como ocorre com, Guarani-Itatines ou
Carios de la Sierra.
Quando a ausência de dados lingüísticos inviabiliza uma asserção consistente, do
ponto de vista etno-histórico, alguns escritores partem para interpretações livres
fundadas em analogias imaginárias, por vezes, bastante insólitas. Para os conquistadores
procedentes do Peru, o termo Cario deriva de Caribe e o significado deste podemos ver
no discurso de Lorenzo Suarez de Figueroa, governador do de Santa Cruz de la Sierra
na década de 1570: ―El propio nombre de esta generación es Cario, de donde se diriva
el nombre que tienen, Caribes, que quiere decir ‗comedores de carne humana‘"19
.
Evidentemente, não obstante a coincidência das duas primeiras sílabas, a analogia entre
Cario e Caribe se situa mais no âmbito semântico do que no etimológico. A designação
19 SUÁREZ DE FIGUEROA, Lorenzo. [1586] ―Relación de la ciudad de Santa Cruz de la Sierra‖. In:
Marco Jiménez de la Espada: Relaciones geográficas de Indias: Relaciones Geográficas del Peru.
Tomo II. Madrid: Biblioteca de autores españoles, 1965, t. 1: 404.
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caribe para os guarani falantes da cordilheira é própria de autores vinculados à frente
andina de conquista e começa a ser aplicada com mais freqüência a partir de 1570.
De acordo com o dicionário Houaiss20
Caribe é uma palavra de origem arawak
que designava um povo que habitava partes das Antilhas e do litoral norte da América
do Sul. Todorov mostrou que a palavra canibal surgiu em 1492, quando Colombo soube
da existência de povos denominados Caribas. Do seu agir comunicativo com outros
grupos nativos das Antilhas, soube que os Caribas comiam gente e tinham cabeça de
cão (do espanhol can). Essas informações que Colombo deve ter obtido por meio de
gesticulações, já que nenhuma das partes conhecia o idioma da outra parte, levaram-no
a concluir que o nome correto do referido povo devia ser Caníbas, isto é, súditos do
Grande Can – imperador da China descrito por Marco Pólo21
. Afinal, o descobridor da
América tinha certeza absoluta que estava na Índia, perto da China. Desses diálogos
gestuais ou como sugere Todorov, desse monólogo consigo mesmo, resultou que o
significado ameríndio de Cariba foi entulhado de significações do imaginário cristão
medieval. Caribes, Caribas, Canibas, Canibalis, Canibais e outras variantes tornaram-se
sinônimos de ―comedores de carne humana‖. Tão logo que Colombo operou essa
ressemantização, a literatura e a iconografia sobre o Novo Mundo reproduziu
intensamente imagens de Caribes ou Canibais para evidenciar essa alteridade situada no
extremo oposto da europeidade.
Nos versos a seguir, Barco Centenera parte da premissa colombiana de que os
Cario são Caribes e, para significar esse termo, o poeta vai às ―raízes‖ da palavra e
encontra dois étimos: um latino, Caro (carne), e outro guarani, ibi (terra): O resultado
dessa ―gambiarra‖ etimológica ficou: Caribe = Sepultura de carne Humana.
20 Dicinário Eletrônico Huaiss da Língua Portuguesa. Editora Objetiva, 2002. Verbete – Canibal.
21 TODOROV, Tzetan. A conquista da América: a questão do outro. Trad. Beatriz Perrone Moisés. São
Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 30.
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Essa conjectura tão extravagante, do ponto de vista linguístico, só pode ser
considerada razoável pelos critérios da licitude da arte poética, de um lado, e pelo
intuito de produzir ou justificar sentidos que passam a fluir no imaginário colonial sobre
todos os grupos que, assim como os guarani falantes da cordillheira, representavam um
desafio político à soberania ibérica. Bernand & Gruzinski confirmam esse jogo
semântico e a acepção política que o nome Caribe adquiriu:
O termo caribe acabou sendo aplicado a todos os autóctones que fossem
antropófagos ou que opusessem a menor resistência aos conquistadores. De
denominação étnica, ele se tornou, automaticamente, legitimação do extermínio
e da escravidão das populações das ilhas e das costas da América do Sul23
.
Um dos autores que expressa bem a abrangência desse termo, sua atribuição a
diversos grupos, não só das Antilhas e costas, mas também do mediterrâneo sul-
americano, é José de Acosta ao circunscrever o terceiro e mais baixo grau de bárbaros
que habitam a terra.
22 BARCO CENTENERA, Martín del. La Argentina: poema histórico. Edición digital: Alicante :
Biblioteca Virtual Miguel de Cervantes, 2002. Canto primeiro, Versos 201-209. Imagens similares
àquela a direita dos versos abundam nas crônicas e na cartografia colonial dos séculos XVI e XVII.
Esta encontra-se em: MOCQUET, Jean (1617) - Voyages en Afrique, Asie, Indies Orientales e
Occidentales, Paris: Jean de Hievquevieu. (IEB). Disponível em: http://books.google.com/
23 BERNAND, Carmem; GRUZINSKI, Serge. História do Novo Mundo: da Descoberta à Conquista,
uma Experiência Européia (1492-1550). 2a ed. São Paulo:Edusp, 2001, p. 600.
Que si mirar aquéstos bien queremos
caribe dice, y suena sepultura
de carne, que en latín caro sabemos
que carne significa en la lectura.
Y en lengua guaraní decir podemos ibi,
que significa compostura
de tierra do se encierra carne humana;
caribe es esta gente tan tirana.22
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Finalmente, a la tercera clase de bárbaros […]. En ella entran los salvajes semejantes a fieras,
que apenas tienen sentimiento humano; sin ley, sin rey, sin pactos, sin magistrados ni república,
que mudan la habitación, o si la tienen fija, más se asemeja a cuevas de fieras o cercas de
animales. Tales son primeramente los que los nuestros llaman Caribes, siempre sedientos de
sangre, crueles con los extraños, que devoran carne humana, andan desnudos o cubren apenas
sus vergüenzas. […] así son los Chunchos, los Chiriguanás, […]24[grifos nossos].
Além da transformação semântica, caribe passou a exercer a função de outra
classe gramatical; ou seja, além de substantivo próprio tornou-se adjetivo qualificativo.
Na passagem a seguir, que relata uma entrada rioplatense em busca do El dorado ou
Paititi, esta nova função está bem clara: ―Y salio el gouernador con gentte y fue
atrauesando el monte y hallaron yndios muy caribes [grifo nosso] y tuuo grandes
Reuatos con ellos y le mataron españoles y muchos yndios y de ay se boluieron‖25
. Por
associação aos significados de agressividade e voracidade, o termo caribe também foi
empregado para denominar animais que notadamente manifestavam tais
comportamentos: pez caribe = piranha (Serrasalmus nattereri); hormiga caribe =
Solenopsis geminata.
Há que se destacar que ao longo dos mais de vinte anos de contato entre
espanhóis e carios (guarani) no Rio da Prata, esse etnônimo não tinham essa carga de
significados negativos, relacionados a agressividade e antropofagia. Para os espanhóis
protagonistas da fundação de Assunção, que em suas longas expedições Rio arriba e
tierra adentro eram acompanhados de centenas ou milhares deles, encontrar
assentamentos guarani significava abundância de alimentos, notícias sobre as terras e
gentes e aumento do contingente aliado dos espanhóis26
. Todavia, para os espanhóis
24 ACOSTA, José de (1577). De Procuranda Indorum Salute. Reeditada sob o título: Predicación del
evangelio en las indias. – Estudio preliminar y edición del P. Francisco Mateos – Madrid: Atlas,
1954. Disponível em:
http://www.cervantesvirtual.com/servlet/SirveObras/mcp/01361686433460613088024/p0000001.htm
25SOLETO PERNIA, Alonso. Memoria de lo que han echo mis padres y yo, en busca del Dorado que
anssi se llama esta conquista y diçen que es el Paytitti. A.G.I. Charcas 21, ramo 1, número 2, f.51v.
26 Em diversos ensaios Meliá destaca a dinâmica e a fartura da economia guarani que sustentou milhares
de exploradores espanhóis inertes em termos de produção agrícola. A propósito desse tema as
seguintes obras são referência obrigatória: MELIÁ, Bartomeu. El Guarani Conquistado y Reducido:
Ensayos de Etnohistória, 3. ed. Asunción: CEADUC, 1993; TEMPLE, D. El don, la venganza y otras
formas de economía Guarani. Centro de Estudios Paraguayos ―Antonio Guasch‖, Asunción, 2004.
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procedentes do Peru os Cario eram Caribes, como já vimos, e Chiriguanaes27
como
veremos.
3) Chiriguanaes: um etnônimo de origem andina
Seguramente, os primeiros europeus que tiveram notícias de um grupo
denominado Chiriguanaes (Chirihuanas) foram os espanhóis que conquistaram o
império inca. Nas primeiras décadas 1530 - 1550 esse nome foi mencionado em
documentos relativos à expedição de Almagro ao Chile (1534-45) e por cronistas como
Cieza de León (1553). Nessas décadas, porém, ninguém inquiriu ou especulou pelo
significado etimológico do termo. A partir de 1570, na medida em que esse grupo se
manifestava irredutível à sujeição colonial e enfrentou vitoriosamente o vice-rei do
Francisco de Toledo, a maioria dos escritores começa a propor explicações etimológicas
para esse etnônimo. No século XX, diversos etno-historiadores se debruçaram sobre
esse problema sendo que alguns chegaram a conclusões tão insólitas que bem poderiam
figurar na galeria das explicações dos cronistas e poetas.
Qual seria, afinal, a etimologia e a semântica desse vocábulo para os
conquistadores espanhóis da frente andina? Desde logo, adiantamos que as versões são
tantas que não pretendemos ser exaustivos, e tampouco daremos a mesma ênfase a umas
e outras. O que interessa mesmo é observar uma espécie de incitação cognitiva que
lança mão de fragmentos lingüísticos e muita imaginação para definir e instituir
significados. Grosso modo, pode-se observar dois vieses etimológicos: um que parte do
quíchua e outro que parte do guarani. Além desses há alguns palpites tão desapegados
da lingüística histórica que apenas podem ser arrolados pelo seu teor exótico.
As versões que partem do quíchua, que são as que se tornaram hegemônicas na
literatura histórica, oferecem subsídios de considerável valor histórico para a elucidação
das relações entre os guarani migrantes e os súditos do Inca. Novamente Barco
Centenera é uma referência indispensável:
27 Esse substantivo foi grafado de diversas formas: até o presente momento identificamos as seguintes:
Chiriguanaes, Chiriguanas, Chiriguanás, Chirihuanas, Chiriguanos, Chiliguanaes e Cherigoanaes.
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Llegaron, pues, al fin a aquel paraje
do el frío les hizo guerra encarnizada,
y frío chiri suena en el lenguaje
del Inga, que es la lengua más usada;
guana es escarmiento de tal traje.
Aquesta gente iba mal parada,
y el frío que tomaron, escarmiento
fue para el Chiriguana y
cognomento.28
Em nota, à margem desses versos o autor esclarece que o nome deriva de uma
fala do Gran zapainga, que teria desdenhado o risco que os povos ―bárbaros‖ das terras
baixas e quentes representavam ao seu império. Como estes andavam sem agasalho, o
frio da cordilheira haveria de castigar aos que se vestem com o traje da nudez: ―deixai-
os, que o frio os castigará (dejadlos, que el frío les escarmentará)‖29
teria dito o Inca.
Castigados pelo frio é também a explicação etimológica proposta por uma das
mais intrigantes crônicas sobre as migrações guarani ao pé da cordilheira motivadas
pela busca de metais. Em 1638 o Pe. Diego Felipe de Alcaya, prestou uma Relación
cierta de uma história que ouvira do seu pai Sánchez de Alcayaga. Guacane e Condori,
parentes do Inca teriam conquistado, por meios pacíficos, em troca de presente, alguns
grupos lavradores que viviam nas planícies do Rio Guapay, sob a chefia de Grigotá.
Barganhando com esses novos súditos teriam efetivado a exploração argentífera do
Cerro de Saypuru, na cordilheira.
Assim que as notícias da riqueza e bonança que essas partes desfrutavam
chegaram aos Guarani do Paraguai, estes teriam partido em busca dessas promissoras
terras. Após duas vitórias ―traiçoeiras‖ e arrasadoras contra Guacane e Condori, o Ynga
del Cuzco enfureçido en yra con la triste nueua determinó haçer el castigo, mas seu
exército de cinco mil homens e o novo capitão Turumayo foram novamente aniquilados.
28 BARCO CENTENERA, Martín del. La Argentina: poema histórico. Edición digital: Alicante:
Biblioteca Virtual Miguel de Cervantes, 2002. Canto Primeiro, Versos 240-248. Ao lado, Ed.
Facsímil de 1602.
29 El Gaan-zapainga, que significa «solo Señor», les puso este nombre a los Guaraníes, diciendo que a
gente que venia desnuda de donde nace el sol, que es tierra caliente, hacia aquellas partes y
cordilleras, que es tierra fría, el frío, que es chiri, les escarmentaría, que es guana, de donde vino
Chiriguana, como que diciendo: dejadlos, que el frío les escarmentará. (N. del A.) BARCO
CENTENERA, Martín del. La Argentina: poema histórico. Edición digital: Alicante : Biblioteca
Virtual Miguel de Cervantes, 2002.
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A revanche foi empreendida por Grigotá, súdito local, leal aos capitães incas derrotados.
Nessa contra-ofensiva Grigotá teria matado 500 e aprisionado 200 inimigos que, por
intermédio de um embaixador, foram enviados à Cuzco. A etimologia de chiriguanas
seria decorrência do desfecho desse episódio, ou melhor, da punição que o Inca aplicou
aos prisioneiros Guarani:
[…] fueron puestos por su mandado desnudos en los estremos mas altos de vnos çerros neuados
atados de pies y manos y alli con guarda que les puso quedaron vna noche donde amaneçieron
muertos […]. Sauido por el Ynga como eran muerttos leuantandose de su asiento muy contento
dixo en voz alta halla, halla chiripiguanachini que quiere deçir assi assi que les he dado
escarmiento en el frio, que chiri es el frio en su lengua y guana el escarmiento de donde se
les quedó hasta oy el nombre de chiriguana [grifo nosso]30.
O caráter meio fantasioso e insólito (em termos empíricos) dessas duas
narrativas abriga elementos históricos importantes. Não se trata de confirmar ou negar a
veracidade de tais fatos, e sim, de perceber a intensidade da pressão que os migrantes
guarani exerceram sobre as fronteiras orientais do Império. Mais de cem anos após a
ocorrência das supostas peripécias, não obstante o impacto da conquista espanhola, o
ímpeto violento desses confrontos passou a ecoar nos sentidos atribuídos ao etnônimo.
Ainda em relação ao viés quíchua alguns autores entendem que o nome atribuído
aos guarani da cordilheira signifique ―esterco frio‖: Chiri [frio] guano [esterco]31
.
Etimologicamente essa composição pode até ser ―correta‖. Todavia, do ponto de vista
da documentação do século XVI ela se mostra inconsistente uma vez que nem os
cronistas andinos e, tampouco a documentação administrativa, grafaram [chiri]guano
mas si [chiri]huanaes, [chiri]guanás, etc. Ou seja, nas fontes mais antigas esse nome
sempre termina em a(s) ou a(es)32
. Nesse sentido, Chiriguano(s) é uma denominação
30 AGI Charcas 21, r.1, N.11, bloque 7, f.22. Relación del padre Diego Felipe de Alcaya. Esta crônica
também foi publicada em: LIZARAZU, Juan de. [1636-1638]. ―Consultas hechas a S.M. por don Juan
de Lizarazu, Presidente de Charcas, sobre su entrada a los Moxos o Toros‖. En: V. Maurtúa (ed.),
Juicio de límites entre el Perú y Bolivia, tomo 9. Madrid: imp. de los hijos de G. Hernández, 1906,
121-216. Também foi publicada em: ALCAYA, Diego Felipe de. 1961 [1607] ―Relación cierta
que el padre Diego Felipe de Alcaya, cura de Mataca […]. en: Cronistas cruceños del Alto Perú
Virreinal, Santa Cruz: UAGRM: p. 47- 86.
31 OBERMEIER, Franz. As relações entre o Brasil e a região do Rio de La Plata no século XVI nos
primeiros documentos sobre Assunção (Asunción) e Santa Catarina. JbLA Vol. 43/2006, p. 319.
Disponível em: http://www-gewi.uni-graz.at/jbla/JBLA_Band_43-2006/jbla06_317_342.pdf
32 Garcilaso de la Vega, que tinha o quíchua como língua mãe, grafava Chirihuana. Ao explicar o nome
de um rio Runahuanac, Garcilaso explica que Runa quer dizer gente, e huanac é o verbo castigar e o c
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ainda mais depreciativa que se tornou usual apenas no século XVIII e, além do mais,
não se apóia num enredo histórico-literário, como as duas versões anteriores. Ainda
assim, vale registrar, foi precisamente essa grafia e interpretação que se tornou uma das
mais recorrentes.
Enrique de Gandia, um dos mais profícuos historiadores argentinos do século
XX, avaliou e considerou plausíveis três interpretações distintas. A primeira delas é a
mais controvertida: ―Chiri (frío en quechua), gua, guara (patria o lugar que habita, en
guaraní), y ana (pariente, en guaraní). El vocablo habría sido creado por los guaraní y
significaría ‗nuestros parientes de la región fría‘‖ 33
. Nesse caso parece que os autores
(Fulgencio R. Moreno; e Gandia que considera aceitável essa explicação) cometem a
mesma falácia que Barco Centenera que, ao explicar a palavra Caribe, parte de um
étimo proveniente do latim, e outro do guarani. No presente caso, Moreno e Gandia
tomam um morfema do quíchua e outros dois do guarani. A pergunta é: Porque os
Guarani do Paraguai quinhentista empregariam a palavra chiri ao invés de roĩ = frio em
guarani? Nota-se que essa sugestão baseia-se tão somente num jogo imaginativo, pois,
as fontes rio-platenses não registraram a palavra chiriguana antes do encontro com a
frente andina.
Gandia também considera admissível a versão de Pedro de Ángelis. No verbete
Chiriguanos, de Ángelis concede a seguinte explicação: ―El clima es frígido en las
montañas, de donde le vendrá tal vez el nombre de Chiriguanos, que en la lengua
quecchua, quiere decir hombres que tienen frío. (Chiriguan, tengo frío)‖34
. Todavia,
para Gandia a versão mais razoável é ―gente suja‖ apresentada por Eric Von Rosen que,
em 1901, participou da expedição sueca chaco-cordillera. A teoria de Von Rosen é que:
final indica o tempo particípio do presente. Portanto o étimo do rio corresponde com o do etnônimo.
GARCILASO DE LA VEGA, Inca. Comentarios reales de los Incas e historia general del Perú.
Edição, prólogo, índice analítico e glossário Carlos Araníbar. Lima: FCE, 1991. CAP XXIX LIBRO
VI. p. 389
33 GANDIA, Enrique de. Historia de Santa Cruz de la Sierra: una nueva republica en Sud América.
Buenos aires: Talleres Gráficos Argentinos de L. J. Rosso, 1935. p. 16
34 GUZMÁN, Ruy Díaz de. Historia Argentina del descubrimiento, población y conquista de las
provincias del Río de la Plata. IN: DE ANGELIS, Pedro. Colección de obras y documentos relativos a
la Historia Antigua y Moderna de las provincias del Río de La Plata. Tomo Primero, Buenos Aires,
Imprenta del Estado, 1835, p. 201. Disponível em:
http://www.cervantesvirtual.com/servlet/SirveObras/68049485989571385754491/p0000002.htm#I_13
_
Acesso em 7 de janeiro de 2011.
Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH • São Paulo, julho 2011 17
―O nome Chiriguano (quéchua), que significa "povo sujo", foi-lhes dado pelos incas
vaidosos, que desprezava o povo Chiriguano, representando-o como bárbaros"35
.
Gandia comenta que os chiriguano eram um povo extremamente limpo (higiênico) e que
o objetivo dos incas era mesmo causar ressentimentos.
Em Chiriguana: nacimiento de una identidad mestiza, Combés e Saignes36
fizeram um levantamento histórico e lingüístico acurado das fontes coloniais e também
das proposições científicas de distintos pesquisadores (Nordenskiold, Metraux, Gandia e
Susnik). Ao longo de toda obra a perspectiva que perpassa a análise das fontes é a
questão da mestiçagem guarani – chané (arawak) como fundamento de uma nova
identidade. Apoiando-se mais nos idiomas guarani Combés e Saignes vão além das
interpretações tradicionais, que pressupõe que as raízes de Chiriguana são
exclusivamente quíchua, e identificam indícios da mestiçagem no próprio termo.
Com base num documento de 1586, em que o governador de Santa Cruz de la
Sierra afirmava: ―También les llaman Chiriguanaes, corrompido el vocablo, el cual se
diriva de Chiriones, que quiere decir "mestizos, hijos dellos e de indias de otras
naciones"37
, Combès e Saignes sugeriram uma interpretação alternativa que atendia à
tese central de uma ―identidade mestiça‖. Perceberam que outros autores quinhentistas
(Calvette de Estrella, 1557 e Pedro de Segura 1584) registraram uma etnia denominada
Chiriones e a situaram proximamente aos Chiriguana.
Além do mais, evocaram que na Amazônia boliviana existe, ainda hoje, um
grupo linguisticamente filiado ao guarani denominado Sirionó. Chiriono e Sirionó
seriam, pois sinônimos considerando que na língua dos próprios Sirionó, ―Ch‖
corresponde a ―S‖. Qual seria, então, o significado de ―chiri‖ ou ―siri‖ na língua
guarani-sirionó? De acordo com o Diccionario chiriguano-español y español-
chiriguano, de Romano y Cattunar (Op. cit. Combés; Saignes) siri equivale a expatriar-
35 "The name of Chiriguano (quechua), which means ‗dirt people‘, was given them by the vainglorious
Incas, who despised the Chiriguano people, afecting to look upon them as barbarians. COUNT ERIC
VON ROSEN. Ethnographical Research work during the swedish chaco-cordillera expedition, 1901—
1902. Stockolm, p. 188. Citado por: GANDIA, Enrique de. Historia de Santa Cruz de la Sierra: una
nueva republica en Sud América. Buenos aires: Talleres Gráficos Argentinos de L. J. Rosso, 1935. p.
16
36 COMBÈS e SAIGNES, Thierry. "Chiriguana: nacimiento de una identidad mestiza". In: J. Riester
(org.). Chiriguano. Santa Cruz: APCOB. 1995 pp. 25-221.
37 SUÁREZ DE FIGUEROA, Lorenzo. [1586] ―Relación de la ciudad de Santa Cruz de la Sierra‖. In:
Marco Jiménez de la Espada: Relaciones geográficas de Indias: Relaciones Geográficas del Peru.
Tomo II. Madrid: Biblioteca de autores españoles, 1965, t. 1: 404.
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se. O raciocínio que os autores propõem é que as expedições guarani rumo à cordilheira
eram predominantemente masculinas e, no decorrer da jornada, os guerreiros contraíam
mulheres dos grupos vencidos que, por sua vez, procriavam filhos mestiços. Portanto,
os expatriados eram também mestiços, ―y los sirionó son también unos ‗mestizos‘‖38
. A
proximidade entre siri e chiri é corroborada por uma carta em que o P. Martinez de 1601
que escreve Chiriguana como Siriguana (crónica anónima, 1944: 498. Op. Cit. Cambés;
Saignes)
Para explicar a terminação guana Combés e Saignes perguntam: ―¿con quién se
han mestizado los guarani migrantes?‖ Embora diversos grupos tenham sido atingidos
pela expansão guarani, as fontes históricas indicam que as mulheres Chané, obtidas em
guerras de conquista, se tornavam as parceiras por excelência. Os Chané são da família
lingüística Arawak assim com os Guana. A possibilidade de o ―guana‖ de chiriguana ser
uma referência aos chané já havia sido aventada por Susnik39
. A conclusão que sucede é
que chiriguana seria uma alusão a ―los que nacieron de padre guarani com madre
guana‖40
. Em outra palavras, os que se expatriaram e se mestiçaram com Guana.
Essa versão foi muito bem recebida pelo antropólogo Xavier Albó na medida em
que substituía as conotações depreciativas por uma explicação mais plausível com a
trajetória histórica dos Chiriguana. A expectativa de Albó era que as comunidades
guarani falantes da atual Bolívia assumissem novamente esse etnônimo sem prejuízo
para a auto-estima41
. Todavia, num recente artigo Combès, desta vez em parceria com
Villar42
, voltou a se pronunciar sobre essa interpretação. Nesse artigo os autores revelam
que essa interpretação teve a intenção de se contrapor às conotações pejorativas de
origem colonial com as quais os grupos remanescentes nunca se identificaram e que,
todavia, continuam sendo difundidas na Bolívia e na Argentina. Todavia, não garantem
38 COMBÈS, Isabelle e SAIGNES, Thierry. Chiriguana: nacimiento de una identidad mestiza. In: J.
Riester (org.). Chiriguano. Santa Cruz: APCOB. 1995, p. 88
39 SUSNIK, Branislava. Chiriguanos: Dimensiones etno- sociales. Asunció: Museo Etnografico Andres
Barbero, 1968.
40 COMBÈS, Isabelle e SAIGNES, Thierry. Chiriguana: nacimiento de una identidad mestiza. In: J.
Riester (org.). Chiriguano. Santa Cruz: APCOB. 1995, p. 88.
41 ALBÓ, Xavier. Los Guaraní –Chiriguano. La comunidad hoy, La Paz: CIPCA, 1990, p. 12
42 COMBES, Isabelle; VILLAR, Diego. Os mestiços mais puros: Representações chiriguano e chané da
mestiçagem. Mana [online]. 2007, vol.13, n.1, pp. 41-62.; p. 43-44
Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH • São Paulo, julho 2011 19
a viabilidade dessa hipótese. Um dos motivos da desconfiança é que os Guana somente
―ingressaram‖ nas fontes históricas platinas no século XVIII.
No Diccionário Étnico – obra de grande originalidade e praticidade para a etno-
história do Gran Chaco – Combés afirma claramente que, toda etimologia que remete ao
―[...] quechua tiene más probabilidades de ser acertadas‖ 43
. Ou seja, passados mais de
vinte anos em relação à primeira edição francesa (em parceria com Saignes) Isabelle
Combès abandonou a proposição etimológica que se mostrava a mais ―correta‖,
politicamente falando. Chiriguana seria, muito provavelmente, um termo pejorativo
atribuído pelos Incas, ou por outros grupos andinos, a esses guarani falantes que
tensionavam as fronteiras do grande império andino.
Duas possibilidades que, todavia, se articulam merecem ser aventadas, ainda que
em caráter especulativo. As crônicas coloniais que registraram histórias épicas da
tradição oral inca destacam duas etnias bem distantes, uma da outra, que infligiam
enormes reveses às tropas do império andino e fustigavam seus avassalados
circunvizinhos. Os Chiriguanas, ao oriente, e os Araucanos (Mapuche), ao sul do Chile,
foram abordados por Nathan Wachtel44
no que concerne aos enfrentamentos com os
incas e, logo em seguida, os espanhóis.
Esse cenário, do poderoso império inca a dispender grandes esforços para
guarnecer as fronteiras dos ―bárbaros selvagens‖ foi evidenciado pelo Pe. Barnabé Cobo
S.J ao discorrer sobre os serviços prestados ao império, pelos súditos do Inca, com
destaque às tarefas militares:
En primer lugar, se proveían las cosas de la guerra, y era grande el número de hombres que
continuamente andaban en ella, así en los ejércitos que se formaban y rehacían, como en las
guarniciones y presidios que había en las cabeceras de provincias y en las fronteras de los
enemigos; y en las conquistas ordinarias, guazáuaras que tenían los Incas con muchas naciones
confinantes á su imperio, como con los indios Pacamoros, Popayanes y otras naciones
fronterizas de la provincia de Quito; y por la parte del Sur y de las provincias de los Charcas con
los indios Chiriguanas, Araucanos de Chile, gentes bárbaras y muy belicosas45 [grifo nosso].
43 COMBÈS, Isabelle. Diccionario étnico: Santa Cruz la Vieja y su entorno en el Siglo XVI.
Cochabamba: Itinerarios/Instituto de Misionología. 2010, p. 131.
44 WACHTEL, Nathan. Os índios e a conquista espanhola.. In: BETHELL, Leslie. História da América
Latina: América Latina Colonial. vol.1. São Paulo: Edusp, 1997. pp. 195-240; p. 232-235.
45 COBO, Bernabé. [1653] Historia del Nuevo Mundo. Publicada por: Marcos Jiménez de la Espada,
Sociedad de Bibliófilos Andaluces (Sevilla), 1892. p. 270
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Essa passagem ilustra que, em termos adjetivos, uns e outros tinham o mesmo
status. Recuando a 1535-1545 percebe-se uma (com)fusão histórico-geográfica ou,
então, uma proximidade semântica entre Chile e Chiriguanas. Quase todos os
documentos que apontam para uma simultaneidade entre esses dois âmbitos geográficos
resultaram da expedição que Diego de Almagro comandou ao Chile, a partir de Cusco,
1535. Dois notáveis cronistas quinhentistas, e diversos testemunhas que figuram num
processo sobre as disputas entre Diego de Almagro e Francisco Pizarro falam de Chile e
Chiriguana como se fossem uma mesma região. Uma das testemunhas arroladas disse
que Almagro era um bom servidor de S. M, pois era zeloso no trabalho de acrescentar:
―[...] tierras é señoríos, por queste testigo le vio trabajar en ello mucho, especialmente
en el descubrimiento de Chile ó Chiriguana y en la conquista de toda la tierra del Perú;
[…]‖46
. Outra testemunha diz saber que Vasco de Guevara foi com ―[…] el adelantado
don Diego de Almagro á la provincia de Chiriguana ó Chile, porque le vio venir al
tiempo que el dicho Adelantado vino á esta ciudad con él […]‖47
. Diversas probanzas
da Colección de documentos inéditos para la historia de Chile sobre a expedição de
Almagro, seu retorno e conflito com os Pizarros denotam que, na primeira metade do
século XVI, Chiriguana e Chile eram sinônimos para os conquistadores andinos.
Os historiadores da época também tiveram esse entendimento. Para compor sua
obra Cieza de León (que de acordo com F. Pease é um dos mais precoces e célebres
historiadores do Peru pré-colonial e colonial), arrolou fontes orais, documentos oficiais,
participou in loco das campanhas militares para subjugar os pizarristas rebeldes à coroa
e viajou por diversas províncias peruanas – inclusive Charcas, vizinha aos Chiriguanas.
A citação a seguir, além ilustrar como Cieza de León manteve essa imbricação – Chile e
Chiriguana – traz importantes aportes sobre a perspicácia dos incas que, para se
livrarem dos espanhóis, convencem-nos a partir para regiões distantes e ásperas onde,
segundo os mesmos: ―[...] había tanto oro y prata que tenían las casas chapadas de ello
[...]48
‖
46 MEDINA, José Toribio éd. Colección de documentos inéditos para la historia de Chile. [1518-1818]
T.6. Fee de cierta probanza é abtos é escripturas de don Alonso Enriques contra Hernando Pizarro
(Archivo de Indias, 52-2-1/14).p. 225-226.
http://www.archive.org/details/coleccindedocum03medigoog
47 MEDINA, José Toribio éd., op cit. Probanza de méritos y servicios del capitán Vasco de Guevara p.
270 http://www.archive.org/details/coleccindedocum03medigoog
48 CIEZA DE LEÓN, Pedro: Crónica del Perú. Tercera Parte. [1553]. Cap. LXXXV
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A todo esto tengo que decir, que como los indios naturales viesen la gran potencia de los
españoles, y por experiencia sabían irles mal en tomar armas, hostigados por los muchos que
habían muerto en las guerras pasadas, habían asentado y tratado paz; pero con mezcla de
fingimiento y con deseo de verlos divididos y de tal manera que pudiesen vengarse de tantos
daños como habían recibido. Y teniendo este intento y conociendo su gran codicia y demasiada
avaricia, publicaron grandes cosas de lo de Chiriguana, afirmando haber tanto oro y plata, que
no era nada lo del Cuzco para compararlo con ello. Los españoles creíanlo y pensaban henchir
las manos en aquella tierra49.
Diante destas notícias Almagro organizou uma expedição e se dirigiu ao Chile,
donde retornou com imensas perdas humanas e materiais. A conjunção
Chiriguana/Chile, ocorre seis vezes na terceira parte da obra de Cieza de León, sempre
relacionada à expedição de Almagro. A(s) hipótese(s) que intencionamos expor é que
para o próprio Manco Inca – que, segundo Cieza de León, teria incentivado a expedição
de Almagro para livrar-se dele e recuperar seu poder imperial – esses dois âmbitos geo-
etnográficos podiam significar um só e, nesse contexto, representavam uma forma de
abater os espanhóis enviando-os para terras distantes e perigosas. Ou seja, essa
coincidência sugere que ao tempo da conquista espanhola dos incas, Chiriguana se
referia a uma realidade etnográfica e espacial bem mais ampla que a cordilheira
chiriguana.
A depender da versão de Gonzálo de Oviedo, pelo menos parcialmente, os incas
que incitaram essa expedição alcançaram seus objetivos. Vale destacar que a
representação desse cronista acerca dos indígenas que Almagro encontrou coincide com
a de Poma de Ayala e Garcilaso de la Vega50
sobre os guarani falantes da cordilheira.
Uns e outros eram selvagens, pobres e semelhantes a feras: essa é a alegação mais
recorrente para o fracasso das expedições, tanto incaicas pré-hispânicas, quanto
espanholas.
É assi se confirmaron é lo juraron, é passó adelante Almagro (con relaçion que tuvieron de muy
buena tierra) la vuelta de Chile é de Chiriguana, conforme á los conçiertos dados entre ambos
compañeros, jurados é assentados; é fué quinientas leguas ó más adelante del Cuzco, donde él é
la gente hiçieron la exçesiva penitençia que se dirá en el libro siguiente, é halló con una tierra
49 CIEZA DE LEÓN, Pedro: Crónica del Perú. Tercera Parte. [1553]. Cap. LXXXIV.
50 LANGER, Protasio Paulo. Piores que bestas feras : Garcilaso de la Vega e o imaginário hispano-inca
sobre os Guarani Chiriguano. Topoi (Rio de Janeiro), v. 11, p. 5-22, 2010
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frigidíssima, donde ni les faltó sed ni hambre ni otros trabaxos nunca antes oydos á
chripstianos; é la gente que toparon pobre é salvage, vestida de cueros, é las moradas
debaxo de tierra, como osos, [grifo nosso] sin saber qué cosa es oro ni plata, ni averlo
menester51.
A passagem grifada, além de situar os araucanos no mesmo âmbito ontológico
dos chiriguanas, enseja outra aproximação. Em sua expedição ao Chile, Almagro
encontrou uma terra frigidíssima na qual padeceu toda sorte de ―castigo‖. Em outras
palavras, Almagro foi castigado pelo frio numa terra em que só havia bárbaros. A
Cordilheira Chiriguana e o Chile tinham em comum esses atributos. Isso não significa
uma identidade climatológica de fato: os guarani da cordilheira teriam sido castigados
pelo frio de acordo com a crônica de Alcaya. Agora, na expedição de Almagro ao Chile,
o frio castigou os espanhóis da frente andina que, em vez de riqueza e civilizações, só
encontraram bárbaros que viviam como animais.
Outro documento interessante acerca desse tema é uma probanza de méritos em
que Diego de Encinas presta conta de uma extensa lista de façanhas de conquista e
―pacificação‖. Ao contrário dos documentos anteriores, com o nome Cherigoanaes se
refere explicitamente a indígenas, e não a uma região ou província. Entre as diversas
façanhas arroladas, uma delas foi acompanhar Almagro ao Chile e, no caminho, a partir
de Topiza [Tupiza, na atual Bolívia], castigar certos índios Cherigoanaes que haviam
atacado cinco espanhóis em Jujui, três dos quais pereceram. Estes haviam se afastado do
grupo de Almagro que, assim que soube do ocorrido, enviou uma tropa para castigá-los.
Diego de Encinas […] en compañía del adelantado don Diego de Almagro, al descubrimiento de
las provincias de Chile, y en la dicha jornada sirvió en todo lo que se ofreció, é fué con el capitán
Juan de Saavedra á conquistar las provincias del Collao é Charcas é Chichas y sus comarcas
hasta llegar a Topiza; y estando alli mandó el dicho don Diego de Almagro al capitán Rodrigo de
Salcedo, que fuese con gente de á caballo á hacer guerra y castigo de ciertos indios
51 FERNANDEZ DE OVIEDO Y VALDÉS, Gonzalo. Historia general y natural de las Indias, islas y
Tierra-Firme del mar océano. Tecera Parte, tomo IV. Edit. D. Jose Amador de Los Rios. MADRID:
Real Academia de la Historia, 1855. Disponível em:
http://165.98.138.131/BibliotecaGeneral/coleccion_UNO/libros_capitulos_pdf/CCBA%20-
%20SERIE%20CRONISTAS%20-%2005%20-%2009.pdf
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cherigoanaes [grifo nosso] que se habían hecho fuertes en el pueblo de Jujuy é muerto ciertos
españoles, en lo cual sirvió con sus armas é caballos los pacificaron;52
Em relação a essas ocorrências cabe indagar: quem, dos integrantes da expedição
ao Chile, teria condições de identificar, como cherigoanaes, os indígenas que atentaram
contra esses espanhóis. Os únicos capazes de reconhecê-los seriam os próprios incas
que, em considerável número, acompanharam a referida expedição, já que os espanhóis
ainda não haviam percorrido e tampouco se estabelecido naquelas terras. Por esse
motivo é razoável supor que os incas tenham chamado de chiriguana a qualquer grupo
que, na avaliação ―incacêntrica‖ fosse tão bárbaro/selvagem e agressivo quanto aqueles
da cordilheira chiriguana.
A presença ou não de guarani falantes na derrota de Almagro rumo ao Chile foi
analisada, recentemente, por Federico Bossert que fez um exaustivo levantamento das
fontes e argumentos em torno dessa questão. Seu parecer é de que não existe qualquer
documento fidedigno que prove que em Salta e Jujuy – onde supostamente ocorreram os
confrontos com os cherigoanaes – tenha havido assentamentos de guarani no século
XVI53
.
A associação entre Chile e Chiriguanas induziu outros ―tropeços cronísticos‖.
Partindo de informes sobre a travessia do Gran Chaco, pela expedição de Irala, que
alcançou os guarani da cordilheira chiriguana, Gonzalo de Oviedo deduziu que Irala
havia alcançado o Chile: ―Y en este tiempo postrero del año que digo, [1547] han
venido nuevas que la gente que quedó con el dicho Domingo de Irala en tierra, han
descubierto tanto que han llegado hasta la provincia de Chile, que es de la otra parte
del Perú, y en sus confines dícenme‖ 54
. Diante das fontes arroladas, não restam
52 MEDINA, José Toribio. Colección de documentos inéditos para la historia de Chile: desde el viaje de
Magallanes hasta la batalla de Maipo: 1518-1818. Santiago: Imprenta Ercilla, 1888-1902. 30 v. T.7.
Probanza de méritos y servicios de Diego de Encinas, conquistador y pacificador en el Perú y
descubridor de Chile: [24/09/1558, Lima]. Santiago de Chile: Imprenta y encuadernación Barcelona,
1895, p. 208. Disponível em:
http://www.archive.org/stream/coleccindedocum17medigoog#page/n223/mode/2up
53 BOSSERT, Federico. Los chiriguano y el Tucumán colonial: una vieja polémica. Revista Andina 47:
151-184, 2008 p. 175.
54 FERNANDEZ DE OVIEDO Y VALDÉS, Gonzalo. Historia general y natural de las Indias, islas y
Tierra-Firme del mar oceano. Tomo Primeiro da Segunda Parte. Edit. D. Jose Amador de Los Rios.
MADRID: Real Academia de la Historia, 1852. Libro XXXIII, Cap. XVI, p. 208. Disponível em:
http://books.google.com.br/
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dúvidas que o cronista Oviedo também partia do pressuposto de que Chile e Chiriguana
era um mesmo âmbito geográfico, etnográfico e semântico.
E, finalmente, um último indício de que entre Chile e Chiriguana havia alguma
estranha concordância é o memorial de Jayme Rasquín, datado em 1557. Esse
documento é o primeiro, de origem rioplatense, a se referir aos guarani falantes da
cordilheira com um etnônimo de procedência andina. Esse não seria um dado
importante se esse novo nome não tivesse uma pequena corruptela que pode ser algo
mais que um simples acaso. Ao descrever as províncias do Paraguai e Peru, Rasquín diz
que: ―y enmedio de destas dos províncias [ Las Charcas e Pothosy] estan unos yndios
que en la prouinçia del Peru los llaman chiliguanas y en nuestra prouinçia los llaman
guaranis;‖55
. O que a princípio parece um lapso casual, uma simples troca fonética, pode
ser um sintoma de que em 1557, quando o povoamento colonial do entorno da
cordilheira chiriguana mal havia iniciado, para algumas pessoas ou instâncias político-
administrativas do Peru, Chile e Chiriguana significava uma mesma realidade.
Conclusão
Para por termo aos dados aqui arrolados cabem algumas considerações. Uma
delas diz respeito aos autores, que propuseram explicações para o significado dos
nomes, e ao lugar donde falavam. Os cronistas do Rio da Prata quinhentista, que de fato
atuaram entre as diversas etnias guarani falantes, não se pronunciaram sobre os
significados dos nomes. A começar pela carta de Luíz Ramirez – o primeiro documento
a registrar o nome guarenies e a elaborar uma descrição etnológica sumária desse grupo
– passando pelas crônicas de Schmidel e Cabeza de Vaca – as mais célebres narrativas
da era da conquista do Rio da Prata – e pelas cartas-relatórios de Irala, em nenhum
desses autores há um discurso especulativo em torno dos conteúdos etimológicos dos
nomes étnicos.
Todavia, a partir de 1570, quando tanto no Paraguai quanto na Cordillera
Chiriguana eclodiriam levantes armados56
de etnias guarani, a associação direta ou
55 RASQUÍN, Jaime. [1557] ―Petición de Jaime de Rasquín‖ in Catherine Julien: Desde el Oriente.
Documentos para la historia del Oriente boliviano y Santa Cruz la Vieja (1542-1597). Santa Cruz:
fondo editorial municipal, doc. 8 p. 41-44, 2008, p. 43
56 Entre as referências historiográficas para o estudo dos levantes guarani contra instituições coloniais no
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indireta dos nomes com uma suposta índole brutal e guerreira tornou-se recorrente.
Lorenzo Suares de Figueroa foi governador de Santa Cruz de la Sierra, na década de
1580 quando, entre colonos e guarani falantes, as tensões eram culminantes. É dele a
explicação sumária que pretende dar conta de todos os nomes correntes e seus
significados57
.
Martín del Barco Centenera chegou ao Paraguai em 1573 e por dois anos atuou
como capelão de tropas que partiam para novas conquistas. Em seguida estabeleceu-se
em Chuquisaca e Cochabamba, contiguo aos chiriguanaes, que no ano de 1574
venceram a expedição militar do vice-rei Francisco de Toledo. Seu poema, publicado
em 1602, imputa aos guarani, em geral, todos os adjetivos que comumente os
conquistadores aplicam aos indígenas que desafiam a força e os métodos coloniais. Para
esse poeta os povos guarani não representam qualquer contribuição positiva à formação
da ―Argentina‖, pelo contrário, são os bárbaros sanguinários a serem subjugados pelas
nobres armas da Espanha.
Os significados dos nomes que Barco Centenera forjou para guarani e cario
refletem essas premissas. A perspectiva andina também aparece na Relación que o
padre Diego Felipe de Alcaya ouviu do seu pai. Num e noutro caso, vale observar, o
interesse pelo significado do nome surge após 1560, período em que as tensões entre
colonos e guarani se agravaram. Um e outro tiveram o universo andino como centro de
atuação colonial. Em seus textos o eurocentrismo associado ao incacentrismo reduziu os
grupos das terras baixas a meros bárbaros a serem civilizados e colonizados, de uma
forma ou de outra.
Em comparação às especulações historiográficas, nas fontes coloniais os
significados são mais categóricos do que sugestivos. A linguagem colonial não é
Paraguai e na Cordillera Chiriguana vale destacar: RÍPODAS ARDANAZ, Daisy. Movimientos
shamánicos de liberación entre los Guaraníes (1545-1660). Apartado de Teologia, XXIV(50), 1987, p.
245-275; NECKER, Louis. Indios Guaraníes y chamanes franciscanos: las primeras reducciones del
Paraguay (1580-1800). Asunción: Centro de Estudios Antropológicos/Universidad Católica, 1990 e
MELIÁ, B. El Guarani conquistado y reducido. Ensayos de etnohistoria. 3.ed. Asunción: Ceaduc,
1993.
57 ―El propio nombre de esta generación es Cario, de donde se diriva el nombre que tienen, Caribes, que
quiere decir ‗comedores de carne humana‘. Llámanse también Guaranís y Guarayus, que quiere decir
‗gente de guerra‘. También les llaman Chiriguanaes, corrompido el vocablo, el cual se diriva de
Chiriones, que quiere decir ‗mestizos, hijos dellos e de indias de otras naciones‘. SUÁREZ DE
FIGUEROA, Lorenzo. [1586] ―Relación de la ciudad de Santa Cruz de la Sierra‖. In: Marco Jiménez
de la Espada: Relaciones geográficas de Indias: Relaciones Geográficas del Peru. Tomo II. Madrid:
Biblioteca de autores españoles, 1965, t. 1: 404.
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especulativa, que busca se aproximar e desvendar os significados. Os três escritores
andinos (Barco Centenera, Alcaya e Suárez de Figueroa) tomaram os nomes próprios
como portadores de sentidos precisos, pré-exitentes. Para eles, os nomes não são um
meio para avizinhar as pessoas dos seres nomeados, para procurar um sentido para o
que pretendem nomear, ―mas revelam o que já é conhecido e está pronto para ser
comunicado‖58
. A mensagem do poeta Arnaldo Antunes, que nos brindou com a
instigante epígrafe que abre este trabalho, era desconhecida por esses autores.
Já os historiadores analisados são mais propositivos na medida em que
empreendem uma busca pelo sentido e, nesse movimento, ponderam antigas
explicações, propõem novas possibilidades e reavaliam criticamente acepções que, no
decorrer do tempo se revelam frágeis. Ainda assim, o interesse pelo conteúdo dos
nomes próprios continua em alta. Acompanhar o contexto histórico, a perspectiva dos
autores proponentes, a articulação interdisciplinar dos dados lingüísticos e etnológicos
que são arrolados para fundamentar esse ou aquele significado, é um exercício
envolvente e rico em historicidade na medida em que aporta conteúdos sobre a
representação dos povos indígenas ao longo dos séculos.
58 BARBOSA, Carlos Alberto. Ética e linguagem a partir de alguns fragmentos de Theodor W. Adorno.
EccoS Rev. Cient., UNINOVE, São Paulo: (v.2 n.1): p. 51.