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Estatuto da cidade: a construo de uma lei Jos Roberto Bassul
IntroduoNo Brasil, a primeira Constituio a tratar da questo urbana foi a de 1988, promulgada
quando as cidades j abrigavam mais de 80% de toda a populao.
A aglomerao demogrfica em ncleos urbanos passou a caracterizar o Brasil a partir
da crise mundial de 1929, que alcanou o ciclo do caf paulista e empurrou grandes
contingentes de desempregados em direo aos ncleos urbanos (CHAFFUN, 1996, pp.
18-19). Esse processo de urbanizao tornou-se especialmente agudo entre a segunda
metade dos anos 1950 e a dcada de 1970, no chamado perodo desenvolvimentista.
Ao longo desses anos, caracterizados por elevadas taxas de crescimento demogrfico, a
populao brasileira passou a concentrar-se maciamente em cidades cada vez maiores,
que adquiriram um perfil metropolitano.
Os municpios viram-se obrigados a lidar com os efeitos da urbanizao acelerada
inteiramente desaparelhados para essa imensa tarefa. No havia recursos financeiros
suficientes, meios administrativos adequados nem instrumentos jurdicos especficos.
Influenciado pelos setores dominantes na economia urbana, o aparelho estatal dirigia seus
escassos recursos para investimentos de interesse privado e adotava normas e padres
urbansticos moldados pelos movimentos do capital imobilirio. Tanto quanto ocorria com
a renda econmica nacional, a renda urbana concentrava-se. A cidade cindiu-se. Para
poucos, os benefcios dos aportes tecnolgicos e do consumo afluente. Para muitos, a
privao da cidadania e a escravido da violncia.
O planejamento regulatrio, fundado na crena de que a formulao da poltica urbana
deveria ocorrer no mbito de uma esfera tcnica da administrao pblica, ao contrrio
de reverter esse quadro, acentuou seus efeitos. A gesto tecnocrtica alimentou um
processo caracterizado, de um lado, pela apropriao privada dos investimentos pblicos
e, de outro, pela segregao de grandes massas populacionais em favelas, cortios e
loteamentos perifricos, excludas do consumo de bens e servios urbanos essenciais.
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Crescentes, as demandas sociais pelo suprimento dessas carncias resultaram na organizao
popular de grupos de presso, que passaram a exigir iniciativas do poder pblico. Muito ativas
na dcada de 1970, essas organizaes, ento conhecidas como movimentos sociais urbanos,
aliadas a entidades representativas de certas categorias profissionais, como arquitetos,
engenheiros, gegrafos e assistentes sociais, constituram, nos anos 1980, o Movimento
Nacional pela Reforma Urbana (MNRU) com o objetivo de lutar pela democratizao do acesso a
condies condignas de vida nas cidades brasileiras.
Com atuao em duas vertentes, a do territrio fsico e poltico das cidades e a da proposio
de normas jurdicas especiais, o MNRU, embora em vrios momentos enfatizasse o aspecto
legislativo de suas propostas, conduziu ambas as frentes de atuao de forma complementar.
Semeado por debates e embates, o iderio da reforma urbana ganhou corpo conceitual e
maior consistncia poltica no mbito da Assembleia Nacional Constituinte, eleita em 1986,
cujo regimento no apenas previa a realizao de audincias pblicas como tambm admitia
a apresentao de propostas de iniciativa popular. Por essa via, a das chamadas emendas
populares, o tema da poltica urbana incorporou-se ao processo constituinte com maior expresso
social, o que ensejou seu reconhecimento poltico. Fruto da Constituio promulgada em 1988, o
Estatuto da Cidade, aprovado treze anos depois, trouxe aplicabilidade s normas constitucionais,
especialmente em relao aos princpios da funo social da cidade e da propriedade urbana. Foi
um longo caminho. O registro dessa trajetria constitui o propsito deste artigo.
Aspectos histricosA institucionalizao da questo urbana em mbito federal1 encontra suas mais remotas
referncias no ano de 1953, por ocasio do III Congresso Brasileiro de Arquitetos, realizado em
Belo Horizonte (MG). O documento final do evento props a edio de uma lei para criar, no
governo central, um ministrio especializado em habitao e urbanismo (SERRAN, 1976, pp. 28-
29). No ano seguinte, o IV Congresso, realizado de 17 a 24 de janeiro, na cidade de So Paulo,
reiterou essa reivindicao.
Em 1959, o Departamento do Rio de Janeiro do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB) publicou
uma proposta de projeto de lei, denominada Lei da Casa Prpria. Essa proposta legislativa,
encaminhada aos candidatos presidncia da Repblica nas eleies de 1960, Adhemar de Barros,
Henrique Lott e Jnio Quadros, propunha a constituio de sociedades comerciais destinadas a
financiar a aquisio de casa prpria, a vinculao entre reajuste de prestao e aumento de salrio,
a retomada do imvel (mediante indenizao) em caso de inadimplemento do comprador, bem
como a criao de um Conselho Nacional da Habitao. Essa ltima sugesto foi implementada em
1962, no governo de Joo Goulart, que assumira o poder aps a renncia de Jnio Quadros.
1. O Brasil uma repblica federativa, composta pela unio indissolvel dos
estados e municpios e do Distrito Federal (CF, art. 1, caput).
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Em 1963, o Seminrio de Habitao e Reforma Urbana, realizado no Hotel Quitandinha,
em Petrpolis (RJ), conhecido como Seminrio do Quitandinha, do qual participaram tanto
polticos (como o deputado Rubens Paiva, posteriormente assassinado durante o regime militar)
quanto tcnicos e intelectuais (SOUZA, 2002, pp. 156-157), resultou num documento que,
embora ainda marcado pela nfase na luta pela moradia, j defendia preceitos de maior justia
social no territrio das cidades. Suas concluses no apenas continham a recomendao de
que o poder executivo encaminhasse ao Congresso Nacional um projeto de lei sobre a poltica
habitacional e urbana, mas tambm, e sobretudo, expunham princpios e fundamentos que,
dcadas depois, seriam incorporados ordem jurdica.
So exemplos do carter pioneiro e da atualidade desse documento afirmaes, entre
muitas outras, como as seguintes:
o problema habitacional na Amrica Latina (...) o resultado de condies de subdesenvolvimento 1.
provocadas por fatores diversos, inclusive processos espoliativos (...);
a situao habitacional do Brasil [caracteriza-se] pela desproporo cada vez maior, nos 2.
centros urbanos, entre o salrio ou a renda familiar e o preo de locao ou de aquisio de
moradia, [dado que] o significativo nmero de habitaes construdas tem se destinado quase
exclusivamente s classes economicamente mais favorecidas;
nos maiores centros urbanos do Pas, a populao que vive em sub-habitaes (...) grande 3.
e crescente, tanto em nmeros absolutos como relativos;
concorre para agravar o dficit de habitao (...) a incapacidade j demonstrada de obterem-4.
se, pela iniciativa privada, os recursos e investimentos necessrios ao aumento da oferta de
moradias de interesse social (...);
a ausncia de uma poltica habitacional sistemtica (...) vem ocasionando efeitos malficos ao 5.
desenvolvimento global do Pas, baixando de modo sensvel o rendimento econmico-social
desse mesmo desenvolvimento;
entre os direitos fundamentais do homem e da famlia se inclui o da habitao e sua realizao 6.
exige limitaes ao direito de propriedade e uso do solo e se consubstancia numa reforma
urbana, considerada como o conjunto de medidas estatais visando justa utilizao do solo
urbano, ordenao e ao equipamento das aglomeraes urbanas e ao fornecimento de
habitao condigna a todas as famlias;
de grande importncia para a poltica habitacional a formao de uma conscincia popular 7.
do problema e a participao do povo em programas de desenvolvimento de comunidades;
imprescindvel a adoo de medidas que cerceiem a especulao imobiliria, sempre 8.
antissocial, disciplinando o investimento privado nesse setor;
para a efetivao da reforma urbana torna-se imprescindvel a modificao do pargrafo 16 9.
do art. 141 da Constituio Federal, de maneira a permitir a desapropriao sem exigncia de
pagamento vista, em dinheiro (SERRAN, op. cit., pp. 55-58).73
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Estavam, portanto, nesse texto histrico os princpios fundamentais que, mais tarde, e com maior nfase
em seus aspectos sociais, viriam a ser defendidos pelo Movimento Nacional pela Reforma Urbana (MNRU) na
Assembleia Nacional Constituinte. No comeo de 1963, com base nessas propostas2 e no auge da campanha
popular pelas reformas de base, como se dizia ento, o governo de Joo Goulart encaminha sua Mensagem
anual ao Congresso Nacional, na qual aborda a questo habitacional brasileira nos seguintes termos:
No desconhecemos que somente o desenvolvimento do Pas, aumentando a riqueza
nacional, poder elevar o nvel de vida do povo, proporcionando-lhe adequadas condies
de residncia. Mas tambm no ignoramos que a falta de uma legislao reguladora tem
permitido que a indstria de construo se transforme em presa favorita de especuladores,
impedindo o acesso residncia prpria das camadas mais pobres de nossa populao.
Abortado pelo golpe militar de 31 de maro de 1964, o projeto no chegou a ser apresentado ao
Congresso Nacional.
Embora a questo urbana j fosse importante naquele ambiente poltico e o Seminrio do
Quitandinha tivesse, de fato, influenciado as decises polticas, a repercusso do referido encontro
no se comparou visibilidade conferida mobilizao que, na mesma poca, agitava o Brasil rural, na
esteira da organizao das ligas camponesas, clamando por reforma agrria (SOUZA, 2002, p. 157).
Talvez por essa razo, frustradas as precursoras iniciativas de legislao urbana do governo Goulart,
os governos militares tenham logo aprovado uma lei para tratar da questo agrrio-rural, o Estatuto
da Terra e, no que se refere problemtica urbana, feito regredir o debate, circunscrevendo-o
poltica habitacional, por meio da criao, em 1964, do Banco Nacional da Habitao (BNH)3. A
ideia de uma legislao que se voltasse de forma abrangente para as cidades s voltaria ao debate
poltico no final dos anos 1970.
proporo que os problemas urbanos se agravavam, as crticas atuao do BNH, muito voltado
para a abordagem financeira da produo habitacional, avolumavam-se. No incio da dcada de 1970,
o BNH estendeu sua atuao para programas de saneamento e o governo federal instituiu as primeiras
Regies Metropolitanas tentativa de tratar as questes que ultrapassavam a jurisdio municipal
bem como criou a Comisso Nacional de Poltica Urbana e Regies Metropolitanas (CNPU).
2. Conforme Jorge Wilheim (1965, p. 161).
3. Criado em 1964 pelo governo militar que assumira o poder, o BNH destinava-se a financiar programas
habitacionais. Em relao habitao popular, apoiava a remoo de favelas e a transferncia dos moradores
para conjuntos habitacionais. A maior parcela dos recursos aportados, contudo, dirigiu-se a incorporaes
imobilirias voltadas para a demanda habitacional da classe mdia. O sistema institudo em 1964 inclua, ao lado
do BNH, o Servio Federal de Habitao e Urbanismo (SERFHAU), que tinha o objetivo de orientar a elaborao
dos planos diretores municipais. O SERFHAU foi extinto em 1974 e o BNH, em 1986.
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Ainda no havia, entretanto, nenhuma proposta legislativa com o objetivo de promover
a adoo de polticas que promovessem o acesso dos mais pobres aos servios e
equipamentos urbanos. Durante o regime militar, a primeira tentativa nesse sentido ocorreu
no mbito da CNPU, depois transformada em Conselho Nacional de Desenvolvimento
Urbano (CNDU), onde, em 1976, foi elaborado um anteprojeto de lei de desenvolvimento
urbano, baseado na constatao de que as administraes locais no dispunham de um
instrumental urbanstico para enfrentar a especulao imobiliria e promover a distribuio
dos servios pblicos urbanos (GRAZIA, 2003, p. 57).
A notcia de que estava em elaborao esse anteprojeto vazou para a imprensa, o que
suscitou manchetes alarmistas em alguns jornais e semanrios da poca, um dos quais
alertava os leitores para o fato de o governo militar pretender socializar o solo urbano
(RIBEIRO e CARDOSO, 2003, p. 12). O governo recuou.
As reivindicaes sociais, no entanto, cresciam. A campanha eleitoral de 1981, no que
seria a primeira eleio direta de governadores aps o golpe de estado de 1964, trouxe
a questo urbana para a pauta poltica nacional. Em 1982, a 20a Assembleia Geral da
Conferncia Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) aprovou um documento, intitulado
Solo Urbano e Ao Pastoral, em que critica a formao de estoques de terra urbana
com fins especulativos e, entre outras aes pblicas, a poltica de remoo de favelas.
O texto propunha, por exemplo, a regularizao fundiria de assentamentos informais, o
combate ociosidade do solo urbano e o condicionamento da propriedade urbana sua
funo social (CNBB, 1982).
No ano seguinte, o governo do general Joo Figueiredo, que tinha como Ministro do
Interior (responsvel pela questo urbana) o coronel Mrio Andreazza, motivado pelo
risco de que a questo urbana pudesse empolgar as camadas populares em torno de
lideranas da oposio ao regime autoritrio (RIBEIRO e CARDOSO, op. cit., p. 13),
finalmente envia ao Congresso Nacional o projeto elaborado no CNDU. Embora fosse
uma verso j abrandada pela excluso de certos institutos, como a concesso da posse
da terra aos moradores urbanos que apresentavam condies ilegais de ocupao
(GRAZIA, 2002, p. 21), a proposio conservava a essncia4 do anteprojeto de 1976.
4. Segundo Adauto Cardoso (apud GRAZIA, 2002, p. 20), uma verso anterior do projeto havia sido
publicada, sem a permisso governamental, no jornal O Estado de S. Paulo, de 27/1/1982, o que
teria ensejado reaes a essa possibilidade de regularizao fundiria. interessante notar que essa
mesma polmica ressurgiria na Assembleia Nacional Constituinte e, quase duas dcadas depois, por
ocasio da sano do Estatuto da Cidade.
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O projeto da Lei do Desenvolvimento Urbano (LDU), que ganhou o nmero 775/83, objetivava a melhoria da
qualidade de vida nas cidades, por meio de diretrizes e instrumentos como, entre muitos outros:
a recuperao pelo poder pblico de investimentos de que resulte valorizao imobiliria;1.
a possibilidade de o poder pblico realizar desapropriaes de imveis urbanos visando renovao 2.
urbana ou para combater a estocagem de solo ocioso;
o direito de preempo (preferncia); 3.
a taxao da renda imobiliria resultante de fatores ligados localizao do imvel; 4.
o direito de superfcie; 5.
o controle do uso e ocupao do solo;6.
a compatibilizao da urbanizao com os equipamentos disponveis;7.
o condicionamento do direito de propriedade (imposto progressivo e edificao compulsria);8.
a regularizao fundiria de reas ocupadas por populao de baixa renda;9.
o reconhecimento jurdico da representao exercida pelas associaes de moradores;10.
o estmulo participao individual e comunitria;11.
o direito de participao da comunidade na elaborao de planos, programas e projetos de 12.
desenvolvimento urbano;
a legitimao do Ministrio Pblico para propor aes em defesa do ordenamento urbanstico.13.
Muitos de seus institutos constaram da Emenda Popular da Reforma Urbana5, que
viria a ser apresentada quatro anos depois Assembleia Nacional Constituinte de 1986.
Importa lembrar que estava ainda em vigor a Constituio do regime militar, de 1967/1969,
que, alm de caracterizar-se pelo perfil autoritrio do regime, ignorava a natureza j
predominantemente urbana do Brasil. Na verdade, a proposio legislativa baseava-se to
somente no frgil abrigo constitucional proporcionado pelo ento ainda impreciso princpio
da funo social da propriedade.
A apresentao do projeto foi, portanto, uma indiscutvel ousadia. A reao dos
setores conservadores da sociedade foi imediata. O empresariado urbano mais atrasado
novamente tachava o projeto de comunista, como, alis, costumava acontecer ento
com as iniciativas de ndole democrtica. A revista Viso, de So Paulo, porta-voz do
empresariado conservador, que apoiava o governo, chegou a tratar o assunto em matria
de capa. Acusava o projeto de acabar com o direito de propriedade no Brasil. O Projeto de
Lei (PL) 775/83 nunca foi posto em votao no Congresso Nacional.
5. Ao examinar comparativamente o Projeto de Lei 775/83 (LDU) e a Emenda Popular da Reforma Urbana, Adauto
Lcio Cardoso (2003, p. 31), embora ressalve a diferena entre a nfase da LDU no planejamento urbano e a da
Emenda na participao popular, afirma que a emenda popular se move no campo de discusses e segundo um
padro de pensar a questo urbana que foi estabelecido pela LDU.
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O processo constituinte e a Emenda Popular da Reforma UrbanaA redemocratizao do Pas, ocorrida em 1985, ensejou a convocao de uma Assembleia Nacional
Constituinte, instalada em 1986. Seu processo de funcionamento foi ousado e inovador, no tendo
paralelo na histria constitucional brasileira e sendo bastante raro mesmo no direito comparado (COELHO
e OLIVEIRA, 1989, p. 20).
Em todo o processo, foram amplas as possibilidades de participao popular desde o incio dos trabalhos.
Somente a Subcomisso da Questo Urbana e Transporte realizou doze audincias pblicas (ARAJO, 2009,
p. 377). A mais relevante entre as variadas formas de participao democrtica no processo constituinte foi,
contudo, a das emendas populares.
A partir do primeiro projeto, sistematizado em 15 de julho de 1987, foram admitidas, ao lado daquelas
formuladas pelos prprios constituintes, emendas de iniciativa dos cidados, desde que trouxessem,
no mnimo, a assinatura de trinta mil eleitores e fossem patrocinadas por, pelo menos, trs associaes
representativas. No total, foram apresentadas 122 emendas populares, que somaram mais de doze
milhes de assinaturas. No entanto, somente 83 delas atenderam s exigncias regimentais e foram
oficialmente aceitas. Entre essas estava a Emenda Popular da Reforma Urbana.
Sob a responsabilidade formal da Federao Nacional dos Engenheiros, da Federao Nacional dos
Arquitetos e do Instituto de Arquitetos do Brasil, mas tambm sob a organizao da Articulao Nacional do
Solo Urbano, da Coordenao dos Muturios do BNH e do Movimento em Defesa do Favelado, alm de
48 associaes locais ou regionais (MARICATO, 1988), tendo por primeira signatria Nazar Fonseca dos
Santos, a Emenda Popular n 63, de 1987, como ficou oficialmente registrada, obteve 131 mil assinaturas.
Disposta em vinte e trs artigos, a Emenda pretendia, em resumo, consignar na Constituio:
o direito universal a condies condignas de vida urbana e a gesto democrtica das cidades;1.
a possibilidade de o poder pblico desapropriar imveis urbanos por interesse social, mediante 2.
pagamento em ttulos da dvida pblica, exceo da casa prpria, cuja indenizao deveria ser plena e
prvia, em dinheiro;
a captura de mais-valias imobilirias decorrentes de investimentos pblicos;3.
a iniciativa e o veto popular de leis;4.
a possibilidade, na ausncia de lei federal disciplinadora, da aplicao direta de norma constitucional, 5.
mediante deciso judicial;
a responsabilizao penal e civil da autoridade que descumprisse os preceitos constitucionais;6.
a prevalncia dos direitos urbanos por meio de instrumentos tais como: imposto progressivo, imposto 7.
sobre a valorizao imobiliria, direito de preferncia, desapropriao, discriminao de terras pblicas,
tombamento, regime especial de proteo urbanstica e ambiental, concesso de direito real de uso e
parcelamento e edificao compulsrios;
a separao entre direito de propriedade e direito de construir;8.
o usucapio especial para fins de moradia, de terrenos pblicos ou privados;9.
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o direito a moradia com base em polticas pblicas que assegurassem: regularizao fundiria 10.
e urbanizao, programas habitacionais para aquisio ou locao, fixao de limite mximo
para o valor inicial dos aluguis, assessoria tcnica e aplicao de recursos oramentrios a
fundo perdido, sob controle social;
a periodicidade mnima de doze meses e o controle estatal dos ndices aplicados ao 11.
reajustamento de aluguis;
o monoplio estatal para a prestao de servios pblicos, vedado o subsdio de servios 12.
concedidos iniciativa privada;
a criao de um fundo de transportes pblicos para subsidiar a limitao das tarifas ao 13.
equivalente a 6% do salrio-mnimo mensal;
a participao popular na elaborao e na implementao de plano de uso e ocupao do 14.
solo, alm de sua aprovao pelo legislativo.
Como seria de se esperar, a Emenda Popular da Reforma Urbana suscitou
reaes. Em artigo publicado na Folha de So Paulo de 20/8/1987, dia seguinte ao
da apresentao da Emenda, o deputado constituinte Luiz Roberto Ponte (PMDB-
RS), tambm presidente da Cmara Brasileira da Indstria da Construo (CBIC),
criticou-a firmemente ao considerar que a terra, foco das preocupaes da reforma
urbana, no seria um problema importante, j que representaria apenas 5% dos
recursos necessrios para construir uma habitao digna.
A arquiteta Ermnia Maricato, professora da Universidade de So Paulo (USP) e,
ento, diretora do Sindicato dos Arquitetos daquele Estado, que havia defendido
a Emenda perante o Plenrio da Assembleia Nacional Constituinte, encarregou-
se de refutar tais afirmaes em artigo no mesmo jornal. Lembrou que o custo
relativamente baixo do solo na produo da moradia se dava em conjuntos
habitacionais praticamente fora das cidades e que a reteno especulativa da
terra contribui para essa situao.
A transcrio desse debate se presta a exemplificar o ambiente conflituoso
em que a proposta da reforma urbana foi examinada, tendo resultado no seguinte
texto constitucional:
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Art. 182. A poltica de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Pblico municipal, conforme
diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funes
sociais da cidade e garantir o bem- estar de seus habitantes.
1 - O plano diretor, aprovado pela Cmara Municipal, obrigatrio para cidades com mais de vinte
mil habitantes, o instrumento bsico da poltica de desenvolvimento e de expanso urbana.
2 - A propriedade urbana cumpre sua funo social quando atende s exigncias fundamentais
de ordenao da cidade expressas no plano diretor.
3 - As desapropriaes de imveis urbanos sero feitas com prvia e justa indenizao em
dinheiro.
4 - facultado ao Poder Pblico municipal, mediante lei especfica para rea includa no plano
diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprietrio do solo urbano no edificado, subutilizado
ou no utilizado, que promova seu adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente, de:
I - parcelamento ou edificao compulsrios;
II - imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo;
III - desapropriao com pagamento mediante ttulos da dvida pblica de emisso previamente
aprovada pelo Senado Federal, com prazo de resgate de at dez anos, em parcelas anuais, iguais
e sucessivas, assegurados o valor real da indenizao e os juros legais.
Art. 183. Aquele que possuir como sua rea urbana de at duzentos e cinquenta metros quadrados,
por cinco anos, ininterruptamente e sem oposio, utilizando-a para sua moradia ou de sua famlia,
adquirir-lhe- o domnio, desde que no seja proprietrio de outro imvel urbano ou rural.
1 - O ttulo de domnio e a concesso de uso sero conferidos ao homem ou mulher, ou a
ambos, independentemente do estado civil.
2 - Esse direito no ser reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez.
3 - Os imveis pblicos no sero adquiridos por usucapio.
Ao final do processo constituinte, a Emenda Popular da Reforma Urbana resultou
parcialmente aprovada, o que parece ter parcialmente desagradado a ambos os polos do
debate. De um lado, o MNRU mostrava-se insatisfeito porque a funo social da propriedade,
diretriz fundamental da Emenda, havia sido submetida a uma lei federal que fixasse as
diretrizes da poltica urbana e, ainda, a um plano diretor municipal. De outro, a Federao
das Indstrias do Estado de So Paulo (FIESP) tornava pblica sua inconformidade com o
usucapio urbano (MARICATO, 1988).
Promulgada a Constituio, fruto do acordo possvel, a maior parte dos aspectos
legislativos do iderio da reforma urbana passar a depender de uma lei federal. Comeava
a nascer o Estatuto da Cidade.
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O Estatuto da CidadeProjeto inicial e primeiras reaesA despeito de seus antecedentes e da natureza de seu contedo, o projeto de lei que
acabou transformado no Estatuto da Cidade no se originou de um parlamentar que fosse
arquiteto, urbanista, advogado, gegrafo, socilogo, economista, assistente social, ou
tivesse sido lder de movimentos populares pr-moradia, nem que, muito menos, fosse
empresrio ou alimentasse vnculos com o capital imobilirio. O autor do projeto foi o
senador Pompeu de Sousa, jornalista e professor, que, nascido em 1916 e falecido em
1991, no viveu para presenciar a aprovao de seu projeto, j bastante modificado,
ocorrida em 2001.
O projeto foi apresentado em 28 de junho de 1989 e recebeu a identificao oficial
de Projeto de Lei do Senado (PLS) n 181, de 1989 (Estatuto da Cidade). Com parecer
favorvel do relator, senador Dirceu Carneiro (PSDB-SC), foi aprovado no Senado
exatamente um ano depois e enviado Cmara dos Deputados, onde permaneceria por 11
anos e seria reformulado.
Na Cmara, denominado PL 5.788/90, o projeto, por j ter sido votado, passou a
funcionar como uma espcie de locomotiva, qual foram anexados dezessete vages,
proposies (de menor ou maior abrangncia) sobre o mesmo tema, com origem na
prpria Cmara dos Deputados. Os autores desses projetos, com as respectivas datas de
apresentao, so os deputados Raul Ferraz (1989), Uldorico Pinto (1989), Jos Luiz Maia
(1989), Lurdinha Savignon (um em 1989 e outro, em coautoria, em 1990), Ricardo Izar (um
em 1989 e outro em 1991), Antnio Brito (1989), Paulo Ramos (1989), Mrio Assad (1989),
Eduardo Jorge (1990, em coautoria), Jos Carlos Coutinho (1991), Magalhes Teixeira
(1991), Benedita da Silva (1993), Nilmrio Miranda (1996), Augusto Carvalho (1997), Carlos
Nelson (1997) e Fernando Lopes (1997).
Dentre todos esses, devem ser destacados o do deputado Raul Ferraz (PMDB-BA),
que, na verdade, constitui-se do substitutivo apresentado pelo deputado ao PL 775/83
com suas adaptaes Constituio de 1988 (MOTTA, 1998, p. 211); os de Lurdinha
Savignon (PT-ES) e Eduardo Jorge (PT-SP), elaborados com a participao do MNRU; e o
do deputado Nilmrio Miranda (PT-MG). Esse ltimo espelhou o esforo de consenso que
seria tentado, em 1993, por um grupo de trabalho formado por representantes indicados
pelo deputado Luiz Roberto Ponte, ligado ao empresariado, e pelo prprio Nilmrio Miranda,
vinculado ao movimento da reforma urbana.
Na justificao de seu projeto, Pompeu de Sousa afirmava que pretendia conter a
indevida e artificial valorizao imobiliria, que dificulta o acesso dos menos abastados a
terrenos para habitao e onera duplamente o poder pblico, forado a intervir em reas
cuja valorizao resulta, na maioria das vezes, de investimentos pblicos, custeados por
todos em benefcio de poucos.80
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Textos produzidos pela Sociedade Brasileira de Defesa da Tradio, Famlia e
Propriedade (TFP)6 do a medida da avaliao que os proprietrios imobilirios ligados
instituio faziam do projeto ao considerar que o Estatuto da Cidade investia contra dois
princpios da ordem natural, consagrados pela doutrina social da Igreja e arraigados na
sociedade brasileira: o da propriedade privada e o da livre iniciativa (TFP, 2004, p. 5).
As definies do projeto relativamente funo social da propriedade e ao abuso
de direito sofreram restries radicais de vrios setores do empresariado urbano. O
setor empresarial no aceitou nem mesmo iniciar um debate sobre elas (ARAJO e
RIBEIRO, 2000, p. 7).
Tambm havia oposio do segmento empresarial proposta de usucapio coletivo.
Para Vicente Amadei, assessor do Sindicato das Empresas de Compra, Venda, Locao
e Administrao de Imveis Residenciais e Comerciais de So Paulo (Secovi/SP)7,
que representou a posio do empresariado urbano em muitos momentos do debate
legislativo, tratava-se de um incentivo invaso (DM, 1992, p. 34).
O Estatuto da Cidade foi igualmente repudiado pelos empresrios da construo civil
e do mercado imobilirio que participaram do 56 Encontro Nacional da Indstria da
Construo Civil, realizado em Fortaleza, em 1992. No relatrio final do encontro, a Cmara
Brasileira da Indstria da Construo (CBIC) considerava que o projeto mascara atos de
autoritarismo estatal, entre outros, quando interfere na aquisio de imvel urbano, objeto
de compra e venda entre particulares (DM, 1992, p. 34).
Como se observa, embora fossem distintas e at potencialmente conflitantes, as
vrias fraes do capital imobilirio urbano (proprietrios de terras, construtores e
incorporadores) pareciam unssonas na rejeio ao projeto do Estatuto da Cidade.
Em sentido contrrio, no mbito do movimento pela reforma urbana, o projeto era muito
bem acolhido. Desde a promulgao da Constituio de 1988, esse movimento passou
a lutar pela edio da lei federal requerida no captulo da poltica urbana, como meio para
tornar eficazes seus dispositivos. Para o MNRU, segundo o jurista Nelson Saule Jr., desde
o incio da dcada de 90, o projeto de lei federal de desenvolvimento urbano denominado
Estatuto da Cidade [foi considerado] o marco referencial para a instituio da lei que
regulamenta o captulo da poltica urbana da Constituio brasileira (Saule Jr., 2003, p. 1).
Estavam claras as posies. De um lado, o conjunto de entidades e movimentos que
haviam construdo o iderio da reforma urbana apoiava o Estatuto da Cidade e cobrava
sua aprovao pelo Congresso Nacional; de outro, as entidades representativas do
empresariado urbano, encorpadas por instituies de defesa da propriedade privada
como causa poltica, opunham-se ao projeto de lei.
A disputa parlamentar estava lanada.
6. Organizao social de perfil ultraconservador, voltada para a defesa incondicional do direito de propriedade.
7. Instituio empresarial, representativa do setor imobilirio da maior cidade brasileira.
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Tramitao legislativa: do conflito unanimidadeEm 1991, quando o Estatuto da Cidade estava prestes a ser votado na primeira Comisso para a qual havia sido
distribudo, a de Constituio e Justia e de Redao (CCJR), houve uma alterao no Regimento Interno da Cmara dos
Deputados, que modificou os critrios de distribuio dos projetos. Ao invs de examinar previamente as proposies,
a CCJR passou a pronunciar-se no final, aps a deliberao das chamadas comisses de mrito. O projeto foi ento
redistribudo para a Comisso de Viao e Transportes, Desenvolvimento Urbano e Interior (mais tarde subtrada da
expresso viao e transportes), identificada como CDUI. Em 1992, o relator do projeto nessa Comisso, deputado
Nilmrio Miranda (PT-MG) promoveu audincias pblicas sobre o Estatuto da Cidade e atendeu a um apelo do Poder
Executivo, que solicitou um prazo maior que o regimental para a apresentao de suas emendas (ARAJO e RIBEIRO,
2000, pp. 1 e 2). Em paralelo, duas outras Comisses, a de Economia, Indstria e Comrcio (CEIC) e a de Defesa do
Consumidor, Meio Ambiente e Minorias (CDCMAM) solicitaram audincias sobre o projeto. Por efeito do Regimento da
Cmara, a tramitao foi novamente invertida, pois a comisso de maior nexo com a matria, no caso a CDUI, deveria
ser a ltima a se manifestar quanto ao mrito.
J estvamos em 1993 e o projeto foi ento encaminhado CEIC, onde foi designado relator, o deputado Lus Roberto
Ponte (PMDB-RS), cuja atuao na Constituinte, na avaliao do Instituto de Estudos Socioeconmicos (INESC), foi
assim transcrita:
Em matria de coerncia e reacionarismo este parlamentar um dos melhores exemplos. (...)
Empresrio de prestgio e liderana nacionais, soube, como poucos, usar o mandato em defesa
das causas que defende. Absolutamente contra todas as bandeiras do movimento sindical, soube
comportar-se como representante da classe empresarial com brilho e determinao. Sem dvida,
uma revelao nos trabalhos da Constituinte e um nome a mais com o qual a direita pode contar
(COELHO e OLIVEIRA, 1989, p. 379).
Este vaticnio no tardou a se confirmar. De incio, pela procrastinao do processo. O deputado simplesmente
no apresentava o seu trabalho Comisso. Diante da morosidade de apresentao do parecer e da posio
manifestamente contrria do relator em relao parte do contedo do Estatuto da Cidade (ARAJO e RIBEIRO,
2000, p. 2), o deputado Nilmrio Miranda props ao deputado Ponte a formao de um grupo de trabalho integrado por
representantes de entidades e especialistas na matria, indicados por ambos. A proposta foi aceita.
O grupo foi composto por representantes de entidades populares, profissionais e empresariais da sociedade civil,
tcnicos do governo federal e assessores legislativos. O objetivo era promover um acordo que resultasse num projeto
substitutivo, a ser aprovado por todas as correntes de opinio. No entanto, a despeito de todo o trabalho desenvolvido
pelo grupo e do resultado consensual alcanado, o relator, deputado Lus Roberto Ponte, no honrou o compromisso
assumido, qual seja, o de incorporar em seu parecer o substitutivo produzido8 e dar sequncia votao do Estatuto da
Cidade (ARAJO e RIBEIRO, op. cit., p. 2).
8. O texto substitutivo elaborado pelo grupo, diante da recusa do relator em acat-lo, foi mais tarde
transformado em projeto de lei (PL 1.734/96) pelo deputado Nilmrio Miranda.82
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Do lado de fora do Congresso Nacional, a sociedade tambm atuava em polos igualmente
confrontantes. O MNRU pressionava por meio de notas pblicas (...), visando retomada da tramitao
do projeto (GRAZIA, 2003, p. 60), enquanto o empresariado atuava no sentido contrrio, assim como
tambm fazia a TFP, especialmente a partir de julho de 1992. A TFP lanou-se s ruas colhendo
assinaturas para um documento pedindo aos parlamentares que no aprovassem esse projeto [antes
de um plebiscito]. (...) Realizada essa campanha, o projeto de Estatuto da Cidade sumiu da pauta (TFP,
2004, pp. 11-12).
Na Comisso, os parlamentares faziam sua parte. Os ligados ao movimento da reforma urbana
insistiam em que o Estatuto da Cidade deveria ser votado e seu contedo aprovado, ainda que houvesse
uma ou outra alterao. Outros, simpatizantes das causas do empresariado, apresentavam emendas
para mudar a prpria natureza do projeto. Foram apresentadas nada menos que 114 emendas, a maioria
delas de ndole conservadora.
Essa verdadeira muralha de reaes somente comeou a cindir em 1996, quando o deputado Lus
Roberto Ponte finalmente apresentou seu parecer. As causas para que sua inrcia tenha sido vencida
se somam. De uma parte, uma tentativa de acordo coordenada pela Secretaria de Poltica Urbana
(SEPURB) do Ministrio do Planejamento teria sido um fator de forte influncia na atitude do deputado.
De outra, as entidades ligadas ao movimento pela reforma urbana haviam tomado a iniciativa de
buscar um processo de negociao com os deputados contrrios aprovao e com o prprio relator,
porque consideravam que o projeto precisava sair da referida comisso, onde os interesses contrrios
estavam concentrados (GRAZIA, 2003, p. 60). Para tanto, o MNRU teve de abdicar de algumas de
suas propostas (...) com a esperana de que a matria perdida se recuperaria nas outras comisses. (...)
Uma aposta arriscada, mas vitoriosa, segundo Grazia de Grazia (op. cit., p. 61).
O fato que o parecer do relator despiu o projeto original de sua abordagem conceitual e voltou-o
mais pragmaticamente para a instrumentalizao dos municpios, muito embora, nesse aspecto, todos
os instrumentos originais tenham sido mantidos, a par de outros acrescidos, como a transferncia do
direito de construir, a outorga onerosa do direito de construir e as operaes urbanas consorciadas,
dispositivos que, defendidos pelo movimento da reforma urbana em muitos momentos, j estavam em
aplicao em algumas cidades.
Dessa experimentao municipal, muitos proveitos empresariais foram obtidos. O prprio parecer do
relator confirma essa evidncia ao declarar, a respeito do mencionado acrscimo, que os instrumentos
podem ser benficos para as atividades imobilirias urbanas, ao inovar nas formas possveis de parceria
entre o Poder Pblico e as empresas privadas (CD, s/d, p. 377).
Talvez porque as intenes dos dois blocos de opinio estivessem taticamente dissimuladas o
MNRU ao ceder em suas propostas intentando recuperar as perdas nas fases seguintes e o empresariado
por conseguir gradualmente incorporar instrumentos benficos para as atividades imobilirias , o
projeto foi, para surpresa de muitos, aprovado sem disputas.
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Quando, em 29 de outubro de 1997, finalmente se deu a votao na CEIC, a primeira
ocorrida na Cmara dos Deputados, para espanto de todos os presentes, no houve uma
objeo sequer ao relatrio apresentado. Todas as manifestaes foram favorveis ao
parecer, que foi aprovado por unanimidade. Depois de to longo tempo de obstruo, que
parecia denunciar fortes resistncias ao teor da proposta de lei, assistiu-se a uma votao por
consenso, sem nenhuma ressalva (ARAJO e RIBEIRO, 2000, p. 3).
Aprovado na CEIC, o projeto seguiu para a Comisso de Defesa do Consumidor, Meio
Ambiente e Minorias (CDCMAM), onde recebeu contribuies relativas poltica ambiental,
especialmente no que se refere incluso do Estudo de Impacto de Vizinhana (EIV), de
iniciativa do deputado Fbio Feldmann (PSDB-SP).
No final de 1998, o projeto chega principal comisso de mrito, a de Desenvolvimento
Urbano e Interior (CDUI), presidida pelo deputado Incio Arruda (PC do B-CE), muito ligado
aos movimentos sociais urbanos.
Cabe ao presidente das comisses indicar os relatores dos projetos. O deputado Incio
Arruda avocou para si a relatoria do Estatuto da Cidade e comeou a pr em prtica um
extenso e amplo calendrio de coletas de sugestes, consultas, audincias pblicas, debates
e seminrios, que culminou com a realizao da I Conferncia das Cidades, estrategicamente
programada para comear no dia seguinte ao da votao do projeto na Comisso, ocorrida
em 1 de dezembro de 1999.
Na fase de debates que antecedeu a votao, muitas sugestes foram acatadas e
incorporadas ao texto submetido votao, quase todas no sentido de reaproximar o projeto
do contedo da Emenda da reforma urbana. O Frum Nacional da Reforma Urbana foi acolhido
quando props (FNRU, 1999), por exemplo, a incluso de instrumentos de regularizao
fundiria, como as ZEIS e a concesso especial de uso para fins de moradia, de um plano
de atendimento para a populao atingida por operaes consorciadas, de um captulo sobre
a gesto democrtica da cidade, de processos participativos de elaborao oramentria,
assim como a fixao de penalidades para prefeitos omissos em relao elaborao do
plano diretor. No foi atendido, contudo, ao propor a supresso do artigo que autorizava a
emisso de certificados de potencial construtivo no mbito das operaes urbanas.
J o Secovi-SP (1999) apresentou poucas sugestes, fazendo crer-se satisfeito com o texto
que prevalecera at ento. Alm de quantitativamente escassas, suas propostas chamam
a ateno pelo contedo de algumas delas. Ao lado da previsvel defesa da manuteno
de dispositivos como os que condicionavam a aplicao das penalidades de combate
ociosidade do solo aos casos em que houvesse ociosidade de infraestrutura e demanda para
utilizao, no que, alis, no foi atendida, essa entidade empresarial curiosamente props
a incluso do oramento participativo como instrumento da poltica urbana, bem como a
exigncia de que a gesto das operaes urbanas fosse obrigatoriamente compartilhada
com representao da sociedade civil, institutos de gesto democrtica prprios do iderio
da reforma urbana. Nesses ltimos aspectos, as sugestes do Secovi-SP foram acolhidas.
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O texto resultante desse processo foi aprovado. O Estatuto da Cidade foi ento
finalmente encaminhado Comisso de Constituio e Justia e de Redao (CCJR), que
deveria se manifestar sobre a constitucionalidade do projeto. Nessa Comisso, embora
o MNRU tivesse percebido que os consensos no eram to reais (GRAZIA, 2003, p.
61), houve apenas duas alteraes. Uma, para retirar os dispositivos referentes a regies
metropolitanas e aglomeraes urbanas, considerados inconstitucionais, pois se trata de
competncia estadual. Outra, para atender reivindicaes de setores da construo e de
parlamentares ligados a igrejas evanglicas, liderados pelo deputado Bispo Rodrigues
(PL-RJ), resultou na supresso dos dispositivos que determinavam, nos casos de Estudo
de Impacto de Vizinhana, a audincia da comunidade afetada e a nulidade das licenas
expedidas sem a observncia desse requisito.
Do ponto de vista do prprio MNRU, as concesses, que mantinham o contedo da
matria, deixando sua aplicao merc da legislao municipal, foram aceitveis, pois
se sabe que, de acordo com a correlao de foras existente em cada municpio, as
diretrizes fixadas na lei federal sero ou no absorvidas (GRAZIA, op. cit., p. 62).
A deliberao da CCJR, contudo, consumiu todo o ano de 2000. Novamente foram
necessrias campanhas pblicas, notas e manifestos do MNRU. At um abaixo-assinado
de advogados e juristas, defendendo a constitucionalidade do projeto, foi encaminhado
Comisso. No dia 29 de novembro de 2000, o parecer favorvel do deputado Inaldo
Leito (PSDB-PB) finalmente votado. Mais uma vez houve unanimidade na aprovao.
O projeto deveria, ento, retornar ao Senado para que as alteraes promovidas na
Cmara fossem ratificadas.
Parecia que o consenso estava consolidado. No entanto, houve ainda uma recidiva
de parte da representao empresarial. De acordo com a Constituio de 1988, projetos
aprovados nas comisses da Cmara ou do Senado, caso do Estatuto da Cidade, no
precisam ser submetidos ao Plenrio, salvo se houver recurso nesse sentido, subscrito por
pelo menos um dcimo dos respectivos parlamentares. Com base nesse dispositivo, um
grupo de parlamentares sob a liderana do deputado Mrcio Fortes (PSDB-RJ), com o
diligente apoio do deputado Paulo Octvio (PFL-DF), ambos grandes empresrios do setor
imobilirio apresentou o Recurso n 113, de 12 de dezembro de 2000, na tentativa de
fazer com que o projeto fosse submetido ao Plenrio da Cmara dos Deputados.
Em sentido contrrio aprovao do recurso, passaram a atuar as entidades ligadas
ao MNRU, os partidos que, poca, faziam oposio ao governo e, ao lado desses,
parlamentares ligados ao prprio governo, como o deputado Ronaldo Csar Coelho9
(PSDB-RJ), presidente da CCJR, cuja atuao foi julgada importante pelo movimento
da reforma urbana (GRAZIA, 2003, p. 62).
9. Empresrio, ex-banqueiro.
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Em 20 de fevereiro de 2001, o recurso derrotado e o Estatuto da Cidade volta para o Senado
Federal, de onde sara havia quase 11 anos.
Relatado favoravelmente pelo senador Mauro Miranda (PMDB-GO), o projeto foi aprovado por
unanimidade. Conservadores ou progressistas, empresrios ou trabalhadores, mais direita ou
mais esquerda do extenso leque poltico-partidrio, todos, sem exceo, apoiaram e elogiaram
uma proposta legislativa que nascera sob pechas como socialista e confiscatria (TFP, 2004,
p. 6) ou um desrespeito ao direito do cidado e propriedade (DM, 1992, p. 34).
Dificuldades para a sano presidencialSegundo Grazia de Grazia (2003, p. 63), o perodo entre a aprovao no Senado e a
sano foi de muita tenso. Sabia-se que havia questes polmicas, que contrariavam
interesses de setores imobilirios e do Governo Federal, mas que eram favorveis aos
setores excludos. Embora assim parecesse ao MNRU, chamam a ateno evidncias e
opinies no sentido de que a contrariedade do segmento imobilirio no era to explcita.
Eduardo Graeff10, assessor especial da Presidncia da Repblica, por exemplo, afirma que
no processo de sano, o que deu mais trabalho foram as objees de natureza jurdica
na Presidncia. Acho que a equipe tinha uma viso jurdica conservadora (GRAEFF, 2003,
p. 1). De outra parte, Graeff declara no se lembrar de ter havido presses oriundas do
setor imobilirio, contrrias sano do projeto: Quem tinha acesso ao governo e poderia
trazer alguma objeo, mas eu no sei se trouxe, era aquele deputado do Rio Grande do
Sul, o Lus Roberto Ponte, ligado indstria da construo (...). No teria nem razo, pois,
do ponto de vista do setor da construo, o projeto no ruim (GRAEFF, op. cit., p. 1).
De fato, as representaes do empresariado jamais solicitaram o veto integral, ou
mesmo substancial, do Estatuto da Cidade. Houve pequenas objees, a principal delas
relativa concesso de uso especial para fins de moradia, instrumento destinado
a assegurar segurana jurdica para fins de moradia aos ocupantes de terra pblica
cuja posse, sem oposio do proprietrio, ocorra h pelo menos cinco anos. Como a
Constituio de 1988 (art. 183, 3) seguiu a tradio de estabelecer a impossibilidade
de os imveis pblicos serem adquiridos por usucapio (ou seja, de que a propriedade
plena deixasse de ser pblica e se transferisse ao particular), estar-se-ia diante de uma
dificuldade quase intransponvel para a regularizao fundiria dos assentamentos em
rea pblica, o que colocaria os moradores na posio de terem de resignar-se com a
irregularidade (ALFONSIN, 2002, p. 163).
10. Socilogo, colega de profisso, amigo e assessor do presidente Fernando Henrique Cardoso desde
quando este era senador, Eduardo Graeff filho do falecido professor Edgar Graeff, arquiteto e intelectual de
relevo, vinculado s causas sociais e democrticas de resistncia ao regime militar. 86
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Ao sancionar o projeto e vetar esse dispositivo, o presidente da Repblica, Fernando Henrique Cardoso, afirmou
que em reconhecimento importncia e validade do instituto da concesso de uso especial para fins de moradia,
o Poder Executivo submeter sem demora ao Congresso Nacional um texto normativo que preencha essa lacuna.
A promessa foi cumprida por meio da Medida Provisria n 2.220, de 4 de setembro de 2001, que regrou a
aplicao do instituto da concesso de uso especial de que trata o 1 do art. 183 da Constituio, bem como
criou o Conselho Nacional de Desenvolvimento Urbano, depois transformado, no governo do presidente Luiz Incio
Lula da Silva, no Conselho das Cidades.Em 10 de julho de 2001, o Estatuto da Cidade tornou-se lei.
Comentrios finaisO histrico dessa trajetria nos induz a questionar as razes que teriam levado o
empresariado urbano, que a princpio reagira drasticamente contra as proposies da
reforma urbana, desde suas iniciativas mais remotas, a aprovar e apoiar, por unanimidade,
instrumentos legais que, alegadamente, se destinavam a confrontar seus interesses.
Em grande medida, a circunstncia da aprovao unnime do Estatuto da Cidade
pode ser atribuda aos efeitos do longo tempo, 12 anos, decorrido entre a formulao
e a aprovao da nova lei. Nesse perodo, boa parte dos instrumentos includos no
Estatuto j vinha sendo posta em prtica pelos municpios anteriormente aprovao
da norma federal, com resultados considerados estimulantes pelo capital imobilirio, o
que constituiu, sem dvida, importante fator de diminuio do grau de restries que
esse segmento econmico fazia ao projeto.
Assim, o que em certo momento parecia uma ameaa ao setor empresarial passou a
ser gradativamente percebido, e aproveitado, como oportunidade de mercado.
No casual, portanto, nem deve causar estranheza, que o documento encaminhado
pelo Secovi-SP (1999) Comisso de Desenvolvimento Urbano e Interior (CDUI) da
Cmara dos Deputados, por ocasio do debate ali promovido pelo relator do projeto
ainda pendente de votao, inclusse propostas como a do oramento participativo,
em relao ao qual o empresariado afirmava que no se admite mais, especialmente
em assuntos que digam respeito sociedade como um todo, a excluso da participao
dos cidados. O mesmo documento defendia que as operaes urbanas consorciadas
fossem geridas de forma compartilhada com representao da sociedade civil,
pois essa participao se faz absolutamente necessria para garantir a observncia
adequada do plano de operao urbana consorciada. Ambas as propostas, que, por
sinal, coincidiam com as proposies do MNRU, foram incorporadas ao texto.
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Ao observar que essa troca de mos das bandeiras democrticas outra novidade trazida
pelos novos tempos, Ermnia Maricato menciona como exemplo um documento interno da
Organizao de Cooperao para o Desenvolvimento Econmico (OCDE), que congrega os
23 pases mais ricos do mundo, no qual se afirma: a participao, a democratizao, a boa
gesto pblica e o respeito aos direitos humanos favorecem um desenvolvimento durvel
(MARICATO, 2000, pp. 131-132).
Essa percepo do empresariado com relao problemtica urbana, que passou a ver na
deteriorao das condies de vida nas grandes metrpoles fatores de risco mercadolgico,
conquanto seja notoriamente distinta da formulao crtica produzida no mbito do MNRU,
ajuda a explicar a mudana das posies do poder corporativo no tocante ao contedo do
Estatuto da Cidade e a formao de consensos entre os dois campos. Para Raquel Rolnik
(2003), a situao urbana ficou muito ruim, se degradou demais (...). Em So Paulo, voc
percebe que os empresrios tomaram conscincia de que o modelo no deu certo e se v
uma certa abertura para se pensar em modelos alternativos.
Nesse ambiente, no difcil compreender a convergncia de opinies, ainda que
fundadas em anlises e propsitos diferenciados, entre o empresariado e o MNRU. A
despeito dos graves problemas que lhe servem ao mesmo tempo de causa e efeito, as
cidades renem, como nenhum outro tipo de agrupamento humano, condies culturais e
materiais meios e modos capazes de propiciar a elevao dos padres de dignidade, dos
princpios ticos e dos nveis de qualificao que devem alcanar as sociedades organizadas.
E uma legislao adequada pode ser decididamente til na realizao desse objetivo.
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