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R EMANCIPADO
QUES RANCIÈRE
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Este livro teve origem no pedido
que me foi feito há alguns anos de
introduzir a reflexão de um grupo
de artistas dedicado ao espectador
a partir das ideias desenvolvidas
em meu livro O mestre ignorante
De
iníco
essa proposta causou-me
alguma perplexidade. O mestre
ignorante expunha a teoria excêntrica
e o destino singular de Joseph
Jacotot que causara escândao no
iníco
do
sécuo
XIX ao afirmar que
um ignorante pode ensinar a outro
ignorante aquilo que ele mesmo não
sabe
ao proclamar a igualdade das
inteligências e opor a emancipação
intelectual à instrução púbica Suas
ideias caramno esquecimento a
partir de meados de seu
sécuo.
Achei bom reavvá-as na década
de 1980 para
baançar
o coreto dos
debates sobre as finalidades da
Escola
púbica
com os ventos da
igualdade intelectual. Mas no âmbto
da reflexão artística conemporânea
que uso dar ao pensamento de um
homem cujo universo
artístico
pode
ser emblematizado pelos nomes de
Demósenes
Racine e Poussin?
0
ESPECTADOR EMANCIPADO
m gem
d
c p
Instalação de Iran do EsprtoSanto sem títuo 7
a
Bienal do
Mercosul Porto Alegre 2009. Foto de Mauro Restiffe.
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Esta
obra foi
publicada
originalmente
em francês
com o
título
LE
SPECTATEUR EMANCIPE
por LaFabriqite-FAÍitions, Paris
Copyright <$.) La
Fabriqite-Éditions, 2008
Copyright ©
2012, Editora WMF Martins
Fontes
Ltda.,
Sao Paulo,
para
a presente edição.
V.
e d i ç ã o
20/2
T r a d u ç ã o
Ivone
C.
Benedetti
companhamento e d i t o r i a l
Luzia Aparecida dos Santos
R e v i s õ e s g r á f i c a s
Amália Ursi
Solange Martins
E d i ç ã o d e
arte
Adriana
Maria
Porto
Translatt i
P r o d u ç ã o g r á f i c a
Geraldo Alves
P a g i n a ç ã o
Moacir Katsumi
Matàasaki
D a d o s I n t e r n a c i o n a i s d e C a t a l o g a ç ã o n a P u b l i c a ç ã o ( C I P )
( C â m a r a B r a s i l e i r a d o L i v r o , S P , B r a s i l )
R a n c i è r e , jacques
O
espectador e m a n c i p a d o / Jacques R a n c i è r e ; t r a d u ç ã o I v o n e C.
B e n e d e t t i . - S ã o P a u l o :E d i t o r a W M F
M a r t i n s
Fontes, 2012.
T i t u l o o r i g i n a l : Lcspectateur e m a n c i p e .
I S B N
978-85-7827-559-4
1. A r t e
F i l o s o f i a 2.E s t é t i c a dar e c e p ç ã o 3. I m a g e m ( 1 i l o s o f i a )
[ . T í t u l o .
12-03180 C D D - 7 0 1
í n d i c e s para c a t á l o g o s i s t e m á t i c o :
1. A r t e
: F i l o s o f i a 701
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ário
esp ectad o r eman ci p ad o
Desven tu ras d o p en samen to cr í t i co
Paradoxos da arte política
A
i mag em i n to l erável
A i m a g e m p e n s a t i v a
Origem dos textos
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O
espectador emancipado
Este
l ivro teve origem no pedido que me foi fei to há
alguns
anos
de
int ro d uzir
a reflexão de um grupo de art i s
tas dedicado ao espectador a pa r t ir das ideias desenvolvidas
e m m e u l ivro Le Maitre
ignorant
[O
mestre ignorante]
1
*.
D e
início, essa proposta causou-me alguma perplexidade. O
mestre ignorante expunha a teoria excêntrica e o destino
s i n
g u lar
de
Joseph Jacotot,
qu e
causara
escândalo no início do
século XIX ao afi rma r que um ignorante pode ens inar a ou
tr o i gnorante aqui lo que ele mesmo não
sabe,
ao proc lamar
a igualdade das inteligências e opor a emancipação intelec
tu al à instrução pública. Suas ideias caíram no esquecimen
to a pa r t ir de meados de seu século. Achei bom reavivá-las
na década de 1980 para balançar o coreto dos
debates
sobre
as finalidades da Escola pública com os ventos da igualdade
intelectual.
Mas, no âmbito da reflexão artística contempo
rânea, que uso dar ao pensamento de um hom em cujo
u n i
verso artístico pode ser emblematizado pelos nomes de De
móstenes ,
Racine
e
Poussin?
O c o n v i t e p ar a abr i r a qu i nt a Internacional
Sommer Akademic
de
F r a n k f u r t ,
em
20 de agosto de 2004, me foi fei to pelo performer e c o r e ó g r af o
sueco
M â r t e n
S p à k n g b e r g .
* T rad. bras., L i l i a n do Valle , Autêntica, 2f ed., 2004.
[N .
da T.]
7
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Pensando melhor, porém, pareceu-me que a ausência
de relações evidentes entre reflexões sobre a emancipação
in te lectu al e a questão do espectador nos dias de hoje tam
bém era uma poss ib i lidade. Poderia ser u ma oportunidade
de distanciamento radical em relação aos pressupostos teó
ricos e pol í t icos que, mesmo na form a pós-moderna, ainda
sustentam o
essencial
do debate sobre o teatro, a perfor
mance e o espectador. Mas, para trazer à tona a relação e
dar- lhe
sentido, seria preciso reconstituir a rede de pressu
postos que põem a questão do espectador no cerne da d is
cussão sobre as relações entre arte e política. Seria preciso
delinear o modelo global de racionalidade sobre cujo
fund o
nos acostumamos a julgar as implicações políticas do espe-
táculo teatral . Emprego aqui essa expressão para inc lu ir t o
das as formas de espetáculo - ação dramática, dança, per
formance, mímica ou outras - que ponh am corpos em ação
diante de u m públ ico reunido .
A s
numerosas críticas às quais o teatro deu
ensejo
ao
long o
de toda a sua história podem ser reduzidas a uma fór
m u l a essencial.
Eu lhe daria o nome de paradoxo do espec
tador,
paradoxo mais fundamental talvez que o célebre pa
radoxo do ator. Esse paradoxo é simples de fo rmula r : não há
teatro sem espectador (mesmo que um espectador único e
oculto, como na representação fictícia de Fils naturel [O filho
natural] que dá ensejo aos Entretien [Colóquios] de
Diderot).
O r a ,
como d ize m os acusadores, é u m mal ser espectador,
po r duas razões . P rimeiramente, olhar é o contrário de co
nhecer. O espectador mantém-se diante de uma aparência
ig norando
o
processo
de produção
dessa
aparência ou a rea
lidade por ela encoberta. Em segundo lugar, é o contrário de
agir. O espectador fica imóvel em seu lugar, passivo. Ser es
pectador é estar separado ao mesmo tempo da capacidade
de
conhecer
e do poder de agir.
Esse diagnóst ico abre ca minh o para duas conc lusões
diferentes. A
pr ime ira
é que o teatro é uma
coisa
absoluta
mente r u i m , u m a cena de i lusão e passividade que é preciso
el iminar em provei to daqui lo que ela impede: o conhec i
mento e a ação, a ação de
conhecer
e a ação conduzida pelo
8
saber. É a conclusão outrora formu lada por Platão: o teatro é
o lugar onde ignorantes são convidados a ver sofredores. O
que a
cena
teatral lhes
oferece
é o espetáculo de um páthos,
a mani fes tação de um a doença, a doença do desejo e do so
f r ime nt o ,
o u seja, da divisão de si resultante da ignorância.
O efeito próprio do teatro é t ra nsmit ir essa doença por meio
de outra: a doença do olhar subjugado por sombras. Ele
t ransmite a doença da ignorân cia que faz as personagens
sofrer por meio de uma máquina de ignorânc ia, a máquina
óptica que forma os olhares na i lusão e na passividade. A
comunidade correta, portanto, é a que não tolera a media
çã o
teatral , aquela na qual a medida que governa a com uni
dade é d i retamente incorporada nas at i tudes vivas de
seus
membros .
E a dedução mais lógica. Contudo, não é a que preva
leceu
entre os críticos da mimese teatral .
Estes,
na maioria
das vezes, f i caram com as premissas e mudaram a conc lu
são. Quem diz teatro diz espectador, e
isso
é um m al , di sse
ra m eles.
Esse é o círculo do teatro que nós conhecemos, que
nossa sociedade modelou à sua imagem. Portanto, precisa
mos de outro teatro, um teatro sem espectadores: não um
teatro diante de assentos vazios, mas um teatro no qual a
relação óptica passiva implicada pela própria palavra seja
submetida
a outra relação, a relação implicada em outra pa
lavra,
a palavra que designa o que é
pro d uzid o
em cena, o
drama.
Dram a quer dizer ação. O teatro é o lugar onde uma
ação é levada à sua consecução por corpos em movimento
diante
de corpos vivos por
mo bi l iza r .
Estes ú l t imos podem
ter
renunciado a seu poder. Mas
esse
poder é retomado, rea-
tivado na performa nce dos prim eiros, na inteligência que
Constrói essa performance, na energia que ela pro d uz . É so
b re
esse
poder ativo que cabe constru ir um teatro novo, ou
melhor,
u m teatro reconduzido à sua
vir t ud e or ig inal ,
à sua
essência verdadeira, de que os espetáculos ass im de nom ina
dos oferecem apenas numa versão degenerada. É preciso um
teatro sem espectadores, em que os assistentes aprendam
em
ve z de ser seduzidos por imagens, no qual eles se tornem
participantes ativos em vez de serem voyeurs passivos.
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Essa
inversão conheceu duas grandes fórmulas, anta
gónicas em princípio, embora a prática e a teoria do teatro
reformado
as tenham frequentemente mis turado. Segundo
a pr ime ira , é preciso arrancar o espectador ao embrutec i
mento do parvo fascinado pela aparência e conquistado pela
empatia que o faz identificar-se com as
personagens
da
cena.
A
este
será mostrado, portanto, um espetáculo es tra
nho,
ina bi t ua l ,
um enigma cujo sentido ele precise buscar.
A s s i m , será obrigado a trocar a posição de
espectador
passi
vo pela de i n q u i r i d o r ou experimentador c ient í f i co que
observa os fenómenos e procura
suas causas.
Ou então lhe
será proposto um di lema exemplar, semelhante aos propos
tos às pessoas empenhadas nas decisões da ação. Desse
m o d o , precisará aguçar seu próprio
senso
de avaliação das
razões , da discussão e da
escolha
decisiva.
De acordo com a segunda fórmula, é essa própria
d is
tância reflexiva que deve ser abolida. O espectador deve ser
retirado
da posição de observador que examina calmamente
o espetáculo que lhe é oferecido. Deve ser
desapossado des
se controle i lusório, arrastado para o círculo mágico da ação
teatral, onde trocará o privilégio de observador racional pelo
do
ser na
posse
d e
suas
energias vitais integrais.
Tais são as atitudes fundamentais que resumem o tea
tr o épico de Brecht e o teatro da crueldade de
A r t a u d .
Para
u m , o
espectador
deve ganhar distância; para o outro, deve
perder toda e qualquer distância.
Para
um, deve refinar o
olhar; para o outro, deve abdicar da própria posição de
observador. As inic iat ivas modernas de reforma do teatro
osc i laram constantemente entre
esses
dois poios, da
i n q u i
rição distante e da participação vital , com o risco de m i s t u
ra r
seus princípios e seus efeitos . Pretenderam transform ar
o teatro a pa r t ir do diagnóstico que levava à sua supressão.
Portanto, não é de surpreender que elas t e n h a m r e t o m a d o
não só os considerandos da crítica de Platão, como também
a fórmula positiva que ele opunha ao mal teatral . Platão
queria subst i tui r a comunidade dem ocrát ica e ignorante do
teatro por o utra comunidade, resumida num a outra perfor
mance dos corpos . Opun ha-lhe a comunidade coreográfica,
10
na qu al n inguém permanece como espectador imóvel, na
qu al
cada
um deve mover-se segundo o r i t m o comunitário
fixado pela proporção matemática, mesmo que para isso
seja preciso embriagar os velhos recalcitrantes em entrar na
dança coletiva.
Os reformadores do teatro reform ularam a oposição
•platónica entre
khorea
e
teatro
como oposição entre a verda-
| £ e
do teatro e o simulacro do espetáculo. Fizeram do teatro
O
lugar onde o público passivo de
espectadores
devia trans-
formar-se em seu contrário: o corpo at ivo de um povo a pôr
em
ação o seu princípio vital . O texto de apresentação da
Sommerakademie
que me acolhia expressava-o nos seguintes
termos : " O teatro continua sendo o único lugar de confr on
tação do público consigo mesmo como coletividade." Em
sentido restrito, a frase quer apenas d is t inguir a audiência
coletiva do teatro dos visitantes ind ivid ua is de uma exposi
ção ou da simples soma de entradas no cinema. Mas está
c laro que s igni f i ca mais . Signi f i ca que o " teatr o" é um a
for
ma
comunitária exemplar.
Implica
um a ideia da comu nida
de como presença para si , oposta à distância da representa
ção.
Desde
o romanti smo alemão, a reflexão
sobre
o teatro
passou a ser associada a essa ideia de coletividade v iva . O
teatro mostrou-se como um a forma da const i tuição es tét i ca
- da constituição sensível - da coletividade.
Entenda-se
aí a
comunidade como maneira de ocupar um lugar e um tem
po ,
como o corpo em ato oposto ao simples aparato das leis,
u m conjunto de percepções , gestos e atitudes que precede e
pré-forma as leis e instituições políticas. O teatro, mais que
qualquer outra arte, foi
associado
à ideia romântica de revo
lução estética, não já no sentido de mudar a mecânica do
Estado e das leis, mas sim as formas sensíveis da experiên
c ia hu man a. Reforma d o teatro s igni f i cava então res taura
ção de sua natureza de
assembleia
ou de cerimónia da co
mu nidade. O teatro é uma
assembleia
n a qu al as pessoas d o
povo tomam consciência de sua situação e discutem seus
interesses, d iz ia
Brecht após Piscator. A r t a u d afirma que ele
é o r i tua l
purificador
em que uma coletividade se apossa de
suas
próprias energias. Se o teatro encarna assim a
coletivi-
11
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dade
viva
em oposição à i lusão da mimese, não é de sur
preender que a vontade de recondu zir o teatro à sua essên
cia possa respaldar-se na própria crítica do espetáculo.
Q u a l é a essênc ia do espetáculo segundo Guy De-
bord? É a exterioridade. O espetáculo é o reino da vi são, e
a visão é exterioridade, ou seja,
desapossamento
de si . A
doença do
espectador
pode resumir-se numa fórmula bre
ve: "Q uanto mais ele contempla, menos ele é . "
2
A fórmula
parece antiplatônica. Na verdade, os fundamentos teóricos
da crítica do espetáculo são tomados, através de
M a r x ,
à crí
tica feuerbachiana da religião. O princípio de ambas as
críticas está na visão romântica da verdade como não sepa
ração. Mas essa ideia, por sua vez, é dependente da concep
ção platónica de mimese. A "contemplação" que Debord
denuncia é a contemplação da aparência separada de sua
verdade, é o espetáculo de sofrimento
pro d uzid o
p or essa
separação. "A separação é o al fa e o ômega d o espetáculo. "
3
O
que o hom em contempla no espetáculo é a at ividade que
lhe foi subtraída, é sua própria essência, que se
t o rno u
es
t ranha, vol tada contra ele , organizadora de u m mu ndo cole-
tivo cuja realidade é a realidade desse desapossamento.
Não há, assim, contradição entre a crítica do espetá
culo e a procura de um teatro reconduzido à sua essênc ia
o r igina l . O "bom" teatro é aquele que u t i l i za sua realidade
separada
para
supr imi- la .
O paradoxo do
espectador
per
tence a
esse
di spos i t ivo s ing ular que retoma a favor do tea
tr o os princípios da proibição platónica do teatro. Portanto,
caberia hoje reexaminar esses princípios, ou melhor, a rede
de pressupostos, o jogo de equivalências e oposições que
sustenta sua possibil idade: equivalências entre público tea
tr a l
e comunidade, entre olhar e passividade, exterioridade
e separação, mediação e simulacro; oposições entre coletivo
e
individu al ,
imagem e real idade v iva , at ividade e pass ivi
dade,
posse
de si e al ienação.
Esse jogo de equivalênc ias e oposições compõe uma
dramatu rg ia bastante
tortuosa de culpa e redenção. O tea-
2 . G u y D e b o r d ,
La Société du spectacle,
G a l l i m a r d , 1992, p. 16.
3. Ibiã., p. 25.
12
tr o se acusa de tornar os
espectadores
passivos e de trair
assim sua essência de ação comunitária. Por conseguinte,
Outorga-se a missão de inverter seus efeitos e expiar
suas
Culpas,
dev olvendo aos espectadores a posse de sua cons
ciência e de sua a tividade . A cena e a performance teatrais
tornam-se ass im uma mediação evanescente entre o m al do
espetáculo e a
vir t ud e
do
verdadeiro
teatro.
Elas
se propõem
ensinar a
seus
espectadores os meios de deixarem de ser
espectadores
e tornarem-se agentes de um a prática coletiva.
Segundo o paradigm a brechtiano, a mediação teatral os
tor
na conscientes
da situação social que lhe dá
ensejo
e
desejo
so s de ag i r para transformá-la. Segundo a lógica de
A r tau d,
|p la o s faz sair de sua posição de
espectadores:
em vez de
Jfcarem
e m
face
de um espetáculo, são circundados pela
•erformance, arrastados para o círculo da ação que lhes de-
ipolve a energia coletiva. Em ambos os casos, o teatro apre-
Senta-se como uma mediação orientada para sua própria
supressão.
É aqui que as descrições e as propostas de emancipa
çã o
intelec tual podem entrar em jog o e a judar-nos a refor
mu lar
o problema. Pois essa mediação autoevanescente não
é algo desconhecido para nós. É a própria lógica da relação
pedagógica: o papel atribuído ao mestre é o de eliminar a
distância entre seu
saber
e a ignorânc ia do ignorante. Suas
lições e os exercícios que ele dá têm a finalidade de
reduzir
progressivamente o abismo que os
separa.
Infel i zm ente, e le
tó pode redu zir a distância com a condição de recriá-la in
cessantemente.
Para
s ubst i tui r a ignorânc ia pelo
saber,
ele
deve
sempre dar um
passo
à frente e repor entre si e o aluno
« m a ignorância nova. A razão disso é simples. Na lógica
pedagógica, o ignorante não é apenas aquele que ainda ig
nora o que o mestre
sabe.
É aquele que não sabe o que ignora
Hem como o saber. O mestre, p or sua vez, não é apenas aque
le q ue tem o
saber
igno rado pelo ignora nte. E tamb ém aquele
qu e sabe como torná-lo objeto de
saber,
o m o m e n t o d e f a z ê -
»lo e que protocolo segu ir para isso. Pois, na verdade, não há
Ignorante que já não
saiba
u m m o n t e d e coisas, que não as
tenha aprendido sozinho, olhando e
o uvind o
o que há ao
13
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1
seu redor, observando e repet indo, enganando-se e c or r i
g i n d o seus erros. Mas, para o mestre, tal saber é apenas sa
ber de ignorante,
saber
incapaz de organizar-se segundo a
progressão que vai do mais simples ao mais complicado. O
ignorante p rog ride comparando o que
descobre
com o que
já
sabe,
segundo o acaso dos encontros, mas também se
g u n d o
a regra aritmética, a regra democrática que faz da
ignorânc ia um saber menor. Ele se preocupa apenas em sa
ber mais ,
saber
o que ainda ignorava. O que lhe falta, o que
sempre faltará ao aluno (a menos que este também se torne
mestre) é o saber da ignorância, o conhecimento da distância
exata
qu e
separa
o
saber
da ignorância.
Essa m e d i d a escapa precisamente à aritmética dos ig
norantes. O que o mestre
sabe,
o que o protocolo de trans
missão do saber ensina em pr ime iro lugar ao aluno é que a
ignorânc ia não é u m saber menor, é o oposto do saber; p o r
que o
saber
não é um conjunto de conhec imentos , é uma
posição. A
exata
distância é a distância que nenhuma régua
mede, a distância que se comprova tão somente pelo jogo
das posições ocupadas, que se
exerce
pela prática i n t e r m i
nável do passo à frente" que separa o mestre daquele que
ele deve ensinar a alcançá-lo. Ela é a metáfora do abismo
radical qu e
separa
a maneira do mestre da do ignorante,
porque
separa duas inteligências: a que sabe em que consis
te a ignorância e a que não o
sabe.
Essa distância radical é o
que o ensino progressivo e ordenado ensina ao aluno em
prime iro lugar. Ens ina-lhe prim eiramen te sua própria inca
pacidade. Assim, em seu ato ele comprova
incessantemente
seu próprio pressuposto, a desigualdade das inteligências.
Essa
comprovação interminável é o que Jacotot chama de
embrutec imento.
A essa prática de embrutecimento ele opunha a práti
ca da emancipação intelec tual . A emancipação intelec tual
é a comprovação da igualdade das inteligências. Esta não
sig nif ica igua l valor de todas as manifestações da inteligên
cia, mas igualdade em si da inteligência em todas as
suas
manifestações. Não há dois tipos de inteligência
separados
po r um abismo. O animal humano aprende todas as coisas
14
* V W ^ V H , k ~ | ^ V * ^
(
" f i U W i - i , , WHUJip,
LM
l l i p p i
como aprendeu a l íngua materna, como aprendeu a aventu-
rar-se
na floresta das
coisas
e dos signos que o cercam, a fim
de assumir u m lugar entre os seres humanos : observando e
c o m p a r a nd o u m a
coisa
co m outra, um s igno com um fato,
u m s igno com
o ut ro
s igno. Se o i letrado conhece apenas
um a prece de cor, ele pode comparar
esse
saber com o que
ainda
ig nora :
as palavras
dessa
prece escritas
no papel .
Pode
aprender, signo após signo, a relação entre o que ignora e o
qu e sabe. Pode, desde que a cada passo observe o que está à
sua frente, diga o que viu e comprove o que disse. Desse
ignorante que soletra os signos ao intelectual que constrói
hipóteses, o que está em ação é sempre a mesma inteligên
cia, uma inteligência que traduz signos em outros signos e
procede por comparações e f iguras para comunicar
suas
aventuras intelectuais e compreender o que outra inteligên
cia se esforça por comunicar-lhe.
Esse trabalho poético de tradução está no
cerne
de
toda
aprendizagem. Está no
cerne
da prática emancipadora
do m estre ignorante. O que este i gnora é a di s tância embru -
tecedora, a distância transformada em abismo radical que
SÓ um especialista pode "preencher". A distância não é um
|Wal por abolir, é a condição n o r m a l de toda comunicação.
Os an imais human os são animais di s tantes que se
c o m u n i
cam através da floresta de signos. A distância que o
i g n o
rante precisa transpor não é o abismo entre sua ignorância
| e o saber do mestre. É s implesmente o ca minh o que vai da
quilo que ele já sabe àquilo que ele ainda ignora, mas pode
aprender como aprendeu o resto, que pode aprender não
para ocupar a posição do intelectual, mas para praticar me
lhor
a arte de traduzir, de pôr
suas
experiências em palavras
e suas
palavras à prova, de
t ra d uzir suas
aventuras intelec
tuais
para uso dos outros e de contratrad uzir as traduções
qu e eles lhe apresentam de
suas
próprias aventuras. O
mes
tre
i gnorante capaz de ajudá-lo a percorrer esse c a m i n h o é
ass im chamado não porque nada saiba, mas porque abdicou
do saber da ignorância" e assim dissociou sua qualidade de
mestre de seu
saber.
Ele não ensina seu
saber
aos alunos,
mas ordena-lhes que se aventurem na floresta das coisas e
15
8/11/2019 espectador emancipado.pdf
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1
dos s ignos , que dig am o que v i r a m e o que pensam do que
v i r a m , que o comprovem e o façam comprovar. O que ele
ig nora
é a desigualdade das inteligências. Toda distância é
u m a distância factual, e
cada
ato intelec tual é um caminh o
traçado entre um a ignorânc ia e u m saber, u m c a m i n h o q u e
abole incessantemente, com
suas
fronteiras, a fixidez e a
hierarqu ia
das posições.
Que relação há entre essa história e a questão do es
pectador
hoje?
Já não
estamos
no tempo em que os drama
tu rg os qu eriam explicar a seu público a verdade das relações
sociais
e os meios de
lutar
contra a dominação capitalista.
Mas as pessoas não perdem obrigatoriamente seus pressu
postos com suas i lusões, nem o aparato dos meios com o
horizonte do s f ins . Até pode ocorrer, ao contrário, que a per
da das i lusões leve os artistas a aumentar a pressão
sobre
os
espectadores: talvez
eles
saibam o que é preciso fazer, desde
que a performance os tire de sua atitude passiva e os trans
forme
em part i cipantes at ivos de um mun do comum .
Essa
é
a pr ime ira convicção que os reformadores teatrais comparti
l h a m
com os pedagogos embrutecedores: a do abismo que
separa
duas posições. Mesmo que não saibam o que querem
que o espectador faça, o dramaturgo e o di retor de teatro
sabem
pelo menos um a
coisa: sabem
que ele deve fazer uma
coisa,
transpor o abismo que
separa atividade
de passividade.
Mas não seria possível inverter os termos do proble
ma, perguntando se o que cria a distância não é justamente
a vontade de el iminar a di s tânc ia? O que permite dec larar
inativo
o
espectador
que está sentado em seu lugar, senão a
oposição radical , previamente suposta, entre ativo e passi
vo? Por que identificar olhar e passividade, senão pelo pres
suposto de que olhar quer dizer comprazer-se com a ima
gem e com a aparênc ia, ignorando a verdade que es tá por
trás da imagem e a realidade fora do teatro? Por que assimi
la r escuta e passividade, senão em vir t ud e do preconceito
segundo o qual a palavra é o contrário da ação? Essas o p o
sições - olhar/saber, a parência/realidade, ativida de/pa ssivi-
dade - são
coisas
bem diferentes das oposições lógicas entre
termos bem definidos . Elas d e f i n e m p r o p r ia m e n t e u m a d i -
16
visão do sensível , uma distribuição apriorística das posições
e das
capacidades
e incapacidades vinculadas a essas p o s i
ções .
Elas são alegorias encarnadas da desigualdade. Por
isso é poss ível mudar o valor dos termos , tran sforma r o ter
m o
" b o m " e m r u i m e vice-versa, sem mudar o func iona
mento da própria oposição. Assim, desqualifica-se o
espec
tador
porque ele não faz nada, enquanto os
atores
e m
cena
{ ou os trabalhadores lá fora põem seu corpo em ação. Mas a
oposição entre ver e fazer se inverte tão logo à cegueira dos
trabalhadores manuais e dos prat i cantes empíricos , mer gu
lhados no imediato terra-a-terra, se oponha a ampla pers
pectiva daqueles que contem plam as ideias, prevêem o fu
t uro ou adquirem visão g lobal de nosso m u n d o . O u t r o r a
eram chamados de cidadãos
ativos, capazes
de
eleger
e de
ser eleitos, os proprietários que v i v i a m de rendas, e de cida
dãos
passivos,
i n d i g n o s dessas funções ,
aqueles
que traba
lhavam
para ganhar a
v ida.
Os termos podem mudar de
sentido, as posições podem ser trocadas, mas o
essencial
é a
permanência da estrutura que opõe duas categorias: os que
têm uma capacidade e os que não a têm.
A emancipação, por sua vez, começa quando se ques
tiona a oposição entre olhar e agir, quando se compreende
que as evidências que assim estr utu ram as relações do d i
zer, do ver e do fazer pertencem à estrutura da dominação e
da sujeição. Começa quando se compreende que olhar é
. também um a ação que confi rm a ou transform a essa d i s tr i -
ibuição das posições. O espectador também age, tal como o
alu no ou o intelectual. Ele observa,
seleciona,
c o m p a ra , i n
terpreta.
Relaciona o que vê com muitas outras
coisas
que
vi u em outras cenas, em outros t ipos de lugares . Compõe
seu próprio poema com os elementos do poema que tem
diante de si . Participa da performance refazendo-a à sua
maneira, furtan do-se, por exemplo, à energia v i ta l qu e esta
supostamente deve tra nsm it i r para transformá-la em pura
i m a g e m e
associar
essa pura imagem a uma his tória que leu
ou s o n h o u , vive u ou inve nt o u. Ass im, são ao mesmo tempo
espectadores
distantes e intérpretes ativos do espetáculo
que lhes é proposto.
17
f l i r l | r
8/11/2019 espectador emancipado.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/espectador-emancipadopdf 10/66
A í e s t á u m p o n t o
essencial:
os
espectadores
veem,
sentem e compreendem algum coisa à medida que com
põem seu próprio poema, como o fazem, à sua maneira,
atores ou dram aturgos , di retores , dançarinos ou performers.
Observemos
apenas
a
mobil idade
do olhar e das expressões
do s
espectadores
de um drama rel ig ioso xiita tradicional
que comemora a morte do imã Hussein, captados pela câ-
m e r a d e A b b as K i a r o s t a m i (Tazieh). O d r a m a t u r g o o u o d i
retor de teatro queria que os
espectadores
vissem isto e
sen
tissem aquilo, que compreendessem tal coisa e que tirassem
ta l
conclusão. É a lógica do pedagogo embrutecedor, a lógica
da transmissão di reta e fiel : h á a l g u m a coisa, u m saber,
u m a
capacidade, uma energia que está de um lado - num
corpo ou numa mente - e deve
passar
para o
outro.
O que o
alu no deve aprender é aquilo que o mestre o faz aprender. O
que o
espectador
deve
ve r
é aqui lo que o
d iretor
o
faz ver.
O
que aquele deve sentir é a energia que este lhe com unica.
A essa identidade de
causa
e efeito, que está no
cerne
da ló
gica embrutecedora, a emancipação opõe sua dissociação. É
o sentido do paradoxo do mestre ig norante : o aluno aprende
do mestre algo que o mestre não sabe. Apren de como efei to
da habil idade que o obriga a buscar e comprova essa busca.
Mas não aprende o saber do mestre.
Dir-se-á que o artista, ao contrário, não quer inst ruir
o espectador. Ho je ele se defende de usar a cena para impo r
u m a
l ição ou
t ra nsmit ir
u m a m e n s a g em . Q u e r apenas pro
d uzir
um a forma de consc iênc ia, um a intens idade de senti
mento,
uma energia para a ação. Mas supõe sempre que o
que será percebido, sentido, compreendido é o que ele pôs
em sua d r a m a t u r g i a ou sua performance. Pressupõe sempre
a identidade entre causa e efeito.
Essa
i gualdade suposta e n
tr e a causa e o efeito baseia-se num princípio desigualitário:
baseia-se no privilégio que o mestre se outorga, no conhe
c imento da "boa" di s tânc ia e do meio de el iminá-la . Mas
isso é
confu ndir
duas distâncias bem diferentes. Existe a
distância entre o artista e o espectador, mas existe t a m b é m
a distância inerente à própria performance, uma vez que,
como espetáculo, ela se mantém como coisa autónoma, en-
18
tr e a ideia do artista e a sensação ou a compreensão do es
pectador. Na lógica da emancipação há sempre entre o
mes
tr e
i gnorante e o aprendiz emancipado uma tercei ra coisa
- u m l i v ro ou qualquer
ou tro
escrito - estranha a ambos e à
qu al
eles
podem recorrer para comprovar juntos o que o
alu no
v i u , o que
disse
e o que
pensa
a respeito. O mesmo
ocorre com a performance. E la não é a transmissão do
saber
ou do sopro do artista ao espectador. É essa terceira coisa d e
q u e n e n h u m
deles
é proprietário, cujo sentido ne nhu m de
les possui, que se mantém entre
eles,
afastando qualquer
transmissão fiel , qualquer identidade entre causa e efeito.
Essa
ideia de emancipação opõe-se assim claramente
à ideia na qu al a política do teatro e de sua reform a se apoio u
com frequência : a emancipação como reapropriação de u ma
relação do ser humano consigo mesmo, relação perdida n u m
processo
de separação. É
essa
ideia da separação e de sua
abolição que
l iga
a crítica debordiana do espetáculo à crítica
feuerbachiana da religião através da crítica marxist a da alie
nação. Nessa lógica, a mediação de um terceiro termo só
pode ser i lusão fatal de autonomia,
presa
na lógica do desa
possamento e de sua dissimulação. A separação entre palco
f e plateia é um estado que deve ser superado. É objetivo da
p e r f o r m a n ce e l i m i n a r essa exterioridade, de diversas ma
neiras : pondo os
espectadores
no palco e os
performers
na
plateia,
abolindo a diferença entre ambos, deslocando a per
formance para outros lugares , identi f i cando -a com a tom a-
» da
d e
posse
da rua, da cidade ou da
vid a .
E sem dúvida
esse
esforço de subverter a distribuição dos lugares pro d uziu
mu itos
enriquec imentos da performance teatral . Mas uma
coisa é a redistribuição dos lugares, outra é a exigência de
que o teatro adote como f inal idade a reunião de uma comu
nidade que ponha f im à separação do espetáculo. A p r i m e i
ra
implica
a invenção de novas aventuras intelectuais; a
segunda, uma nova forma de dar aos corpos seu lugar cor-
roto,
no caso seu lugar comungatório.
Pois
a
recusa
à mediação, a
recusa
ao terceiro é a
afir
mação de uma essência comunitária do teatro como tal .
Q u a n t o m e n o s o d r a m a t u r g o sabe o que quer que a coletivi-
19
8/11/2019 espectador emancipado.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/espectador-emancipadopdf 11/66
Aí es tá um ponto
essencial:
os
espectadores
veem,
sentem e compreendem algum
coisa
à medida que com
põem seu próprio poema, como o fazem, à sua maneira,
atores
ou drama turgos , di retores , dançarinos o u performers.
Observemos apenas a mobil idade do olhar e das expressões
do s
espectadores
de um drama rel ig ioso xiita tradicional
que comemora a morte do imã Hussein, captados pela câ-
mera de Abbas Kiarostami (Tazieh). O d r a m a t u r g o o u o d i
retor
de teatro queria que os
espectadores
vissem isto e sen
tissem
a qui lo ,
que compreendessem tal
coisa
e que tirassem
ta l
conclusão. E a lógica do pedagogo embrutecedor, a lógica
da transmissão di reta e fiel : h á a l g u m a
coisa,
u m saber,
um a
capacidade, uma energia que está de um lado - num
corpo ou num a mente - e deve passar para o outro. O que o
alu no deve
aprender
é aquilo que o mestre o faz aprender. O
que o
espectador
deve ve r é aqui lo que o
d ire t o r
o faz ver.
O que aquele deve sentir é a energia que este lhe comunica.
A
essa
identidade de
causa
e efeito, que está no
cerne
da ló
gica embrutecedora, a emancipação opõe sua dissociação. É
o sentido do paradoxo do mestre ign orante : o aluno aprende
do mestre algo que o mestre não
sabe.
Aprend e como efei to
da habil idade que o obriga a buscar e comprova essa busca.
Mas não aprende o saber do mestre.
Dir-se-á que o artista, ao contrário, não quer
inst ruir
o espectador. Ho je ele se defende de usar a cena para impo r
u m a
l ição ou
t ra nsmit ir
u m a m e n s a g e m . Q u e r apenas pro
d uzir um a forma de consc iênc ia, uma intens idade de senti
mento,
uma energia para a ação. Mas supõe sempre que o
que será percebido, sentido, compreendido é o que ele pôs
em sua dramatu rg ia ou sua performance. Pressupõe sempre
a identidade entre causa e efeito. Essa i gualdade suposta en
tr e
a
causa
e o efeito baseia-se num princípio desigualitário:
baseia-se no privilégio que o mestre se outorga, no conhe
c imento da "boa" di s tânc ia e do meio de el iminá-la . Mas
isso é
confu ndir
duas distâncias bem diferentes. Existe a
distância entre o artista e o espectador, mas existe também
a distância inerente à própria performance, uma vez que,
como espetáculo, ela se mantém como
coisa
autónoma, en-
18
tr e a ideia do artista e a sensação ou a compreensão do es
pectador. Na lógica da emancipação há sempre entre o mes-
ffê ignorante e o aprendiz emancipado uma tercei ra
coisa
- u m l i v ro ou qualquer o ut ro escrito - estranha a ambos e à
qu al eles podem recorrer para comprovar juntos o que o
i l u n o v iu , o que
disse
e o que
pensa
a respeito. O mesmo
Ocorre com a performance. E la não é a transmissão do
saber
9jU do sopro do artista ao espectador. E essa terceira
coisa
d e
<|Ue ne nh um
deles
é proprietário, cujo sentido nenhum de-
^•8 possui, que se mantém entre eles, afastando qualquer
transmissão fiel , qualquer identidade entre
causa
e efeito.
Essa
ideia de emancipação opõe-se assim claramente
à ideia na qual a política do teatro e de sua re form a se apoiou
com frequência : a emancipação como reapropriação de u ma
relação do ser hu man o consigo mesmo, relação perdida nu m
processo
de separação. É essa ideia da separação e de sua
abolição que
l iga
a crítica debordiana do espetáculo à crítica
feuerbachiana da religião através da crítica marxista da alie
nação. Nessa lógica, a mediação de um terceiro termo só
pode ser i lusão fatal de autonomia, presa na lógica do desa
possamento e de sua dissimulação. A separação entre palco
e plateia é um
estado
que deve ser superado. E objetivo da
performance el iminar essa exterioridade, de diversas ma
neiras: pondo os
espectadores
no palco e os performers na
plateia,
abolindo a diferença entre ambos, deslocando a per
formance para outros lugares , identi f i cando-a com a tom a
da de
posse
da rua, da cidade ou da v ida. E sem dúvida esse
esforço de subverter a distribuição dos lugares produziu
mu itos
enriquec imentos da performance teatral . Mas uma
coisa
é a redistribuição dos lugares, outra é a exigência de
que o teatro adote como final idad e a reunião de uma comu
nidade
que pon ha f im à separação do espetáculo. A p r i m e i
ra
implica
a invenção de novas aventuras intelectuais; a
segunda, u ma nova form a de dar aos corpos seu lugar cor
reio, n o caso seu lugar comungatório.
Pois
a
recusa
à mediação, a
recusa
ao terceiro é a afir
mação de uma essência comunitária do teatro como tal .
Q u a n t o m e n o s o d r a m a t u r g o sabe o que quer que a coletivi-
19
8/11/2019 espectador emancipado.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/espectador-emancipadopdf 12/66
dade dos
espectadores
faça, mais sabe q ue estes devem agir
como colet ividade, transformar sua agregação em comuni
dade. N o entanto, já estaria na hora de indag ar sobre essa
ideia de que o teatro é por si mesmo um lugar comunitário.
Visto que corpos vivos em cena se d ir ige m a corpos r e u n i
dos no mesmo lugar, isso pareceria suficiente para fazer do
teatro o vetor de um sentido de comunidade, radicalmente
diferente
da situação de indivíduos sentados diante de uma
tevê ou de
espectadores
de cinema sentados diante de som
bras projetadas. Curiosamente, a generalização do uso de
imagens e de todos os tipos de projeção nas montagens tea
trais nã o parece mudar em nada essa c rença. Imagens pro
jetadas
p o d e m
somar-se
aos corpos vivos ou substituí-los.
Ma s , durante todo o tempo em que
espectadores
f i cam
re u
nidos no espaço teatral , age-se como se a essência viva e
comunitária do teatro estivesse preservada e como se fosse
possível evitar a pergunta: o que ocorre exatamente entre os
espectadores
de um teatro que não poderia ocorrer em outro
lugar? O que haverá de mais interativo e comunitário
nesses
espectadores
do que numa multiplicidade de indivíduos as
sist indo
na mesma hora ao mesmo show televisionado?
Esse algo, acredito, é apenas a pressuposição de que o
teatro é comunitário por si mesmo. Essa pressuposição con
t inua
a preceder a performance teatral e a antecipar seus
efei tos . Mas num teatro, diante duma performance, ass im
c o m o n u m m u s e u , n u m a escola ou numa rua, sempre há
indivíduos a traçarem seu próprio caminho na floresta das
coisas, do s atos e dos signos que estão diante deles ou os
cercam. O poder comum aos
espectadores
não decorre de
sua qual idade de membros de um corpo colet ivo ou de
a l g u
ma forma espec í f i ca de interatividade. E o poder que
cada
u m tem de t ra d uzir à sua maneira o que percebe, de relacio
n ar isso com a aventura intelec tual s ingular que o torn a se
melhante a qualquer
outro,
à med ida que essa aventura não
se assemelha a n e n h u m a outra. Esse p o d e r c o m u m d a
igua l
dade das inteligências l ig a indivíduos, faz que eles i n t e r c a m
biem
suas
aventuras intelectuais, à medida que os mantém
separados uns dos outros, igualmente
capazes
de ut i l iza r o
2
° V
1 / t
poder
de todos para traçar seu caminho próprio. O que nos
sas performance s com prov am - que r se trate de ensinar ou
de brincar, de falar, de
escrever,
de fazer arte ou de contem
plá-la - não é
nossa
part i cipação nu m poder encarnado na
comunidade.
E a capacidade dos anónimos, a capacidade
que torna
cada
u m igua l a qualquer outro.
Essa
capacidade é
exercida através de distâncias irredutíveis, é exercida por um
jogo imprevisível de associações e dissociações.
E nesse poder de associar e dissociar que reside a
emancipação do espectador, ou seja, a emancipação de
cada
u m de nós como espectador. Ser espectador não é a con di
çã o passiva que deveríamos converter em atividade. É nossa
situação
n o r m a l .
Aprendemos e ens inamos, agimos e co
nhecemos também como espectadores que relacionam a
todo
instante o que veem ao que v i r a m e di sseram, f i zeram
e s o n h a r a m . N ã o h á f o r m a
pr ivi le gia d a
como não há ponto
de
p a r t i d a
privilegiado.
Há sempre pontos de part ida, c ru
zamentos e nós que nos perm item aprender algo novo
caso
recusemos, em pr ime iro lugar, a distância radical ; em se
g u ndo, a distribuição dos papéis; em terceiro, as fronteiras
entre os territórios. Não temos de transformar os espectado
res em atores e os ignorantes em intelectuais. Temos de re
conhecer
o saber em ação no ignorante e a atividade própria
ao espectador. Todo espectador é já ator de sua história; todo
ator, todo homem de ação, espectador da mesma história.
Gostaria de exempl i f i car esse aspecto c o m u m a p e
quena digressão por minha própria experiência política e
intelectual. Pertenço a um a geração que f icou
d ividida
entre
duas exigências opostas. Seg undo um a delas, os que t i
n h a m
entend imento do s i s tema soc ial deviam ens iná-lo aos
q ue e r a m v i t i m a d o s p o r
esse
s i s tema, a f im de armá-los
para
a luta; segundo a outra, os supostos intelectuais na
verdade eram ignorantes que nada sabiam do s ign i f i cado da
exploração e da rebelião e deviam aprender com os mesmos
trabalhadores que eles t ratavam de ignorantes .
Para
atender
a essas duas exigênc ias , primeiramente eu quis encontrar a
verdade do marxismo para armar um novo movimento re
volucionário, depois aprender com aqueles que trabalhavam
21
8/11/2019 espectador emancipado.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/espectador-emancipadopdf 13/66
e
lut a va m
nas fábricas o s entido da exploração e da rebelião.
Para
m i m e p a r a a m i n h a g e r a ç ã o n e n h u m a dessas duas
tentativas foi plenamente convincente.
Esse
estado de fato
me levo u a
buscar
na hi s tória do movim ento operário a ra
zão dos encontros ambíguos ou frustrados entre os operá
rios e aqueles intelectuais que t i n h a m ido visitá-los para
instruí-los ou
serem
instruídos por
eles.
A s s i m , f o i -m e p o s
sível compreender que a questão não
estava
entre ignorân
cia e saber, nem entre atividade e passividade, i nd i v i d ua l i
dade e comunidade. N u m dia de maio em que eu consultava
a correspondência de dois operários nos
anos
1830 em bus
ca de informações sobre a condição e as formas de consciên
cia dos trabalhadores daquele tempo,
t ive
a surpresa de en
contrar
coisa
bem diferente: as aventuras de outros dois
vis i tantes em o utros dias de maio, cento e quarenta e cinco
anos
antes. U m dos dois operários t i n h a acabado de entrar
na comunidade saint-s imoniana em Méni lmontant e conta
va ao amigo o mod o como empregava o tempo de
seus
dias
na ut o pia : trabalhos e exercícios durante o dia, jogos, coros
e narrativas à noite. Seu correspondente, em contrapartida,
lhe relatava o
passeio
no campo que f i zera com dois compa
nheiros para aprovei tar um domingo de primavera. Mas o
que ele contava não se parecia em nada com o dia de repou
so do trabalhador que restaura as forças físicas e mentais
para o trabalho da
semana
entrante. Era uma intrusão em
outra espécie totalmente diferente de lazer: o lazer de este
tas que
f rue m
formas, luzes e
sombras
da paisagem, de fi ló
sofos
que se ins talam nu ma hospedaria campestre para de
senvolver hipóteses metafísicas e de apóstolos que se
empenham em comunicar sua fé a todos os companheiros
que encontram por acaso no caminho ou na hospedaria
4
.
Aqueles trabalhadores , que deveriam dar-me in f or
mações
sobre
as condições do trabalho e as formas de cons
ciência de classe, d a v a m - m e o u t r a coisa: a sensação de se
melhança, a demonstração de igualdade.
Eles
t a m b é m e r a m
espectadores
e visitantes dentro de sua própria
classe.
Sua
4. C f . G abr i e l G au ny, L e Philosophe plébéien, Presses U ni v e r s i t a i r e s d e V i nc e nne s ,
1985, pp. 147-58.
22
atividade de propagandis tas não podia separar-se de seu
ócio de passeadores e de contempladores. A simples crónica
de seu lazer obrigava a reformular as relações
estabelecidas
entre ver, fazer e
falar.
A o s e t o r n a r e m
espectadores
e v i s i
tantes,
eles
subvert iam a divisão do sens ível segundo a qual
os que trabalh am não têm temp o de deixar que seus
passos
e
olhares errem ao
acaso,
e os mem bros de um corpo colet i -
vo não têm tempo para dedicar às formas e às marcas d a
individualidade.
Isso s igni f i ca a palavra emancipação: o embaralha-
mento da frontei ra entre os que agem e os que olha m, entre
indivíduos e membros de um corpo coletivo. O que aquelas
jornadas traziam aos dois correspondentes e a
seus
seme
lhantes não era o
saber
de sua condição e a energia para o
trabalho do dia seguinte e a luta po r vir. Era a reconfigura
çã o a qui e agora da divisão entre espaço e tempo, trabalho
e lazer.
Compreender
essa
rupt ura
realizada no próprio cora
çã o do tempo era desenvolver as implicações de uma seme
lhança e de uma igualdade, em vez de exercer seu domínio
na tarefa interminável de re d uzir a distância irredutível .
Aqueles dois trabalhadores também eram intelec tuais ,
como
qualquer u m . Eram vis i tantes e
espectadores,
como o
pesquisador que, um século e meio depois, l ia as
cartas
d e
les
numa biblioteca, como os visitantes da teoria marxista
OU os distrib uido res de panfleto s nas portas das fábricas.
N ã o havia nenhuma distância por preencher entre intelec
tuais e operários, tanto quanto entre atores e espectadores.
E le
t irava
a lgumas conc lusões quanto ao discurso apropria
do
a dar conta
dessa
experiência. Contar a história de seus
dias
e noi tes obrigava a embaralhar outras frontei ras . Aque
la história que falava do tempo, de sua perda e de sua recu
peração só ganhava sentido e alcance ao ser posta em rela
çã o
co m
uma his tória
s imila r ,
enunciada alhures, em
outro
tempo e
n u m
o ut ro
género de escrito, no
l ivro
I I d a Repúbli-
,, em qu e Platão, antes d e atacar as sombras menti rosas do
i M t r o ,
expl icava que numa comunidade bem organizada
M d a u m deve fazer um a única coisa, e que os artesãos não
23
8/11/2019 espectador emancipado.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/espectador-emancipadopdf 14/66
têm tempo de
estar
em
o ut ro
lugar que não o seu lugar de
trabalho
e de fazer outra
coisa
que não o trabalho conve
niente às
( in) capacidades
qu e
lhes
foram outorgadas pela
natureza.
Para
entender a história daqueles dois visitantes, por
tanto , era preciso embaralhar as fronteiras entre a história
empírica e a fi losofia
pura ,
as fronteiras entre as disciplinas
e as hierarquias entre os níveis de discurso. Não havia, de
u m lado, a narrativa dos fatos e, do
outro,
a explicação f i l o
sófica ou científica para descobrir a razão da história ou a
verdade oculta por trás dela. Não havia fatos e sua in terp re
tação. Havia duas maneiras de contar uma história. E o que
m e
cabia
fazer era uma obra de tradução, mostrando como
aquelas narrat ivas de dom ingos p r imaveris e os diálogos do
filósofo se t radu ziam mutuamente. Era prec i so inventar o
id io ma
próprio àquela tradução e àquela contratradução,
com o risco de que
esse
id io ma fosse ininteligível a todos
os que perguntassem o sentido daquela história, a realidade
que a explicava e a l ição que ela dava para a ação. Esse
i d i o
m a,
de fato, só podia ser
l ido
p o r
aqueles
que o traduzissem
a pa r t ir de sua própria aventura intelectual.
Essa
digressão biográfica me traz de
volta
ao
cerne
de
m eu
texto. Essas histórias de fronteiras por transpor e da
distribuição dos papéis por subverter confluem para a atua-
lidade da arte contemporânea, na qu al todas as competên
cias artísticas específicas tendem a sair de seu domínio pró
prio e a trocar seus lugares e poderes. Hoje temos teatro
m u d o e dança falada; instalações e performances à guisa de
obras
plásticas; projeções de vídeo transformadas em ciclos
de afrescos; fotografias tratadas como quadros vivos ou ce
nas históricas pintadas; escultura metamorfoseada em show
multimídia, além de outras combinações. Ora, existem três
maneiras de compreender e praticar essa mis tura de géne
ros. Existe aquela que reatualiza a forma da obra de arte to
tal .
Supunha-se
qu e
esta seria
a apoteose da arte convertida
em
vida.
Hoje, tende mais a pertencer a alguns
egos
artísti
cos superdimensionados ou a um a forma de hiperat ivi smo
consumista, quando não
ambas
ao mesmo tempo. Existe
24
tamb ém ideia de hibridação dos meios d a arte, própria à rea
lidade
pós-moderna de troca incessante de papéis e identi
dades, de real e v i r tua l , do orgânico e das próteses mecâni
cas e informáticas. Esta segunda ideia pouco se distingue da
prime ira
em
suas
consequências. Ela frequentemente leva a
outra form a de embrutec imento, que se vale do em baralha-
mento das fronteiras e da confusão dos papéis para aumen
tar o efeito da performance sem questionar seus princípios.
Resta
uma terceira maneira que não visa à amp lif ica
ção dos efeitos, mas a pôr em causa a própria relação causa-
-efeito e o jogo dos pressupostos qu e sustenta a lógica do
embrutec imento. Diante do hiperteatro, que quer transfor
mar a representação em presença e a passividade em ativi
dade, ela propõe, inversamente, revogar o privilégio de v i ta
lidade e de poder comunitário concedido à
cena
teatral para
colocá-la em pé de igualdade com a narração de uma his tó
ria, a
leitura
d e u m l ivro ou o olhar posto
sobre
u m a
i m a
gem. Ela propõe, em suma, concebê-la como u ma nova
cena
da igualdade, em que performances heterogéneas se
t r adu
zem umas nas outras .
Pois
em todas
essas
performances
busca-se
u n i r o que se sabe ao que se ignora, ser ao mesmo
t e m p o
performers a exib i rem suas competênc ias e especta
dores a observarem o que
essas
competênc ias podem pro
d uzir num contexto novo, ju nto a outros
espectadores.
O s
artistas, assim como os pesquisadores, constroem a cena
em que a manifestação e o efeito de suas competênc ias são
expostos,
tornados incertos nos termos do
id io ma
novo que
traduz uma nova aventura intelec tual . O efei to do id io ma
não pode ser antecipado . Ele
exige espectadores
que desem
penhem o papel de intérpretes ativos, que elaborem sua
própria tradução para apropriar-se da "história" e fazer dela
sua própria hi s tória . Um a comunidade emancipada é um a
comunidade de narradores e tradutores .
Es tou consciente de que é possível dizer sobre tudo
isso:
palavras, ainda e apenas palavras. Não o entenderei
como
insul t o .
Já ou vimos tantos oradores i m p i n g i r
suas
p a
lavras como mais que palavras, como fórmula de entrada
n u m a
vid a nova; vimos tantas representações teatrais que
25
8/11/2019 espectador emancipado.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/espectador-emancipadopdf 15/66
p retendiam nã o ser espetáculos , e s im cerimónias
c o m u n i
tárias ;
e
mesmo hoje ,
a
despeito
de
todo
o
cet i c i smo "pós-
- m o d e r n o "
em relação ao desejo de m u d a r a v ida, vemos
tantas instalações e espetáculos transformados em m i s t é
rios rel igiosos, que nã o é
necessariamente escandaloso
o u
vi r dizer que palavras são
apenas
palavras. Dispensar as
fantasias
do verbo feito
carne
e
d o
espectador
t o r n a d o
ativo,
saber qu e as palavras são apenas palavras e os espetáculos
apenas espetáculos pode a judar-nos
a
compreender melhor
como as palavras e as imagens , as histórias e as p e r f o r m a n
ces p o d e m m u d a r a l g u m a
coisa
no mu ndo em que vivemos.
26
Desventuras
do
pensamento
c r í t i c o
Certamente não sou o primeiro a questionar a tradição
da crítica social
e
cultural
na
qual
minha geração
cresceu.
Muit o s autores declararam que seu tempo passou: há não
muit o tempo ainda era possível divertir-se denunciando a
sombria
e
sólida realidade escondida por trás
do
brilho
das
aparências. Mas hoje já não haveria realidade sólida para opor
ao reino
das
aparências
nem
avesso sombrio para opor
ao
tr iu nf o da
sociedade
de consumo. E bom dize r logo de saída:
nã o é a esse discurso que pretendo emprestar min ha voz.
Gostaria de mostrar, ao contrário, que os conceitos e procedi
mentos da tradição crítica não são de modo algum
obsoletos.
Funcionam ainda muito b e m , até no discurso daqueles que
declaram sua superação. Mas seu uso atual demonstra a com
pleta inversão de sua orientação
e
de seus
supostos f ins. Pre
cisamos,
portanto, levar em conta a persistência de um mod e
lo de interpretação
e a
inversão
de seu
sentido,
se
quisermos
empreender um a verdadeira crítica da crítica.
Para tanto, examinarei algumas mani fes tações con
temporân eas que, nos domínios da arte, da política e da teo
ria, exempl i f i cam a inversão dos m o d o s de descrição e de
monstração próprios à tradição crítica. Partirei do campo
c m
que essa tradição ainda hoje é a mais viva, o campo da
27
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http://slidepdf.com/reader/full/espectador-emancipadopdf 16/66
arte e, sobretudo, das grandes exposições internacionais nas
quais a apresentação das obras prefere inscrever-se no âmbi
to de uma reflexão global
sobre
o
estado
do
mund o .
A s s i m ,
e m 2006, o comissário da Bienal de Sevilha, K o z u i Enwezor,
destinara a referida manifestação a desmascarar, n o m o m e n
to da globalização, "o maquinário que
d iz ima
e arruina os
elos
sociais, económicos e políticos"
5
. N o pr ime iro plano das
máquinas devastadoras estava, c laro, a máquina de guerra
americana, e entrava-se na exposição por
salas
dedicadas às
guerras do Afeganis tão e do I raque. Ao lado de imagens
da guerra civi l no Iraque, era possível ver fotografias das ma
nifestações antiguerra feitas por uma artista alemã d o mici
liada em N ova York , Josephine Meckseper. U ma daquelas
fotos chamava a atenção: via-se ao
fund o
u m g r u p o de m a -
Josephine
Me c kse p e r ,
Sem título,
2005.
5. O t í t u l o e x at o da m ani f e s t aç ão e r a : T he U nho m e l y . P hant o m a l Scenes in the
g lo b a l W o r l d .
28
nifestantes p ortando
cartazes.
O pr ime iro plan o, por sua vez,
era ocupado por um a lata de lixo cujo conteúdo transbordava
e espalhava-se pelo chão. A foto era simplesmente intitulada
"Sem título", o que, naquele contexto, parecia querer dizer:
não é preciso tí tulo, a ima gem fala por si mesma.
Podemos compreender o que a imagem dizia aproxi
mando a tensão entre os
cartazes
políticos e a lata de
l ixo
de
u m a
forma art í s t ica p art i cularmente representat iva da
tra
dição crítica em arte, a da colagem. A fotografia da m a n i
festação não é uma colagem no sentido técnico do termo,
mas seu efeito se vale dos elementos que ensejaram o
suces
so artístico e político da colagem e da fotomontagem: o cho
que numa mesma superfície entre elementos heterogéneos,
quando
não confl i tuosos . N o tempo do surreal i smo,
esse
procedimento serviu para mani fes tar , sob o prosaí smo da
cot idianidade
burguesa, a realidade
re pr imid a
do desejo e
do sonho. O marx ismo depois a adotou para tornar percep
tível , por meio do encontro incongruente de elementos he
terogéneos, a violência da dominação de classe, oculta sob
as aparências do cotidiano ordinário e da paz democrática.
Esse foi o princípio da estranheza brechtiana. Nos
anos
1970, f oi também o das fotomontagens real izadas por um a
art i s ta americana engajada, Martha Rosler, em sua série in
t itulada
Bringing the War Home, q ue
sobre
imagens de fel izes
lares americanos colava imagens da guerra do Vietnã. As
s i m ,
u m a m o n t a g e m int i t ula d a Balloons mostrava,
sobre
o
f u n d o
de uma ampla
casa
de campo, com balões infláveis a
u m canto, um vietn amita que
t i n h a
nos braços uma criança
morta
pelas balas
do exército americano. A conexão das duas
imagens devia
pro d uzir
dois efeitos: a consciência do
siste
ma de dominação que l igava a feli c idade domést ica ameri
cana à violênc ia da guerra imperial i s ta , mas também um
sentim ento de cump licidade culpada com aquele sistema.
Por um lado, a imag em d iz ia : eis a realidade oculta que vo
cês não
sabem
ver , vocês prec i sam tomar conhec imento
dela e agir de acordo com
esse
conhec imento. Mas não há
evidências de que o conhecimento de uma situação
pro vo
que o
desejo
de mudá-la. É por isso que a imagem
dizia
29
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M a r t h a
Rosler, Balloons,
1967-72. F o t o m o n t a g e m
da série " B r i n g i n g t he W ar
H o m e : Ho u se B e au t i f u l " .
© M a r t h a Rosler.
outra
coisa.
El a d iz ia : eis a realidade óbvia que vocês não
querem ver, porque vocês
sabem
que são responsáveis por
ela. O dispositivo crítico visava assim a um efeito duplo: a
tomada de consciência da realidade oculta e o sentimento
de culpa em relação à realidade negada.
A
foto dos manifestantes e da lata de l ixo põe em jogo
os
mesmos
elementos que
aquelas
fotomontagens : a guerra
dis tante e o consumo dom éstico.
Josephine
Meckseper é tão
ho st i l à guerra de George Bush quanto Martha Rosler à de
N i x o n . M as o jogo dos contrários na fotog rafia func iona de
maneira di ferente : não
l iga
o superconsumo americano à
guerra dis tante para reforçar as energias mi l i tantes host i s
à guerra. Faz mais é lançar esse superconsumo ao rosto dos
mani fes tantes que pretendem novamente trazer a guerra
para casa. A s f o t o m o n ta g e n s d e M a r t h a
Rosler
acentuavam
a heterogeneidade dos elementos: a imagem da criança
m o r t a
não p odia integrar-se n o belo
interior
doméstico sem
causar sua explosão. Ao contrário, a fotografia dos manifes-
3
tantes com a lata de l ixo ressalta a homogeneidade f u n d a
m e n t a l deles. As latinhas de
cerveja
que transbordam da
lata de l ixo certamente foram al i
jogadas
pelos mani fes tan
tes. A fotografia sugere então que a marcha
deles
é u m a
marcha de consumidores de imagens e indignações
espeta-
culares.
Essa
maneira de ler a imagem está em harmonia
com as instalações que celebrizaram
Josephine
Meckseper.
E s s a s instalações, visíveis hoje em muitas exposições, são
pequenas vi t r ine s semelhantes
a
vi t r ine s
comerc iai s ou pu
blicitárias, nas quais, tal como nas fotomontagens de a n t i
gamente, ela reúne elementos supostamente pertencentes a
universos heterogéneo s : por exemplo, numa instalação
in t i
tulada "Vende-se" , no meio de art igos de moda mascul ina
h á u m l ivro
sobre
a hi s tória de um grupo de guerri lhei ros
urbanos ingleses que, justame nte, qu is levar a guerra às me
trópoles imperial i s tas ; em
outra,
u m m a n e q u i m d e li n g e r i e
f e m i n i n a
ao lado de um cartaz de propaganda comunis ta,
ou o slogan de maio de 68 "N ão trabalhe nun ca"
sobre
fras
cos
d e p e r f u m e . Essas
coisas
aparentemente se
co nt ra d i
zem, mas o objetivo é mos trar que pertencem à mesma rea
lidade,
que o radical i smo pol í t i co também é um fenómeno
de moda jovem . É
isso
o que a fotografia dos mani fes tantes
demonstraria a seu modo: eles protes tam contra a guerra
travada pelo império do consumo que solta
suas
bombas
sobre
as c idades do Oriente Médio. Mas essas bombas são
um a
resposta à destruição das torres que, por sua vez, fora
posta em cena como o espetáculo da derrocada do império
da mercadoria e do espetáculo. A imagem
parece
dizer en
tão:
esses
mani fes tantes es tão aí porque consumiram as
imagens da queda das torres e dos bombardeios no Iraque.
E é também um espetáculo que eles dão nas ruas. Em últi
ma instânc ia, terrori smo e consumo, protes to e espetáculo
sã o
reduz idos a um único e mesmo
processo
governado pela
le i mercantil da equivalência.
Mas , l evada ao extremo, essa demonstração visua l
deveria conduzir à abolição do procedimento crítico: se
tudo
nã o passa de exibição espetacular, a oposição entre aparên
cia e realidade que fundamentava a eficácia do discurso crí-
31
8/11/2019 espectador emancipado.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/espectador-emancipadopdf 18/66
tico
cai por terra; e, com ela, toda e qualquer culpa em rela
ção aos seres s i tuados do lado da realidade obscura ou
negada. Nesse
caso,
o dispositivo crítico mostraria simples
mente sua própria superação. Mas não se trata disso. As pe
quenas vi t r ine s
que m is tur am propagand a revoluc ionária e
moda jovem dão prosseguimento à lógica
dupla
da inter
venção mi l i tan te de ontem. Diz em também : ei s a real idade
que vocês não
sabem
ver, o reino sem l imi te da exposição
comerc ial , o horror n i i l i s t a d o m o d o d e vid a p e q u e n o - b u r -
guês de hoje; mas também: eis a realidade que vocês não
querem ver, a participação de
seus
pretensos gestos de re
volta
nesse
processo
de exibição de signos de distinção go
vernado pela exibição comercial . Portanto, o artista crítico
sempre se propõe pro d uzir o curto-c i rcui to e o choque que
revelam o
segredo
ocultado pela exibição das imagens. Em
M a r t h a Rosler, o choque devia revelar a violência imperia
lista por trás da exposição feliz dos bens e das imagens . Em
Josephine
Meckseper, a exibição das imagens mostra-se
idêntica à estrutura de uma realidade em que
t ud o
é expos
to no modo da exposição comerc ial . Mas o ob jet ivo é sem
pr e mo strar ao espectador o que ele não sabe ver e envergo
nhá-lo porque ele não quer ver, com o risco de o próprio
dispositivo crítico se apresentar como uma mercadoria de
luxo
pertencente à lógica que ele denuncia.
Há então de fato uma dialética inerente à denúncia do
p a r a d i g m a
crítico:
esta
declara a sua obsolescência com o
único f im de reprodu zir seu mecanismo, com o ri sco de
t ransformar
a ignorânc ia da real idade ou a negação da mi
séria em ignorância do fato de que realidade e miséria desa
pareceram, de transformar o
desejo
de ignorar o que torn a
cu lp ado em desejo de ignorar que não há nada de que se
sentir culpado. Esse é , substanc ialmente, o argumento de
fendido j á não por um art i s ta , mas por um fi lósofo,
Peter
Sloterdijk, em seu l ivro Écumes [Espumas]. Conforme sua
descrição, o
processo
da modernidade é um
processo
de an-
tigravitação. O termo refere-se e m pr ime iro luga r, está claro,
às invenções técnicas que po ssibil i tara m a conquista do es
paço e às que puseram as tecnologias da comunicação e da
32
realidade v i r t u a l no lugar do sól ido mundo indu str ia l . M a s
t a m b é m expressa a ideia de que a vid a teria perdido muito
de sua gravidade de
outrora,
entendendo com
isso
s ua
carga
de sofrimento, aspereza e miséria, e com ela seu peso de
realidade. Por
esse
mo t ivo , os procedimentos tradicionais do
pensamento crítico
baseados
nas "definições da realidade
formu ladas
pela ontologia da pobreza" já não teriam razão
de ser. Se subsistem, segundo Sloterdi jk, é porque a crença
na solidez da realidade e o sentimento de culpa em relação à
miséria sobrevivem à perda de seu objeto. Sobrevivem na
modalidade
de i lusão necessária. M a r x
v ia
os homens proje-
tar no céu da religião e da ideologia a imagem invertida de
sua miséria real .
Nossos
contemporâneos, segundo Sloter
di jk , fazem o contrário: projetam na ficção de uma realidade
sól ida a imagem invertida desse
processo
generalizado de
perda
de peso: "Q ualquer que seja a ideia expressa n o espa
ço público, é a mentira da miséria que redige o texto. Todos
os discursos são submetidos à lei que
consiste
e m retraduzir
no jargão da miséria o luxo que subiu ao poder."
6
O embara
ço culpado que se
sente
diante do desaparecimento do
peso
e da miséria se
expressaria
inversamente na retomada do
velho discurso miserabil ista e vi t imiza nt e .
Essa análise convida a l ibertar-nos das formas e do
conteúdo da tradição crítica. Mas só o faz à custa de repro
d uzir sua lógica. Diz, mais uma vez, que somos vítimas de
u m a
estrutura global de i lusão, vítimas de
nossa
ignorância
e de nossa resistência diante de um
processo
glo bal irresistí
ve l de desenvolvimento das forças
pro d ut iva s :
o
processo
de
desmaterialização da riqueza que tem como consequência a
perda das crenças e dos ideais antigos.
Reconhecemos
facil
mente na argumentação a indestrutível lógica do Manifesto
Comunista. N ão por acaso o pretenso pós-modernismo pre
cisou tomar-lhe de empréstimo sua fórmula canónica: "Tudo
o que é sólido se esfuma no ar." Tudo se tornaria fluido,
líquido, gasoso e restaria rir dos ideólogos que ainda acredi
ta m na realidade da realidade, da miséria e das guerras.
6.
Peter
S l o t e r d i j k ,
Écumes,
t ra d . fr . O l i v i e r M a n n o n i , P a r is , M a r e n S e l l, 2005,
p.
605.
33
8/11/2019 espectador emancipado.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/espectador-emancipadopdf 19/66
Por mais provocadoras que pre tendam ser, essas teses
cont inu am fechadas na lógica da tradição crítica. Permane
cem fiéis à tese do
processo
histórico inelutável e de seu
efei to necessário: o mecanismo de inversão que transform a
a realidade em ilusão ou a ilusão em realidade, a pobreza e m
riqueza
ou a r iqueza em pobreza. Continuam denunciando
a incapacidade de
conhecer
e o desejo de ignorar. E cravam
sempre a culpa no coração da negação.
Essa
crítica da
t ra d i
ção crítica, portanto, ainda emprega
seus
conceitos e
seus
p r o c e d im e n t o s . M a s a l g u m a coisa, é verdade, m u d o u . A i n
da ontem esses procedimentos se propunham susc i tar
for
mas de consciência e energias voltadas para um
processo
d e
emancipação. Agora elas es tão ou intei ramente desconec
tadas desse horizo nte de emancipação, ou c laramente volta
das contra seu sonho.
É
esse
o contexto i lustrado pela fábula dos manifes
tantes e da lata de l ixo. Sem dúvida a fotografia não exprime
nenhuma censura aos mani fes tantes . A f i n a l , já na década
de 1960, Godard i ronizava os
" f i lho s
de Marx e da
Coca-
-Cola" . Apesar di sso, marchava com eles, porque, quando
eles marchava m contra a guerra do Vietnã, os
f i lho s
da era
da Coca-Cola combatiam ou, em todo caso, achavam que
combatiam com os
f i lho s
de
M a r x .
O que
m u d o u
e m q u a
renta anos não foi o desaparecimento de M a r x , absorvido
pela Coca-Cola. Ele não
desapareceu.
M u d o u de lugar. A g o
ra
está alojado no coração do sistema como sua voz ventrí-
loqua. Tornou-se o fantasma infame ou o pai infame que
tes temunha a infâmia comum dos
f i lho s
d e M a r x e d a C o
ca-Cola. Gramsci já caracterizara a revolução soviética como
revolução contra
O
capital,
contra o
l ivro
de Marx que se
tornara a Bíblia do cientificismo burguês. Seria poss ível d i
zer o mesmo do marxismo em cujo
seio
m i n h a g e r a ç ã o
cresceu:
o ma rxismo da denúncia das mi tologias da merca
doria,
das i lusões da
sociedade
de consumo e do império do
espetáculo. Há quarenta anos, esperava-se que ele denun
ciasse o maquinado da dominação soc ial para dar armas
novas aos que o enfrentavam . Hoje, tornou-se um saber d e
sencantado
do reino da mercado ria e do espetáculo, da
e q u i -
34
valência de qualquer
coisa
com qualquer outra e de qualquer
coisa
com sua própria imagem .
Essa
sabedoria pós-marxista
e pós-situacionista não se l imi ta a apresentar uma pintura
fantasmagórica de uma hu manidade intei ramente enterrada
debaixo dos dejetos de seu consumo frenético. Também p i n
ta a lei da dominação como uma força que se apodera de
t ud o
o que pretenda contestá-la. Transforma todo e qualquer
protesto em espetáculo e todo espetáculo em mercadoria.
Faz dele a expressão de uma vaidade, mas também a de
monstração de uma culpa. A voz do fantasma ventrí loquo
di z qu e somos duas vezes culpados, culpados por duas ra
zões opostas : po rque ainda nos
apegamos
aos velhos
capri
chos
de realidade e culpa, f ingind o ignorar que não há mais
nada com que se sentir culpado, mas também porque, com
nosso próprio consumo de mercadorias, espetáculos e p r o
testos,
contribuímos para o reinado infame da equivalência
comercial . Essa dupla culpa implica uma redistribuição no
tável das posições políticas: de um lado, a velha denúncia
esquerdista do império da mercadoria e das imagens
tor
nou-se uma forma de aquiescência irónica ou melancólica a
esse inevitável império; por
outro,
as energias militantes
voltaram-se para a direita, onde alimentam uma nova crítica
da mercadoria e do espetáculo cujos malefícios são
requali
ficados como crimes dos indivíduos democráticos.
Por um lado, portanto, há a i ro nia ou a melancol ia de
esquerda. Esta nos insta a confessar que todos os nossos
desejos de subversão obedecem também à lei de mercado e
que só nos comprazemos com o novo jogo disponível no
mercado global , o da experimentação
i l imit a d a
de
nossa
própria
v ida.
Mostra-nos absorvidos no ventre do monstro
onde mesmo as
nossas capacidades
de prática autónoma e
subversiva e as
redes
de interação que poderíamos u t i l i zar
contra ela servem ao novo poder da
besta,
o da produção
ima t e r ia l .
A
besta, d i z e m ,
impõe seu império
sobre
o s dese
jos e as
capacidades
de
seus
inim igos potenc iai s , oferecen-
do-lhes pelo melhor preço a mais aprec iada das mercado
rias,
a capacidade de experimentar a
vida
como um solo de
possibil idades inf ini t a s . A s s i m ,
oferece
a
cada
u m o q u e este
35
8/11/2019 espectador emancipado.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/espectador-emancipadopdf 20/66
pode
desejar:
reality shows para os cretinos e maiores possi
bilidades
de autovalorização para os
espertos. Essa,
s e g u n
do
nos diz o di scurso melancól ico, é a armadi lha na qual
caíram os que acreditavam em derrubar o poder capitalista
e deram-lhe, ao contrário, meios de
rejuvenescer
a l i m e n t a n -
do-se
da s
energias
contestadoras. Esse di scurso encontrou
alento no L e
Nouvel
Esprit du capitcdisme [O novo espírito do
capitalismo]
de Luc Bol tansk i e Eve Chiapel lo* .
Segundo
esses
sociólogos, as palavras de ordem das revoltas da dé
cada
de 1960 e , sobretudo, do movimento es tudanti l de
m a i o de 68 ter iam fornec ido meios de regeneração ao capi
t a l i s m o em di fi culdades depois da crise do petróleo em
1973. Maio de 68, realmente, teria avançado os temas da
"crítica estética" ao capitalismo - protesto contra um m u n
do desencantado, reivindicações de autenticidade,
c r iat iv i
dade e autonomia - em oposição à sua crítica "social", pró
pria
do movimento operário: crítica às desigualdades e à
miséria e denúncia do egoísmo destruidor dos
elos
c o m u n i
tários.
Esses
temas
teriam sido integrados pelo capitalismo
contemporâneo, oferecendo a tais
desejos
de autonomia e
criatividade autêntica uma
" f le xibi l id a d e "
nova, um enqua
dramento
flexível , estruturas
leves
e inovadoras, o apelo à
iniciativa i nd i v i d ua l
e à "cidade por projetos".
A tese é em si mesma bem pouco sólida. É grande a
distância entre os discursos para seminários de executivos,
que lhe servem de base, e a realidade das formas contempo
râneas de dominação do capitalismo, em que " flexibilidade"
do t rabalho s ign i f i ca bem m ais adaptação forçada a form as
de
produtividade
aumentadas sob ameaça de demissões, fe
chamentos e relocações do que apelo à criatividade
genera
lizada
dos f i lhos de maio de 68. De qualquer mod o, a preo
cupação com a criatividad e no traba lho
estava
bem longe
das palavras de ordem do movimento de 1968, que, inversa
mente, foi contrário ao tema da "participação" e ao convite
feito à juventude ins truída e
generosa
de part i c ipar de um
capitalismo
mod ernizado e humanizado, que
estava
no
cerne
da ideologia neocapitalista e d o reform ismo estatal dos
anos
* T r a d . b r a s. , I v o n e C . B e n e d e t t i, W M F M a r t i n s Fontes, 2009. [ N . d a T . ]
36
1960. A oposição entre crítica estética e crítica social não se
baseia
em nenhuma análise das formas históricas de
contes
tação. Lim i ta-se, em conform idade com a l i ção de Bourdieu,
a atr ibuir aos operários a
luta
contra a miséria e em
prol
dos
elos
comunitários, e aos fi lhos transitoriamente
rebeldes
da
grande ou pequena burguesia o
desejo
individualista de
criatividade autónoma. Mas a luta coletiva pela em ancipação
operária nunca se afastou da nova experiência de
vida
e de
capacidade individuais, conquistadas
sobre
a coerção dos
antigos
elos
comunitários. A emancipação social foi ao mes
m o tempo emancipação estética, r u p tu r a com as maneiras
de sentir, ver e dizer que caracterizavam a identidade operá
ri a na ordem hierárquica antiga. Essa solidariedade entre so
cial e estético, entre descoberta da individualidade para to
dos e projeto de coletividade l ivre const i tuiu o
cerne
da
emancipação operária. Mas sig nificou , simultaneam ente, a
desordem das
classes
e das identidades que a visão socioló
gica do mundo constantemente recusou, contra a qual ela
mesma
se constru iu no século XIX. É bem natural que a te
nha reencontrado nas manifestações e nas palavras de or
de m de 1968 e é compreensível que ten ha ficado preocupada
em acabar com a perturbação que ela trouxe à boa repartição
da s classes, de suas maneiras de ser e de suas formas de ação.
Portanto ,
não foi a novidade nem a força da
tese
que
pôde seduzir , mas o m odo como ela põe de novo em funcio
namento o tema "crítico" da i lusão conivente. Assim, ela
dava alento à versão melancólica do esquerdismo, que se
alimentava
da denúncia do poder da besta e das i lusões dos
que a servem acreditando combatê-la. É verdade que a tese
da cooptação das revoltas "estéticas"
abre
para várias con
clusões: ela
esteia
então a proposta de um radicalismo que
seria f inalm ente radical : a defecção em massa das forças do
Intelecto geral hoje absorvidas pelo Capital e pelo Estado,
preconizada por Paolo V i r n o , ou a subversão v i r t u a l oposta
ao capitalismo v i r t u a l por Brian Holme s
7
. Tam bém al imenta
7. Ver Paolo
V i r n o ,
Miracle, virtuosité et "déjà-vu". Trois essais sur Viáée de
monde ,
É d it io n s d e 1 ' É c la t , 1 9 9 6 , e t B r ia n H o lmes , " T h e F lex ib le Per s o n a l i ty . F o r a
N ew
C u l t u ra l C r i t i q u e " , in Hieroglyphs
of the Future. Art and Politics hl a net-
37
8/11/2019 espectador emancipado.pdf
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a proposta de militância
inver t ida,
j á não emp enhada em
destruir, mas em salvar u m cap ita l ismo qu e ter ia perdido
seu espírito
8
. Mas seu nível n o r m a l é o da constatação de
sencantada da imp os sibi l idade de mu d ar o cu rso de u m
m u n d o n o qua l faltaria qualquer ponto sólido para uma
oposição à realidade de dominação que se
tor nou gasosa,
líquida, ima t e r ia l . De fato , qua l o p oder dos m anifestantes/
consu midores fotog rafados p or Josephine Meckseper d i a n
te de uma guerra assim descrita por um sociólogo eminente
de nosso temp o? "A técnica fu n dam ental do p oder hoje é a
esquiva, o desvio, o subterfúgio, o evitamento, a rejeição
efet iva de qu alqu er confinam ento
territorial ,
co m seus coro
lários pesados de ordem p o r edif icar , de ordem p or conser
va r
e a responsabilidade
pelas
consequ ências, tanto qu anto
a necessidade de arcar c o m seus custos [ . . . ] Ataqu es desfe
chados por aviões de combate f u r t ivos e m ísse is in te l ig entes
guiados e autodirigíveis -
desfechados
de surpresa, de parte
alg u m a, e log o su btra ídos ao olhar - su bst i tu íram as inva
s õ e s
territoriais
por tropas de infantaria e o esforço para de
sapossar o
i n i m i g o
de seu território [.. .] A força
mi l i tar
e sua
estratégia de hit-and-run pre f igura va m, encarnavam e p res
sag iavam o qu e
estava
rea lmente em jog o no novo
t ip o
de
guerra da era da modernidade líquida: não conquistar um
novo terri tório , mas derru bar os m u ros qu e det in ham os n o
vos poderes globais e
f lu idos . "
9
Esse d iag nóst ico fo i p u blica
do em 2000. N ão seria difícil perceber que ele fo i p l e n a m e n
te comp rovado pelas ações
m i l i t a res
d os oito anos seguintes.
Mas a p revisão melancólica não incide sobre fa tos comp ro
váveis . Ela di z s imp lesmente : as coisas não são o que pare
cem.
Essa
é u m a
frase
que nunca corre o risco de ser refuta
da . A melancolia alimenta-se de sua própria impotência.
worked
era, B r o a d ca s t in g Pr o j ec t , Pa r is /Za g r eb , 2002 ( ta mb ém d is po n ív el em
w w w . g e o c i t i e s . c o m / C o g n i t i v e C a p i t a l i s m / h o l m e s l . h t m l ,
b e m c o m o " R é v e i l -
ler les f a n tô mes co l lec t i f s . Rés is ta n ce r ét icula ir e , per s o n n a l i té f lex ib le" ,
w w w .
r e p u b l i c a r t .n e t / d i s c / a r t s a bo t a g e / h o l m e s 0 1 _ f r . p d f)
8. Bern ard Stiegler , Mécréance et diserédit 3; Vespnt perdu du capitalisme, G a l i lée ,
2006.
Z yg m v m t B a u m . m
hquid
Modernity, P o l i t v
Press. 2000,
pp. 11-2 ( tradução
m i n h a ) .
38
Basta-lhe poder convertê-la em impotência generalizada e
reservar-se a posição de espírito lúcido que lança um olhar
desencantado sobre u m mu ndo onde a in terp retação cr í t ica
do
sistema
se
tornou
um elemento do próprio sistema.
D i a n t e dessa
melancolia de esquerda,
assistimos
ao
desenvolvimento de u m novo
f u r or
de direita, qu e r ef or mu
la
a denúncia dó mercado, da mídia e do espetáculo como
denúncia das devastações do indivíduo democrático. Há al
g u m temp o a op inião dom inante desig nava com o nom e de
democracia a converg ência entre u ma form a de g overno ba
seada nas liberdades públicas e o modo de vida individual
baseado na
l ivre
escolha oferecida pelo
l ivre
mercado. En
qu anto
du r ou
o império soviético, ela opunha
essa
d e m o
cracia a o i n i m i g o chamado de t o t a l i ta r ismo . M a s o consen
so sobre a fórmula que identificava democracia e soma de
direitos h u m a n o s ,
l ivre
mercado e
l ivre
escolha
individual
dissipou-se com o desaparecimento do
i n i m i g o .
N os anos
seguintes
a 1989,
campanhas
intelectuais cada v e z m a i s f u
riosas
denu nciaram o efe ito fa ta l da con ju nção entre os d i
re itos hu manos e a
l ivre
escolha dos indivíduos. Sociólogos,
filósofos políticos e moralistas se revezaram para nos
expli
car que os dire itos hu manos, como M arx bem
vira,
sã o
direi
tos do indivíduo egoísta burguês, direitos dos consumidores
de mercadorias, e que
esses
direitos levavam hoje
esses
c o n
sumidores a derrubar qualquer entrave a seu frenesi, por
tanto a destruir todas as formas tradicionais de autoridade
qu e i m p u n h a m u m
l imi te
ao p oder do mercado: escola, re
ligião ou família. Esse é, d i z e m , o sentido real da palavra
democracia: a lei do indivíduo preocupado apenas com a
satisfação de seus desejos. Os indivíduos democráticos que
re m
a igualdade. Mas a igualdade que querem é a que reina
entre o vendedor e o comprador de uma mercadoria. O que
eles qu erem, p o rtanto , é o t r i unfo do mercado em todas as
re lações hu manas. E, qu anto mais amor têm à ig u aldade,
mais ardorosamente concorrem p ara esse t r i unfo . C o m base
nisso, era fácil provar que os movimentos estudantis da dé
cada 1960 e, mais especialmente, o de maio de 68 na França
visavam apenas à destruição das formas de autoridade
t r a
dicional
qu e se op u nham à invasão g eneral izada da
vida
39
8/11/2019 espectador emancipado.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/espectador-emancipadopdf 22/66
pela lei do Capital , e que seu único efeito foi transformar
nossas sociedades
em livres agregados de moléculas soltas,
isentas
de qualquer fi l iação, inteiramente disponíveis só
para a lei do mercado.
M as essa nova crítica da mercadoria deveria dar mais
u m passo e apresentar como consequência da
sede
d e m o
crática de consumo igualitário não só o reinado do mercado,
mas também a destruição terrorista e totalitária dos
elos
so
c iai s e humanos . Há algum tempo se opunha individu al i s
m o a to tal i tari smo. Mas nessa nova teorização, o
totalita
r i s m o torna-se consequência do fanati smo ind ivid ua l is t a
da l ivre
escolha
e do consumo i l imi tado. N o m o m e n t o d o
desmoronam ento das torres , um em inente ps icanali s ta , ju
r ista e fi lósofo, Pierre Legendre, explicava no L e Monde que
o ataque terrorista era o retorno do recalcado ocidental , a
punição pela destruição ocidental da ordem simbólica,
des
truição resumida no
casamento
homossexual . Dois
anos
dep ois ,
um eminente f i lósofo e l inguist a ,
Jean-Claude
M i l
ner, dava um cunho mais radical a
essa
interpretação em
se u l ivro L es
Penchants crimineis
de
1'Europe
démocratique [Ten
dências criminosas da Europa democrát ica] . O crime que
ele impu tava à Europa demo crática era simplesmente o ex
termínio dos judeus. A democracia, argumentava ele, é o
re ino
da i l imitação social , é animada pelo
desejo
de expan
s ã o s em f i m desse
processo
de i l imitação. O povo
j ud e u,
ao
contrário, sendo o povo fiel à lei de fi l iação e transmissão,
representava o único obstáculo a essa tendência inerente à
democracia. É
esse
o
mo t ivo
pelo
qua l esta
precisava
e l i m i
ná-lo e foi a única beneficiária
dessa
e l iminação. E nos tu
mu ltos
dos subúrbios
franceses
de novembro de
2005,
o
p orta-voz
da
intelligentsia
m idiática
francesa, A l a i n F inkie l -
kraut, v ia a consequência di reta do terrori smo democrát ico
do consumo sem entraves: Essa gente que destrói escolas o
que diz de
fato?
Sua mensagem não é um ped ido de a juda
ou
uma exigência de mais
escolas
ou de melhores
escolas,
é
a vontade de eliminar os intermediários entre ela e os obje-
tos de seus desejos. E quais são os objetos de seus desejos?
E s imples :
d inhe iro ,
gri fes , mulheres às
vezes,
[ . . . ] querem
4
t ud o
agora, e o que querem é o ideal da
sociedade
de consu
m o.
E o que veem na televisão. "
10
Como o mesmo autor afir
mava que aqueles jovens t i n h a m s ido imp elidos a a m o t i n a r -
-se por fanáticos islamitas, a demonstração reduzia
a f ina l
a
u m a
única f igura democracia, consumo,
puerilidade,
fana
t i s m o rel ig ioso eyiolênc ia terrorista. A crítica do consumo e
do
espetáculo identificava-se em última instância com os
temas
mais crus do choque de civil izações e da guerra con
tr a
o terror.
O p u s esse f u r or
direit ista
da crítica pós-crítica à me
lancolia
de esquerda. Mas trata-se de duas
faces
da mesma
moeda. Am bas põem em ação a mesma inversão do modelo
crítico que pretendia revelar a lei da mercadoria como ver
dade última das
belas
aparências, a
f i m
de armar os comba
tentes
da luta social . A revelação continua em curso. Mas
não se
espera
que ela forneça nenhum a arma contra o im
pério que denuncia. A melancolia de esquerda convida-nos
a
reconhecer
que não há al ternat iva para o poder da besta e
a
confessar
qu e
estamos
satisfeitos com isso. O
f u r or
d e d i
reita
nos adverte que, quanto mais tentarmos dobrar o po
der da
besta,
mais contribuiremos para seu t r iu nf o. M a s
essa desconexão entre os procedimentos críticos e sua f i n a
lidade lhes
subtrai,
como contrapart ida, qualquer esperança
de eficácia. Os melancólicos e os profetas envergam os tra
jes da razão
esclarecida
que dec i fra os s intomas de um a do
ença da civil ização. Mas essa razão esclarecida, por sua vez,
apresenta-se
desprovida de qualquer efeito
sobre
doentes
cuja doença
consiste
em não se
saberem
doentes. A i n t e r m i
nável crítica ao sistema identifica-se,
a f ina l ,
com a demons
tração das razões
pelas
quais
essa
crítica é desprovida de
qualquer
efeito.
Evidentemente, essa impotência da razão
esclarecida
não é acidental . E intrínseca a essa f igura da crítica pós-
-crítica. Os
mesmos
profetas que deploram a derrota da
razão do
I l u m i n i s m o
em face do terrori sm o do " individu a
l i s m o democrát ico"
vo l t a m
as
suspeitas
para essa mesma
10. A l a i n F i n k i e l k r a u t , en tr ev is ta d a d a a o Haaretz, 1 8 d e n o v emb r o d e 2005, t ra
d uçã o d e M i c h e l W a r s ch a w s k i e M ich èle S ib o n y .
41
8/11/2019 espectador emancipado.pdf
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razão. N o "te rror" que denunciam, veem a consequência da
l ivre flutuação dos átomos individu ais , soltos dos
elos
das
instituições tradicionais que mantêm juntos os seres h u m a
nos: família,
escola,
religião, solidariedades tradicionais. Ora,
essa argumentação tem uma história bem identificável . Re
m o n t a
à análise contrarrevolucionária da Revolução
France
sa.
Segundo
ela, a Revolução
Francesa
destruíra o tecido das
inst ituições coletivas que re uniam , educavam e proteg iam
os indivíduos: a religião, a monarquia, os vínculos feudais
de dependência, as corporações etc. Essa destruição, para
ela, era pro d ut o do espírito i lu minis ta , que era o espírito do
ind ivid ua l ismo
protestante. Por conseguinte, esses indiví
duos desvinculados, desaculturados e sem proteção se ha
v i a m torn ado disponíveis tanto para o terrori sm o de massa
qu anto
para a exploração capitalista. A campanha antide
mocrát ica atual retoma abertamente essa análise do elo en
tr e democracia, mercado e terror. Mas, se
consegue
inc lu ir a
análise marxista da revolução burguesa e do fetichismo
me rca nt i l ,
é porque
esta nasceu
nesse solo e dele extraiu
mais de u m al imento. A crí t ica marxis ta dos di rei tos huma
nos, da revolução burguesa e da relação social al ienada de-
senvolveu-se nesse terreno da interpretação pós-revolucio-
nária e contrarrevolucionária da revolução democrática co mo
revolução ind ivid ua l is ta burguesa que dilacerou o tecido da
comu nidade.
E é bem
na t ura l
que a inversão crítica da
t ra d i
ção crítica
o r iund a
do marxismo nos reconduza a isso.
Portanto ,
é falso dizer que a tradição da crítica social
e c u l tu r al está esgotada. E la vai m u i t o bem, em sua forma
invertida
que agora es trutura o discurso dominante. Sim
plesmente foi levada de
volta
a seu terreno de origem: o da
interpretação da mod ernidade como r u p tu r a individualista
do elo social e da democracia como ind ivid ua l ismo de mas
sa. Foi também levada de
volta
à tensão originária entre a
lógica
dessa
interpretação da "mode rnidade democrát ica" e
a lógica da emancipação social . A atual desconexão entre a
crítica do mercado e do espetáculo e qualquer visão eman-
cipadora
é a forma úl t ima de uma tensão que habi tou
desde
a origem o m ovim ento de emancipação soc ial .
42
Para
compreender essa tensão, é preciso
voltar
ao
sentido o r i g i n a l da palavra "emancipação" : saída de um es
tado
de menoridade. Ora, esse estado de menoridade do
qual os militantes da emancipação social quiseram sair é,
e m
princípio, a
mesma coisa
que o " tec ido harmonioso da
c o m u n i d a d e "
com que sonhavam, há dois séculos , os pen
sadores
da contrarrevolução e com que se emocionam hoje
os pensadores
pós-marxis tas do elo soc ial
perdido.
A c o m u
nidade
harmoniosamente tec ida, alvo dessas
saudades,
é
aquela em que
cada
um tem seu lugar em sua classe, fica
ocupado na função que lhe
cabe
e é dotado do equipam ento
sensorial e intelectual que convém a
esse
lugar e a essa f u n
ção:
a comunidade platónica na
qua l
os artesãos devem ficar
e m
seu lugar porque o trabalho não
espera
- que não
sobre
t e m p o
para ir prosear na agora, deliberar na
assembleia
e
olhar sombras no teatro - , mas tamb ém porque a
divindade
lhes deu alma de ferro - o equipamento sensorial e intelec
tual
- que os adapta e os
f ixa
a essa ocupação. É o que
cha
m o de divisão policial do sensível : a existência de uma rela
çã o "harmoniosa" entre uma ocupação e um equipamento,
entre o fato de
estar
nu m tempo e nu m espaço espec í f icos ,
de
nele
exercer
ocupações definidas e de ser dotado das ca
pacidades de sentir, dizer e fazer que convêm a essas a t i -
vidades.
A emancipação social , na verdade, significou a
r u p t u r a da concordância entre uma "ocupação" e uma "ca
pacidade" que significava incapacidade de conquistar
outro
espaço e
outro
tempo. Signi fi cou o desmantelamento da
quele corpo trabalhador adaptado à ocupação do artesão
sabedor de que o trabalho não
espera,
de que os sentidos
sã o
moldados por
essa
"ausênc ia de tempo". Os trabalhado
res emancipados f orma vam para s i , hic et nunc,
o ut ro
corpo
e outra "alma" desse corpo - o corpo e a alma dos que não
estão adaptados a nen hum a ocupação espec í f ica, que põem
em
ação as
capacidades
de sentir e falar, de
pensar
e agi r
que não pertencem a nenhuma classe em part i cular, que
pertencem a qualquer um .
M as essa ideia e essa prática da emancipação h i s tor i
camente se mesc laram e por f im acabaram submetidas a
43
8/11/2019 espectador emancipado.pdf
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um a
outra ideia diferente de dominação e l ibertação: a que
relacionava a dominação com u m processo de separação e a
libertação, por conseguinte, com a reconquista de uma u n i
dade perdida. Segundo essa visão, exemplarmente resumida
nos textos do jovem Marx, a sujeição à lei do Capital era
efeito de uma sociedade cuja unidade fora quebrada, cuja
r iqu eza
fora alienada, projetada acima ou em
face
dela. A
emancipação então só podia
aparecer
como reapropriação
g lobal d e u m b e m
perdido
pela comunidade. E essa reapro
priação só podia ser resultado do conhecimento do
processo
g lobal
dessa
separação.
Desse
ponto de vista, as formas de
emancipação daqueles artesãos que constituíam um corpo
novo para
vive r
aqui e agora nu m novo mun do sens ível só
p o d i a m
ser i lusões, produz idas pelo
processo
de separação
e pela ignorância desse
processo.
A emancipação só poderia
chegar
c o m o o f i m d o
processo
global que havia separado a
sociedade
de sua verdade.
A p ar t i r
daí , a emancipação deixou de ser concebida
como construção de novas capacidades para ser promessa
da ciência àqueles
cujas capacidades
i lusórias só podiam ser
a outra
face
de sua incapacidade real . Mas a própria lógica
da ciência era a lógica do adiamento indefinido da promes
sa. A ciência que prometia a l iberdade era também a ciência
do processo global que tem o efeito de pro d uzir ind e f inid a
mente sua própria ignorância. Por
esse motivo,
precisa
estar
sempre empenhada em dec i frar as imagens
enganosas
e em
desmascarar
as formas i lusórias de enriquecimento de si
mesmo que só podiam encerrar um pouco mais os indiví
duos nas
redes
da i lusão, da sujeição e da miséria.
Sabemos
o nível de frenesi atin gid o, entre o tem po das
Mythologies
[Mitologias] de
Barthes
e o da Société du Spetacle [Sociedade
do espetáculo] de Guy Deb ord, pela lei tura crít i ca das ima
gens
e o desvendamento das
mensagens
enganosas
que
dissimu lavam.
Sabemos
também como
esse
frenesi de deci
fração das
mensagens enganosas
de toda imagem se inver
te u na década de 1980 com a afirmação desiludida de que já
não havia por que d i s t ingu ir imagem e real idade. Mas essa
inversão não
passa
de consequência da lógica originária que
44
concebia o
processo
soc ial g lobal como u m
processo
de au-
todissimulação. O segredo ocul to nada mais é , a f ina l , que o
f u n c i o n a m e n t o
óbvio da máquina. E s tá realmente aí a ver
dade do concei to de espetáculo f ixado por Guy Debord: o
espetáculo não é a exposição das imagens que ocultam a
realidade. É a existência da atividade social e da riqueza so
cial
como realidade separada. A situação dos que
v ivem
na
sociedade
do espetáculo é então idêntica à dos prisioneiros
amarrad os na caverna platónica. A caverna é o lugar onde as
imagens são tomadas por realidades, a ignorância por saber
e a pobreza por riqueza. E, quanto mais os prisioneiros se
i m a g i n a m
capazes
de constru ir de outro modo sua
v ida i n
d i v i d ua l e coletiva, mais se enleiam na servidão da caverna.
M as essa declaração de impotência leva de volta à ciência
que a proc lama. Conhecer a lei do espetáculo equivale a co
nhecer
a maneira como ele reproduz indefinidam ente a
fal
sificação que é idêntica à sua realidade. Debord resumiu a
lógica desse c írculo nu ma fórmula
lapidar:
" N o m u n d o re a l
mente inver t ido, o verdadeiro é um momento do fal so. "
11
A s s i m ,
o próprio conhecimento da inversão pertence ao
m u n d o
inver t ido, o conh ec imento da sujeição, ao mu ndo da
sujeição. Por isso, a crítica da i lusão das imagens pôde ser
revertida em crítica da i lusão de realidade, e a crítica da fal
sa
riqueza, em crítica da falsa pobreza. A pretensa
viravolta
p ó s - m o d e r n a ,
nesse
sent ido, nada mais é que uma vol ta a
mais no mesmo c í rculo. N ão há
passagem
teórica da crítica
m o d e r n i s t a
ao n i i l i smo pós-m oderno. O que se faz é ler em
outro sent ido a mesma equação da real idade e da image m,
da riqueza e da pobreza. O
n i i l i smo
atribuído ao humor
pós-moderno poderia
m u i t o
bem ter sido
desde
o início o
segredo oculto da ciência que d iz ia revelar o segredo ocul to
d a sociedade m o d e r n a . Essa c iência alimentava-se da in
destrutibilidade
d o
segredo
e da reprodução
ind e f inid a
do
processo
de falsificação que denunciava. A desconexão pre
sente entre os procedimentos críticos e qualquer perspecti
va de emancipação revela
apenas
a disjunção que
estava
n o
11 . G u y D e b o rd , La société du spectacle, op. cit., p. 6.
45
8/11/2019 espectador emancipado.pdf
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cerne do p aradig ma cr í t ico . Ela p ode zombar de
suas i l u
sões, mas rep rodu z su a lóg ica .
Por isso, uma real "crítica da crítica" só pode ser uma
inversão a mais de sua lógica. Passa p o r u m reexame de
seus
conceitos e de
seus
procedimentos, de sua genealogia e
do m o d o c o m o eles se entre laçaram com a lóg ica da eman
cipação social.
Passa
esp ecia lmente p or u m olhar novo so
bre a h istór ia da imag em obsedante e m t o r n o da qua l ocor
re u a inversão do modelo cr í t ico , a imag em, tota lmente
su rrada e semp re p ronta p ara o u so, do p obre e cret ino con
sumid o r , su bmerso p ela vag a das mercadorias e imag ens e
sedu zido p or suas promessas falaciosas. Essa preocupação
obsessiva em relação à exposição maléfica das mercadorias
e das imag ens e
essa
rep resentação de su a vít ima
cega
e
comp lacente não nasceram no temp o de Barthes,
Baudrillard
ou D ebord. I mp u seram -se na seg u nda metade do sécu lo
X I X nu m contex to bem esp ecíf ico . Era o temp o em qu e a
fisiologia
descobria a m u l t ip l icidade de estímulos e circuitos
nervosos, em lu g ar do qu e fora u nidade e s imp licidade da
alma, e em qu e a p sicolog ia , com Taine , t ransformava o cé
rebro em u m " po l ipe iro de imag ens" . O p roblema é qu e
essa
p romoção cient íf ica da qu ant idade coincidia com o ut ra , c o m
a da m u lt idão po pula r , su je i to da forma de g overno chama
da democracia, com a de
m u l t ip l ic idade
de indivíduos sem
qualidade que a proliferação de textos e imagens
r e p r o d u z i
dos, de vi t r ine s de rua comercial e das luzes da cidade pú
blica t ransformavam em habitantes p lenos de u m mu ndo
comp art i lhado
de conhecimentos e g ozos.
Fo i nesse
contexto que o r u m o r começou a
elevar-se:
havia est ímu los em dem asia ,
desfechados
de todos os lados,
p ensamentos e imag ens em demasia , inva d ind o cérebros
não p rep arados p ara dominar su a abu ndância , imag ens de
prazeres possíveis em demasia, expostas à visão dos pobres
das grandes cidades, conhecimentos novos em demasia,
lançados dentro do crânio fraco das crianças do po vo . Essa
excitação de energia nervosa era um sério
pe r igo .
O resu lta
do é uma explosão de apetites desconhecidos
produzindo,
em cu rto p razo, novos assaltos contra a ordem social e, a
46
ílongo prazo, o esgotam ento da raça trabalha deira e sólida. A
deploração do
excesso
de mercadorias e de imag ens consu
míveis fo i de in ício u m qu adro da sociedade democrát ica
c o m o sociedade em que há em demasia indivíduos capazes
de apropriar-se de palavras, imagens e formas de vivência.
Fo i essa, de fato, a. g rande ang ú st ia das e l i tes do sécu lo X I X :
t
ang ú st ia diante da circu lação
dessas
formas inéditas de
jprivência, apropriadas a dar a qualquer passante, v isi tante ou
,'itora o mater ia l capaz de co nt r ibuir para a reconfiguração
' e seu mu ndo vivenciado. Essa multiplicação de encontros
inéditos era também o despertar de capacidades inéditas nos
corp os p op u lares. A emancip ação, ou seja, o desmantela
mento da velha divisão do visível, do pensável e do factível,
a l imentou -se dessa multiplicação. A denúncia das seduções
ment irosas da sociedade d e c o n s u m o " fo i
in ic ia lmente
obra
daquelas elites apavoradas diante das duas figuras gémeas e
contemp orâneas da ex p erimentação p op u lar de novas
for
mas de
v ida :
Em ma Bovary e a Associação I nternacional dos
Trabalhadores. Evidentemente ,
esse
p avor assu miu a forma
da solicitude paternal para com os pobres cujos cérebros frá
geis
eram
incapazes
d e d o m i n a r
essa multiplicidade.
E m o u
tras palavras,
essa
capacidade d e reinve ntar a
v ida
fo i t rans
formada em incapacidade de julgar as situações.
Esse
cu idado p aternal e o diag nóst ico de incap acida
de que ele implicava foram g enerosamente retomados p elos
qu e qu iseram
u t i l i zar
a ciência da realidade social para pos
s ib i l i t a r qu e homens e mu lheres do p ovo tomassem cons
ciência de sua situação real disfarçada pelas imag ens m e n t i
rosas. Ass u m iram-n os p orqu e desp osavam su a p róp ria v isão
do
movimento g lobal de p rodu ção comercia l como
p r odu
ção automática de ilusões para os agentes que lhe estavam
sujeitados. Desse m o d o , a s s u m i r a m t a m b é m a q ue la t r a n s
formação de
capacidades
p er ig osas p ara a ordem socia l em
incapacidades fatais. Os procedimentos da crítica social têm
como f inal idade cu idar dos incap azes, dos qu e não sabem
ver,
dos qu e não comp reendem o sent ido do qu e veem, dos
que não
sabem
t r a n s f o r m a r o
saber adquirido
em energ ia
mil i tante .
E os médicos p recisam
desses
doentes para cui-
47
8/11/2019 espectador emancipado.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/espectador-emancipadopdf 26/66
dar.
Para cuidar das incapacidades, precisam reproduzi-las
ind e f inid a me nt e . Ora , p ara g arant ir essa reprodução, basta
u m a
volta qu e , p eriodicamente , t ransforme saú de em d oen
ça e doença em saúde. Há quarenta anos, a ciência crítica
nos fazia
r ir
dos imbecis qu e tomava m imag ens p or realida
des e se deixavam assim seduzir por
suas
mensagens oc u l
tas. Entrementes, os "imbecis" foram instruídos na arte de
reconhecer a realidade por trás da aparência e as mensagens
ocultas nas imagens. E agora, evidentemente, a ciência crí
tica reciclada nos faz sorrir daqueles imbecis que ainda acre
ditam
haver
mensagens
ocultas nas imagens e uma realida
de d i s t in ta da aparência. A máquina pode funcionar assim
até o f im dos temp os, cap ita l izando em cima da im p otência
da crítica que desvenda a impotência dos imbecis.
Portanto, eu não quis acrescentar u m a volta a essas
reviravoltas qu e su stentam inf ind avelmen te o mesmo ma
q u i n a r i a M i n h a intenção foi sugerir a necessidade e a
d i r e
ção de u ma mu dança de
at itude.
N o
cerne
dessa
atitude há
a tentativa de desamarrar o elo entre a lógica emancipadora
da capacidade e a lógica crítica da captação coletiva.
Sair
d o
círculo é
p ar t i r
de outros pressupostos, de suposições segu
ramente insensatas do p onto de v ista da ordem de nossas
sociedades oligárquicas e da chamada lógica crítica que é
seu duble. Pressuporíamos assim que os incapazes são ca
pazes, que não há nenh um segredo oculto da máquina que os
mantenha encerrados em sua posição. Suporíamos que não
há nen hu m mecanism o fata l a t ransformar a real idade em
i m a g e m ,
n e n h u m a besta monstruosa a absorver todos os
desejos
e energ ias em seu estômag o, nenhu m a comu nidade
perdida por restaurar. O que há são simplesmente cenas de
dissenso,
capazes
de sobrevir em qualquer lugar, a qualquer
mo me nt o . Dissenso quer dizer uma organização do sensível
na qua l não há realidade oculta sob as aparências, nem re
g i m e
único de apresentação e interpretação do dado que
i m p o n h a a todos a sua evidência. É que toda situação é pas
sível de ser fendid a no
interior ,
reconfig u rada sob
ou tr o
re
gime de percepção e significação. Reconfigurar a paisagem
do
perceptível e do pensável é mo d if ica r o território do pos-
48
sível e a distribuição das capacidades e incapacidades. O
dissenso põe em jogo, ao mesmo tempo, a evidência do que
é percebido, pensável e factível e a divisão daqueles que s ão
capazes
de perceber, pensar e modificar as coordenadas do
m u n d o com um . É nisso que consiste o processo de subjeti-
vação política: na ação de capacidades não contadas que
vêm fender a unidade do dado e a evidência do visível para
desenhar u ma nova top og raf ia do p ossível . A in te lig ência
coletiva
da emancip ação não é a comp reensão de u m
p r o
cesso global de sujeição. E a coletivização das capacidades
investidas nessas cenas de dissenso. É a aplicação da capa
cidade de qualquer
u m ,
da qu alidade dos homens sem qu a
lidade. Como eu disse, nada mais que hipóteses insensatas.
N o entanto, acredito que há mais que procurar e mais que
encontrar hoje na investigação desse poder do que na inter
minável tarefa de
desmascarar
os fetiches ou na interminá
ve l demonstração da onipotência da besta.
49
8/11/2019 espectador emancipado.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/espectador-emancipadopdf 27/66
Paradoxos
d a a r t e p o l í t i c a
Passado o tempo da denúncia do paradigma moder
nista e do ceticismo dominante quanto aos poderes subver
sivos da arte, vê-se de novo a afirmação mais ou menos g e
neralizada de sua vocação para responder às formas de
dominação económica, estatal e ideológica. Mas vê-se t a m
bé m essa vocação reafi rmada assumindo formas d iverg en
tes, se não contraditórias. A l g u n s art i s tas transformam em
estátuas monumentais os ícones midiáticos e publicitários
para nos fazerem tomar consciência do poder desses ícones
sobre
nossa percepção; outros enterram silenciosamente
monumentos invisíveis dedicados aos horrores do século;
uns se empenham em mostrar-nos os
vieses
da represen
tação dominante das identidades subalternas, outros nos
propõem afinar o olhar diante das imagens de
personagens
com identidade f lu tu ante ou indecifrável ; alguns artistas fa
zem os banners e as m áscaras dos mani fes tantes que se in
surgem contra o poder g lobal izado, outros se
int ro d uze m
co m
falsas
identidades nas reuniões dos poderosos desse
m u n d o ou em
suas redes
de informação e comu nicação; al
guns fazem em museus a demonstração de novas máquinas
ecológicas, outros põem nos subúrbios
carentes pequenas
pedras ou discretos sinais de néon destinados a criar um
51
8/11/2019 espectador emancipado.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/espectador-emancipadopdf 28/66
ambiente novo, desencadeando novas relações sociais; um
transporta
para bairros desfavorecidos as obras-primas de
u m museu, outros enchem as salas dos museus do l ixo dei
xado por seus vi s i tantes ; um paga trabalhadores imigra ntes
para que, abrindo seu próprio túmulo, demonstrem a
v i o
lência do sistema salarial , enquanto outra vai trabalhar
como caixa de supermercado para empenhar a arte na prá
tica de restauração dos
elos
sociais.
A vontade de rep oli t izar a arte manifesta-se assim em
estratégias e práticas muit o diversas.
Essa
divers idade não
t radu z apenas a variedade dos meios escolhidos para
a t ingir
o mesmo
f i m . Reflete
uma incerteza mais fundamental so
bre o
f im
em vis ta e sobre a própria configura ção d o terreno,
sobre o que é a política e sobre o que a arte faz. Contudo,
essas
práti cas divergentes têm um p onto em co mu m: geral
mente consideram ponto pacífico certo modelo de eficácia: a
arte é considerada política porque mostra os estigmas da
dominação, porque r id icula r iza os ícones reinantes ou por
que sai de seus lugares próprios para transformar-se em
prática social etc. Ao
cabo
de um bom século de suposta
crítica da tradição mimética, é forçoso constatar que essa
tradição continua domina nte até nas formas que se q uerem
artística e politicamente subversivas. Supõe-se que a arte
nos torna revol tados quando nos mo stra
coisas
revoltantes,
que nos mobiliza pelo fato de mover-se para fora do ateliê
ou
do museu, e que nos transform a em oponentes do
siste
ma dominante ao se negar como elemento desse s istema.
Apresenta-se sempre como evidente a passagem da causa
ao efeito, da intenção ao resultado, a não ser que se suponha
o artista inábil ou o destinatário incorrigível .
A "pol í t i ca da arte" é ass im marcada por uma es tra
nha esquizofrenia. Art i s tas e c rí t icos nos convidam a s i tuar
o pensamento e as práticas da arte num contexto sempre
novo. Gostam de nos dizer que as estratégias artísticas de
v em
ser intei ramente
repensadas
no contexto do capitalis
m o tardio, da g lobal ização, do trabalho pós-fordis ta , da
comunicação informática ou da imagem
d ig i ta l .
M as co nt i
n u a m a va l idar em massa modelos de eficácia da arte que
52
talvez tenh am s ido abalados um século ou dois antes d e t o
da s
essas
novidades . Gostaria , po rtanto, de inverter a p ers
pectiva habitual e ganhar certa distância histórica para fa
zer algumas perguntas: a que modelos de eficácia obedecem
nossas
expectativas e nossos juízos em matéria de política
da arte? A que era
esses
mod elos pertencem?
Transporto-me então à Europa do século
X V I I I ,
no
momento em que o modelo mimético dominante fo i
contes
tado
de duas maneiras. Esse modelo supunha uma relação
de continuidade entre as formas sensíveis da produção ar
tística e as formas sensíveis segundo as quais são afetados
os sentimentos e os pensamentos de quem as recebe. A s
s i m , supunha-se que a cena teatral clássica deveria ser um
espelho ampl iador em que os
espectadores
eram convida
dos a ver, nas formas da ficção, os comportamentos, as v i r
tudes e os víc ios humanos . O teatro propunha lógicas de
situações que deveriam ser reconhecidas para a orientação
no mundo e modelos de pensamento e ação por
imit a r
o u
evitar.
Tartufo de Molière ensinava a
reconhecer
e a odiar os
hipócritas; Maomé de Voltaire ou Natã, o Sábio de Less ing, a
f u g ir do fanati smo e amar a tolerânc ia. Essa vocação
edi f i
cante
está aparentemente distante de
nossa
maneira de
pensar e sentir. N o entanto, a lógica causal que lhe subjaz
está muit o próxima de nós . Segundo essa lógica, o que ve
mos - num palco de teatro, mas também numa exposição
fotográfica ou numa instalação - são os signos sensíveis de
certo estado, dispostos pela vontade de um autor. Reconhe
cer
esses
s ignos é empenhar-se em certa
leitura
de nosso
m u n d o .
E essa
leitura
engendra um sentimento de p r o x i m i
dade ou de distância que nos impele a
int e rvir
na situação
ass im s ign i fi cada, da maneira desejada pelo autor. Daremos
a isso o nome de modelo pedagógico da eficácia da arte.
Esse modelo continua marcando a produção e o julgamento
de
nossos
contemporâneos. Sem dúvida já não acreditamos
na correção dos costumes pelo teatro. Ma s ainda gostamos de
acreditar que a representação de resina deste ou daquele ído
lo
publicitário nos erguerá contra o império midiático do es
petáculo ou que uma série fotográfica sobre a representação
53
8/11/2019 espectador emancipado.pdf
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dos colonizados pelo colonizador nos ajudará a
escapar
hoje
das ci ladas da representação dominante das identidades.
O r a ,
esse
modelo foi quest ionado já nos anos 1760
de duas forma s . A
pr ime ira
é a do ataque frontal. Penso na
Lettre sur les
spectacles [Carta
sobre os espetáculos] de Rous
seau
e na denúncia que está em seu cerne: a da pretensa l i -
ção de
mo ra l
d o
M isantropo
de Mo lière. Alé m do ataque às
intenções de um autor, sua crítica designava alguma coisa
mais f u n d a m e n t a l : a
rupt ura
da
l i n h a
reta suposta pelo mo
delo
representativo entre a performance dos corpos teatrais,
seu sentido e seu efeito. Molière dará razão à sinceridade
de seu misan tropo contra a hipocri s ia dos munda nos que o
cercam?
Dará razão ao respeito
deles pelas
exigências da
vid a em sociedade contra sua intolerância? Aí também o
problema aparentemente superado é fácil de transpor para a
nossa
atual idade: que
esperar
da representação fotográfica,
nas paredes das galerias, das vítimas
desta
ou daquela
i n i
ciativa de extermínio étnico: revolta contra seus carrascos?
Simpatia sem consequência pelos que sofrem? Cólera con
tr a os fotógrafos que fazem da afl i ção de populações uma
op ortu nidade de mani fes tação es tét i ca? O u indignação con
tr a seu olhar conivente, que naquelas populações só vê a
situação degradante de vítimas?
A questão é indecidível . Não que o artista
tivesse
i n
tenções duvidosas ou prática im p erfe ita, deixando assim de
acertar
na boa fórmula para
t ra nsmit ir
os sentimentos e
pensam entos apropriad os à situação representada. O pro
blema está na própria fórmula, na pressuposição de um con-
tinuum sensível entre a produção de imagens,
gestos
o u
palavras e a percepção de uma s i tuação que empenhe pen
samentos, sentimentos e ações dos
espectadores.
N ão é sur
preendente que o teatro tenha sido o
pr ime iro
a
perceber
qu e
estava
em crise, há mais de dois séculos, um modelo no
qu al
numerosos artistas plásticos ainda hoje acreditam ou
f i n g e m acreditar: é porque o teatro é o lugar onde se ex
põem nuamente as pressuposições - e as contradições - que
g u i a m certa ideia de eficácia da arte. E não é surpreendente
qu e O Misantropo tenha dad o a ocasião exemplar para isso,
54
visto que seu próprio tema aponta para o paradoxo. Como o
teatro poderia
desmascarar
os hipócritas, se a lei que o
rege
é a le i que g overna o comp ortamento dos hipócritas : a ence
nação por corpos vivos dos sinais de pensamentos e senti
mentos que não são seus? V i n t e anos depois da
Carta
sobre
os espetáculos,
um dram aturg o que ainda sonhava com o
teatro como instituição
mo ra l ,
Schil ler, fazia a demonstra
ção teatral de tais coisas opondo em Os
bandoleiros
o hipó
crita Franz Moor a seu i rmão Kar l , que leva ao ponto do
crime
o sublime da sinceridade revoltada contra a hipocrisia
do
m u n d o .
Q ual l i ção
esperar
do confronto de dois heróis
que, agindo "em conformidade com a natureza" , agem como
monstros? "Os
elos
da natureza estão rompidos", declara
Franz. A fábula de Os bandoleiros levava ao ponto de ruptura
a f igura ética da eficácia teatral . Dissociava os três elemen
tos cujo
ajuste
supostamente inseria essa eficácia na ordem
da natureza: a regra aristotélica de construção das ações, a
m o r a l dos exemplos à Plutarco e as fórmulas modernas de
expressão de pensamentos e sentimentos pelos corpos.
O problema então não se refere à validade
mo ra l
o u
pol ít i ca da m ensagem transm it ida pelo dispos i t ivo repre
sentativo.
Refere-se ao próprio
dispositivo.
Sua fissura põe à
mostra que a eficácia da arte não consiste e m
t ra nsmit ir
mensagens,
dar modelos ou contramodelos de comporta
mento ou ensinar a decifrar as representações. Ela
consiste
sobretudo em disposições dos corpos, em recorte de espaços
e tempos s ingulares que definem maneiras de ser , juntos
ou
separados, na frente ou no meio , dentro ou fora, perto ou
longe. É o que a polémica de
Rousseau
pun ha em evidência.
Mas ela imediatamente pu nha em curto-c i rcui to o
pensa
m e n t o dessa eficácia por meio de uma alternativa demasia
do s imples.
Pois
o que ela opõe às duvidosas l ições de
mo ra l
da representação é simplesmente a arte sem representação,
a arte que não
separa
a cena da performance artística e a da
vid a coletiva. Ao público dos teatros ela opõe o pov o em ato,
a
festa
c ívica em que a cidade se apresenta a si mesma, como
faziam os efebos espartanos celebrados por Plutarco. Rous
seau retomava assim a polémica inau g u ral de P latão, opon -
55
8/11/2019 espectador emancipado.pdf
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do à menti ra da mimese teatral a boa mim ese: a coreografia
da cidade em ato,
movida
po r
seu
princípio
espiritual inter
no , cantando e dançando sua própria unidad e. Esse para
d i g m a des igna o lugar da política da arte, mas para logo
depois subtrai r a arte e a política juntas. Substitui a du vido
sa pretensão
da
representação
a
co rr igir
os
costumes
e os
pensamentos por um mod elo arquiét i co. Arquiét i co no
sen
t ido de que os pensamentos já não são ob jeto de l ições
dadas por corpos o u imagens representados , mas e s tã o d i -
retamente encarnados em costumes, em m o d o s de ser da
comunidade. Esse modelo arquiético não deixou de acompa
n h a r o que chamamos de modernidade, como pensamento
de uma arte que
se
t o rno u f o r m a d e vida. Teve
seus
grandes
m o m e n t o s no pr ime iro quartel do século XX: a obra de arte
total, o coro do povo em ato, a s infonia
fut ur is t a
o u c o n s t r u
t ivis t a
do novo mun do mecânico. Essas formas f i caram bem
longe,
para trás.
Mas o que
continua perto
é o
m o d e l o
de
arte que deve su primir-se a si mesma, de teatro que deve
inverter
sua lógica, transformand o
o
espectador
em ator,
da
performance artística que faz a arte sair do museu para fazer
dela um
gesto
na
rua, ou anula dentro do próprio museu
a
separação entre arte e vida. O qu e se opõe então à pedagogia
incerta da mediação representativa é outra pedagogia, a da
imediatez ética. Essa polaridade entre duas pedagogias def i
ne o c írculo no qu al ainda hoje está frequentemente encerra
da boa parte da reflexão
sobre
a política da arte.
O r a ,
essa po laridade tende a
obscurecer
a existência
de uma tercei ra forma de eficácia da arte, que merece pro
priamente o n o m e de eficácia estética, pois é própria do re
gime estético
da
arte. Mas trata-se
de
uma efi các ia parado
xal:
é a
eficácia
da
própria separação,
da
d escontinuidade
entre as formas sensíveis da produção artística e as formas
sensíveis através das quais os
espectadores,
os leitores o u os
ouvintes se ap ropriam desta. A eficácia estética é a eficácia
de uma distância
e
de uma neutral ização.
Esse
ponto mere
ce esclarecimento. A "distância" estética na verdade f oi as
sociada por certa sociologia à contemplação extática da be
leza, que esconderia os f u n d a m e n t o s
sociais
da produção
56
artística e de sua rece pção e con trariaria , ass im, a consc iên
cia crítica da realidade e dos meios de agir nela. Mas essa
crítica deixa escapar
o que
c o n s t i t u i
o
princípio
dessa
d is
tância e de sua eficácia: a suspensão de qualquer relação
determinável entre a intenção do art i s ta , a forma sens ível
apresentada nu m lugar de arte , o olhar de um
espectador
e
u m estado
da
c o m u n i d a d e .
Essa
disjunção pode
ser
emble-
matizada, na época em que
Rousseau
escrevia s ua
Carta
so
bre os espetáculos, pela descrição aparentemente inofensiva
de uma escul tura antiga, descrição fei ta por Winck elmann
da estátua conhecida como Torso do Belvedere. A ruptura
qu e essa análise realiza em relação ao paradigm a represen
tativo consiste
em dois pontos essenciais. Primeiramente,
essa
es tátua es tá desprovida
de
t ud o
o
que,
no
m o d e l o
re
presentativo, possibil i tava d e f inir a
beleza
expressiva e o
caráter exemplar de um a f igura : não tem boca para
proferir
u m a
mensagem, ros to para
expressar
u m s e n t i m e n to , m e m
bros para comandar
ou
executar um a ação. Apesar disso,
W i n c k e l m a n n
decidiu
convertê-la
na
estátua do herói ativo
entre todos, Hércules, o herói dos Doze Trabalhos . Mas fez
dela um Hércules em repouso, acolhido depois de seus
t ra
balhos
no
â m a g o
dos
deuses.
E dessa
personagem ociosa
ele fez o representante exemplar da
beleza
grega, f i lha da
l iberdade grega - l iberdade perdida de um p o v o que não
conhecia a separação entre arte e
vida.
A es tátua exprime,
p ois, a vid a d e u m povo, como a festa d e Rousseau, m as esse
p ovo já foi subtraído, está presente apenas naquela f igura
ociosa,
que não expressa n e n h u m s e n t i m e n to e não propõe
nenhuma ação por imitar. Este
é o
s e g u n d o p o n t o :
a
estátua
está subtraída
a
todo
e
qualquer
continuum
que garanta uma
relação de causa e efeito entre a intenção de um art i s ta , um
m o d o
de recepção por u m públ ico e certa configuração da
vid a coletiva.
A descrição de Win ck e lma nn desenhava, ass im, o
modelo de uma eficácia paradoxal, que não passava p o r u m
suplemento de expressão ou de m o v i m e n t o , mas , ao contrá
rio, por uma subtração
-
por indiferença ou passividade
ra
dical - , n ã o p o r u m e n r a iz a m e n t o n u m a f o r m a d e vida, mas
57
8/11/2019 espectador emancipado.pdf
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pela distância entre duas estruturas da vid a coletiva. Esse
paradoxo Schil ler desenvolveria em
suas Lettres
sur 1'éduca-
tion esthétique de
Vhomme
[Cartas
sobre
a educação estética do
homem], def inin do eficácia estética como eficácia de uma
suspensã o. O " ins t into de jog o" próprio à experiênc ia neu
t ra l iza a oposição que tradic ionalm ente carac terizava a arte
e seu enraizamento social : a arte se definia pela imposição
ativa
de um a forma à matéria pass iva, e
esse
efeito a coadu
nava com um a hierarquia social na qual os hom ens de inte
l igênc ia ativa dom inava m os homens da pass ividade mate
rial .
Para
s imbol izar a suspensão desse acordo tradic ional
entre a es trutura do exerc íc io art í s t i co e a de um mundo
hierárquico, Schil ler já não descrevia um corpo sem cabeça,
mas uma cabeça sem corpo, a da Juno Ludovisi, caracteriza
da também por uma indi ferença radical , por uma ausênc ia
radical de preocupação, vontade e f inal idade, qu e ne ut ra l i
zava a própria oposição entre atividade e passividade.
Esse paradoxo define a configuração e a "política" da
quilo
que chamo regime estético da arte, em oposição ao
regime da mediação representativa e ao da imediatez ética.
Eficácia estética significa propriamente a eficácia da
sus
pensão de qualquer relação direta entre a produção das
for
mas da arte e a produção de um efei to determinado sobre
u m
públ ico determinado . A es tátua de que W inck elm ann
ou Schil ler nos falam f oi a f igura de um deus, o elemento de
u m culto religioso e cívico, mas já não o é. Já não i lustra
nenhuma fé e não s igni f i ca nenhuma grandeza soc ial . Já
n ão produz nenhuma correção dos costumes n e m n e n h u m a
mobilização dos corpos. Já não se
d ir ige
a nenhum públ ico
espec í fi co, mas ao públ ico anónimo indeterm inado dos
v i
sitantes de museus e dos leitores de romances. Ela lhes é
oferecida da mesma maneira como é poss ível
oferecer
u m a
V i r g e m
f lorent ina , u m a
cena
de cabaré holandês , uma t ige
la de frutas ou uma
banca
de peixes; da maneira como serão
oferecidos mais tarde os
ready-made,
mercadorias desvia
das ou cartazes descolados. Essas obras agora estão sepa
radas
das formas de
vid a
que haviam dado
ensejo
à sua pro
dução: formas mais ou menos míticas da vida coletiva do
58
p ovo
grego; formas modernas da dominação monárquica,
religiosa ou aristocrática que conferiam uma destinação aos
p rodu tos da s
belas-artes.
A
dupla
temp oral idade da es tátua
grega, que agora é arte nos museus porque não o era nas
cerimónias c ívicas de o utrora, define um a dupla relação de
separação e não separação entre arte e vid a . É por ter-se
constituído ao redor da estátua desvinculada de sua desti
nação
pr ime ira
que o museu - entendido não como s imples
construção, mas como fo rma de recorte do espaço comu m e
m o d o específico de
visibilidade
- poderá acolher mais tarde
qualquer outra form a de ob jeto do mu ndo profano, também
ass im desvinculado. É também por isso que em
nossos
dias
ele poderá prestar-se a acolher modos de circulação de in
formação e formas de discussão política que tentam opor-se
aos modos dominantes de informação e di scussão
sobre
as
questões comuns .
A rupt ura es tét i ca ins talou, ass im, uma s ingular
for
ma de eficácia: a eficácia de uma desconexão, de uma r u p
t ura
da relação entre as produções das habil idades artísticas
e dos f ins
sociais
definido s , entre formas sens íveis , s igni f i
cações que podem
nelas
ser lidas e efeitos que
elas
p o d e m
produzir. Pode-se dizer de outro modo: a efi các ia de um
dissenso. O que entendo por
dissenso
não é o confl i to de
ideias ou sentimentos. É o conflito de vários regimes de
sensorialidade. É por isso que a arte, no regime da
separa
ção estética, acaba por tocar na p olítica. Pois o dissenso es tá
no
cerne
da política. Política não é, em pr ime iro lugar,
exer
cício do poder ou
luta
pelo poder. Seu âmbito não é def in i
do, e m
pr ime iro
lugar,
pelas
leis e instituições. A prim eira
questão política é
saber
qu e
objetos
e que sujeitos são visa
dos por
essas
instituições e
essas
leis, que formas de relação
definem
prop riamente uma comu nidade pol ít i ca, que o b je
to s
essas
relações visam, que sujeitos são aptos a designar
esses
objetos e a discu ti-los. A política é a atividade que re
config u ra os âmbitos sensíveis nos quais se definem
objetos
comuns. E la rompe a evidência sens ível da ordem "na tur al "
que destina os indivíduos e os grupos ao comando ou à
obediência, à vid a pública ou à vida privada, votando-os so-
59
8/11/2019 espectador emancipado.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/espectador-emancipadopdf 32/66
bretu do
a certo t ipo de espaço ou tempo, a
certa
maneira
de ser, ver e dizer. Essa lógica dos corpos tem seu lugar
n u m a di s tr ibuição do comum e do privado, que é também
u m a distribuição do visível e do invisível , da palavra e do
ruído, é o que propus designar com o termo polícia. A polí
tica é a prática que rompe a ordem da polícia que antevê as
relações de poder na própria evidência dos dados sensíveis.
Ela o faz por meio da invenção de uma instânc ia de enun
ciação coletiva que
redesenha
o espaço das
coisas
comuns .
T al como Platão nos ensina a contrario, a política começa
quando há rupt ura na distribuição dos espaços e das com
petênc ias - e incompetênc ias . Começa quando seres des t i
nados a
permanecer
no espaço invisível do trabalho que
não d eixa tempo para fazer outra coisa tomam o tempo que não
têm para afi rmar-se copart i c ipantes de um mundo comum,
para mostrar o que não se via, ou fazer o uvir como palavra
a discuti r o comu m aqui lo que era
o uvid o apenas
como ruí
do dos corpos.
Se a experiência estética
toca
a política, é porqu e
t a m
bém se define como experiência de
dissenso,
oposta à adap
tação mimética ou ética das produções artísticas com fins
sociais. As produções artísticas perdem funcionalidade,
saem
da rede de conexões que lhes dava uma dest inação anteven
do seus efeitos ; são propostas nu m espaço-tempo ne ut ra l i
zado, oferec idas igualmente a um olhar que es tá
separado
de qualquer prolongamento sensório-motor definido. O r e
sultado não é a incorporação de um saber, d e u m a vir t ud e
ou
d e u m habitus. Ao contrário, é a dissociação de certo cor
po
de experiência. E
nisso
que a estátua do Torso,
mut i la d a
e
privada
de seu
m u n d o ,
emblematiza uma forma espec í f i ca
de relação entre a materialidade sensível da obra e seu efei
to . N i n g u é m r e s u m i u m e l h o r essa relação paradoxal do que
u m
poeta que, no entanto, pouco cuid o u de política. Penso
em Rilke e no poema por ele dedicado a outra estátua m u t i
lada, o Torso
arcaico
de A p o l o ; o poema termina ass im:
N e l a
não há lugar
Q ue não te
m i r e : precisas
m u d a r d e vida.
6
A vid a deve ser mudada porque a estátua mut i la d a
define uma superfície que " m i r a " o
espectador
de todos os
lugares; em outras palavras, porque a passividade da está
tu a
define uma efi các ia de género novo.
Para
compreender
essa frase enigmática, talvez seja preciso atentar para outra
his tória de membros e de olhar que ocorre num a outra
cena
bem di ferente. Durante a revolução
francesa
de 1848, um
jornal
revolucionário operário,
Le Tocsin des travailleurs,
p u
blicou um texto aparentemente "apolítico", a descrição da
jornada de trabalho de u m operário marceneiro, ocupado a
taquear um aposento por conta do patrão e do dono do lu
gar. Ora, o que está no
cerne
da descrição é a disjunção en
tr e
a atividade dos braços e a do olhar, que subtrai o marce
neiro a
essas
duas dependências.
"Acredi tando-se em casa, enquanto não termina o
aposento que está taqueando, ele gosta de sua disposição; se
a
janela
se
abre
para um
j a rd im
o u d o m i n a u m h o r i z o n t e
pi toresco, por um instante seus braços param e em pensa
mento ele plana para a espaçosa perspectiva, a fim fruí-la
melhor que os donos das habi tações vizinhas . "
1 2
Esse olhar que se
separa
dos braços e fende o espaço
da at ividade submissa destes para nela inserir o espaço de
u m a
inatividade l ivre define bem um
dissenso,
o choque de
dois regimes de sensorialidade. Esse choque marca uma
subversão da economia
" po l ic ia l"
das competênc ias . Apo-
derar-se da perspectiva é já d e f inir sua presença num espa
ço que não é o do "trabalho que não espera . É romper a
divisão entre os que estão submetidos à necessidade d o tra
balho dos braços e os que dispõem da l iberdade do olhar. E,
po r f im, apropriar-se desse olhar perspectivo
t ra d ic io na l
mente
associado
ao poder
daqueles
para os quais conver
gem as l inhas dos jardins à
francesa
e as do edifício social.
Essa
apropriação estética não se identifica com a i lusão de
que falam soc iólogos como
Bou rdieu .
Ela define a
co nst i t ui
ção de ou tro corpo que já não está "adaptado" à divisão po
l ic ial
de lugares, funções e competências sociais. Portanto,
12. G abr i e l G au ny , "L e
travaill
à l a j o u r né e " i n Le Phiíosophe plébéien, op. cif.,
pp .
45- 6 .
61
8/11/2019 espectador emancipado.pdf
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não é por erro que
esse
texto "apolítico" aparece n u m
jornal
operário durante um a primav era revoluc ionária. A poss ib i
lidade de uma voz coletiva dos operários
passa
então por
essa
rupt ura
estética, por essa dissociação das maneiras
operárias de ser. Pois para os dominados a questão nunca
fo i tomar consc iênc ia dos mecanismos de dominação, mas
criar um corpo votado a outra
coisa,
que não a dominação.
Como nos indica o mesmo marceneiro, não se trata de
a d quir ir conhecimento da situação, mas das "paixões" que
sejam
inapropriadas a essa s i tuação. O que p rodu z
essas
paixões , essas subversões na disposição dos corpos não é
esta ou aquela obra de arte, mas as formas de olhar corres
pondentes às formas novas de exposição das obras, às for
mas de sua existência separada. O que forma um corpo ope
rário revolucionário não é a
p int ura
revolucionária, quer ela
seja revolucionária no sentido de D a v i d , quer no de Dela
croix. É bem mais a possibil idade de tais obras serem vistas
no espaço neutro do museu ou mesmo nas reproduções das
enciclopédias por preço módico, onde são equivalentes às
que ontem contavam o poder dos reis, a glória das cidades
antigas ou os mistérios da fé.
O que func iona, em certo sentido, é uma vacânc ia. É
o que nos ensina u m a
iniciativa
artístico-política aparente
mente paradoxal que atualmente se desenvolve num dos
subúrbios de Paris cujo caráter explosivo se manifestou na
rebel ião do outono de 2005: u m daqueles subúrbios marca
dos pela relegação social e pela violência das tensões interé-
tnicas.
N u m a
dessas c idades , um grup o de art i s tas ,
Campe-
tnent
urbain [ A c a m p a m e n t o u r b a n o ] , montou um projeto
estético na contramão do discurso dominante, que explica a
crise
dos subúrbios" pela perda do elo social
causada
pelo
ind ivid ua l ismo de massa. Com o t í tulo "Je et N ous" [Eu e
N ó s ] , o
in tu i to
foi mobi l i zar uma parte da população para
criar um espaço aparentemente paradoxal : um espaço "to
talmente inútil , frágil e i m p r o d u t i v o " , um lugar aberto a
todos e sob a proteção de todos, mas que só possa ser ocu
pado por uma pessoa para a contemplação ou a meditação
solitária. O aparente paradoxo dessa
luta
colet iva por um
62
lu g ar único é simples de resolver: a possibil idade de estar
s o z i n h o
(a) aparece
como forma de relação social , a
d i m e n
são da vid a social que, precisamente, é imp ossibi l i tada pelas
condições de vid a naqueles subúrbios . Aquele lugar vazio
desenha
ao inverso uma comunidade de pessoas que te
n h a m a possibil idade de ficar sozinhas. Significa a i g u a l ca
pacidade dos membros de uma coletividade para ser um E u
cujo juízo
possa
ser atribuído a qua lquer
outro
e criar assim,
co m base no modelo da universal idade es tét i ca k antiana,
u m a nova espéc ie de N ós , uma comunidade es tét i ca ou dis -
sensual. O lugar vazio, inútil e impro d ut ivo define uma
rupt ura na distribuição n o r m a l das formas da existência
sens ível e das "competên c ias" e " incom petênc ias" a ela
v i n
c u la d a s. N u m f i lme l igado a
esse
projeto, Sylvie Blocher
m o s t r o u habitantes com camisetas os tentando uma
frase
qu e
cada pessoa
havia escolhido, portanto, algo como um
lema estético. Entre
aquelas frases,
l e m b r o - m e
desta,
em
que um a mulhe r velada diz com suas palavras o que o lugar
se propõe
fo rmula r :
"Q uero um a palavra vazia que eu
possa
preencher."
A pa r t ir daí , é possível enunciar o parado xo da relação
entre arte e política.
A r t e
e política têm a ver uma com a
ou tra como formas de dissenso, operações de reconfigura
ção da experiência comum do sensível . Há uma estética da
política no sentido de que os
atos
de subjetivação política
redefinem
o que é visível , o que se pode dizer dele e que
sujeitos são capazes de fazê-lo. Há uma política da estética
no sentido de que as novas formas de circulação da palavra,
de exposição do visível e de produção dos
afetos
determi
n a m
capacidades
novas, em
rupt ura
com a antiga
c o n f i g u
ração do possível . Há, assim, uma política da arte que pre
cede as políticas dos artistas, uma política da arte como
recorte singular dos
objetos
da experiênc ia comum, que
fu nciona
por s i mesma, independentemente dos
desejos
que
os artistas possam ter de servir esta ou aquela causa. O efei
to do museu, do l ivro ou do teatro tem a ver com as divisões
de espaço e tempo e com os modos de apresentação sensível
qu e i n s t i t u e m , antes de dizer respeito ao conteúdo desta o u
63
8/11/2019 espectador emancipado.pdf
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daquela obra. Mas esse efei to não define nem uma es traté
gia política da arte como tal nem uma contribuição calculá-
ve l da arte para a ação política.
A q u i l o que se
chama
política da arte, p ortanto , é o
entrelaçamento de lógicas heterogéneas . Há, em pr ime iro
lugar, aquilo que se pode chamar "política da estética", ou
seja, o efeito, no campo político, das formas de estruturação
da experiência sensível próprias a um regime da arte. No
regime estético da arte, isso quer dizer constituição de espa
ços neutralizados, perda da destinação das
obras
e sua
d is
p onibil idade
indi ferente, encavalamento das temporal ida
des heterogéneas, igualdade dos sujeitos representados e
a n o n i m a t o
daqueles
a quem as
obras
se d ir ige m.
Todas
es
sas propriedades definem o domínio da arte como domínio
de uma forma de experiência própria,
separada
das outras
formas de conexão da experiênc ia sens ível . Determinam o
complemento paradoxal dessa separação estética, a ausên
cia de critérios imanentes às próprias produções da arte, a
ausência de separação entre as
coisas
que pertencem à arte
e as que não pertencem. A relação dessas duas propriedades
define certo democratismo estético que não depende das in
tenções dos artistas e não tem efeito determinável em ter
mos de subjetivação política.
Nesse quadro, há, em segundo lugar, as estratégias
dos artistas que se propõem mudar os referenciais do que é
visível e enunciável , mostrar o que não era visto, mostrar de
o ut ro
jeito o que não era facilmente
visto,
correlacionar o
que não
estava
correlacionado, com o objetivo de
pro d uzir
rupturas no tecido sensível das percepções e na dinâmica
do s
afetos.
Esse
é o trabalho da ficção. Ficção não é criação
d e u m m u n d o imaginário oposto ao m u n d o real . É o traba
lh o
que realiza
dissensos,
que mud a os modos de apresenta
ção sensível e as formas de enunciação, mudando quadros,
escalas o u r i t mo s, construindo relações novas entre a apa
rência e a realidade, o singular e o comum, o visível e sua
significação. Esse t rabalho muda as coordenadas do repre-
sentável; mu da nossa percepção dos acontecimentos sensí
veis, nossa maneira de relacioná-los com os sujeitos, o modo
64
como nosso m u n d o é povoado de acontecimentos e figuras.
O romance moderno, ass im, real izou certa democrat ização
da experiência. Transgredindo as hierarquias entre sujeitos,
acontecimentos, percepções e
encadeamentos
que governa
v a m a ficção clássica, ele co nt r ibuiu para uma nova d i s tr i
buição das formas de vida possíveis para todos. Mas não há
princípio de correspondência determinado entre
essas
m i -
cropolíticas da redescrição da experiência e a constituição
de coletivos políticos de enunciação.
A s
formas da experiência estética e os modos da
f ic
ção criam assim uma paisagem inédita do visível , formas
novas de
individualidades
e conexões , r i tmos diferentes de
apreensão do que é dado,
escalas
novas . N ão o fazem da
maneira específica da atividade política, que cria formas de
enunciação coletiva (nós). M as f o r m a m o tecido dissensual
no qual
se recortam as formas de construção de objetos e as
possibil idades de enunciação subjetiva próprias à ação dos
coletivos políticos. Enquanto a política propriamente
dita
consiste
na produção de sujeitos que dão voz aos anónimos,
a política própria à arte no regime estético
consiste
na ela
boração do m u n d o sens ível do anónimo, dos modos do
isso
e do e u, do qu al emergem os mundos próprios do n ós políti
co. Mas, à medida que
passa
pela rupt ura estética,
esse
efei
to não se presta a nenhum cálculo determinável.
Fo i
essa indeterminação que pretenderam ul trapassar
as grandes metapolíticas que atribuíram à arte a tarefa de
transformação radical das formas da experiência sensível .
Elas quiseram fixar a relação entre o trabalho de produção
artística do isso e o trabalh o de criação política do nós, à cus
ta de fazer
deles
um único e mesmo
processo
de transfor
mação das formas da v ida, à
custa
de a arte assumir a tarefa
de se supr imir na realização de sua promessa histórica.
A "política da arte" é, assim, feita do entrelaçamento
de três lógicas: a lógica das formas da experiência estética, a
do trabalho ficcional e a das estratégias metapolíticas. Esse
entrelaçamento também
implica
u m e n t r a n ç a m e n to s i n g u
la r e contraditório entre as três formas de eficácia que tentei
d e f inir : a lógica representativa que quer pro d uzir efeitos
65
8/11/2019 espectador emancipado.pdf
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pelas
representações , a lógica estética que
produz
efeitos pela
suspensão dos f ins representativos e a lógica ética, que quer
qu e as formas da arte e as formas da política se id e nt i f ique m
diretamente umas com as outras.
A tradição da arte crítica quis articular essas três lógi
cas numa mesma fórmula. Tentou pro d uzir o efeito ético de
mobi l ização das
energias
encerrando os efeitos da distância
estética
na
continuidade
da
relação represen tativa. B recht
de u a essa tentat iva o nome em blemático de r fremdung
u m
tornar-se-es tranho, geralmente traduzido em francês
po r mtí *->Odis tanc iamento é a indeterminação
da relação estética repatriada para o
interior
da ficção repre
sentativa, concentrada em poder de choque de uma hetero
geneidade. Essa heterogeneidade - uma his tória es tapafúr
di a
de venda de u m falso elefante, de vendedores de couve-f
lor
dialog ando, e outras - devia pro d uzir dois efeitos: por um
lado, a estranheza sentida devia dissolver-se na compreen
sã o de
suas
razões ; por
outro,
devia
t ra nsmit ir
intacta a sua
força
de
afeto para transfor mar
essa
compreensão em força
de revolta. Tratava-se, pois, de
f u ndir
n u m ú n i co e mesmo
processo
o choque estético das sensorialidades diferentes e
a correção representat iva dos comp ortamentos , a separação
estética e a continuidade éti ca. Mas não há razão para que o
choque de dois modos de sensorialidade se t r a d u z a em
compreensão das razões das coisas, nem para que
esta
p r o
du za a decisão de m u d a r o
m u n d o .
Essa contradição que
habita o d isp osit ivo da obra crítica, porém, não a t o r n a sem
efeito.
Pode co nt r ibuir
para transformar o mapa do percep
tível e do pensável, para criar novas formas de experiência
do sensível , novas distâncias em relação às configurações
existentes
do que
é
dado. Mas
esse
efeito não pode
ser
u m a
transmissão calculável entre choque artístico sensível , to
m a d a de consc iência intelec tual e mobilização política. Não
se passa da vi são de um espetáculo à compreensão do m u n
do
e da compreensão intelec tual a uma decisão de ação.
Passa-se de um m u n d o sensível a
o ut ro
m u n d o sensível que
define outras tolerâncias e intolerâncias, outras capacidades
* E m p o r t u g u ê s , d i s t anc i am e n t o o u e s t r anham e nt o . [ N . d a T.]
66
e incapacidades. O que es tá em f u n c i o n a m e n t o são di sso
c iações : rupt ura de uma relação entre sentido e sentido, en
tr e u m
m u n d o
vi s ível , um modo de afeição, um regime de
interpretação e um espaço de possibil idades; rupt ura dos
referenciais sensíveis que poss ib i l i tavam a
cada
u m o seu
lu g ar numa ordem das coisas.
A distância entre as f inal idades da arte crítica e
suas
formas
reais
de
eficácia foi sustentável enquanto
o
sistema
de compreensão do m u n d o e as formas de mobil i zação po
lítica que ele supostam ente favorecia eram suficientem ente
fortes por si
mesmos
para suportá-la . Mostrou-se a nu a
pa rt ir
do momento em que esse
sistema
perdeu evidência e
essas formas perderam força. Os elementos " h e t e r o g é n e o s "
qu e o discurso crítico reunia na verdade estavam
int e r l iga
dos pelos esquemas interpretat ivos existentes. As perfor
mances
da arte crítica alimentavam-se da evidência de u m
m u n d o
dissensual. A pergunta então é: o que aconteceu
co m a arte crítica quando esse horizo nte dissensual perdeu
evidência?
O que lhe
ocorre
no
contexto contem porâneo
de consenso?
A palavra consenso s igni f i ca muit o mais que uma for
m a d e g o v e r n o " m o d e r n o " q u e dê
prioridade
à especialida
de , à arb i tragem e à negoc iação entre os "parceiros sociais
ou
os diferentes tipos de comunidade.
Consenso
s ign i f i ca
acordo entre sentido e sent ido, ou
seja,
e n t r e u m m o d o de
apresentação sensível e um reg ime de interpretação de seus
dados. Significa que, quaisquer que
sejam nossas
divergên
cias de ideias e aspirações,
percebemos
as
mesmas
coisas e
lhes
d a m o s o mesmo s igni fi cado. O contexto de g lobal iza
ção económica impõe
essa
i m a g e m
de
m u n d o
h o m o g é n e o
no
qua l
o problema de
cada
colet ividade nac ional é adaptar-
-se a u m d a d o sobre o qua l ela não tem poder, adaptar a ele
seu mercado de t rabalho e
suas
formas de proteção social .
Nesse
contexto,
desvanece-se
a evidência da
luta
contra a
dominação capitalista m u n d i a l que sustentava as formas da
arte crítica ou da contestação artística. As formas de
luta
contra a inevitabilidade m ercanti l são
cada
vez mais identi
ficadas a reações de g r u p o s que defendem seus privilégios
67
8/11/2019 espectador emancipado.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/espectador-emancipadopdf 36/66
arcaicos contra as exigências do progresso. E a extensão da
dominação capitalista global é equiparada a uma fatalidade
da c ivi l i zação moderna, da
sociedade
democrática ou do
ind ivid ua l ismo de massa.
Nessas
condições, o choque "crítico" dos elementos
heterogéneos já não encontra analogia no choque político
de mundos sensíveis opostos. Tende então a voltar-se para
si
mesmo. As intenções , os procedimentos e a retórica
ju s t i
ficativa do
d ispo si t ivo
crítico
quase
nã o
va r ia m
há décadas.
Hoje
como ontem , pretende-se denunciar o reinado da mer
cadoria, de
seus
ícones ideais e de
seus
detritos sórdidos por
meio
de es tratégias bem surradas : f i lmes publ ic i tários paro
diados,
mangas desvirtuados , sons aposentados de dance-
terias, personagens de telas publicitárias transformadas em
estátuas de resina ou pintadas no esti lo heróico do realismo
soviético, personagens da Disneylândia transformadas em
perversos
po l imo rfo s ,
montagens de fotografias vernacula-
res de interiores domésticos
semelhantes
a publicidades de
lojas de d epartamento,
lazeres
tristes e detritos da
c iv i l iza
ção consumista; instalações
gigantescas
de mangueiras e
máquinas a representarem o intes t ino da máquina soc ial
que absorve todas as
coisas
e as transform a em excremento
etc, etc. Esses di spos i t ivos continu am ocupando
nossas
g a
lerias e nossos museus, acompanhados de uma retórica que
pretende levar-nos assim a descobrir o poder da mercado
ria, o reino do espetáculo ou a porno grafia do poder. Mas ,
como ninguém em
nosso m u n d o
é tão distraído que
seja
preciso chamar-lhe a atenção para tais coisas, o mecanis
m o
g ira
e m torno de si mesmo e se vale da própria ind e ci -
dibilidade
de seu
d ispo si t ivo .
Essa
ind e cid ibi l id a d e
fo i ale-
g orizada de forma mon um enta l na obra de Charles Ray
d e n o m i n a d a Revolução. C ontrarrevolução. A obra tem toda a
aparência de um carrossel . Mas o artista mo d if ico u o
meca
n i s m o do carrossel . Desconectou do mecanismo rotativo de
con ju nto
o mecanismo dos cavalos, que andam para trás
muit o devagar enquanto o carrossel avança. Esse duplo m o
v i m e n t o confere sentido l i teral ao tí tulo. Mas esse título
também transmite o significado alegórico da obra e de seu
68
estatuto político: uma subversão da máquina do
entertain-
ment, que é indiscernível do funcionamento da própria má
quina .
O
d ispo si t ivo
al imenta-se então da equivalência en
tr e a paródia como crítica e a paródia da crítica.
Vale-se
da
indecidibilidade
da relação entre os dois efeitos.
O modelo crítico tende, assim, à autoanulação. Mas
há várias maneiras de extrair um balanço. A pr ime ira con
siste
e m
d i m i n u i r
a
carga
política posta
sobre
a arte, em re
d u z i r o choque dos elementos heterogéneos ao inventário
dos s ignos de pertença com um e
re d uzir
o peremptório po
lémico da dialética à leveza do jogo ou à distância da alego
ria.
N ão voltarei aqui às transformações que comentei em
o ut ro
l u g a r
13
. E m compensação, vale a pena demo rar-nos na
segunda, pois ela ataca o suposto pivô do modelo, a cons
ciência espectadora. Propõe e l iminar essa mediação entre a
arte
produtora
de dispositivos visuais e a transformação das
relações sociais. Os dispositivos da arte
nesse caso
apresen-
tam-se
diretamente como propostas de relações sociais.
Essa
é a
tese
popularizada por N icolas
B o urr ia ud
com o
nome de estética relacional : o trabalho da arte, em
suas for
mas novas, superou a antiga produção de objetos para ver.
A g o r a pro d uz
di retamente "relações com o
mund o " , po r
tanto
formas at ivas de comunidade.
Essa
produção hoje
pode englobar meetings, reuniões , mani fes tações , d i fe re n
tes tipos de colaboração entre
pessoas,
jogos,
festas,
lugares
de convívio, em sum a, o conjunto dos mod os do encontro e
da invenção de relaçõe s"
14
. O
interior
do espaço dos museus
e o exterior da vida social aparecem então como dois lugares
equivalentes de produção de relações. Mas essa banal ização
log o
mostra seu
avesso:
a dispersão das obras de arte na
multiplicidade das relações
sociais
só vale para ser vista,
seja
porque o ordinário da relação na
qua l
não há "nada a
v e r "
es tá exemplarmente alojado no espaço normalmente
destinado à exibição das obras, seja porque, inversamente, a
13. Remeto às anál i se s d e a l g u m as e x p o si ç õ e s e m bl e m át i c as dessa v i ra d a , ap r e
sentadas e m
L ÊS
Destin ães images ( L a Fabr i qu e , 2003) e M alaisc dont 1'esthétique
( G al i l é e , 2005).
14. Nicolas
B o u r r i a u d , Esthétiquc relationnelle,
L es
Presses
du réel , 1998, p. 29.
69
8/11/2019 espectador emancipado.pdf
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produção dos
elos sociais
no espaço públ ico é munida de
u m a forma artística espetacular. O pr ime iro caso é emble-
matizado
pelos célebres dispositivos de
R i r kr i t
Ti ravani ja
que põem à dispos ição dos vi s i tantes de uma exposição um
fog areiro ,
uma chaleira e saquinhos de sopa, destinados a
p romover
a ação, a reunião e a discussão coletiva, ou
mes
m o
uma reprodução de seu apartamento, onde é possível
t irar
u m a
soneca,
tomar u m banho de chuveiro ou preparar
u m a refeição. O segundo poderia ser ilustrado pelas roupas
transformáveis de Lucy Orta, disponíveis para que as pes
soas
se troquem, se for o
caso,
em tendas de socorro, ou
para l igar di retamente os part i c ipantes de uma mani fes ta
ção coletiva, como o surpreenden te disp ositivo inflável que
não se l imit a va a interlig ar as combina ções, decoradas de
números , de um gru po de mani fes tantes di spostos em qua
drado, mas também exibia a própria palavra l igação (link)
para s igni f i car a unidade daquela
multiplicidade.
O t o r n a r -
-se-ação ou tornar-se-elo que su bst i tu i a "obra vi s ta" só tem
eficácia em ser visto como saída exemplar da arte para fora
de si mesma.
Esse vai-e-vem entre a saída da arte para a realidade
das relações sociais e a exibição que, só ela, garante sua
e f i
cácia simbólica era muit o bem mani fes tada pela obra de um
art i s ta
cubano, René Francisco, apresentada há quatro anos
na Bienal de São Paulo*. Esse art i s ta u t i l i zou o dinheiro de
u m a fundação artística para uma pesquisa sobre as condi
ções de
vida
n u m b a i r ro
carente
e , com outros amigos art i s
tas , dec idiu reformar a
casa
de um a idosa daquele b ai rro. A
obra nos mostrava um a tela de tule
sobre
a q u a l
estava
i m
pressa a i m a g e m d e
p er f i l
da mu lher voltada para um m o n i
to r
no qual um vídeo exib ia os art i s tas trabalhando como
pedreiros, pintores ou
encanadores.
O fato de essa in terven
ção ter ocorrido num dos úl t imos países do mu ndo a
identi -
f i car-se com o com unismo evidentemente prod uzia um
conflito entre dois tempos e duas ideias de realização da
arte . Criava um su cedâneo da grande vontade expressa por
Malevitch no tempo da revolução soviética: não fazer qua-
* Bienal de 2004. [ N . d a T . ]
7
dros, mas construir di retamente as formas da vid a nova.
Essa
construção hoje es tá red uzida à relação ambígua entre
u m a
política da arte provada pela ajuda à população em di
ficuldades e uma política da arte simplesmente provada
pelo ato de sair dos lugares da arte, por sua intervenção no
real. Mas a saída para o real e o serviço para os carentes só
ganham sentido quando sua exemplaridade é mani fes tada
no espaço do museu.
Nesse
espaço, o olhar voltado para o
relato visua l dessas saídas não se di s t ing ue do olhar voltado
para os grandes
mosaicos
ou tapeçarias com os quais nu
merosos
art i s tas hoje representam a mul t idão de a nónimos
ou o âmbi to da vid a deles. Tal como a tapeçaria de mil e
seiscentas fotografias de identidade costuradas juntas pelo
art i s ta chinês Bai Yi luo num conjunto que quer
evocar
- eu
o cito - "os
elos
del i cados que unem as famí l ias e as co
munidades" .
O curto -c i rcui to da arte que cria di retamente
formas de relações em vez de formas plás t i cas é , a f ina l , o
cu rto-circu ito da obra que se apresenta como realização an
tecipada de seu efeito. Supõe-se que a arte una as
pessoas
da mesma maneira como o art i s ta costurou juntas as fo t o
grafias que ele pegara num estúdio em que trabalhava. A
assemblage das fotografias assume a função de uma escul tu
ra
m o n u m e n t a l que torna presente hic et nunc a comunidade
humana que é seu objeto e seu objetivo. O conceito de me
táfora, onipresente hoje na retórica dos comissários de ex
posição, tende a conceitualizar essa identidade antecipada
entre a apresentação de um dispos i t ivo sens ível de form as ,
a manifestação de seu sentido e a realidade encarnada des
se sentido.
O
sent imento
desse
impasse al imenta a vontade de
dar à política da arte u m objetivo que não seja a produção de
elos sociais em geral , mas uma subversão de elos sociais
b e m d e t e r m i n a d o s ,
aqueles
que prescrevem as formas do
mercado, as dec i sões dos dom inantes e a comunicação m i-
diática. A ação artística identifica-se então com a produção
de subversões tópicas e simbólicas do sistema. Na França,
essa es tratégia foi emblematizada pela ação de u m art i s ta ,
M a t t h i e u
L aurette , que dec idiu tomar ao pé da letra as pro-
71
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messas dos fabricantes de produtos alimentícios: "Sua
satis
fação ou seu d inhe iro de volta." Ass im, ele começou a com
prar
esses
produtos sistematicamente nos supermercados e
a
expressar
insatisfação para receber o
d inhe iro
de
volta.
U t i l i z o u
os estímulos da televisão para incitar todos os con
sumidores a seguir seu exemplo. Como consequência, a ex
posição int i t ula d a
Nossa
His tória" no Espaço de A r t e C o n
temporânea de
Paris
em
2006
apresentava
seu trabalho na
f o r m a de uma instalação que compreendia três elementos:
u m a escultura de cera que o mostrava a empu rrar um carri
nho atulhad o de mercadorias ; uma parede coberta por
telas
de tevê, todas rep rodu zindo sua intervenção televisionada;
e ampliações fotográficas de recortes de
jornal
que relata
v a m su a iniciativa. Segundo o comissário da exposição, essa
ação artística
inve r t ia
ao mesmo tempo a lógica comerc ial
de aumento do valor e o princípio do show televisionado.
Mas a evidência
dessa
viravolta teria sido muit o menos per
ceptível se
houvesse
uma única tela de tevê em vez de nove,
e se as fotografias de
suas
ações e dos comentários dos jor
nais t ivessem dimensões normais . A real idade do efei to
t a m b é m
estava
antec ipada na monumental ização da
i m a
g e m . Essa é uma tendência de mui tas
obras
e exposições
hoje em dia, que leva
certa
forma de at ivi smo art í s t i co de
volta à antiga lógica representativa: a importância do lugar
ocupado no espaço do museu
serve
para provar a realidade
de um efeito de subversão na ordem social , assim como a
monum ental idade dos quadros hi s tóricos provava outrora a
grandeza dos príncipes cujos palác ios ornavam. A c u m u -
lam-se assim os efeitos da ocupação escultural do espaço,
da performance
viva
e da dem onstração retórica. Ao
encher
as
salas
dos museus de reproduções de objetos e imagens do
m u n d o cot idiano ou de relatos monumental izados de suas
próprias performances, a arte ativista imit a e antecipa seu
próprio efeito, com o risco de tornar-se a paródia da eficácia
qu e reivindica.
O
mesmo risco de eficácia
espetacular
encerrada em
sua própria demonstração apresenta-se quando os artistas
assumem a tarefa específica de
" inf i l t ra r -se "
na s
redes
de
72
dominação. Penso aqu i nas performances dos Yes Me n que,
co m falsas identidades , se ins inua m em praças-fortes da do
m i n a ç ã o : congressos de
gente
de negóc ios , onde um
deles
mist i f ico u a plateia apresentando um inverossímil equipa
mento de vigilância, comités de campanha de
George
Bush
ou programas de televisão. Sua performance mais espeta
cular refere-se à catás trofe de Bhopal na índia. U m
deles
conseguiu
fazer-se passar
na BBC por u m dos responsáveis
da companhia Dow Chemical , que naquele ínterim havia
a d quir id o
a empresa responsável , U n i o n Carbide. Com essa
identidade, anunciou em horário nobre que a companhia
reconhecia
sua responsabil idade e comprometia-se a inde-
n i z a r as vítimas. Duas horas depois, evidentemente, a com
panhia reagia e declarava que só t i n h a responsabil idade
perante seus acionistas. Era exatamente
esse
o efeito busca
do ,
e a demonstração era perfei ta .
Resta saber
se essa per
formance bem-sucedida de mis t i fi cação da mídia tem o po
der de provocar formas de mobilização contra as potências
internacionais do capital . Ao fazer o balanço de sua i nf i l t ra
ção dos comités de campanha para a eleição de George Bush
em 2004, os Yes M en falavam de um sucesso
total
que fora
a o m e s m o t e m p o u m fracasso total: sucesso total porque
t i -
n h a m
mis t i f i cado seus adversários ao assumirem as razões
e as maneiras deles. Fracasso t o t a l porque a ação
deles
fora
perfei tamente indiscern íveF. Só era discernível, realmente,
fora da situação na qu al se inseria, exposta em ou tros luga
res como performance de artistas.
Esse é o problema inerente a tal política da arte como
ação direta no coração da realidade da dominação. Essa
saída da arte para fora de seus lugares assume ares de
demonstração s imból ica,
semelhante
às que a ação política
fazia há algum tempo quando mirava alvos s imból icos do
poder
do adversário. Mas precisamente o golpe desferido no
adversário por uma ação simbólica deve ser julgado como
ação política: não se trata então de saber se ela é uma saída
bem-sucedida da solidão artística em direção à realidade
15. In t e r v e nç ão d o s Y e s M e n na c o nf e r ê nc i a Klartext Der Status des politischen in
aktueller Kunst und Kultur,
B e r l i m ,
16 de janeiro de 2005.
73
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das relações de poder, mas sim que forças ela dá à ação co
letiva
contra as forças da dominação que toma como alvo.
Trata-se
de saber se a capacidade então exercida significa a
afirmação e a ampliação da capacidade de qualquer um.
Essa questão é obliterada quando se cruzam os critérios de
juízo ao se ident if icarem di retamen te as performances in d i
viduais dos vi rtuoses da infi l tração com uma nova forma
política de ação coletiva. O que
sustenta
essa
identificação é
a visão de uma nova era do capitalismo em que a produção
materia l e ima t e r ia l , o saber, a comunicação e a p e r f o r m a n
ce artística se f u n d i r i a m n u m ú n i c o e m e s m o
processo
de
realização do poder da inteligência coletiva. Mas, assim
como há mu itas formas de realização da inteligência coletiva,
há também muitas formas e cenas de performance. A vi são
do
novo artista imediatamente político pretende opor a rea
lidade da ação política aos simulacros da arte encerrada nos
recintos dos museus. Mas, ao revogar a distância estética
inerente à política da arte, o efeito talvez seja inverso. Ao el i
m i n a r
a distância entre política da estética e estética da polí
tica,
e la també m el im ina a s ingularidade das operações por
meio das quais a política cria uma cena de subjetivação pró
pria. E, paradoxalmente,
exagera
a visão tradicional do art i s
ta como virtu ose e estrategista, ao identificar de novo a efe-
t ividade da arte com a execução das intenções dos artistas.
A
política da arte, portanto, não pode resolver seus
paradoxos na forma de intervenção fora de seus lugares, no
" m u n d o real " . N ão há mundo real que seja o exterior da
arte . Há
pregas
e dobras do tec ido sens ível comum nas quais
se jungem e desjungem a política da estética e a estética da
política. Não há real em si , mas configurações
daqu ilo
que é
dado como nosso real , como o objeto de nossas percepções,
de
nossos pensamentos
e de nossas intervenções. O real é
sempre objeto de uma ficção, ou
seja,
de uma construção do
espaço no qu al se en trelaçam o visível , o dizível e o factível .
É a ficção dominante, a ficção consensual, que
nega
seu ca-
ráter de ficção
fazendo-se passar
por realidade e traçando
um a l i n h a de divisão simples entre o domínio desse real e o
das representações e aparências, opiniões e utopias. A ficção
74
artística e a ação política sulcam, f ra t ura m e mult ipl ica m
esse
real de um mo do polémico. O trab alho da pol ít i ca que
inventa
sujeitos novos e
int ro d uz objetos
novos e ou tra per
cepção dos dados comuns é também um trabalho f i ccional .
Po r isso, a relação entre arte e política não é uma
passagem
da ficção para a realidade, mas uma relação entre duas ma
neiras de
pro d uzir
ficções. As práticas da arte não são ins
t r u m e n t o s que forneçam form as de consc iênc ia ou
energias
mobi l izadoras
em proveito de uma política que lhes seja ex
terior. M a s t a m p o u c o saem de si
mesmas
para se tornarem
formas de ação pol ít i ca colet iva. Contr ibuem para
desenhar
um a paisage m no va do visível , do dizível e do factível . For
ja m contra o consenso outras formas de senso c o m u m " ,
f o r m a s d e u m senso comu m polémico.
A
involução da fórmula crítica não deixa lugar apenas
à alternativa da paródia
desencantada
ou da autodemons-
tração at ivi s ta . O refluxo de certas evidências abre t a m b é m
caminho para uma mul t idão de formas dissensuais: as que
se empenham em mostrar o que
permanece
invisível na su
posta enxurrada de imagens ; as que põem em ação, com
formas inéditas, as capacidades de representar, falar e agir
que pertencem a todos; as que deslocam as l inhas de
d i v i
são entre os regimes de apresentação sensível , as que
reexa
m i n a m
e reconvertem em ficção as políticas da arte. Há l u
gar para a multiplicidade das formas de uma arte crítica,
entendida de ou tro mo do. Em seu sentido o r ig ina l , "crítica"
quer dizer : o que
concerne
à separação, à discriminação.
Crítica é a arte que desloca as l inhas de separação, que in
t ro d uz
separação no tecido consensual do real e, por isso
mesmo, embaralha as l inhas de separação que configuram
o campo consensual do que é dado, como a l i n h a qu e sepa
ra o documentário da ficção: distinção em géneros que se
para princ ipalmente dois tipos de hum anidade, a que sofre
e a que age, a que é objeto e a que é sujeito. A ficção é para
os israelenses e o documentário, para os palestinos, dizia
i ronicamente Godard. É essa a l i n h a embaralhada por inú
meros artistas palestinos ou
libaneses
- mas também i srae
lenses
-, que, para tratar da atualidade da ocupação e da
75
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g u erra ,
tomam formas ficcionais a
pa r t ir
de diversos géne
ros, populares ou sofisticados, ou criam falsos arquivos. Po
d em ser
chamadas
de críticas as ficções que assim questio
n a m as l inhas de separação entre regimes de expressão,
tanto
quan to as performances que " inv ertem o cic lo de
degradação
pro d uzid o
pela vi t imização"
16
, mani fes tando as
capacidades de falar e representar que pertencem àqueles e
àquelas que dada
sociedade
relega às
suas
margens "pass i
vas". Mas o trabalho crítico, o trabalho
sobre
a separação é
também o que examina os l imites próprios à sua prática,
que se
recusa
a antecipar seu efeito e leva em conta a sepa
ração estética através da qua l
esse
efeito é pro d uzid o . É, em
suma, um trabalho que, em vez de pretender
supr imir
a
passividade do espectador, reexamina a sua atividade.
Gostaria de
i lustrar
essa
frase
com duas ficções que,
da própria distância em que estão
sobre
a superfície plana
de um a tela , pod em ajudar-nos a reform ular a questão das
relações entre os poderes da arte e a capacidade política da
maioria .
A
pr ime ira
é o vídeo de
A n r i
Sala,
Dammi
i Colori.
Este
põe de novo em cena u m a f igura mestra entre as polí
ticas da arte: a reflexão sobre a arte como construção de for
mas sensíveis da
vid a
coletiva. Há algu ns
anos,
o prefeito da
capital albanesa,
Ti rana, que é pintor,
decidiu
m a n d a r r e
pint a r
de cores vivas as
fachadas
dos prédios de sua cidade.
A intenção era não só transform ar o ambiente v i ta l dos ha
bi tantes , mas também provocar um
senso
estético de apro
priação colet iva do espaço, quando o desmantelamento do
regime comunis ta dava lugar apenas a expedientes i n d i v i
duais. Era, porta nto, um projeto que se inscrevia no pro lo n
gamento do tema schil leriano da educação estética do ser
h u m a n o
e de todas as formas dadas a
essa
"educação" pelos
artistas das
Arts
and Crafts, d o
Werkbund
o u d o
Bauhaus:
a
criação de um a maneira apropriada de habi tar em conjunto
o m und o sens ível, por meio do sentido da
l inha ,
d o
vo lume ,
da cor ou do ornamento. O vídeo de A n r i Sala deixa-nos
16. E nt r e v i s t a c o m J o hn Mal p e d e ,
w w w . i n m o t i o n m a g a z i n e . c o m / j m l
h t m l ( John
M a l p e d e
é
d i r eto r
d o L o s Ang e l e s P o v e r t y D e p ar t m e nt , i ns t i t u i ç c ão t e at r al
a l ter n a t iv a
qu e , i r o ni c am e nt e , r e t o m o u as famosas i n i c i a i s L A
P D ) .
76
o uvir o prefeito artista falar do poder da cor para antecipar
u m a
comunidade e fazer da capital mais pobre da Europa a
única onde todos falam de arte nas ruas e nos cafés. Mas,
também, os longos travellings e os doses es t i lhaçam a exem
plaridade dessa
c idade estética, põem à mostra outras su
perfícies coloridas, outras cidades que são confrontadas com
as palavras do orador. A câmera, fazendo desfi lar
fachadas
azuis, verdes, vermelhas, amarelas ou alaranjadas,
parece
levar-nos a visitar um projeto urbanístico em implantação.
O u t r a s
vezes,
e la põe um a mul t idão indi ferente a atravessar
aquela cidade-modelo, ou então se abaixa para confrontar a
p olicromia feérica das paredes à lama das calçadas esbura
cadas e
cobertas
d e d e t r it o s . A l g u m a s vezes também apro-
xima-se e transform a os quadrados coloridos em áreas
abs
traías , indi ferentes a qualquer projeto de transformação da
vida. A superfí c ie da obra organiza ass im a tensão entre a
cor projetada pela vontade estética nas fachadas e a cor res
tituída
pelas
fachadas. Os recursos de uma arte da distância
servem para expor e problematizar a política que quer
f u n
di r arte e
vid a
n u m ú n i c o
processo
de criação de formas.
É outra função da cor e outra política da arte que se
encontram no
cerne
dos três fi lmes (Ossos, N o
quarto
da
Vanda e Juventude em marcha) que o cineasta português Pe
dr o Costa
dedicou a um pequeno g rup o de margina is l i sbo
etas e imigran tes cabo-verdianos , que f l u t u a m entre drogas
e b icos no "bai rro de lata" de Fontainhas . Essa t r i lo gia é a
obra de um art i s ta profundamente engajado. N o entanto,
nem lhe
passa
pela cabeça dar uma mãozinha no habi tat
dos mal-alojados, tampouco apresentar alguma explicação
para a lógica económica e estatal global que governa a exis
tência do "bairro de lata" e depois a sua extinção. E, contra
r iando a m o r a l aceita, que nos veda "estetizar" a miséria,
Pedro
Costa parece
aprovei tar a oportun idade para valor i
zar os recursos artísticos apresentados por aquele cenário
de vida
m i n i m a l i s t a .
U ma g arrafa de água de plás t ico, uma
faca, um copo, alguns objetos largados sobre u m a mesa de
madeira branca num apartamento invadido, mais a luz ra
sante sobre
o tam po, aí es tá a op ortunidad e para uma bela
77
8/11/2019 espectador emancipado.pdf
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n a t u r e z a - m o r t a .
Q uando a noi te cai naquele alojamento
sem eletricidade, duas
pequenas
velas
sobre
a mesma mesa
darão à conversa miserável ou à sessão de heroína na veia
certo ar de claro-escuro holandês do Século de
O u r o .
E o
trabalho das
escavadeiras
demol indo o bai rro é a o p o r t u n i
dade de pôr em destaque, com o desmoronamento das ca
sas, os blocos esculturais de concreto ou largas paredes con
trastantes em
cores
a zul ,
rosa, amarelo ou verde. Mas
essa
"es tet izaçã o" s ig ni f i ca jus tamente que o terri tório intelec
t u a l e vi sualmente banal izado da miséria e da margem é
devolvido à sua potencialidade de riqueza sensível compar-
ti lhável. A exaltação das áreas coloridas e das arquiteturas
s ingulares pelo a rt i s ta corresponde, porta nto, es tri tamente
sua exposição àquilo que ele não domina: as idas e vindas
da s
pessoas
entre os lugares fechados da droga e o exterior
onde elas se entregam a diversos pequenos
afazeres,
mas
também a lentidão, as aproximações, as paradas e as reto
madas da fala por meio da
q u a l
os jovens drogados extraem
da
tosse
e do abatimento a possibil idade de dizer e
pensar
sua própria história, de pôr a vid a em
exame
e de, assim,
retomar sua posse, por pouco que seja. A natureza morta
l u m i n o s a , composta com uma garrafa de plás t i co e alguns
objetos
reaproveitados
sobre
a mesa de madeira branca de
u m apartamento
inva d id o
es tá ass im em harmonia com a
obstinação "estética" de um daqueles invasores que, a des
peito
dos protestos de seus companheiros ,
l i m p a
m e t i c u l o
samente com sua
faca
as manchas da mesa fadada aos den
tes da escavadeira.
Pedro
Costa
põe assim em ação uma política da esté
tica tão afastada da visão sociológica segundo a
q u a l
"polí
t ica"
da arte significa explicação de uma situação - ficcional
ou real - pelas condições sociais, quanto da visão ética que
pretende subst i tui r a " impotênc ia" do olhar e da palavra
pela ação direta. Ao contrário, o que está no
cerne
de seu
trabalho é o poder do olhar e da palavra, o poder do sus-
pense qu e eles i n s t a u r a m .
Pois
a questão política é, em
pr i
m e i r o lugar, a capacidade de corpos quaisquer se apodera
r e m de seu destino. Por isso,
Costa
se concentra na relação
78
entre a impotênc ia e o poder dos corpos , no co nfronto das
vidas com aquilo que elas p o d e m . Coloca-se assim no nó da
relação entre uma política da estética e uma estética da po
lítica. Mas também
assume
sua separação, a distância entre
a proposta artística que confere potencialidades novas à
paisagem da "exclusão" e os poderes próprios da subjetiva-
ção política. À recon cil iação estética que N o quarto d a Vanda
parecia
encarnar-se
na relação entre a bela nature za-m orta
e o esforço dos corpos a recuperarem sua voz, o f i lme se
g u inte ,
Juventude
em marcha, opõe uma c i são nova. Aos
marg inais regenerados, reconvert idos - um a, mãe de famí
li a bem falante, outro, empregado-modelo - e le confronta a
s i lhueta trágica de Ventura, imigrante cabo-verdiano, ex-
-p edreiro incapac i tado para o trabalho por uma queda do
andaime e para a vid a social
n o r m a l
por uma fi ssura men
tal .
Com Ventura, sua si lhueta alta, seu olhar selvagem e
sua fala
lapidar,
o in tu i to não é
oferecer
o documentário de
u m a vid a
difíci l ; trata-se, ao mesmo tempo, de colher toda a
riqueza de experiência contida na história da colonização,
da rebelião e da imigração, mas tam bém de enfrentar o in -
comparti lhável, a fissura que, no
f im
dessa história, separou
u m indivíduo de seu mundo e de si mesmo. Ventura não é
u m
" t r a b al h a d o r i m i g r a n t e " , u m h u m i l d e a quem caberia
devolver a dignidade e o gozo do mundo que ele a judou a
constru ir .
Ele é uma espécie de errante sublime, de Édipo ou
de rei Lear, que interrompe por si mesmo a comunicação e o
intercâmbio e expõe a arte a confrontar seu poder e sua
i m
potência. É o que o f i lme faz quando enquadra uma es tra
n h a
vis i t a
ao museu entre duas leituras de uma carta de
amor e de exí l io. N a fundação Gulbenk ian,
cujas
paredes
Ventu ra a judou outrora a construir , sua s i lhueta negra, e n
tr e
u m
Rubens
e u m V a n D y c k ,
aparece
como um corpo
estranho, u m intruso del i cadamente em purrado para a saí
da por um compatriota que encontrou refúgio naquele
" m u n d o ant igo " , mas também um a interrogação fei ta àque
las áreas coloridas
encerradas
e m m o l d u r a s ,
incapazes
de
devolver aos que as olham a riqueza sensível de sua expe
riência. N o alojamento miserável onde o
cineasta soube
c o m -
79
8/11/2019 espectador emancipado.pdf
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po r outra natureza-morta com quatro garrafas diante de
u m a
janela, Ventura lê uma carta de amor endereçada àque
la q ue f icou na terra, carta em que o ausente fala do trabalho
e da separação, mas tam bém de um reencontro próximo que
embelezará duas vidas por
vint e
o u t r in ta
anos,
do sonho de
oferecer à amada cem m i l c igarros , ves t idos , um carro, uma
casinha de lava e um buque de quatro tostões, e do esforço
de aprender a
cada
dia palavras novas, palavras bonitas, ta
lhadas na medida única de dois seres como um pi jama de
seda f ina . Essa carta que
serve
de refrão ao f i lme aparece
p rop riamente
como a performance de Ventura, performan
ce de uma arte da divisão, que não se
separa
d a v ida, da
experiência dos
deslocados
e de seus meios de preencher a
ausência e aproximar-se do ser amado. Mas a pureza da
oposição entre a grande arte e a arte viva do povo logo se
embaralha. Pedro
Costa
compôs a carta a
partir
de duas
fontes diferentes: verdadeiras cartas de emigrantes e uma
carta de poeta, uma das últimas
cartas
enviadas por Robert
Desnos
a
Y o u k i
de u m campo de concentração em Flõha, no
caminh o que o levava a Terezin e à morte.
A arte l igada à v ida, a arte tecida de experiências
compart i lhadas do trabalho da mão, do o lhar e da voz, essa
arte só
existe
n a f o r m a desse
patchwork.
O c inema não pode
ser o equivalente da carta de amor ou da música comparti
lhada dos pobres. Também não pode ser a arte que simples
mente devolve aos hum ildes a riqueza sensível de seu
mund o .
Ele precisa
separar-se,
consentir em ser apenas a su perfície
em que um art i s ta procura
t ra d uzir
em figuras novas a ex
periência daqueles que foram relegados à margem das cir
culações económicas e das trajetórias sociais. O
f i lme,
que
põe em questão a separação estética em nome da arte do
p ovo continua sendo um f i lme, um exercício do olhar e da
audição. Contin ua sendo u m trabalho de espectador, en de
reçado na superfície plana de uma tela a outros
espectado
res, cujo número e diversidade será estritamente restringido
pelo sistema de distribuição existente, arrolando a história
de Vanda e de Ventura na categoria dos "fi lmes de festival"
ou de obras de museu. Filme político hoje em dia talvez
8
também queira dizer f i lme que se faz em lugar de
outro,
f i lme
que mostra sua distância com o modo de circulação de
palavras,
sons,
imagens , gestos e afetos, em cujo âmago ele
pensa
o efeito de
suas
formas .
A o citar essas duas obras, eu não quis propor modelos
daqu ilo que deve ser arte política hoje.
Espero
ter mostrado
sufic ientemente que tai s modelos não exi s tem. C inema, fo
tog raf ia ,
vídeo, instalações e todas as formas de
p e r f o r m a n
ce do corpo, da voz e dos
sons
con tribuem para reconstruir
o âmbito de nossas percepções e o dinamismo de nossos
afetos. Com isso, abrem passagens possíveis para novas for
mas de subjetivação política. Mas nenhum
deles
pode evitar
a rupt ura estética que
separa
os efeitos das intenções e veda
qualquer
via larga para uma realidade que estaria do outro
lado
das palavras e das imagens. Não há
o ut ro
l ado. Ar t e
crítica é uma arte que sabe que seu efeito político passa pela
distância estética. Sabe qu e esse efeito não pode ser garan
tido, que ele sempre comporta uma parcela de indecidível .
Mas há duas maneiras de pensar
esse
indecidível e de tra
balhar com ele. Há aquela que o considera um
estado
d o
m u n d o em que os opostos se equ ivalem e transform a a de
monstração dessa equivalênc ia em oportunidade para um
novo
vi rtu os i sm o art í s ti co. E há aquela que
reconhece
aí o
entrelaçamento de várias políticas, confere figuras novas a
esse entrelaçamento, explora
suas
tensões e
desloca
assim o
equilíbrio dos possíveis e a distribuição das capacidades.
81
8/11/2019 espectador emancipado.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/espectador-emancipadopdf 43/66
A imagem i n t o l e r á v e l
O que torna uma imag em intolerável? A perg unta pa
rece de início indag ar
apenas
que características nos tornam
incapazes
de olhar uma imag em sem senti r dor ou
i n d i g n a
ção.
Mas uma segunda pergunta logo se mostra impl icada
na
pr ime ira :
será tolerável criar tais imagens ou propô-las à
visão
alheia?
Pensemos em uma das últimas provocações
do fotógrafo Ol ivie ro Toscani : o cartaz que mostrava uma
jovem anoréxica nua e descarnada, afixado por toda a Itália
du rante
a
semana
da Moda de Mi lão em
2007. A l g u n s
a
saudaram como denúncia
corajosa,
mostrando a real idade
do sofrimen to e da t o r t ura oculta por trás das aparências da
elegância e do luxo. O u t r o s d e n u n c ia r a m essa exibição da
verdade do espetáculo como uma forma ainda mais int o le
rável de seu reinado, pois, sob a máscara da indignação, ela
oferecia ao olhar dos observadores não só a
bela
aparência,
mas tam bém a real idade
abjeta.
O fotógrafo opunha à
i m a
gem da aparênc ia uma imag em da real idade. Ora, a imagem
da realidade é que é suspeita, po r sua vez. Considera-se que
o que ela mostra é real demais, intoleravelmente real demais
para ser proposto no m odo da imag em. N ão é uma s imples
questão de respeito pela dignidade das
pessoas.
A i m a g e m
é declarada inapta para criticar a realidade porque faz parte
83
8/11/2019 espectador emancipado.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/espectador-emancipadopdf 44/66
do
mesmo regime de
visibilidade
daquela realidade, que
e xi
be alternadamente sua
face
de aparência brilhante e seu
avesso
de verdade sórdida que compõem um único e
mes
m o
espetáculo.
Esse deslocamento do intolerável na imagem para o
intolerável da imagem esteve n o cerne das tensões que afe-
taram a arte política. Todos conhecem o papel que, no tem
po
da guerra do Vietnã, desempenharam algumas fotogra
fias, como a da menina nua a gr i t a r na rua diante dos
soldados. Todos
sabem
como os artistas
engajados
s e esme
raram em confrontar a realidade daquelas imagens de dor e
m o r t e com as imagens publicitárias que mostravam a ale
g ria de
viver
em
belos
apartamentos modernos e bem
e q u i
pados no país que enviava soldados para incendiarem as
terras vietnamitas com napalm. Comentei ac ima a série
Bringing the War
Home
d e M a r t h a
Rosler,
sobretudo aquela
colagem que nos mostrava, no meio de um apartamento
c laro e espaçoso, um vietnamita com uma criança morta
nos braços. A criança m orta era a intolerável realidade
o cul
tada pela confortável vid a americana, a intolerável realidade
que ela se esforçava por não ver e que a montagem da arte
política lhe lançava ao rosto. Ressaltei q ue
esse
choque entre
real idade e aparênc ia é anulado em prát icas contemporâ
neas da colagem, que fazem do protesto político uma
m a n i
festação da moda jovem no mesmo nível das mercadorias de
luxo
e das imagens publicitárias. Não haveria então nenhu
ma intolerável realidade que a imagem
pudesse
opor ao
prestígio das aparências, mas um único e mesmo f luxo de
imagens , u m único e mesmo regime de exib ição universal ,
e é
esse
regime que
const i tu ir ia
hoje o intolerável .
Essa
viravolta
não é s implesmente
causada
pelo de
sencanto de um m und o que já não acreditasse nos meios de
comprovar uma real idade nem na
necessidade
de combater
a injustiça. Ela reflete uma duplicidade que já
estava
presen
te no uso mi l i t a nt e da imagem intolerável . Esperava-se que
a imagem da criança morta
dilacerasse
a imagem de felici
dade factícia da
vida
americana;
esperava-se
que ela
abrisse
os olhos daqueles que gozavam tal fel icidade com base n o
84
intolerável daquela re alidade e de sua própria cumplicidade,
para engajá-los na luta. M as a produção desse efeito perma
necia indecidível . A visão da criança morta no belo aparta
mento de paredes
claras
e grandes dimensões por certo é
difíci l de suportar. Mas não há razão
p art icu lar
para que ela
torne
os que a veem
conscientes
da realidade do
impe r ia l is
m o
e
desejosos
de opor-se a ele. A reação co mu m a tais
i m a
gens
é fechar os olhos ou desviar o olhar. Ou então
i n c r i m i
nar os horrores da guerra e a loucura
assassina
dos homens .
Para
que a imagem produza efei to pol í t i co, o
espectador
deve estar já convencido de que aquilo que ela mostra é o
imp eria l ismo americano, e não a loucura dos homens em
geral.
D e v e t a m b é m
estar
convencido de que ele mesmo é
cu lp ado de co mpa rt i lhar a prosperidade baseada na explo
ração impe rial i s ta do
m u n d o .
Deve também senti r-se c u l
pado
d e estar lá a nada fazer, a o lhar aquelas imagens de dor
e morte em vez de lutar contra as potências responsáveis
po r elas. Em suma, deve sentir-se já culpado de olhar a
i m a
gem que deve provocar o seu sentimento de culpa.
T al é a dialética inerente à montagem política das
imagens . U ma delas deve desempenhar o papel da real ida
de que denuncia a miragem da
outra.
M as denuncia ao mes
m o temp o a mirage m como real idade de nossa vida na qual
ela mesma está incluída. O simples fato de olhar as imagens
que denunciam a real idade de um s i s tema já se mo stra como
cu mp licidade nesse s i s tema. N a época em que Martha Ros
ler construía sua série, Guy Debord rodava o
f i lme
extraído
de seu l ivro A sociedade do espetáculo. D i z i a ele que o espetá
cu lo
é a inversão da v ida. Em seu
f i l m e
essa realidade do
espetáculo como inversão da
vid a
era mostrada encarnada
também em toda e qualquer imag em: a dos governantes -
capitalistas ou comunistas -, a dos
astros
do c inema, dos
modelos de moda, de modelos publicitários, das starlets nas
praias de
Cannes
ou de consumidores comuns de mercado
rias e imagens. Todas
essas
imagens eram equivalentes , d i
z i a m de modo semelhante a mesma realidade intolerável : a
de nossa vid a
separada
de nós mesmos, transformada pela
máquina do espetáculo em imagens mortas , diante de nós ,
85
8/11/2019 espectador emancipado.pdf
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contra nós. A pa r t ir daí parecia impossível conferir a
qua l
quer imagem o poder de mostrar o intolerável e de nos levar
a lutar contra ele. A única coisa por fazer parecia ser opor a
ação
viva
à passividade da imagem, à sua
vid a
al ienada.
Mas, para isso, acaso não seria preciso abolir as imagens,
m e r g u l h a r a tela no preto, a fim de convocar à ação, única
capaz
de opor-se à m enti ra do espetáculo?
O r a ,
Guy Debord não mergulhava a tela no preto
17
.
A o
contrário, fazia da tela o teatro de um jogo estratégico
sing u lar
entre três termos : imagem, ação e palavra.
Essa
sing u lar idade
aparece bem nos trechos de
westerns
ou de
f i lmes de guerra hol lywoodianos inseridos na
Sociedade
do
espetáculo. Q ua ndo vemos o desfi le de John Wayne ou Errol
F l y n n ,
dois ícones de H o l l y w o o d e dois campeões da extre
m a
direita
americana, quando um lembra
seus
feitos em
Shenandoah, ou quando o outro, de
espada
em
p u n h o ,
ar
remete n o papel do general C uster, de início somos tentados
a ver uma denúncia paródica do imperial i sm o americano e
de sua glorificação pelo cinema
ho l lyw o o d ia no .
É
nesse
sentido que mui tos compreendem o "desvio" preconizado
po r G u y D e b o r d . O r a ,
isso
é um contrassenso. E com
muita
seriedade que ele int ro d uz a arreme tida de Erro l F lynn, ex
traída de O intrépido General Custer de Raoul Walsh, para
ilustrar
u m a tese sobre o papel histórico do
proletariado.
Ele
não nos pede que zombemos daqueles bravos ianques arre
metendo de sabre e m
p u n h o ,
e que tomemos consciência da
cu mp licidade de Raoul Walsh ou de John Ford com a d o m i
nação imperial i s ta .
Pede-nos
qu e
acatemos
o heroísmo do
combate e transformemos aquela arremetida c inematográ
fica,
desempenhada por atores, em
assalto
real contra o im
pério do espetáculo. É a conclusão aparentemente parado
xal, m as muit o lógica, da denúncia do espetáculo: se toda
i m a g e m
s implesmente mostra a
vida invertida,
tornada pas
siva, basta
virá-la para
desencadear
o poder ativo que ela
desviou .
Essa
é a l ição dada, de man eira mais discreta, pelas
p rimeiras imagens do f i lme. N elas vemos duas jovens e
17. Cabe l e m br ar qu e e l e f i ze r a i sso , e m c o nt r ap ar t i d a, nu m f i l m e ant e r i o r , Hur-
lements
enfaveur de
Sade
[ U i v o s para Sade],
86
belos corpos femininos
i r ra d ia nd o
alegria na luz. O espec
tador
apressado corre o risco de ver nisso a denúncia da
posse imaginária oferec ida e subtraída pela imagem, i lu s
trada
mais adiante por outras imagens de corpos feminino s
- strippers, m a n e q u i n s ,
starlets
nuas . Ora, essa aparente
semelhança encobre um a oposição radical . Pois
essas pr i
meiras imagens não foram extraídas de espetáculos , publ i
cidades ou atualidades cinematográficas. Foram feitas pelo
art i s ta e representam sua companheira e uma amiga. A p a
recem, ass im, como imagens at ivas , imagem de corpos em
penhados nas relações ativas do desejo amoroso, em vez de
estarem fechados na relação passiva do espetáculo.
A s s i m , é prec i so imag ens de ação, imagens da verda
deira
real idade ou imagens imediatamente invert ívei s em
sua realidade verdadeira, para nos mostrar que o simples
fato
de ser espectador, o simples fato de olhar imagens é
u m a
coisa
r u i m . A ação é apresentada como única resposta
ao mal da imagem e à culpa do espectador. N o entanto, o
que se apresenta a
esse
espectador ainda são imagens.
Esse
aparente paradoxo tem sua razão: se não olhasse imagens, o
espectador não seria culpado. Ora, ao acusador impo rt a
mais a demonstração de sua culpa do que sua conversão à
ação. É aí que ganha toda a importância a voz que fo rmula a
i lusão e a culpa. Ela denuncia a inversão da
vida
que consis
te em ser consumidor passivo de mercadorias que são i m a
gens e de imagens que são mercadorias. Diz que a única
resposta a
esse
m a l é a atividade. Mas também nos diz que
nós, que olhamos as imagens por ela comentadas, nunca
agiremos , permaneceremos eternamente
espectadores
de
u m a vid a
que passou para a im agem . A inversão da inversão
fica, assim, como saber reservado daqueles que sabem por
que ficaremos sempre a não
saber,
a não agir. A v i r tu de da
atividade, oposta ao m al da imagem , é então absorvida pela
autoridade
da voz soberana que estigmatiza a
vid a
falsa na
qua l
ela sabe q ue
estamos
condenados a nos comprazer.
A afirmação da autoridade da voz aparece assim como
o conteúdo real da crítica que nos levava do intolerável na
i m a g e m
ao intolerável da imagem. Esse deslocamento é to-
87
8/11/2019 espectador emancipado.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/espectador-emancipadopdf 46/66
talmente ac larado pela crí ti ca da imag em em n ome d o i r r e-
presentável. A i lustração exemplar disso foi dada pela polé
mica ocorrida em torno da exposição M émoires des camps*,
apresentada há algun s anos em Pari s . N o centro da exposi
ção havia quatro
pequenas
fotografias t i radas de uma câ
mara de gás em A u s c h w i tz p o r u m m e m b r o d os S o n d e r k o m -
mandos . As fotografias mostravam um grupo de mulheres
nuas empurradas para a câmara de gás e a incineração dos
cadáveres ao ar l ivre. N o catálogo da exposição, um longo
ensaio
de Georges
D i d i - H u b e r m a n
ressaltava o peso da
realidade representada por
aqueles
"Q uatro pedaços de pe
l í cula arrancados do Inferno"
1 8
. Esse
ensaio
provocava em
Les Temps modernes duas
respostas muit o
violentas. A
pr i
meira , assinada por El i sabeth Pagnoux, val ia-se do argu
mento c láss ico: as imagens eram intoleráveis porque dem a
s iadamente reai s . Ao projetarem em nosso presente o horror
de
A u s c h w i t z ,
capturavam nosso olhar e imp ediam qualquer
distância crítica. Mas a segunda, assinada por Gerard Wajc -
m a n ,
inve r t ia
o a r g u m e n t o :
aquelas
imagens e o comentário
que as acompanhava eram intoleráveis porque me ntiam ; as
qu atro
fotos não representavam a realidade da
Shoah
por
três razões : pr ime iro , porque não mostravam o extermínio
dos judeus na câmara de gás; segundo, porque o real nunca
é inteiramente solúvel no visível ; terceiro, porque no
cerne
do
acontec imento da
Shoah
há um irrepresentável, algo que
não pode ser es truturalmente congelado numa imagem.
"A s câmaras de gás são um acontec imento que const i tui em
si mesmo uma espéc ie de aporia, um real infrangível que
transpassa e põe em xeque o es tatuto da imag em e em
p er i
go qualquer reflexão
sobre
as i m a g e n s . "
19
A argumentação seria razoável se
pretendesse s i m
plesmente contestar que as quatro fotografias tivessem o
poder
de apresentar a totalidade do
processo
de extermínio
* Me m ó r i as d o s c am p o s d e c o nc e nt r aç ão , j ane i r o - m ar ç o d e 2001.
[N .
da T.]
18 .
Esse
ensaio é
r epr o d uz id o ,
c o m c o m e nt ár i o s e respostas às c r í t ic as , e m G e o r
ge s D i d i - H u b e r m a n .
Images malgré tout.
Édit ions de M i n u i t , P ar i s , 2003.
19. G e r ar d W aj c m an, " D e l a c r o yanc e
p h o t o g r a p h i q u e " ,
L es Temps modernes, m a r -
ç o - abr i l - m ai o d e 2001, p . 63 .
88
dos judeus , seu s igni f i cado e sua ressonância. M as aquelas
fotografias , nas condições em que foram tomadas , evidente
m e n t e n ã o t i n h a m essa pretensão, e o argumento vi sa de
fato algo bem di ferente : visa ins taurar um a oposição radical
entre dois tipos de representação, a imagem visível e a nar
rativa pela palavra, dois tipos de atestação, a prov a e o
teste
m u n h o . A s quatro imagens e o comentário são condenados
porque
aqueles
qu e
t i ra ra m
as fotos - com risco de
vid a
- e
aquele que as comenta v i r a m
nelas
tes temunhos da
re a l i
dade de um extermínio cujos vestígios
seus
autores f i zera m
de
t ud o
para apagar. Foram criticados por terem acreditado
que a realidade do
processo
t i n h a necessidade de ser prova
da ,
e que a imag em vis ível const ituía uma prov a. Ora - re
torque o fi lósofo - "A
Shoah
ocorreu. Sei disso e todos sa
b e m .
É u m saber. Cada sujeito é chamado a ela. Ninguém
pode dizer: 'não sei ' . Esse
saber
baseia-se no tes temunho,
que const i tui um novo saber [. . . ] Não exige prova a l g u
m a "
2 0
. Mas o que é exatamente esse " n o v o saber ? O que
dist ing u e a vir t ud e do tes temunho da indig nidade da pro
va? Aquele que tes temunha com u m relato aqui lo que vi u
n u m campo de extermínio trabalha com uma representa
ção, tanto quanto aquele que p rocu rou regi s trar a l g u m ves t í
g io visível dele. Sua palavra tampouco diz o acontecimento
em sua unic idade, não é seu h orror di retamente man i fes ta
do .
Haverá quem diga que
esse
é seu méri to: não dizer tudo,
mostrar que nem t ud o pode ser
dito.
M a s isso n ã o f u n d a
menta a di ferença radical em relação à " im agem ", a não ser
que atribuamos arbi trariamen te a esta a pretensão de mos
trar t ud o . A vir t ud e conferida à palavra da tes temunha é
então totalmente negativa: não está naquilo que ela disse,
mas em sua própria insuficiência, em oposição à suficiência
atribuída à imagem , ao engodo dessa suficiência. Mas
esta
é
pura
questão de definição. Se nos
l i m i t a r m o s
à simples de
finição de imagem como duplo, sem dúvida
chegaremos
à
simples conclusão de que
esse
duplo se opõe à unicidade do
Real
e, assim, só pode apagar o horror inigualável do exter
m í n i o . A i m a g e m t ra nqui l iza , diz Wajcman. A prova é que
20 . Ibiã., p. 53.
89
8/11/2019 espectador emancipado.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/espectador-emancipadopdf 47/66
o l h a m o s essas fotografias, ao
passo
que não suportaríamos
a realidade que elas rep rodu zem. A única falha desse a r g u
mento de autoridade é que
aqueles
qu e v i r a m aquela
reali
dade, sobretudo os que fizeram as imagens, devem tê-la
su p ortado. M a s é isso, justamente, o que o fi lósofo critica no
fotógrafo casual : o fato de ter desejado tes temunhar. A ver
dadeira testemunha é aquela que não quer testemunhar.
Essa
é a razão do privilégio atribuído à sua palavra. Mas
esse privilégio nã o é dela. É o da palavra que a o briga a falar
contra a vontade.
E isso o que i lustra uma sequência exemplar do
f ilme
que Gerard Wajcman opõe a todas as provas vi suais e a to
dos os documentos de arquivos ; trata-se d e Shoah de Claude
L a n z m a n n , f i lme
baseado no tes temunho de alguns
sobre
viventes.
A sequência é a do salão de cabeleireiro onde o
ex-cabeleirei ro de T rebl ink a, Ab raha m Bomba, conta a
che
gada e a última
tosa daqueles
que se preparavam para en
trar na câmara de gás . N o centro do episódio es tá o mo
mento em que Abraham Bomba, l embrando o dest ino dos
cabelos
cortados,
recusa-se
a continuar e , com um a toalha,
enxuga as lágrimas que começam a cai r . A voz do diretor
insiste para que ele continue: "Você precisa, Abe". Mas, se
precisa, não é para revelar uma verdade ignorada que
cabe
ria opor àqueles que a negam. E, de qualquer m o d o , nem ele
sequer
dirá o que ocorria na câmara de gás. Precisa s imples
mente porque precisa. Precisa porque não quer, porque não
pode.
O que importa não é o conteúdo de seu tes temunho,
mas o fato de sua palavra ser a palavra de alguém cuja pos
sibilidade de falar é truncada pelo intolerável do aconteci
m e n t o ; é o fato de que ele fala
apenas
porque é obrigado a
tanto pela voz de
o ut ro .
Essa voz do outro no
f i l m e
é do
diretor, mas ela projeta atrás de si uma outra voz em que o
comentador, a seu talante, reconhecerá a lei da ordem
s i m
bólica lacaniana ou a autoridade do deus que proscreve as
imagens , fala a seu povo na coluna de nuvem, p edind o-lhe
que acredite nele co m base na palavra e o obedeça inco nd i
c ionalmente. A palavra da tes temunha é sacral izada por
três razões negat ivas : pr ime iro porque se opõe à imagem,
9
que é
idolatria;
segundo, porque é a palavra do homem in
capaz de falar; terceiro porque é a palavra do homem ob r i
gado à palavra por uma palavra mais poderosa que a sua. A
crítica às imagens não
lhes
opõe, d efini t ivamente, nem as
exigênc ias de ação nem a retenção da palavra. Opõe-lhes a
autoridade
da voz que faz, al ternadamente,
calar
e falar.
M a s , t a m b é m nesse
caso,
a oposição é posta à
custa
de ser logo revogada. A força do si lêncio que traduz o
i r r e -
presentável do acontecimento só
existe
por sua representa
ção. O poder da voz oposta às imagens deve exprimir-se em
imagens . A recusa de falar e a obediência à voz que coman
da, portanto, devem tornar-se vi s ívei s . Q uando o barbei ro
in terromp e a narrat iva, quando já não
consegue
falar, e a
voz em off lhe pede que continu e, o que entra em jogo , o que
serve
de testemunho, é a emoção em seu rosto, as lágrimas
que ele retém e precisa enxugar. Wajcman comenta assim o
trabalho do
cineasta:
" [ . . . ] para fazer surgir câmaras de gás,
ele f i lma pessoas e palavras, testemunhas no ato atual de
lembrar-se, em cujo rosto as lembranças passam c o m o n u m a
tela de cinema, em
cujos
olhos se discerne o horror que
v i
ram [ . . . ] "
2 1
. O argumento do i rrepresentável cai então num
j o g o duplo. Por um lado, opõe a voz da tes temunha à men
tira da imagem. Mas , quando a voz cessa, é a imagem do
rosto sofrido que passa a ser a evidência visível daqu ilo que
os olhos da tes temunha v i r a m , a image m vis ível do horror
do extermínio. E o comentador, que declarava ser impossí
vel fazer a distinção, na fotografia de A u s c h w i t z , e n t r e m u
lheres
enviadas para a morte e um g rupo de nudis tas a
pas
seio, parece
não ter di f i culdade algum a em d is t inguir o
p ranto que reflete o horror das câmaras de gás do pranto
que em geral
expressa
uma lembrança dolorosa para um co
ração sensível . A diferença, na verdade, não está no conteú
do da imagem : es tá s implesmente no fato de que a pr ime ira
é um tes temunh o voluntário, enquanto a segunda é um
tes
t e m u n h o involuntário. A vir t ud e da (boa) testemunha é ser
aquela que
obedece
s implesmente a dois golpes: o da Reali
dade que horro riza e o da palavra do Outr o que obriga.
2\.lbíd.,p. 55.
91
8/11/2019 espectador emancipado.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/espectador-emancipadopdf 48/66
8/11/2019 espectador emancipado.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/espectador-emancipadopdf 49/66
t rui r u m a i m a g e m , o u
seja,
certa conexão entre o verbal e o
visua l . O poder dessa imagem, então, consiste em desorga
n i z a r
o regime ordinário
dessa
conexão, como o que é p r at i
cado pelo sistema
oficial
de informação.
Para entendê-lo, é preciso pôr em causa a opinião cor
rente segundo a
qua l
esse s istema nos submerge numa vaga
de imagens em geral - e imagens de
ho rro r
e m p art icu lar - ,
tornando-n os ass im insens ívei s à real idade banal izada
des
ses horrores.
Essa
opinião é amplamente
aceita
porque con
f i r m a a tese
t ra d ic io na l
de que o mal das imagens está em
seu número, na profusão que invade sem possibil idade de
defesa
o olhar fascinado e o cérebro amolecido da multidão
de consumidores democráticos de mercadorias e imagens.
Essa
visão pretende ser crítica, mas está perfeitamente de
acordo com o func ionam ento do s i s tema. Pois os meios de
comunicação dominantes não nos afogam de modo algum
sob a torrente de imagens que dão testemunho de massa
cres, fugas em massa e outros horrores que constituem o
presente de
nosso
planeta. Bem ao contrário,
eles
r e d u z e m
o seu número, tomam bastante cuidado para selecioná-las e
ordená-las .
E l i m i n a m t u d o
o que
possa exceder
a simples
ilustração redundante de sua significação. O que vemos, so
bretu do na s telas de informação de televisão, é o rosto de
governantes ,
especialistas
e jornalistas a comentarem as
imagens , a dizerem o que elas mostram e o que devemos
pensar
a respeito. Se o
ho rro r
es tá banal izado, não é porque
vemos imagens demais. Não vemos corpos demais a sofre
re m na tela. Mas vemos corpos demais sem nome, corpos
demais
incapazes
de nos devolver o olhar que lhes
d i r i g i
mos, corpos que são objeto de palavra sem terem a palavra.
O
s istema de Informação não funciona pelo
excesso
de
i m a
gens,
funciona selecionando seres que falam e rac ioc inam,
que são capazes de "descriptar" a vaga de informações refe
rentes às multidões anónimas. A política dessas imagens
consiste
em nos ens inar que não é qualquer um que é
capaz
de ver e falar. E essa l ição é confirmada de maneira prosaica
pelos que pretendem criticar a inundação das imagens pela
televisão.
94
A falsa querela das imagens, portanto,
encobre
u m a
questão de contas. É aí que ganha sentido a política das cai
xas pretas. Essas
caixas
fechadas
m as
cobertas
de palavras,
dão um nome e uma his tória
pessoal
àqueles cujo massacre
fo i tolerado não por excesso ou falta de imagens, mas por
que at ingia seres sem nome, sem his tória
i nd i v i d ua l .
A s p a
lavras assumem o lugar das fotografias porque estas a inda
seriam fotografias de vítimas anónimas de violências em
massa, a inda es tariam em consonância com o que banal i
za massacres e vítimas. O problema não é opor as palavras
às imagens visíveis. E subverter a lógica dominante que faz
do
visua l
o quinhão das multidões e do verbal o privilégio
de alguns. As palavras não estão no lugar das imagens. São
imagens , ou
seja,
formas de redistribuição dos elementos da
representação. São f iguras que subst i tuem uma imag em por
outra,
formas visuais por palavras, ou palavras por formas
visu ais .
Essas f i g u r a s redistr ibu em ao mesmo tempo as re
lações entre o único e o múltiplo, o pequeno número e o
grande número. Por
isso
são políticas, se é que a política
consiste
princ ipalmen te em m udar os lugares e a conta dos
corpos. A f igura política por excelência, nesse sentido, é a
metonímia que mostra o efei to pela
causa
ou a parte pelo
t o d o .
Realmente, é uma política da metonímia que se
p r at i
ca em outra instalação de
Al fre d o
Jaar dedicada ao
massacre
de Ruanda, The Eyes of
Gutete
Emerita. Esta é organizada em
t o rno
de uma única fotog raf ia dos olhos de uma mu lher que
vi u
o massacre de sua família: o efeito pela causa, portanto,
mas tam bém dois olhos por um mi lhão de corpos chac ina
dos . Mas , por
t ud o
o que v i r a m , esses olhos não dizem o
que Gutete Emeri ta
pensa
e
sente.
São os olhos de uma
pes
soa dotada do mesmo poder daqueles que os olham, mas
também do mesmo poder do
qua l seus
i rmãos e i rmãs fo
ra m
privados pelos carniceiros, o de falar ou
calar-se,
de
mostrar os próprios sentimentos ou ocultá-los. A metoní
m ia que põe o olhar
dessa
mu lher no lugar do espetáculo de
ho rro r
também subverte a conta do
individu al
e do múltiplo.
Por isso,
antes
de ver os olhos de Gutete Emerita num cai
xote luminoso , o espectador deveria ler um texto que fazia
95
8/11/2019 espectador emancipado.pdf
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se podia esquecer, mas no q ual não devíamos demorar-nos ,
s u m a ,
t ud o
o que fazia parte de sua rotina diária na época.
8/11/2019 espectador emancipado.pdf
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c o n f i r m a n d o que o problema não é
saber
se cumpre ou não
fazer e olhar tais imagens, mas sim dentro de que d ispo si t i
vo sensível isso é f e i t o
22
.
O u t r a es tratégia é prat i cada por um
f i l m e
dedicado
ao genoc ídio do Camboja, S21, M áquina de morte
khmer
ver
melho. Seu autor, Ri thy Panh, compart i lha pelo menos
duas opções
essenciais
c o m C l a u d e L a n z m a n n . E l e t a m
bém optou por representar a máquina, em vez de suas v í
t i m a s ,
e por fazer um f i l m e no presente. Mas dissoc iou
essas escolhas de qualquer discussão em torno da palavra
eda imagem. N ão opôs as tes temunhas aos arquivos . Isso
sig nif icar ia
perder
indubitavelmente
a especificidade de um a
máquina de morte cujo func ionamento passava p o r u m
aparato discurs ivo e por um dispos i t ivo de arquivamento
bem programados . Portanto, era prec i so tratar esses
a rqui
vos como parte do
disposit ivo,
mas também mostrar a rea
lidade f í s ica da máquina pondo o discurso em ação e fazen
do
os corpos falar. Rithy Panh
re uniu
no próprio local dois
t ip os de tes temunha: alguns dos rarí ss imos sobreviventes
do campo S21 e alguns ex-guardas. E os fez reagir a
diver
sos tipos de arquivo: relatórios diários, atas de interrogató
rios, fotografias de
presos
mortos e torturados, pinturas feitas
de cor por um dos ex-prisioneiros que pede aos
ex-carcerei-
ros que confi r me m a sua exat idão. Desse mod o, a lógica da
máquina é reativada: à medida que os ex-guardas percor
re m aqueles
documentos , vão readqu ir indo atitudes,
gestos
e até entonações que t inham quando es tavam a serviço da
tortura
e da morte. N uma sequência aluc inante, um
deles
começa a reco nst i tui r a ronda notu rna, o retorno dos presos
depois do "interrogatório", para a
cela
com um , os ferros que
os prendem , a
sopa
e o u r inol solicitados pelos prisioneiros,
o dedo apontado para
eles
através das grades, os gritos, in
sul tos e ameaças a qualquer p r isioneiro que se mexesse, em
22 . A n a l i s e i c o m m ai s d e t al he s a l g u m as d as
obras
aqu i m e nc i o nad as e m m e u
ensaio "L e T hé ât r e d e s i m ag e s" , p u bl i c ad o no c at ál o g o
Alfredo
Jaar. La poli
tique des images, j r p / r i n g i e r - Mu sé e C ant o nal d e s B e au x - Ar t s d e L au sanne ,
2007.
98
Sem dúvida é um espetáculo intolerável essa reconstituição
feita
sem aparente emoção, como se o
torturador
de ontem
estivesse pronto para desempenhar amanhã o mesmo pa
pel. Mas toda a es tratégia do f i lme
consiste
e m re d ist r ibuir
o intolerável ,
valer-se
de
suas
diversas representações: rela
tórios , fotografias , pin turas , reconst i tuições . Consiste em
m u d a r
as posições, pondo
aqueles
qu e
acabam
de mani fes
tar novamente seu poder de torturadores na pos ição de a lu
no s ensinados por sua ex-vítima. O f i lme interl iga diversos
tipos de palavras, ditas ou
escritas,
diversas formas de visua
lidade - cinematográfica, fotográfica, pictórica, teatral - e
várias formas de temporal idade para nos dar um a represen
tação da máquina que mostre ao mesmo tempo como ela
pôde funcionar e como hoje é possível a carrascos e vítimas
vê-la, pensá-la e senti-la.
O
tratamento do intolerável é, assim, uma questão de
disp osit ivo d e visibilidade. A q u i l o qu e chamamos i m a g e m é
u m
e lemento num
dispositivo
que cria certo
senso
de
reali
dade, certo
senso
c o m u m . U m
senso
comum" é, ac ima de
t ud o , uma comunidade de dados sens ívei s : coisas cuja v i s i
bilidade
considera-se
parti lhável por todos, modos de per
cepção dessas coisas e significados também parti lháveis
qu e lhes são conferidos. É também a forma de convívio que
l iga
indivíduos ou grupos com base nessa comunidade
pr i
m e i r a entre palavras e coisas. O sistema de informação é
u m
senso
c o m u m " desse t ip o : u m d isp osit ivo e s p a ç o - t e m -
po ra l
dentro do qual palavras e formas visíveis são reunidas
em dados comuns, em maneiras comuns de perceber, de ser
afetado e de dar sentido. O problema não é opor a realidade
a
suas
aparências. É construir outras realidades, outras
for
mas de
senso
c o m u m , o u seja, outros dispositivos espaçotem-
p orais ,
outras comunidades de palavras e coisas, formas e
significados.
Essa
criação é trabalho da ficção, que não
consiste
e m
contar histórias, mas em
estabelecer
relações novas entre as
palavras e as formas visíveis, a palavra e a escrita, um aqui
e um alhures , um então e um agora. Nesse sent ido, The
99
Sound of Silence é uma fi cção, Shoah o u S 21 são ficções. O
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problema não é saber se o real desses genocídios pode ser
posto em imagens e em ficção. É
saber
como é posto e qual
espécie de
senso
comum é tec ido por esta ou aquela ficção,
pela construção desta ou daquela imagem. É saber que es
péc ie de ser humano a imagem nos mostra e a que espéc ie
de ser humano ela é destinada, que espécie de olhar e de
consideração é criada por
essa
ficção.
Esse des locamento na abordagem da imagem t a m
bém é um deslocamento na ideia de política das imagens. O
uso clássico da imagem intolerável traçava uma
l i n h a
reta
do
espetáculo insuportável à consciência da realidade que
ele expressava e desta ao desejo de agi r para mudá-la . Mas
esse
elo entre representação, saber e ação era pura pressu
posição. A imagem intolerável de fato extraía seu poder da
evidência dos roteiros teóricos que possibil i tavam identi f i
car seu conteúdo e da força dos movimentos políticos que os
t radu ziam em prát ica. O enfraquec imento desses roteiros e
desses
m o v i m e n t o s pro d uziu um divórcio que opôs o poder
anestesiante
da imagem à capac idade de compreender e à
decisão de agir. A crítica do espetáculo e o discurso do ir-
representável passaram a ocupar a cena, a l i m e n t a n d o u m a
suspeita global em torno da capacidade política de toda e
qualquer
imagem. O cet i c i smo atual é resul tado de um ex
cesso
de fé. Nasceu da crença
desenganada
n u m a l i n h a reta
entre percepção, emoção, compreensão e ação. A confiança
nova na capacidade política das imagens pressupõe a crítica
desse esquema es tratégico. As imagens da arte não forne
cem armas de combate. Co ntribuem para
desenhar co nf i
gurações novas do visível , do dizível e do pensável e, por
isso
mesmo, uma paisagem nova do poss ível . Mas o fazem
com a condição de não antecipar seu sentido e seu efeito.
A resistência à antecipação pod e ser i lustra da por
u m a fo tografia t i rada por uma art i s ta francesa, Sophie Ris-
telhueber. Escombros de pedras integram-se harmoniosa
mente numa paisagem idíl ica de colinas
cobertas
de o l ivei
ras , pai sagem semelhante às fotografadas por Victor Bérard
há cem anos para mostrar a permanência do Medi terrâneo
t o o
das viagens de Ul i sses . Mas esse pequeno amontoado de
pedras numa paisagem pastoral ganha sentido no conjunto
ao qu al pertence: como todas as fotografias da série W B
(West Bank), representa uma barrei ra
israelense
numa es
t rada
palestina. Sophie Ristelhueber
recusou-se
a f o t o g r a
far o grande
m u r o
de separação que é a encarnação da po
lítica de um Estado e o ícone midiático do "problema do
Oriente Médio" . Preferiu d i r i gi r sua objetiva para
aquelas
pequenas barreiras que as autoridades israelenses construí
ra m à beira das
estradas
d o
int e r io r
com os meios ao alcan
ce. Ela fez isso na m aioria das vezes e m plongée, d e u m p o n
to de vista que transforma os blocos das barreiras em
elementos da paisagem. N ão fotogra fou o emblema da
guerra, mas as feridas e as cicatrizes que ela deixa no
te rr i
tório. Desse mo do, talvez produ za um des locamento do
des
gastado afeto da indignação para um afeto mais discreto, um
afeto de efeito indeterminado, a curiosidade, o desejo de ver
mais de perto . Falo
aqu i
de curios idade,
falei
ac ima de aten
ção.
Trata-se
realmente de
afetos
que embaralham as falsas
evidências dos esquemas estratégicos; são disposições do
corpo e do espírito em que o olho não sabe de antemão o
que es tá vendo, e o pensamento não sabe o que deve fazer
co m aquilo. Sua tensão aponta, assim, para outra política do
sensível , po lítica baseada na variação da distância, na resis
tência do visível e na
indecidibi l idade
do efei to. As imagens
101
m u d a m nosso
olhar e a paisagem do poss ível quando não
^ . 1
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são antecipadas por
seus
sent idos e não antec ipam
seus
efeitos. Essa poderia ser a conclusão suspensiva
deste
breve
estudo sobre o intolerável nas imagens.
102
A
imagem pensativa
A
expressão " imagem pensat iva" não é
in tu i t iva .
E m
geral,
o que qualificamos de pensativos são os indivíduos.
Esse
adjet ivo des igna u m
estado
s ingular : quem está
pensa
tivo
está "cheio de pensamentos", mas
isso
não quer dizer
que os
pensa.
N a pensat ividade, o ato do pensamento pare
ce eivado por certa pass ividade. A
coisa
se complica quando
dizemos que uma imagem é pensat iva. N ão se supõe que
um a
i m a g e m
pense.
Supõe-se que ela é apenas objeto de
pensamento. Imagem pensat iva, então, é uma imagem que
encerra pensamento não pensado, pensamento não atribuí
ve l à intenção de qu em a cria e que
pro d uz
efeito
sobre
q u e m
a vê sem que este a l igue a um objeto determinado. Pensa
t ividade des ignaria, ass im, um estado indeterminado entre
o ativo e o passivo.
Essa
indeterminação põe em xeque a
distância que tentei marcar alhures entre duas ideias de
i m a g e m :
a noção comum de imagem como duplo de uma
coisa
e a imagem concebida como operação de uma arte.
Falar de imagem pensativa, ao contrário, é marcar a existên
c ia de um a zona de indeterminação entre
esses
dois tipos de
i m a g e m .
É falar de uma zona de indeterminação entre pen
samento e não pensamento , entre atividad e e passividade,
mas também entre arte e não arte.
1 3
8/11/2019 espectador emancipado.pdf
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pensat ividade da ima gem era identificada com u m poder de
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afetar que se subtraía aos cálculos do pensamento e da arte.
Essa
vi são foi exemplarmente form ulada por Roland
Barthes . Em L e
Chambre
claire [A câmara clara] , ele opõe a
força de pensatividade do punctum ao aspecto info rma t ivo
representado pelo
studium.
Mas para isso ele precisa reduzir
o ato fotográfico e o olhar para a foto a um
processo
único.
A s s i m , e le faz da fotogra fia um tran sporte : t ransporte para
o sujeito observador da qualidade sensível única da coisa o u
do ser fotografado.
Para
d e f inir assim o ato e o efeito fo t o
gráficos, precisa fazer três coisas: deixar de lado a intenção
do fotógrafo, redu zir o di spos i t ivo técnico a u m
processo
químico e identificar a relação óptica com uma relação táti l .
A s s i m se define certa visão do afeto fotográfico: segundo
Barthes, o sujeito que observa deve repud iar todo e qua l
quer
saber
e referência àquilo que na imagem é objeto de
u m conhecimento, para deixar que se produza o afeto do
transporte. Contrapor imagem e arte não é apenas negar o
caráter da imagem como objeto de fabricação; é, em última
análise, negar seu caráter de
coisa
vista.
Barthes
fa la em de
sencadear uma loucura do olhar. Mas essa loucura do olhar
é na verdade seu desapossamento, sua submissão a um
pro
cesso
de transporte " tát i l " da qual idade sens ível do mo t ivo
fotografado.
A oposição entre punctum e studium, ass im, es tá bem
defin ida no discurso. Mas se em baralha naqu i lo que deveria
confi rmá-lo: na material idade das imagens com as quais
Barthes tenta exemplificá-lo. A demonstração baseada nes
ses exemplos é, de fato, surpreendente. Diante da fotografia
de duas crianças com retardo mental fei ta por Lewis Hine
n u m a
ins t i tuição de N ew
Jersey,
Barthes
declara dispensar
qualquer saber e cul t ura . D ec ide então ignorar a inserção da
fotog raf ia
no trabalho de u m fotógrafo em sua invest igação
sobre
os explorados e os excluídos da
sociedade
americana.
Mas não é só isso.
Para
validar sua distinção,
Barthes
deve
também fazer uma es tranha divisão no próprio âmago da
quilo que l iga a es trutura visua l
dessa
fotogr afia a seu
m o t i -
* T r ad . br as ., J ú l i o C ast af i o n G u i m ar ãe s , N o v a Fr o nt e i r a , 2011. [ N . d a T . ]
1 6
vo , o u seja, a desproporção.
Barthes
escreve: Quase não
vejo as cabeças monstruosas e os perfis lastimáveis (isso faz
parte do studium); o que vejo [. . . ] é o detalhe descentraliza
do , a imensa gola Dan ton do garoto, o curat ivo no dedo da
m e n i n a . "
24
Mas aquilo que ele diz ver, na qualidade de
punc
tum, pertence à mesma lógica do studium, que ele diz não
ver: são características de desproporção: uma gola imensa
para uma criança anã e , para uma menina de cabeça enor
me, um curat ivo tão minúsculo, que o lei tor do l i v ro não
d ist inguir ia sozinho com base na reprodução. Se
Barthes
f ixou
essa gola e
esse
curativo, sem dúvida é por sua qua l i
dade de detalhes, ou seja, de elementos destacáveis.
Esco-
lheu-os porque correspondem a uma noção bem determi
nada, a noção lacaniana de objeto parcial . Mas aqui não se
trata de qualquer ob jeto parc ial . Com base numa vis ta de
perf i l ,
é difíci l decidir se a gola do menino é realmente
a qui
lo que os camisei ros chamam de gola Danton. Em compen
sação, é indubi tável que Dan ton é nome de uma
pessoa
d e
capitada. O
punctum
da imagem é, de fato, a morte evocada
pelo nome próprio Danton. A teoria do punctum pretende
a f i r m a r a s ingularidade res i s tente da imagem. Mas no f im
acaba por deixar de lado essa especificidade, ao identificar a
produção e o efei to da imagem fotográfica com a maneira
como a morte ou os mortos nos toca m.
24 .
L a Chambre
claire, Édit ions de 1'Étoi le , G a l l i m a r d , Le Seuil , 1980, p. 82.
1 7
associa
a foto à imago latina, à efígie que garantia a prese nça
8/11/2019 espectador emancipado.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/espectador-emancipadopdf 56/66
A lex a n d er G ar d ne r , Portrait
of Lewis Payne, 1865.
Esse
curto-circuito é ainda mais perceptível em outro
exemplo de Barthes, a fotografia de um jovem algemado. Aí
também a distribuição do studium e do punctum é
desconcer
tante. Barthes diz o seguinte: "A foto é boni ta, o rapaz tam
b é m :
isso
é o
studium.
M a s o
punctum
é:
ele vai morrer.
Leio ao
m e s m o t e m p o :
isto
será e
isto foi.
25
Ora, nada na foto nos diz
que o jovem v ai morrer.
Para
sermos afetados po r sua morte,
precisamos saber que a foto representa L ewis Payne, conde
nado à morte em 1865 pela tentativa de assassinato d o secre
tário de Estado americano. Também é preciso
saber
que se
trata
da
pr ime ira
vez em que um fotógrafo, Alexander Gard
ner, foi autorizado a fotografar uma execução capital .
Para
fazer coincidir o efeito da foto com o afeto da mor te, Barthes
precisou realizar um cu rto-circu ito entre o
saber
histórico do
mo t ivo
representado e a textura material da fotografia. As
cores pardacentas, de fato, são cores de uma fotografia do
passado, de um a fotogra fia sobre a qual se pode g arantir em
1980 que o autor e o mo t ivo estão mortos. Barthes, assim,
25 .
Ibid.,
pp . 148-50.
1 8
do morto, a presença do ancestral entre os vivos. Reaviva as
s im
uma antiquíssima polémica sobre a imagem. No século
I de nossa era em Roma, Plínio, o Velho, irritava-se com os
colecionadores que enchiam
suas
galerias de estátuas que
não sabiam o. que representavam, estátuas que
estava
a l i em
vir tu de de sua arte, de sua bela aparência, e não como
ima
gens
dos ancestrais. Sua posição era característica daquilo
que chamo de regime ético das imagens.
Nesse
regime, um
retrato ou uma es tátua é sempre uma imagem de alguém e
sua legitimidade provém de sua relação com o homem ou o
deus que representa. O que Barthes opõe à lógica represen
tativa
do studium é essa antiga função
i m a g i n a i ,
essa função
de efígie, que garante a perma nência d a presença sensível de
u m indivíduo. No entanto, ele escreve n u m m u n d o e n u m
século em que não só as obras de arte, mas também as ima
gens em geral , são apreciadas por si mesmas, e não como
almas de ancestrais. Portanto, ele precisa transformar a efí
gie do ancestral em
punctum
da morte, ou
seja,
em afeto
p r o
duzido diretamente sobre nós pelo corpo daquele que esteve
diante
da objetiva, que já não está lá e cuja fixação sobre a
i m a g e m
significa o domínio da morte sobre o
vivo.
Barthes realiza assim um cu rto-circu ito entre o passa
do
d a i m a g e m e a i m a g e m d a m o r t e . O r a , esse
cur t o -c ircui
to apaga os traços característicos da fotografia apresentada
po r ele, que são traços de indeterminação. A singularidade
da fotografia de Lewis Payne, na verdade, decorre de três
formas de indeterminação. A prim eira diz respeito à seu
dispositivo visua l : o jovem está sentado segundo uma d is
posição bem pictórica, l igeiramente inclinado, na fronteira
de uma zona de luz e uma zona de sombra. Mas não pode
m os
saber
se a localização foi escolhida pelo fotógrafo e,
caso a tenha escolhido, se o fez preocupado com a v i s i b i l i
dade ou por reflexo estético. Tampouco sabemos se ele
s i m
plesmente reg istrou as irregula ridad es e os traços d esenha
dos nas paredes ou se os
va lo r izo u
intenc ionalmente. A
segunda indeterminação d iz respei to ao trabalho do tempo .
A textura da foto traz a marca de um tempo passado. Em
1 9
compensação, o corpo, a roupa, a p ostura e a intens idade do
— -o íct^v-vtxy
W v C » > <*U .
N
-
1
~ °
pressar
diante da objetiva. Portanto, estamos diante deles na
8/11/2019 espectador emancipado.pdf
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olhar
do jovem po dem ser s i tuados sem dificuldade em nos
so presente, negando a distância temp oral . A tercei ra inde
terminação diz respei to à at i tude da personagem. Mesmo
sabendo que ele vai morrer e por quê, é imposs ível ler nesse
olhar as razões de sua tentativa de assassinato e seus sent i
mentos perante a morte im inente. A pensat ividade da
fo t o
g raf ia
pod eria então ser definida como
esse
nó entre várias
indeterminações. Poderia ser caracterizada como efeito da
circulação entre o mo t ivo , o fotógrafo e nós , do intenc ional
e do não
in tencional ,
do sabido e do não sabido, do
expresso
e do não expresso, do presente e do passado. Ao contrário
do que diz Barthes , essa pensat ividade consis te aí na im
possibil idade de criar coincidência entre duas imagens, a
imagem soc ialmente determinada do condenado à morte e
a imagem de um jovem com uma curios idade um tanto ne
gl igente,
a f ixar um ponto que não vem os.
A pensatividade da fotografia seria, então, a tensão
entre vários modos de representação. A fotog rafia de L ewis
Payne apresenta-nos três imagens, ou melhor, três funções-
- imagens numa única imagem: há a carac terização de uma
identidade; há a disposição plástica intencional de um corpo
n u m espaço; e há os aspectos que o regi s tro da máquina nos
revela sem que saibamos se foram intencionais. A fotografia
de Lew is Payne não é do domínio da arte , mas permite-nos
compreender outras fotografias que se jam intenc ionalmente
obras de arte ou apresentem simultaneamente caracteriza
ção social e indeterminação estética. Se voltarmos à adoles
cente de Rineke Dijkstra, compreenderemos por que ela é
representativa do lugar da fotog raf ia na arte contemporânea.
Por um lado, ela pertence a uma série que representa
seres
do mesmo género:
adolescentes
f lut ua nd o um pouco em seu
próprio corpo, indivíduos representando identidades em
transição, entre idades, condições sociais e modos de vid a -
mu itas
dessas imagens foram fei tas em ex-países comunis
tas . Mas , por o utro lado, elas nos impõem presenças brutas,
seres sobre os quais não sabemos o que os levou a posar
diante de uma art i s ta , nem o que pretendem mostrar e ex
i l o
mesma posição em que ficamos diante das pinturas do pas
sado que representam nobres floren tinos ou venezianos que
n ão sabemos quem eram ne m que pensamento habi tava seu
olhar
captado pelo pintor. Barthes opun ha à semelhança se
g u n d o as regras do studium aquilo que chamei de arquisse-
melhança, presença de u m afeto di reto do corpo. Mas o que
podemos ler na imagem da adolescente polonesa não é nem
u m a
coisa
nem o utra. É o que chamarei de semelhança de
sapropriada.
Essa
semelhança não nos remete a nen hum ser
real com o qual pudéssemos comparar a imag em. Mas tam
bém não é a presença do ser único de que fala Barthes. E a
presença do ser qualquer, cuja identidade não tem importân
cia, ser que fur t a seus pensamentos ao oferecer seu rosto.
Podemos ser tentados a dizer que esse t ipo de efeito
estético é próprio do retrato, segundo Benjamin o último
refúgio do "valor cul t ua l" . Em compensação, diz ele , quan
do o ho me m está ausente, o valor de exposição da fotografia
prevalece decididamente. Mas a distinção entre
cul t ua l
e
exposicional que estrutura a análise de Benjamin talvez
seja
tão problemática quanto a do studium e d o punctum de Bar
thes. Vejamos, por exemplo, uma fotografia feita na época
em que Benjamin escrevia por um fotógrafo que, como ele,
inc luía Atget e Sander entre suas referências favoritas, ou
seja, Walk er Evans . É um a foto de um pedaço de parede de
madeira de uma cozinha no Alabama.
Sabemos
qu e essa
foto faz parte do contexto geral de uma iniciativa social com
a qual Walk er Evans colaborou por alg um tempo - a grande
pesquisa sobre as condições de vid a do s camponeses pobres
que atuavam so^ç on ^a nd j j^ no f i m da década de 1930, da
Farm Security
A d m i n i s t r a t io n
- e do contexto mais preciso
do l ivro feito em colaboração com
James
A g e e , Let US Now
Praise
Famous Men. Pertence agora a um
corpus
de fotogra
fias vi s to nos museus como obra autónoma de um art i s ta .
M a s , o l h a n d o a foto, percebemos que a tensão entre arte e
reportagem soc ial não decorre s implesmente do trabalho do
tempo que transform a em obras de arte os tes temunhos so
bre a sociedade. A tensão já está no cerne da imagem. Por
111
/> W *v «&"»<_ , C TT-VMS
possível
saber
se o aparelho simplesmente os registrou de
passagem
ou se o fotógrafo os enquad rou e
va lo r izo u cons
8/11/2019 espectador emancipado.pdf
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W a lk er Evans,
Kitchen
Wall
in
Bud Fields
House, 1936.
I m a g e
co py r ig h t
© The
M e t ro p o l i t a n M u s e u m o f
A r t . Im ag e so u r c e : Ar t
Resource, N Y .
u m lado,
esse
pedaço de parede feito de tábuas com sarrafos
pregados de través e
seus
talheres e utensíl ios de folha de
flandres sustentados por travessas representa bem o cená
ri o
de vid a miserável dos fazendeiros do Alabama. Mas ,
para mostrar essa miséria, o fotógrafo precisava realmente
t irar essa foto em pr ime iro p lano de quatro tábuas e uma
dúzia de
talheres?
Os elementos sinaléticos da miséria com
põem ao mesmo tempo certa decoração artística. As tábuas
ret i líneas lem bram os cenários quase abstratos que na
mes
ma época eram vistos nas fotografias, sem objetivo social
específico, de Charles Sheeler e Ed w a rd Weston. A s implic i
dade do sarrafo pregado que
serve
para organizar os talhe
res lembra à sua maneira a ideologia dos arqui tetos e de
signers
modernistas, apreciadores de materiais simples e
brutos
e de soluções racionais de organização, que possibi
l i tam al i jar o horror dos bufes burgueses. A disposição dos
objetos de través parece obedecer a uma es tét i ca do ass imé
trico.
Mas é imposs ível
saber
se todos
esses
elementos "es
téticos" são efeito dos acasos da vid a pobre ou se resul tam
do gos to dos ocupantes do lugar
26
. D o m e s m o m o d o , é i m -
26
James
Ag e e , qu e , a l i ás , d e se nv o l v e anál i se s br i l hant e s sobre a p r e se nç a o u a
au sê nc i a d e p r e o c u p aç õ e s e s t é t i c as no habitat dos pobres, remete-nos aí ao
t e s t e m u nho nu d a
f o to g r a f ia :
" D o
o utr o
l ad o d a c o z i nha há u m a m e si nha nu a
o n d e eles fazem as refeições; e , nas paredes, aquilo que os senhores p o d e m
v e r nu m a d as f o t o g r af i as
deste
l i v r o . " Louons maintenant les grands hommes,
t ra d .
Jean Q u e v a l , T e r re H u m a i n e Poche, 2003, p. 194.
112
cientemente, se viu aquela decoração com o índice de u m
m o d o de vid a ou como uma reunião s ingular e quase abs
traía de l inhas e objetos.
N ão sabemos o que exatamente Walker Evans t inha
em mente ao
t irar
essa
foto.
M as a pensat ividade da foto não
se reduz a essa i gnorânc ia. Pois t a m b é m sabemos que Walk er
Evans t i n h a uma ideia precisa
sobre
fotografia , uma ideia
sobre
arte, que, significativamente, não era extraída de um
artista
visua l , mas de um romancis ta por ele admirado,
Flaubert .
Essa
ideia é que o artista deve ser invisível em sua
obra, tal como Deus na natureza. Esse olhar
sobre
a d i s p o
s ição es tét ica s ingu lar dos acessórios de um a cozinha pobre
do Alabama pode lembrar-nos o olhar que Flaubert atr ibui
a Charles Bovary ao descobrir nas paredes escamadas da
fazenda de Rouault a cabeça de M i n e r v a desenhada pela
colegial Em ma para seu p ai . Mas , sobretudo, na imagem fo
tográfica da cozinha d o Alabam a, ass im como na descrição
l iterária da cozinha n orma nda,
existe
a mesma relação entre
a qualidade estética do
mo t ivo
e o trabalho de impessoal i -
zação da arte. Não nos deve enganar a expressão "qualidade
estét i ca" . N ão se trata de subl imar um mo t ivo banal por
meio do trabalho de es t i lo ou de enquadramento. O que
Flaubert e Evans fazem não é uma adjunção artística ao ba
na l . Ao contrário, é uma supressão: o que o banal adquire
neles é certa indiferença. A neutralidade da
frase
ou do en
quadramen to cria uma flutuação nas propriedades de
id e n
ti ficação social . Essa flutuação criada é, assim, resultado de
u m trabalho da arte para tornar-se invisível . O trabalho
da imagem prende a banalidade social na impessoalidade da
arte, retira-lhe o que faz dela a simples expressão de uma
si tuação o u de u m caráter determ inado.
Para
compreender a "pensat ividad e" que es tá em jogo
nessa relação entre banal e impessoal, vale a pena dar mais
u m
passo
atrás no caminho que nos leva da
adolescente
de
Rinek e Di jk s tra à cozinha de Walk er Evans e da cozinha
de Walk er Evans à de Flaubert. Esse passo nos leva àquelas
113
pinturas de pequenos m endigos sevi lhanos feitas por M u
ri l lo e conservadas na Galeria Real de
M u n i q u e .
D e t e n h o -
passou para um movimento imóvel , semelhante à radical
r
8/11/2019 espectador emancipado.pdf
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-m e
nelas
em razão de um comentário s ingular que Hegel
lhes dedicou em seu Curso de estética. Ele fala incidentemen
te sobre elas no desenvolvimento de um texto dedicado à
pint ura
de género flamenga e holandesa, no qual se empe
nha em inverter a clássica avaliação do valor dos géneros de
pint ura em função da d ig nidade de
seus
mot ivos. M a s H e g e l
não se
l imi ta
a dizer que todos os motivos são igualmente
apropriados
à p int ura . Estabelece uma relação estreita entre
a vir t ud e dos quadros de M u r i l l o e a atividade daqueles pe
quenos mendigos, que consiste precisamente em não fazer
nada, em não se preocupar com nada. Há neles, segundo
nos diz, total despreocupação com o exterior, uma l iberdade
interior no exterior que é exatamente aquilo que o conceito
de ideal artístico reivindica. Eles d e m o n s t r a m u m a b e m -
-aventurança quase semelhante à dos deuses ol ímpicos
27
.
Para
fazer
esse
comentário, Hegel já precisa ter como
evidente que a vir t ud e essencial do s deuses é não fazer
nada, não se preocupar com nada e não querer nada. Preci
sa ter como evidente que a suprema beleza é a beleza que
expressa essa indiferença. Essas c renças não são óbvias . Ou
melhor , só se tornam óbvias em função de uma rupt ura já
efetuada na economia da expressividade, bem como na re
flexão sobre a arte e o d ivino. A
beleza
"ol ímpica" que Hege l
atr ib u i aos pequenos mendigos é a
beleza
do
A p o l o
do Bel
vedere que sessenta anos antes fora celebrada por W i n c k e l
m a n n , a beleza da divindad e despreocupada. A im agem
pensat iva é a imag em de uma suspensão de atividade,
a qui
lo qu e W i n c k e l m a n n , por outro lado, ilustrava na análise do
Torso
do Belvedere: para ele, aquele torso era de um Hércu
les em repouso, um Hércules a pensar serenam ente em seus
feitos passados, mas cujo pensamento se expressava por
i n
teiro nas pregas do dorso e do ventre, cujos músculos fluíam
uns para os outros como
vagas
que se elevam e caem. A
atividade tornou-se pensamento, mas o próprio pensamento
27. He g e l , Cours d'esthétique,
t ra d .
fr .
Jean-Pierre
L e f e bv r e e V e r ó ni c a v o n
Schenck, Aubier, 1995, t . 1, p. 228.
114
indiferença das vagas do mar.
O que se manifesta na serenidade do Torso ou dos pe
quenos men digos , o que confere vir t ud e pictórica à fotogra
fi a da cozinha do Alabama ou da adolescente polonesa é
u m a mudan ça .de estatuto nas relações entre pensam ento,
arte , ação e ima gem . É essa mudança que marca a
passagem
de um regime representat ivo da expressão a um regim e es
tético. A lógica representativa dava à imagem o estatuto de
complemento expressivo. O pensamento da obra - seja ela
verbal ou vi sual - real izava-se na forma de "hi s tória" , ou
seja, de composição de uma ação. A imagem dest inava-se
então a intensificar a força
dessa
ação.
Essa
intensificação
t i n h a duas grandes formas: por um lado, a dos traços de
expressão di reta, que tradu zem na expressão dos ros tos e na
atitude
dos corpos os pensamentos e os sentimentos que
a n i m a m as personagens e determinam suas ações ; por ou
tr o l ado, a das f iguras poét icas que põem um a expressão no
lu g ar
de outra. Nessa tradição, a imagem era, portanto, duas
coisas: representação direta de um pensamento ou de um
sentimento; e f igura poét ica que subs t i tui um a expressão
po r outra para aumentar sua força. Mas a
f igura
podia de
sempenhar esse papel porque exis t ia uma relação de com
patibilidade entre o termo "próprio" e o termo " f igura d o " ,
po r exemplo entre águia e majestade ou entre leão e cora
gem. A presentação direta e des locamento f igu r ai eram as
s im uni f i cados sob um mesmo regime de semelhança. E
essa homogeneidade entre as di ferentes semelhanças que
define propriame nte a mimese c láss ica.
É em relação a
esse
regime homogéneo que ganha
sentido aqui lo que chamei de sem elhança desapropriada. É
frequente descrever-se a
rupt ura
es tét i ca moderna como
passagem do regime da representação a um regime de pre
sença ou apresentação.
Essa
vi são deu ensejo a duas gran
des vi sões da modernidade art í s t i ca : há o modelo fel i z de
autonomia da arte em que a ideia artística se traduz em
for
mas materiai s , com um cu rto-circu ito na mediação da ima
gem; e há o m odelo trágico do "sub l ime" em que a presença
115
sensível manifesta, ao contrário, a ausência de qualquer re
no exato mom ento em que a narrat iva chega a o f i m , a " p e n
sat iv idade"
vem negar esse f im ; vem suspender a lógica
8/11/2019 espectador emancipado.pdf
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lação comensurável entre ideia e materialidade sensível .
O r a , nossos
exemplos poss ib i l i tam conceber uma terceira
maneira de pensar a rupt ura estética: esta não é a supressão
da imagem na presença di reta, mas sua emancipação em
relação à lógica u nif icadora da ação; não é a rupt ura da rela
ção entre inteligível e sensível , mas um novo estatuto da i -
g u ra .
Em sua acepção clássica, a
f igura
cojnjungia dois
s i g n i
ficados: era uma presença sensível e era uma operação de
des locamento que punh a uma expressão no lugar de outra.
Ma s, no regime es tét i co, a
f igura
j á não é s implesmente um a
expressão que vem para o lugar de outra. São dois regimes
de expressão que se encontram entrelaçados sem relação
d e f inid a .
É isso que a descrição de Winck elmann emblema-
t iza :
o pensamento es tá nos músculos , que são como
vagas
de pedra; mas não há nenhuma relação de expressão entre
o pensamento e o movim ento das vagas . O pensamento
passou para alguma coisa que não se lhe assemelha por ne
n h u m a
analogia
d e f inid a .
E a at ividade orientada dos mús
culos passou para seu contrário: a repetição ind e f inid a , pas
s iva, do movimento.
A pa r t ir daí é possível
pensar
pos i t ivamente a
pensa
t ividade
da imag em. Ela não é a aura ou o
punctum
do apa
rec imento único. Mas também não é s implesmente nossa
ignorância do pensamento do autor ou a resistência da
i m a
g e m à
nossa
interpretação. A pensat ividade da imagem é
pro d ut o
desse novo es tatuto da
f igura
que conjunge dois
regimes de expressão sem os homogeneizar.
Para
compreen
dê-lo, voltemos à
l iteratura,
a
pr ime ira
qu e
t o rno u
explícita
essa função da pensatividade. Em S/Z, Roland
Barthes
co
mentava a úl t ima
frase
de
Sarrasine
de
Balzac:
" A
marquesa
ficou pensat iva. " O adjet ivo "pensat iva" chamava com razão
a sua atenção: parece des ignar um
estado
de espírito da per
sonagem. M as , no lugar onde é posto por
Balzac,
na real ida
de faz exatamente outra coisa. Real iza u m des locamento do
estatuto do texto. Isto porque estamos n o f i m d e u m a n a r r a
t iva : o
segredo
da história foi revelado, e essa revelação pôs
f im às esperanças do narrador em relação à marquesa. Ora ,
116
narrativa em favor de uma lógica expressiva indeterminada.
Barthes
v ia nessa "pensat ividad e" a marca do "texto c láss i
co" , uma maneira como esse texto significava que ainda t i -
nha sentidos-de reserva, ainda um
excedente
de plenitude.
Acredito ser possível fazer uma análise totalmente diferente
e ver
nessa
"pensatividade", ao contrário de Barthes, uma
marca do texto moderno, ou seja, do regime estético da ex
pressão. A p e n sati vi d ad e ve m real me n te co n trari ar a l ó g i ca
d a ação . P o r u m l ad o , p ro l o n g a a ação qu e estava p aran d o .
M a s , p o r o u t r o , s u s p e n d e q u a l q u e r c o n c l u sã o ; O q ue s e in
terrompe é a relação entre narração e expressão. A história
fica
b loqueada num quadro. Mas
esse
quadro marca uma
inversão da função da imagem. A lógica da vi sual idade já
não vem suplementar a ação. Vem suspendê-la , ou melhor,
substituí-la.
É isso o que outro romancista, Flaubert, pode fazer-
-nos compreender. Cada um dos momentos amorosos que
p o n t u a m Madame Bovary é marcado por um quadro, por
u m a
pequena cena
visua l :
um a gota de neve fund id a caindo
sobre
a s o m b r i n h a d e E m m a , u m i n se t o
sobre
um a folha de
nenúfar, gotas de água ao sol , nuvem de poeira de uma di
l igência. São
esses
quadros ,
essas
impressões fugazes e pas
sivas que desencadeiam os acontecimentos amorosos. E
como se a
p int ura viesse
tomar o lugar do encadeamento
narrativo do texto. Esses quadros não são simples cenários
da cena amorosa; também não s im bol iza m o sentimento
amoroso: não há nenhuma analogia entre um inseto
sobre
u m a folha e o nasc imento de um amor. Portanto, não são
complementos de express ividade trazidos à narração. A n
tes, trata-se de uma troca de papéis entre a descrição e a
narração, entre a
p int ura
e a
l iteratura.
O
processo
d e i m -
pessoalização pode ser aí
formu lado
como a invasão da ação
literária pela passividade pictórica. Em termos deleuzianos,
seria possível falar em heterogênese. O
visua l
suscitado pela
frase
j á não é u m complemento de express ividade. Tam pou
co é simples suspensão, como a pensatividade da marquesa
117
de
Balzac.
É o elemento da construção de outra
cadeia
n a r
ra t iva :
um encadeamento de microeventos sens ívei s que
ou
espirais abstraías
sobre
um território. Seu
f i lme
Roads of
Kiarostami o r g a n i z a u m a passagem notável entre
esses
dois
8/11/2019 espectador emancipado.pdf
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v e m sub st i tui r o encadeamento c láss ico das causas e dos
efeitos, dos fins projetados, de
suas
real izações e
suas
c o n
sequências . O romance constrói -se então como a relação
sem relação entre duas cadeias fac tuais : a cadeia d a n a r r a
t iva orientada do começo para o
f i m ,
com nó e desfecho, e
a
cadeia
dos microeventos que não
obedece
a
essa
lógica
orientada, mas se di spersa de maneira aleatória sem co
meço ne m fi m , sem relação entre
causa
e efeito. Sabe-se
que Flaubert foi representado ao mesm o tem po como papa
do natural i smo e decantador da arte pela arte . Mas
n a t u
r a l i s m o
e arte pela arte são apenas maneiras uni laterai s de
des ignar uma única e mesma coisa, a saber, o entrelaça
mento de duas lógicas que é como a presença de uma arte
na outra.
Se vol tarmos à fotografia de Walk er Evans , podere
mos compreender a referência do fotógrafo ao romancista.
Essa
fotografia não é nem o regi s tro
brut o
de um fato social ,
nem a composição de um esteta que faça arte pela arte à
custa dos pobres camponeses cuja miséria ele deve mostrar.
Marca a contaminação de duas artes, de duas maneiras de
"mostrar" : o excesso literário, o excesso daqui lo que as p a
lavras projetam
sobre
aqui lo que des ignam vem habi tar a
fotog raf ia de W alk er Evans , ass im como o m uti sm o pic tóri
co habitava a narração l i terária de Flaubert. O poder de
transformação do bana l em impessoal , for jado pela l iteratu
ra , sulca a pa r t ir d o interior a aparente evidência, a aparente
imediatez da
foto.
A pensat ividade da imagem é então a
presença latente de um reg ime de expressão em
outro.
U m
b o m
exemplo contemporâneo
dessa
pensatividade pode ser
dado pelo trabalho de Abbas K i a r o s t a m i entre c inema,
fo t o
g raf ia
e poesia. Sabe-se da importância que as
estradas
têm
em seus f i lmes. Sabe-se também que ele lhes dedicou várias
séries fotográficas. Essas imagens são, exemplarmente,
i m a
gens pensativas pela maneira como conjung em dois modos
de representação: a es trada é um tra jeto orientado de um
p onto
a
o ut ro
e é, inversamente, um
puro
traçado de l inhas
118
t ip os de estrada. A câmara de início
parece
percorrer as fo
tografias do art i s ta . Como f i l m a em preto e branco fotogra
fias coloridas, ela acusa seu caráter gráfico, abstraio; trans
f o r m a as
paisagens
fotografadas em
desenhos
ou mesmo
em cal igrafias . Mas a certa al tura o papel da câmara se in
verte.
E la
parece
tornar-se um instrumento cortanie que
rasga aquelas
superfícies
semelhantes
a folhas de desenho,
devolvendo aqueles
grafi smos à paisagem da qu al
t i n h a m
sido
abstraídos . Ass im, f i lme, fotogra fia , desenho, cal igrafia
e p o e m a v ê m m i s t u r a r seus poderes e intercambiar
suas
singularidades. Já não é simplesmente a
l iteratura
q ue
cons-
í rói seu tornar-se-piníura imaginário, nem a fotografia que
evoca
a metamorfose l i terária do banal. São os regimes de
expressão que se entrecruzam e criam combinações s ingu
lares de trocas, fusões e afastamentos. Essas combinações
cr iam formas de pensat ividade da imagem que refutam a
oposição entre o studium e o punctum, entre a operativida de
da arte e a imediatez da imagem. A pensat ividade da
i m a
gem não é então privilégio do si lêncio fotográfico ou pictó
rico. O próprio si lêncio é certo í ipo de f igura l id a d e , certa
tensão entre regimes de expressão que é íambém um jogo
de trocas entre os poderes de mídias diferentes.
Essa tensão pode então caracterizar modos de p r o d u
ção de imagens cuja artificialidade
parece, a priori,
vedar a
pensatividade da frase, do quadro ou da foto. Penso aqu i na
imagem de vídeo. N a época do desenvolvimento da arte do
vídeo, na década de 1980, alguns artisías pensaram a técni
ca nova como meio de uma aríe desembaraçada de ioda e
qualquer submissão passiva ao espetáculo do visível . De
fato, a matéria v i s u a l já não era pro d uzid a pela impressão de
u m espetáculo
sobre
uma película sensível , mas pela ação
de um sinal eletrônico. A arte do vídeo devia ser a arte de
formas visíveis engendradas diretamente pelo cálculo de
u m pensamento art í s íi co, di spondo de uma matéria i n f i n i -
tamente m aleável. Ass im, a imag em de vídeo já não era re
a l m e n te u m a i m a g e m . C o m o d iz ia u m d o s defensores dessa
119
arte : "Es tri tamente, não existe nenhum instante no tempo
du rante
o
qua l
se
possa
dizer que a imagem de vídeo exi s
pincel d e u m pintor: um a personagem a usar um boné, uma
espécie de criatura mitológica que
aparece
no topo de um
8/11/2019 espectador emancipado.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/espectador-emancipadopdf 62/66
t e . "
28
Em suma, a imagem de vídeo parec ia destruir o que
era pecul iar na image m, ou seja, sua parcela de passividade
resistente ao cálculo técnico dos fins e dos meios e à leitura
adequada dos significados no espetáculo do visível .
Parecia
destru ir o poder de suspensão pecul iar à imag em. N isso al
g u n s v i a m o meio de uma arte inteiramente senhora de seu
materia l
e de
seus
meios; outros, ao contrário,
v i a m
a perda
da pensatividade cinematográfica. Em seu l ivro L e Champ
aveugle [O campo cego], Pascal Bonitzer denunciava essa
superfície maleável em perpétua metamorfose. O que desa
parecia eram os
cortes
organizadores da imagem: o quadro
cinematográfico, a unidade do plano, os
cortes
entre o den
tr o e o fo ra, o antes e o depois, o campo e o fora de campo , o
próximo e o distante. Portanto, era também toda a economia
afetiva l igada a esses
cortes
qu e
desaparecia.
O cinema,
como a l iteratura,
vivia
da tensão entre uma temporal idade
do encadeamento e uma tempora lidade do corte. O vídeo
fazia
desaparecer
essa
tensão em
proveito
de uma circulação
in f in i ta das metamorfoses da matéria dócil .
O r a , ocorreu com a arte do vídeo o mesmo que com a
fotog raf ia . Sua evolução desm entiu o di lema entre antiarte
ou
arte radicalmente nova. A imagem de vídeo também
soube
conquis tar o lugar de um a heterogênese, de uma ten
são entre diversos regimes de expressão. É o que nos leva a
compreender uma obra característica dessa época. The Art of
Memory,
de Woo dy Vasulk a, realizada em 1987, é obra de
u m artista que se
concebia
então como escul tor a manip ular
a argi la da imagem. N o entanto, aquela escul tura da i m a
gem cria uma forma inédi ta de pensat ividade. A homoge
neidade do ma terial e do tratamento videográfico
presta-se
a várias di ferenciações . Por um lado, temos um a mistu ra de
dois t ipos de imag em: há imagens que podem ser cons ide
radas analógicas, não no sentido técnico, mas no sentido de
apresentarem
paisagens
e
personagens
do modo como es
tas poderiam
aparecer
na abertura de uma objetiva ou sob o
28 . H o l l i s F r a m p t o n ,
UÉcliptiquc du
savoir, C e nt r e
Georges
P o m p i d o u ,
1999, p. 92.
12
rochedo, um cenário de deserto cujas cores foram trucadas
eletronicamente, mas que nem por
isso
deixa de apresentar-
-se como o análogo de uma paisagem real . Ao lado disso, há
toda
uma série de formas metamórficas dadas expl ic i ta
mente como artefatos, como produções do cálculo e da má
qu ina.
Pela
forma , mostram-se como escul turas m oles ; pela
textura,
como
seres
feitos de puras vibrações luminosas. São
como
vagas
e letrônicas , puros comprimentos de ondas sem
correspondência com nenhuma forma
na t ura l
e sem ne
n h u m a função expressiva. Ora, essas
vagas
eletrônicas so
f re m
duas metamorfoses que as convertem no teatro de
u m a pensatividade inédita. Em pr ime iro lugar, a form a mole
se
estende
numa tela, no meio da paisagem desértica. Nessa
tela, vemos projetar-se imagens características da memória
de um século: o cogumelo da bomba de
H i r o s h i m a
ou os
episódios da g uerra civi l espanhola. Mas a forma-tela , com
os meios de tratam ento do vídeo, sofre outra metamorfose.
Torna-se
o c a m i n h o m o n t a n h o s o p o r o n d e
passam
os com
batentes, o ^enotá fio dos soldados m ortos ou u ma rotat iva
de imprensa da
qua l saem
retratos de D u r r u t i . A forma ele-
trônica torna-se ass im um teatro da mem ória.
Torna-se
u m a
máquina de transformar o representado em representante,
o suporte em
mo t ivo ,
o d o c u m e n t o e m m o n u m e n t o .
Mas , ao realizar essas operações , essa form a se
recusa
a reduzir-se à pura expansão da matéria metamórfica. M es
m o quando se torna suporte ou teatro de ação, continua a
fu ncionar
como tela, em seus dois sentidos. A tela é uma
superfície de manifestação, mas também uma superfície
opaca
que impede as identif i cações . Ass im, a forma eletrô-
nica
separa
as imagens cinzentas do arquivo das imagens
coloridas da paisagem de western. Portanto,
separa
dois re
g imes de imagens analógicas . Ao separá-los , divide sua
própria hom ogeneidade. Descarta a pretensão a uma arte
em que o cálculo artístico se traduz exatamente na matéria
vis ível . A pensat ividade da imagem é essa distância entre
duas presenças : as formas abstraías engendradas pelo pi n-
121
cel e letrônico criam u m espaço menta l em que as imagens e
os sons da Alemanha nazis ta , da guerra civi l espanhola ou
matográfica. É o que Godard chama de fraternidade das
metáforas : a poss ib i l idade de uma at i tude desenhada pelo
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da explosão de H i r o s h i m a
recebem
a form a visual que cor
responde àquilo que elas são para nós : imagens de arquivos ,
objetos de saber e memória, mas também obsessões , pesa
delos ou saudades . Vasu lk a cria um espaço m emo rial cere
bral
e, alojando nele as imagens das guerras e dos horrores
do
século,
descarta
os
debates
sobre
o irrepresentável
m o t i
vados pela desconfiança em relação ao real ismo da ima gem
e seus poderes emocionais. Mas, inversamente, os aconteci
mentos do século
pr iva m
o vídeo do sonho da ideia a en
gendrar sua própria matéria . Impõem -lhe as formas v i suais
que são
aquelas
nas quais se conservam e const i tuem uma
memó ria colet iva: f ilmes , te las , l ivros, cartazes o u
m o n u
mentos . A pensat ividade da imagem é então essa relação
entre duas operações que põe fora de si mesmos a forma
p u ra demais ou o acontecimento carregado demais de
reali
dade. Por um lado, a forma dessa relação é determinada
pelo
art i s ta . Ma s , por outro, é só o espectador que pode f ixar
a medida da relação, é só o seu olhar que confere realidade
ao equi l íbrio entre as metamorfoses da "matéria" informá
tica e a encenação da história de um século.
E tentador comparar essa forma de pensat ividade com
a que é posta em jog o por outro mon ume nto edi fi cado pelo
vídeo para a história do século XX, Histoires du
cinema
de
G o d a r d .
Este
ú l t imo sem dúvida trabalha de maneira to
talmente di ferente de Vasulk a. N ão constrói nenhuma má
qu ina de memória. Cria uma superfície na qual todas as
imagens podem des l izar umas
sobre
as outras . Define a
pensatividade das imagens com dois traços
essenciais.
Por
u m
l ado,
cada
u m a g a n h a
ares
d e u m a f o r m a , u m a
a t i t u
de, um
gesto
parado. Cada um desses gestos contém, de
alguma m aneira, o poder que Balzac atr ibuía à sua mar que
sa - o de condensar uma his tória num quadro - , mas tam
bém o de pôr outra hi s tória a caminho. Cada um desses
ins tantâneos pode então ser
destacado
de seu suporte par
t icular,
deslizar
sobre
o u t r o o u
acoplar-se
co m
o ut ro :
o
pla
n o
de c inema com o quadro, a foto ou a atual idade c ine-
122
lápis de Goya associar-se com o desenho de um plano c ine
matográfico ou com a forma de um corpo supl ic iado nos
campos de concentração nazistas, captado pela objetiva fo
tográfica; a possibil idade de escrever de múltiplos modos a
história do século, em vir t ud e dos dois poderes de
cada
imagem: o de condensar uma
multiplicidade
de
gestos
s ig
nificativos
de um tempo e o de
associar-se
com todas as
imagens dotadas do mesmo poder. Ass im , no f i m do
pr i
meiro episódio das Histórias, o jovem da Cena de banho de
Asnières de Seurat ou os passeantes de Tarde d e domingo n a
Grande Jatte
tornam-se f iguras da França de maio de 1940, a
França do Front Popular e das férias pagas, apunhalada por
u m a
A l e m a n h a n a z i st a s i m b o l i z a d a po r u m a devassa po l i
cial extraída de O Vampiro de Dusseldorf de Fri tz Lang, após
o que vemos b l indados , extraídos de atual idades c inem ato
gráficas, enfiar-se nas
paisagens
impress ionis tas , enquanto
alguns planos extraídos de f i lmes -
A Morte de Siegfried, O
Testamento
do
Doutor Mabuse,
Ser ou não ser
- vêm mostrar
que as imagens do c inema já t inh am desenhado as formas
daqu ilo que, com a guerra e os campos de extermínio, se
tornaria imagens de atual idade c inematográfica. N ão volta
re i à anál i se dos procedimentos de Godard
29
. O que me in
teressa aqui é a maneira como ele põe em prática o trabalho
da
f igura
em três níveis. Em
pr ime iro
lugar, ele radicaliza a
f o r m a de f ig u ral idade qu e
consiste
em entrelaçar duas lógi
cas de encadeamento:
cada
e lemento é art i culado a
cada
u m
dos outros segundo duas lógicas, a do encadeamento narra
tivo
e a da m etaforização
in f in i ta .
N u m s e g u n d o n ív e l, a
i -
g u ral idade é o modo como várias
artes
e várias mídias in
tercambiam
seus
poderes. Mas, num terceiro nível , é o
m o d o
como uma arte
serve
para const i tui r o imaginário de
outra. G odar d quer fazer com as imagens do c inema aqui lo
que o próprio cinema não fez, porque t r a iu sua vocação ao
29. T o m o a l i be r d ad e d e r e m e t e r , a p r o p ó si t o , às anál i se s qu e ap r e se nt e i e m Fable
cinématographique, P ar i s , Se u i l , 2001, e Le Destin des images, P ar i s , L a Fabr i
qu e , 2003.
123
sacrificar a fraternidade das m etáforas ao comércio das his
tórias. Ao desligar as metáforas das histórias para com elas
outras, de assumir seu papel e de criar assim figuras novas,
redespertando poss ib i l idades sens ívei s que ha viam
esgota
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fazer outra "hi s tória" , Godard faz esse c inema que não foi .
M as o faz co m os meios da m o n t a g e m de vídeo. Constrói ,
na tela de vídeo, com os meios do vídeo, um c inema que
j amais
existiu.
Essa
relação de uma arte consigo mesma pela media
ção de outra pode fornecer uma conclusão provisória
a
esta
reflexão. Tentei dar alg um conteúdo a essa noção de pensa
t ivid a d e
que na imagem des igna algo que
resiste
ao p e n
samento, ao pensamento daquele que a p r o d u z i u e daquele
que procura identi f i cá-lo. Ao explorar algumas formas
des
sa resistência, quis mostrar que
ela
nã o
é
uma propriedade
const i tu t iva da natureza de certas imagens , mas u m j o g o
de separações entre várias funções-imagens
presentes
na
mesma superfície.
Entende-se
então po r que o mesmo jogo
de separações apresenta-se t a n t o na arte quanto fora dela,
e como as operações art í s t i cas podem construir essas for
mas de pensat ividade
pelas
quais a arte
escapa
a si mesma.
Esse
problema
não é
n o v o . K a n t
já
apontava
a
separação
entre a form a art í s t ica, a forma determinad a pela intenção
da arte, e a forma estética, aquela que é percebida sem con
ceito e rechaça qualquer ideia de f inal idade intenc ional .
K a n t
chamava de ideias estéticas as invenções da arte
capa
zes de estabelecer a junção entre duas "form as" , que é
t a m
bém um sal to entre dois regimes de apresentação sensível .
Tentei pensar essa arte das " ideias es tét i cas" ampl iando o
conceito de f igura , para fazê-la s igni f i car não mais a
subs
ti tuição de u m t e r m o p o r outro, mas o entrelaçamento de
vários regimes de expressão e do t rabalho de várias
artes
e várias mídias . Inúmeros comentadores quiseram ver
nas
novas mídias eletrônicas e informáticas o f im da al teridade
das imagens , quando não
o
f im das invenções da arte . M as
o computador, o s intet izador e as tecnologias novas em seu
conjunto não s igni f i caram o f i m d a i m a g e m e da arte tanto
quanto a fotografia ou o c inema em seu t e m p o . A arte da
era estética não deixou de se valer da poss ib i lidade que
cada
mídia podia oferecer de m i s t u r a r seus efeitos aos das
24
do . A s técnicas e os suportes novos oferecem possibil idades
inéditas a essas metamorfoses . A imagem não deixará tão
cedo
de ser pensativa.
25
Origem d o s t e x t o s
8/11/2019 espectador emancipado.pdf
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Os textos aqui reunidos representam a última versão
de conferências cujas versões anteriores foram apresentadas
em francês ou em inglês , depois de vários remanejamen-
tos, em diversas instituições universitárias, artísticas e
c u l
turais nos últimos quatro anos.
Agradeço pela contribuição para este
l ivro
a todas as
pessoas que me convidaram e acolheram, d iscutindo as di
versas
versões desses textos nas seguintes instituições:
Q u i n t a A cademia Interna c ional de Verão em F r a n k f u r t - a m -
- M a i n (2004); SESC Belenzinho em São Paulo (2005);
Esco
la
de Belas-Artes de
L yo n (2005),
C A P C d e B o rd e a ux
(2005);
Fest ival Home Work s em Beyrouth (2005); Inst i t ut o
C u l t u
ra l Francês de Estocolmo (2006); Segunda Bienal de
A r t e
de
M o s c o u (2006); Univers idade Internac ional Menendes Pe
layo
de Cuenca
(2006);
Fundação Serralves de Porto
(2007);
Hochschule der Kunste de
Zur ique (2007);
palácio Bozar de
Bruxelas (2007); Pacific
N o r t h
College of A r t s de Port land
(2008);
M u m o k
em Viena (2008).
Sódertõrn U n i v e r s it y Col lege (2006); U nivers idade de
Trondheim em Paris (2006); Univers idade de Copenhague
(2007); W i l l i a m s College em W i l l i a m s t o w n (2007); D a r t -
m o u t h Col lege (2007); Univers idade Europeia de São-Pe-
127
J_SPTPA>
tersburgo (2007); Centro Eik ones da Univers idade de Basi
leia (2007); U nive rs i ty of Califórnia, I rvine (2008); Unive rs i t y
8/11/2019 espectador emancipado.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/espectador-emancipadopdf 66/66
of
Brit ish
Columbia, Vancouver (2008);
U n i v e rs i t y
of
Ca l i
fórnia, Berkeley (2008).
" O espectador emancipado " fo i publ icado em sua sua
versão o r ig ina l inglesa no Art Fórum, XLV, n°. 7, março de
2007.
U m a
versão inglesa das "Desventuras do pensam ento
crítico" foi publicada em
Aporia,
Dartmouth
Undergraduate
Journal of Philosophy, outono de 2007.
Por f im, a reflexão
sobre
a imagem pensat iva deve
muit o ao seminário real izado em 2005-2006 no museu do
Jeu de Paume.
128
Arte e i lusão
Curso de
eséc
2 vols.)
O devir das artes
A educação pela pintura
A fotograf ia como arte
conemporâne
Hermenêut ica da obra de arte
O mundo do graf i te
Para o ator
Teimosia da imaginação