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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
ESPAÇOS, TEMPOS E LUGARES DOS GÊNEROS NA PESCA MANEJADA DE
PIRARUCUS: UMA ANÁLISE DO PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DO ACORDO DE
PESCA DO JARAUÁ/RESERVA DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL
MAMIRAUÁ-AM
Adriana Abreu1
Edna F. Alencar2
Resumo: O artigo analisa as relações de gênero no contexto da pesca manejada de pirarucus
(Arapaima gigas) realizada pelo coletivo de pescador(a)es denominado Acordo de Pesca do Jarauá
(APJ) cobrindo o período de 1999 a 2015. O objetivo é mostrar como as categorias de espaço e
tempo são percebidas por homens e mulheres e a existência de espaços e tempos diferenciados de
acordo com o gênero no cotidiano das atividades da pesca manejada, e como isso repercute nas
percepções do papel de cada gênero. Os dados analisados foram coletados com o uso do método
etnográfico, com a realização de entrevistas com pescadoras e pescadores associados ao Acordo de
Pesca do Jarauá; e do banco de dados do Programa de Manejo de Pesca (PMP) do Instituto de
Desenvolvimento Sustentável Mamirauá (IDSM), que presta assessoria técnica a projetos de manejo
realizados por pescadores e pescadoras que residem na RDS Mamirauá e no seu entorno. Como
resultados o artigo mostra que no plano do discurso existe uma distinção dos espaços e dos tempos
de homens e mulheres no âmbito da pesca manejada; as mulheres realizam principalmente as
atividades de pesca que ocorrem no espaço da terra, visto como sendo um domínio naturalmente
feminino, e o seu tempo completamente voltado para esse âmbito e os homens realizam atividades
de pesca que ocorrem em terra, nos lagos e rios, sendo o seu tempo percebido como “tempo de
trabalho”. Apesar desta distinção, percebemos que nas práticas cotidianas de homens e mulheres
existem movimentos de articulações e cooperação que borram essas separações entre os espaços;
tais movimentos muitas vezes são estimulados pelas pescadoras ao buscar uma participação mais
ativa em todas as atividades da pesca manejada. Concluímos que a agência das mulheres está
contribuindo para alterar os lugares e os tempos de trabalho na pesca manejada.
Palavras-chave: relações de gênero; pesca manejada; pescadoras; desenvolvimento sustentável.
INTRODUÇÃO
As áreas de várzea do curso médio do rio Solimões abrigam vários sistemas de lagos onde,
ao longo de mais de um século, grupos sociais realizam a pesca de pirarucus, sendo esta atividade
um dos pilares econômicos e a uma das principais fontes de alimentação da região. Alguns estudos
demonstraram a importância econômica da pesca na região amazônica desde o período colonial
(Veríssimo, 1985; Furtado, 1990). Mas o aumento da exploração da pesca dessa espécie a partir
dos anos 80, com o uso de tecnologias de grande impacto, levou à diminuição dos estoques de
1 Universidade Federal do Pará, Belém-Pará-Brasil. E-mail: abreu.cs@gmail.com 2 Universidade Federal do Pará, Belém-Pará-Brasil. E-mail: ealencar@gmail.com
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peixes. Apesar disso, a pesca artesanal voltada para o mercado regional continuou a ser uma das
principais atividades econômicas geradora de renda para as famílias ribeirinhas da região.
Segundo dados levantados por Alencar (2014), as estimativas do IBAMA demonstram que
cerca de 90% da produção pesqueira feita no Estado do Amazonas é realizada através da captura de
peixe por pescadores artesanais, o que evidencia a importância econômica e social da pesca para as
populações dessa região. Apesar dessa importância ainda são escassos os dados sobre as
características da cadeia produtiva, sobre as condições de trabalho, as percepções e vivências dos
pescadores e pescadoras, principalmente dados que discriminem as atividades e espaços de homens
e mulheres nessa atividade (FAO, 2012, 2016).
Na Amazônia os estudos pioneiros que abordaram a temática da divisão do trabalho na
pesca artesanal são os textos de Maria Angélica Motta-Maués (1999), Maneschy et al (1995, 2002),
Furtado (1990). Nos anos 1990 Edna Alencar (1991, 1993), seguindo a esteira de estudos como o
realizado por Beck (1991) na região litorânea de Santa Catarina, desenvolve estudo inédito sobre as
relações de gênero na pesca artesanal em uma área litorânea do Maranhão, e posteriormente
desenvolve pesquisas com sociedades pesqueiras que habitam as águas interiores da Amazônia
(2000, 2011, 2013, 2014; Alencar et al 2015). A nível nacional outros estudos discutiram o papel da
mulher na pesca, como de Ellen Woortman (1991), Sara Soares (2012), de Rose Mary Gerber
(2013) e os estudos coordenados por Maria do Rosário Leitão (2008; 2012, 2013).
Contudo, ainda são raras pesquisas que tratam sobre o tema do trabalho da mulher na pesca
na região Amazônica (Soares, 2012, 2014; Scherer, 2013; Alencar, 2014, 2013, 2017; Abreu,
2015;). Sendo assim, a partir de um estudo de caso, o objetivo desse artigo é mostrar como se
estabelecem as relações de gênero e o papel de homens e mulheres no contexto da pesca manejada
de pirarucus, procurando destacar as percepções e tensões que marcaram o processo de construção
do projeto denominado de Acordo de Pesca do Jarauá (APJ).
O Acordo de Pesca do Jarauá (APJ) foi o primeiro projeto elaborado e desenvolvido por
moradores da Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá (RDSM)3 visando realizar a
3 A RDSM é uma unidade de conservação, de tipo sustentável, criada em 1996 e está situada na região do Médio
Solimões, na confluência dos rios Solimões e Japurá, entre as Bacias do Rio Solimões e do Rio Negro, com o objetivo
de conciliar o desenvolvimento econômico com a conservação dos recursos naturais e melhoria das condições de vida
dos grupos sociais que residem na área (Queiroz, 2005)
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gestão pesqueira de uma espécie, o pirarucu (Arapaima gigas). A coordenação do projeto é feita por
uma associação de pescador(a)es manejadore(a)s, a APJ. As atividades desenvolvidas seguem
normas e etapas de execução elaboradas pelo grupo estão instituídas em documentos como o
Regimento Interno4 (RI) e em Portarias e Instruções Normativas que dispõe sobre as regras para a
realização da pesca dessa espécie em todo o estado do Amazonas, elaboradas pelo órgão
responsável pela gestão da pesca, o IBAMA-AM.
Ao longo de quase duas décadas esse projeto passou por várias mudanças em sua
composição e teve várias coordenações, sendo que umas delas foi assumida por uma mulher que
coordenou por vários anos. A análise procura mostrar as formas de inserção de homens e mulheres
não apenas no contexto da pesca manejada de pirarucus, como também na vida social e política das
comunidades, além de enfatizar o papel das mulheres enquanto sujeitos ativos, cuja atuação pode
conduzir à proposição de modelos alternativos de relações de gênero e de políticas mais equitativas
de acesso aos recursos naturais (Schmink 1999).
Os dados analisados aqui foram obtidos por meio de pesquisa etnográfica, que consistiu em
observar as práticas cotidianas, acompanhar a rotina dos pescador(a)es de modo a compreender seus
modos de pensar e agir (Cardoso De Oliveira, 1996; Malinowisk, 1976); realizar entrevistas para
conhecer o processo de construção do projeto e, dessa forma, compreender como se deu a
participação de homens e mulheres no Acordo de Pesca do Jarauá. A pesquisa utilizou uma
abordagem crítica de gênero, ao considerar que os papéis sociais são construídos a partir das
categorias de homem e mulher (Rosaldo, 1979),.Diante disso, para entender as relações de gênero
na pesca, se faz necessário compreender as práticas, percepções e discursos de ambos.
TEMPOS E ESPAÇOS DE ATUAÇÂO DOS GENEROS
No ano de 1999 moradores das comunidades São Raimundo do Jarauá, Manacabi, Nova
Pirapucu e Nova Colômbia que integram o Setor Jarauá5 da RDS Mamirauá (Fig. 01), iniciaram um
trabalho de organização de uma associação para realizar a pesca e comercialização de pescados
oriundos de atividades de manejo, que recebeu o nome de Projeto de Comercialização do Pescado
4 O RI é um documento produzido de forma coletiva por pescadores e pescadoras sóci(o)as de Acordo de Pesca do
Jarauá que contém as normas e regras que orientam as atividades do manejo e o comportamento do(a)s manejadore(a)s
na realização das atividades do projeto. 5 Organização das comunidades na RDSM, e segundo Amaral et al 2013 “os setores são agrupamentos humanos
organizados em comunidades, localidades e sítios que compartilham a gestão e o uso de recursos naturais de uma
determinada área da reserva” (pp. 16)
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(PCP) e contou com a assessoria técnica do Instituto Mamirauá. O nome atribuído à organização
dos pescadores foi Associação de Produtores do Setor Jarauá (APSJ).
O Programa de Comercialização do Pescado era um componente do Programa de Novas
Alternativas Econômicas do Instituto Desenvolvimento Sustentável Mamirauá (IDSM), e tinha
como objetivo a promoção do uso racional dos recursos pesqueiros através do aperfeiçoamento das
técnicas relacionadas a captura, ao manuseio e venda do pescado (Amaral et. al 2011; Queiroz e
Sardinha 1999; Abreu 2015). De acordo com dados do primeiro relatório de avaliação do PCP, a
escolha do Setor Jarauá para desenvolver esse programa foi propiciada pelo histórico de ações de
preservação de lagos desenvolvidas pelos moradores das comunidades desse Setor (Relatório PCP/
IDSM, 2000).
O Jarauá é um dos maiores sistemas de lagos da RDSM e a pesca sempre foi uma atividade
importante na economia das famílias que residem nessa área, que também participaram do processo
de implantação da RDSM (Relatório PCP/IDSM, 2000). Quando o PCP foi elaborado, a pesca dessa
região sofria com a escassez das espécies mais valorizadas comercialmente, uma consequência da
intensificação da pressão sobre os estoques pesqueiros realizada tanto pelas famílias que residiam
nos pequenos povoados, quanto por pescadores urbanos, conhecidos regionalmente como peixeiros,
que pescavam para empresas sediadas em Manaus e Manacapuru, no estado do Amazonas.
(Alencar, 2014; Alencar e Sousa 2017).
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A redução dos estoques de espécies como o pirarucu exigiu algumas ações dos órgãos
ambientais para proteger essas e outras espécies. Em 1989 o IBAMA elaborou uma Portaria
[IBAMA N°.1534/89, de 20/12/89] que estabeleceu um tamanho mínimo de captura dos pirarucus
em 150 cm de comprimento total (Amaral et. al 2011). Em 1991 elaborou novo decreto que visava
proteger o período reprodutivo desta espécie, proibindo totalmente a pesca entre o dia 1° de
dezembro ao dia 31 de maio [Portaria IBAMA N° 480, de 04/04/1991]. No ano de 1996 o IBAMA
elaborou mais um decreto que proibiu a pesca comercial de pirarucus por um período de cinco anos,
o que levou a inclusão desta espécie na categoria de espécies ameaçadas de extinção (Amaral et. al
2011). A partir de então a pesca, a comercialização e o transporte desta espécie somente pode ser
realizada com a autorização deste órgão, que elaborou Instruções Normativas que regulamentam a
exploração comercial, mediante a elaboração de um plano de manejo que seguisse as regras
estabelecidas pela agência estatal (Queiroz e Sardinha 1999; Queiroz 2000; Amaral et al. 2011;
Alencar e Sousa 2017).
Foi nesse contexto que os pescadores do Setor Jarauá se organizaram em torno de uma
associação para desenvolver um projeto de manejo de pirarucus, se associando, também, à Colônia
de Pescadores Z-23 de Alvarães. O projeto contou com a assessoria de pesquisadores e técnicos do
Instituto Mamirauá (IDSM)6, que estimulou a associação das pescadoras do Setor Jarauá nos órgãos
de representação da categoria, e também a participar de um projeto de manejo de camarão
(Farfantepenaeus subtilis) vinculadas à APJ. Entretanto, o modo como pescadores e pescadoras
participaram desse processo se caracterizou pela distinção dos espaços de trabalho e das atividades
com base nas papeis sociais atribuídos a homens e mulheres.
Nos primeiros anos de organização desse coletivo foram desenvolvidas várias atividades de
modo informal, ou seja, sem um documento escrito que contivesse as regras de funcionamento do
projeto, como um Regimento Interno por exemplo. Entretanto, existiam regras e uma delas previa
que a pesca era “individual e só casado que podia. As mulher[es] ainda mais, porque quem tirava a
6 Promove a administração da pesca pela construção de um sistema de governança ambiental fundado na cooperação, na
participação equitativa de todos e na igualdade de gênero, ao valorizar a inclusão das mulheres no acesso aos recursos
pesqueiros, e na repartição dos ganhos. Uma característica dos projetos de manejo assessorados pelo IDSM é ser
realizado por um coletivo de pescadores, sejam eles residente na RDS Mamirauá ou usuários que estão na área urbana
ou rural (Amaral et. al 2011).
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cota7 delas era os home. A gente tirava nossa cota e a cota das nossas mulher[es]. Mulher não
entrava no lago não” (Pescador da APJ, 2014).
Ao serem questionados sobre qual seria o papel de homens e mulheres nesses primeiros
momentos do projeto de manejo, percebe-se na fala de alguns homens certo menosprezo em relação
ao papel das mulheres nesse processo, colocando-as como ineficazes na pesca, sendo sua presença
vista como secundária. Em contraposição, as pescadoras, em suas falas, afirmam que esse início
significou um passo importante para seu reconhecimento como pescadoras pelas entidades de
representação da categoria, como as colônias de pescadores, ao aceitar sua filiação enquanto
pescadoras.
Pesquisas realizadas a partir dos anos 1990 procuram desconstruir o modelo bipolar de
divisão dos espaços e das atividades de acordo com o gênero do trabalho ao enfatizar que se deveria
considerar a cadeia produtiva da pesca de forma mais ampla, ou seja, considerar as várias atividades
que ocorrem em espaços e tempos distintos, nos lagos, nos rios, em terra, na casa, e não apenas
aquelas que ocorrem no espaço da água para a captura do pescado e que são definidas como pesca.
Várias atividades fazem parte da cadeia produtiva da pesca tais como a preparação do material para
realizar a captura dos peixes, o beneficiamento do pescado, – limpeza, salgagem etc. – e a
comercialização. São atividades que demandam esforço físico e grande investimento de tempo de
trabalho, e homens e mulheres participam de maneira distinta dessas atividades, como mostram
vários estudos realizados em várias regiões do Brasil e do mundo (Alencar 1991, 2001 e 2002;
Soares, 2011; Di Ciommo, 2007; Kleiber, Harris, e Vincent, 2015; Frangoudes e Pascual-
Fernandéz, 2005; Alonso-Población, 2014;).
Atualmente o projeto conta com 104 sócios, sendo 72 pescadores e 32 pescadoras.No
entanto, a participação das mulheres não estava formalizada logo nos primeiros momentos de
criação do APJ. Mas tão logo foram aceitas como sócias elas tornaram-se agentes importantes para
o processo de organização e execução do projeto, trabalhando no conserto dos materiais de pesca,
como as redes malhadeiras, ou como sócias das entidades de representação da categoria, como a
Colônia Z-23 de Alvarães. Contudo, durante muito tempo, elas foram mantidas afastadas das
7 A cota é o número de peixes que podem ser capturados solicitado pelo Programa de Pesca do IDSM e autorizado pelo
IBAMA, correspondendo até 30 % do número de peixes adultos existentes na região manejada pelos pescadores.
Quando a pesca é individual os pescadores dividem o número total de peixes autorizado pelo IBAMA pelos sócios do
projeto de manejo para a realização da pesca; quando a pesca é coletiva a repartição se dá na divisão dos lucros com a
venda do pescado.
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pescarias que ocorriam nos lagos, e esse fato aos poucos despertou a resistência delas que passaram
a reivindicar maior participação no projeto e direitos iguais, conforme mostraremos adiante.
ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO NA PESCA MANEJADA
No período de 2009 a 2010 houve a reorganização do coletivo de manejadores e a
elaboração de um Regimento Interno (RI) que define o território onde as atividades serão
realizadas, definindo os ambientes e os tipos de ambientes, e a época de realizar as pescarias nos
lagos. O Regimento Interno é elaborado de acordo com as normas estabelecidas na Instrução
Normativa Nº 29 de 2002, do IBAMA-AM, que autoriza somente a captura de 30% dos animais
adultos contados nos lagos. Além disso, o RI estabelece critérios para a comercialização do pescado
e para a repartição dos lucros obtidos com a venda.
No ano de 2011 o Regimento Interno do APJ foi reelaborado e posteriormente revisto em
2015. Nesse RI as regras elaboradas de forma coletiva e as atividades que compõem o cronograma
do projeto ao longo do ano foram divididas em algumas categorias: 1) assembleias para elaborar o
planejamento de atividades e definir estratégias de ação ao longo do ano. As assembleias são
periódicas e servem também para discutir problemas que surgem e que podem prejudicar o
andamento do projeto; 2) a vigilância dos ambientes, lagos, que estão situadas no território do
manejo; que é uma atividade permanente; 3) a contagem dos animais nos ambientes, com indicação
de dados sobre tamanho, sexo, etc. A contagem é feita uma vez ao ano e usa uma metodologia
própria8; 4) a captura dos peixes, que ocorre uma vez ao ano; 5) O monitoramento (pesagem,
medição, colocação do lacre etc.); 6) beneficiamento do pescado (evisceração; retirada das vísceras
e escamas); 7) a comercialização da produção e repartição dos lucros; e 8) assembleia de avaliação
do trabalho ao longo do ano.
ESTRATÉGIAS DE TRABALHO: RESISTÊNCIA E RESSIGNIFICAÇÃO
A equidade de gênero está garantida no RI tanto no que diz respeito à participação quanto na
repartição dos lucros, pois todos o(a)s manejador(a)es sócios do APJ têm as mesmas oportunidades
8 O biólogo Leandro Castello (2004) desenvolveu o método de contagem de pirarucus a partir de pesquisas com
pescadores tradicionais da região, principalmente de S. R. do Jarauá, que utilizavam o método para organizar suas
pescarias. O método consiste na observação de (...) quando um pirarucu vem à superfície para respirar, pescadores
experientes são capazes, através da visão e audição, obter informações fundamentais para o manejo como quantidade de
indivíduos existentes em um determinado corpo d’água e tamanho aproximado do peixe. (....) Atualmente o método de
contagem é exigido pelo IBAMA-AM como ferramenta fundamental para o manejo nas diversas localidades onde ele
ocorre (...). (Amaral Et al 2013, pp 16)
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e os mesmo deveres, podendo participar de todas as etapas e desenvolver todas as atividades que
ocorrem ao longo de um ano. Entretanto, as mulheres enfrentam vários obstáculos para se
colocarem enquanto um sujeito ativo na pesca nos lagos, pois para isso precisam vencer as barreiras
culturais e sociais impostas ao seu gênero, principalmente a ideia de que o ambiente e as atividades
domésticas lhes são naturais e obrigatórias. Na maioria das vezes as pescadoras participam apenas
das atividades realizadas nos espaços mais próximos de suas casas. Elas enfrentavam, e algumas
ainda enfrentam, a resistência dos homens, especialmente de seus maridos, com relação a sua
participação em certas atividades do manejo, como a vigilância dos ambientes e a pesca de
pirarucus que ocorre durante vários dias. A justificativa para a não participação das mulheres na
captura dos peixes nos lagos é que esses ambientes ficam muito distantes da comunidade o que
torna a viagem e o trabalho cansativo para as mulheres fazerem essa pescaria; também alegam que é
um trabalho perigoso e que estão sempre correndo riscos de ataques de animais. Assim, eles
demarcam os espaços e os tempos de atuação dos gêneros, quando argumentam que elas devem
realizar atividades que ocorrem em terra, perto das casas.
Estudos têm demonstrado que o tempo social da mulher é um tempo fragmentado, sendo um
tempo que vai depender e sustentar outros tempos. Suas atividades são variadas na esfera
doméstica, tendo que cuidar da reprodução e desenvolvimento do grupo familiar; desta forma, o seu
tempo de trabalho na pesca fica reduzido e fragmentado (Alencar, 1991; Sorj, 2010 Gerber; 2013).
O tempo de trabalho da mulher tem que ser organizado a partir da gestão da casa, da roça, dos
filhos, do marido e da “ajuda”, leia-se trabalho, que ela realiza no processo da pesca. O trabalho da
mulher como pescadora é invisibilizado no plano do discurso, pois ainda persiste a divisão do
trabalho onde homens e mulheres ocupam polos opostos, com a mulher sendo vista mais pelo papel
de reprodutora da família, e o homem como provedor da família.
Entretanto, as pescadoras paulatinamente estão encontrando meios e estratégias para vencer
esses obstáculos e provar que pode fazer atividades em um terreno que historicamente é dominado
pela presença dos homens, o da pesca do pirarucu. Dentre elas destacamos a participação em
equipes de vigilância junto com os maridos, ocupar cargos nas diretorias do APJ, e assim poder
fazer pressão para ampliar sua participação, usando o planejamento prévio com o respaldo do
Regimento Interno. As lideranças femininas também estão convocando e estimulando as pescadoras
do APJ para ter uma participação mais ativa em todas as atividades.
CONCLUSÃO
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Este artigo teve o objetivo de reconstruir o histórico de um projeto de manejo de recursos
pesqueiros, com ênfase nas relações de gênero e nos espaços e tempos de atuação de cada gênero
nas atividades relacionadas à cadeia produtiva da pesca manejada. A análise mostrou que apesar de
enfrentar a resistência dos pescadores, as pescadoras conseguem se organizar e criar condições para
sua participação de forma mais ativa em todas as atividades do projeto de manejo. Uma das
conquistas foi conseguir inserir no Regimento Interno a participação das mulheres com
compensação financeira, descaracterizando assim seu trabalho como sendo apenas “ajuda”. A partir
de então, as pescadoras reivindicaram cada vez mais espaço e participação plena em atividades que
antes eram vistas apenas como de espaço de atuação masculina. Apesar de enfrentar muitas
dificuldades e desafios, essas mulheres manejadoras se percebem como coparticipes do projeto de
manejo de pirarucu e conseguem provar para os homens- e para si mesmas- que são capazes de
realizar todas atividades, inclusive aquelas que lhes eram interditas como a vigilância dos lagos, a
contagem, e a pesca nos lagos. Contudo, essa luta teve custos para algumas mulheres, que
vivenciaram situações de ameaça, de agressão física ou verbal por parte de seus companheiros.
Ressaltamos que o projeto de manejo de pirarucus estimulou as mulheres a ter uma posição
mais ativa e, aos poucos, estão conseguindo romper a resistência dos homens, especialmente seus
maridos, ocupando espaço nas diferentes atividades e assumindo cargos importantes na direção da
APJ. A agência das pescadoras está contribuindo para ressignificar os espaços e tempos de trabalho
no contexto da pesca, e embora encontrem resistências e dificuldades históricas devido à sua
condição de gênero, elas conseguem lançar mão de estratégias para participar mais ativamente de
toda a cadeia produtiva da pesca manejada. Concluímos que as resistências encontradas persistem
devido às ideologias de gênero que distinguem, separam, segmentam os espaços e os tempos de
trabalho, dividindo as atividades de acordo com as características atribuídas social e culturalmente a
cada gênero.
AGRADECIMENTOS
Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientifico e Tecnológico – CNPq - e ao
Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá (IDSM-OS/MCTI); aos pescadores e
pescadoras do Acordo de Pesca do Jarauá; aos técnicos do Programa de Manejo de Pesca do IDSM.
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Environment, periods and locations of gender in pirarucus managed fishing: an analysis of
the construction process of the Jarauá Fisheries Agreement / Mamirauá-am Sustainable
Development Reserve.
Abstract: The article analyzes the gender relations in the context of pirarucus (Arapaima gigas)
managed fishery by the fisherman/fisherwoman group known as Jarauá Fisheries Agreement (JFA)
from 1999 to 2015.The purpose of this study is to understand how the categories of environment
and periods are perceived by men and women, to identify whether there are different environments
and periods according to the gender and how this is reflected in the daily activities of managed
fishing. The data analyzed were collected by employing the ethnographic method, interviews with
fishermen and fisherwomen associated with JFA, and technicians from the Fisheries Program of the
Mamirauá Institute of Sustainable Development, who provide technical advice to the local FA. The
research identified that in the public discourse there is a distinction of environment and periods
between men and women within the field of managed fishing, women mainly engage in fishing
activities occurring in the space of the land, seen as being a naturally feminine domain, and their
time completely turned to that scope and men, of fishing activities in lakes and rivers due to their
"working time". However, in everyday practices of men and women there are movements of
articulations and cooperation that blur these separations; Such movements are often encouraged by
fisherwomen in order to take a more active part in all managed fishing activities. The study
concluded that the women's agency has been helping to change places and working periods in
managed fisheries.
Keywords: “gender relations”, “Managed fishing”, “fisherwomen”, “sustainable development”.