Post on 17-Dec-2020
1
ESPANTALHOS: UMA METÁFORA DOS SUJEITOS
JOSÉ CARLOS DE FREITAS1
Resumo
O texto reflete sobre a imagem do espantalho presente na pintura de Portinari e em poemas de
Manuel Bandeira e Mario Quintana, buscando relacioná-la à condição residual dos sujeitos no
contexto do mercado atual. A poética de Quintana e Bandeira, assim como os quadros de
Portinari, se mostram muito fortes no que toca ao papel de contraponto que a arte assume em
face dos programas que fabricam as algemas do homem. Neste sentido, a imagem do espantalho
pode ser acessada como uma metáfora da condição humana, consistindo este texto em uma de
suas possíveis leituras.
Palavras-Chave: Poesia e Pintura,espantalho, condição humana, mercado.
Resúmen
El texto reflete acerca de la imagine del espantajo presente em la pintura de Portinari y en los
poemas de Manuel Bandeira y Mario Quintana, buscando relacinar-la a condición residual de los
sujetos en el contexto de la mercancia actual. La poética de Quintana y Bandeira, así como los
quadros de Portinari, muestran-se mui fortes como función de contrapunto que la arte assume
perante los programas que fabrican las cadenas del hombre. En esto sentido, la imagine del
espantajo puede ser piensada como una metáfora de la condición humana, constando este texto
en una de sus possibles lecturas.
Palabras-llave: Poesía y Pintura, espantajo, condición humana, mercado.
A mão cresce e pinta o que não é para ser pintado mas sofrido
[...] Agora há uma verdade sem angústia
mesmo no estar-angustiado. O que era dor é flor, conhecimento
plástico do mundo.2
Carlos Drummond de Andrade
1 Professor de filosofia do Centro Universitário UNIRG de Gurupi-TO. Licenciado em Filosofia pela Unioeste – Toledo-PR, Mestre em Letras pela UFF – Niterói-RJ. 2 Apud: PORTINARI, Antonio. Portinari menino. Rio de Janeiro: José Olympio, 1980, p.17-18.
2
Uma das imagens que faz parte da lembrança de quem foi menino de roça
de antigamente é a do espantalho. Um boneco grotesco, um arremedo de gente,
aviado para espantar tisius, canários e pardais das lavouras e hortas, erguido
num tronco que parecia uma cruz. Feito de roupa pobre, remendos coloridos, tudo
nele é residual. Deixado no tempo, a sol e sereno, chuva e poeira.
Sua presença nas Artes, de forma geral, nunca foi desapercebida. Serviu
de nome a uma peça adaptada de Tchekov3, monólogo interpretado por Cacá
Correia. Integrou a companhia dos seres metafóricos de o mágico de Oz de
L.Frank Baum. Comparece em meninos carvoeiros de Manuel Bandeira. E
comparece também, como figura emblemática, na orquestra de bugigangas de
Mario Quintana. Teatro, prosa e poesia, assume semânticas da condição humana
em contextos existenciais, apontando para as precariedades dos homens nesta
vida finita, tangidos pelas situações históricas. Nas Artes Plásticas, talvez
ninguém tenha tido tamanha obsessão pelo espantalho como Cândido Portinari
que fez dele uma temática exclusiva.
Neste artigo, pretendo fazer com que dialoguem os poetas e o pintor, neste
objeto-ser que os reúne e tentar perceber a residual situação dos homens que
pretenderam denunciar a penas e pinceis.
Ao contar a história de sua família, na Brodósqui do início do século XX,
Antonio Portinari, irmão de Cândido, o pintor, relata:
No meio do arrozal, o espantalho parecia um homem de verdade. Batista havia caprichado. O chapéu e o terno velho que ostentava tinham vindo da Itália, foram de seu finado avô, que morrera há muitos anos. Tio Davi parou a cinco ou seis metros do espantalho. De longe, só se notava sua cabeça acima da plantação.
– Parece gente – comentou com as crianças. – O toco em que seu pai armou esse espantalho estava ali desde o começo do mundo. É o toco de uma madeira que dura a vida inteira, enquanto existir o mundo ela também existirá.4
3 Peça dirigida por Camilo de Lélis e estreada na Sala Carlos Carvalho da Casa de Cultura Mario Quintana, em novembro de 1995, adaptada da obra Peças em um ato de Tchekov, cujo personagem é Ivan Ivanovich, um homem arruinado, oprimido ela mulher em casa e pelas tarefas profissionais. 4 PORTINARI, Antonio. Portinari menino. Rio de Janeiro: José Olympio, 1980, p.111.
3
No que consta no Projeto Centenário de Portinari, organizado por seu filho
João Cândido, por ocasião dos cem anos do pintor, são 111 quadros retratando o
espantalho ou tendo-o como elemento constitutivo da cena retratada. Às vezes,
comparece em primeiro plano, preenchendo a tela, com a plantação ao fundo.
Outras vezes, compõe o cenário de cores densas e escuras, com carcaças de
bois e um solo desprovido de plantas, sugerindo aridez. Em outras, acompanha
crianças soltando pipas. Não é minha intenção proceder a uma leitura que faça
justiça ao inteiro sentido dessas obras – não tenho nem mesmo conhecimento
para isso. Quero apenas fazer notar a sensação intrigante de abandono deste
objeto, mesmo nos quadros que sugerem o lúdico. Abandono que permite
estabelecer diálogo com os poemas de Bandeira e Quintana. O espantalho,
segundo especialistas, atormentava o sono de Portinari, assim como as histórias
de assombração que se contava às crianças de seu tempo. Ao optar pela
temática de sua terra, além de compor uma pintura essencialmente engajada,
retratando dores e misérias, Portinari deu relevância às impressões da infância.
Dentro delas, emerge o espantalho.
Figura 1- Espantalho – 1958 – Pintura a óleo de 1958 – 146 X 114 cm Fonte: Projeto Portinari – Disponível em <http://www.portinari.org.br>
4
O trecho relatado por seu irmão Antonio é significativo: "o espantalho
parecia um homem de verdade". O fato é que, ao ser retratado na Arte – nos
quadros e na poesia – os termos se invertem: "o homem parecia um espantalho
de verdade". E, desta constatação, o adulto Portinari, assim como seu amigo
Bandeira e o poeta Quintana, apenas três anos mais jovem que ele, assumem
uma sensibilidade comum para com a natureza do resíduo e do precário.
Manuel Bandeira utiliza a imagem do espantalho para falar da infância
submetida a trabalho precoce e árduo nas carvoarias, coisa que, só muitos anos
depois de sua morte, se tornou foco de repúdio e causa de luta humanitária. A
imagem está no fecho do poema Meninos carvoeiros:
Os meninos carvoeiros Passam a caminho da cidade. – Eh, carvoeiro! E vão tocando os animais com um relho enorme. Os burros são magrinhos e velhos. Cada um leva seis sacos de carvão de lenha. A aniagem é toda remendada. Os carvões caem. (Pela boca da noite vem uma velhinha que os recolhe,
/ dobrando-se com um gemido.) – Eh, carvoeiro! Só mesmo estas crianças raquíticas Vão bem com estes burrinhos descadeirados. A madrugada ingênua parece feita para eles... Pequenina, ingênua miséria! Adoráveis carvoeirinhos que trabalhais como se brincásseis! – Eh, carvoeiro! Quando voltam, vêm mordendo num pão encarvoado, Encarapitados nas alimárias, Apostando corrida, Dançando, bamboleando nas cangalhas como
/ espantalhos desamparados!5
O poema, parte do livro Ritmo dissoluto, foi publicado em 1921, quando
Portinari tinha seus dezoito anos, portanto, bem antes de começar a compor seus 5 BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira.Rio de Janeiro: José Olympio, 1982, p.85-86.
5
espantalhos. Tudo no poema anuncia precariedade, com excessão do relho, o
instrumento de tortura, assim como o toco de madeira, no relato de Antonio: "de
uma madeira que dura a vida inteira". O poema, em sua visualidade, descreve os
burrinhos já em estado residual, são "magrinhos e velhos". Os sacos, como o
espantalho, são cosidos a remendos e não prestam a contento para o transporte:
"Os carvões caem", recolhidos por outro ser também em resumo que o faz a
gemidos.
Figura 2 – Espantalho – 1940 – Pintura a óleo/tela – 130 X 172 cm Fonte: Projeto Portinari – Disponível em <HTTP://WWW.portinari.gov.br>
Como um observador que não interfere nos eventos, mas que se coloca
amorosamente a avaliar os elementos, Bandeira nos leva a perceber o que deve
ficar justo no quadro: as crianças combinam com os burrinhos, aquele mundo ou
aquela cena lhes pertence. O poeta se sente atraído pela "pequenina, ingênua
miséria". Ao fazer isso, ele nos coloca dentro da cena, com mãos muito mais
firmes, para uma sensibilidade solidária. Ao jogar como os sentidos de trabalho e
brinquedo, longe de estar agraciado com a cena e indicar que isso mereça
perpetuação, o poeta denuncia um programa desfavorável, inadequado para
aquelas criaturas que mereciam um direito maior. Gostar do que elas disfarçam e
6
de como disfarçam é gostar mais ainda daquilo que elas teriam se, como diz
Adorno, tivéssemos "um mundo em que a situação seria outra".6
Apesar do espírito épico de todo o poema querendo fazer predominar o
lúdico, como o que sucede frequentemente com poemas assim empreendidos, o
desfecho aponta para a capitulação final: "dançando, bamboleando nas cangalhas
como espantalhos desamparados".
Esta imagem dos espantalhos desamparados,7 unida à das cangalhas,
equipara-se à descrição do irmão de Portinari: "O toco em que seu pai armou o
espantalho estava ali desde o começo do mundo". E nos remete a um traço
comum dos quadros em que o pintor os retratou: o espantalho é um crucificado.
Segundo Jacob Klintowitz,
O espantalho, um signo visual da lavoura, nas mãos de Portinari, se transforma em pinturas de grande força expressiva e nas das mais características paisagens campestres da nossa arte. Entretanto, o mais surpreendente é que, em Portinari, este assunto recorrente em sua obra, ganha conotações transcendentais e se transforma numa das mais poderosas metáforas religiosas da nossa arte. O espantalho de Candido Portinari costuma ser carregado de dramaticidade, denso e impregnado de humanidade, idealizado ao limite do homem elevado à condição divina, símbolo do homem sacrificado por seu amor ao próximo. Esses espantalhos, na postura de Jesus Cristo na cruz, tornam-se verdadeiro símbolo nacional e se constituem de inúmeras facetas, como é próprio do simbólico: pastoral, semeadura, homem sacrificado, homem se sacrificando, Deus doador, morte e amor.8
A marca do espantalho é esta forma de grilhão. E nisso ele recobre a vida
dos homens, presos a um programa que os tange e sob o qual só é possível
bambolear na precariedade.
Bandeira e Quintana não são poetas essencialmente engajados, na
acepção do termo. A bem da verdade, conforme Adorno, nem isso é necessário
nem se deve cobrar esse tributo da poesia. No entanto, a abertura sensível e
6 ADORNO, Theodor W. Conferência sobre lírica e sociedade. In: Os Pensadores, v.XLVIII. São Paulo: Abril Cultural, 1975, p.203. 7 Este poema foi um dos objetos do belo ensaio Os espantalhos desamparados de Manuel Bandeira de Marcus V. Mazzari. 8 KLINTOWITZ, Jacob. Candido Portinari: retrato do Brasil. Agulha – Revista de Cultura. Disponível em <HTTP://WWW.revista.agulha.non.br/ag48portinari.htm>
7
solidária para esses detalhes narrativos da existência os inscreve com um poder
ainda maior nesta tarefa.
Figura 3 – Espantalho no arrozal – 1947 – Pintura a óleo/tela – 60 X 73 cm
Fonte: Projeto Portinari – Disponível em <HTTP://WWW.portinari.gov.br>
Em Quintana, o espantalho comparece em quatro poemas: Canção do
amor imprevisto, O vento, O poema esse estranho animal e O sonho de uma noite
de verão. Antes, porém, de acessá-los, talvez seja importante notar que existe,
em sua poesia, uma busca metafísica pela finitude do homem, no sentido de
interrogar o próprio sentido de estar-no-mundo. Quintana é marcado pelo fato de
que o homem é um destinado à morte e compromissado a resistir nesse mundo,
cuja contingência não deve inviabilizar a própria vida, mesmo que ela seja uma
marcha para o fim. Elabora, como Bandeira, uma poesia de elementos prosaicos,
simples, que normalmente seriam desprovidos de dignidade caso não fossem
acolhidos como são por eles. Nesse sentido, muitos são os objetos que dão conta
de aludir ao homem como um ser incompleto e residual. Ao lado do espantalho,
no caso de Quintana, há o fantoche, o boneco de circo ou de marionetes,
sustentados por fios, numa forte alegação de que somos esses artefatos,
presididos por uma mão anônima de fora, cujo dono se diverte com nossas
tribulações.
8
Fantoche ou espantalho, é importante que se especifiquem as diferenças,
pois fantoche não é espantalho. Na poesia, também é comum encontrar
referência aos homens como fantoches, seja de Deus seja de alguma outra forma
de destinação. O fantoche é um boneco destinado a encenação. Seu lugar é o
circo e o palco. Ele é usado para narrar histórias. Encena, vive, pronuncia o que
obrigam que ele faça. Faz o que deve por estrita moção de outro. Ele pode ser a
metáfora do alienado. Tem movimento, tem ação, mas nunca por sua vontade,
por sua deliberação. O espantalho é bem outra coisa, sua situação é muito mais
piorada. Ele não encena, não move, não conta história alguma. Ele está lá, feito
um cristo que morreu e, por um breve tempo, aparenta tudo ter capitulado. A
começar pelo nome, a primeira evocação é a do espanto, um espanto extenso,
espant-a-lho. Sua situação indica solidão, abandono, mudez, resíduo total.
Figura 4 – Espantalho – 1959 – Pintura a óleo/madeira – 41 X 33 cm
Fonte: Projeto Portinari – Disponível em <HTTP://WWW.portinari.gov.br>
A primeira referência ao espantalho encontra-se no poema Canção do
amor imprevisto, que registra dois estados psicológicos: a melancolia de um
sujeito solitário e a euforia depois da chegada de outro sujeito que ama, no caso,
9
uma mulher. Interessa, do poema, a última estrofe, quando o sujeito lírico se
compara ao espantalho, numa imagem forte e comovente:
E o homem taciturno ficou imóvel, sem compreender nada,
/ numa alegria atônita... A súbita, a dolorosa alegria de um espantalho inútil Aonde viessem pousar os passarinhos!9
Figura 5 – Espantalho – 1936 – Pintura a óleo/tela – 73 X 60 cm
Fonte: Projeto Portinari – Disponível em <HTTP://WWW.portinari.gov.br>
Importa igualmente notar que, assim como em Bandeira, prevalece uma
sugestão de que o espantalho é percebido, paradoxalmente, pelos sujeitos líricos
numa esfera de alegria quase festiva. Em Bandeira, o dançar e o bambolear,
assim como o brincar, estão a provocar um estranhamento, um sentimento
ambíguo quanto ao valoramento dos eventos. Instaura-se a dúvida entre a
angústia da situação e o assentimento de que o que se passa seja de fato o
desejável. Em Quintana, a desorientação do sujeito é reforçada pela "dolorosa
alegria do espantalho", riso doído que remete ao teor da ironia, suscitada na
cultura ocidental desde o homem barroco, quando o riso esconde o pranto e o
9 QUINTANA, Mario. Canções. Porto Alegre: Globo, 2006, p.62.
10
pranto esconde o riso.10 Em relação à condição residual do espantalho, fica
evidente a sua situação de abandono, pois a comparação do poeta é apenas
suposta, conforme atesta o verbo "viessem", sujeitando-o a uma casualidade. De
outro lado, o espantalho não tem remédio e consolo. A mudança de sua condição
pediria uma outra empresa: a inutilidade, uma vez que ser atração de pássaros –
e feliz por conta disso! – consiste naquilo que Aristóteles diria sobre o ser que se
recusa a realizar o seu télos, a sua perfeição.
Candido Portinari, no poema Sem cílios e sem destino, também descreve:
Sem cílios e sem destino No ar sem proteção Espantalho de beira-córrego, os pássaros Pequenos não se intimidam... Passam.11
Se até mesmo nisso o espantalho não avantaja serviço, muito mais piorada
é sua situação. No mesmo poema, Portinari escreve que "Os espantalhos lutam
para que o arroz cresça". Um espantalho inútil assim talvez se prestasse para
uma farra tradicional de Sexta-Feira da Paixão, descrita também por Antônio, seu
irmão:
– Pegado ao coqueiro puseram um espantalho igual ao que está no arrozal. A cabeça deve ser uma cabaça ou abóbora, fizeram três furos para os dois olhos e a boca, e dentro acenderam uma vela. Eles querem nos assustar, mas não vai acontecer. Apanhou as duas espingardas, atiçou as brasas do fogão para clarear um pouco e colocou os cartuchos nas armas. Explicou para as crianças que daria quatro tiros:
– Garanto que em um minuto estarão tremendo de medo e correrão para se esconder debaixo da cama.
Os garotos ficaram assanhadíssimos de alegria, Candinho saiu com o pai e o Tio Bépi. No primeiro tiro a cabeça voou pelos ares; os outros três tiros acertaram no vulto branco. Nem bem o pai acabou de dar os tiros ouviu-se uma gritaria sem limites no meio do cafezal.
No dia seguinte foram espiar o estrago. A cabeça estava no chão furada de chumbo, o pano branco também estava picado, parecia que tinha estado na guerra, como dissera tio Davi. [...]
Os meninos e até alguns homens procuraram por todos os lugares alguma mancha de sangue, mas não encontraram nada.12
10 Cf. VIEIRA, Padre Antônio. Discurso sobre as lágrimas de Heráclito. In: Sermões. Tomo XV. Porto-Portugal: Lello & Irmão Editores, 1959. 11 PORTINARI, Candido. Poemas de Portinari. Rio de Janeiro: José Olympio, 1964.
11
Figura 6 – Paisagem com espantalho e urubus – 1944 – Pintura a guache/cartão – 32.5 X 48 cm
Fonte: Projeto Portinari – Disponível em <HTTP://WWW.portinari.gov.br>
O episódio que fez parte da infância de Portinari é um daqueles que
inscreve o espantalho como imagem pregnante na memória. Trata-se de um
costume próprio da noite de Sexta-Feira Santa, onde as pessoas se permitem
uma emancipação moral, agindo como se Cristo, uma vez morto, tivesse dado
império a Satanás, sendo necessário mimetizar ações deste último, para agraciá-
lo. O espantalho que recebe toda a carga de violência antecipa o boneco Judas a
ser malhado no Sábado da Aleluia. A dimensão residual do espantalho é
ressaltada pelo vestígio do sangue não encontrado: não é mais um ser, é coisa
pulverizada. E também aqui ainda existe o clima eufórico, conforme atesta o
detalhe "Os garotos ficaram assanhadíssimos de alegria".
A imagem do espantalho comparece também no poema um tanto intrigante
de Mario Quintana que traz, no título, uma referência a uma peça cômica de
Shakespeare: O sonho de uma noite de verão.13 Creio merecer este poema uma
atenção, justamente pela carga semântica que permite relacionar o espantalho ao
ser humano na sociedade administrada e aos nivelamentos que o programa
impõe:
12 PORTINARI, Antonio. Portinari menino. Rio de Janeiro: José Olympio, 1980, p.141. 13 Escrita em 1594, publicada em 1600.
12
Uma procissão de espantalhos, pela miséria colorida, pelos atalhos vinha: pediam vida, queriam vida! E as suas caras eram trágicas porque tinham todas a mesma expressão — que era o mesmo que não terem nenhuma expressão. E tão insuportável era aquela cara única que a polícia atirou em cima deles bombas de gás hilariante. Nenhum espantalho riu. A procissão continuou, a procissão está agora em plena Estrada Real enquanto pelos atalhos por cima dos gramados por cima dos corpos atropelados os automóveis fogem como baratas.14
Em O mágico de Oz, o espantalho queria um cérebro. Neste poema, uma
procissão de espantalhos grita por vida. É esta a imagem que abre o poema e
que chega ao final sem que a reivindicação seja atendida. Construído a partir de
remendos coloridos, ele por si mesmo denota a natureza residual da coisa. Por
isso o poeta fala de uma miséria colorida. Confeccionado de partes que não lhe
pertencem, que não lhe conferem uma identidade, ele é a reta final da utilidade,
porque não sendo um ser, mas uma função, depois dela não lhe resta nenhuma
serventia. Coisa no seu ocaso, arremedo de humanidade, é destituído também do
estatuto de coisa, candidato à ruína precoce. Só os pássaros o levam a sério,
mas até mesmo nisso há uma destituição de autonomia, porque ele só pode
colher esta reverência quando solavancado pelo vento. Em O Vento, o poeta se
refere ao ser do próprio vento como “trapos flutuantes de espantalho” e
acrescenta "toda aquela agitação sem causa".15
14 QUINTANA, Mario. Esconderijos do Tempo. Porto Alegre: Globo, 2000, p.91. 15 QUINTANA, Mario. Sapato Florido. Porto alegre: Globo, 2006, p.108.
13
Figura 7 – Espantalho e meninos soltando pipas – 1941
Pintura em técnica não identificada/tela – 46 X 55 cm Fonte: Projeto Portinari – Disponível em <HTTP://WWW.portinari.gov.br>
Costurado como um frankenstein, colorido de trapos, paralítico suspendido
diante da produção, não poderia deixar de ser uma alegoria do sujeito inserido no
sistema de produção. É uma alegoria também do desencantamento do mundo
produzido pela ciência e pela técnica. Adorno escreve que
Em meio às unidades humanas padronizadas e administradas, o indivíduo vai perdurando. Ele até mesmo ficou sob proteção e adquiriu um valor de monopólio. Mas, na verdade, ele é ainda apenas a função de sua própria unicidade, uma peça de exposição como os fetos abortados que outrora provocavam o espanto e o riso nas crianças.16
O espantalho, embora mais precário, tem parentesco com o palhaço ou
com o cadáver enfeitado – outros freqüentadores da poesia de Quintana –
quando a questão é a visualidade. Expostos, existem para protagonizar
espetáculos para os outros. Ao primeiro se assemelha porque mente sobre sua
carnadura como o palhaço mente sobre suas dores. Assemelha-se ao segundo
no ocultamento de sua interna estofaria de palha morta pelos adereços coloridos.
Nesta condição, os três seres são tragicamente cômicos ou comicamente
16 ADORNO, Theodor W. Mínima moralia. São Paulo: Ática, 1993, p.118.
14
trágicos. O espantalho é símbolo do automatismo, do sujeito que declinou de sua
condição de sujeito. Onde for posto, ali permanecerá. Enfeitado para ser visto, de
si mesmo é cego, porque lhe falta um rosto. No mundo reificado da mercadoria,
mediada pela propaganda colorida, o sujeito perdeu sua função de artífice de si
para se tornar uma coisa elaborada. Por isso, o poeta diz que “eles pedem vida”
ou que “E as suas caras eram trágicas / porque tinham todas a mesma expressão
/ — que era o mesmo que não terem nenhuma expressão.”
Em dois outros versos, a situação do espantalho chega ao insuportável e
ao irremediável. Numa dobra de sentido, muito característico de Quintana,
deixando ambivalente seu juízo sobre movimentos populares e passeatas de
protesto, onde a uniformidade normalmente comparece, às vezes com resultados
violentos, o poeta utiliza a imagem da polícia que “lança bombas de gás
hilariante”, algo que poderia transfigurar o desenho da cena. A imagem
contrapõe-se, por exemplo, ao espírito da canção de Mílton Nascimento:
Porque se chamavam homens também se chamavam sonhos e sonhos não envelhecem em meio a tantos gases lacrimogênios ficam calmos, calmos, calmos.17
O título deste poema é remissivo a uma comédia de Shakespeare, um
drama tragicômico onde quatro jovens buscam concretizar de forma atrapalhada
suas paixões, onde o conserto da situação só acontece quando quatro jovens são
emparelhados juntos, adormecidos. Creio que esta é a chave da situação do
espantalho. Programas da modernidade, no dizer de Freud, Foucault e Bauman,
ordem e limpeza são conseguidas mediante a homogeneização dos corpos. O
sumo da flor que encantava foi suplantado pelo sumo de outra flor que
desencantava. A perda dos feitos, ocasionados pelo encanto, que faziam a
imbricação dos três mundos — o real, o mimético e o fantástico — é o fato
lamentado pelo poeta, porque se perdeu o poder do riso. Tudo ficou eiradamente
certo. Por isso então a imagem do gás hilariante impotente em relação aos
espantalhos.
17 Canção Clube da Esquina nº2 de Milton Nascimento, Lô Borges e Márcio Borges (BREMI7900457).
15
O desfecho do poema se dá num clima de pessimismo. Os espantalhos,
como na peça shakespeareana, são recepcionados pelo rei, são assumidos pela
estrutura, exatamente como é gabaritado o sujeito numa cultura de ordem,
limpeza e produção. O que se tem a partir daí é o desencantamento generalizado
e o retorno da balbúrdia à revelia do programa. O progresso invade os atalhos,
invade o verde e atropela os corpos.
Figura 8 – Espantalho – 1940 – Pintura a óleo/tela – 30 X 41 cm
Fonte: Projeto Portinari – Disponível em <HTTP://WWW.portinari.gov.br>
Em O poema esse estranho animal, Quintana se ocupa de metapoesia,
comparando sua pena a um cavalo de rédeas soltas nos campos. Nesta marcha
aleatória, vai encontrando os Três Reis Magos, Dom Quixote, Jack o Estripador,
Jesus Cristo com o Menino Jesus no colo, Anjos da Guarda e também o
Espantalho Desconhecido. Estranhamente, os seres residuais deste poema são o
poeta e o leitor, jazentes mortos, que provocam vômitos no animal. Apontando
para uma peculiaridade do que deve ser a poesia, ele diz que "o ritmo da
andadura acorda ninhos / de sonhos [...] / descobre estranhos descaminhos".
Descaminhos pelos quais a poesia confere dignidade, elevação a seres residuais
como o espantalho. Para Quintana, como também ocorre com Portinari, essa
privilegiada visão é posse de criança, é privilégio de olhos infantis, em sintonia
16
com a proposta de Walter Benjamin, para quem ela deveria inaugurar um novo
paradigma de história. O filósofo nota que
as crianças são inclinadas de modo especial a procurar todo e qualquer lugar de trabalho onde visivelmente transcorre a atividade sobre as coisas. Sentem-se irresistivelmente atraídas pelo resíduo que surge na construção, no trabalho de jardinagem ou doméstico, na costura ou na marcenaria. Em produtos residuais reconhecem o rosto que o mundo das coisas volta exatamente para elas, e para elas unicamente.18
Assim é o poeta. Assim também um pintor como Portinari quando volta os
olhos para uma procissão de seres residuais. Seus retirantes, seus trabalhadores,
seus animais, seus meninos são percebidos em suas existências humildes, em
sua baixeza, elevados a uma dignidade que só a Arte pode conferir. Pelos olhos
do poeta e do pintor, somos convocados à compaixão por essa natureza
pulverizada dos seres e dos homens, inseridos num programa que os dilui e
descarta, soberano. Quem seria o Espantalho Desconhecido? O mistério
permanece, assim como permanecem certas estruturas que projetam os seres-
espantalhos. Conforme relata Antônio, "É o toco de uma madeira que dura a vida
inteira, enquanto existir o mundo ela também existirá".
18 BENJAMIN, Walter. Rua de mão única. Obras escolhidas II. São Paulo: Brasiliense, 2000, p.18-19.
17
REFERÊNCIAS
ADORNO, Theodor W. Lírica e sociedade. In: Os Pensadores, v.XLVIII. São Paulo: Abril Cultural,
1975.
______. Minima moralia. São Paulo: Ática, 1993.
BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro: José Olympio, 1982.
BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Zahar,1998.
BENJAMIN, Walter. Rua de mão única. Obras Escolhidas II. São Paulo: Brasiliense, 2000.
KLINTOWITZ, Jacob. Candido Portinari: retrato do Brasil. Agulha – Revista de Cultura.
Disponível em <HTTP://WWW.revista.agulha.non.br/ag48portinari.htm>.
MAZZARI, Marcus V. Os espantalhos desamparados de Manuel Bandeira. Revista Estudos
Avançados 16 (44). São Paulo: USP, 2002.
PORTINARI, Antonio. Portinari menino.Rio de Janeiro: José Olympio, 1980.
PORTINARI, Candido. Poemas de Portinari. Rio de Janeiro: José Olympio, 1964.
QUINTANA, Mario. Esconderijos do Tempo. Porto Alegre: Globo, 2000.
______. Poesias. Porto Alegre: Globo, 1987.
______. Sapato florido. Porto Alegre: Globo, 2006.
______. Canções. Porto Alegre: Globo, 2006.
______. Apontamentos de história sobrenatural. Porto Alegre:Globo/SEC/DAC/IEL,1976.
SHAKESPEARE, William. O sonho de uma noite de verão. In: Comédias/Sonetos. São Paulo:
Victor Civita, 1981.
VIEIRA, Padre Antônio. Discurso sobre as lágrimas de Heráclito. In: Sermões. Tomo XV.
Porto-Portugal: Lello & Irmão Editores, 1959.