Post on 05-Jun-2015
MARIA CRISTINA VILLEFORT TEIXEIRA
ESPAÇO PROJETADO E ESPAÇO VIVIDO
NA HABITAÇÃO SOCIAL:
os conjuntos Goiânia e Araguaia em Belo Horizonte
Tese apresentada ao Curso de Doutorado do Programa de Pós -Graduação em Planejamento Urbano e Regional da Universidad e Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de Doutor em Planejamento Urbano e Regional.
Orientador: Profa. Dra. Tamara Tânia Cohen Egler
Doutora em Ciências Sociais/USP
Rio de Janeiro
2004
MARIA CRISTINA VILLEFORT TEIXEIRA
ESPAÇO PROJETADO E ESPAÇO VIVIDO NA HABITAÇÃO SOCIAL: OS CONJUNTOS GOIÂNIA E ARAGUAIA EM BELO HORIZONTE /MG.
Tese apresentada ao corpo docente do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e
Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos
necessários à obtenção do grau de Doutor em Planejamento Urbano e Regional.
___________________________________________ Profa. Dra. Ana Clara Torres Ribeiro
___________________________________________ Profa. Dra. Beatriz Alencar d’Araújo Couto
___________________________________________ Profa. Dra. Maria Cristina da Silva Leme
___________________________________________ Prof. Dr. Rainer Randolph
___________________________________________ Prof. Dra. Tamara Tânia Cohen Egler (orientadora)
A todos os que buscam uma cidade melhor, em especial o Professor Radamés Teixeira da Silva,
meu mestre, meu pai.
AGRADECIMENTOS
Gostaria de agradecer a todos que contribuíram, nas várias instâncias, para o
desenvolvimento desta Tese.
À CAPES, pelo apoio institucional através do programa PICDT/UFMG. Infelizmente,
esse órgão vem reduzindo a abrangência dos seus programas de fomento à
pesquisa e à qualificação de docentes, deixando de beneficiar muitos professores
em processo de formação.
Aos funcionários da URBEL e da Secretaria Municipal de Habitação da Prefeitura
Municipal de Belo Horizonte, que se prontificaram a fornecer os dados para o
andamento deste trabalho.
À Professora Tamara Egler, que além de orientadora – firme no propósito de verificar
o conteúdo e a evolução do trabalho – tornou-se parceira de uma sólida amizade.
À Beatriz Couto e à Jupira Gomes de Mendonça, que me conduziram pela mão a
caminho do IPPUR.
Aos professores do IPPUR, pela oportunidade de aprendizado de novas áreas no
meio urbano, que tanto contribuíram para o conhecimento, especialmente à
Professora Ana Clara Torres Ribeiro, que me mostrou a arte de ensinar com
sabedoria.
À Ana Lúcia e à Maria Luíza (IPPUR/UFRJ) e a Vânia, Moema, Juliana, Lúcia,
Neusa, Marco Antônio e Vantuil (Arquitetura/UFMG), pela prontidão em disponibilizar
o material bibliográfico que subsidiou esta Tese.
À Beatriz Marinho, pelo incansável trabalho de organização e diagramação desta
Tese.
À D. Amélia Martino, minha mãe nesta Cidade Maravilhosa, que me acolheu com o
maior carinho.
Às amigas Carmen Silveira, Maria das Graças Ferreira e Mônica Meyer, que
seguiram comigo ativamente o percurso das vigilantes da tese.
Ao André Perocco que, mesmo distante, sempre me apoiou com conselhos e
manifestações que me ajudaram a levar em frente este trabalho.
Aos moradores dos conjuntos Goiânia e Araguaia e dos bairros Alvorada e Araguaia,
que, através das suas vivências, me deram oportunidade de aprender e de conhecer
os fenômenos que poderão melhorar as suas condições de vida e de muitos outros
que vivem em situações semelhantes.
Ao Aloysio Bello, amigo e companheiro, que suportou trancos e barrancos nesta
jornada.
Ao meu pai, pela oportunidade de discussão sobre os assuntos urbanos e pelo apoio
fundamental para que eu terminasse este trabalho.
Finalmente, agradeço aos meus filhos Branca, Cássia e Alexandre, que me
apoiaram e incentivaram, na alegria e na aflição, pela compreensão da minha
ausência, quando poderíamos nos curtir nos momentos livres. À Branca, minha filha
arquiteta, um obrigado especial pela força na execução das tabelas e das plantas
das casinhas dos conjuntos.
E a casa, sem o homem para habitá-la, não passa de paredes, telhados, janelas e portas sem forma, sem
propósito e sem vida. A luz invade o espaço, mas não ilumina o homem. As casas abrigam estórias, mas cabe ao
homem escrevê-las como lhe convém.
Daniel Gomes de Faria
RESUMO
Os projetos dos conjuntos habitacionais destinados à população de baixa renda se
limitavam a oferecer moradias, sem considerar as características sociais, culturais e
econômicas dos moradores e suas respectivas relações com o meio urbano. Em
conseqüência, as apropriações não atendiam integralmente as necessidades dos
usuários. Essa situação se retrata nos exemplos dos conjuntos Goiânia e Araguaia,
implantados pela Companhia Urbanizadora de Belo Horizonte – URBEL –, em
meados dos anos 90 que, embora construídos em período posterior à nova
legislação, ainda apresentavam essas características. A nova legislação instituiu a
municipalização, considerando aspectos locais, impondo a participação das
comunidades nas soluções, tornando-as específicas. O caminho das soluções se
amplia com a imposição da sua gestão, que só se completa com a regularização
fundiária. Essas mudanças demandam procedimentos que devem orientar novos
processos da produção da habitação social a serem retratados, inclusive, nos
projetos. Dentro da multidisciplinaridade e paridade dos conteúdos específicos que
visam a atender os usuários, cabe, na presente tese, avaliar a importância de um
deles, o projeto físico, que trata da ordenação espacial do lugar e da arquitetura da
moradia, à vista dessa nova legislação. Os aspectos significativos que definem essa
importância foram tratados sob dois cuidados: a constante atenção aos usuários e a
relação com os demais fatores envolvidos na produção da habitação social.
ABSTRACT
Residence settlement projects aimed to low wage families just offered residences,
without considering the inhabitants, the social, cultural and economic characteristics
and their respective relation with the urban environment. As a consequence, the
appropriations did not fully comply with the user’s needs. This situation can be
spotted in the examples of Goiânia and Araguaia settlements, inserted by
Companhia Urbanizadora de Belo Horizonte – URBEL –, in mid 90’s, and which
although inserted in a period after the new legislation still presented these
characteristics. The new legislation established the municipalization, considering
local aspects, imposing the communities’ participation in the solutions, turning them
into specific solutions. The solution’s path was getting extended with the imposition of
its administration, which only gets completed with the soil regularization. These
changes demand procedures that should guide new social residence production
processes, to be shown, including, in the projects. Inside the multidisciplinary and
pairing of the specific content which aims to attend the users, it is a purpose of the
present work to evaluate the importance of one of them, the physical project, which
deals with the site’s space organization and the residence’s architecture, under the
light of this new legislation. The significant aspects that define this importance were
dealt with two concerns: the constant attention to the users and the relation with
other factors involved in the production of social residence.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
FIGURA 1 Localização dos conjuntos habitacionais Goiânia e Araguaia no município de Belo Horizonte ........................................................................19
FIGURA 2 Localização do conjunto Goiânia no município de Belo Horizonte ........49
FIGURA 3 Situação do conjunto Goiânia em relação aos bairros adjacentes ........50
FIGURA 4 Planta do conjunto Goiânia ..........................................................................51
FIGURA 5 Plantas originais da casa do conjunto Goiânia - 1ª e 2ª fases ...............52
FIGURA 6 Situação do conjunto Goiânia em relação ao bairro Alvorada ...............53
FIGURA 7 Mapa do conjunto Goiânia e equipamentos do entorno..........................54
FIGURA 8 Localização do conjunto Araguaia no município de Belo Horizonte......55
FIGURA 9 Vista das ruas internas do conjunto Araguaia ...........................................56
FIGURA 10 Situação do conjunto Araguaia em relação ao bairro Araguaia .............56
FIGURA 11 Planta do conjunto Araguaia ........................................................................57
FIGURA 12 Plantas originais da casa do conjunto Araguaia - 1ª e 2ª fases.............58
FIGURA 13 Situação do conjunto Araguaia em relação aos bairros adjacentes......59
FIGURA 14 Mapa do conjunto Araguaia e equipamentos do entorno........................60
FIGURA 15 Vista parcial do conjunto Goiânia ................................................................64
FIGURA 16 Vista parcial do conjunto Araguaia..............................................................64
FIGURA 17 Vista das casas em frente ao conjunto Goiânia ........................................68
FIGURA 18 Vista dos lotes sem muros na época da implantação..............................69
FIGURA 19 Vista dos lotes com muros em 2003...........................................................69
FIGURA 20 Foto da construção por etapas de casa do conjunto Goiânia, mostrando situação na época da implantação..........................................70
FIGURA 21 Foto da construção por etapas de casa do conjunto Goiânia, mostrando situação em 2003.......................................................................70
FIGURA 22 Plantas modificadas das casas 1 e 2 do conjunto Goiânia.....................72
FIGURA 23 Planta modificada da casa 3 do conjunto Goiânia ...................................73
FIGURA 24 Planta modificada da casa 4 do conjunto Goiânia ...................................73
FIGURA 25 Planta modificada da casa 5 do conjunto Goiânia ...................................74
FIGURA 26 Plantas modificadas das casas 6 e 7 do conjunto Araguaia ..................74
FIGURA 27 Planta modificada da casa 8 do conjunto Araguaia .................................75
FIGURA 28 Vista das fachadas posteriores das casas, que se voltaram para as ruas principais ...........................................................................................76
FIGURA 29 Plantas modificadas das casas 9 e 12 do conjunto Araguaia ................77
FIGURA 30 Planta modificada da casa 10 do conjunto Araguaia ...............................77
FIGURA 31 Planta modificada da casa 11 do conjunto Araguaia ...............................78
FIGURA 32 Projeto do conjunto Goiânia idealizado pela arquiteta Ana Schmidt.....78
FIGURA 33 Vista do conjunto Goiânia na realidade......................................................79
FIGURA 34 Vista do ferro -velho do conjunto Goiânia .................................................142
FIGURA 35 Vista de espaço invadido no conjunto Goiânia .......................................142
FIGURA 36 Vista da Igreja Santa Mônica .....................................................................152
FIGURA 37 Vista da rua interna do conjunto Goiânia, em 1998 (esquerda) e em 2003 (direita) ..........................................................................................156
FIGURA 38 Vista da pracinha do rotor...........................................................................156
FIGURA 39 Vista da praça da Febem............................................................................158
FIGURA 40 Vista da praça do Minério ...........................................................................159
FIGURA 41 Vista do Cristo Redentor, de onde se vislumbra toda a região ............159
FIGURA 42 Vista das casas em frente ao conjunto Goiânia ......................................161
FIGURA 43 Indicação dos percentuais de consumidores em supermercados, moradores do conjunto Goiânia e do bairro Alvorada ...........................176
FIGURA 44 Indicação dos percentuais de consumidores em padaria, moradores do conjunto Goiânia e do bairro Alvorada ...........................177
FIGURA 45 Indicação dos percentuais de consumidores em sacolão, moradores do conjunto Goiânia e do bairro Alvorada ...........................178
FIGURA 46 Indicação dos percentuais de consumidores em farmácia, moradores do conjunto Goiânia e do bairro Alvorada ...........................179
FIGURA 47 Indicação dos percentuais de freqüentadores de escolas, moradores do conjunto Goiânia e do bairro Alvorada ...........................180
FIGURA 48 Indicação dos percentuais de freqüentadores de templos, moradores do conjunto Goiânia e do bairro Alvorada ...........................181
FIGURA 49 Indicação dos percentuais de praticantes de atividades de lazer, moradores do conjunto Goiânia e do bairro Alvorada ...........................183
FIGURA 50 Indicação dos percentuais de consumidores em supermercados, moradores do conjunto Araguaia e do bairro Araguaia .........................186
FIGURA 51 Indicação dos percentuais de consumidores em padaria, moradores do conjunto Araguaia e do bairro Araguaia .........................187
FIGURA 52 Indicação dos percentuais de consumidores em sacolão, moradores do conjunto Araguaia e do bairro Araguaia .........................189
FIGURA 53 Indicação dos percentuais de consumidores em farmácia, moradores do conjunto Araguaia e do bairro Araguaia .........................190
FIGURA 54 Indicação dos percentuais de estudantes, moradores do conjunto Araguaia e do bairro Araguaia ...................................................................191
FIGURA 55 Vista da Igreja Cristo Redentor..................................................................193
FIGURA 56 Indicação dos percentuais de fiéis, moradores do conjunto Araguaia e do bairro Araguaia ...................................................................192
FIGURA 57 Indicação dos percentuais de praticantes de atividades de lazer, moradores do conjunto Araguaia e do bairro Araguaia .........................194
FIGURA 58 Vista da esquina das ruas Amparo da Serra e Coronel Severiano no bairro Araguaia .......................................................................................218
LISTA DE TABELAS
TABELA 1 Problemas encontrados nas casas dos conjuntos Goiânia e Araguaia ..........................................................................................................65
TABELA 2 Discriminação dos problemas encontrados nas casas dos conjuntos.........................................................................................................65
TABELA 3 Modificações feitas nas casas dos conjuntos ...........................................68
TABELA 4 Modificações que os moradores gostariam de fazer nas casas dos conjuntos.........................................................................................................80
TABELA 5 Tempo de moradia dos habitantes nos bairros.......................................114
TABELA 6 Escolaridade dos moradores dos bairros.................................................116
TABELA 7 Renda familiar dos moradores dos bairros ..............................................117
TABELA 8 Ocupação dos moradores dos bairros .....................................................118
TABELA 9 Responsável pela renda familiar dos moradores dos bairros ..............118
TABELA 10 Faixa etária dos moradores dos conjuntos ..............................................120
TABELA 11 Escolaridade dos moradores dos conjuntos............................................120
TABELA 12 Renda familiar dos moradores dos conjuntos.........................................121
TABELA 13 Ocupação dos moradores dos conjuntos .................................................122
TABELA 14 Responsável pela renda familiar dos moradores dos conjuntos..........122
TABELA 15 Condições das casas anteriores dos moradores dos conjuntos (em %) ...........................................................................................................123
TABELA 16 Número de habitantes por moradia nos conjuntos.................................128
TABELA 17 Influências da implantação dos conjuntos segundo os moradores dos bairros.....................................................................................................133
TABELA 18 Fatores de melhoria da qualidade de vida dos moradores dos conjuntos.......................................................................................................135
TABELA 19 Fatores positivos dos conjuntos considerados por seus moradores...137
TABELA 20 Fatores negativos dos conjuntos considerados por seus moradores .....................................................................................................139
TABELA 21 Pontos de referência nos bairros segundo seus moradores ................152
TABELA 22 Pontos de referência nos bairros segundo os moradores dos conjuntos.......................................................................................................155
TABELA 23 Mudanças positivas ocorridas nos bairros segundo seus moradores .....................................................................................................163
TABELA 24 Mudanças negativas ocorridas nos bairros segundo seus moradores .....................................................................................................164
TABELA 25 Onde os moradores dos conjuntos se encontram..................................168
TABELA 26 Onde os moradores dos bairros se encontram.......................................171
TABELA 27 Deslocamento dos moradores do conjunto Goiânia e do bairro Alvorada .........................................................................................................174
TABELA 28 Deslocamento dos moradores do conjunto Araguaia e do bairro Araguaia ........................................................................................................185
TABELA 29 Relacionamento entre moradores dos conjuntos...................................207
TABELA 30 O que significa morar próximo a um conjunto habitacional ..................214
TABELA 31 Relacionamento entre moradores dos bairros e dos conjuntos...........220
TABELA 32 Relacionamento entre moradores dos conjuntos e dos bairros...........221
TABELA 33 Futuro dos conjuntos segundo seus moradores.....................................226
LISTA DE GRÁFICOS
GRÁFICO 1 Número de habitantes por moradia no bairro Araguaia ........................115
GRÁFICO 2 Número de habitantes por moradia no bairro Alvorada .........................116
GRÁFICO 3 Representação gráfica da propriedade dos imóveis do conjunto Goiânia...........................................................................................................126
GRÁFICO 4 Representação gráfica da propriedade dos imóveis do conjunto Araguaia ........................................................................................................127
GRÁFICO 5 Valores positivos e negativos das mudanças dos bairros indicados por seus moradores .....................................................................................165
GRÁFICO 6 Perspectiva futura dos bairros segundo seus moradores .....................223
GRÁFICO 7 Perspectiva futura dos bairros segundo moradores dos conjuntos.....224
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
ABC Abastecimento a Baixo Custo
BHTrans Empresa de Transporte de Trânsito de Belo Horizonte
BNH Banco Nacional da Habitação
CEMIG Companhia Energética de Minas Gerais
CIAMs Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna
COHAB Companhia da Habitação
COMAM Comissão Municipal de Meio Ambiente
COPASA Companhia de Saneamento de Minas Gerais
FCP Fundação da Casa Popular
FEBEM Fundação Estadual de Bem-Estar do Menor
FGTS Fundo de Garantia por Tempo de Serviço
IAP Instituto de Aposentadoria e Pensões
IAPB Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Bancários
IAPC Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Comerciários
IAPE Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Economiários
IAPI Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Industriários
IAPM Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Marítimos
IAPTEC Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Empregados em
Transportes e Cargas
LUOS Lei de Uso e Ocupação do Solo
OCB Organização Comunitária de Base
ONG Organização não-Governamental
OPH Orçamento Participativo da Habitação
PAE Plano de Atendimento Emergencial
PMBH Prefeitura Municipal de Belo Horizonte
PROAP Programa de Habitação Popular
PRODABEL Processamento de Dados do Município de Belo Horizonte
RIMA Relatório de Impacto Ambiental
SERFHAU Serviço Federal da Habitação e do Urbanismo
SFH Sistema Financeiro da Habitação
URBEL Companhia Urbanizadora de Belo Horizonte
ZEIS Zona Especial de Interesse Social
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO .......................................................................................................19
2 A ARQUITETURA DA CASA.............................................................................31
2.1 A arquitetura da URBEL ....................................................................................45
2.1.1 Os projetos dos conjuntos Goiânia e Araguaia................................................. 47 2.1.1.1 O projeto do conjunto Goiânia....................................................................................................................49 2.1.1.2 O projeto do conjunto Araguaia.................................................................................................................54
2.2 A arquitetura do morador .................................................................................61
2.2.1 O projeto do morador............................................................................................ 67
3 A MUNICIPALIZAÇÃO DA POLÍTICA HABITACIONAL..............................83
3.1 A política da URBEL...........................................................................................88
3.2 A ação da URBEL................................................................................................91
3.3 Antecedentes históricos da política da municipalização ........................96
3.3.1 O direito à moradia ..............................................................................................105
4 A IDENTIDADE COM O LUGAR .....................................................................112
4.1 A origem dos moradores................................................................................113
4.1.1 Os estabelecidos : moradores dos bairros Alvorada e Araguaia...................113 4.1.2 Os outsiders : moradores dos conjuntos Goiânia e Araguaia........................119 4.1.2.1 O caminho para casa................................................................................................................................. 123 4.1.2.2 “Eu não tenho onde morar” ......................................................................................................................124 4.1.2.3 A chegada à casa nova .............................................................................................................................125
4.2 As relações afetivas com o lugar .................................................................129
4.2.1 Identidade dos estabelecidos com suas moradias .........................................131 4.2.2 Identidade dos estabelecidos com os conjuntos............................................132 4.2.3 Identidade dos outsiders com suas moradias .................................................135 4.2.4 Identidade dos outsiders com os conjuntos....................................................137
5 A VIDA COTIDIANA E AS PRÁTICAS ESPACIAIS ....................................145
5.1 O cotidiano nas comunidades.......................................................................148
5.1.1 Os pontos de referência......................................................................................149 5.1.1.1 Os pontos de referência par a os estabelecidos ................................................................................151 5.1.1.2 Os pontos de referência para os outsiders .........................................................................................154 5.1.2 As mudanças ocorridas nos bairros .................................................................162
5.2 As práticas espaciais nos conjuntos e nos bairros ................................166
5.2.1 Os encontros nos conjuntos e nos bairros ......................................................168 5.2.1.1 Os encontros dos moradores nos conjuntos......................................................................................168 5.2.1.2 Os encontros dos moradores nos bairros ...........................................................................................170 5.2.2 Os deslocamentos nos conjuntos e nos bairros .............................................172 5.2.2.1 Os deslocamentos no conjunto Goiânia e no bairro Alvorada.....................................................173 5.2.2.2 Os deslocamentos no conjunto e no bairro Araguaia.....................................................................184
6 INTOLERÂNCIA ENTRE ESTABELECIDOS E OUTSIDERS ...................196
6.1 As práticas sociais entre grupos no espaço.............................................202
6.1.1 A intolerância entre os pobres...........................................................................204
6.2 As práticas sociais nos conjuntos...............................................................207
6.3 As práticas sociais conjunto-bairro .............................................................211
6.3.1 “Um estranho no ninho”.....................................................................................212 6.3.1.1 Relacionamento entre os dois grupos: o olhar dos estabelecidos.............................................219 6.3.1.2 Relacionamento entre os dois grupos: o olhar dos outsiders ......................................................221
6.4 Olhares sobre o futuro ....................................................................................222
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS ..............................................................................230
REFERÊNCIAS ...................................................................................................................237
ANEXO A - Questionários ...............................................................................................242
ANEXO B - Matérias de jornal........................................................................................248
19
1 INTRODUÇÃO
Este trabalho se propõe examinar a questão da habitação social, no que se refere às
relações que se estabelecem entre o projeto da moradia e os modos de vida dos
seus habitantes, com ênfase no projeto arquitetônico da casa e no macro urbanístico
de infra-estrutura e entorno. O estudo tem por objetivo entender a importância da
casa na vida urbana, observando o significado para aqueles que moram nos
conjuntos habitacionais e que viveram momentos de luta para conquistar sua
moradia. Muito mais do que um espaço feito de tijolo e cimento para abrigar e dar
proteção às agressões da natureza e da sociedade, a casa é o lugar onde se realiza
a vida, onde se produz a identidade, onde a transformação contínua da existência
define e efetiva a ressignificação desses espaços.
Para demonstrar empiricamente o que foi dito, é exemplar o trabalho que a
Companhia Urbanizadora de Belo Horizonte – URBEL – desenvolveu em Belo
Horizonte. Os conjuntos Goiânia e Araguaia, construídos em 1996, retratam bem
essa situação. Esses conjuntos foram agregados a bairros consolidados – o
Alvorada e o Araguaia, munidos de infra -estrutura, equipamentos urbanos e tendo
seus moradores já estabelecido relações de vizinhança entre si.
FIGURA 1 Localização dos conjuntos habitacionais Goiânia e Araguaia no município de Belo Horizonte
Fonte: Elaborado por Maria Cristina Villefort Teixeira e Beatriz Marinho Gomes com base em BELO HORIZONTE, 1996.
20
Nesse sentido, cabe destacar alguns fatos ocorridos no processo de inserção dos
conjuntos Goiânia e Araguaia nos bairros Alvorada e Araguaia. Os moradores
transferidos para os conjuntos já tinham estabelecido entre si relações de vizinhança
durante o período em que, à espera do seu reassentamento, viveram reunidos em
acampamentos organizados pela administração municipal. Com a conclusão das
obras dos conjuntos habitacionais e a conseqüente instalação dessa população nas
novas casas, surgiram divergências entre aqueles mesmos personagens e, em
especial, deles com a comunidade já estabelecida nos bairros.
Destaque-se que um fato particular despertou nossa atenção: desde a construção
dos conjuntos, os antigos residentes dos bairros existentes se manifestaram contra a
sua implantação, alegando que havia grande diferença econômica, social e cultural
entre a comunidade já instalada e a que chegava. É que os moradores que vinham
habitar esses conjuntos eram pobres, oriundos, na maioria, do interior do Estado e,
antes de se mudarem para os conjuntos, viviam em condições precárias, pois suas
antigas residências, localizadas em áreas de risco, haviam sido parcial ou totalmente
destruídas. Por outro lado, a população original dos referidos bairros se compunha,
em grande parte, de famílias de classe média, com um perfil diferenciado do
primeiro. Além disso, essas famílias habitavam o local há muito tempo e já haviam
estabelecido fortes laços de vizinhança.
Conforme noticiário local, ao serem instalados os novos moradores, essa relação
entre os dois grupos extrapolou os limites dos respectivos sítios, estendendo-se ao
entorno. A coexistência reforçou a diferença entre eles – os moradores dos bairros e
os que vieram habitar os conjuntos, chegando até a agravar os conflitos nas suas
relações cotidianas. Tal manifestação atingiu consideráveis níveis de intolerância,
influenciando o comportamento e as relações sociais entre essas duas
comunidades.
Assim, pode-se perceber que o projeto para a habitação social sob os parâmetros da
política habitacional municipalizada ainda requer cuidados para que os espaços nele
propostos atinjam, na sua integridade, os aspectos físicos e soc iais desejados pelos
moradores.
21
Na tentativa de interpretação desse fenômeno, recorre-se, nesta tese, às duas
categorias de análise propostas por Elias e Scotson (2000, p. 7) – os estabelecidos
e os outsiders – em estudo sobre um povoado inglês, em que os autores registram
ocorrência de formas distintas de apropriação do espaço por parte dos dois grupos
ali residentes. Ressalte -se logo, porém, que naquele estudo os grupos em conflito
não apresentavam heterogeneidade social, econômica ou cultural, o que os
diferencia do caso dos conjuntos e dos bairros – Goiânia/Alvorada e
Araguaia/Araguaia – selecionados para o estudo de caso realizado a seguir. Para a
devida clareza dos argumentos aqui apresentados, é necessário, pois, explicitar que,
no âmbito desta tese: estabelecidos são os moradores dos bairros Alvorada e
Araguaia, aí residentes antes de 1996, quando foram construídos nossos dois
conjuntos; outsiders são os moradores instalados no Goiânia e no Araguaia,
conjuntos incrustados nos citados bairros.
Nesse sentido, os grupos se caracterizam por apresentarem relações
interdependentes entre os seus membros e por estes membros compartilharem de
uma ideologia que absorve um conjunto de valores, crenças e normas que regulam
sua conduta mútua. Mesmo assim, o grupo se divide em determinados contextos,
mas mantém sua identidade em outros (SILVA, 1987). Este conceito poderá se
aplicar ao presente estudo, se considerado o processo de construção dos grupos
dos moradores dos conjuntos e dos bairros.
Com base nesse referencial, analisa-se, no corpo desta tese:
• como os fatos ocorridos nos conjuntos Goiânia e Araguaia constituem um alerta
no sentido de buscar novos parâmetros que conduzam a resultados mais
proveitosos na solução de problemas da habitação popular; analisar-se-á, então,
como os conjuntos habitacionais, pensados, concebidos e construídos para
abrigar uma camada da população que não tem acesso prévio à maioria dos
bens produzidos pela cidade, são vivenciados na realidade por seus usuários;
• como os projetos elaborados pela URBEL vêm associando crescentemente as
relações entre a política, o projeto e o espaço vivido pelos seus moradores.
Como é sabido, a política habitacional pós-1988 está construída sobre uma
estratégia de ação, cujas linhas gerais se identificam com o direito à cidade
22
sustentável e à propriedade urbana. Essa nova política formou-se lentamente,
constituída de um ideário defendido por grupos que preconizavam a reforma urbana,
mais condizente com os direitos humanos incluído aí, o direito à moradia. Em virtude
desses conceitos, as diretrizes da política habitacional adotada até então,
principalmente a do BNH, passaram por reformulações que pudessem humanizar o
processo da produção da habitação social.
Em Belo Horizonte, também, após a municipalização da política habitacional, a
concepção da casa para a população de baixa renda passou a valorizar as questões
de ordem local e a participação popular, permitindo, assim, maior interlocução entre
os agentes, os atores, os produtores e os moradores da habitação, o que possibilita
melhor atendimento das condições da moradia, para aqueles que foram
contemplados pela política.
Antes desse período, as soluções tentadas para solucionar o problema da habitação
social haviam se efetuado com o BNH, distantes dos respectivos pontos de
aplicação, centralizadas, sem considerar as diferenças de natureza física e social do
território brasileiro.
A URBEL, embora constituída sob os novos conceitos da municipalização, na
prática, no seu período inicial, não se diferenciou daquela política nacional, cujos
resultados se configuraram nos conjuntos Goiânia e Araguaia. A partir da análise
desses dois conjuntos, evidenciou-se, ainda, a necessidade de mudança de atitude,
imediatamente adotada, já de acordo com a nova legislação, à qual se agrega a
regularização fundiária.
Entretanto, perduram, nessa fase, os processos de transformação das casas pelos
moradores, fato verificado naqueles projetos anteriores de habitação social no país.
Acreditava-se que esses projetos retratavam a padronização das unidades
habitacionais e atendiam às aspirações físicas e sociais de um morador
indiferenciado, por considerarem o território nacional e sua população como fatores
homogêneos. Dessas alterações, parte -se da hipótese de que os projetos de
arquitetura dessas habitações estão descolados dos modos de vida dos moradores.
Para que o desenvolvimento das soluções dentro das novas normas seja
satisfatório, há necessidade de evitar as causas que levaram a resultados como
23
esse, considerando-se, ainda, que o problema envolve multidisciplinaridade. Devido
a isso, tomamos a iniciativa de elaborar uma tese que demonstre a importância do
projeto físico adequado, sem perder o reconhecimento de paridade dos aspectos
que implicam a solução dos problemas em relação à habitação social.
Esse fato nos remete a Carlos Nelson Ferreira dos Santos, quando afirma que
[...] os resultados reais da atividade do cientista, do planejador, do administrador, do técnico, do político sobre as cidades começam quando toda essa gente sai de cena. Quando os seus projetos deixam de ser mapas, memoriais, orçamentos, leis, decretos ou planos financeiros e se transformam em uma linguagem física decodificável no dia -a-dia (SANTOS, 1985, p. 7).
É fato que a maneira como cada grupo se apropria da habitação, do conjunto e do
bairro representa a vivência desses indivíduos no espaço.
A casa sempre representou a relação inicial e instintiva que o ser humano
estabelece com o abrigo e a proteção. E vários são os significados que, através de
símbolos, do imaginário e do modo de vida das pessoas, se referem ao conceito de
habitação.
Para Heidegger, citado por Choay (1992, p. 347), a etimologia de habitar se origina
de construir. Em suas palavras, o homem age e interage com o espaço em que vive:
“a maneira como nós, homens, somos sobre a terra é o buan, a habitação”. Esse
pensador alemão afirma que habitar é fundamento da condição humana, “pois ser
homem quer dizer estar sobre a terra como mortal, quer dizer habitar”. 1
Bachelard (2000, p. 24-26) afirma que a casa é o nosso canto do mundo, o nosso
primeiro universo. Sob o olhar fenomenológico, todo espaço realmente habitado traz
a essência da noção de casa e, além de abrigo e refúgio, a casa passa a idéia de
que nos seus aposentos, impregnados de histórias, existem valores oníricos
consoantes. Por esse motivo, a casa nos permite evocar, na seqüência de nossa
obra, luzes fugidias de devaneio que iluminam a síntese do imemorial com a
lembrança. Assim, a casa protege o sonhador e permite sonhar em paz.
1 HEIDEGGER, M. Vorträge un Aufsaze. Pfullingen, 1954.
24
As afirmações desses autores traduzem o amplo conceito de moradia, mostrando,
pois, que certamente há uma relação de reciprocidade entre o indivíduo e o seu
meio, expresso através da casa. É inegável que a habitação é o seu lugar físico,
emocional, afetivo e cultural que permite interações mútuas. Portanto, ele a constrói
física e afetivamente através de um processo coerente com a sua cultura e com a
sua história de vida. Ela passa a ter também a função de preparar seus
componentes para a sociabilidade, expressa através das representações sociais na
escala interna da família. É o caso da habitação tratada como fator de
relacionamento estrutural familiar, que Correia (1999, p. 1) considera não só como
espaço sanitário provido de infra-estrutura básica que fortalece o convívio familiar,
mas que, também, amplia a função da moradia como instrumento para alcançar o
convívio urbano. Nesse sentido, a autora define a casa como um santuário, cujo
ambiente é destinado à construção de um verdadeiro lar, com suas hierarquias e
trocas afetivas.
A habitação, todavia, não se resume à edificação. Habitar o espaço é mais que
ocupar um lote e uma edificação como elementos isolados do conjunto da produção.
A habitação é um sistema complexo de condições que pressupõe qualidade de vida
e que engloba, dentre outras coisas, a existência de atividades econômicas, de
sistemas de transportes e de comunicação, de abastecimento, de atividades
culturais (EGLER, 1986, p. 219).
Por outro lado, sob o ponto de vista econômico, a habitação é considerada uma
mercadoria como as outras. Ela é definida, na abordagem capitalista, como o
suporte de valorização do capital e deve ser administrada pelo proprietário como um
bem capital (EGLER, 1986, p. 188). E, como tal, deve responder por um processo de
realização de lucros e rendas. Dos altos custos de produção dessa particular
mercadoria resultam formas desiguais de sua apropriação.
A casa própria tem se caracterizado como uma das maiores aspirações da
população brasileira, significando a principal evidência de sucesso e da conquista de
uma posição social mais elevada, conforme afirmou Bolaffi (1982, p. 43). Além do
mais, outros fatores justificam esse tipo de preferência, pois a aquisição da casa
própria não só melhora as possibilidades de acesso ao crediário, como libera o
orçamento familiar da obrigação mensal inexorável do aluguel. Esse mesmo ponto
25
de vista é considerado por Maricato (1999, p. 50), que afirma que a casa própria
chega a se constituir elemento destacado de discriminação social, pelo fato de ainda
ser muito forte na sociedade brasileira a divisão entre proprietários e não-
proprietários.
Azevedo e Andrade (1982, p. 43) corroboram essa idéia e acrescentam que a
propriedade poderia se tornar fator de estabilidade política, pois, através da casa
própria, o trabalhador alcançaria não só ascensão social, como também civilidade, o
que geraria, no indivíduo, um senso de responsabilidade, levando-o a fazer todos os
sacrifícios e empenhar o máximo de seus esforços para mantê-lo.
Já outros autores, como Villaça (1986, p. 53) e Peluso (1999, p. 117), apresentam
opiniões diferenciadas: o primeiro afirma que a casa própria é ideologia da classe
dominante, pois oferece segurança econômica e social, face às incertezas do futuro,
e a segunda aponta que a propriedade de uma casa é um elemento importante para
territorializar o distanciamento desejado pelo sujeito que ascende em direção às
classes superiores.
De fato, os aspectos sociais da propriedade espelham um status diferenciado,
indicando a realização do indivíduo que conseguiu se livrar do famigerado aluguel.
Ao mesmo tempo, suas relações com o espaço valorizam aspectos subjetivos que
retratam a adequação da casa ao seu modo de vida. É inegável que, sob esse ponto
de vista, podem ser observadas a atração e a glamourização que o estilo de vida
burguês exerce para aqueles que almejam o seu próprio lar, apresentado
incessantemente pelos meios de comunicação.
Considerando os processos de financiamento e o alto custo da moradia, o subsídio
do Estado é indispensável para que se atenda ao déficit habitacional no país, que
atualmente gira em torno de 6,6 milhões de moradias, enquanto que, apenas no
município de Belo Horizonte, é da ordem de 60 mil unidades. A casa própria ainda
não é acessível para grande parte da população, embora, perante a Constituição da
República, todo cidadão tenha direito à moradia. A expectativa de sua
materialização, contudo, pode apresentar melhores perspectivas após o processo de
reforma urbana desencadeado pela Constituição de 1988 (BRASIL, 1989), visto que
movimentos multissetorais, de abrangência nacional, têm pressionado para
26
conseguir a efetivação dessa reforma, na qual a moradia constitui um importante
elemento para que se cumpra a função social da cidade.
Embora as políticas públicas urbanas tenham, ao longo do tempo, evoluído quanto
ao enfoque social, proporcionando maior inclusão dos moradores de baixa renda,
elas estão longe de atender às demandas tanto quantitativas como qualitativas.
Como dito anteriormente, a moradia digna ainda é privilégio de poucos cidadãos,
embora a Constituição Federal (BRASIL, 1989) reze no artigo 6º que ela constitui um
direito social e de o Estatuto da Cidade2, aprovado em julho de 2001, reiterar no seu
artigo 2º
[...] a garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infra -estrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e as futuras gerações (BRASIL, 2001).
A aprovação da referida Lei ainda é recente e não foi seguida de uma série de
medidas indispensáveis que efetivassem esse propósito.
Na metodologia a ser aplicada serão analisados, comparativamente, o projeto físico
e o espaço vivido, que passam a constituir os fios condutores da argumentação a
seguir apresentada.
O projeto reflete as diretrizes da política adotada pela URBEL. Serão selecionados
os projetos de arquitetura e urbanismo dos conjuntos e avaliados até que ponto
aquelas diretrizes ali foram efetivadas.
O espaço vivido é avaliado através da apropriação pelos moradores nesses
espaços, observando-se a identidade que eles mantêm, respectivamente, com a
casa, com o conjunto e com o bairro na vida cotidiana. O conceito de lugar é
imprescindível para o entendimento das relações dos indivíduos com o meio que
eles ocupam, pois ele passa a adquirir valores calcados nas experiências vividas,
2 A Lei Federal 10257/2001, denominada Estatuto da Cidade, regulamenta os artigos 182 e 183 da Constituição Federal de 1988 e estabelece normas gerais da política urbana e “de ordem pública e interesse social que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental”. As suas 16 diretrizes gerais que estabelecem os instrumentos da política urbana, o Plano Diretor e a gestão democrática da cidade reforçam a importância da participação popular nos projetos de desenvolvimento urbano e nas audiências públicas nos níveis nacional, estadual e principalmente municipal, para que sejam garantidos o controle das atividades e o pleno exercício da cidadania (BRASIL, 2001).
27
identificadas tanto no espaço fechado, que estabelece relação de privacidade e
intimidade, como naquele onde se realizam as atividades coletivas que necessitam
de convívio entre indivíduos e grupos.
Através da apropriação do espaço identifica-se o lugar como território palpável, que
passa a ser o centro da vivência dos habitantes e, ao mesmo tempo, da observação
do pesquisador. No momento em que os novos moradores ocupam os conjuntos
habitacionais, eles se apropriam do espaço naturalmente, de acordo com os seus
hábitos, os seus modos de vida e a sua cultura. A apropriação do novo espaço se dá
tanto física como socialmente, à medida que se revela a identificação desse morador
com o lugar.
Do ponto de vista físico, essa apropriação se revela, inicialmente, em pequenas
intervenções de caráter individual na casa ou no lote, de modo que se expresse a
identidade do habitante com a sua moradia. Nesse sentido, as alterações sofridas
por essas residências oferecidas pelo Estado ocorrem após a sua ocupação pelos
habitantes, demonstrando a arquitetura do morador, cujos projetos buscam atender
especificamente às suas necessidades. Aí se manifesta a vivência, que retrata, nas
práticas espaciais desenvolvidas na vida cotidiana desses moradores, as relações
afetivas que se estabelecem com o local, indicando os valores culturais e as
necessidades específicas de cada indivíduo. Cabe observar que esses projetos
ainda são passíveis de alterações para que atendam de forma adequada às
necessidades dos usuários desses locais.
Como os citados conjuntos foram implantados em setores da cidade que já eram
ocupados por população de perfil econômico e social diferenciado daqueles que
chegavam, faz -se necessário observar, além das manifestações individuais com o
espaço, como se processaram as relações dos diferentes grupos no cotidiano. Para
isso, são avaliados os hábitos de cada família com a casa, com o conjunto e com o
bairro, ressaltando-se os valores atribuídos pelos habitantes a cada um deles na
hierarquia espacial.
A pesquisa indica que a idéia de pertencimento do indivíduo ao grupo se manifesta
quando os hábitos resultantes da ação dos segmentos começam a mostrar uma
resposta similar e aproximada, referente a cada um deles. Assim, as relações dos
28
indivíduos com o espaço poderão indicar o que elas significam para a população dos
lugares nos quais acontecem os seus deslocamentos do dia-a-dia, tais como
supermercado, padaria, sacolão, escola, prática religiosa e lazer.
As relações sociais entre dois grupos de diferentes classes sociais assumem papel
importante quando eles passam a estabelecer relações de vizinhança. A apreciação
da convivência entre os moradores dos conjuntos e os dos bairros demonstra, nas
trocas no cotidiano, o entendimento do contato intra e extra-conjunto. Na maioria das
vezes, essa convivência gera conflitos em virtude das diferenças sociais,
econômicas e culturais entre eles. Além disso, para o entendimento dessas relações
de convivência entre os moradores dos conjuntos e os dos bairros adjacentes,
definiu-se uma mesma orientação metodológica para abordar os dois grupos,
procurando-se, então, entender o perfil socioeconômico, a origem desses habitantes
e sua inserção no mercado de trabalho, o modo como se dá a construção do espaço
físico de suas moradias e como se desenvolvem as suas práticas cotidianas.
Os procedimentos metodológicos a serem adotados deverão avançar no sentido de
reconhecer os dois eixos analíticos expressos no processo pelo qual se realiza, por
um lado, o projeto, e por outro, o espaço vivido.
Os documentos levantados informam sobre as políticas habitacionais implantadas
pela URBEL e sobre os princípios que direcionam os programas regidos pelo órgão
para a elaboração do projeto arquitetônico dos conjuntos. Ao mesmo tempo, a
análise dos termos de referência e dos memoriais dos projetos indica o processo da
construção dos conjuntos estudados. As entrevistas com técnicos da URBEL e com
os arquitetos autores dos projetos iluminam as intenções subjacentes às propostas
apresentadas para os assentamentos em questão.
O levantamento bibliográfico específico, juntamente com a análise dos dados
colhidos no processo de assentamento das famílias, contribui para a identificação
dos problemas conseqüentes da implantação de conjuntos dessa natureza. Essa
identificação se constitui em subsídios para futuras correções dos problemas
indicados.
As pesquisas no local não identificaram lideranças atuantes que respondessem
pelas comunidades. Por isso, fizeram-se necessárias entrevistas com proprietários
29
dos estabelecimentos comerciais mais próximos, a fim de detectar como se
verificavam, através de olhares distintos, as relações entre os dois grupos de
moradores.
A investigação se fundamentou, no universo entrevistado, em pesquisa qualitativa,
através de questionários abertos, envolvendo moradores dos conjuntos Goiânia e
Araguaia e dos bairros Alvorada e Araguaia. A pesquisa foi estruturada de modo a
levantar a opinião de um representante de cada família dos dois conjuntos e uma
amostra da população dos bairros. Esses entrevistados foram selecionados entre os
habitantes com idade acima de 15 anos. No Conjunto Goiânia, foram entrevistados
39 representantes das 42 famílias ali assentadas, compreendendo 221 pessoas, ao
passo que, no conjunto Araguaia, 29 representantes das 35 unidades existentes
responderam os questionários, num universo de 176 pessoas. Foram pesquisados
também 15 representantes do bairro Alvorada envolvendo um universo de 66
pessoas e 14 representantes dos habitantes do bairro Araguaia, num total de 53
moradores. Ainda que no caso desta última se trate de uma amostra pouco
expressiva, ela é ilustrativa da percepção do grupo, visto que se registra número
significativo de repetições nas respostas. Houve a intenção inicial da pesquisa,
realizada em março de 2003, de cobrir a opinião de todo o universo de moradores
fixados pelo projeto nesses conjuntos, mas manifestações de desconfiança
constituíram o principal motivo para recusas às respostas dos questionários. Dentre
as famílias que não responderam aos questionários, incluíram-se ausentes ou os
que recusaram respondê-los.
O primeiro capítulo da tese discute a influência da Arquitetura Moderna no processo
da criação do espaço; considera a responsabilidade dos arquitetos na concepção do
projeto e mostra como o morador, ao se apropriar da sua moradia, elabora o projeto
dos arquitetos, produzindo a sua própria arquitetura, que reflete o seu modo de vida,
as suas necessidades e as suas aspirações.
No segundo capítulo, aborda-se a ação da URBEL na busca de soluções para os
problemas habitacionais de Belo Horizonte, demonstrando-se como tal ação evoluiu
através do tempo.
30
No capítulo 3, diz-se das relações afetivas que os moradores estabelecidos e os
outsiders mantêm com o lugar, retratando ali a sua identidade. Apresenta-se, ainda,
o perfil socioeconômico desses moradores, retratando a sua origem e os caminhos
percorridos pela população dos conjuntos até chegar aos assentamentos.
Já o capítulo 4 apresenta as práticas espaciais no cotidiano das duas comunidades,
onde se identificam os pontos de referência da região e quais as relações
estabelecidas através dos encontros e dos deslocamentos das pessoas, nos
conjuntos e nos bairros vizinhos.
No capítulo 5, destaca-se não só a intolerância manifestada nas práticas sociais
entre os membros dos conjuntos e dos bairros, mas também a avaliação desses
moradores sobre o seu relacionamento, explicitando as diferenças que ocorrem no
cotidiano. São também consideradas as perspectivas do futuro do local sob o ponto
de vista das duas comunidades.
Finalmente, as considerações finais tecem uma análise crítica sobre a política, o
projeto e o espaço vivido na habitação social.
31
2 A ARQUITETURA DA CASA
Os projetos empreendidos pela URBEL determinaram um padrão arquitetônico de
residência que priorizava o atendimento à população de baixa renda, dentro de
limites de uma viabilidade financeira. Essas residências, ao serem apropriadas pelos
usuários, passaram por alterações e acréscimos, que configuraram a arquitetura
produzida pelo morador. O presente capítulo busca verificar as causas dessas
modificações, especialmente aquelas decorrentes da deficiência do atendimento do
projeto às necessidades dos usuários. Para isso, a pesquisa de projetos elaborados
pela URBEL apresenta exemplos característicos, considerando as contribuições de
projetos arquitetônicos na história da produção da habitação social no país.
A política habitacional vigente em período anterior à aprovação da Constituição de
1988 era de âmbito nacional e desconsiderava as diferenças geográficas. Os
projetos dos conjuntos habitacionais também retratavam essa dissonância,
principalmente quanto aos partidos arquitetônicos. Essa arquitetura do Estado,
retratada nas moradias, adotava tipologias padronizadas destinadas a composições
familiares distintas e, além disso, a disposição e o dimensionamento dos cômodos
apresentavam deficiências quanto a padrões de habitabilidade. Além do mais , esse
olhar pragmático se submetia às imposições de custos e se justificava como artifício
necessário à redução do déficit habitacional, atribuindo-lhe condição meramente
quantitativa.
No momento em que essas casas passavam a ser habitadas, seus moradores
executavam modificações diversas, expressando ali a sua identificação com o lugar,
atendendo, também, às suas necessidades.
Após a municipalização das políticas habitacionais, no entanto, o espaço construído
para a habitação social passou a ser tratado à base de uma nova proposta
específica, que permitia os adequados dimensionamentos do problema por parte
dos respectivos agentes locais envolvidos no processo da produção da moradia. A
partir dos anos 90, quando a política passou a direcionar mais efetivamente ações
nos âmbitos municipais, os novos conjuntos habitacionais passaram a apresentar
configuração diferenciada daquela adotada até então. Os projetos, além de tentarem
32
atender mais objetivamente às comunidades locais, passaram a considerar algumas
transformações espaciais, buscando priorizar as áreas disponíveis menos distantes
do centro das cidades ou aquelas mais próximas de setores de trabalho. Em
obediência a uma tendência atual de evitar a periferização de moradores de baixa
renda, tal ação beneficiaria essa camada da população.
A URBEL, nesse sentido, tem sido inovadora, na medida em que adota uma política
que vem atendendo a parte razoável da população necessitada, com projetos
inseridos na malha urbana. Com a municipalização e a nova legislação urbanística,
tornou-se indispensável o atendimento prévio a essas comunidades, em que se
evidenciaram participações mais ativas da população envolvida. Manifesta-se,
assim, a arquitetura do morador, que representa na sua casa o seu modo de vida,
que busca dotá-la de meios e qualidade que atendam às suas demandas
específicas, de acordo com a composição familiar e os seus desejos. Essas
dissonâncias implicam em complementações que tendam a atenuá-las; por isso, a
URBEL vem retomando a aproximação com as comunidades envolvidas nos
programas. Para atender aos objetivos do trabalho, cabe avaliar os projetos
elaborados por esse órgão, especialmente dos conjuntos Goiânia e Araguaia, cujas
fases sucessivas incluem aspectos dos projetos desse órgão, e identificar a
arquitetura do morador, a partir do momento em que ele passa a vivenciá-la. Para
maior esclarecimento da idéia, foi necessário explicitar aspectos do problema da
moradia, o que implicou em uma divisão do assunto em quatro pontos fundamentais,
quais sejam: a arquitetura da URBEL, os projetos elaborados por ela, a arquitetura
do morador e os projetos do morador.
O projeto de arquitetura considera as relações espaciais funcionais através de
aproximações sucessivas, representando a ordenação racional de setores e objetos,
configurando um universo harmonicamente integrado. Em síntese, pode-se
considerar esse conceito de projeto inserido no território urbano.
Milton Santos (1997a, p. 111) afirma que os espaços urbanos são formados por dois
componentes que interagem continuamente, que são a configuração territorial e a
dinâmica social. A configuração territorial se dá pelo arranjo sobre o território dos
elementos naturais e artificiais de uso social, ao passo que a dinâmica social diz
respeito ao conjunto de variáveis econômicas, culturais e políticas, que a cada
33
momento histórico dão uma significação e um valor específicos ao meio técnico
criado pelo homem, isto é, à configuração territorial. Nesse sentido, eles são
concebidos como a integração entre fixos e fluxos e tornam-se fundamentais para a
compreensão das articulações entre as suas diversas frações. Esse importante
geógrafo traduz de forma clara esses conceitos, quando anuncia a integração entre
os fixos e os fluxos nas articulações do macro. No caso do projeto arquitetônico,
motivo da presente tese, podemos aplicar as mesmas relações, visto que a
edificação se contextualiza na escala urbana.
A organização física da moradia se dá através da intervenção de arquitetos,
planejadores e executores, de modo que se efetive a integração entre os espaços
fixos e os fluxos na rede urbana, em obediência a normas das políticas urbana e
habitacional. Para tanto, condicionantes tais como custo, preceitos legais, materiais
a serem empregados na construção e técnicas construtivas são sintetizados na
proposta final.
O projeto, no âmbito deste trabalho, é entendido como aquele que apreende as
condições estabelecidas por normas técnicas e construtivas e que proporciona no
espaço a ser vivido salubridade, conforto e bem-estar para o usuário. Além disso, ele
deverá atender aos costumes e às características culturais aproximadas dos
indivíduos que venham ocupá-lo.
O projeto para a moradia se constitui na solução que melhor atende às condições
programáticas indicadas pelo morador, o proprietário, no que diz respeito às suas
necessidades e às da sua família. No projeto, cabe ao arquiteto interpretar esses
valores e desejos dos indivíduos que ali vão viver. Nesse sentido, Silva (1983, p . 37)
considera o projeto arquitetônico uma proposta de solução para um particular
problema de organização do entorno humano, em que se determina a forma
construtível, através da descrição dessa forma e das prescrições para a sua
execução, sem perder de vista as limitações de ordem econômico-financeira.
A partic ipação do arquiteto com o seu projeto tem papel fundamental no apoio ao
empreendimento, visto que ele deve coordenar a articulação entre o usuário e o
programa por ele estabelecido, buscando técnicas e propostas construtivas que
melhor se adaptem às condiç ões físicas do terreno. Nesse sentido, cabe lembrar
34
Gropius (1977, p. 93), um dos fundadores da Bauhaus, que acredita que a
característica fundamental inerente a esse profissional é a de coordenador, que
deveria ser “um homem de visão e competência profissional, com a tarefa de
solucionar harmonicamente os vários problemas sociais, técnicos, econômicos e
artísticos que surgem em conexão com a construção”. Além disso, esse profissional
deve respeitar as características culturais e os valores das pessoas que viverão nos
lugares a serem construídos, o que, certamente, vai garantir não só qualidade nesse
espaço, como também maior adaptação do local ao modo de vida do novo habitante.
Mais ainda: no ato de projetar, o arquiteto deve ficar atento às transformações
intensas por que vem passando a sociedade, para que novos conceitos possam ser
assimilados nos futuros espaços a serem projetados. A qualidade desse novo
espaço depende da atenção dada pelo técnico à maioria dos itens estabelecidos,
tanto nas condições programáticas como nos condicionantes e determinantes do
projeto.
Já Graeff (1979, p. 81), estudioso da teoria da Arquitetura, avalia com o olhar parcial
que favorece esses técnicos, que o projeto se constitui na construção imaginária,
que é uma estrutura que só tem existência na mente do arquiteto, que são pessoas
capazes de elaborar com proveito os desenhos, cálculos e outras peças que o
representam. Nesse sentido, na maioria das vezes, as abstrações que o projeto
apresenta só serão percebidas pelos indivíduos ao serem materializadas, pois é aí
que as pessoas têm oportunidade de conferir se houve atendimento às suas
aspirações. Bem lembra Egler (2000, p. 209) que projetar e construir um espaço
físico é prever um conjunto de ações plasmadas em processos espaciais. Essa
pesquisadora afirma, ainda, que “prever e projetar o espaço do encontro é perceber
para além das funções imediatas do objeto, de natureza sociopolítica ou
econômica”.
Apesar disso, esses profissionais não estão isentos de críticas, como aquela
apresentada por Léfèbvre (1969, p. 102), que afirma que esses técnicos elaboram
seus projetos “não através das significações percebidas e vividas por aqueles que
habitam, mas a partir do fato de habitar, por eles (arquitetos) interpretado”. Daí
ocorre o processo de modificações, quer seja um projeto de natureza individual, quer
seja em soluções projetuais coletivas.
35
Ainda assim, um autor como Habermas (1987, p. 122) analisa criticamente a
responsabilidade dos profissionais envolvidos com o projeto, dizendo que “o
conceito ampliado de arquitetura encorajou a superação do pluralismo estilístico
desligado da realidade cotidiana”, mas indicando que esse mesmo conceito, que
serve de crítica à arquitetura moderna, “serviu também de padrinho quando os
teóricos da Nova Construção quiseram ver estilos e formas de vida subordinados na
totalidade aos ditames de sua tarefa de criadores”. E o autor acrescenta,
apresentando as limitações dos técnicos: “mas as totalidades desta ordem escapam
à intervenção do planejador”. Tais afirmações reforçam a opinião generalizada de
que a moradia traduz a ditatorial predominância da vontade do autor sobre a do
cliente.
Outros profissionais contestam ainda o excesso de racionalidade na produção
arquitetônica, no que se refere à habitação e às demais soluções, pela alegada falta
do sentido social por parte desses profissionais. É o caso do arquiteto brasileiro
Vilanova Artigas (1999, p. 84), que registra que essa intensa procura não tem fim,
pois o desenho da casa deveria ser o ponto de partida para os outros desenhos,
visto que eles retratam a predominância citada.
Harvey (1998, p. 42-45), por sua vez, critica a crença nesse modernismo através do
progresso linear, das verdades absolutas e do planejamento racional de ordens
sociais ideais, im postas por planejadores, arquitetos, artistas e guardiães do gosto
refinado. Essa característica da arquitetura ditatorial, considerada positivista,
tecnocêntrica e racionalista, chegou até a ser admitida como imperialismo cultural. O
retrato da Arquitetura Moderna, que tinha, entre outras prioridades, revitalizar
cidades envelhecidas ou arrasadas pela guerra, desenvolvia, dentro desses moldes,
projetos que refletiam imagens impecáveis de poder e de prestígio para corporações
e governos que pretendiam difundir suas ações, mas que, ao mesmo tempo,
necessitava de produção de larga escala para que fosse viabilizada. Dentro desses
parâmetros, os projetos para a habitação popular tornaram-se símbolos de alienação
e de desumanização.
Também Niemeyer (1955), já nos anos 50, criticava a nossa arquitetura moderna e
revelava que ela tem certamente, na falta de conteúdo humano, a principal razão
das suas deficiências, refletindo o regime das contradições sociais em que vivemos
36
e no qual ela se desenvolveu. Assim, lembra o famoso arquiteto que, se essa
arquitetura tivesse surgido em país socialmente organizado e evoluído, onde
pudesse atingir seu verdadeiro objetivo, que era servir à coletividade, o sentido
humano e a unidade arquitetônica poderiam encontrar caminhos que contemplariam
a cultura da sociedade.
Por outro lado, Artigas (1999, p . 84), já em 1969, insiste na necessidade de que
outros elementos participassem da construção da casa para uma nova sociedade,
que despontava como conseqüência inevitável do conhecimento cada vez mais
profundo que se tem do mundo e das relações entre os homens. Não deixa de ser
também importante a afirmação de Harvey (1998, p. 45), de que “era hora de
construir para as pessoas, e não para o Homem”. Infelizmente, esse olhar não foi
respeitado nos projetos implantados, naquela época, para a habitação social.
Entretanto, nos mais recentes exemplos do espaço projetado, ainda temos
percebido fortes influências negativas dessa racionalidade nas soluções
arquitetônicas. As mudanças significativas que ocorreram na sociedade,
especialmente aquelas relativas aos direitos humanos, têm se refletido na
construção do espaço e das imagens que compõem a paisagem urbana. Observe-se
que tais mudanças ainda não foram completamente incorporadas pelos arquitetos
em geral, embora um dos objetivos da arquitetura seja retratar, no espaço e no
tempo, os movimentos da sociedade. E pode estar ocorrendo uma deficiência na
transmissão do conhecimento e no debate dessas posições, seja nas Escolas, seja
nas entidades representativas.
Se tais projetos, por serem especificamente individuais, traduzem deficiências dessa
natureza, pode-se imaginar o que ocorre com projetos coletivos. A relação do futuro
morador com o projeto é mais intensa, quando se trata de atendimento mediante
soluções individuais. A sua participação no processo da construção da moradia
consegue introduzir os propósitos visados, pois retrata seus anseios imediatos, suas
necessidades e seu modo de vida, o que permite resultados mais adequados para a
especificidade do projeto da sua residência.
No entanto, essas soluções não vêm se concretizando quando se trata de
habitações de massa oferecidas pelo Estado, pois as limitações de ordem política e
37
econômica passam a determinar prioridades para a execução do proje to, desde o
custo até a gestão local. Além do mais, os resultados decorrentes dessa mesma
política ainda mantêm a padronização nas tipologias das habitações,
desconsiderando as especificidades das famílias envolvidas nos programas.
Conclui-se que há necess idade de soluções mais articuladas a essas características,
visto que as experiências anteriores pouco contribuíram para que houvesse
evolução no encaminhamento dos novos empreendimentos, mesmo que isso tivesse
acontecido ao longo do tempo. Ainda assim, fo ram ocorrendo novas formas de
concepção de projetos para a habitação social, principalmente para aquelas que
vêm contando com a participação popular. Nesse sentido, os programas de
autogestão são um bom exemplo.
Durante o processo de criação e produção de habitações de interesse social, a ação
do arquiteto nem sempre ocorre como se dá no projeto individual e particularizado. A
sua participação nesse tipo de empreendimento implicaria em maior envolvimento e
contribuição nas soluções arquitetônicas, para se tentar, antes de tudo, atender à
multiplicidade de aspirações.
Quanto à padronização das tipologias das soluções coletivas, buscou-se atender às
condições mínimas de habitabilidade, dentro da racionalização construtiva e da
eliminação do desperdício, que resultaram na redução do custo final da obra.
Conforme lembra Gropius (1977, p. 200), não fugindo dos encaminhamentos da
Arquitetura Moderna, as edificações habitacionais passíveis de estar ao alcance do
homem comum devem ser erigidas com o mínimo gasto em material e tempo.
Devem, também, corresponder às exigências materiais e psicológicas da vida e
precisam ser decentes. Só que a racionalização dos trabalhos da construção deveria
reunir os esforços de todos os diferentes setores para um plano conjunto e
homogêneo e que pesquisas experimentais de melhoria e aperfeiçoamento se
realizariam de maneira eficaz se todos os meios práticos e científicos se
harmonizassem para o conjunto da construção. Apesar de esforços que pudessem
atender conceitualmente a esses obje tivos, esse autor conclui que os atrasos no
progresso da construção moderna decorreram, na maioria dos casos, de uma
coordenação defeituosa. Na verdade, a gestão desses artifícios, uma tendência a
ser coordenada pelo arquiteto, deveria ser trabalhada em ações conjuntas com
profissionais de diversas áreas, pois o projeto arquitetônico se limita a tratar somente
38
da ordenação física do espaço. Assim, a racionalização nem sempre permite obter a
adequação das propostas dos espaços a serem concebidos e utilizados para a
moradia social, tendo em vista a diversidade da população envolvida no processo da
sua produção. Reforçam-se, dessa maneira, as afirmações de que os projetos de
habitação social devem contar com a participação da sociedade desde a sua fase
inicial.
Além disso, por mais que se conheçam os aspectos sociais que são abrangidos em
um projeto dessa natureza, a produção da moradia ainda é comprometida pelos
interesses políticos e econômicos adotados por agentes promotores da política
habitacional.
Os primeiros programas destinados à habitação social já manifestavam sinais da
Arquitetura Moderna nos projetos, marcadamente influenciados pelos Congressos
Internacionais de Arquitetura Moderna – CIAMs. O 2º CIAM, realizado em Frankfurt,
em 1929, por exemplo, teve como tema principal a habitação para os setores de
renda mínima, que ditava o moderno conceito de viver, em que se buscavam novos
meios de produzir o espaço destinado às populações carentes. Esse Congresso
tornou-se especialmente importante por direcionar a internacionalização
sociocultural das questões emergentes sobre a habitação, ao estabelecer a crença
na possibilidade de transformação social, da qual pudesse surgir uma sociedade
mais justa, mais fraterna e mais igualitária. Esse, inclusive, foi um dos preceitos
básicos da Arquitetura Moderna, que tinha como uma das intenções a fundação de
um Instituto para a padronização da Construção, cujo plano-chave deveria abranger
tudo o que pudesse contribuir para elevar o nível social, baixar os preços das
moradias e assegurar uma correspondência entre a habitação e o flutuante mercado
de trabalho (GROPIUS, 1977, p. 202).
É claro que, nos anos 1920, época em que surgiu esse movimento, o novo espírito
levaria a uma grande revolução, tanto no conceito, que traduzia um momento de
ruptura com a sociedade anterior, como na prática, em que a produção industrial
substituiria o trabalho artesanal. Note-se, conforme anunciava Le Corbusier (2002),
que a arquitetura tem como primeiro dever, em uma época de renovação, operar a
revisão dos valores e recompor os elementos constitutivos da casa.
39
Ressalte-se que os projetos baseados nos princípios da Arquitetura Moderna
produziram constantes transformações no meio urbano: esses espaços projetados
por arquitetos e urbanistas parecem refletir um planejamento estruturado e ao
mesmo tempo igualitário, cujos aspectos de ordem estética e técnica estão
presentes não só nos edifícios, mas, também, nos traçados de bairros, vilas e
cidades. Buscava -se traduzir objetivos essenciais em que os princípios levassem em
conta as necessidades do homem padrão, consideradas universais, e agrupadas em
quatro funções primordiais, segundo a Carta de Atenas de Le Corbusier (1964):
“habitar, trabalhar, locomover-se e cultivar o corpo e o espírito”, em que a habitação
oferecia espaço e conforto, refletindo, assim, o ideário da modernidade. As
características tecnológicas desse fenômeno se refletiram também nos edifícios
através da solução proposta nas plantas, da padronização dos elementos
construtivos, do emprego racional dos materiais e da eliminação de decoração
supérflua.
Esses conceitos passam a ser avaliados por profissionais como Le Corbusier (1964,
p. 105-106), que considera a casa em condições de habitabilidade mais favoráveis,
ao mesmo tempo em que prevê a inserção da edificação no meio urbano e social:
o núcleo inicial do urbanismo é uma célula de habitação (uma casa) e sua inserção no grupo que forma uma unidade de habitação de tamanho eficaz. Se a célula é o elemento biológico primordial, o lar, isto é, refúgio de uma família, constitui a célula social. A construção deste lar, submetida desde um século aos órgãos vitais da especulação, deve converter-se numa empresa humana. O lar é o núcleo inicial do urbanismo. Protege o crescimento do homem, abriga as alegrias e as dores de sua vida cotidiana. Deve conhecer em seu interior o sol e o ar puro e deve, também, ser prolongado para o exterior por diversas instalações comunicativas. Para que se torne mais fácil dotar as casas de serviços comuns, destinados à realização cômoda do abastecimento, da educação, da assistência médica ou à utilização das horas livres, será necessário agrupá-las em unidades de habitação de tamanho eficaz.
A introdução de aspectos sociais na solução do problema constitui fator favorável e
inovador de conceitos, ao considerar a casa transformada em lar. Mas as aspirações
da sociedade também se ampliaram, paralelamente ao desenvolvimento tecnológico,
o que obrigava os projetos a sucessivas evoluções.
Essas diretrizes, que levavam a uma nova visão integrada do espaço urbano, foram
também o fio condutor do 1º Congresso de Habitação, acontecido em São Paulo, em
40
1931, que propunha disposições regulamentares para efetivar o barateamento da
construção da popular, dentre elas, a padronização e racionalização dos materiais,
de modo a facilitar a produção em série. A produção arquitetônica, então, do ponto
de vista moderno, deveria compatibilizar economia, prática, técnica e estética com o
objetivo de viabilizar financeiramente o atendimento de trabalhadores de baixa renda
e, ao mesmo tempo, garantir dignidade e qualidade na intervenção arquitetônica
(BONDUKI, 1998, p. 134).
Como conseqüência desse movimento mundial, começado nos CIAMs, aconteceu
em São Paulo o Congresso Brasileiro de Arquitetura, em 1945, com proposta de um
programa inovador de intervenção pública na habitação popular, na tentativa de
estimular uma política nacional descentralizada. Conforme afirma Sachs (1999,
p. 111), esse Congresso se manifestou a favor da construção de casas de aluguel
para a população de baixa renda em terrenos desapropriados em bairros já
ocupados, para que fosse evitada a periferização das habitações populares. Outro
aspecto importante indicava a construção de prédios de apartamentos ao invés de
casas isoladas, o que permitiria a redução dos custos e o desenvolvimento da
indústria de materiais. De fato, esse Congresso apresentou idéias inovadoras,
representando excelentes contribuições que estavam bem à frente dos conceitos
predominantes na época, a ponto de só se materializarem nos tempos atuais, com a
municipalização das políticas habitacionais. Entretanto, as proposições desse
Congresso não deixaram de produzir resultados úteis nos períodos posteriores.
Assim, os projetos arquitetônicos elaborados para a moradia popular nas principais
fases da política habitacional brasileira, através dos Institutos de Aposentadoria e
Pensões – IAPs, da Fundação da Casa Popular – FCP – e do Banco Nacional de
Habitação – BNH, podem auxiliar na compreensão do processo da arquitetura do
Poder Público para esse fim.
No Brasil, alguns princípios ditados pela Arquitetura Moderna prevaleceram nas
tipologias adotadas na implantação dos conjuntos dos IAPs, que tiveram sua ação
mais evidente nos anos 1930 e 1940: solução racional da planta, estandardização
dos elementos de construção, emprego racional dos materiais, eliminação de toda
decoração supérflua. A adoção de algumas dessas diretrizes, que consideravam
como primordial o fator econômico, resultou em assentamentos de conjuntos
41
habitacionais isolados do traçado urbano existente, sem previsão de equipamentos
que permitissem encontros da população nos momentos de lazer e pudessem
atender às necessidades imediatas da população. No que diz respeito ao sistema
construtivo utilizado nas edificações em si adotava -se a construção de blocos
multifamiliares, que visavam a minimizar o custo, limitando-se a altura a três
pavimentos, dispensando-se o uso de elevadores.
Os conjuntos implantados no início desse período adotavam a casa unifamiliar no
centro do lote, com ornamentação tradicional e complexidade construtiva imprópria à
produção em série. Ao mesmo tempo, eram seguidos padrões residenciais que
refletiam a influência dos higienistas contra “a promiscuidade do cortiço e a
aglomeração apenas tolerada da casa geminada da vila” (BONDUKI, 1998, p. 163).
A maioria dos projetos arquitetônicos inovadores dessa fase surgiu a partir da
década de 1940 e fazia parte do projeto político-ideológico no qual as novas
concepções formais e espaciais se adequavam à estratégia mais ampla do nacional
desenvolvimentismo.
Assim, as diretrizes para a habitação nesse período passaram a ter um novo olhar,
conforme avalia Sachs (1999, p. 111), com a construção de grandes conjuntos de
apartamentos e não mais casas individuais. Além disso, os melhores arquitetos
foram chamados para essa tarefa. A autoria de grande parte dos projetos ainda era
de arquitetos do Rio de Janeiro, antiga capital da Federação, sinal significativo da
centralização do poder.
A maioria dos conjuntos implantados nessa época tinha como característica a
composição de blocos de apartamentos de três a cinco pavimentos, sem elevador e
dispostos no terreno em composições geométricas variadas, obedecendo aos
princípios estabelecidos pelos IAPs: implantação urbanística moderna, associação
da moradia com equipamentos comunitários, renovação de relações entre espaço
público e espaço privado. Exemplos típicos desse assentamento foram os conjuntos
residenciais do Realengo, Del Castillo e Bangu, no Rio de Janeiro e o IAPI, em Belo
Horizonte.
Os apartamentos de área mínima nesses conjuntos se caracterizavam pela
racionalização da planta e pelos exíguos espaços destinados à cozinha e ao
42
banheiro. Tais soluções incluíam equipamentos para oferecer aos habitantes algum
tipo de convívio com os vizinhos nos momentos de lazer. Todo espaço que não
fosse ocupado pelas edificações era considerado público, uma excelente inovação
na época. Aliás, em pesquisa sobre a ação dos IAPs, Bonduki (1998, p. 165-188)
afirma que a valorização do espaço público era uma das principais marcas da
produção habitacional desse período, pois mostrava a capacidade de a
administração pública gerir adequadamente a cidade.
Cabe observar que essa idéia precursora de áreas livres públicas trouxe contribuição
fundamental para a compreensão de que esses espaços destinados ao uso comum
no projeto deveriam ser dimensionados de forma a admitir equipamentos
complementares àqueles.
Para os projetos com mais de mil unidades, havia amplos programas de
equipamentos, que incluíam escola, ambulatório ou serviço de saúde e quadras
esportivas. Em alguns casos, eram implantados ginásios cobertos de esportes,
cinemas, centros comerciais e serviços administrativos. Além do mais, segundo
Bonduki (1998, p. 165-188), a manutenção da propriedade dos conjuntos pelos
Institutos, com o aluguel das unidades para os associados, possibilitava o
predomínio do conceito de habitação como um serviço público. A imagem
paternalista do Estado atingia o seu ápice. O número de moradias por conjunto
passou a ser ampliado, apesar de não ter sido expressivo o resultado final de tal
política.
Com a implantação da FCP, a partir dos anos 1940, os projetos elaborados
mantinham características conservadoras, com opção pela casa própria e por
unidades unifamiliares isoladas. Note-se, também nessa fase, a presença da
Arquitetura Moderna nos modelos apresentados por esse programa, principalmente
quando foram adotados conjuntos cuja tipologia era determinada por blocos
serpenteantes e longilíneos, que comportavam grande número de unidades.
Exemplo significativo de empreendimento implantado pela FCP, já nos anos 1950,
foi o conjunto residencial Deodoro, no Rio de Janeiro.
Na verdade, aos longos eixos gerados pelo partido longilíneo, concebidos à imagem
dos projetos de Reidy, tais como o Pedregulho e o conjunto residencial da Gávea,
43
no Rio de Janeiro, se incorporavam às unidades de habitação ou habitação mínima.
A intenção inicial dos projetos de então era a racionalização da construção nos
espaços privados, em detrimento dos grandes espaços livres. Assim, era proposta
uma nova relação entre a paisagem e o espaço construído.
Em estudos sobre a habitação social no Brasil, Bonduki (1998, p . 162) afirma que,
apesar de se conhecer pouco sobre sua produção, a FCP buscava soluções mais
apropriadas às diferentes realidades regionais, rompendo com a centralização de
projeto que caracterizava os IAPs.
Apesar de considerar, em seus programas, a moradia composta por infra -estrutura e
saneamento básico e não simplesmente o lote ou a edificação nele inserida, o que
representava na época um avanço conceitual, essa idéia não contemplou com
eficácia as necessidades imediatas dessa faixa da população, pois atendeu a uma
parcela moderada da demanda.
Já os conjuntos construídos pelo BNH, implantados a partir da década de 1960,
eram de grandes dimensões e afastados do centro da cidade. A tipologia
padronizada do partido arquitetônico uniformizava a ocupação característica da
racionalização da produção em série, em plena expansão nessa época, e,
conseqüentemente, diminuía o custo, embora a indústria brasileira ainda não tivesse
atingido produção suficiente para atender à demanda.
Nos conjuntos, as moradias unifamiliares apresentavam condições adequadas de
salubridade, com infra-estrutura básica, tais como abastecimento de água, esgoto,
energia elétrica e transporte coletivo. Os demais equipamentos urbanos nem sempre
chegavam a ser construídos na maioria dos assentamentos. A extensão dos
conjuntos e a uniformidade das moradias conferiam ao local a monotonia da
paisagem, retratando, inclusive, o ar impessoal nas unidades residenciais.
Quanto ao alcance social, observa -se que a política do BNH, ao pretender a diretriz
básica para o planejamento de conjuntos habitacionais, a partir dos anos 1960,
ativou preferencialmente a segregação espacial dos moradores dos conjuntos em
relação ao resto da cidade, quando optou pela aquisição de terrenos na periferia.
Tais terrenos se localizavam em áreas distantes do centro, pois eram os espaços
disponíveis que apresentavam dimensões e viabilidade financeira para esse tipo de
44
empreendimento. O processo de exclusão social se intensificava quando acontecia o
distanciamento dessa população dos centros urbanos e dos locais em que eles já
tinham estabelecido anteriormente relações pessoais, sociais e de trabalho com
determinada vizinhança. A insuficiência de serviços comunitários, equipamentos
públicos e, principalmente, a distância do mercado de trabalho restringiram os
benefícios destinados às novas comunidades.
Como os conjuntos habitacionais construídos durante a gestão do BNH foram
produto de um processo que tinha como objetivo primordial atender à alta demanda
de moradias, esses conjuntos, projetados e construídos para serem ocupados pela
população de baixa renda, plasmaram o ideário que lhes deu origem. Dele, não
transcendia o conceito de casa popular como abrigo para pobres, pois eram ditados
conceitos e normas que viabilizassem esses espaços dentro de condições técnicas
adequadas a uma execução rápida e eficaz para a implantação das residências,
com custo reduzido, porém sem apresentarem qualquer caráter inovador. Além do
mais, a maioria das soluções apresentadas nessa época, apesar de suprir a
população carente de moradias com infra-estrutura, não chegou a atender
completamente a importantes fatores sociais como principalmente a inclusão do seu
morador no meio urbano. Outro aspecto que reduz esse conceito de habitação social
diz respeito aos critérios estabelecidos para moradias dessa natureza, por
preocupações pragmáticas, que se limitavam a manter a qualidade técnica, o
dimensionamento e o custo, visto que os aspectos quantitativos, tais como valores
mínimos da construção e da infra -estrutura por metro quadrado e o tipo de
implantação de acordo com as condições topográficas do terreno, passavam a
direcionar grande parte dos projetos. Ainda tentava -se, favoravelmente, a
racionalização do sistema viário e da infra-estrutura, de modo que se adequassem
as edificações ao terreno com o menor movimento de terra.
Tais iniciativas nem sempre permitiam atender integralmente aos futuros usuários
desses conjuntos, principalmente no que dizia respeito às condições particulares de
cada família e sua inserção no novo meio. A mesma tipologia projetada poderia ser
ocupada por famílias com variada composição e modos de vida completamente
diferentes.
45
Cabe aqui uma crítica feita por Bolaffi (1986, p. 28), pertinente à solução
arquitetônica dos conjuntos habitacionais implantados pelo BNH: “inspirado no
princípio velho e superado da Carta de Atenas com a conseqüente segregação do
espaço e das funções urbanas”, esses conjuntos constituíam verdadeiras cidades,
sem que fossem tratados como tais e foram desenhados para serem cidades -
dormitório, sem a presença de qualquer atividade de trabalho e de vida.
2.1 A arquitetura da URBEL
No município de Belo Horizonte, os conjuntos construídos sob a administração da
URBEL eram amparados pelas diretrizes estabelecidas pelo Conselho Municipal de
Habitação que, por sua vez, se baseavam na Constitu ição de 1988 (BRASIL, 1989)
para atender às condições da produção da moradia popular pela Prefeitura
Municipal. Foram criados vários programas, a partir de 1993, resultantes da
reformulação da política habitacional no município, em que sobressaíam, dentre
eles, o Orçamento Participativo, o Habitar Brasil, o Pró-Moradia e o Estrutural em
Áreas de Risco, nosso motivo da Tese.
O critério inicial para a escolha do terreno considerava sua viabilidade quanto às
expectativas do número de residências passíveis de serem construídas com a menor
intervenção possível, nos aspectos naturais do terreno, o que certamente baratearia
o custo da obra. Observava-se a preocupação dos técnicos em executar uma
implantação correta dos termos construtivos, atendo-se a condicionantes como a
forma e a topografia do terreno.
Esses novos conjuntos habitacionais, diferenciados conceitualmente dos anteriores,
ofereciam vantagens na sua implantação, pois os terrenos a serem utilizados no
programa eram inseridos na malha urbana e já contavam com infra-estrutura,
serviços e equipamentos, o que poderia compensar o valor mais elevado das áreas
disponíveis, e também proporcionar aos usuários um benefício social, principalmente
no que se referia à sua inclusão na cidade. Além disso, esses equipamentos
tornaram-se importantes na vida cotidiana dos habitantes, não só pela sua função,
como também por criarem oportunidades de socialização entre eles.
46
No que diz respeito aos projetos dos novos conjuntos, nota-se que eles buscavam
nas unidades unifamiliares um partido arquitetônico que atendesse não só às
necessidades básicas de conforto ambiental, tais como iluminação e ventilação
naturais, mas que também integrasse técnicas construtivas que pudessem garantir a
qualidade na habitação com custo mais acessível. As tipologias arquitetônicas eram
propostas para estabelecer maior continuidade e integração da paisagem com o
entorno adjacente, de modo a interferir o mínimo no ambiente já existente.
Observa-se que, pela proposta da política habitacional adotada, a preocupação em
tratar diversidades se registrava não somente no plano físico, mas também no
social, introduzindo fatores de convivência harmônica entre grupos de poder
econômico, cultura e modos de vida diferentes. Nesse sentido, os novos conjuntos
indicaram uma concepção diferente daqueles modelos adotados anteriormente. A
aprovação desses projetos, por sua vez, se dava em obediência às normas da Lei
de Uso e Ocupação do Solo – LUOS – vigente, nas quais se definiram os
afastamentos, as taxas de ocupação e os coeficientes de aproveitamento destinados
a determinado zoneamento.
Pode-se verificar que, ao contrário do direcionamento centralizado dos programas
coordenados pelo Estado até então, essa nova proposta busca nas raízes do
município o conhecimento da realidade local: os projetos foram elaborados por
profissionais de Belo Horizonte. Cabe observar que, inicialmente, a ação desses
arquitetos se limitava a seguir os encaminhamentos estabelecidos pelos técnicos da
URBEL.
É importante ressaltar agora que, quando começaram a ser executados os primeiros
projetos de conjuntos habitacionais pela URBEL, a partir da política adotada em
1993, esse órgão propôs, através dos termos de referência, três maneiras de
produzir moradias: na primeira fase, que implantou oito conjuntos, foram construídos
sobrados de dois e três quartos, em duas etapas; na segunda, sobrados de dois e
três quartos construídos em única etapa, que também abrangeu oito conjuntos, e na
terceira fase, prédios de dois a quatro pavimentos sem elevadores, compreendendo
o total de sete conjuntos (URBEL, 1998).
47
Nesses conjuntos, foram adotados, preferencialmente, os sobrados geminados,
visando à solução mais adequada para o partido arquitetônico, ao concentrar as
edificações e ocupar menor área do terreno, reduzindo a projeção das áreas
construídas e disponibilizando parte do terreno para instalação de equipamentos
coletivos.
Justificou-se a construção das habitações em duas etapas pela insuficiência de
recursos para a execução dos sobrados completos, embora tivesse sido possível
viabilizar a parte mais significativa e mais cara da casa, que era o primeiro
pavimento. Esse atendimento das condições programáticas ditadas pela URBEL
tinha como objetivo reduzir o custo da obra. A segunda etapa deveria ser construída
pelo proprietário, sob orientação de técnicos dessa instituição, de acordo com a sua
demanda. Na verdade, isso não se verificou, pois a URBEL não dispunha de
mecanismos e de corpo técnico que acompanhasse, naquela época, o processo de
pós -ocupação.
A URBEL (1998) considera que a produção em duas etapas apresentou também
aspectos negativos: a complexidade do processo de aprovação nos órgãos
competentes de cada uma das etapas do projeto demorou. Além disso, nem sempre
se pôde garantir a execução da segunda etapa conforme o projeto original, apesar
dos esforços do órgão junto aos moradores para que isso se viabilizasse; finalmente,
ao implantarem lajes de piso como teto do primeiro pavimento, seu custo incidiu
significativamente na primeira etapa.
2.1.1 Os projetos dos conjuntos Goiânia e Araguaia
Os conjuntos Goiânia e Araguaia foram ocupados em meados de 1996. Os projetos
foram elaborados por escritórios de arquitetura cadastrados na URBEL, obedeceram
a normas ditadas pelo termo de referência e pela LUOS e tiveram o cumprimento de
suas especificações fiscalizado pelos técnicos desse órgão. A sua prévia aprovação
na Prefeitura comprova terem atendido às condições de conforto ambiental como
ventilação e iluminação, bem como às características mínimas de dimensionamento
da legislação.
48
Mesmo assim, a relação desse órgão com os contratados não foi satisfatória e
tampouco destes com as comunidades envolvidas, àquela época, conforme
entrevista realizada em junho de 2003, com o arquiteto Gabriel Aun, autor do projeto
do conjunto Araguaia, executado em 1993. Segundo ele, as diretrizes para o estudo
foram encaminhadas pela URBEL e não foi cogitada qualquer possibilidade de
contato com os futuros moradores, tampouco com os habitantes do bairro do
entorno, o Araguaia. A referência básica do contrato dizia respeito ao custo do
projeto arquitetônico e dos afins, como estrutural e elétrico, que deveriam ser o
mínimo possível, conforme se pôde constatar na carta-convite para o projeto; já a
licitação indicava apenas o menor preço. Pode-se perceber que, mesmo que as
intenções da política habitacional visassem a amplos objetivos, na prática, a sua
gestão ainda não estava sendo cumprida integralmente.
Por outro lado, no caso do conjunto Goiânia, o mesmo não ocorreu com o projeto da
arquiteta Ana Schmidt, elaborado no mesmo período. Houve significativa evolução,
dado que ela manteve contatos com os futuros moradores do assentamento,
apresentando-lhes o projeto do empreendimento e informando os parâmetros do
novo conjunto. Em entrevista realizada em junho de 2003, ela afirmou que não
consultou a população que já morava no bairro, embora já tivessem acontecido
manifestações deles contra a implantação.
Esta última experiência citada pode ser considerada como evolução no sentido de
participação da população no projeto, embora ainda insuficiente. É de se esperar
que, com a regulamentação do Estatuto da Cidade, tais situações tendam a se
ajustar, visto que os futuros empreendimentos deverão ter a participação popular
também nas fases antecedentes à sua construção. Isso implica em pesquisas
prévias que levantem as necessidades básicas das comunidades carentes para
permitir aos novos espaços a serem construídos atender, com maior eficácia, à nova
demanda.
Apesar de se buscar nos projetos melhor adequação às condições locais, houve
modificações nas residências, a partir da sua ocupação. Quanto a essas
ocorrências, enfrentadas pelos moradores dos conjuntos após a construção, elas
poderão ser melhor compreendidas, a partir da descrição dos conjuntos.
49
2.1.1.1 O projeto do conjunto Goiânia
O projeto do conjunto Goiânia, de autoria do escritório Schmidt Arquitetura e
Urbanismo Ltda, procurou atender aos parâmetros estabelecidos no termo de
referência ditado pela URBEL àquela época: deveria abrigar famílias oriundas de
áreas de risco, adotar sistema construtivo de baixo custo e conter o mínimo de 40
casas de aproximadamente 30 m2 de área, com possibilidade de acréscimo do
segundo pavimento na etapa seguinte (Termo de Referência editado pela URBEL
em 1994, para licitação dos serviços de projeto do conjunto Goiânia). Segundo as
normas ditadas por esse documento, a dimensão do terreno por unidade
habitacional não deveria ultrapassar os 100 m2.
FIGURA 2 Localização do conjunto Goiânia no município de Belo Horizonte Fonte: Elaborado por Maria Cristina Villefort Teixeira e Beatriz Marinho Gomes com base em BELO
HORIZONTE, 1996.
Esse conjunto, localizado no setor nordeste da capital, no bairro Alvorada,3 na
avenida Josefino Gonçalves da Silva, contém 42 unidades geminadas em série, e
teve sua implantação condicionada ao grande desnível em relação a essa avenida.
Por isso, foram edificadas escadas de acesso às moradias, pois assim as casas
3 Os limites dos bairros no presente trabalho foram adotados segundo o Processamento de Dados do Município de Belo Horizonte (PRODABEL, 2002).
50
poderiam ser construídas nos patamares superiores do terreno, evitando serviços de
terraplenagem e garantindo maior privacidade às mesmas, por estarem acima do
nível da rua.
FIGURA 3 Situação do conjunto Goiânia em relação aos bairros adjacentes
Fonte: Elaborado por Maria Cristina Villefort Teixeira e Beatriz Marinho Gomes com base em BELO HORIZONTE, 1996.
Segundo relato da autora do projeto, o emprego de platôs facilitou o assentamento
das casas na topografia acidentada e as articulou pela rua interna, paralela à
avenida, o que ainda possibilitou o deslocamento ao longo do conjunto. Cada
residência compreendia o lote com o seu respectivo quintal, não sendo previsto no
projeto original o fechamento com muro individualizado. Isso tornaria o custo da obra
mais elevado e poderia fugir da proposta do conjunto, que seria a de integrar as
edificações.
No centro do Goiânia, foi prevista uma pequena área de lazer, onde as crianças
menores poderiam brincar em segurança. Além de promover encontros da
população do local, essa pracinha se destinaria ao elemento de articulação com o
51
bairro, pois se abria para a avenida um espaço de integração com o local. Mas,
infelizmente, parte desse espaço foi invadida pelos moradores vizinhos.
FIGURA 4 Planta do conjunto Goiânia Fonte: Elaborado por Maria Cristina Villefort Teixeira e Beatriz Marinho Gomes com base em
URBEL,1998.
A volumetria do conjunto forma blocos diferenciados que seguem a direção dos
eixos longitudinais, quebrados pela movimentação dos telhados dispostos contra a
topografia e pelo agrupamento de casas com cores diferentes, o que peculiariza o
assentamento sem, no entanto, dar a aparência de um conjunto habitacional
52
tradicional. Mesmo sendo concebidas em série, que também é um recurso para o
barateamento da obra, as casas parecem ter diversos volumes, graças a essa
movimentação adotada para a cobertura no partido arquitetônico e à variação de
cores utilizada em cada bloco de três casas.
As casas geminadas compreendiam, na primeira fase do projeto original, quarto,
sala, cozinha, banheiro e um nicho, onde está prevista a instalação da escada para
o segundo andar. A área inicial de construção chega a 33,65 m2, com previsão de
crescimento até o máximo de 68 m2, com a ocupação do segundo pavimento, que
comporta mais três quartos e um banheiro.
FIGURA 5 Plantas originais da casa do conjunto Goiânia - 1ª e 2ª fases Fonte: URBEL,1988.
Cabe observar que o conjunto Goiânia foi implantado num terreno desapropriado
pela Prefeitura Municipal, como pagamento de dívidas do imposto territorial de um
grande loteamento destinado à classe média, assentado pela incorporadora Fayal
nos anos 1980. Na sua implantação original, não foram contempladas as
necessidades básicas de um bairro, mesmo aquelas comuns na periferia,
especialmente equipamentos urbanos. O local é limitado por duas rodovias: a MG-05
que liga a cidade ao Estado do Espírito Santo e a que segue para Sabará, município
53
da região metropolitana de Belo Horizonte. No seu entorno, existe uma favela, a Vila
São Jorge, e vários loteamentos, cuja ocupação vinha se efetuando, com
intensidade, desde os anos 1970, época em que a cidade vivenciou fase de grande
expansão, conseqüente do processo de metropolização.
FIGURA 6 Situação do conjunto Goiânia em relação ao bairro Alvorada Fonte: Elaborado por Maria Cristina Villefort Teixeira e Beatriz Marinho Gomes com base em BELO
HORIZONTE, 1996.
Acrescente-se, ainda, que a região é bem servida de infra -estrutura básica, que
consta de iluminação pública, asfaltamento, transporte coletivo, telefonia e rede de
água e esgoto. O comércio local atende satisfatoriamente à população com padaria,
supermercado, açougue, farmácia, sacolão, na maioria instalados nas proximidades
da avenida Josefino Gonçalves da Silva. Há três escolas públicas na região, a
Escola Estadual Maria Cecília, a Escola Estadual José de Alencar e a Escola
Estadual Luiz de Bessa. Foram detectadas várias corporações religiosas, dentre
elas, a evangélica, embora a religião católica ainda seja predominante entre os
moradores do local. Observa-se que essas funções são importantes no sentido de
permitir a socialização das pessoas. O posto médico encontra -se no bairro vizinho
Gorduras, o que exige deslocamento a pé da população do conjunto em cas o de
necessidade de atendimento. Não existe posto policial nas imediações.
54
FIGURA 7 Mapa do conjunto Goiânia e equipamentos do entorno Fonte: Elaborado por Maria Cristina Villefort Teixeira e Beatriz Marinho Gomes com base em
pesquisa de campo, 2003.
Quanto aos espaços destinados ao lazer, só existe uma quadra esportiva particular
nas imediações, que é utilizada pelos moradores nos fins de semana. Durante a
semana, o seu proprietário permite que crianças de até 12 anos, residentes no
conjunto, pratiquem futebol no horário das 17 às 19 horas, quando ela passa a ser
alugada para terceiros. Há previsão de implantação de um parque ecológico em
terreno a ser desapropriado pela Prefeitura. Esse equipamento poderá beneficiar a
região, que passará a ser provida de uma área de lazer. Considerando-se as
características apresentadas, os equipamentos e a infra-estrutura, trata-se de um
bairro comum de classe média.
2.1.1.2 O projeto do conjunto Araguaia
O projeto do conjunto Araguaia, localizado na região sudoeste de Belo Horizonte, no
bairro Araguaia, na confluência das ruas Coronel Severiano, Amparo da Serra,
55
Campo Grande e Brasitália, foi elaborado pelo escritório de arquitetura Gabriel Aun.
Parte integrante do programa Área de Risco, assim como o Goiânia, esse conjunto
se constitui de 35 unidades em série, também com previsão de construção em duas
etapas e ocupando parcialmente uma quadra do bairro.
FIGURA 8 Localização do conjunto Araguaia no município de Belo Horizonte Fonte: Elaborado por Maria Cristina Villefort Teixeira e Beatriz Marinho Gomes com base em BELO
HORIZONTE, 1996.
O conjunto Araguaia se constitui de duas ruas internas, paralelas e independentes,
perpendiculares à rua Amparo da Serra, que servem de acesso às moradias. Os
fundos dos lotes adjacentes às ruas Coronel Severiano e Campo Grande passaram
a ser respectivamente lindeiros a elas, devido à sua forte declividade. O partido foi
determinado pela topografia acidentada e buscou a implantação de habitações
geminadas escalonadas no terreno, em obediência às condições naturais da sua
declividade. As dimensões do terreno e o número de habitantes programado por
técnicos da URBEL não permitiram agregar equipamentos coletivos comuns a
projetos dessa natureza.
Segundo o autor do projeto do conjunto Araguaia, as ruas internas foram criadas
para proporcionar maior recolhimento e aconchego, sem qualquer interferência
externa. A intenção do arquiteto seria recuperar romanticamente o modo de vida da
56
comunidade que estava chegando, em sua maioria, oriunda do interior do Estado e
que sonhava com o quintal no fundo da sua casa.
FIGURA 9 Vista das ruas internas do conjunto Araguaia Fonte: Acervo particular da autora.
FIGURA 10 Situação do conjunto Araguaia em relação ao bairro Araguaia Fonte: Elaborado por Maria Cristina Villefort Teixeira e Beatriz Marinho Gomes com base em BELO
HORIZONTE, 1996.
A integração do conjunto com o bairro Araguaia não se realizou dentro dessa
concepção arquitetônica: o acesso às casas se dava unicamente por essas ruas
internas e somente a fachada posterior de algumas residências era voltada para o
bairro. A topografia íngreme das ruas Coronel Severiano e Campo Grande dificultava
o ajustamento adequado das casas ao terreno. A solução encontrada no projeto foi a
de construir um talude na fachada posterior da casa, nos lotes fronteiriços a essas
vias. Ao contrário do previsto originalmente pelo arquiteto, esse projeto intensificou,
também espacialmente, a diferença entre os moradores do bairro e os do conjunto.
57
FIGURA 11 Planta do conjunto Araguaia Fonte: Elaborado por Maria Cristina Villefort Teixeira e Beatriz Marinho Gomes com base em
URBEL,1998.
O programa inicial da casa na primeira fase comportava estar, quarto, cozinha e
banheiro, e a área de 30,30 m2 poderia chegar a 59,21 m2 com o acréscimo no
primeiro pavimento de mais um quarto e no segundo andar de um quarto e um
banheiro. A articulação dos cômodos promovia bom apro veitamento nos espaços
internos, permitindo layout apropriado de acordo com as suas dimensões. A
volumetria das edificações era valorizada pelo jogo de telhados, com alturas
diferenciadas, embora todas as moradias tivessem pintura monocromática.
O conjunto Araguaia tem como referência o Barreiro, região próxima à Cidade
Industrial, que abrange, entre outros, os bairros Flávio Marques Lisboa, Milionários e
Santa Helena. O processo de ocupação no Barreiro foi iniciado por operários, nos
58
anos 1940, época da expansão industrial da capital mineira. Mesmo assim, ainda se
mantiveram nas imediações muitos terrenos vazios, de propriedade particular,
especialmente da Companhia Siderúrgica Mannesmann, mineradora alemã. Essa
empresa implantou uma reserva ecológica no local, nos anos 1980, e abriu uma via,
cujo acesso, diretamente facilitado à zona sul da cidade, é a Via do Minério. Com
isso, surgiram novas perspectivas de desenvolvimento e expansão para a região,
através do parcelamento de chácaras e de pequenas fazendas e, posteriormente, de
loteamentos. É claro que essa expansão não evitou processos de invasões, o que
provocou o surgimento de vilas e favelas, que cresceram desordenadamente.
FIGURA 12 Plantas originais da casa do conjunto Araguaia - 1ª e 2ª fases Fonte: Elaborado por Maria Cristina Villefort Teixeira e Beatriz Marinho Gomes com base em
URBEL, 1988.
Verificou-se que a região é bem servida de infra-estrutura básica e de equipamentos
urbanos, muitos deles de abrangência regional, como o hospital Júlia Kubitschek, o
centro de educação da FEBEM e algumas escolas secundárias, como o Grupo
Escolar Francisco Bicalho, a Escola Municipal Isaura Santos e a Escola Municipal
Pedro Aleixo. Foi percebida a deficiência de pré-escolas no entorno, que obriga a
população a atravessar vias de grande movimento e se deslocar através de longos
percursos.
59
FIGURA 13 Situação do conjunto Araguaia em relação aos bairros adjacentes Fonte: Elaborado por Maria Cristina Villefort Teixeira e Beatriz Marinho Gomes com base em BELO
HORIZONTE, 1996.
Apesar de existir nas imediações uma reserva ecológica, não é permitido o acesso
generalizado a ela, pois os programas educacionais da Reserva são dirigidos
especificamente para entidades de ensino. O lazer acessível aos habitantes é uma
quadra de esportes, construída pela Prefeitura Municipal nos anos 1980, localizada
no bairro vizinho Barreiro de Cima.
Quanto à localização, verifica-se que o conjunto está próximo a uma extensa
avenida de fundo de vale de grande movimento, avenida Olinto Meireles, que liga a
região do Barreiro ao centro da cidade. Essa avenida, assim como vias coletoras
importantes, abriga o comércio local e regional, que atende a população com lojas
de autopeças, artigos para festas, louças, materiais de construção, além de serviços,
60
escolas e transporte coletivo. O comércio local provê, ainda, os habitantes com
padaria, supermercado, açougue, sacolão, armarinho e farmácia. Já nas
proximidades do conjunto, a única possibilidade de compras de última hora para a
população local é um pequeno comércio, do tipo de secos e molhados, a venda do
Itamar.
FIGURA 14 Mapa do conjunto Araguaia e equipamentos do entorno Fonte: Elaborado por Maria Cristina Villefort Teixeira e Beatriz Marinho Gomes com base em
pesquisa de campo, 2003.
Cabe salientar que, atualmente, a URBEL tem conseguido melhorar o processo de
implantação dos novos conjuntos, resultante das experiências vividas anteriormente,
associando as necessidades do usuário, seu perfil socioeconômico e o custo da
obra. É de se destacar que a inclusão da consulta prévia, além de garantir o aval da
61
população preexistente, resulta em substanciais aperfeiçoamentos do programa, o
que vem beneficiando as populações atendidas. Mesmo assim, ainda permanece a
padronização nos partidos arquitetônicos, faltando em cada residência a
singularidade característica de quem mora nela. Esses projetos ainda mantêm o
padrão que conceituamos como sendo ditadura da arquitetura, imposto pelos
princípios de economia e padronização, oriundos da Arquitetura Moderna, que
procuram priorizar a redução do custo da obra e facilitar a sua construção, sem
considerar as necessidades específicas de cada família.
Assim, não se deve descuidar de que os projetos da moradia para a habitação social
sejam independentes, executados individualmente por cada família, possibilitando a
construção da casa dos seus sonhos , dentro de recursos disponíveis. O Estado
proveria o local de infra -estrutura, aplicando ali condições de um planejamento
urbano adequado, ao passo que caberia ao novo proprietário a definição do projeto
para a sua própria moradia, a ser elaborado por técnicos das instituições públicas, à
maneira do que acontece com as soluções individuais.
2.2 A arquitetura do morador
À medida que o espaço projetado pelo Estado passa a ser apropriado pela
comunidade, novas interferências vão acontecendo na sua configuração física,
conseqüência dos valores e da vivência dessa comunidade, que refletem no lugar o
caráter simbólico adquirido. Nesse sentido, o espaço se configura como construído,
representando as características físicas e sociais, como bem lembra Milton Santos
(1985, p. 5-49).
Quanto ao caráter de totalidade expresso no conceito de espaço adotado por esse
autor, ele abarca tanto os aspectos físicos como os de ordem social e simbólica.
Essa totalidade se constitui numa aspiração real da sociedade em permanente
processo de transformação. Para ordenar espaços, deve-se compreender sua
interação com a sociedade. De fato, o morador se relaciona de maneira própria e
peculiar com cada espaço que ele freqüenta, tornando o lugar por ele apropriado
único, pois ali se expressa a sua maneira de ver e viver o mundo; o espaço é
inventado, construído à sua maneira.
62
No momento em que se manifesta essa identificação, a casa passa a adquirir para o
seu morador um valor além de simples abrigo: ela se mostra através de uma
objetividade social que se reflete nos intercâmbios subjetivos que ali se realizam,
nas manifestações entre os membros da família e como lugar dos sonhos para os
seus habitantes.
Além do mais, a ação do Estado, cuja relação entre a política e o projeto delineia
uma distância da realidade, necessita ser revista no enfoque daquele pensador, na
busca dessa interação com a sociedade. É por isso que Oliveira (1993, p. 193-204),
em estudo sobre Bangu, no Rio de Janeiro, lembra que o projeto ainda continua
vindo de fora, estranho ao morador, pois não contém as marcas da sua história, do
seu lugar, da sua prática e, por não ter essas marcas, não é compreendido em sua
generalidade e, portanto, não se torna objeto de apropriação. Sob esse ponto de
vista, a noção do direito de morar se estendeu além do acesso à propriedade, à
qualidade de vida e à infra-estrutura, pois, conforme esse autor, morar já não era
mais apenas ocupar um pedaço de terra; era ter direito ao lugar.
Quando analisamos grande parte dos conjuntos habitacionais, principalmente os
construídos pelo BNH, podemos perceber que as pessoas se apropriavam desses
espaços, após a sua ocupação, de maneira diferenciada daquela proposta
inicialmente pelo projeto, tanto nos aspectos físicos como nos de ordem social. A
configuração física dos projetos originais foi alterada pelos moradores, ajustada às
suas necessidades, dentre as quais a de estabelecer um caráter pessoal e
diferenciado, em que eles se sentissem identificados e integrados ao novo espaço.
Além do mais, verifica-se que o encaminhamento da produção da habitação popular,
naquela época, foi originário de uma política centralizadora e que observava
precariamente as condições locais específicas.
Dessa forma, o novo olhar sobre a política habitacional municipalizada, resultado de
múltiplos fatores, como novas concepções de cidadania, mudanças tecnológicas e
conquistas sociais, qualifica o atendimento às necessidades da população local.
Impõe-se, então, que as ações para a habitação se adaptem mais adequadamente
às condições do lugar, atendendo, assim, de modo imediato, àquelas questões não
resolvidas até então pelos projetos da habitação social.
63
No entanto, ao avaliar as experiências dos projetos direcionados por essa nova
política, verificamos que a configuração das casas dos conjuntos implantados pela
URBEL continua apresentando modificações e acréscimos nos seus pro jetos
originais. Esse fato traduz certo grau de insatisfação em relação às moradias
construídas por esse órgão, apesar de terem sido seguidos pelos construtores os
critérios para implantação desses conjuntos. Também foram definidos os padrões
que compunham a dinâmica de organização espacial das moradias, que obedeciam,
inclusive, às normas estabelecidas pela política habitacional municipalizada e pela
LUOS. Essas alterações resultaram no comprometimento das suas fachadas e das
condições ambientais internas dos espaços.
A relação preconceituosa dos moradores dos bairros se manifestou quanto às
características físicas das casas dos conjuntos. A tipologia das novas residências se
aproximava mais daquelas já existentes e eram mais ameaçadoras do que se
fossem ed ifícios altos. Essas edificações poderiam ser, sob o olhar dos moradores
dos bairros, mais um elemento que pudesse diferenciar aqueles que chegavam:
“Tinha que fazer um conjunto de prédios e não as casas de pombo que fizeram.
Deveriam também colocar pessoas que não fossem perigosas, bandidas. Nós
achávamos que quem ia morar ali eram pessoas que tiveram as casas
desapropriadas para a construção de avenidas” (vendedora, 47, 36A).4
Pôde-se verificar que, à medida que iam sendo modificadas, seguindo técnicas
construtivas elementares, as casas tinham suas fachadas alteradas e, na maioria
das vezes, conservavam as paredes aparentes, sem serem rebocadas. Isso era
condenado por vários entrevistados que moravam nas proximidades dos conjuntos:
“Tenho vontade de mudar, sem me referir a essa pobreza. São verdadeiras malocas
de maconha. Fico bravo com a Prefeitura, porque ela tratou a gente com descaso”
(gerente de loja, 45, 32A). “O conjunto incomoda. Ele é feio e sujo. De frente, é
horrível! De perto do lixo, dá uma impressão muito feia” (técnica laboratorial, 38,
48G). Dessa maneira, o sentido estético foi reforçado no sentimento dos indivíduos,
já que todos demonstraram o desejo de morar próximo à beleza e não à feiúra.
4 Na informação verbal, a identificação dos moradores se deu primeiramente através da profissão, da idade e da representação alfanumérica, cujo número identifica a ordem na qual foi feita a entrevista, e a letra representa o conjunto pesquisado: G, o Goiânia e A, o Araguaia.
64
FIGURA 15 Vista parcial do conjunto Goiânia Fonte: Acervo particular da autora.
FIGURA 16 Vista parcial do conjunto Araguaia Fonte: Acervo particular da autora.
Isso se confirma ante as observações de Palhares (2001, p. 176), que constataram
que as deficiências no espaço projetado provocaram modificações em mais da
metade das habitações pesquisadas no conjunto Esperança, em Belo Horizonte. O
comprometimento da qualidade dessas moradias era conseqüência dos parâmetros
mínimos de habitabilidade estabelecidos pela Secretaria Municipal de Habitação, da
incompatibilização do programa com a composição familiar e da falta de áreas livres
disponibilizadas em contraposição aos princípios de adensamento máximo.
Esse autor acrescenta que o ato de modificar o espaço da habitação é entendido
como atitude própria da natureza humana e que as alterações, embora
descaracterizem o espaço arquitetônico formal e espacialmente, possibilitam a
liberdade ao morador para que ele construa a sua melhoria da qualidade de vida
(PALHARES, 2001, p. 74). Na elaboração do projeto não se deve perder de vista a
65
realidade dessa afirmação, buscando se aproximar o máximo dessa tendência e
observando a liberdade da produção do espaço pelo próprio morador, visto que ali a
sua identidade é cons truída continuamente.
No trabalho de campo realizado nos conjuntos Goiânia e Araguaia, pôde-se avaliar o
comportamento da população em relação às adequações desse espaço produzido
pela URBEL, no processo inicial da municipalização da política habitacional em Belo
Horizonte e, ao mesmo tempo, indicar, tanto quanto possível, quais as mudanças
mais recorrentes no processo de adaptação a esses novos espaços. Cerca de 80%
dos entrevistados consideraram as condições originais das habitações
insatisfatórias, de acordo com a TAB. 1. Por outro lado, as restantes 20% de
respostas indicaram que não se apresentaram problemas nas residências. Na
concretização do projeto, foram detectados problemas construtivos em 50% das
casas do Goiânia e em 48% do Araguaia, ao passo que as críticas ao projeto se
mostraram presentes em 25% das residências do Goiânia e em 36% do Araguaia.
TABELA 1 Problemas encontrados nas casas dos conjuntos Goiânia e Araguaia
Conjunto Goiânia Conjunto Araguaia Total Problema Citado
absoluto % absoluto % absoluto %
Problema construtivo 31 50 21 48 52 52
Problema de projeto 14 25 16 36 30 30
Não apresenta problema 11 25 7 16 18 18
Total de incidências 56 100 44 100 100 100
Fonte: Pesquisa direta (dados compilados pela autora), 2003.
Os fatores da insatisfação que se relacionavam diretamente com o padrão
construtivo diziam respeito às infiltrações, trincas e acabamentos de má qualidade.
Quanto ao direcionamento do projeto, os fatores que mais chamaram atenção dos
entrevistados se referiam ao dimensionamento dos cômodos e à organização em
série das moradias, como se pode ver em detalhes, na TAB. 2.
Quanto às infiltrações, trincas e o material de acabamento, assim se manifestaram
alguns moradores: “Tem muita goteira; é mais na cozinha. Peço a Deus pra me
abençoar e me ajudar” (dona de casa, 43, 33G). “Minha sala tá cheia de trinca.
66
Quando chove, é um transtorno, porque inunda tudo” (aposentado, 49, 8A). “O
esgoto passa na frente da nossa casa” (faxineira, 37, 19G).
TABELA 2 Discriminação dos problemas encontrados nas casas dos conjuntos
Conjunto Goiânia Conjunto Araguaia Total Problema Citado
absoluto % absoluto % absoluto %
Infiltração 13 23 17 39 30 30
Acabamento 8 14 - - 8 8
Trinca 7 13 4 9 11 11
Padrão Construtivo 28 50 21 48 49 49
Cômodos pequenos 11 20 10 22 21 21
Casas em série 3 5 6 14 9 9
Direcionamento do Projeto 14 25 16 36 30 30
Não apresentam problemas 11 20 7 16 18 18
Outros 3 5 - - 3 3
Total de incidências 56 100 44 100 100 100
Fonte: Pesquisa direta (dados compilados pela autora), 2003.
Já a organização das edificações em série, ou seja, a implantação de casas
geminadas, sem qualquer afastamento lateral, não isolava acusticamente o ruído
interno de cada unidade. Apesar de representar custo mais baixo na construção, os
moradores alegaram que não havia privacidade, o que se pode considerar uma falha
tanto na concepção do projeto como na sua construção: “As casas são muito junta
uma nas outras; não tem muita intimidade” (estudante, 18, 18G). “Não dá muito certo
esse negócio de casa colada. Tinha que ser separada” (dona de casa, 44, 7G).
Através das manifestações dos moradores, pode-se observar o desejo de
intimidade, ou seja, de voltar à configuração das residências unifamiliares adotadas
por programas anteriores. Essa solução vem se tornando cada vez mais distante,
em função do alto custo do terreno e do seu aproveitamento no nível coletivo do
conjunto.
O dimensionamento dos cômodos, principalmente banheiros e quartos, também foi
fator de descontentamento para muitos moradores dos conjuntos, o que levou os
usuários a alterá-los: “O banheiro é pequeno. Fizeram a casa pequena achando que
ia satisfazer as pessoa que ia morar lá” (desempregada, 35. 13G). “Os quarto não dá
nem pra gente bota r as cama direito” (vendedora, 18, 10A).
67
Embora muitos habitantes dos conjuntos tivessem consciência das deficiências nas
suas moradias, especialmente dos defeitos construtivos, a maioria não recorria ao
órgão competente, no caso, a URBEL, para reivindicar seus direitos. Por falta de
informação ou até por conformismo, eles acreditavam que já se tinha feito muito por
eles, ao serem assentados em moradias estáveis. Nesse sentido, cabe observar que
a ação desse órgão, no que diz respeito à provisão de moradias, vem atendendo às
proposições estabelecidas pela política vigente, embora ainda existam dificuldades
reais da participação dos moradores dos conjuntos no exercício dos seus direitos
nesse processo de doação.
2.2.1 O projeto do morador
À medida que as pessoas iam vivenciando o espaço, elas puderam perceber a
melhor maneira de adaptá-lo ao seu modo de vida. Assim que as condições
financeiras permitiam, eram feitas modificações na proposta original. Essas
modificações traduziam tanto a adequação do espaço físico para melhor
acomodação dos moradores, como a necessidade de representar a singularidade da
vida de cada família. Aliás, situação semelhante é bem analisada por Peluso (1999,
p. 124), ao afirmar que “depois da reforma, a casa serve ao dono, proporcionando-
lhe o almejado conforto burguês [...] Ele reformou a casa para si, para a idéia que faz
do conforto. Ele marca a diferença”. De fato, a casa é o lugar da identificação. O
contínuo processo da mudança estabelece a ressignificação desse espaço. Serão,
então, apresentadas as maiores incidências das modificações e dos acréscimos dos
projetos originais.
As manifestações de moradores que desejavam reformar suas moradias podem
exemplificar bem essa análise, espelhada no pensamento burguês: “Se eu tivesse
dinheiro, fazia uma casa colonial em cima da minha” (desempregada, 36, 24G).
“Quero arrumar minha casa igual à deles” – no caso, as casas dos moradores do
bairro que indicavam perfil caracterizado de classe média (catadora, 63, 7G).
Não se pode deixar de considerar, ainda, a grande influência que os meios de
comunicação de massa exercem sobre qualquer tipo de público. As mensagens
transmitidas pela TV têm a capacidade de influenciar o comportamento das pessoas
68
na linguagem, no modo de vestir, de agir e até mesmo de morar. Com isso, a
televisão, acessível a todos, gera categorias de valor que se incorporam facilmente à
cultura das pessoas e passam a fazer parte dela. E, assim que possível, os novos
habitantes introduziam modificações nas suas casas, de modo que elas pudessem
atender, tanto quanto possível, às suas demandas e desejos e se tornassem para
eles singulares .
FIGURA 17 Vista das casas em frente ao conjunto Goiânia Fonte: Acervo particular da autora.
O desejo de tomar posse da propriedade, garantindo privacidade e segurança, levou
32% dos entrevistados do Goiânia e 37% do Araguaia, conforme a TAB. 3, à
providência inicial da construção de muros para fechar seus lotes. Nos conjuntos,
essa tendência foi confirmada como a principal interferência nas novas moradias
após a sua ocupação, que é bem avaliada por Peluso (1999, p. 124), ao afirmar que,
enquanto não se efetua a demarcação, a casa se mantém imersa na extensão
homogênea e infinita do nada e do todos.
Cabe ressaltar que as demais reformas se concentraram na colocação de
acabamento mais resistente sobre a base de concreto existente, na ampliação dos
cômodos e no acréscimo de novos espaços. Alguns elementos constituintes da
moradia, tais como portas e janelas, foram trocados imediatamente após a chegada
ao conjunto, pois não ofereciam segurança aos habitantes, conforme relata uma
moradora: “As porta já caíram. Tive que trocar, senão eu nem dormia mais” (dona de
casa, 59, 29G). Isso mostra que os materiais empregados na construção das casas
populares naquela época não atingiram padrão de qualidade aceitável.
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TABELA 3 Modificações feitas nas casas dos conjuntos
Conjunto Goiânia Conjunto Araguaia Total Modificação feita
absoluto % absoluto % absoluto %
Muro (lateral e/ou frontal) 40 32 38 37 78 34
Acabamento 31 25 23 22 54 24
Improvisou modificação 27 22 14 14 41 18
Acréscimo de cômodo 18 14 18 17 36 16
Acréscimo de pavimento 2 1 5 5 7 3
Nenhuma modificação 7 6 5 5 12 5
Total de incidências 125 100 103 100 228 100
Fonte: Pesquisa direta (dados compilados pela autora), 2003.
FIGURA 18 Vista dos lotes sem muros na época da implantação Fonte: N ASCIMENTO, 1998.
FIGURA 19 Vista dos lotes com muros em 2003 Fonte: Acervo particular da autora.
Muitas outras modificações significativas feitas nas casas se relacionavam com o
acréscimo de quartos, áreas de serviço, varandas, garagens, escadas ou cozinhas
externas, lembrando as antigas casas de origem da maioria dos moradores, no
interior do Estado. Esses novos espaços eram incorporados gradualmente ao corpo
70
da casa, ampliando a área construída e diminuindo o quintal, sendo que, em alguns
casos, houve invasão do espaço público adjacente às moradias.
FIGURA 20 Foto da construção por etapas de casa do conjunto Goiânia, mostrando situação na época da implantação
Fonte: N ASCIMENTO, 1998.
FIGURA 21 Foto da construção por etapas de casa do conjunto Goiânia, mostrando situação em 2003
Fonte: Acervo particular da autora.
71
Maricato (1982, p. 91), em estudo sobre autoconstrução, bem lembra essa situação,
em que a ingênua busca da criação arquitetônica popular resulta bastante frustrada,
dada a articulação rígida de todos os elementos que se compõem na determinação
do projeto. Ao mesmo tempo, na construção por etapas, observa -se que são
empregados materiais baratos, simples, de manutenção fácil e amplamente
conhecidos, mão-de-obra não especializada e intermitente, técnica rudimentar,
poucas ferramentas, nenhuma máquina e a disponibilidade parcelada de tempo e
dinheiro. De toda forma, a liberdade resultante das modificações não se evidencia,
desde já, como uma solução complementar.
Por outro lado, em estudo sobre conjuntos em Belo Horizonte, Santos (1999, p. 85)
observa que a comunidade desconhece a legislação. A autora alerta que esses
moradores possuem um estilo próprio de vida e que suas necessidades são
específicas: flexibilizam o uso das edificações para a realização de atividades
econômicas, ocupam afastamentos frontais, de fundos e laterais, invadem áreas
destinadas a equipamentos públicos.
As alterações que buscavam atender às demandas de cada família iniciavam o
processo de descaracterização dos conjuntos Goiânia e Araguaia. No que diz
respeito à obediência à legislação e à ordem estética, a imagem das residências
ficava sujeita a iniciativas particulares. O comprometimento do conforto ambiental
interno foi um dos aspectos negativos nas reformas dessas moradias, pois os novos
espaços anexados nem sempre garantiam iluminação e ventilação adequadas.
Essas mudanças não se limitaram a comprometimentos de fachadas e das
condições ambientais dos espaços internos, mas na eliminação de janelas que
permitiam iluminação e ventilação naturais, e no sub-dimensionamento dos
cômodos, resultando, todas essas intervenções, no desmedido consumo das áreas
livres.
Esse fato pôde ser observado na maioria das casas alteradas no conjunto Goiânia,
como mostram as plantas das casas 1 e 2, onde o espaço destinado à futura escada
no projeto original passou a ser utilizado como quarto, nem sempre dotado de
iluminação ou ventilação adequadas, observando-se, ainda, as dimensões
insuficientes para essa função, que, pela legislação, deveriam ser superiores a 9 m2.
72
A ampliação da cozinha das casas desse conjunto também provocou ambientação
interna inadequada que, na maioria das vezes, era sanada pelos habitantes com
telha translúcida, permitindo, assim, maior iluminação interna, como foi demonstrado
na planta da casa 3. Interessante notar que a nova setorização e a articulação
interna dos espaços eram bem resolvidas, o que não causou surpresa, visto que
grande parte dos chefes de família que habitava os conjuntos era composta por
trabalhadores da construção civil.
FIGURA 22 Plantas modificadas das casas 1 e 2 do conjunto Goiânia Fonte: Elaborado por Branca Teixeira Perocco com base em pesquisa de campo, 2003.
Os acréscimos construídos nas casas dos conjuntos Goiânia e Araguaia mantiveram
essas características na solução das plantas. E até mesmo como exemplo de
tendências utilitárias complementares, no conjunto Goiânia, havia um desnível
significativo das casas lindeiras à avenida Josefino Gonçalves da Silva, aproveitado
para a construção de lojas ou garagens, como demonstrado nas casas 4 e 5. Como
surgiu a possibilidade de expansão horizontal sobre as lajes desses novos cômodos,
a tendência de seguir o acréscimo sugerido originalmente pelos arquitetos se anula.
73
FIGURA 23 Planta modificada da casa 3 do conjunto Goiânia
Fonte: Elaborado por Branca Teixeira Perocco com base em pesquisa de campo, 2003.
FIGURA 24 Planta modificada da casa 4 do conjunto Goiânia Fonte: Elaborado por Branca Teixeira Perocco com base em pesquisa de campo, 2003.
74
FIGURA 25 Planta modificada da casa 5 do conjunto Goiânia
Fonte: Elaborado por Branca Teixeira Perocco com base em pesquisa de campo, 2003.
FIGURA 26 Plantas modificadas das casas 6 e 7 do conjunto Araguaia Fonte: Elaborado por Branca Teixeira Perocco com base em pesquisa de campo, 2003.
75
Observa-se que as alterações se davam sempre a partir da condição mais facilitada
pelo projeto original. Isso pôde ser percebido no conjunto Araguaia, onde a
expansão prevista na segunda fase se iniciou com o acréscimo do quarto no
primeiro pavimento. Esse acréscimo se verificou, como mostram as plantas das
casas 6 e 7, mas as dimensões desse cômodo ultrapassaram as previstas no projeto
original, gerando comprometimento na iluminação e ventilação do novo quarto, visto
que a área da janela era inferior àquela necessária para oferecer condições
saudáveis ao ambiente.
FIGURA 27 Planta modificada da casa 8 do conjunto Araguaia Fonte: Elaborado por Branca Teixeira Perocco com base em pesquisa de campo, 2003.
A busca de padrões que referenciavam os valores da classe média pôde ser
detectada na planta da casa 8 do conjunto Araguaia, que adotou no programa da
residência destinações incompatíveis com moradias para a habitação social. Mesmo
nesse caso, as deficiências resultantes das modificações mais agravaram do que
atenderam às condições mínimas do projeto original, considerando-se o
comprometimento das áreas livres e das condições de conforto ambiental e de
salubridade. Essas alterações talvez não teriam ocorrido se houvesse um prévio
contato do usuário com o projeto, de modo a identificar suas aspirações e transmiti-
las ao arquiteto, para que o projeto as atendesse mais adequadamente.
76
Como visto anteriormente, no Araguaia, o acesso original do conjunto se dava
através das ruas internas. A maioria das casas, cujas fachadas posteriores eram
voltadas para as ruas Coronel Severino e Campo Grande, alterou o seu acesso para
essas vias. As ruas internas se destinariam apenas ao controle da leitura da água e
da luz, já que os medidores são ali localizados. O objetivo dos seus moradores foi
manter maior contato com o bairro, o que seria natural, por se tratar de uma
oportunidade de entrosamento desses indivíduos com o entorno, como demonstram
os depoimentos: “Fico isolado do mundo. Preciso de uma frente para sair”
(carpinteiro, 48, 23A). “A chegada pela rua Campo Grande é ótima. Não mexo com
nada pelo fundo – rua interna. Lá só tem leitura de água e luz” (doméstica, 43, 18A).
Esse fato apresenta uma intenção da população do conjunto de se integrar à
comunidade e à vida cotidiana do bairro, conforme indicado nas plantas das casas 9,
10, 11 e 12.
FIGURA 28 Vista das fachadas posteriores das casas, que se voltaram para as ruas principais
Fonte: Acervo particular da autora.
Em nosso entender, as alterações constantes na maioria das residências dos
conjuntos Goiânia e Araguaia não teriam acontecido no partido e na extensão em
que ocorreram, se tivesse havido maior participação dos usuários na fase de
elaboração do projeto. Não se pode deixar de comentar que, das alterações
assinaladas, ocorrem não só danos à qualidade arquitetônica das casas, como
também ao comprometimento do aspecto geral da paisagem local. Evidencia-se,
assim, nossa preocupação em demonstrar tudo quanto de danoso pode resultar de
um projeto imposto, que não leva em consideração aspirações naturais dos futuros
77
usuários. Este fato é demonstrado no desenho da autora do projeto e na foto desse
projeto na realidade.
FIGURA 29 Plantas modificadas das casas 9 e 12 do conjunto Araguaia Fonte: Elaborado por Branca Teixeira Perocco com base em pesquisa de campo, 2003.
FIGURA 30 Planta modificada da casa 10 do conjunto Araguaia Fonte: Elaborado por Branca Teixeira Perocco com base em pesquisa de campo, 2003.
78
FIGURA 31 Planta modificada da casa 11 do conjunto Araguaia Fonte: Elaborado por Branca Teixeira Perocco com base em pesquisa de campo, 2003.
FIGURA 32 Projeto do conjunto Goiânia idealizado pela arquiteta Ana Schmidt Fonte: Elaborado por Ana Schmidt, 1995.
79
Felizmente, é tranqüilizadora a expectativa futura de não ocorrerem fatos dessa
natureza, devido à oportuna imposição da nova legislação urbanística, que dilata
consideravelmente as tarefas dos órgãos encarregados da produção da habitação
social.
FIGURA 33 Vista do conjunto Goiânia na realidade Fonte: Acervo particular da autora.
A sociedade, por sua vez, vem passando por transformações e a moradia, na
medida do possível, tem se adaptado aos diferentes modos de ser e existir das
pessoas. Novos fatores vêm, cada vez mais, interferindo na ação de morar que,
como muito bem afirma Penzim (2001, p. 33), são, dentre outras, de ordem histórica,
cultural, social, demográfica, psicológica, política, econômica, ética e estética. É
assim que se faz a tradição: hábitos antigos são revistos na medida em que surgem
novas oportunidades da vivência das pessoas, visto que a sociedade vive em
constante mutação. Sob esse ponto de vista, constata-se que o projeto não atende e
não vai atender integralmente a todas as aspirações do ser humano. Mas isso não
impede que os projetos de arquitetura das moradias se aproximem de um nível de
satisfação para ele e sua família. Essa dinâmica é claramente confirmada nos
conjuntos Goiânia e Araguaia.
Mesmo que grande parte dos habitantes tivesse feito reformas e acréscimos no
projeto original, a maioria dos entrevistados ainda gostaria de incluir, futuramente,
alguma alteração em suas casas, visando a atender de maneira mais adequada às
necessidades das suas famílias. O desejo manifestado por 20% dos residentes no
Goiânia e 13% no Araguaia, conforme a TAB. 4, se referia à complementação da
construção de muros nos lotes; alterações internas da casa como, por exemplo,
melhorar o acabamento dos espaços já existentes, para 26% dos habitantes do
80
Goiânia e 20% do Araguaia; ampliar o segundo pavimento ou aumentar o número de
cômodos, principalmente de quartos, para 25% deles no Goiânia e 28% no
Araguaia.
TABELA 4 Modificações que os moradores gostariam de fazer nas casas dos conjuntos
Conjunto Goiânia Conjunto Araguaia Total Tipo de Modificação
absoluto % absoluto % absoluto %
Acabamento 17 26 10 20 27 24
Acréscimo de cômodo 16 25 14 28 30 26
Muro (lateral e/ou frontal) 13 20 6 13 19 16
Acréscimo de pavimento 10 15 10 20 20 18
Nenhuma modificação 6 9 3 6 9 8
Outros 3 5 6 13 9 8
Total de incidências 65 100 49 100 114 100
Fonte: Pesquisa direta (dados compilados pela autora), 2003.
Embora constasse a previsão do acréscimo para a segunda fase do projeto – o do
pavimento superior nas moradias dos conjuntos –, pôde-se constatar que as
modificações não se detiveram aos projetos originais, pois cada família alterou sua
casa conforme o seu entendimento do que seria o melhor espaço para ela. A maioria
acreditava que a estrutura existente não comportaria o peso do andar superior,
apesar de técnicos da URBEL terem afirmado que o projeto estrutural da casa
suportava o acréscimo superior. Esta também foi outra justificativa de grande parte
das expansões ter ocorrido no sentido horizontal, gerando comprometimento da
qualidade ambiental dos espaços, principalmente na ventilação, iluminação e
insolação dos compartimentos.
Nos raros casos em que se acrescentou o segundo pavimento da casa, o mesmo se
destinava a outra família: geralmente, eram os filhos dos proprietários que casavam
ou um parente próximo que não tinha condições de adquirir uma moradia.
Outro aspecto a se considerar é que o acréscimo se tornava necessário em função
do número de moradores por residência, que variava de quatro a sete pessoas,
chegando a atingir até doze moradores em uma só unidade. Mais uma vez, pode-se
comprovar que o programa adotado ainda não atendia integralmente às
81
necessidades do público a ele destinado. Como conseqüência, o projeto também
não satisfazia às condições básicas de instalação da maioria das famílias.
Poucas foram as famílias que ainda mantiveram o projeto original da casa, tanto no
conjunto Goiânia, com 9% dos casos, como no Araguaia, para 6% dos entrevistados,
segundo a TAB. 4. A maior razão é que os proprietários não dispunham de capital
para as reformas ou a casa já atendia às necessidades dos moradores, não
precisando, portanto, de intervenções.
O fato de morar numa casa que oferecesse segurança foi considerado como
positivo, o que, sob esse ponto de vista, permite afirmar que o programa habitacional
ali implementado beneficiou a maioria desses cidadãos, embora o dimensionamento
dos espaços ainda não atendesse completamente à composição familiar.
Na produção de conjuntos habitacionais, as possibilidades de adequação dos
espaços destinados a esse fim poderão atender mais adequadamente às
necessidades dos usuários na realidade. Nesse caso, o mais importante seria a
mudança da mentalidade dos atores envolvidos na produção de moradias dessa
natureza, pois a qualidade do espaço passa também pela sua adequação a todas as
questões ali envolvidas, tanto no que tange à construção quanto ao projeto, como é
o caso do dimensionamento, da articulação espacial e do conforto. E se acentua a
necessidade de atender cada vez mais a esse público, com a participação efetiva na
construção da sua própria casa.
Esse espaço, conforme se verificou, vem atendendo apenas parcialmente às
demandas de suprimento de moradia para a população de baixa renda. É inegável o
esforço e alguns bons resultados obtidos na ação e no atendimento dos órgãos
competentes, embora, ainda, na maioria das vezes, não esteja conseguindo prover
grande parte das necessidades da habitação social.
Cabe, finalmente, uma observação no sentido de valorizar a atuação da pós -
ocupação nesses conjuntos, visto que o processo não termina quando as casas são
entregues aos moradores; pelo contrário, essa continuidade torna-se premente,
principalmente ao se considerar que as adaptações vão depender de condições
culturais antecedentes e de informações e de acompanhamento que possibilitem
sua adequação, agora referendados pelo Estatuto da Cidade (BRASIL, 2001).
82
Como se pode verificar, o processo de atendimento das necessidades para os
usuários da moradia social ainda requer maior ação participativa da comunidade,
com vistas a identificar cada vez mais as suas aspirações, a exemplo do que ocorre
nos projetos individuais. Mesmo assim, os projetos individualizados ainda são
modificados por seus proprietários, demandando ajus tamentos necessários nos
espaços apropriados, visto que a sociedade muda, refletindo novas maneiras de
viver esse espaço.
83
3 A MUNICIPALIZAÇÃO DA POLÍTICA HABITACIONAL
Este capítulo procura analisar a política adotada pela URBEL e de que forma a sua
ação vem se processando nos programas elaborados por esse órgão, visto que eles
se refletem nos projetos que atendem à população de baixa renda. Além do mais,
torna-se importante avaliar a eficácia da sua gestão, no sentido de conseguir melhor
atendimento às necessidades dos seus moradores.
Os projetos elaborados pela URBEL seguiram as diretrizes da política habitacional
estabelecida por esse órgão, resultante da municipalização da política urbana, que
alterou os conceitos de habitação, a partir da participação popular no processo da
produção das moradias e das observações de ordem local, o que se constituiu em
avanço, face às ações anteriores do Poder Público. Mesmo que tais projetos ainda
não atendessem integralmente às necessidades dos moradores, cabe observar que
esse órgão cumpriu seus objetivos ao proporcionar a casa própria para a população
inscrita nos programas. A ação da URBEL, nesse sentido, tende a melhorar no que
diz respeito ao atendimento aos usuários, pois as experiências sob essa nova
orientação têm se acumulado através dos programas de acesso à casa própria.
Além disso, elementos da legislação federal, como o Estatuto da Cidade (BRASIL,
2001), que referenda a Constituição de 1988 (BRASIL, 1989), podem contribuir para
que ações desse órgão evoluam nesse sentido. A análise da política e da ação da
URBEL pode auxiliar na compreensão do processo e das melhorias nas condições
dos projetos das moradias ali produzidas.
A Constituição Brasileira, em obediência a movimentos sociais dos mais diversos
setores, incluiu na sua etapa a Reforma Urbana, que conferiu, à cidade e à
propriedade, funções nitidamente sociais. Tais disposições constitucionais, ao serem
regulamentadas, geraram uma legislação específica, nacional, que impunha a
inclusão de todos os órgãos na solução do problema habitacional. Dadas as
dimensões geográficas e a variedade cultural e social do país, a própria legislação
levou isso em conta, quando dotou de atribuições coerentes o Estado e o município.
As ações dos movimentos populares também retrataram uma nova postura para a
questão urbana, vista através da descentralização, da participação popular, da
84
parceria com o terceiro setor, do respeito ao meio ambiente e da busca do direito de
acesso às funções da cidade, tais como educação, saúde, habitação. Na realidade,
coube ao município a função específica da solução habitacional, fato que,
genericamente, representou a desejada municipalização do problema.
O Plano Diretor tornou-se o principal instrumento para que os municípios cumpram
essa função. No sentido de atender a aspectos referentes à habitação social, o
Estatuto da Cidade (BRASIL, 2001), através do Plano Diretor, adota as Zonas
Especiais de Interesse Social – ZEIS – como instrumento indutor dessa atividade
urbana. Nessa nova concepção, cabe às ZEIS, além da produção, cuidar também da
manutenção de programas de habitação social.5 Também é incluída na ZEIS uma
categoria que permite, mediante um plano específico de urbanização, o
estabelecimento de um padrão urbanístico próprio para o assentamento.
Nesse novo contexto, a gestão das políticas urbanas foi delegada em grande parte
às prefeituras. O poder municipal, então, articulou com os governos estadual e
federal mecanismos que pudessem criar estratégias para melhorar a administração
local, inclusive no que dizia respeito à provisão de moradias. Além disso, novas
tendências surgiram em função desse novo olhar, que certamente incentivou a
descentralização, até então pouco adotada.
Cabe observar que a gestão local seria o nível de governo que poderia permitir
maior integração entre as políticas de provisão de moradias e as ações de controle
do uso e ocupação do solo e, baseada na realidade do lugar, teria chances de
atender mais imediatamente às necessidades e especificidades locais. No caso de
Belo Horizonte, a URBEL surgiu com esse objetivo.
Os projetos que passaram a ser elaborados pela URBEL começaram a apresentar
características inovadoras, resultado de um progressivo e lento ajustamento à nova
legislação. Embora as soluções contivessem vícios provenientes das políticas
5 Dentre as várias modalidades classificadas pelas ZEIS, destacam-se terrenos ocupados por favelas, por população de baixa renda ou por assentamentos irregulares nos quais haja interesse em se promover a urbanização ou a regularização jurídica de posse da terra. A segunda espécie diz respeito aos loteamentos irregulares que têm interesse público em se promover a regularização jurídica do parcelamento, a complementação da infra-estrutura ou dos equipamentos comunitários, bem como a recuperação ambiental. Já a terceira espécie de ZEIS se refere aos terrenos não edificados, subutilizados ou não utilizados, necessários à implantação de programas habitacionais de interesse social. (BRASIL, 2001, p. 191-192)
85
anteriores, principalmente os decorrentes de falhas na elaboração do projeto, a
URBEL, baseada nas imposições da nova legislação, passou a tomar cuidadosas
medidas quanto ao recrutamento dos profissionais encarregados dos mesmos. A
relação prévia entre esses técnicos e a comunidade constituiu uma das principais e
mais proveitosas medidas a serem efetivadas. Em decorrência delas, os
profissionais também se prontificaram a introduzir nos projetos aspetos que
pudessem identificar, entre as aspirações das comunidades, as que seriam
agregadas a eles, naturalmente sem perder de vista as limitações orçamentárias. Ao
mesmo tempo, a própria URBEL não se descuidou desse necessário e amplo
diálogo.
Os projetos dos conjuntos Goiânia e Araguaia se desenvolveram nesse período de
ajustamento das soluções da política de aproximação da URBEL com a legislação
urbanística, que vem se firmando cada vez mais. Pelo visto, o processo evolutivo da
produção da habitação social segue seguramente rotas claras e definidas, apoiadas
numa progressiva introdução de equipamentos urbanos e elementos ambientais,
suportes indispensáveis de uma vida urbana mais saudável.
O processo da implantação, que deveria ser resultado de prévio contato com as
comunidades em ações ininterruptas, envolveu projetos, edificações e gestão por
parte de assistências técnicas e jurídicas, e embora se completasse com a
regularização fundiária, conforme a nova política, não se cumpriu na íntegra. Dada a
complexidade das sucessivas fases desse processo, a URBEL deve exercer
inevitáveis ações pedagógicas ante a gama de atores envolvidos, tanto nos projetos
e na implantação quanto na destinação das moradias.
Com a municipalização, o acesso à moradia tornou-se mais explícito, em virtude do
atendimento às características físicas e sociais locais. Ainda mais que já havia,
anteriormente, realizações de projetos de construção de moradias populares, com
destaque para a iniciativa de urbanização e regularização fundiária de loteamentos
ilegais e áreas faveladas, para os programas por iniciativa dos estados e municípios
e para a utilização de terras públicas ociosas para assentamentos de baixa renda,
que passaram a se identificar nos setores locais. Sob esse aspecto, Oliveira (2000,
p. 62) veio contribuir efetivamente para a compreensão, ao afirmar que o acesso à
terra e à cidadania, orientado por movimentos populares pela moradia, buscava
86
novo modelo de política habitacional. Os princípios norteadores dessa ação se
sustentavam na compatibilização de projetos de arquitetura e localização adequada
com custos viáveis, bem como no estímulo à autogestão, elementos que se
traduziram em um leque de programas de caráter inovador, capazes de dar
respostas a demandas diversificadas.
Já a política de urbanização de favelas e a autoconstrução na periferia indicavam
novas prioridades das classes menos favorecidas, quando se tratava da
concretização do sonho da casa própria. Ao mesmo tempo, a proposta de buscar na
autoconstrução uma alternativa para implantação de novos assentamentos
contrapunha-se à idéia de se manter a tradição da construção de grandes conjuntos
habitacionais padronizados.
Em Belo Horizonte, durante o período de transição para a municipalização das
políticas habitacionais, foram implantados vários planos e programas para a provisão
da moradia popular. E uma das alternativas que atendeu com maior eficácia a
população menos favorecida, assim como já se tornava evidente em todo o país, foi
a autoconstrução, principalmente na periferia, pois ela traduzia a maneira como se
efetivava a participação popular no processo de aquisição da sua moradia.
De acordo com a municipalização, vários programas de habitação popular foram
implantados em diversas regiões do país. Dentre eles, assentamentos em vazios
urbanos, cujo entorno havia sido ocupado anteriormente: eram áreas in natura ,
disponíveis na malha urbana, originadas de medidas institucionais, estabelecidas
por programas de governo, de ações coletivas, provenientes dos movimentos
comunitários ou da iniciativa privada, que se organizava, em grande parte, na
retenção especulativa. Essa medida proporcionou vantagens, pois reduziu custos
com infra-estrutura e equipamentos, o que compensou o valor mais elevado dos
terrenos disponíveis, além de proporcionar aos futuros usuários benefícios
adicionais, principalmente no que dizia respeito ao deslocamento na cidade. Apesar
da diversidade das dimensões de tais terrenos e da sua irregular distribuição pelo
território urbano, essas áreas têm contribuído historicamente, de modo significativo,
para a correção de anomalias e para a complementação de deficiências estruturais
de seus respectivos entornos. A importância dessa ação se avoluma quando, além
de reduzir custos financeiros, atenua a gama de impactos sociais vinculados aos
87
deslocamentos populacionais implicados, mesmo se considerando a limitação da
disponibilidade de tais terrenos.
É importante salientar que essa política habitacional evoluiu a partir do processo de
municipalização, momento em que o conceito de morar não só extrapolou o
entendimento da casa isolada, como adotou o entorno com a provisão de um plano
global de infra-estrutura e as devidas condições de habitabilidade, além de prever,
também, a participação dos agentes envolvidos nos projetos, o que poderia atender
de forma mais eficaz às necessidades locais das comunidades. Deve-se observar
ainda que a política adotada tem introduzido algumas transformações sociais: a
proximidade das áreas centrais proporciona menor deslocamento do trabalhador
para os vários setores da cidade e essa camada da população não se isola da
maioria das atividades realizadas próximas ao centro, maior articulador do mercado
de trabalho.
Apesar de essas ações terem permitido maior integração entre as políticas de
habitação e as fundiárias, deve-se evitar que elas se tornem um modelo ambíguo de
descentralização para o município, e que ele mantenha claras as atribuições
municipais, evitando-se superposições dos demais níveis de governo. Cardoso e
Ribeiro (2000, p. 23) se colocam numa posição de expectativa quanto à total
eficiência atribuída à municipalização e observam que, na experiência brasileira, os
piores resultados ocorreram em locais onde as carências se mostravam mais
acentuadas, ressaltando as disparidades regionais que sempre marcaram o país.
Em Belo Horizonte, a partir de 1993, a Prefeitura implantou o Sistema Municipal de
Habitação, cuja função era elaborar a Política Municipal de Habitação da cidade.
Esse sistema se compunha do Conselho Municipal de Habitação, do Fundo
Municipal de Habitação Popular e da URBEL.
O Conselho Municipal de Habitação delibera sobre as políticas, os planos e os
programas de aplicação de recursos utilizados pelo Fundo para a construção de
moradias na capital. Suas atribuições se constituem em analisar, discutir e aprovar
os objetivos, as diretrizes e as prioridades da política municipal de habitação e da
política de captação e aplicação dos recursos. O Conselho, composto por vinte
membros, tem representantes de entidades populares, de instituições responsáveis
88
pela produção de moradias, de representantes da Câmara Municipal e da Prefeitura.
Observa-se que a participação popular tornou-se efetiva nessa instância, pois os
vários segmentos da sociedade vêm atuando efetivamente na avaliação da
produção da moradia.
Cabe ressaltar que os recursos do Fundo Municipal de Habitação, provenientes de
dotações federais, estaduais e da própria Prefeitura, de financiamentos, de
contribuições de pessoas físicas e jurídicas, são aplicados em urbanização de vilas e
favelas, na construção e na recuperação de unidades habitacionais, na urbanização
de lotes e na aquisição de imóveis para programas habitacionais de interesse social,
com atenção especial à população em precárias condições de habitação, residente
em áreas de risco. Os proje tos e programas priorizam o atendimento a famílias cuja
renda não ultrapasse cinco salários mínimos.
À URBEL cabe a elaboração e execução da Política Habitacional do Município, bem
como a gestão do Fundo Municipal de Habitação Popular. A sua responsabilidade
atinge atividades multidisciplinares da solução do problema, desde a gestão dos
projetos até a implantação dos conjuntos. Essa ação abrange a aquisição e a
regularização de imóveis, a urbanização e reurbanização de áreas, a construção e a
recuperação de assentamentos habitacionais ou de moradias isoladas, as ações
emergenciais e a contratação de assessoria técnica, jurídica e urbanística. Portanto,
esse é o órgão encarregado da implementação de programas decorrentes do Plano
de Ação e Metas aprovado pela Prefeitura de Belo Horizonte, para elaborar ou
executar projetos que deles decorram.
3.1 A política da URBEL
A Resolução nº II do Conselho Municipal de Habitação, de dezembro de 1994, que
trata da Política Habitacional para o município de Belo Horizonte, no artigo 1º,
conceitua habitação como a moradia inserida no contexto urbano, provida de infra-
estrutura básica, dos serviços urbanos e dos equipamentos comunitários básicos . E
as diretrizes gerais dessa Lei buscam promover o acesso à terra e à moradia digna
para os habitantes da cidade, de maneira democrática, utilizando processos
tecnológicos que garantam maior qualidade e menor custo da habitação. Isso deve
89
ser assegurado por canais de participação da população organizada, tanto nas fases
de concepção e definição de prioridades da política habitacional quanto nas fases de
implementação, promovendo a co-gestão e a autogestão dos processos.
Além disso, essa política de habitação deve assegurar a vinculação da política
habitacional com a política urbana e com as demais políticas setoriais que
apresentem interfaces com a questão da habitação. De fato, a integração entre as
políticas que atuam no plano da cidade torna-se essencial na medida em que todos
os aspectos envolvidos na produção da habitação sejam contemplados
integralmente, o que se pode considerar um avanço no que diz respeito à busca das
condições adequadas para morar.
É importante destacar que a política habitacional da URBEL abrangia inicialmente
tanto os assentamentos existentes quanto os novos conjuntos. Quanto aos já
existentes, ela se limitou a interferir nos diversos aspectos físicos e sociais
complementares, especialmente os de infra-estrutura, de acordo com a necessidade
ou a demanda local. Essas ações diziam respeito ao programa de apoio e
assessoramento técnico às iniciativas populares na execução de obras, na
regularização fundiária e no acompanhamento pós-ocupação, medida esta que,
embora indispensável, ainda não se concretizou efetivamente. Sua ação
fundamental, no que se refere aos novos ass entamentos, se resumia a programas
direcionados para a produção de lotes urbanizados e de conjuntos habitacionais. Os
usuários contemplados nesse último caso foram os organizados em movimentos
pela moradia, os removidos de áreas sujeitas às condições de risco e os afastados
de locais onde seriam executadas obras públicas.
No que diz respeito à implantação de novos conjuntos habitacionais, o
direcionamento da política foi ampliado, mediante a aquisição de glebas, o seu
parcelamento e a sua urbanização, bem como a construção das unidades
habitacionais e dos equipamentos comunitários, quando fosse o caso.
Quanto às diretrizes para implantação desses novos conjuntos, em obediência aos
conceitos gerais de políticas habitacionais do processo de municipalização, elas
ratificam a intenção de se construir pequenos empreendimentos, cuja população
assimile prontamente a proximidade e a relação com a cidade: foram utilizadas
90
pequenas áreas inseridas na malha urbana, já dotadas de infra-estrutura básica e
equipamentos comunitários.
Em avaliação publicada pela URBEL (1998), constatou-se que a relação custo -
benefício de implantação física de conjuntos de pequeno porte havia demandado
grandes investimentos financeiros para atendimento a um número reduzido de
usuários. Esse fato indicou a necessidade de se adotar uma atitude seletiva na
aquisição de terrenos que consideravam preços e características mais adequados
ao padrão das soluções. Por outro lado, os conjuntos maiores, felizmente em menor
número, passaram a demandar soluções relativas a problemas como infra-estrutura,
transporte e equipamentos destinados à educação e ao lazer, em que seriam
necessários estudos e negociações complementares.
Por isso, esse órgão passou a priorizar a construção de conjuntos de médio porte,
constituídos de prédios de apartamentos de dois a quatro pavimentos. A redução do
custo do terreno por unidade habitacional e o agrupamento das famílias cadastradas
de acordo com a composição familiar foram os argumentos favoráveis a tal
procedimento, mesmo que isso demandasse um trabalho de assistência social mais
intenso com as famílias (URBEL,1998). Devido a essas novas diretrizes, melhores
soluções no que diz respeito à adequação da moradia às condições de cada família
favorecem os investimentos em implantação. Uma vantajosa conseqüência da
verticalização é que ela permite maior proporção de áreas destinadas ao uso
comum, destinadas à implantação de infra-estrutura e equipamentos
complementares.
A fim de ampliar o conceito de moradia, no sentido de melhor adaptação ao meio em
que estão inseridos, na Lei Orgânica do Município de Belo Horizonte,6 os conjuntos
não devem ultrapassar 300 moradias, visto que, a partir desse número de unidades
residenciais, seria necessária a elaboração de Relatórios de Impacto Am biental –
RIMAs, para liberação do projeto na Comissão Municipal de Meio Ambiente –
COMAM (Art. 208, capítulo XIII, que trata da habitação). Os terrenos devem, ainda,
se localizar preferencialmente próximos à origem da demanda identificada pela
6 A Lei Orgânica do Município de Belo Horizonte foi promulgada em 21 de março de 1990 e tinha como objetivo integrar a capital aos princípios de autonomia observados pela Constituição da República de 1988 (BELO HORIZONTE, [1990]).
91
pesquisa e ter regularização fundiária obrigatória. Um outro aspecto a ser
considerado é que o projeto do loteamento deve ser vinculado ao das edificações,
para que a integração espacial se efetive de maneira eficaz.
Pode-se observar, aqui, que a possibilidade de participação efetiva dos agentes
envolvidos no processo da implantação dos conjuntos foi um dos fatores que
apresentaram maior avanço na conduta desse órgão quanto à política habitacional
municipalizada.
Outro aspecto que chama a atenção sobre a qualidade do espaço a ser produzido
pelo órgão é a preocupação em seguir a LUOS, que estabelece normas para o
tratamento da cidade como um todo. E mesmo que as diretrizes emanadas dessa
Lei se apresentem de maneira restritiva, não se pode deixar de avaliar positivamente
o tratamento para os setores especiais, destinados à expansão de equipamentos de
interesse social, que tenta fixar bases para os novos assentamentos como parte
integrante da cidade.
Podemos verificar, então, após a avaliação dos diferentes conceitos de habitação,
inclusive aqueles que incluem benefícios de ordem social, que a abrangência
sugerida sob diferentes enfoques ainda não foi contemplada integralmente pela
URBEL. E que o avanço no direcionamento da política habitacional, propondo a
inserção das novas casas no contexto urbano, o que diminuiria a exclusão da
população-alvo no âmbito da cidade, tem apresentado pouca evolução quando se
aproximam os efeitos da sua gestão na realidade.
3.2 A ação da URBEL
A reformulação da política habitacional no município de Belo Horizonte gerou uma
série de programas para a aquisição da casa própria destinada à população de
baixa renda, tais como o Estrutural em Áreas de Risco, o Orçamento Participativo, o
Pró-Moradia e o Habitar Brasil.
Dentre esses programas, o Estrutural em Áreas de Risco se propõe a atender
famílias em situação de risco ou ocupando áreas destinadas à execução de obras
públicas. Ele tornou-se emergencial na medida em que se verificou na capital grande
92
demanda habitacional e que essa situação se agravava consideravelmente após o
período das chuvas, época em que eram freqüentes os desabamentos e as
inundações. Cabe ressaltar, ainda, que é responsabilidade do Poder Público,
segundo a Lei Orgânica do Município de Belo Horizonte (BELO HORIZONTE,
[1990]), realizar o processo de remoção e reassentamento em outro local de famílias
ocupantes da área de risco (Art. 207).
Esclarecemos que o Programa Estrutural em Áreas de Risco tem como objetivo
acompanhar e eliminar as situações de risco geológico/geotécnico e de intempéries,
levando segurança às famílias que morem nas áreas em questão. Segundo a
URBEL, esse programa se desenvolve em três níveis de atuação: Plano de Obras,
Mobilização Social e Plano de Atendimento Emergencial – PAE. O Plano de Obras
consiste no planejamento da implantação de obras para eliminação do risco nas
vilas e favelas existentes, dentro de uma escala de prioridades, que varia de acordo
com a magnitude do risco e a possibilidade de consolidação futura do núcleo. O
Plano de Mobilização Social prevê ações educativas junto às populações moradoras
em áreas de risco e o estímulo à criação de Núcleos de Defesa Civil nas vilas
(URBEL, 1998). A ação da URBEL, no cumprimento das respectivas circunstâncias
a que se destina atender, tem sido amplamente satisfatória, principalmente em seus
aspectos preventivos.
O PAE, por sua vez, visa a diminuir a probabilidade de ocorrência de mortes nas
áreas de risco e a prestar socorro emergencial às vítimas de acidentes naturais,
após a declaração do estado de alerta, decorrente das precipitações pluviométricas,
sempre que houver indícios de perigo de destruição de moradias. Se ela for
constatada, a URBEL executa as obras de proteção em conjunto com os próprios
moradores. Se não for possível garantir as condições mínimas de segurança, os
moradores não são autorizados a retornar para suas antigas casas, sendo
encaminhados para o Programa de Produção de Moradias. No cumprimento dessas
tarefas, a ação da URBEL tem demonstrado eficiência satisfatória.
No balanço da produção de conjuntos habitacionais, até o final de 2000, a URBEL
construiu cerca de 3800 unidades habitacionais, distribuídas entre residências
unifamiliares e prédios de pequeno porte, beneficiando uma população de
aproximadamente 12 mil habitantes. A região do Barreiro, próxima à Cidade
93
Industrial, no setor sudoeste de Belo Horizonte, cuja infra -estrutura permitia absorver
esse empreendimento, foi a mais favorecida no município, com a implantação de
1.117 domicílios. Por outro lado, as regiões Centro-Sul e Noroeste não foram
contempladas com qualquer programa até essa época. Considerando a crescente
tendência de destinações orçamentárias específicas, e reforçada a programação
contida no Plano Diretor, principalmente a decorrente das ZEIS, a solução do
problema habitacional caminha de forma razoável no sentido de cobrir em breve
todo o território do município.
Durante esse processo de produção da habitação social de Belo Horizonte, em
dezembro de 2000, a Prefeitura Municipal passou por uma reestruturação
administrativa, que também se refletiu na URBEL: ocorreram modificações internas
de modo a permitir que esse órgão se tornasse compatível com os demais setores
da nova administração municipal. A URBEL ampliou sua hierarquia, transformando-
se em Secretaria Municipal de Habitação, assumindo toda a responsabilidade pela
produção da habitação social na cidade.
Nessa nova estrutura, a Secretaria trabalha em parceria com as demais
Administrações Regionais da cidade,7 o que facilita a operacionalização das obras e
compatibiliza as ações com as diretrizes do desenvolvimento urbano da Capital. As
normas do plano global e o direcionamento político são estabelecidos pela
Secretaria, mas as diretrizes da urbanização ficam a cargo das Regionais,
diretamente ligadas aos setores locais.
Além do mais, foram avaliados pela Secretaria os novos indicadores de impacto da
política habitacional do órgão nos vários setores da cidade. Nesse sentido, a sua
atuação, segundo seus técnicos, contempla a administração da Prefeitura, a política
urbana e a política social, já que a habitação teria interface com todos.
A administração da nova Secretaria Municipal da Habitação, nessa nova estrutura,
abrigava quatro gerências: a de Planejamento e Informações Técnicas, a Executiva,
a de Programas Habitacionais e a de Monitoria e Avaliação, que eram responsáveis
7 São nove as Administrações Regionais de Belo Horizonte: Norte, Nordeste, Venda Nova, Pampulha, Noroeste, Leste, Centro-Sul, Oeste e Barreiro.
94
pela produção de moradias, pelos investimentos na urbanização e pelo
desenvolvimento de programas habitacionais.
Na nova administração, tendo surgido problemas de gestão conjunta entre a
Secretaria Municipal de Habitação e as Regionais, concomitantemente ao
agravamento da demanda de moradias, foi necessária a interveniência de outros
órgãos, para complementar a ação da Secretaria na cidade. Mesmo assim, segundo
avaliação do gerente de programas habitacionais do órgão, em agosto de 2003,
Aderbal Geraldo de Freitas, a interface com órgãos como a Empresa de Transporte
de Trânsito de Belo Horizonte – BHTrans e a Secretaria Municipal de Assuntos
Urbanos complementou a ação da Secretaria na cidade. Essa possibilidade de
compatibilizar a administração para a gestão conjunta tem permitido aos órgãos
elaborar e executar planos de integração das ações nos setores da cidade,
tornando-as mais eficazes.
Novas modificações, ocorridas em meados de 2003, determinaram o remanejamento
interno na Secretaria Municipal de Habitação, que foi desmembrada e passou a se
responsabilizar pela gestão dos novos conjuntos habitacionais. À URBEL foi
concedida a sua atribuição original específica de promover soluções relativas aos
conjuntos e favelas já existentes, e também o controle das intervenções em áreas de
risco, que tinha passado na reforma anterior a ser responsabilidade das Regionais.
Dessa nova condição, resultou para a URBEL maior clareza de objetivos
específicos, no que se relaciona ao atendimento de favelas e conjuntos existentes; a
Secretaria Municipal de Habitação, por sua vez, beneficiou-se da mesma forma, ao
se encarregar de problemas e ações que surgem das crescentes pressões
migratórias que incidem sobre a capital, passando, assim, a assumir a
responsabilidade pela implantação de novos conjuntos.
Como resultado, segundo declaração do gerente de programas habitacionais da
URBEL, os programas ministrados por esse órgão produziram, no período de 1996 a
meados de 2003, 7000 novas moradias, resultantes dos programas Área de Risco,
Pró-moradia, Habitar Brasil e do Orçamento Participativo.
Por outro lado, embora tivesse sido acertada a maioria das dificuldades na gestão
do assentamento da população originária de área de risco, à URBEL coube, ainda,
95
nessa nova reestruturação, o encargo de administrar juridicamente as questões de
indenização e de titulação para as comunidades, visto que a maioria dos seus
moradores era proprietária dos imóveis nessas áreas vulneráveis. Como exemplo,
pode-se citar o caso do conjunto Esperança, o pioneiro nos programas implantados
pelo órgão, cujos moradores ainda não receberam o título de propriedade do imóvel.
Segundo Palhares (2001, p. 71), ao longo de cinco anos de ocupação, já foram
feitas diversas transações comerciais com as unidades habitacionais e a
documentação se baseava em promessas de compra e venda, realizadas através de
acordos particulares. Essa mesma falha ocorre em relação aos conjuntos Goiânia e
Araguaia, nosso estudo de caso. E essa situação tem provocado freqüentes
reivindicações da população, junto ao órgão, para regularização da titulação dos
mesmos. É necessário lembrar que a política habitacional concebida pela nova
legislação urbanística visa fundamentalmente à regularização fundiária, que só se
completa com essa indispensável titulação.8 (BRASIL, 2001, p. 153)
Outra opção para a questão da titulação se deu por intermédio do programa do
Orçamento Participativo da Habitação – OPH: os permissionários financiam 35% do
valor total da obra, já que 65% são subsidiados. O valor da prestação gira em torno
de R$ 50,00 mensais, por um período médio de 18 anos. Para dar cobertura legal a
essa situação, foi criado pela Prefeitura Municipal, durante esse período, o termo de
permissão de uso a título oneroso entre o órgão e o usuário, até que seja concluído
o pagamento da moradia.
Outro aspecto que, segundo técnicos do setor, necessita de avanços é o
atendimento às famílias recém-chegadas aos conjuntos. De acordo com o Estatuto
da Cidade (BRASIL, 2001), no Art. 12, parágrafo 12, cabe também ao município a
assistência jurídica integral e gratuita àqueles que comprovarem insuficiência de
recursos. Essa comissão técnica e jurídica orienta os grupos sociais carentes em
ações judiciais e perante o cartório, garantindo a essa faixa da população o direito à
regularização fundiária e à propriedade.
8 A regularização fundiária objetiva legalizar a permanência de populações moradoras de áreas urbanas ocupadas em desconformidade com a lei, para fins de habitação, implicando melhorias no ambiente urbano do assentamento, no resgate da cidadania e da qualidade de vida de população beneficiária.
96
Atualmente, o processo do pós -morar dos conjuntos produzidos pela URBEL se
inicia na entrega das chaves, com o auxílio aos novos moradores na formulação da
convenção condominial, prossegue com a assistência nas adaptações de ordem
social do grupo e nas operações burocráticas, que, devido às deficiências culturais e
financeiras dos grupos atendidos, só se completarão com a participação de equipes
técnicas mencionadas na legislação. Cabe observar, porém, que os primeiros
conjuntos implantados pela URBEL não tiveram acompanhamento no processo de
pós -ocupação. A ausência de tais procedimentos nos conjuntos Goiânia e Araguaia
dificultou o entrosamento entre os moradores dos conjuntos e principalmente nas
relações dessa população com os antigos habitantes dos bairros vizinhos.
Com a perspectiva de implantação de novos conjuntos de médio porte e com os
terrenos localizados em áreas centrais tendendo a se esgotar, tem sido
incrementada a busca de novos empreendimentos em áreas periféricas próximas a
setores urbanizados da cidade. Esse movimento merece atenção no que se refere
ao âmbito da região metropolitana, pois as relações urbanas existentes entre os
diversos municíp ios poderão afetar significativamente o transporte coletivo e a infra-
estrutura local. Para tal, o controle da reestruturação da área metropolitana de Belo
Horizonte passa a ter caráter fundamental para a sua real integração, objetivando,
assim, melhor qualidade de vida para sua população.
3.3 Antecedentes históricos da política da municipalização
Consideradas as metodologias adotadas pela URBEL, envolvendo regularmente e
de forma satisfatória a sua ação em Belo Horizonte, para efeitos de comparação dos
avanços dessa ação em relação às do passado, cabe um ligeiro retrospecto para
examinar os processos que orientaram, em diferentes fases, as soluções
habitacionais no país.
Nossa análise parte do período correspondente ao processo de industrialização do
país que, nos meados do século XX, originou um acelerado crescimento da
urbanização nas principais cidades brasileiras, gerado pela crescente migração do
campo para a cidade, fato que incrementou a demanda por habitação.
97
Nesse período inicial, as ações da política habitacional no governo tinham como
objetivos primordiais garantir estabilidade aos regimes então vigentes frente a
manifestações populares contrárias à condução política do país. Esse fato pôde ser
ilustrado com os programas financiados pelos IAPs (1933), pela Fundação da Casa
Popular (1946) e pelo BNH (1964-1986), que marcaram uma condução similar no
processo da ação do Estado para aquisição da casa própria.
É verdade que algumas medidas governamentais e ações da iniciativa privada
relativas à habitação já haviam ocorrido em períodos anteriores. Porém, foi a partir
dos anos 1930, época em que o Estado passou a se responsabilizar pela proteção
legal da força de trabalho, que houve acesso mais significativo à moradia, apesar de
estar longe de se constituir propriamente numa ação de bem-estar social.
Bonduki (1998, p. 136) não considera significativas as ações dessa época, ao
afirmar que a produção habitacional no período populista não chegou a se destacar
enquanto ação social. Nesse sentido, também Azevedo e Andrade (1982, p . 30)
consideram que os governos populistas nunca conseguiram dar grande prioridade à
questão da habitação popular, porque praticavam um paternalismo autoritário. Além
disso, essa produção, conforme constata Sachs (1999, p. 112), era restringida pela
insuficiência de recursos financeiros do Estado.
Apesar disso, as iniciativas efetivas que trataram da política trabalhista podem ser
vistas nas ações do governo, que se iniciaram com a criação do Ministério do
Trabalho, da Indústria e do Comércio, nos anos 1930. Foi estabelecida, a partir daí,
uma série de medidas importantes de ordem social, como a jornada de trabalho de
oito horas diárias, as férias remuneradas, a sindicalização dos operários e o salário
mínimo. Para Sachs (1999, p. 111), porém, esses benefícios favoreceram apenas
uma minoria de trabalhadores organizados com empregos estáveis. Mas quanto à
solução do problema da habitação social, a maioria da população de baixa renda
permaneceu excluída, conforme aqueles autores. É claro que, pelo fato de não
estarem vinculadas a qualquer organização, mais uma vez, essas pessoas não
foram contempladas com qualquer programa de ordem social, nem mesmo com
aqueles destinados à produção da casa própria.
98
Nessas medidas, a maioria implementada na era Vargas, época em que o Estado
Novo tinha como objetivo principal estimular o desenvolvimento nacional, a
intervenção do Estado na economia e no atendimento social aos trabalhadores não
deixou de apresentar benefícios no conjunto da política social. Embora essas
iniciativas da ação governamental se constituíssem mais num artifício para manter a
ordem pública, ameaçada por ideologias em ascensão na Europa.
Nessa época, o Poder Público Federal defendia a tese de que o fundamento da
constituição moral da sociedade e do bom trabalhador era a família, sendo o lar a
associação simbólica do espaço físico e do ambiente doméstico. Além disso, a
imagem do trabalhador padrão era considerada elemento fundamental na formação
ideológica, política e moral do homem novo. Nesse sentido, Bonduki (1998, p. 83)
admite significados para essa política, quando afirma que, durante esse período, a
questão da moradia assumiu papel fundamental no discurso e nas realizações do
governo, como símbolo da valorização do trabalhador e comprovação de que a
política de amparo aos brasileiros estava dando resultados efetivos.
As ações se intensificaram à medida que o Estado se responsabilizava pela
formulação e gestão de políticas habitacionais e, ao mesmo tempo, verificou-se, na
concretizada regularização do setor previdenciário, o repasse de recursos
significativos para o financiamento de moradia pelos Institutos de Aposentadoria e
Pensões – IAPs: IAPI, IAPC, IAPB, IAPM, IAPTEC e IAPE – criados a partir de 1933.
Nesse momento, a produção da habitação passou a ser importante na agenda das
políticas sociais do governo, devido a essa nova ação social que valorizava
sobremaneira o trabalhador.
Paralelamente, decisões políticas que definiram as condições para atuação dos IAPs
no campo habitacional autorizaram os Institutos a criar carteiras prediais e a destinar
até metade de suas reservas para o setor habitacional. Essas decisões criaram
expectativas quanto à ampliação de oferta de moradias, considerando-se que as
taxas de juros foram reduzidas, os prazos de pagamento ampliados e que se
justificou maior investimento em financiamento nos programas de casa própria, cuja
maioria, até então, se destinava a aluguel.
99
Esse fato não se verificou, não só devido às repercussões das crises do conflito
mundial, como também às prioridades dadas aos IAPs, que se dedicaram
especificamente aos benefícios previdenciários, tais como aposentadorias, pensões
e assistência médica a seus associados.
A Fundação da Casa Popular – FCP – deu novo impulso à implantação do processo
da produção da habitação social. Instituída em 1946, foi o primeiro órgão de âmbito
nacional voltado especificamente para a provisão de residências destinadas à
população de baixa renda.
A FCP foi concebida como um órgão cujos financiamentos abrangeram, além das
obras urbanísticas de infra-estrutura e saneamento básico, o apoio a indústrias de
material de construção e a pesquisas que visassem ao barateamento da obra, à
qualidade dos projetos arquitetônicos e à assistência social, na busca da melhoria
das condições de vida e bem-estar das classes trabalhadoras (AZEVEDO e
ANDRADE, 1982, p. 21). Os princípios estabelecidos por essa Fundação
apresentaram inovações a partir da articulação entre a produção da moradia e o
desenvolvimento urbano.
De fato, a FCP tinha condições de atender adequadamente ao que poderia ser
considerado conceito de habitação popular, que incluiu também a infra -estrutura
como parte integrante da moradia. Mas, mesmo assim, nem a criação de um banco9
que pudesse administrar o financiamento e as taxas de transação foi suficiente para
a subsistência da FCP, pois os atores envolvidos, tanto os empreendedores como os
mutuários, não arcaram com esses custos.
A produção da FCP foi pouco significativa, pois não se tornava possível o acesso à
moradia se ela não fosse integralmente subsidiada. Por outro lado, o financiamento
para o morador esbarrava na própria lógica do populismo. Aliás, Azevedo e Andrade
(1982, p. 53) concluem que aos governos populistas não interessava
primordialmente resolver a questão da habitação popular: a prioridade intencional
era derivar dividendos políticos sob a forma de votos ou de prestígio.
9 A criação do Banco Hipotecário de Investimentos e Financiamento da Habitação Popular se responsabilizou pela execução da política habitacional, na busca de recursos que dessem autonomia e capacidade de empreendimentos à FCP, que responderia pela normatização dessa política (BONDUKI, 1998, p. 123).
100
Mais uma vez, a política que tratava da habitação, apesar de ter avançado na
concepção do que seria a moradia popular agregando à edificação a infra-estrutura
básica, não cuidou adequadamente dos aspectos sociais que envolviam o acesso a
programas desse bem social.
A questão urbana ganhou visibilidade e contorno, no princípio dos anos 60, com a
escolha da habitação como eixo da política urbana, que se revelou principalmente
através das tensões nas favelas e das migrações maciças para as cidades. Bolaffi
(1986, p. 29) reafirma esse fato, ao sugerir que o mito da casa própria não foi criado
gratuitamente, mas, sim, “estimulado precisamente com base em aspirações
legítimas da população”.
Apesar da significativa ampliação dos investimentos e do volume de obras
realizadas pelos inúmeros programas criados pelo BNH, a partir de 1964, a
contribuição desse Banco para a solução do problema habitacional não
correspondeu totalmente às expectativas. Isso devido a causas que são bem
interpretadas por Azevedo e Andrade (1982, p. 16), ao afirmarem que o rápido
processo de industrialização por que vinha passando o país atraiu um imenso
contingente rural para os grandes centros urbanos e, conseqüentemente,
congestionou a infra-estrutura existente, incapaz de atender às novas demandas
adequadamente.
Isso, apesar do empenho do governo militar, que visava à modernização do
aparelho do Estado, desde que fosse restabelecida a ordem social, nesse momento
ameaçada pela subversão comunista e pela desarticulação da economia. Devido ao
rígido controle dos militares, o problema habitacional também foi centralizado e de
âmbito nacional, e não reconheceu peculiaridades regionais. E o novo regime
precisava dar provas de que era capaz de resolver problemas sociais, pois
interessava legitimar-se junto aos setores populares. Pode-se observar que a
uniformidade das soluções arquitetônicas nos projetos resultantes da condução da
política nesse período bem retratou a centralização e a não-observância dessas
peculiaridades regionais.
As políticas sociais foram, então, subordinadas à perseguição dos objetivos
prioritários de segurança e crescimento econômico para reduzir as violentas tensões
101
sociais, aumentar a produtividade do trabalho, reduzir o absenteísmo dos
trabalhadores e garantir mais alternativas de emprego. Além do mais, o Estado
arcou com uma parte do custo da mão-de-obra, reduzindo os custos trabalhistas das
empresas, o que permitia a manutenção dos salários e dos empregos, aumentando,
assim, a possibilidade do acesso à moradia (AZEVEDO e ANDRADE, 1982).
A política do BNH teve duas faces: a primeira respondeu pelos interesses
econômicos de expandir a indústria da construção civil e a segunda, associada à
legitimidade da ação estatal, atuou no sentido de intervir na geração de empregos.
Nessa direção, o Estado buscou produzir políticas compensatórias para amenizar os
efeitos perversos da espoliação do trabalho pelo capital. Para moderar a ação
capitalista, criou políticas de bem-estar social, em que a habitação se constituiu em
um importante objeto de ação, ao lado da educação e da saúde.
Foi essa forma de pensar – que teve por resultado a construção de quatro milhões
de moradias no período de 22 anos de existência do Banco – que, de certa forma,
justificou a montagem do sistema financeiro da habitação, amparado em uma
política de poupança compulsória, o FGTS, e voluntária, as cadernetas de
poupança.
Na estrutura formalizada pelo governo, atribuiu-se ao BNH a responsabilidade pela
política da habitação, ao orientar, disciplinar e controlar o Sistema Financeiro da
Habitação – SFH – e o Serviço Federal da Habitação e do Urbanismo –
SERFHAU.10 Essas instituições realizariam uma política nacional de habitação e
urbanização do território, promovendo a construção de habitações de interesse
social e financiando propriedades para as camadas de baixa renda. Através das
Companhias de Habitação – COHABs – foram construídos também conjuntos
habitacionais em grande escala, para atender à demanda da moradia popular.
Coube, também, ao BNH, constituir um sistema que buscasse articular o setor
público com o setor privado na execução da política habitacional, considerando que
houve, a partir da sua implantação, a instituição de um centro decisório unificado
10 O SERFHAU desenvolveu uma política de incentivo às prefeituras municipais para que elaborassem seus planos de desenvolvimento local integrado, buscando a modernização administrativa das prefeituras, principalmente através da criação de órgãos locais de planejamento.
102
com normas e políticas padronizadas. Como se sabe, foi uma política centralmente
organizada no nível federal, que ignorou as diferenças regionais e locais, sendo que
a margem de manobra dos Estados e dos municípios foi reduzida, passando a
depender progressivamente da administração central.
Na busca do que seria essa política habitacional consistente e socialmente
orientada, Sachs (1999, p. 238) entende que deveriam ser reformuladas as relações
entre o escalão central e o escalão local, traduzidas por menor dependência
financeira para o município. Assim, o aumento das receitas próprias das
municipalidades destinadas à habitação social e a criação de um fundo federal de
apoio à produção de habitações sociais, cujos recursos seriam transferidos
automaticamente para os Estados e municipalidades, lhes deixariam a escolha das
formas de intervenção mais apropriadas e a elaboração dos respectivos projetos. O
objetivo dessa proposta buscava atingir uma flexibilidade maior na intervenção
pública, rompendo as barreiras dos programas nacionais para a produção de
habitações. Além disso, o princípio de subvenção da habitação social necessitaria
ser explicitamente reconhecido. Ela deveria tornar-se transparente, precisaria ser
calculada facilmente e, assim, as fontes dos fundos distribuídos poderiam ser
identificadas.
Ao mesmo tempo, deveriam ser cristalizadas novas modalidades de intervenção, o
que demandaria um processo de adaptação longo e difícil por parte de todos os
atores sociais implicados e uma colaboração efetiva na gestão urbana entre
administrações públicas e associações (SACHS, 1999, p. 240).
O início da década de 1980 foi marcado por um cenário de crise econômica e, em
1983, pela primeira vez na história do BNH, o valor das prestações subiu acima do
salário mínimo. O Banco, pressionado, acabou por adotar um conjunto de medidas
favoráveis aos mutuários, entre elas a indexação abaixo dos índices inflacionários
para aqueles que optassem pelo reajuste semestral. Essa condição, aliada aos
atrasos cada vez maiores no pagamento dos empréstimos, gerou um agravamento
do déficit do SFH, instaurando uma profunda crise no órgão. Esses resquícios da
ação do Banco são identificados por Bolaffi (1986, p . 31), ao avaliar que o BNH e a
política habitacional desenvolvida durante o período autoritário foram uma
103
catástrofe, pois era premente a necessidade de uma política habitacional consistente
e socialmente orientada.
Segundo esse autor, para que a política habitacional pudesse ser construída numa
democracia plena, seria urgente ampliar os canais de participação da população, os
quais passariam pela educação e pelas comunicações de massa. Embora
concordando com a participação popular, não se pode deixar de valorizar a
importância desse órgão e nem desconhecer que as obras realizadas contribuíram
na atenuação do problema habitacional naquele período.
Mesmo que as políticas públicas de habitação, nesse período, estivessem iniciando
o entrosamento com seus usuários, pela escuta de suas aspirações e
reivindicações, pela adaptação das soluções às condições diversas de cada
ambiente e às necessidades específicas de cada grupo social (SACHS, 1999,
p. 236), esse era um aspecto que ainda não vinha sendo contemplado com eficácia
nos principais programas habitacionais no país e nos seus respectivos projetos.
Residem aí raízes conceituais que instigaram a empreender esse trabalho.
No entanto, Bourdieu (1998a, p. 166), examinando as limitações das políticas
habitacionais na França, afirma que as lutas pelo espaço podem assumir formas
coletivas, como é o caso daquelas que se desenrolam no nível nacional em torno
das políticas de habitação, ou daquelas que ocorrem no nível local, a propósito da
construção e da distribuição de moradias sociais ou das escolhas em matéria de
equipamentos públicos. Os mais decisivos têm como aposta última a política do
Estado, que detém um imenso poder sobre o espaço através da capacidade que ele
tem de fazer o mercado da terra e, conseqüentemente, o da moradia.
Esse autor conclui, com certo pessimismo, que, naquele país, tal política, apesar de
ter sido discutida por representantes de grupos financeiros interessados no mercado
imobiliário, por funcionários do Estado e por membros das coletividades e das
repartições públicas, foi sendo construída de modo que atendesse mais aos grupos
homogêneos interessados na base espacial, e que se direcionava objetivamente
para os aspectos econômicos. Daí, segundo ele, o fracasso que fez surgir conjuntos
degradados ou bairros des ertos naquele país. Cabe observar que, no Brasil, as
104
ações nesse campo se assemelharam às da França, o que pode explicar a razão de
tais ações terem cumprido apenas em parte os propósitos visados.
No Brasil, ainda recentemente, conforme estudos realizados por Werna et al. (2001,
p. 137), no município de São Paulo, a partir de 1997, verificou-se que até mesmo na
adoção de sistemas de financiamento ainda prevalecem as ações tradicionais
utilizadas até então, em que se vêem programas governamentais tanto locais como
regionais que pouco exploram as novas fontes de recursos dos parceiros,
especialmente as Organizações Comunitárias de Base – OCBs – e as Organizações
não-Governamentais – ONGs. De toda forma, esses pesquisadores consideram que
a maior dificuldade que o Poder Público ainda enfrenta para prover a habitação é a
limitação financeira, pois mesmo essas organizações, apesar de apresentarem
várias formas alternativas de gestão e de trabalho comunitário, dificilmente abrem
mão do apoio estatal. E, em contrapartida, os programas federais, apesar de
parecerem flexíveis nos diversos pontos, tais como modalidades, tecnologia e fontes
de contrapartida do financiamento, ainda não conseguiram motivar análises
satisfatórias por parte dos profissionais que lidam com a habitação, tanto em
agências de outros níveis de governo com em entidades autônomas.
Por sua vez, quanto à iniciativa privada, cabe aqui observar que esses fundos se
limitam a movimentar capitais, mesmo de origem pública, destinando-os à
construção de moradias para as classes mais favorecidas. Assim, não ocorreram
programas que visassem ao investimento para habitação social, com resultados
objetivos na intensa tentativa de se livrar do apoio estatal, nem na obtenção de
novas fontes de recursos pretendidas. Na citada pesquisa, a maioria dos
entrevistados manteve o conceito generalizado de que o Estado ainda deve
permanecer como o maior financiador de empreendimentos para a baixa renda.
Assim, ao retomarmos a Constituição de 1988 (BRASIL, 1989), que destina à cidade
e à propriedade funções sociais, ela vem ao encontro dos aspectos do direito da
cidadania, que inclui o direito à moradia.
105
3.3.1 O direito à moradia
Como já vimos anteriormente, durante o governo Vargas ocorreram ações
governamentais em que o Estado passou a ocupar a posição central nas decisões
que tratavam das políticas públicas, a partir do momento em que se articulava um
conjunto de políticas sociais. A habitação, um dos capítulos dessa política social, se
constituía em condição básica da valorização da força de trabalho, fator econômico
fundamental para a industrialização, ao mesmo tempo em que se tornou elemento
importante na formação ideológica, política e moral do trabalhador. É por isso que
Bonduki (1998, p. 83) avalia que, naquela época, a moradia era considerada o
símbolo da valorização do trabalhador e a comprovação de que a política de amparo
dava resultados. É preciso lembrar que as ações do governo, ao longo do tempo,
permaneceram ineficientes nesse campo, até mesmo no período que envolveu
ações do BNH, pois esse Banco, apesar de ter buscado ações bem elaboradas na
sua concepção, apresentou deficiências na gestão, em grande parte relacionadas a
especulações e desvirtuamentos por parte dos empreendedores. Note-se que esse
órgão estendeu para todas as classes o atendimento do acesso à moradia, mas o
que ocorreu foi que aquelas menos favorecidas enfrentaram agravamentos
decorrentes de problemas políticos e econômicos.
No final, verificou-se que a oportunidade de acesso à casa própria continuou sendo
privilégio de poucos, como Bolaffi (1980, p. 172) interpreta com muita propriedade,
pois o Estado era constituído dentro de uma economia de mercado, na qual as
mercadorias se vendem por quanto o consumidor pode pagar. Devido a isso, a
exclusão se agravou no âmbito das classes menos favorecidas.
Também foram abordadas as causas que confirmaram os fatos acima: ao se
observarem as políticas adotadas no Brasil ao longo do tempo, pouco se conseguiu
no sentido de alcançar um resultado satisfatório, mesmo que tivessem sido testadas
inúmeras formas diferenciadas de políticas habitacionais e tentados variados tipos
de moradias populares. Isso porque, independentemente da condução adotada
nesse sentido pelo Poder Público, a habitação, conceitualmente, se manteve uma
mercadoria como outra qualquer.
106
Essas indefinições e interrupções também são anotadas por Jacobi (1989, p. 17).
Esse autor afirma que o Estado tem que responder pelas demandas sociais; afirma
também que o Estado capitalista tende a representar, hegemonicamente, os
interesses das classes dominantes e que esses interesses apresentam contradições
que fazem com que o próprio Estado assuma, freqüentemente, um caráter ambíguo
nas suas intervenções, desenvolvendo políticas que, apesar de atenderem às
exigências das classes populares, se limitam a manter a dominação social. Opinião
semelhante é manifestada por Villaça (1986, p. 53), ao avaliar a política e a ação do
Estado, em estudos sobre habitação popular no Brasil. Isso define claramente o que
ocorreu até o presente.
Na verdade, como já visto, a habitação não deixa de se constituir problema para o
Estado, mesmo que as agências governamentais tivessem empregado vultosos
recursos no financiamento de moradias. Segundo Kowarick (1993, p. 63), o que
aconteceu foi que a imensa parcela dos montantes empregados seguiu a lógica de
financiamento ditada pela lei do lucro. Conseqüentemente, o mercado tornou-se
disponível somente para aqueles que estavam inseridos nele mesmo, e as classes
populares, por disporem de menor poder aquisitivo, continuaram à margem da
conquista desse bem. Essa situação que, por si, não permite acesso aos bens
comuns urbanos por todos os cidadãos, resulta em exclusão, e até mesmo na
discriminação em relação ao trabalhador.
Cabe aqui analisar o conceito de segregação adotado por Grafmeyer (1994, p. 86),
que pode auxiliar o olhar sobre o nosso tema, quando não se tratar somente da
exclusão dos mais pobres, mas também da identificação desse processo, que se
manifesta tanto territorial como socialmente. A segregação é, na verdade,
considerada por esse autor, como um fato social que provoca distanciamento e, ao
mesmo tempo, separação física. Pelo fato de se situar entre a junção dos aspectos
sociais e espaciais, ela mostra um limiar entre a realidade desses dois campos, em
que não se pode considerar apenas as condições geográficas ou somente o
conjunto das diversas formas de diferenciação, de discriminação ou de
estigmatização que podem ser observadas no mundo social. Portanto, confirma-se
que a segregação, em todos os seus aspectos, é, ao mesmo tempo, considerada
categoria de análise e categoria prática, pois a referência aos contextos históricos
107
leva a uma análise das representações e das práticas, que permite vislumbrar as
relações entre as pessoas e os grupos.
A segregação é conceituada por Johnson (1997, p. 203) como a separação de um
grupo em relação a outro, em geral perpetuando condições de desigualdade e
opressão social. Na maioria das vezes, refere-se a distribuições de natureza física.
Essa questão tem sido abordada com bastante freqüência por outros autores, a
maioria confirmando a tendência de diferenciação acima citada.
Sabatini (1999, p. 4), mais especificamente, em estudos realizados na América
Latina, identifica a segregação como uma forte tendência no enfoque espacial ou
residencial, ao considerá -la como a aglomeração geográfica, de famílias de uma
mesma condição ou categoria social, num determinado local.
Esse autor chileno diferencia três dimensões principais na segregação: a primeira
define a tendência de um grupo se concentrar em algumas áreas, estabelecendo,
assim, a caracterização dos grupos sociais pela localização; a segunda estabelece a
conformação de áreas socialmente homogêneas, em que se determina a
composição social do grupo e a terceira, a segregação constituída como delimitação
de uma área exclusiva de um grupo. A primeira, segundo esse pesquisador, é uma
forma de segregação menos excludente de outros grupos em comparação com a
segunda, que é a segregação dos muros, das comunidades cercadas de hoje. A
terceira dimensão refere-se aos sentimentos que a segregação residencial produz
nas pessoas, ou seja, a percepção subjetiva que as pessoas têm das dimensões
objetivas da segregação. Tal aspecto é, segundo esse autor, de grande importância,
porque mostra os efeitos da segregação residencial que estão associados ao
sentimento de exclusão social.
Essa exclusão social também é abordada por Lago (2000, p . 33), em trabalhos sobre
a segregação no Rio de Janeiro e nos países latino-americanos, em que as análises
sobre a reestruturação espacial estão centradas nos impactos da crise econômica
sobre a pobreza urbana, seja ela considerada através do nível de renda da
população, das condições de emprego ou das condições urbanas de vida. Ao
mesmo tempo, essa autora acredita que as análises dos novos padrões de
segregação socioespacial e o agravamento da crise habitacional definiram o quadro
108
da crise econômica e social que marcou os anos 1980 no país. Além disso, os
fatores que demonstram o processo de pauperização da população decorrem do
subemprego, da concentração de renda e da precarização das condições de
trabalho.
Esse mesmo fundamento é adotado por Sachs (1999, p. 42), que afirma, ainda, que
a conjunção do crescimento empobrecedor com o rápido processo de urbanização
das cidades brasileiras detonou um poderoso mecanismo de exclusão social e de
segregação espacial. Essa autora exemplifica que a polarização social se inscreve
também no espaço, quando os centros das cidades e os bairros elegantes
concentram a maior parte da infra-estrutura e vivem um boom imobiliário, ao passo
que a maioria pobre vê -se empurrada para uma periferia cada vez mais distante, o
que leva a um crescimento horizontal desmesurado das aglomerações. Em virtude
disso, não seria de admirar que a classe menos favorecida fosse excluída do
mercado imobiliário regular e, além disso, pela notória insuficiência de promoção
pública que seja adaptada a seus meios, ela fosse obrigada a resolver a questão de
sua habitação na cidade ilegal, sub-equipada.
Cabe, ainda, observar que a segregação, geralmente considerada por alguns
autores um fenômeno de ordem física, leva a processos sociais de exclusão, que
comprometem o acesso de grande parte da população sem condições de inserção
no mercado de trabalho, impossibilitando-a de participar integralmente das
atividades da cidade. Devido a isso, essa camada da população é expulsa para as
favelas e para a periferia, cujos terrenos apresentam custo mais baixo e cujas
características de implantação de moradia nem sempre reproduzem as condições
ideais ou mesmo adequadas para a habitação.
A exemplo de Lago e Sachs, também Jacobi (1989, p. 68) ilustra bem a periferização
e o seu processo, classificando-a sob dois aspectos: a primeira periferia se
caracteriza pelo crescimento desordenado da cidade, cujos loteamentos são
aprovados sem qualquer planejamento, com a malha viária extensa, valorizando
áreas desocupadas ao longo do percurso para tais assentamentos. Por sua vez, a
segunda periferia apresenta terrenos em condições pouco favoráveis para a
urbanização, tanto no que diz respeito à topografia quanto às suas condições
geológicas.
109
Em Belo Horizonte, tal situação não é diferente, conforme relata Ferreira (1997,
p. 142) em estudos sobre o sítio e a formação da paisagem na capital mineira. Essa
autora afirma que os estratos mais baixos da pirâmide social não conseguem mais
se estabelecer formal e oficialmente no município. Como já não se dispõe mais de
áreas de baixa declividade, a ocupação avançou por terrenos íngremes e com
problemas de instabilidade nas encostas.
Como conseqüência, essa periferização, comum às grandes metrópoles, não
representa os moldes adequados ou permitidos, comprometendo a relação moradia -
trabalho para as classes mais pobres. Ainda mais agregando situações como falta
de transporte, saneamento e demais deficiências estruturais.
Constata-se, então, que o problema da habitação, bem como de todos os programas
de interesse social, vai além da questão de seu possível acesso pelos mecanismos
de mercado, pois está ligado às condições de exploração do trabalho, ou seja, às
condições de pauperização absoluta ou relativa a que estão sujeitos diversos
segmentos da classe trabalhadora. Esse processo leva à espoliação urbana, que é o
somatório de extorsões que se operam através da inexistência ou precariedade de
serviços de consumo coletivo. Tais serviços tornam-se socialmente necessários
como subsistência e reforçam ainda mais “a dilapidação realizada no âmbito das
relações de trabalho” (KOWARICK, 1993, p. 62). Nesse caso, seria fundamental o
Estado intervir provendo suportes de infra -estrutura para a expansão industrial e
mantendo a ordem social necessária para a realização de determinado modelo de
acumulação.
O processo de redemocratização no país, bem como a redefinição institucional
promovida pela Constituição de 1988, instituíram a função social na cidade,
articulando as políticas sociais às demais políticas urbanas. Essa Constituição
representou marco significativo da política habitacional ao atribuir ao âmbito
municipal as ações que anteriormente eram tratadas no nível nacional. Ela
realmente proporcionou abordagens específicas das características regionais e
locais, o que resultou na aproximação e participação mais ativa das comunidades.
Sob esse ponto de vista, Cardoso e Ribeiro (2000, p. 23) observam positivamente
esse processo de municipalização da política urbana, pois ele ressalta a
110
potencialidade da gestão local, ampliando a eficácia, a eficiência e a democratização
das políticas. A política municipal conta com a assistência direta da Prefeitura e da
comunidade, integra a política de provisão de moradias com a fundiária e a de
controle de uso e ocupação do solo; enfim, aumenta as possibilidades de atender a
características especiais do cidadão.
Sob esse olhar promissor, os movimentos populares começaram a alcançar
reconhecimento da sociedade e do Poder Público, impondo aos governos locais
suas reivindicações através de ações coletivas e da participação ativa nos conselhos
municipais e nos debates sobre o orçamento para a habitação.
Além do mais, esse processo decorrente da municipalização da política conduziu à
ampliação do conceito de habitação, principalmente pela participação do usuário,
pois ela passou a ser um produto cujo conceito de qualidade não se limitou só à
unidade habitacional, mas se estendeu ao seu conjunto, ao seu entorno e à sua
inserção na cidade (WERNA et al., 2001, p. 143).
Apesar dessa evolução nas ações do Poder Público, Penzim (2001, p. 40) alerta,
entre outras coisas, que as mesmas têm se caracterizado por uma visão bastante
restrita das necessidades habitacionais. Resulta daí a necessidade de
implementação de uma ação contínua de todos os atores na busca de novos
programas e estruturas administrativas de apoio, em que se avaliem experiências
anteriores e que se configurem em programas habitacionais adequados,
conseqüentes dessa avaliação.
Considerando-se que essas opiniões contribuem significativamente para definir o
problema, ainda mais ao se observarem as últimas modificações na legislação e as
crescentes manifestações de uma sociedade mais solidária e participativa, essa
situação certamente se atenuará num futuro próximo.
Cabe aqui reiterar todas as posições descritas em relação ao projeto, pois, como
vimos anteriormente, a URBEL já vem se integrando nessa política. Certamente, os
novos projetos arquitetônicos configurados pela legislação urbanística que efetivou a
municipalização passarão a considerar o morador como condição determinante da
sua elaboração. Esse fato poderá ac rescentar às moradias projetadas pela URBEL
111
melhorias no atendimento imediato às necessidades dos usuários, posto que a sua
participação no projeto da casa poderá torná-la mais próxima das suas aspirações.
112
4 A IDENTIDADE COM O LUGAR
Este capítulo trata da identidade dos moradores com o lugar em que vivem, a partir
da apropriação de suas moradias e dos conjuntos. Essa identidade se manifesta
através das relações afetivas, representadas pela sua experiência de vida nesses
locais, que refletem a influência cultural, social e econômica dos habitantes já
instalados nos bairros Alvorada e Araguaia – os estabelecidos – e os que chegavam
aos conjuntos Goiânia e Araguaia – os outsiders. A escuta das experiências vividas
pelos habitantes nos permitiu avaliar a adequação do espaço construído e os
reflexos nas relações de identificação estabelecidas com ele, nas quais surgem
oportunidades de mostrar como os grupos apropriam e inventam o espaço em que
vivem.
É indispensável para o entendimento dessa apropriação do espaço pelos dois
grupos em estudo elaborar uma descrição histórica do processo de assentamento
das comunidades envolvidas, bem como uma identificação dos seus habitantes,
para que não se repitam, durante a aplicação da política urbana, fatos dessa
natureza. Tais comunidades apresentam modos de vida acentuadamente
diferenciados, que se refletem, portanto, nas relações que eles mantêm com o lugar.
O lugar vai assumir papel importante neste estudo, a partir do momento em que o
indivíduo se identifica com o espaço que ele habita. As categorias valóricas que
levam a essa identificação retratam a história de vida desse indivíduo e a sua
afetividade com o local, através da maneira como ele vive e se instala ali.
Bourdieu (1998a, p. 160) acredita que o lugar torna-se o ponto do espaço físico onde
um agente ou uma coisa se encontra situado: ele existe. Esse lugar, ao ser
apropriado pelos agentes, é constituído de propriedades, que definem sua posição
pela relação que ele próprio tem com os outros lugares e pela distância que o
separa dos demais, definindo, assim, o seu espaço social. Cabe ao projeto
arquitetônico destinado a esse espaço físico ordená-lo, dimensioná-lo e equipá-lo,
de forma que ele cumpra a sua função social e possa permitir a interação das
comunidades com o lugar. O espaço físico, segundo esse autor, é definido pela
113
exterioridade mútua das partes, e o social, pela exclusão mútua (ou distinção) das
posições que o constituem, como estrutura de justaposição de posições sociais.
Essas intervenções conferem a identidade dos usuários com o lugar de forma
semelhante ao que define Milton Santos (1997b, p. 258):
[...] no lugar se superpõem dialeticamente o eixo das sucessões, que transmite os tempos externos das escalas superiores e o eixo dos tempos internos, que é o eixo das coexistências, onde tudo se funde, enlaçando, definitivamente, as noções e as realidades do espaço e tempo.
Isso se confirma ainda mais, quando Ana Fani Carlos (1996, p. 20) afirma que as
especificidades locais decorrentes das determinações históricas diferenciam os
lugares, mas é no lugar que se desenvolve a vida em todas as suas dimensões. Isso
porque as relações que os indivíduos mantêm com os espaços habitados se
exprimem todos os dias nos modos de uso, nas condições mais banais, no
secundário, no acidental. Esse que é o espaço passível de ser sentido, pensado,
apropriado e vivido através do corpo, ou seja, que permite relação mais imediata da
reprodução da vida. Segundo essa autora, o lugar é o espaço imediato das relações
cotidianas reconhecidas em pequenos atos corriqueiros e aparentemente sem
sentido, mas que criam laços profundos de identidade, “habitante-lugar e habitante-
habitante” (CARLOS, 1996, p. 21), relacionados com os modos de vida dos
indivíduos.
4.1 A origem dos moradores
Os grupos que constituem o nosso estudo de caso – os estabelecidos e os outsiders
– têm origem, cultura, condição socioeconômica e social diferentes. Esses fatores
vão influenciar as relações que eles mantêm com o espaço, pois ali são
manifestados os modos de vida nas atividades cotidianas .
4.1.1 Os estabelecidos: moradores dos bairros Alvorada e Araguaia
Como visto anteriormente, as características físicas dos bairros Alvorada e Araguaia
apresentavam semelhanças, bem como os serviços de infra-estrutura e os
equipamentos urbanos. No Araguaia, observou-se certa homogeneidade de tipos de
114
habitação, ao passo que no Alvorada, as moradias indicavam padrão superior e
acentuada diversidade das tipologias. Essa diferenciação se mostrava também entre
a cultura e o comportamento dos moradores dos dois bairros, resultado do perfil
socioeconômico de ambos.
Na época da elaboração da pesquisa, em março de 2003, 51% dos entrevistados na
população que residia nos bairros Alvorada e Araguaia eram proprietários dos seus
imóveis e já residiam no local, em período que variava, em média, de 15 a 35 anos,
conforme indica a TAB. 5. Havia entre eles sólida relação de vizinhança, que
permitiu a criação de associações de moradores nas respectivas regiões. Após a
construção dos conjuntos, em 1996, esses bairros ainda continuavam a atrair novos
moradores, na proporção de 27% no Alvorada e 14% no Araguaia, de acordo com a
TAB. 5.
TABELA 5 Tempo de moradia dos habitantes nos bairros
Alvorada Araguaia Total Anos de Permanência
absoluto % absoluto % absoluto %
Mais de 35 anos - - 2 14 2 7
De 15 a 35 anos 6 40 9 65 15 51
De 7 a 14 anos 5 33 1 7 6 21
Menos de 7 anos 4 27 2 14 6 21
Total de incidências 15 100 14 100 29 100
Fonte: Pesquisa direta (dados compilados pela autora), 2003.
Os fatores de atração do bairro se justificaram pela proximidade de parentes, pela
facilidade de acesso ao centro da cidade - que concentrava as atividades de
comércio e prestação de serviços – e, finalmente, pelo preço acessível das
moradias. Esse último aspecto era influenciado principalmente pela presença dos
conjuntos, que desvalorizaram os imóveis próximos por cerca de 30%, segundo
depoimentos de proprietários e de corretores de imóveis na região. Note-se que o
preço da terra identifica o impacto negativo resultante na definição do espaço social,
agravado pelo processo migratório local.
Dessa desvalorização surgiram casos de evasão, como o de alguns antigos
proprietários que se deslocaram para outros bairros. Além disso, essa
desvalorização levou outros ex-moradores a venderem rapidamente seus imóveis
115
por um valor bem abaixo do preço de mercado. Percebe-se que os novos moradores
apresentaram, na maioria, padrões inferiores aos das populações originais. Revela-
se, assim, que os propósitos da política habitacional de criar espaços adequados à
população, em princípio não se verificaram, apesar de previamente planejados, o
que confirma a necessidade de aperfeiçoamentos, que vêm sendo tentados pela
URBEL.
A composição familiar de expressivo percentual dos estabelecidos que
permaneceram nos bairros após a construção dos conjuntos apresentava estrutura
familiar convencional, cujos componentes da família sob o mesmo teto se
constituíam do marido, da esposa e dos filhos. Essa composição foi definida mais
claramente na população do bairro Araguaia, cuja ocupação das casas variava de
três a cinco habitantes por moradia, para 72% da população pesquisada nesse
bairro, como indica o GRAF. 1. No Alvorada, verificou-se que essa distribuição se
concentrou em 67% das moradias pesquisadas, de acordo com o GRAF. 2. Cabe
observar que o número de integrantes das famílias se concentrou em quatro
pessoas, para 53% dos entrevistados nesse bairro, confirmando, assim, a
composição familiar tradicional.
GRÁFICO 1 Número de habitantes por moradia no bairro Araguaia
7%
72%
21%
De 01 a 02 habitantesDe 03 a 05 habitantesDe 06 a 09 habitantes
Fonte: Elaborado por Branca Teixeira Perocco, com base em pesquisa de campo, 2003.
116
GRÁFICO 2 Número de habitantes por moradia no bairro Alvorada
13%
67%
20%
De 01 a 02 habitantesDe 03 a 05 habitantesDe 06 a 09 habitantes
Fonte: Elaborado por Branc a Teixeira Perocco, com base em pesquisa de campo, 2003.
Registrou-se grande diversidade na escolaridade dos moradores do bairro Alvorada,
que variava do 1º grau incompleto até o nível de pós-graduação, conforme indica a
TAB. 6. Foi constatado razoável desempenho escolar: 40% dos entrevistados
completaram o 2º grau, 7% concluíram o nível superior e 13% possuíam curso de
pós -graduação o que, de certa maneira, criaria melhores oportunidades de acesso
ao mercado de trabalho; por outro lado, 20% dos entrevistados não haviam
completado o 1º grau.
TABELA 6 Escolaridade dos moradores dos bairros
Alvorada Araguaia Total Escolaridade
absoluto % absoluto % absoluto %
Pós-graduação 2 13 - - 2 7
Superior 1 7 1 7 2 7
2º Grau completo 6 40 3 22 9 32
2º Grau incompleto 1 7 2 14 3 10
1º Grau completo 2 13 1 7 3 10
1º Grau incompleto 3 20 7 50 10 34
Total de incidências 15 100 14 100 29 100
Fonte: Pesquisa direta (dados compilados pela autora), 2003.
117
A TAB. 7 mostra que tal diversidade cultu ral se retratava na renda familiar do grupo,
que oscilava entre 3 e 27 salários mínimos, com maior concentração na faixa de 6 a
15 salários mínimos,11 cujo índice atingiu 60% do universo pesquisado.
TABELA 7 Renda familiar dos moradores dos bairros
Alvorada Araguaia Total Renda Familiar
absoluto % absoluto % absoluto %
De 27 a 16 salários mínimos 1 7 - - 1 3
De 6 a 15 salários mínimos 9 60 3 22 12 42
De 3 a 5 salários mínimos 4 26 9 64 13 45
Menos de 3 salários mínimos 1 7 2 14 3 10
Total de incidências 15 100 14 100 29 100
Fonte: Pesquisa direta (dados compilados pela autora), 2003.
O nível de instrução dos habitantes do Araguaia, por sua vez, se mostrou inferior ao
do bairro Alvorada. Apesar de 7% terem concluído o nível superior, 50% dos
entrevistados não concluíram o 1º grau e nenhum deles cursou pós-graduação, de
acordo com a TAB. 6. Observa -se, então, que a pouca qualificação desses
indivíduos dificulta seu acesso ao mercado de trabalho com boa remuneração. Mais
uma vez, verifica-se a relação da escolaridade com a renda familiar, pois 64% dos
ganhos da família desse grupo se concentravam na faixa entre 3 e 5 salários
mínimos, como indica a TAB. 7, com oscilações variando entre 1 e 15 salários.
Os habitantes que haviam pelo menos completado o 1º grau dispunham de
empregos estáveis, ocupados por amplos contingentes femininos, especialmente no
setor de prestação de serviços. Pode-se perceber uma relação entre salários, nível
de instrução e acesso ao mercado de trabalho.
As informações da TAB. 8 sobre a ocupação dos entrevistados12 demonstraram que
a faixa mais significativa dos habitantes dos bairros já se aposentara,
compreendendo 26% no Alvorada e 36% no Araguaia, sendo que eles dedicavam
11 O salário mínimo vigente na época da pesquisa de campo, março de 2003, era de R$ 200,00 (duzentos reais).
12 Esses dados foram categorizados segundo referência do IBGE (1982): Censo Demográfico - mão-de-obra, MG/1980.
118
parte do tempo livre à família ou a outras atividades complementares que pudessem
aumentar a renda familiar, tais como consultoria ou prestação de serviços.
TABELA 8 Ocupação dos moradores dos bairros
Alvorada Araguaia Total Ocupação
absoluto % absoluto % absoluto %
Desempregado 1 7 1 7 2 7
Prestação de serviço 3 20 1 7 4 14
Comerciário 1 7 3 21 4 14
Atividades sociais 3 20 - - 3 10
Aposentado 4 26 5 36 9 31
Dona de casa 3 20 4 29 7 24
Total de incidências 15 100 14 100 29 100
Fonte: Pesquisa direta (dados compilados pela autora), 2003.
A prestação de serviços, geralmente de ordem técnica, era a atividade exercida por
20% dos entrevistados no Alvorada e por 7% no Araguaia. Outra parcela se envolvia
em atividades sociais, destacando-se o ensino e o artesanato, sendo praticados por
20% somente no Alvorada, ou se dedicava ao comércio, trabalhando como
vendedores, que abrangiam 7% no Alvorada e 21% no Araguaia. As donas de casa,
que faziam parte do universo pesquisado com 20% no primeiro e 29% no segundo,
se limitavam aos afazeres domésticos, não contribuindo monetariamente, portanto,
para o orçamento familiar. Houve baixa incidência de desempregados nos dois
bairros; apenas 7%, ao mesmo tempo em que, como foi indicado na TAB. 8, grande
parte dos entrevistados ainda vem exercendo algum tipo de atividade profissional.
Com relação ao responsável pela renda familiar, pôde-se constatar que a situação
desses bairros não se diferenciava daquela dos padrões médios brasileiros, em que
o marido cuida da manutenção da família, em praticamente metade dos casos –
48% dos entrevistados nos dois bairros, segundo a TAB. 9. Observou-se que a
mulher também participava do orçamento familiar, ora sozinha, e em determinados
casos, incluindo o marido ou os filhos.
Em conclusão, o padrão dos estabelecidos nos bairros Alvorada e Araguaia se
caracterizou por níveis de instrução de baixo a médio, havendo um percentual
significativo de aposentados e de donas de casa, que não contribuíam para o
119
orçamento familiar. Foi apurado, ainda, que cerca da metade da renda familiar do
grupo é de única responsabilidade do marido.
TABELA 9 Responsável pela renda familiar dos moradores dos bairros
Alvorada Araguaia Total Responsável
absoluto % absoluto % absoluto %
Marido 7 46 7 50 14 48
Marido e mulher 3 20 3 21 6 21
Marido, mulher e filhos 3 20 - - 3 10
Mulher 1 7 - - 1 4
Marido e filhos 1 7 3 21 4 13
Mulher e filhos - - 1 8 1 4
Total de incidências 15 100 14 100 29 100
Fonte: Pesquisa direta (dados compilados pela autora), 2 003.
4.1.2 Os outsiders: moradores dos conjuntos Goiânia e Araguaia
Os outsiders, assim denominados os que compuseram as populações dos
conjuntos, apresentaram características diferentes dos habitantes originais dos dois
bairros, os estabelecidos, como acontece em casos semelhantes, bem interpretados
por Bourdieu (1998b, p. 134): o mundo social é construído com base em princípios
de diferenciação ou de distribuição, constituídos pelo conjunto de propriedades que
atuam no universo social e, nesse caso, os agentes são definidos pelas posições
relativas que eles ocupam nesse espaço. Cada um deles, segundo o autor, se situa
numa posição ou numa classe precisa de posições vizinhas, numa região
determinada do espaço, e não pode ocupar duas regiões opostas do mesmo. Nos
conjuntos Goiânia e Araguaia já se podem notar sintomas de um quadro social que
tende a tornar suas afirmações realidade, tanto no campo social quanto no
econômico.
Para se tirar melhores conclusões de análise desse tipo de interação, foi que
recorremos a Bourdieu, que afirma que o campo social deve ser visto como espaço
multidimensional, em que qualquer posição pode ser definida em função de um
sistema também multidimensional de coordenadas, cujos valores correspondem aos
das diferentes variáveis pertinentes.
120
Mas é preciso considerar que é um processo muito lento, visto que, no caso, os
outsiders eram originários de classe menos privilegiada da sociedade, constituindo-
se a maioria de trabalhadores rurais, vindos de diversos pontos do Estado de Minas
Gerais. Deve-se levar em conta que essa camada da população não apresentava
mão de obra qualificada, o que, lhes restringia a acesso ao mercado de trabalho.
No que se refere à faixa etária produtiva dos 221 habitantes do conjunto Goiânia e
dos 176 do Araguaia, ela se concentrou entre as idades de 18 e 60 anos, que
compreendia 74% no primeiro e 80% no segundo, conforme a TAB. 10. Era grande a
incidência de pessoas dessa faixa etária, visto que elas se dedicavam a algum tipo
de atividade econômica e tinham acesso ao mercado de trabalho.
TABELA 10 Faixa etária dos moradores dos conjuntos
Conjunto Goiânia Conjunto Araguaia Total Idade
absoluto % absoluto % absoluto %
Mais de 60 anos 12 6 13 7 25 6
De 40 a 60 anos 47 21 42 24 89 23
De 18 a 39 anos 117 53 98 56 215 54
Menos de 18 anos 45 20 23 13 68 17
Total de incidências 221 100 176 100 397 100
Fonte: Pesquisa direta (dados compilados pela autora), 2003.
Quanto à escolaridade, a maioria dos outsiders entrevistados nos dois conjuntos
apresentou baixo nível de instrução, pois 66% deles nem mesmo chegaram a
terminar o curso primário, como indica a TAB. 11. Foi detectada, ainda, alta taxa de
analfabetismo, chegando a 19% do universo pesquisado. Além disso, não se
encontrou nenhum morador que tivesse completado o 2º grau e sequer o nível
superior. Felizmente, essa situação tende a melhorar, já que a pesquisa indicou que
os menores de 18 anos, em grande parte, freqüentavam alguma modalidade de
curso.
Pode-se, então, admitir perspectivas otimistas, em que as comunidades com graus
de deficiências culturais, econômicas e sociais semelhantes às das populações
descritas poderão transcender as atuais, devido ao acesso à educação.
121
TABELA 11 Escolaridade dos moradores dos conjuntos
Conjunto Goiânia Conjunto Araguaia Total Escolaridade
absoluto % absoluto % absoluto %
2º grau incompleto 2 5 1 3 3 4
1º grau completo 2 5 5 17 7 11
1º grau incompleto 25 64 20 69 45 66
Analfabeto 10 26 3 10 13 19
Total de incidências 39 100 29 100 68 100
Fonte: Pesquisa direta (dados compilados pela autora), 2003.
Quanto a essa população atual, sua incipiente qualificação profissional refletiu a
baixa renda dos moradores dos conjuntos, que variava entre um e dois salários
mínimos, conforme a TAB. 12. Por outro lado, a faixa mais ampla indicava que o
maior salário recebido pelos moradores dos conjuntos era de 5,5 salários mínimos.
Uma observação que merece destaque é que uma razoável parcela dos
entrevistados não chegava a receber mensalmente sequer o salário mínimo, como
indicam 21% do universo pesquisado. Esse índice, que comprovou clara relação
entre baixos salários e educação, demonstra que o mercado de trabalho demanda
um nível mínimo de qualificação que a maioria dessa população não alcança. Isso
pôde ser percebido através das atividades dos mantenedores de famílias, que
exerciam profissões pouco qualificadas. Dos que se dedicavam à prestação de
serviços, 34% dos entrevistados indicados pela TAB. 13, trabalhavam em faxina ou
na construção civil, sendo que, nessa função, sobressaíam-se os serventes.
Atuavam também como catadores, diaristas, garis, carpinteiros e bordadeiras.
TABELA 12 Renda familiar dos moradores dos conjuntos
Conjunto Goiânia Conjunto Araguaia Total Renda Familiar
absoluto % absoluto % absoluto %
De 5 a 2 salários mínimos 11 28 11 38 22 32
De 2 a 1 salários mínimos 20 51 12 41 32 47
Menos de 1 salário mínimo 8 21 6 21 14 21
Total de incidências 39 100 29 100 68 100
Fonte: Pesquisa direta (dados compilados pela autora), 2003.
122
Os desempregados residentes nos dois conjuntos chegavam a 12% e buscavam
alternativas na economia informal, fazendo biscates como catar papel ou ferro-velho,
trabalhando com artesanato ou consertando aparelhos eletrodomésticos. As donas
de casa, que compreendiam 41% dos entrevistados nos conjuntos, se dedicavam à
atividade doméstica e os aposentados, 3% do universo pesquisado, não buscavam
outra fonte de renda complementar além da sua aposentadoria. Portanto, não havia
qualquer contribuição extra para a renda familiar da parte desses moradores.
TABELA 13 Ocupação dos moradores dos conjuntos
Conjunto Goiânia Conjunto Araguaia Total Ocupação
absoluto % absoluto % absoluto %
Dona de casa 18 46 10 35 28 41
Prestação de serviço 12 31 11 38 23 34
Desempregado 5 13 3 10 8 12
Comércio 3 8 2 7 5 7
Estudante 1 2 1 3 2 3
Aposentado - - 2 7 2 3
Total de incidências 39 100 29 100 68 100
Fonte: Pesquisa direta (dados compilados pela autora), 2003.
A renda familiar dos outsiders era de responsabilidade apenas do marido, em 38%
do universo pesquisado na TAB. 14, reforçando a tradição cultural da função
provedora do homem. Ao mesmo tempo, a mulher sustentava sozinha sua família
em 14% dos casos e em 6% destes, os filhos assumiam tal posição. Mas
verificaram-se situações em que mais de um membro da família assumia a renda
familiar: o marido e a mulher, 12% e o marido, a mulher e os filhos, 6%, conforme a
TAB. 14. Além disso, surgiram casos isolados de agregados que também
contribuíam para a renda da família, como parentes próximos, irmãs ou genros,
perfazendo um total de 4% dos entrevistados.
Um fato a se observar é que, de acordo com uma tendência das primitivas frentes de
trabalho ali existentes, grande parte desses moradores trabalhava em atividades no
entorno. Em pesquisa realizada em 1997 por Nascimento (1998), logo após a
implantação do conjunto Goiânia, muitas mulheres ali residentes exerciam atividades
como camareiras nos motéis lindeiros à rodovia que liga a capital a Sabará, o que
123
não continuou se verificando recentemente. Isso porque a maioria dos
estabelecimentos que ali vem se instalando nos últimos anos, geradores de
empregos, tem passado por um processo de reestruturação que envolve a
informatização e a exigência de qualificação profissional, o que provocou a
demissão dos não-qualificados.
TABELA 14 Responsável pela renda familiar dos moradores dos conjuntos
Conjunto Goiânia Conjunto Araguaia Total Responsável
absoluto % absoluto % absoluto %
Marido 13 32 13 46 26 38
Mulher 5 13 5 17 10 14
Marido e filhos 5 13 1 3 6 8
Marido e mulher 3 8 5 17 8 12
Marido, mulher e filhos 3 8 2 7 5 6
Filhos 3 8 2 7 5 6
Agregados 2 5 1 3 3 4
Outros 5 13 - - 5 6
Total de incidências 39 100 29 100 68 100
Fonte: Pesquisa direta (dados compilados pela autora), 2003.
Examinando as condições estruturantes dos moradores dos bairros e dos conjuntos,
pôde-se verificar que existe uma diferença significativa entre esses dois grupos, no
que tange aos aspectos sociais e econômicos.
4.1.2.1 O caminho para casa
A trajetória da população dos conjuntos não se diferencia das demais que
compuseram o êxodo rural no país. Como tal, ela só encontrou disponíveis as áreas
de risco. A maioria das famílias dos outsiders era originária desses locais, antes de
ter acesso ao programa da URBEL: 58% delas eram oriundas das margens de rios,
31%, de áreas sujeitas a desmoronamentos e 9%, de espaços que se destinavam à
implantação de obras públicas, conforme a TAB. 15.
Embora grande parte dessas residências tivesse sido construída em alvenaria –
74%, a precariedade estava presente no baixo padrão construtivo das mesmas, em
que 26% delas eram vedadas com materiais pouco adequados, tais como placas de
124
latão e de madeira usadas na construção civil – o madeirit. A precariedade e a
insalubridade se confirmaram ao se verificar a cobertura das mesmas, que em 75%
dos casos se compunha de telha amianto, material poluente que irradia excessivo
calor para o interior dos compartimentos e que pode provocar graves danos à saúde.
Eram poucas as unidades que apresentavam laje na cobertura, apenas em 25% dos
casos, o que demonstra a condição deficiente de grande parte dessas construções.
Mesmo assim, foram registradas algumas residências sólidas que, embora tivessem
sido construídas em alvenaria, não estavam livres de riscos, porque os terrenos
eram, geralmente, localizados em áreas inundáveis ou sujeitas a desabamento.
TABELA 15 Condições das casas anteriores dos moradores dos conjuntos (em %)
Condição Especificação Conjunto Goiânia Conjunto Araguaia Total
Invasão 64 52 58
Casa própria 18 41 30
Aluguel 10 4 7 Propriedade
Favor 8 3 5
Beira rio 59 58 58
Barranco 26 36 31
Obras do metrô 13 6 9 Situação de Risco
Prédio abandonado 2 - 2
Alvenaria 61 86 74 Material de Vedação
Madeira 39 14 26
Laje 20 30 25 Cobertura
Telha amianto 80 70 75
01 cômodo 54 31 42
02 cômodos 26 31 28
03 cômodos 18 24 21 Número de Cômodos
04 cômodos 2 14 8
No mesmo cômodo 54 62 58 Cozinha
Em cômodo separado 46 38 42
Dentro de casa 57 70 64 Banheiro
Fora de casa 43 30 36
Fonte: Pesquisa direta (dados compilados pela autora), 2003.
Pôde-se observar a precariedade das condições de habitabilidade, em que 42% dos
barracos se compunham de um único cômodo que atendia às funções de cozinha,
quarto e sala, simultaneamente. O acúmulo de atividades domésticas num só
125
espaço impedia a ventilação e a insolação, comprometendo a qualidade do conforto
ambiental interno. As informações do TAB. 15 indicam ainda que tais casas se
compunham de no máximo quatro cômodos. Ao mesmo tempo, o banheiro ainda
era, para 36% das moradias, localizado em área externa da casa, em fossas no
fundo do quintal. Inegavelmente, pode-se constatar que quase todas as habitações
desses locais de risco apresentavam condições de habitabilidade e higiene precárias
e de salubridade inadequada.
4.1.2.2 “Eu não tenho onde morar”
Tais condições provocaram situações muito vulneráveis, principalmente durante as
chuvas de verão, quando a freqüência de tempestades se intensificava. Esses locais
eram afetados por remoções urgentes, obrigando, na maioria dos casos, o Poder
Público a remover os moradores para abrigos temporários. Assim, compreendeu-se
que essas famílias percorreram um longo caminho: foram recolhidas pela Defesa
Civil e passaram por acampamentos, até que chegassem às suas moradias
definitivas nos conjuntos.
Nessa circunstância, a maioria das famílias foi inicialmente acolhida pela Defesa
Civil e encaminhada em caráter emergencial para escolas das proximidades, até que
cessassem as chuvas de verão. Após a triagem, seguiram para abrigos
improvisados como acampamento, cujas condições das barracas de lona e das
instalações sanitárias eram precárias. A permanência dos desabrigados nesses
acampamentos variou de 6 meses a 3 anos, até que fossem liberadas as casas para
cada família. Por conta dessa gravidade, foi criado o programa Área de Risco, para
atender a tais famílias.
4.1.2.3 A chegada à casa nova
A intervenção da URBEL se fez para proporcionar participação no programa, para
efetivar a orientação entre os integrantes do mesmo e apresentar os projetos das
novas moradias. Essa ação, embora meritória, não foi imediata, visto que os
parâmetros adotados na municipalização das políticas habitacionais ainda não
estavam completamente incorporados ao processo.
126
Os moradores dos conjuntos estavam isentos de qualquer tipo de pagamento por
suas novas casas, pois o programa Área de Risco prevê indenizar os aderentes pela
perda de suas moradias, o que não ocorre nos demais programas da URBEL. Aliás,
a titulação de propriedade do imóvel não foi concedida aos habitantes, pois as
modificações ocorridas na maioria das residências não permitiram à Prefeitura
conceder o Habite-se,13 o que impediu o processo de apropriação formal das
mesmas. Até então, esses proprietários possuíam apenas o termo de permissão de
uso estabelecido por decreto pelo prefeito municipal, donde se conclui que a
regularização fundiária ainda não se efetivou.
As respostas aos questionários da pesquisa indicaram que, apesar de nem todos os
moradores dos conjuntos terem participado do programa Área de Risco desde a fase
inicial, 95% dos entrevistados no Goiânia e 93% no Araguaia, conforme os GRAF. 3
e 4, ainda eram proprietários das suas casas nos conjuntos. A exceção se
apresentou em casos pouco significativos, quando os proprietários dos imóveis os
emprestavam para parentes próximos, tais como nora ou tia, ou os vendiam. Quanto
à venda de imóveis, ocorreram oito em cada um desses conjuntos.
A pesquisa mostrou que os motivos de atração para 8% dos moradores dos
conjuntos, assim como para aqueles que procuravam os bairros, foram o preço
acessível, a segurança e a facilidade de se chegar ao centro da cidade. Por outro
lado, os habitantes que venderam suas casas dos conjuntos saíram de suas
residências porque voltaram para as cidades de origem ou as permutaram com
moradores de outros bairros.
Vizinhos informaram que dois desses ex-moradores voltaram ao local de origem, ou
seja, às áreas de risco que eles habitavam anteriormente, onde, em 2003, ocorreram
deslizamentos. Embora não tenham sido vítimas diretas, enfrentaram todas as
circunstâncias em acidentes dessa natureza. A URBEL, por sua vez, não tem
controle sobre essa movimentação dos moradores dos c onjuntos.
13 Como é sabido, denomina-se Baixa e Habite-se o documento fornecido pela Prefeitura Municipal, comprovando que a construção está de acordo com o projeto e em condições de ser habitada.
127
GRÁFICO 3 Representação gráfica da propriedade dos imóveis do conjunto Goiânia
95%
5%
Proprietário
Não proprietário
Fonte: Elaborado por Branca Teixeira Perocco, com base em pesquisa de campo, 2003.
GRÁFICO 4 Representação gráfica da propriedade dos imóveis do conjunto Araguaia
93%
7%
Proprietário
Não proprietário
Fonte: Elaborado por Branca Teixeira Perocco, com base em pesquisa de campo, 2003.
No que diz respeito ao total de moradores por residência, 60% das casas dos dois
conjuntos apresentavam de 2 a 5 moradores, como mostra a TAB. 16, embora já se
manifestasse uma tendência média de quatro pessoas por unidade. O mais
interessante a observar é que havia moradias ocupadas por até doze pessoas,
incluindo-se aí agregados como genros, sogras, netos e até outra família. É claro
que, em tais condições, o espaço era inviável para comportar tanta gente, chegando
mesmo a se verificarem situações de insalubridade e promiscuidade.
128
TABELA 16 Número de habitantes por moradia nos conjuntos
Conjunto Goiânia Conjunto Araguaia Total Número de Ha bitantes
absoluto % absoluto % absoluto %
Menos de 2 habitantes - - 1 4 1 2
De 2 a 5 habitantes 25 64 16 55 41 60
De 6 a 9 habitantes 11 28 9 31 20 29
De 10 a 12 habitantes 3 8 3 10 6 9
Total de incidências 39 100 29 100 68 100
Fonte: Pesquisa direta (dados compilados pela autora), 2003.
Após a entrega das moradias, ocorreu o súbito abandono desses empreendimentos
por parte da URBEL. Desse fato decorreram desajustes no relacionamento interno e
conflitos entre os outsiders e os estabelecidos . No caso desses conjuntos, a URBEL
permanece ausente do processo, tendo os próprios moradores tomado iniciativas
individuais já citadas, chegando, alguns deles, a venderem suas casas. Constata-se,
assim, a necessidade de prosseguimento do plano após a ocupação dos conjuntos,
como seria indispensável em programas dessa natureza. Aliás, é essencial o
envolvimento da URBEL, a fim de dar continuidade à solução desses problemas,
mediante um projeto específico com características suficientes para ajustá-lo às
recomendações da legislação, que só se consolidará com o importante instrumento
da regularização fundiária. Além disso, em obediência ao Estatuto da Cidade
(BRASIL, 2001), a URBEL terá que recorrer às comissões técnico-jurídicas, que
oferecem assistência gratuita para as comunidades e os grupos sociais menos
favorecidos (Art. 4, inciso III, alínea r). Nos novos projetos, esse órgão já vem
empreendendo ajustamentos extensivos desse processo até a sua consolidação. Há
expectativa de que, com essa medida, a implantação de novos conjuntos atingirá
padrões e ordenamentos semelhantes aos que já ocorrem em seus programas de
autogestão.
Nesses novos programas de autogestão, os habitantes participam efetivamente do
projeto, da implantação e da consolidação dos conjuntos, coordenando e
administrando a obra. Essa gestão apresenta dois aspectos positivos: primeiro, não
há interveniência de intermediários, no caso as empreiteiras, que cobram altas taxas
de administração, o que onera o custo do empreendimento; segundo, torna-se
possível a formação de mão-de-obra, visto que os futuros moradores participam da
129
execução da obra. Esse envolvimento da população aproxima os futuros habitantes,
visto que estão todos comprometidos com o mesmo objetivo, o que possibilita,
assim, vínculos com o lugar. Segundo depoimento da diretora de Planos Globais da
URBEL, a arquiteta Maria Cristina Magalhães, são nítidas as conseqüências dessa
gestão, pois as casas construídas por esses programas sofrem o mínimo de
alterações posteriores e dificilmente há mobilidade dos seus moradores. Daí a
importância de haver participação e envolvimento dos moradores em todo o
processo da produção da sua moradia.
Embora a municipalização da política habitacional tivesse como uma das premissas
a participação de atores envolvidos durante todo o processo da implantação de
novos conjuntos, a URBEL, que ainda não dispunha de elementos e de corpo
técnico profissional que pudessem atender a essa demanda, passou a contar com
as novas legislações e melhoria na organização técnica, embora ainda não tenha
ação efetiva para exercer com eficácia a política habitacional no município.
Evidentemente, os futuros projetos apresentarão características adequadas a essa
situação. Atualmente, o Estatuto da Cidade, que vai humanizar a política urbana no
país, favorece maior participação dos grupos envolvidos, o que poderá facilitar ainda
mais na adequação dos futuros assentamentos de conjuntos habitacionais, objetivo
perseguido pela comunidade e pelos órgãos de fomento à habitação.
4.2 As relações afetivas com o lugar
As idéias de espaço e lugar são definidas simultaneamente, pois o espaço
transforma-se em lugar à medida que adquire definição e significado (TUAN, 1983,
p. 151-184). E esse lugar só terá sentido se os atores envolvidos puderem
estabelecer uma relação de intimidade construída com ele em qualquer escala, seja
no lar, no bairro ou na cidade. E a maioria dos lugares não é criação, pois eles são
construídos a partir das necessidades práticas.
Os grupos dos estabelecidos e dos outsiders tiveram origens diferenciadas e
passaram a compor um novo meio: um lugar singular que, conforme Bauman (2003,
p. 21), não se limita a ser diferente e cujos sintomas de identificação se manifestam
nos depoimentos individuais.
130
No início da implantação dos conjuntos, verificou-se que a história de vida dos
moradores com o lugar se apresentava de maneira muito diferente, tanto para os
habitantes dos conjuntos construídos pela URBEL como para os moradores dos
bairros Alvorada e Araguaia, que já vinham consolidando suas relações com ele por
um longo período. Na realidade, o novo espaço veio se configurando e teve origem
com a implantação dos mesmos, em que se destaca a indução das identificações
com o lugar.
No momento em que se manifesta essa identidade para o seu morador, a casa
passa a adquirir um valor além de simples abrigo: ela representa uma objetividade
social que reflete, nos intercâmbios subjetivos que ali se realizam, o lugar dos
sonhos para os seus habitantes. Tal situação remete ao olhar de Tuan (1983, p. 6)
sobre o lugar, que se diferencia do espaço à medida que o conhecemos melhor e o
dotamos de valor.
Aliás, na prática social, os critérios objetivos da identidade são objeto de
representações mentais e de representações objetuais que atuam como propriedade
simbólica de atos que os agentes investem como sinais de interesses materiais e
simbólicos do seu portador (BOURDIEU, 1998b, p. 112).
Assim, ao mesmo tempo em que é importante conhecer o lugar onde estão
implantados os conjuntos, pois são conhecidos o perfil socioeconômico das
populações envolvidas e as características físicas do local, surge a necessidade de
demonstrar como elas vivem nesse espaço e a partir de quais condições passam a
assimilá -lo como lugar. A vivência desses habitantes no local demonstra as relações
de identidade estabelecidas em vários níveis, refletindo o estilo de vida dos grupos
no espaço. Nesse sentido, os valores de cada um deles se manifestam através de
hábitos e atividades retratados pela sua cultura no dia-a-dia, permitindo uma
avaliação sobre a adequação desse espaço, resultado das diretrizes iniciais da nova
política habitacional.
Após verificar as relações com a casa, a célula menor, a análise das referências da
identidade com o conjunto torna-se importante para o entendimento da apropriação
desse lugar pelos diferentes grupos e escalas. Para atender aos objetivos do
trabalho, tornou-se necessário identificar como os conjuntos eram considerados
131
pelos estabelecidos e pelos outsiders e até que ponto a pesquisa contribui para
compreender o sentido de lugar nesse novo espaço.
Os conjuntos foram valorizados de maneira diferente pelos seus habitantes e pelos
estabelecidos. Observou-se que as manifestações dos primeiros foram favoráveis às
condições do local, o mesmo não ocorrendo com os últimos, que se sentiram
afrontados face à implantação dos conjuntos Goiânia e do Araguaia, construídos
contra a sua vontade.
As relações de identidade estabelecidas entre o habitante e o espaço
proporcionaram oportunidades de trocas de experiências em diversos níveis.
Inicialmente, essas trocas se davam nas atividades primárias do convívio familiar e
iam se desenvolvendo e se ampliando naturalmente nos contatos com grupos mais
próximos. Assim, a casa passa a ser o lugar íntimo, considerado como aquele em
que pensamos como lar e lugar, mas as imagens atraentes do passado são
evocadas não tanto pela totalidade do prédio, que somente pode ser visto, mas por
seus elementos e mobiliário, que podem ser tocados e também cheirados (TUAN,
1983, p. 160).
A pesquisa indicou que grande maioria dos entrevistados nos dois grupos se
identificava com as suas moradias: tanto os estabelecidos, que construíram suas
residências conforme seus desejos e possibilidades, como os outsiders, que
valorizaram sua casa como o abrigo e o acesso à infra -estrutura básica. Isso não
impediu de haver modificações nas moradias, fruto de possíveis deficiências no
programa e na gestão do empreendimento pela URBEL, conforme visto
anteriormente.
Nesse item, nosso objetivo é observar como se manifesta a identificação dos
estabelecidos e dos outsiders ao se apropriarem das moradias e dos conjuntos,
avaliando o sentido da construção de lugar.
4.2.1 Identidade dos estabelecidos com suas moradias
Os estabelecidos mantive ram uma boa relação com as suas moradias: primeiro,
porque eles eram, na maioria, proprietários dos seus imóveis por muitos anos;
132
segundo, porque as residências, em grande parte, foram construídas por eles
mesmos e, portanto, atendiam a condições definidas pelos próprios membros da
família. Essa satisfação geral tem a ver com a construção das residências de acordo
com as reais aspirações do proprietário e justifica a necessidade de um prévio
contato dos autores dos projetos com os usuários, com vistas a atender mais
amplamente a cada família.
As dimensões e a tipologia arquitetônica das moradias dos bairros Alvorada e
Araguaia se assemelhavam. As casas eram constituídas, em grande parte, por sala
de estar, estar íntimo, sala de refeições, três ou quatro quartos, sendo um deles a
suíte do casal, além de ampla cozinha, área de serviço e garagem para, no mínimo,
um carro. Além disso, surgiam, nessas residências, espaços complementares tais
como escritórios, lavabos, salas de estudos e varandas. O partido arquitetônico e a
composição de fachada da maior parte das habitações, bem como o mobiliário, os
equipamentos e o material empregado apresentavam similaridade.
No bairro Araguaia, verificou-se redução de padrões quanto aos aspectos e
características acima enumerados. As casas são mais simples e mais da metade
contava com cinco cômodos, que se limitavam ao estar, refeições, três quartos,
cozinha e banheiro. As edificações são mais antigas, sendo que a maioria dispõe de
quintal com árvores frutíferas, mantendo a implantação original. A tipologia nesse
bairro ainda determina certo padrão de poder aquisitivo que remete àquele
estabelecido pela classe média brasileira.
4.2.2 Identidade dos estabelecidos com os conjuntos
A maioria dos entrevistados dos bairros nos entornos – 95% no Alvorada e 93% no
Araguaia, conforme a TAB. 17 – observou com pessimismo que a implantação dos
conjuntos os prejudicou, principalmente porque, para 41% dos entrevistados nos
dois bairros, houve grande desvalorização dos seus imóveis. Além disso, 13%
acreditavam que a chegada dos novos habitantes poderia comprometer a segurança
do local, ao passo que 12% se preocupavam com as drogas.
133
TABELA 17 Influências da implantação dos conjuntos segundo os moradores dos bairros
Alvor ada Araguaia Total Fator
absoluto % absoluto % absoluto %
Desvalorização dos imóveis 15 38 13 45 28 41
Diferença social 8 21 4 13 12 18
Droga 6 15 2 7 8 12
Segurança 3 8 6 21 9 13
Má conservação das casas dos conjuntos 2 5 - - 2 3
Chegou depois 3 8 2 7 5 7
Subtotal 37 95 27 93 64 94
Não afetou 2 5 2 7 4 6
Total de incidências 39 100 29 100 68 100
Fonte: Pesquisa direta (dados compilados pela autora), 2003.
De fato, a implantação dos conjuntos provocou a desvalorização dos imóveis, que
chegava, segundo entrevista com proprietários, a reduzir até 30% do valor inicial: “O
conjunto acabou com o bairro; o valor das casas desabou” (dona de casa, 55, 36G).
“Se minha casa valia R$ 60 mil, ela deve estar valendo agora uns R$ 40 mil. Mesmo
assim, muita gente não compra. Tudo por causa do conjunto” (dona de casa, 70,
43A).
Além disso, os recentes problemas de segurança, como tráfico, consumo de drogas
e assaltos eram atribuídos à implantação dos conjuntos, embora eles fossem
comuns em toda a cidade: “A segurança ficou comprometida; hoje em dia, visa muito
roubo e droga” (técnica laboratorial, 38, 48G,). “Só eu, fui roubada três vezes, depois
que esse povo mudou pra cá” (artesã, 29, 51G).
Os hábitos dos novos vizinhos, definidos pelos estabelecidos como demonstração
de diferença social, foram também apontados como um dos fatores negativos da
implantação dos conjuntos, pois eram diferentes dos vividos anteriormente pelos
moradores locais. Além do mais, essa diferença indicava o não-pertencimento dos
novos moradores ao grupo dos já estabelecidos. Mais uma vez cabe lembrar
Bourdieu (1997, p. 21), que afirma que o espaço de posições sociais se traduz num
espaço de tomadas de posição pela intermediação do espaço de disposições, que é
o do habitus . Essa diferenciação registra a luta das classificações, que é a luta pela
definição da identidade, e que indica que as propriedades podem ser estigmas e
134
emblemas da origem, com sinais que lhes são correlativos e que impõem a definição
legítima das divisões do mundo social (BOURDIEU, 1998b, p. 113).
Essa avaliação resulta de observações dos estabelecidos, ao julgarem desde o
tratamento higiênico dispensado à casa, até ao mau condicionamento do lixo, que
espalhava sujeira ao longo das ruas adjacentes aos assentamentos: “No princípio,
era cada palavrão! Agora está até melhorando. Tinha uma turma que roubava, que
era um caso sério. Piorou muito com a implantação do conjunto. O que a gente vê
de venda de maconha! Eles não respeitam ninguém” (aposentado, 70, 33A). “As
pessoas não conservam suas casas. É tudo muito bagunçado” (cozinheira, 53, 47G).
“Eles não me aborrecem. Chamo atenção deles pra não fumar maconha, não fazer
sexo na rua. O ambiente ficou carregado. Meia noite, uma hora, a gente escuta tiro
e, em seguida, o helicóptero da polícia” (aposentado, 69, 52G).
O espaço social encontra-se inscrito ao mesmo tempo nas estruturas espaciais e
nas estruturas mentais e ele é o produto da incorporação desses elementos. Por
esse motivo, o espaço social é um dos lugares onde o poder se afirma e se exerce
sob a forma mais sutil, a da violência simbólica como violência despercebida. Nesse
sentido, o espaço arquitetônico é o componente mais importante, pois ele se define
como ligação direta com o corpo e obtém dele a reverência e o respeito que nasce
do distanciamento, que são, sem dúvida, os componentes do simbolismo do poder
(BOURDIEU, 1998a, p. 163). Mais uma razão que indica a necessidade de levar o
projeto arquitetônico, tanto quanto possível, a captar as aspirações dos moradores,
para que ele traduza os elementos citados.
Ao mesmo tempo, famílias que se deslocaram para os bairros Alvorada e Araguaia,
após a implantação dos conjuntos, aceitaram melhor esses habitantes, pois os
conjuntos já existiam quando eles passaram a residir no local. Além do mais, esses
novos moradores dos bairros, por sua vez, não passaram pelo exaustivo processo
de ter que lutar contra a sua implantação: “Na época que eu mudei, incomodavam
muito, pedindo as coisas. De madrugada, sempre passava uma turma fazendo muita
algazarra. Agora, não amolam mais” (costureira, 45, 38A). “Não tive qualquer
problema com o pessoal. Pode ser que eu venha a ter” (professora, 39, 50G). “É
normal essa convivência. A gente tem que aceitar” (dona de casa, 43, 37A). Esses
135
novos moradores se adaptaram mais facilmente ao lugar e não tiveram problemas
de ajustamento com os outsiders .
4.2.3 Identidade dos outsiders com suas moradias
Nos conjuntos pesquisados, os entrevistados, os outsiders, criaram rapidamente a
identificação em diversos níveis com o espaço que eles habitam. A grande maioria,
que compreendia 92% no Goiânia e 97% no Araguaia, como indica a TAB. 18,
demonstrou que melhorou sua qualidade de vida quando mudou para os novos
assentamentos. Para 75% dessa população pesquisada, o fato de terem adquirido a
sua casa, a segunda pele, ou estar vivendo em melhores condições do que a
anterior, tornou-se prioritário para sua satisfação, o que comprova os argumentos de
Tuan (1983, p. 152), de que é ali onde se encontra carinho, onde as necessidades
fundamentais são consideradas. Cabe observar que essas informações foram
colhidas em período posterior às reformas e acréscimos, em atendimento às reais
necessidades de cada família assentada.
De fato, o sonho da casa própria se realizava; a propriedade significava a
tranqüilidade de não mais despender parte da renda familiar com aluguel. Isso
também permitiu adquirir a segurança de tornar-se proprietário de um imóvel e, em
alguns casos, garantir independência de parentes: “Saí de baixo da lona” (dona de
casa, 24, 3A). “Nós pagava aluguel e tinha barracão de madeirit. Agora, só pago
energia, telefone e água” (aposentada, 53, 16A). “Morar de favor é muito difícil”
(desempregada, 36, 24G).
TABELA 18 Fatores de melhoria da qualidade de vida dos moradores dos conjuntos
Conjunto Goiânia Conjunto Araguaia Total Fator
absoluto % absoluto % absoluto %
Casa própria 14 36 14 48 28 41
Melhor condição da casa 15 38 8 27 23 34
Melhor condição do bairro 7 18 6 22 13 19
Subtotal 36 92 28 97 64 94
Não melhorou 3 8 1 3 4 6
Total de incidências 39 100 29 100 68 100
Fonte: Pesquisa direta (dados compilados pela autora), 2003.
136
Essa identidade se manifestava também na nova residência, que lhes proporcionava
situação melhor do que aquela em que eles viviam anteriormente, especialmente
porque não oferecia mais riscos. Isso certamente garantia segurança para cada
morador e sua família. Além do mais, para essa população, o que mais importava
era ter acesso à infra-estrutura básica, elemento essencial para a sobrevivência
saudável, chegando até a se definir a relação topofílica com o espaço que os
abrigava: “Tem saneamento, esgoto, água e luz. Até de saúde os meninos
melhorou!” (dona de casa, 59, 29G). “Meus filhos têm banho, chuveiro, água
encanada, escola perto e quarto separado” (dona de casa, 40, 31G). “Só de nós ter
uma casa que tem laje...” (pedreiro desempregado, 53, 39G). “Eu sofria muito;
carregava água na cabeça; não tinha luz, não tinha tanque” (dona de casa, 28, 9G).
“Eu tô no céu. Tenho água, luz, rede de esgoto, ônibus; posso levar minha filha ao
médico” (faxineira, 47, 5G). “Agora estou em outro ambiente; mudou minha situação
de vida: tem escola perto” (pedreiro, 28, 22A). “Onde nós mora hoje, a casa é maior
do que a de antes” (salgadeira, 32, 12G). Essa condição garantia, ainda, o acesso a
outros bens como escola e saúde. Cabe aqui uma observação a respeito da
importância da infra-estrutura na questão da saúde pública: nos investimentos
destinados ao saneamento básico, para cada R$ 1,00 gasto em infra-estrutura
correspondem R$ 4,00 destinados à saúde.
Houve manifestações de completa identidade com a moradia, em que se expressava
o encantamento de ser experimentada uma nova e melhor situação, diferente
daquela anterior, vivida na barraca de lona do acampamento: “Nossa, meu Deus, eu
tô no céu. Nunca perdi a fé de ganhar uma casa” (faxineira, 32, 14G). “Ganhei na
loteria” (dona de casa, 31, 21A). “Aqui é muito sossegado. Os meninos brincam
tranqüilos” (catadora, 44, 15A).
O sentimento de pertencimento a um grupo definido tranqüilizava os moradores dos
conjuntos e os fazia reconhecer seus direitos de cidadãos, especialmente quando se
tratava de situações onde havia riscos de desabamentos e inundações: “Só da gente
deitar na cama e dormir direito já é uma melhora” (doméstica, 52, 21G). “Melhorou a
condição de vida de muitas pessoas que viviam sofrendo, principalmente na época
da chuva” (dona de casa, 37, 8G). “Aqui é mais tranqüilo; não tem risco de vida”
(desempregada, 36, 2A). “A gente tem sossego quando chove” (dona de casa, 52,
35G).
137
Raras eram as habitações que possuíam no quintal um jardim ou uma horta e
quando isso acontecia, era motivo de orgulho para o proprietário: “De manhã cedo,
antes de fazer café, eu vou ver minhas plantas. Isso me alegra” (doméstica, 43,
18A).
Poucos residentes entrevistados nos conjuntos, 8% no Goiânia e 3% no Araguaia,
segundo a TAB. 18, afirmaram que não houve melhoria da sua qualidade de vida
quando se mudaram para lá, alegando que as casas em que moravam
anteriormente eram mais amplas e apresentavam condições de habitabilidade mais
adequadas: “As coisas em vez de melhorar, piorou. Minha casa era de tijolo, maior
que essa; tinha dois quarto, garage, banheiro, sala grande e varanda, num terreno
que dava mais de 700 metro. Eu podia morar e trabalhar lá” (dono do ferro-velho, 64,
32G). Cabe observar que esse morador não se sentia ameaçado pela proximidade
de um córrego, que inundava toda a região na época de chuva, arriscando a vida da
sua família e dos habitantes nas proximidades . Para ele, o mais importante era o
tamanho da casa e o espaço livre que a circundava, onde ele pudesse praticar suas
atividades.
4.2.4 Identidade dos outsiders com os conjuntos
Parte significativa dos outsiders, que a TAB. 19 indicou como 75% do Goiânia e 72%
do Araguaia, se identificava com os conjuntos, isto é, salientava os aspectos
positivos do local e afirmava que o conjunto oferecia qualidade adequada ao seu
modo de vida. Por outro lado, 26% dos entrevistados nos dois conjuntos não se
identificaram com qualquer aspecto positivo desses lugares. Foram detectados dois
tipos diferentes de moradores: os que se ajustaram imediatamente aos conjuntos e
aqueles que se encontravam descontentes com variados aspectos dos mesmos.
A maior incidência das respostas nos dois conjuntos dava ênfase positiva à amizade
e ao relacionamento entre as pessoas como indicado por 28% dos outsiders, pois ali
eles estabeleciam a relação de pertencimento ao meio em que viviam: “As pessoas
são ótimas. É todo mundo conhecido. Não tem diferença” (doméstica, 47, 27G).
“Gosto muito do povo. Os vizinhos são muito bons” (dona de casa, 60, 23G). “Gosto
muito das amizades. É importante todo mundo ligado com todo mundo” (dona de
138
casa, 34, 27A). “Gosto muito da vizinhança. Quando preciso de socorro, eles sempre
me ajudam” (dona de casa, 28, 9G). “A gente não fica sozinha perto dos vizinhos”
(dona de casa, 28, 28A).
TABELA 19 Fatores positivos dos conjuntos considerados por seus moradores
Conjunto Goiânia Conjunto Araguaia Total Fator
absoluto % absoluto % absoluto %
Relacionamento com as pessoas 9 23 10 35 19 28
Infra-estrutura 8 21 2 7 10 15
A casa 6 15 3 10 9 13
Segurança 3 8 5 17 8 12
Tudo 3 8 1 3 4 6
Subtotal 29 75 21 72 50 74
Não gosta de nada 9 23 6 21 15 22
Não sabe 1 2 2 7 3 4
Subtotal 10 25 8 28 18 26
Total de incidências 39 100 29 100 68 100
Fonte: Pesquisa direta (dados compilados pela autora), 2003.
Outro aspecto valorizado pelos entrevistados era a infra-estrutura local, pois ela
facilitava a vida de todos: “Tudo aqui é bom demais” (faxineira, 47, 5G). “Aqui tem
ônibus toda hora; a gente não precisa ficar muito tempo no ponto” (dona de casa,
44, 7G).
Outra manifestação indicava uma relação adequada com o conjunto, mas não com o
bairro: “Do conjunto eu gosto; não gosto é do lugar. Não tem é divertimento pras
crianças” (desempregada, distribuidora de droga, 34, 11G). Embora sua
manifestação indicasse uma deficiência de equipamentos do próprio conjunto, para
essa moradora, o olhar se referia ao bairro.
Em contrapartida, 22% dos residentes nos dois conjuntos afirmaram que nada os
atraía ali e alguns dentre eles até manifestaram extrema repulsa pelo local: “Aqui
não tem nada pra se gostar. Se eu pudesse mudar o mais rápido possível, eu
mudava” (dono do ferro-velho, 64, 32G).”Quase não saio; só com precisão. Fico
isolada. Vizinho não é amigo não” (dona de casa, 43, 33G). “Não tem nada que eu
139
gosto. Tenho vontade de tirar a minha mãe daqui e jogar uma bomba dentro do
conjunto” (dona de casa, 24, 3A).
Por outro lado, muitos aspectos dos conjuntos foram considerados negativos pelos
seus moradores, especialmente os que diziam respeito à droga, presente com
freqüência de 38% no Goiânia e de 59% no Araguaia, de acordo com a TAB. 20.
TABELA 20 Fatores negativos dos conjuntos considerados por seus moradores
Conjunto Goiânia Conjunto Araguaia Total Fator
absoluto % absoluto % absoluto %
Droga 15 38 17 59 32 47
Relacionamento com as pessoas 9 23 3 10 12 18
Lixo 6 15 2 7 8 12
Insegurança 1 3 1 3 2 3
Traçado do conjunto 1 3 - - 1 1
Aceitação pelos moradores do bairro - - 1 3 1 1
Subtotal 32 82 24 82 56 82
Não tem problema 6 15 1 3 7 10
Não sabe 1 3 4 15 5 8
Subtotal 7 18 5 18 12 18
Total de incidências 39 100 29 100 68 100
Fonte: Pesquisa direta (dados compilados pela autora), 2003.
Mesmo tendo conhecimento dos riscos que a droga causava, a maioria não
acreditava que houvesse uma solução a curto ou médio prazo para o problema. Eles
se demonstravam incrédulos quanto a qualquer ação do Poder Público; a
intervenção das autoridades era interpretada sem crédito ou até mesmo com
descaso por parte de alguns moradores: “É muito difícil; é muita malandragem. Nem
a polícia está dando conta. Ultimamente, até a polícia está entrando aqui, mas não
resolve não” (faxineira, 47, 5G). “Tem muita gente cangueta.14 Os homens (polícia)
dão batida direto, mas não resolve não” (salgadeira, 43, 6G). “Tem gente de fora que
está vindo pra cá e vem polícia direto. Tem gente que não deixa nem agente de
14 O termo cangueta foi utilizado por essa moradora, no sentido de alcagüete para identificar pessoas que denunciavam ações criminosas para a polícia. Ao mesmo tempo, homens significava policiais, nem sempre bem-vindos na região, pois não resolviam os problemas da marginalidade de maneira eficaz.
140
saúde passar. Denúncia não pode fazer. Precisa de policiamento constante; não é
só vir, pegar quem está aqui e ir embora” (faxineira, 22, 6A).
A pesquisa registrou uma diversidade considerável de motivos de
descontentamento. A falta de entrosamento entre os moradores dos conjuntos
também passou a ser motivo que dificultava a identidade com o local de 18% dos
outsiders de ambos os conjuntos, embora o relacionamento entre eles fosse
considerado como positivo por 28% dos entrevistados, de acordo com a TAB. 19.
Esse fato resultou, muitas vezes, da forte vinculação com o antigo lugar de origem:
“Não gosto daqui. Gosto é de Venda Nova” – bairro localizado no setor noroeste da
capital (aposentada, 53, 16A). De fato, as relações afetivas que os indivíduos
mantêm no seu cotidiano com o lugar vão construindo a sua história de vida, e torna-
se difícil a sua desvinculação, até que novos motivos o atraiam para o novo meio.
A diversidade entre as opiniões foi retratada também em relação à segurança, que
foi avaliada por 3% dos moradores dos dois conjuntos como um dos fatores que
comprometiam a qualidade de vida do bairro, ao passo que 12% afirmaram que os
conjuntos são lugares seguros para se viver, como demonstram as tabelas 19 e 20.
A sujeira e o lixo também foram indicados como motivo de incômodo para 15% dos
habitantes do Goiânia e para 7% do Araguaia, principalmente no que se referia aos
horários de coleta, que acontecia nas manhãs de terça, quinta e sábado: “A única
coisa chata aqui é o lixo jogado na rua. Não precisava; bastava cada um colocar o
seu nos dias certos da coleta” (desempregado, 24, 1G). “Tem muito lixo e muita
sujeira. Eu faço a minha parte” (doméstica, 52, 21G). “O lixo é um problema. Cada
morador tinha que se organizar” (corretora de imóveis e tratadora de animais, 36,
9A).
Como exemplo, no Araguaia, foi instalada uma lixeira comunitária na esquina das
ruas Amparo da Serra e Capim Branco. Ela foi destruída depois de pouco tempo de
uso. Manifestações isoladas da comunidade reverteram o quadro, quando um novo
morador a recuperou e incentivou a população a zelar pela manutenção do
equipamento, que passou a ser utilizado adequadamente pela população. Atitudes
isoladas dos moradores permitem a construção do hábito, que poderia ser
incentivado pelos órgãos no processo de pós-ocupação.
141
Um fator agravante de situação semelhante referiu -se a um morador do conjunto
Goiânia que apropriou todo o seu lote, invadiu a rua de pedestres adjacente a ele,
anexando ao terreno o ferro-velho de sua propriedade. Tornou-se evidente que esse
ferro-velho se apresentava como um lugar problemático no conjunto, pois esse
espaço passou a ser considerado ameaçador para a saúde de todos: várias latas e
recipientes ficavam expostos em céu aberto, ocasionando o acúmulo de água, que
poderia abrigar larvas de insetos provocadores de várias doenças. Por sua vez, a
ação do Poder Público se limitava à fiscalização: agentes de saúde iam até o local
constantemente, tentavam aplicar multas e ameaçavam despejo, mas não houve
solução através da intervenção dos órgãos competentes. Conforme depoimento de
vizinhos, dois dos três filhos do proprietário foram hospitalizados em condições
precárias de saúde, como conseqüência da sujeira do local. Daí ter surgido o
comentário: “O lixo do ferro-velho deve ter rato de todo tamanho. Só acaba se ele (o
proprietário) mudar daqui” (doméstica, 34, 37G).
O proprietário, por sua vez, alegava a impossibilidade de se mudar, já que era a
maneira de ele trabalhar e não levava em conta os direitos do restante da
comunidade: “Eles discrimina a gente porque tem ferro -velho. Na cidade pequena, o
prefeito até elogia o nosso trabalho” (dono do ferro-velho, 64, 32G). O enfoque
particular passava a dominar e a se impor sobre o coletivo e, por mais que a
comunidade estivesse contrária e reclamasse verbalmente, ninguém se manifestava
oficialmente contra essa atitude, pois esse morador atendia aos vizinhos e
transportava os necessitados em casos de urgência. A ação crítica detectada pela
pesquisa demonstra que, apesar de tudo, permaneciam, no interior do conjunto, os
interesses personalizados em face dos interesses coletivos.
Convém lembrar aqui o pensamento de Weber (1999, p. 175), ao estudar as classes
sociais na ordem econômica e no exercício do poder. E esse poder sendo, segundo
o autor, “a probabilidade de uma pessoa impor, numa ação social, a vontade própria,
mesmo contra a oposição de outros participantes desta”. Interessante é que não se
busca o poder para fins de enriquecimento, mas sim, no momento em que ele está
condicionado pela honra social (pelo prestígio) que traz consigo.
142
FIGURA 34 Vista do ferro -velho do conjunto Goiânia Fonte: Acervo particular da autora.
FIGURA 35 Vista de espaço invadido no conjunto Goiânia Fonte: Acervo particular da autora.
O fato de o espaço público estar sendo apropriado em caráter privado limitou ainda
mais o uso das áreas livres pelos moradores. Observou-se que vários desses
espaços destinados a atividades comuns foram apropriados pelos vizinhos de lotes
adjacentes a eles, que os fizeram parte integrante da sua propriedade. Quando os
143
demais eram abordados a respeito do fato, mostravam indignação, mas não
tomavam qualquer atitude formal, junto com a sua comunidade. Isso gerava,
obviamente, mal-estar entre os habitantes dos conjuntos, comprometendo a
harmonia desejada na sua convivência. Todavia, reações contra esse tipo de
comportamento sempre aconteceram, com poucas denúncias efetivas junto à
Prefeitura Municipal, tanto por parte de moradores dos conjuntos como por
proprietários de residências nas proximidades, razão pela qual os problemas
continuaram a existir.
Aliás, pôde-se observar que não havia uma clara liderança dentre os moradores dos
conjuntos que permitisse criar alguma representatividade na tomada de decisões por
algum grupo de moradores. As reclamações geralmente eram isoladas, sem
participação significativa dos habitantes. A solução para tais problemas não chegava
a um resultado satisfatório, pois os moradores pareciam incrédulos quanto a
qualquer ação do Poder Público, apesar de terem tentado sanar o problema na
administração regional da Prefeitura. O seguinte depoimento ilustra bem a situação:
“Não foi por falta de chamar atenção ou fazer reclamação nas Regionais que a gente
deixou de tentar, mas não conseguimos resposta” (pedreiro desempregado, 53,
39G).
Destaque-se que, nesse sentido, a URBEL não realizou qualquer intervenção no
processo de pós -ocupação dos moradores, a partir do momento da sua mudança. E
a ação na política habitacional deveria considerar, com muita atenção, a instalação
dos desabrigados e a sua adaptação aos moldes da nova situação, avaliando até
que ponto sua atuação levava a um resultado eficaz. Os moradores assim fizeram a
sua avaliação: “A Prefeitura e a URBEL abandonaram o conjunto. Eu fiz o muro com
o meu vizinho. A URBEL era coordenadora só no acampamento” (dono do ferro-
velho, 64, 32G). Evidencia -se nesse caso, mais uma vez, a ausência de uma
liderança que demandasse do governo a implantar melhoramentos e correções dos
problemas . Mesmo considerando que conquistas dessa natureza devem ser
conseguidas, principalmente por parte da população, não se pode deixar de julgar
inaceitável a ausência da URBEL com a assistência técnico-jurídica que a lei impõe.
Pode-se observar que, mesmo com novas diretrizes políticas que procuram atender
às especificidades locais, os primeiros projetos dos conjuntos habitacionais da
144
URBEL, construídos no processo de municipalização, ainda se mantinham distantes
do que se poderia considerar ideal ou até mesmo adequado para essas famílias de
baixa renda. Para tanto, seria importante considerar o atendimento específico para
essa camada da população, em que ela também pudesse participar da elaboração
do projeto, de modo a atender à maioria das suas necessidades.
A não-identificação dos estabelecidos com os conjuntos passou a ser um dos fatores
que mais demonstraram o processo de indisposição entre eles, ao retratar valores
de classes distintas, mas que necessitavam de estabelecer alguma aproximação e
convivência entre os dois grupos.
A história do lugar confirmou que a produção do espaço vai além de construí-lo
diretamente através de desenhos urbanos e de dar a eles novas formas de uso.
Essa ação deve, também, determinar ordenações racionais do território, que
implicam no melhor desenvolvimento da política urbana, ao considerar os
mecanismos articulados na organização do território, mas que também poderão
abrigar as práticas sociais exercidas por pessoas com valores que dão identidade a
esse lugar.
Obedecida a obrigação legal, os conjuntos poderão oferecer as funções sociais
urbanas que, pelo visto, ainda não ocorreram nesse setor. Seria necessário um
acompanhamento constante, por parte dos técnicos da URBEL, no período de pós -
ocupação desses conjuntos, para que se pudesse construir uma convivência
razoável.
145
5 A VIDA COTIDIANA E AS PRÁTICAS ESPACIAIS
Esse capítulo analisa a apropriação do espaço pelos estabelecidos e pelos outsiders
na sua vida cotidiana. A percepção da relação que eles passaram a manter com o
lugar se definiu através das citações dos pontos de referência locais e dos
deslocamentos no seu dia-a-dia, em que eles retrataram o seu espaço vivido. Esses
deslocamentos proporcionaram oportunidades de encontros entre eles, que
certamente influenciaram nas suas relações sociais, principalmente após a
construção dos conjuntos.
O lugar continua sendo considerado de grande importância no estudo do cotidiano e,
ao ser analisado no presente trabalho, vai retratar o significado das relações que as
comunidades dos conjuntos e dos bairros passaram a estabelecer com ele, no seu
dia-a-dia. O espaço físico ainda mantém singulares referências para os moradores,
que irão valorizá-lo, de acordo com suas vivências.
Para entender como acontece a apropriação do espaço, deve-se considerar que as
práticas espaciais estão diretamente ligadas a modelos que oferecem sentidos a
essas relações com o cotidiano. O espaço geométrico dos urbanistas e arquitetos,
por exemplo, se apresenta com sentido próprio, construído pelos gramáticos e pelos
lingüistas, com nível normal e normativo, que permite avaliar os desvios e variações
do figurado (LÉFÈBVRE, 1991, p. 180). Mas esse sentido deve expressar a
identidade manifesta dos significados de determinado lugar, tanto para o indivíduo
isoladamente como para a coletividade.
As relações entre as representações e as práticas na cidade demonstram suas
significações através dos modos de morar, dos modelos culturais adotados, do
comportamento dos grupos e da maneira como se transmitem ou se adquirem os
hábitos. As representações se prestam para justificar socialmente essas práticas,
para valorizar os lugares na combinação dos espaços com suas referências e para
analisar o que diz respeito à memória da cidade (RONCAYOLO, 1997, p. 177).
Para Léfèbvre (1991, p. 180), a vida cotidiana oculta o misterioso e o admirável que
escapam aos sistemas elaborados. Para ele, é no cotidiano que as pessoas ganham
146
ou deixam de ganhar sua vida e é onde se mostram os conflitos entre o racional e o
irracional na sociedade. O cotidiano determina o lugar em que surgem os problemas
concretos da produção, ou seja, como é produzida a existência social dos seres
humanos, com as transições da escassez para a abundância e da apreciação para a
depreciação. Esse lugar, que aparentemente é de equilíbrio, é também o lugar em
que se manifestam desequilíbrios ameaçadores.
Para Certeau (1998, p. 202), o lugar é o espaço praticado; conceito apresentado por
Santos, definido como um conjunto de objetos e de relações em torno desses
objetos. Nesse sentido, é na prática social que o processo espacial se realiza, pois
ali aparecem as oportunidades de encontro, com trocas de experiências do estar
junto em um mesmo lugar.
As relações dos indivíduos com o espaço e o lugar permitem tomar conhecimento de
um mundo de experiências que retratam os valores e símbolos de cada sociedade.
Para Tuan (1983), o que começa como espaço indiferenciado transforma-se em
lugar, à medida que o conhecemos mais profundamente e o dotamos de valor. Esse
lugar dotado de valor adquire significado na cotidianidade, embora seja necessário
quebrar os preconceitos, pois, segundo Heller ([19--]), quem não se liberta de seus
preconceitos artísticos, científicos e políticos, acaba fracassando na sua convivência
com o próximo, com o vizinho.
Também Certeau (1998, p. 41-202) avalia que espaço e lugar são diferenciados
através da sua apropriação no cotidiano. Esse autor afirma que a apreensão do
espaço, por parte da população, se dá através das maneiras de fazer, que
constituem as práticas pelas quais os usuários reapropriam o espaço organizado
pelas técnicas da produção sociocultural. Os espaços que estão se delineando no
ambiente dos conjuntos apresentam características e conformações que, em geral,
confirmam o autor. Essa configuração pode ser verificada com a análise dos dados
da pesquisa. Nesse sentido, o lugar é reinventado pelo usuário, que retrata ali a
identidade construída continuamente com esse espaço. O projeto arquitetônico
desses conjuntos tratou com rigor a definição e o tratamento do espaço; porém
descuidou-se da consideração das variedades individuais que compunham as
comunidades. Mais uma vez, verifica-se a necessidade de maiores cuidados quanto
à relação projeto-indivíduo-sociedade.
147
Ao mesmo tempo, esse autor identifica as prá ticas sociais na vida cotidiana e afirma
que a sociedade se forma a partir de certas práticas exorbitadas, organizadoras de
instituições normativas e, além disso, de outras práticas, sem-número, consideradas
como se fossem menores . Essas, embora não sejam organizadoras de um discurso,
conservam as primícias ou os restos de hipóteses diferentes para essa sociedade ou
para outras, organizam, ao mesmo tempo, espaços e linguagens relacionados ao
poder (CERTEAU, 1998, p. 115).
Para dar sentido às práticas cotidianas ligadas ao poder, o autor lança mão dos
conceitos de tática e de estratégia. No que diz respeito às táticas, ele assegura que
elas apontam para uma hábil utilização das ocasiões que apresentam e dos jogos
praticados na guerra cotidiana, pois elas são
[...] procedimentos que valem pela pertinência que dão ao tempo – às circunstâncias que o instante preciso de uma intervenção transforma em situação favorável, à rapidez dos movimentos que mudam a organização do espaço e às relações entre momentos sucessivos de um golpe (CERTEAU, 1998, p. 99-102).
Por outro lado, as estratégias demandam
[...] um lugar de poder, em que se elaboram lugares capazes de articular um conjunto de lugares físicos onde as forças se distribuem [...] A estratégia postula um lugar suscetível de ser circunscrito como algo próprio e ser a base de onde se podem gerir as reações com uma exterioridade de alvos ou ameaças (CERTEAU, 1998, p. 99-102).
Para Léfèbvre (1991, p. 27-30), é no cotidiano que se ganha ou se deixa de ganhar
a vida, num duplo sentido: não sobreviver ou sobreviver, apenas sobreviver ou viver
plenamente. E acrescenta: “é no cotidiano que se tem prazer ou se sofre. Aqui e
agora”.
O cotidiano apresenta vários significados, dentre eles, o econômico, o psicológico, o
sociológico, objetos e domínios particulares atingíveis por métodos e diligências
específicas. É o alimento, a veste, os móveis, a casa, a habitação, a vizinhança, os
arredores. Para conceber o cotidiano, deve -se viver nele e, em seguida, rejeitá-lo e
tomar uma distância crítica, pois esse é o melhor caminho para auxiliar na
compreensão dos fatos. Nesse sentido, a análise do cotidiano poderá revelar
148
analogias, ao passo que o seu conhecimento compreenderá uma crítica ideológica e
uma autocrítica perpétua (LÉFÈBVRE, 1991, p. 28-34-82).
No presente trabalho, na busca da identificação de pontos de referência, optou-se
por solicitar aos entrevistados a enumeração daqueles que eles mais apreciavam, a
ponto de desejar registrá-los em fotos. Logicamente, essa avaliação retrata os
vínculos pessoais com o lugar, vividos na sua cotidianidade. O que se pretende com
a pesquisa é verificar como o espaço é valorizado pelas comunidades dos
estabelecidos e dos outsiders e identificar as semelhanças e diferenças no seu olhar
sobre cada lugar.
As práticas espaciais, por outro lado, serão determinadas pelo exame dos
deslocamentos das comunidades nesse espaço físico e pela definição dos pontos de
encontro mais freqüentes dessas populações no seu cotidiano. O mapeamento vai
permitir a identificação desses lugares e mostrar como são apropriados nas
respectivas escalas, quando se trata dos conjuntos e dos bairros de seus
respectivos entornos, visto que a valorização da moradia pode demonstrar o seu
valor no nível mais particular.
5.1 O cotidiano nas comunidades
Para avaliar o cotidiano vivido pelas comunidades dos estabelecidos e dos
outsiders, recorremos a Milton Santos (1997b, p. 252), que identifica cada lugar com
o mundo, embora lhe seja atribuída singularidade. Esse autor indica, ainda, a
necessidade de interpretar o significado desses lugares, que se dará através da
avaliação do cotidiano.
Além do mais, o lugar é o cotidiano compartilhado por pessoas e instituições, que
constituem a base da vida em comum, na cooperação e no conflito. Assim, o lugar é
[...] o quadro de uma referência pragmática ao mundo, do qual lhe vêm solicitações e ordens precisas de ações condicionadas, mas é também o teatro insubstituível das paixões humanas, responsáveis, através da ação comunicativa, pelas mais diversas manifestações da espontaneidade e da criatividade (SANTOS, 1997b, p. 258).
À medida que o homem vivencia o lugar, ele participa da vida cotidiana e revela
aspectos da sua individualidade e da sua personalidade. Isso nos faz lembrar Heller
149
([19--], p. 17) quando ela afirma que a vida cotidiana é a vida do homem inteiro.
Segundo essa pesquisadora, as partes orgânicas da vida cotidiana constam da
organização do trabalho e da vida privada, dos lazeres e do descanso, da atividade
social sistematizada, do intercâmbio e da purificação.
Na verdade, esse espaço repleto de significado reflete o imaginário social que,
segundo Léfèbvre (1991, p. 95), é distinto da imaginação individual e também dos
grandes simbolismos. Ele se expressa muito bem na imprensa feminina, onde está
presente a retórica, na qual os objetos são dotados de uma segunda existência, e os
códigos que ritualizam e tornam práticas as mensagens, programando o cotidiano.
O cotidiano dos estabelecidos e dos outsiders foi retratado na pesquisa através das
referências dos bairros adjacentes indicadas como significativas e do deslocamento
dos moradores e seus respectivos percursos nas suas atividades do dia-a-dia. A
pesquisa apresentou identidade nos mais diferentes graus, com variedade de
circunstâncias de lugares descritos pelos autores citados.
Assim, no que diz respeito à apropriação dos conjuntos e dos bairros pelos
moradores, pode-se observar que esses espaços passaram a ser vivenciados, tendo
em vista experiências anteriores da população, retratando o seu modo de vida, seus
hábitos e a identidade que eles mantêm com o lugar. Os percursos para o trabalho,
as compras, o lazer são providos de significados e contam a história de cada
personagem com o local. A partir do momento que as pessoas se apropriam desses
espaços, no seu dia-a-dia, manifestam-se os hábitos, que passam a ter significado
simbólico construído pela cotidianidade no lugar; que é o espaço de ser (SILVA,
1988, p. 127).
5.1.1 Os pontos de referência
Léfèbvre (1969, p. 63) avalia que a cidade tem uma dimensão simbólica, em que os
monumentos, como também os vazios, praças e avenidas representam o cosmos, o
mundo, a sociedade, ou simplesmente, o Estado. A cidade tem uma dimensão
paradigmática, que mostra as oposições e que se apresenta como um subtema
privilegiado, porque é capaz de refletir, de expor e de se oferecer como um mundo,
como uma totalidade única, na ilusão do imediato e do vivido.
150
Para a avaliação dos espaços significativos no meio urbano, retomando a referência
de Lynch (1990, p. 59), foram trabalhados os cinco elementos de identificação dos
indivíduos na cidade: os cruzamentos, as vias, os limites, os bairros e os elementos
marcantes, por nós designados como pontos de referência. Na pesquisa, tomamos
como fator de análise os pontos de referência que pudessem ser identificados pelos
moradores, pois, conforme afirma esse autor, esses pontos marcantes determinam
um objeto físico que parece adquirir um significado crescente à medida que os
deslocamentos vão se tornando cada vez mais familiares.
O cineasta Wim Wenders (1994, p. 185) comenta, observando os aborígines, que
esses povos acreditavam na sua história, que tinham convicção de que pertenciam à
sua terra e que se sentiam responsáveis por ela. Essa relação se dava também com
as pessoas nas cidades, que tinham a sensação de fazer parte do lugar, de estarem
seguras ali. Além do mais, uma rua ou a fachada de uma casa, uma montanha ou
uma ponte ou um rio ou o que quer que seja, são mais que um último plano, pois
eles também possuem uma história, uma personalidade, uma identidade que deve
ser levada a sério. Eles influenciam os caracteres humanos que vivem nesse último
plano, criam uma atmosfera, uma noção de tempo e uma certa emoção.
Os lugares com os quais os entrevistados apresentaram maior identificação se
estendiam também aos bairros de entorno e diziam respeito ao seu cotidiano, pois
eles viviam ali relações espaciais que se retratavam nos deslocamentos e nos
encontros com a vizinhança. Conforme salienta Lynch (1990, p. 59), esses pontos de
referência podem se situar em uma distância tal que podem desempenhar a função
constante de símbolo de direção, sendo que o seu uso implica na distinção e na
evidência em relação a uma quantidade enorme de outros elementos. Nesse
sentido, a cidade torna-se habitável, a partir do momento em que ela dá lugar a um
vazio; ela permite que se faça o jogo num sistema de lugares definidos e autoriza a
produção de um espaço de jogo num tabuleiro analítico e classificador de
identidades (CERTEAU, 1998, p. 186).
As vias, os cruzamentos, os nós e os limites dos conjuntos foram percebidos
rapidamente pela população, ao passo que a identificação dos limites dos bairros
tornou-se mais difícil, pela sua dimensão e pela falta de conhecimento desse limite
por parte da população pesquisada. Os pontos de referência foram bem demarcados
151
pelos entrevistados, quando questionados de onde eles tirariam uma foto do bairro
que pudesse expressar um lugar significativo para eles. Esses lugares eram
apresentados como uma relação topofílica, por grande parte dos entrevistados,
conceituada por Lynch (1990, p. 5-107) como o elo afetivo entre a pessoa e o lugar
ou o ambiente físico, ou todos os laços afetivos dos seres humanos com o ambiente
material.
5.1.1.1 Os pontos de referência para os estabelecidos
Os elementos marcantes foram avaliados através das suas características
estruturais e funcionais, considerando que a orientação dos entrevistados nos
bairros Alvorada e Araguaia estava ligada à proximidade e à experiência vivida
nesses locais. Ao mesmo tempo, a identidade da população com o lugar,
apresentada através desses pontos de referência, foi comum para a maioria dos
habitantes questionados.
As manifestações dos estabelecidos retrataram a sua identificação com o local
através do uso territorial no cotidiano, e os pontos de referência eram ou lugares
onde as pessoas se encontravam, ou então, aqueles aos quais foram atribuídos
valores singulares, em que se estabeleceu com eles uma relação topofílica: “Eu ia
fotografar a matinha, que é essa área antiga da Fayal. É uma área verde muito
bonita e dá pra ver daqui de casa” (costureira, 59, 49G). “Valia a pena registrar as
casas novas do bairro; elas são muito bonitas, parecem chalés” (cozinheira, 53,
47G). Essas relações eram uma tradução do afeto pelo lugar, referida por Lynch, no
bairro Alvorada.
A participação nas atividades religiosas contribuiu para que 21% do grupo
pesquisado pudessem registrar a igreja como um importante ponto de referência do
Araguaia, como indica a TAB. 21: “Eu ia tirar a foto da igreja Santa Mônica; eu adoro
a igreja e vou lá sempre!” (dona de casa, 62, 35A). “Eu tiraria uma foto da igreja
Santa Mônica. É um pedaço do meu coração” (dona de casa, 70, 43A). De fato, a
prática religiosa permite a criação de hábitos que consolidam a aproximação das
pessoas.
152
FIGURA 36 Vista da Igreja Santa Mônica Fonte: Acervo particular da autora.
Conforme a TAB. 21, 26% dos entrevistados no Alvorada e 37% no Araguaia
gostariam de tirar uma foto aérea dos bairros para expressá-los como ponto de
referência. As respostas direcionavam para que eles fossem percebidos
integralmente, representando a evolução do comércio e da vizinhança: “Eu tiraria
uma foto do bairro para indicar a valorização do lugar onde a gente mora. Isso vem
com a perspectiva de que uma coisa boa aconteceu e que o bairro vai se
transformando” (almoxarife, 39, 44G). “Eu tirava das ruas de cima, porque tem umas
casas bonitas” (artesã, 29, 51G). “Eu acho que a avenida seria um bom lugar pra
fotografar, porque ela tem de tudo, não é mesmo?” (aposentado, 61, 31A). O
progresso era visto pelos entrevistados como indício favorável à evolução dos
bairros, chegando até a demonstrar indícios de especulação imobiliária.
Em contrapartida, surgiram opiniões de estabelecidos que registraram sua
indignação e indicaram essa mesma foto aérea para mostrar que os bairros
adquiriram uma condição pior, após a construção dos conjuntos. Aliás, o conjunto
Goiânia foi considerado, para 20% dos entrevistados no Alvorada, o ponto de
referência local, sob a justificativa de que ele se tornava ameaçador para a região,
como indica a TAB. 21. As características desse assentamento eram relacionadas à
sujeira, à droga, à insegurança e à feiúra. A diferença entre os dois grupos se
153
evidenciava e passou a ser expressa com determinação, a partir do momento em
que se ressaltavam os aspectos negativos dos conjuntos: “Eu tiraria uma foto aérea
do bairro, pois seria um apanhado perfeito da comunidade e também registraria as
favelas que temos aqui” (aposentado, 58, 54G). “Claro que eu tiraria a foto do
conjunto! A gente ficou cercada. De um lado, a favela São Jorge; do outro, o
conjunto, com as casinhas com infra-estrutura péssima. Agora não tem mais jeito.
Conseguiram desvalorizar o bairro e o lugar que a gente mora” (dona de casa, 37,
45G). A maioria dos ressentidos se encontrava nas áreas em que a URBEL teve
atuação direta, reforçando a necessidade de retomada da solução inacabada.
TABELA 21 Pontos de referência nos bairros segundo seus moradores
Alvorada Araguaia Referência
absoluto % absoluto %
O bairro 4 26 5 37
Mata próxima 3 20 - -
Casas da vizinhança 3 20 1 7
O conjunto 3 20 1 7
Praça rotor 1 7 - -
Igreja - - 3 21
Praça da Vila do Minério - - 1 7
Cristo Redentor - - 1 7
Própria casa - - 1 7
Subtotal 14 93 13 93
Sem referência 1 7 1 7
Total de incidências 15 100 14 100
Fonte: Pesquisa direta (dados compilados pela autora), 2003.
Ao mesmo tempo, observa-se que somente 7% dos habitantes do bairro Araguaia
admitiram que o conjunto Araguaia poderia ser o seu ponto negativo de referência
no bairro. Tal comportamento se justificou pela presença, no local, de equipamentos
significativos e pelo fato de o conjunto ser percebido de modo menos agressivo por
essa população.
Houve indicação de que não existia qualquer lugar que pudesse ser significativo nos
bairros, para 7% dos entrevistados nos dois bairros, segundo a TAB. 21: “Não posso
tirar foto de nenhum lugar, porque não gosto de nada daqui” (aposentado, 69, 52G).
154
“Por aqui não tem nem uma praça, nem nada que atraia a gente” (vendedora, 47,
36A). A ausência de equipamentos na região dificultou a possibilidade de vinculação
afetiva dos moradores com o lugar.
5.1.1.2 Os pontos de referência para os outsiders
No que diz respeito aos outsiders, quando eles foram questionados sobre registros
fotográficos que mereceriam suas preferências, as respostas obtidas indicaram a
escala de valores atribuída aos pontos de referência.
Para os habitantes dos conjuntos Goiânia e Araguaia, a história do lugar se
confundia com o cotidiano deles. Assim, o cotidiano passou a representar também o
uso territorial, que indicava a sua identificação com os respectivos bairros, e as
relações sociais ali estabelecidas: “Se eu fosse tirar uma foto do bairro, tirava da
Igreja Universal, porque é um lugar que eu vou sempre, me sinto bem e é onde
meus amigos estão” (estudante, 18, 18G). “Eu fotografava a praça da Febem, pois
eu conheço lá tem muitos anos” (catadora, 63, 7A). “Eu tirava uma fotografia do Luiz
de Bessa, porque é lá que eu estudo” (servente de pedreiro, 16, 25G).
Uma observação que poderia justificar as escolhas dos pontos de referência nos
bairros e seus arredores, pelo universo pesquisado entre os outsiders, é que não se
encontravam nas imediações lugares muito significativos no meio urbano que
pudessem ser considerados como pontos expressivos, tais como monumentos ou
grandes áreas livres. Como resultado, os lugares mais representativos para os
entrevistados do conjunto Goiânia se restringiram ao próprio conjunto e às moradias.
O conjunto Goiânia era, ainda, considerado por 23% dos seus habitantes, segundo a
TAB. 22, como expressivo ponto de referência, sob o argumento de que a identidade
com o lugar estava ali bem representada, pois o mesmo era bonito, atraente e bem
estruturado fisicamente: “Eu tirava uma foto do conjunto. Ali vive todo mundo junto”
(dona de casa, 42, 30G). “Eu tirava uma foto da pracinha de cima do conjunto,
porque é o melhor lugar pra ver ele todo” (dona de casa, 52, 20G). “Eu ficava no
bairro em frente pra tirar a foto, porque de lá pra cá, dá pra ter uma vista bonita do
conjunto” (dona de casa, 52, 35G).
155
TABELA 22 Pontos de referência nos bairros segundo os moradores dos conjuntos
Conjunto Goiânia Conjunto Araguaia Referência
absoluto % absoluto %
O conjunto 9 23 2 7
A própria casa 8 21 1 3
Praça rotor 7 18 - -
Casas da vizinhança 7 18 - -
Escola/Igreja 3 8 2 7
Mata próxima 2 5 - -
Comércio 1 2 1 3
Praça da Febem - - 7 25
Praça do Minério - - 6 21
Cristo Redentor - - 5 17
Subtotal 37 95 24 83
Sem referência 2 5 3 10
Não sabe - - 2 7
Subtotal 2 5 5 17
Total de incidências 39 100 29 100
Fonte: Pesquisa direta (dados compilados pela autora), 2003.
Os espaços abertos, configurados no projeto original do conjunto como praças
internas que acolhiam as crianças nas atividades de lazer, não foram citados pelos
entrevistados como ponto marcante do bairro. Os espaços de uso coletivo do
conjunto Goiânia também faziam parte dessa manifestação sobre os pontos de
referência. A percepção dos entrevistados indicava as ruas internas como extensão
da moradia, o que permitia aproximar as relações com os vizinhos: “Eu tirava a foto
do bequinho – rua interna secundária, pois fica mais adequada com o meu jeito de
ser” (faxineira, 37, 19G). “A foto tinha que ser da ruazinha – rua interna. Acho ela
bonitinha e sossegadinha. E além de tudo, cada um varre a sua porta” (doméstica,
52, 21G).
Já entre os habitantes do Araguaia, apenas 7% dos entrevistados que ali residiam
indicaram o conjunto como um marco importante: os demais elementos marcantes
externos se apresentavam como mais significativos, para a quase totalidade dessa
população.
156
FIGURA 37 Vista da rua interna do conjunto Goiânia, em 1998 (esquerda) e em 2003 (direita)
Fonte: N ASCIMENTO, 1998, ilustração da esquerda; foto do arquivo particular da autora ilustração à direita.
A casa ainda continuava sendo considerada por 21% dos outsiders entrevistados no
conjunto Goiânia como o lugar mais significativo do bairro Alvorada, dada a
importância da moradia na vida deles. O motivo maior ainda era justificado como a
melhoria da sua qualidade de vida, depois da mudança para o local: “Eu tirava o
retrato da minha casa, pra mostrá que a minha vida melhorou” (dona de casa, 39,
4G). “A foto tinha que ser da minha casa; a casa da gente é a casa da gente, uai!”
(dona de casa, 43, 33G). Por outro lado, cabe observar que apenas 3% das
respostas dos outsiders do conjunto Araguaia indicaram que as suas moradias se
sobressaíam como ponto marcante no bairro Araguaia.
FIGURA 38 Vista da pracinha do rotor Fonte: Acervo particular da autora.
157
Uma única área de uso coletivo foi apresentada como praça, por 18% dos
entrevistados do conjunto Goiânia, conforme TAB. 22, representando uma
centralidade que proporcionava oportunidades de concentração e encontro com os
vizinhos. Esse lugar, situado nos arredores do conjunto, sequer tinha nome, visto
que se tratava de área livre, conseqüente de aproveitamento da quadra, mas sem
fim institucional. Ela se compunha de um pequeno jardim e, embora não possuísse
equipamentos urbanos adequados, era o lugar mais próximo, onde as crianças iam
brincar com freqüência ao qual, em segurança, podiam estabelecer alguma relação
de vizinhança: “Eu tirava a foto da pracinha perto do final do ônibus. Lá tem mais
verde e muita flor” (faxineira, 37, 3G). “Eu ia tirá da pracinha perto do Araponga –
supermercado. Lá é mais arejado e mais aberto” (faxineira, 32, 14G). “Eu tirava a
foto da pracinha. Tem jardim perto dela e ninguém pisa na grama” (dona de casa,
60, 17G).
Note-se que a praça, ao ser citada como referência por esses moradores, confirma a
opinião de Egler, segundo a qual
[...] a praça é, historicamente, o lugar reservado ao encontro, o grande espaço dedicado ao estar na cidade. A praça da cidade é a sala do apartamento, mudando-se as escalas de observação e análise. São tradicionais as praças que reúnem comunidades, nas quais são procuradas referências para a ação social e se encontram as tribos urbanas (EGLER, 2000, p. 210).
Por outro lado, os lugares que resultaram na indicação para fotos representativas
nas redondezas do conjunto Araguaia tratavam de equipamentos urbanos que se
tornaram facilmente visíveis pela população e se definiram fisicamente como
elementos marcantes na região. Os mais indicados como referência pelos habitantes
do conjunto Araguaia foram, para 25% dos entrevistados, como indica a TAB. 22, a
praça Modestino Barbosa, denominada pela população como praça da Febem e por
nós adotada, a praça José A. Neto, chamada praça do Minério para 21% deles, e o
Cristo Redentor para 17%, também localizado em uma praça no topo de um morro.
Para os entrevistados no conjunto Araguaia, esses marcos significativos no bairro e
nos setores adjacentes, embora se localizassem fora do limite oficial do bairro, foram
identificados como pontos de referência, porque ali se concentravam comércio,
serviços e lazer de caráter regional e também se caracterizavam como ponto de
encontro de grande parte da população, no seu cotidiano: “Eu tirava o retrato da
158
Praça da Febem, porque é onde eu consulto” (aposentada, 51, 11A). “Pra mim, a
praça do Minério é linda! Ela é cheia de flor” (office-boy, 16, 24A). “Eu ia fotografar a
praça da Febem, porque lá é sossegado. Todo domingo, vai todo mundo pra lá”
(dona de casa, 24, 3A). “Pra mim, a praça do Minério é a praça de melhor visual da
região” (gari, 38, 26A).
FIGURA 39 Vista da praça da Febem Fonte: Acervo particular da autora.
É interessante observar que esses pontos de referência se constituíam não só de
edificações, mas também de vias ou espaços expressivos. Cabe lembrar Lynch
(1990, p. 91): [...]o domínio espacial pode causar elementos marcantes de duas
formas: tornando o elemento visível de muitos outros pontos ou criando um contraste
local com os elementos circundantes, isto é, sendo uma variante em altura ou
constituição.
159
FIGURA 40 Vista da praça do Minério Fonte: Acervo particular da autora.
FIGURA 41 Vista do Cristo Redentor, de onde se vislumbra toda a região Fonte: Arquivo particular da autora.
Assim, o Cristo Redentor, monumento distante do bairro Araguaia, mas visível na
região, foi considerado um marco significativo para 17% dos outsiders entrevistados
no Araguaia, como indica a TAB. 22, pelo fato de ser freqüentado, nos fins de
semana, por jovens que ali desfrutavam momentos de lazer. Além disso, esse
160
monumento apresentava grande visibilidade, já que foi implantado isoladamente no
alto do morro: “Eu ia tirá uma foto do Cristo Redentor, porque ele é muito bonito e a
gente avista ele de qualquer lugar” (dona de casa, 31, 21A). “Eu tirava uma foto do
Cristo, porque ele é um ponto turístico do bairro” (pedreiro, 28, 22A).
A idéia de evolução vinculada ao progresso mostrou-se importante em algumas
respostas, pois indicava valorização do local e melhoria da qualidade de vida, não só
em termos de bens materiais como também nos de ordem financeira: “Eu tirava a
foto dessa avenida – Josefino Gonçalves da Silva – pra mostrar mais o nosso
conjunto e como ele valorizou com o comércio e as residência nova que tá sendo
construída” (desempregada, 24, 1G).
Pode-se perceber, ainda, que a intenção de melhoria da condição de vida retrata os
valores da maneira mais imediata para alguns moradores. Exemplo de um ponto de
referência citado por uma moradora do conjunto Goiânia ilustra bem o fato: “Eu
tirava a foto do conjunto, pois ele é um lugar que poderia ser mais valorizado” (dona
de casa, 35, 10G). A entrevistada argumentou que essa valorização deveria
acontecer nas ações de ordem física, para que a sua configuração não se
descaracterizasse tanto e nas de ordem social, a fim de que o combate à droga se
tornasse urgente.
Fato interessante ocorreu no conjunto Goiânia, onde moradores indicavam as casas
do entorno como um ponto valorizado da região e manifestaram o desejo de
fotografá-las. Pode-se perceber que para os outsiders , embora estabelecessem,
mesmo que visualmente, relação com o seu cotidiano, essas residências se
tornavam importantes não só pela falta de pontos de referência significativos no
local, mas também pela busca de outros valores, mesmo que fossem inatingíveis
para essa camada da população: “Se eu fosse tirar uma foto, tirava do panorama em
frente. Acho as casa bonita demais!” (faxineira, 47, 5G). “Eu tirava a fotografia da
vista em frente. Aquelas paisagem – as casas do bairro – são muito bonita”
(desempregada, 36, 24G).
Ao mesmo tempo, outro morador desse conjunto percebia a diferença entre os dois
grupos, tomando como referência os hábitos e o modo de vida da outra comunidade:
“Eu tirava o retrato do pedaço da vista oposta do bairro. As casa é bonita, as
161
pessoas decente e não há perturbação, porque você não vê um na casa do outro”
(pizzaiolo, 27, 2G).
FIGURA 42 Vista das casas em frente ao conjunto Goiânia Fonte: Acervo particular da autora.
O conceito de valor adotado por Heller ([19--], p . 78) remete à compreensão do fato
de que valor é o conjunto de todas as relações, produtos, ações, idéias sociais que
promovem o desenvolvimento da essência humana. Aliás, no momento em que o
homem passa a viver numa comunidade, os valores dessa comunidade se
expressam, demonstrando possibilidades de objetivação que integram sua
socialidade, que configuram universalmente sua consciência e que interferem na sua
liberdade social.
O valor é representado pelo modo de vida do indivíduo no cotidiano e, como observa
Léfèbvre (1991, p. 38-39), “é na vida cotidiana que se situa o núcleo racional, o
centro real da práxis”, pois é ali que se manifesta o modo de compreender a ação
sobre as coisas e a ação sobre os seres humanos. Para esse autor, as antigas
relações se reconstituem enquanto puderem viver o cotidiano.
Dando continuidade a esse pensamento, cabe lembrar Certeau (1998, p. 190-191)
quando ele diz que o memorável é aquilo que se pode sonhar a respeito do lugar e
que a prática do espaço repete a experiência da infância. “É, no lugar, ser outro e
passar ao outro”. Esse fato pode ser exemplificado no depoimento de uma moradora
do conjunto Araguaia, que passou parte da infância em centro de recuperação: “Eu
tirava um retrato da praça da Febem, porque ela me faz lembrar a minha infância: eu
162
era da Febem, que antigamente era um centro de menores infratores. Isso foi em
1969” (bordadeira, 43,1A).
Observa-se que, a exemplo das respostas dos estabelecidos , sobre os aspectos
negativos vislumbrados pelos moradores dos conjuntos, os outsiders também
retrataram experiências mal s ucedidas no seu cotidiano, que resultaram em algum
tipo de repulsa e comprometeram a identificação dos entrevistados com os
respectivos bairros. Esses fatores se relacionavam com as favelas localizadas nas
proximidades, que abrigavam elementos suspeitos de comprometer a ordem interna
dos conjuntos e com a falta de equipamentos e infra-estrutura no local, que
acarretava o aumento do deslocamento da população à procura de atendimento
imediato.
Ainda assim, os entrevistados expressavam simpatia pelos bairros Alvorada e
Araguaia, apesar de suas respostas se limitarem a indicar experiências mal
sucedidas que impediam a boa aceitação dos locais: “O bairro é muito bom. O
problema é o pessoal da favela. Eles vêm lá de cima e entram no conjunto”
(pizzaiolo, 27, 2G). “O bairro até que é bom. O posto de saúde é que é longe e tem
um atendimento péssimo” (dona de casa, 47, 27G).
Por outro lado, 5% dos entrevistados no Goiânia e 10% no Araguaia, como indica a
TAB. 22, não quiseram registrar marcos nos respectivos bairros, pois não
encontraram qualquer lugar nas imediações que fosse significativo ou que
representasse expressivamente os respectivos setores. Além disso, registrou-se a
deficiência de grandes equipamentos que permitissem o encontro das populações
no seu cotidiano. A indiferença demonstrada por esses moradores que não
responderam coincidia com a sua frágil condição cultural, fisicamente retratada pelos
aspectos como vestimenta, higiene e cuidados com as suas casas.
5.1.2 As mudanças ocorridas nos bairros
O longo tempo de moradia dos estabelecidos nos bairros definiu a sua relação com
o local, verificada quando eles passavam a contar a sua história de vida, mesclando-
a com a do lugar. As intervenções e transformações ocorridas foram assimiladas
pelos moradores, que apontavam aspectos positivos e negativos nelas.
163
Dentre os fatores positivos indicados pela população questionada sobressaiu,
expressivamente, tanto para os estabelecidos entrevistados do Alvorada como do
Araguaia, a infra-estrutura, que compreendia, respectivamente, 42% e 64% das
respostas dos entrevistados nos dois bairros. Acrescente-se o desenvolvimento e a
expansão das atividades ao longo das principais vias, com 38% e 29% da incidência
das respostas, conforme a TAB. 23. Essa infra-estrutura se referia à ilum inação
pública, à pavimentação das ruas e ao abastecimento de água e esgoto. A
valorização se justificava pelos fatores favoráveis ao desenvolvimento não só do
bairro, mas também da região: “Melhorou muito! Antigamente não tinha o viaduto do
Barreiro; asfaltaram as ruas e botaram água encanada” (dona de casa, 70, 35A). “O
comércio melhorou, com depósito de gás, padaria, loja de colchão, de roupas e
depósito de bebidas ” (aposentado, 69, 52G). “Antigamente não tinha água, luz,
asfalto. Hoje tem tudo” (dona de casa, 70, 43A).
TABELA 23 Mudanças positivas ocorridas nos bairros segundo seus moradores
Alvorada Araguaia Mudança
absoluto % absoluto %
Infra-estrutura 8 42 9 64
Desenvolvimento 7 38 4 29
Segurança 1 5 1 7
Construção de casas boas 1 5 - -
Escola 1 5 - -
Quadra 1 5 - -
Total de incidências 19 100 14 100
Fonte: Pesquisa direta (dados compilados pela autora), 2003.
Como mudanças positivas ocorridas nos bairros, os estabelecidos abordaram
também a construção de novas casas, além de equipamentos urbanos essenciais,
tais como escola: “A construção das casas melhores do lado de cima da avenida
valorizou bastante o bairro” (desempregada, 55, 41G). “Tinha muito lote vago. O
aumento do número de residências foi bem grande. Construíram escolas” (dona de
casa, 37, 45G).
A melhoria na segurança local foi outra alteração citada como positiva para os
bairros por 5% dos estabelecidos no Alvorada e 7% no Araguaia, conforme a TAB.
164
23. Esse fator, contudo, é polêmico e até contraditório, visto que 20% das respostas
dos entrevistados do Alvorada e 21% do Araguaia ainda consideram a insegurança
como um dos maiores problemas desses lugares, conforme indica a TAB. 24.
TABELA 24 Mudanças negativas ocorridas nos bairros segundo seus moradores
Alvorada Araguaia Mudança
absoluto % absoluto %
O conjunto 5 33 6 43
Insegurança 3 20 3 21
Infra-estrutura 3 20 3 21
Não tem 3 20 2 15
Não sabe 1 7 - -
Total de incidências 15 100 14 100
Fonte: Pesquisa direta (dados compilados pela autora), 2003.
Por outro lado, as mudanças ocorridas nos bairros, e consideradas negativas, se
vinculavam à construção dos conjuntos e aos conseqüentes resultados da sua
implantação, para 33% dos entrevistados no Alvorada e 43% no Araguaia, segundo
a TAB. 24. Esses lugares passaram a ser ameaçadores para os antigos moradores,
indicando perigo iminente. As razões citadas pela população do bairro se referiam,
prioritariamente, ao comprometimento de alguns moradores dos conjuntos com o
tráfico de drogas , fato que levava à insegurança e à violência: “A violência aumentou
muito. Antes, eu dormia até de porta aberta” (desempregada, 55, 41G). “O bairro
piorou muito com esse conjunto. Você tem que ficar de olho. Não pode mostrar que
tem medo” (dona de casa, 70, 43A). “O conjunto atrapalhou. Antes, todo mundo era
preocupado em construir pracinha pras crianças. Deu uma mudada, como se fosse
um balde de água gelada. As pessoas ficaram desanimadas depois do conjunto”
(dona de casa, 37, 45G). “Aumentou muito o número das favelas. Não tem mais
segurança. A gente não pode deixar mais o carro fora da garagem” (desempregada,
42, 42G). “Pra mim, o que piorou o nosso bairro foi esse danado aí” – no caso, o
conjunto (aposentada, 52, 39A).
Mesmo assim, 20% dos questionários respondidos no Alvorada e 15% no Araguaia,
de acordo com a TAB. 24, revelaram que não existiam mudanças nos bairros que
pudessem ser avaliadas como piores. Deve-se considerar que alguns desses
165
moradores apresentavam na sua identidade com os mesmos uma relação topofílica
e outros passaram a habitar o local a partir de um período recente: “Nada mudou pra
pior. Aqui só evoluiu” (aposentada, 62, 46G). “Ainda não percebi” (professora, 39,
50G).
O GRAF. 5 correlaciona os valores positivos e negativos das mudanças dos bairros
indicados por seus moradores, categorizados nas tabelas 23 e 24. Constatou-se, ali,
a diferenciação entre as opiniões dos grupos daqueles que destacaram as
mudanças positivas e negativas nos itens da segurança e da infra-estrutura no
Alvorada e no Araguaia.
GRÁFICO 5 Valores positivos e negativos das mudanças dos bairros indicados por seus
moradores
-60 -40 -20 0 20 40 60 80
Infra-estrutura
Desenvolvimento
Segurança
Construção de casas boas
Escola
Quadra
O conjunto
Insegurança
Infra-estrutura
Não tem
Não sabe
Alvorada Araguaia
Valores positivosValores negativos
Fonte: Elaborado por Maria Cristina Villefort Teixeira e Beatriz Marinho Gomes com base em
pesquisa direta, 2003.
Em relação à segurança, o aumento de incidências de respostas do ponto de vista
negativo se deveu às conseqüências da implantação dos conjuntos, e a maioria
indicou que a insegurança piorou a qualidade de vida nos bairros, com a presença
de delinqüentes ameaçando os estabelecidos . Quanto àqueles que os consideraram
positivos, foi justificada a sua opinião, porque eles exerciam poucas atividades,
166
permanecendo grande parte do tempo em suas casas: “A segurança é um problema.
A gente fica sem liberdade de sair de casa à noite. Fico muito preocupada”
(aposentada, 70, 33A). “Eu tirava férias todo mês de outubro e viajava. A minha casa
ficava fechada. Hoje, eu não vou mais” (aposentado, 52, 30A). “O bairro é tranqüilo,
sem crime, sem assalto. Praticamente não tem violência” (aposentado, 61, 31A).
Quanto à infra-estrutura, a maioria indicou que sua melhoria se deveu a medidas de
saneamento que beneficiaram a população local, embora ainda houvesse quem não
concordasse com essa opinião. Cabe lembrar que o Araguaia surgiu como um bairro
operário, em cujo início apresentava condições pouco satisfatórias no que se refere
a esse condicionante: “O bairro melhorou demais. Cresceu e está crescendo. Tem
de tudo, desde ruas asfaltadas até iluminação e água encanada” (gerente de loja ,
45, 32A). “A iluminação das ruas e das praças ainda é muito deficiente” (dona de
casa, 43, 37A).
Portanto, pode-se observar que as mudanças ocorridas nos bairros foram, em sua
maioria, apreciadas como positivas, especialmente no que se refere a
melhoramentos na infra-estrutura e no desenvolvimento do comércio e serviços ao
longo das principais vias. É inegável que a construção dos conjuntos foi avaliada
como negativa para os respectivos bairros dos seus entornos, acarretando
problemas no modo de vida das famílias ali instaladas, principalmente no que diz
respeito às atividades ilícitas ligadas ao tráfico de drogas.
5.2 As práticas espaciais nos conjuntos e nos bairros
Aprofundando as análises de Léfèbvre, Ana Fani Carlos afirma que, no cotidiano,
[...] a apropriação do espaço se daria através das relações de vizinhança, do ir às compras, do encontro dos conhecidos, do jogo de bola, dos percursos reconhecidos de uma prática vivida e em pequenos atos corriqueiros, ou seja, através das formas das quais o homem se apropria e que vão ganhando o significado dado pelo uso (CARLOS, 1996, p. 20).
Realmente, ao tratar da apropriação do espaço, Certeau (1998, p. 176) lembra que
os passos produzem inumeráveis singularidades, moldam espaços e tecem os
lugares; a atividade dos passantes é transposta em pontos que compõem sobre o
plano uma linha totalizante e reversível.
167
Dentro da relação de vizinhança, e ao expressar essa identificação, a casa adquire
um valor superior ao simples abrigo: ela se apresenta também através de uma
objetividade social (HELLER, [19--], p . 5), que se reflete nos intercâmbios subjetivos
que ali se realizam, nas manifestações da solidariedade entre os membros da família
e da comunidade e no lugar dos sonhos para os seus moradores.
A análise das vivências dos moradores, sob esse enfoque, mostra o limiar entre a
intimidade e o uso da esfera pública que, segundo Arendt (2001, p. 39-40), cuida da
proteção da liberdade do cidadão no mundo. Na esfera familiar, os homens vivem
juntos por serem compelidos por suas necessidades e carências, a sua
sobrevivência, ao passo que, na esfera pública, a liberdade se situa como o principal
caminho para se atingir a ação política na esfera do social.
No que se refere ao estudo de caso, ao serem apropriados pela população através
de hábitos cotidianos, esses lugares confirmam a relação de proximidade, que passa
a ser uma das primeiras possibilidades do uso territorial. As vivências apresentadas
pelos outsiders com o espaço se davam nas ruas internas dos conjuntos, nas casas
dos vizinhos mais amigos e nas vias do entorno dos assentamentos, onde as
crianças brincavam nos passeios ou nas pistas improvisadas como quadra esportiva.
Os estabelecidos , por sua vez, costumavam se manter em casa, resguardados de
qualquer contato mais íntimo com o outro grupo, cujo comportamento era estendido
aos filhos.
Nesse item do trabalho, a vida cotidiana dos outsiders dos conjuntos Goiânia e
Araguaia e dos estabelecidos nos seus entornos, os bairros Alvorada e Araguaia, vai
expressar a identificação que eles mantinham com o lugar, através dos encontros,
estabelecendo, entre si, relações de vizinhança.
Esses lugares que permitem encontros podem provocar interação ou confronto.
Egler (2000, p. 215) bem lembra que os encontros estão associados ao
acontecimento, que eles constituem uma forma de refazer o cotidiano, de reinventar
e de reviver.
168
5.2.1 Os encontros nos conjuntos e nos bairros
O encontro, na vida cotidiana, se manifesta de diferentes maneiras, pressupondo a
inclusão, no agir coletivo, de segmentos da população urbana. Incluir é fazer
participar de um mesmo processo.
Os locais onde as pessoas desenvolvem as diversas atividades cotidianas, tais
como compras, atividades religiosas, caminho para a escola e lazer possibilitam
novas relações de vizinhança. Como os lugares em que se efetuavam essas
relações cotidianas eram próximos e se apresentavam como visivelmente familiares,
para grande parte dos entrevistados, os pontos de encontro adquiriram maior
importância para a compreensão do desenvolvimento das vivências no local.
5.2.1.1 Os encontros dos moradores nos conjuntos
As áreas livres dos conjuntos se tornaram pontos de encontro para grande parte dos
seus moradores. Os outsiders se encontravam no interior delas, principalmente nas
ruas internas e na frente de suas moradias, o que intensificava o relacionamento
entre eles. Nas áreas abertas, dentre as quais se sobressaíam as pracinhas e as
ruas internas, estabelecia -se a relação de privacidade, que permitia o encontro dos
vizinhos. Isso pôde ser comprovado na TAB. 25, que indica o seu uso para 31% dos
habitantes do conjunto Goiânia e 48% do Araguaia: “Não vou na casa de ninguém.
Não gosto da casa dos outros. Só fico assentada no bequinho” – rua interna – (dona
de casa, 30, 16G). “Fico na pracinha, com um olho aqui e o ouvido lá em casa”
(dona de casa, 48, 26G). “Nós tromba é por aqui mesmo. Da última vez, fizemo uma
reunião na pracinha pra cimentá a rua e corrigi umas trinca” (dono do ferro-velho, 64,
32G). “Lá dentro do conjunto, quando subo, encontro alguém no caminho e a gente
conversa” (salgadeira, 43, 6G).
Nas duas praças existentes no conjunto Goiânia aconteciam os encontros entre seus
moradores; elas, porém, foram, aos poucos, sendo invadidas pelos que moravam ao
seu lado, para ampliar os lotes. Assim, esses locais eram apropriados com pouca
intensidade, no que se referia ao uso coletivo, passando as oportunidades de
convivência no interior dos conjuntos para as ruas internas.
169
TABELA 25 Onde os moradores dos conjuntos se encontram
Conjunto Goiânia Conjunto Araguaia Total Local
absoluto % absoluto % absoluto %
Interior do conjunto 12 31 14 48 26 38
Rua 6 15 10 36 16 24
Casa de vizinhos 6 15 - - 6 9
Igreja 5 13 - - 5 7
Porta da escola 2 5 1 3 3 4
Posto de saúde - - 1 3 1 1
Não encontra 8 21 3 10 11 17
Total de incidências 39 100 29 100 68 100
Fonte: Pesquisa direta (dados compilados pela autora), 2003.
Essa situação ilustra considerações de Egler (2000) sobre interação e confronto no
espaço urbano:
[...] no espaço de interação, o confronto pode ser conduzido, apenas, para que ocorra a dominação de uma das partes, quando estão sendo decididos os rumos da ação coletiva. Confrontar, menos que um saudável exercício democrático, pode, portanto, ser apenas um mecanismo estrategicamente utilizado para fazer valer um conjunto de idéias que, efetivamente, não são compartilhadas (EGLER, 2000, p. 215-216).
No Goiânia, embora 21% dos entrevistados preferissem manter a privacidade e
pouco contato com a vizinhança, ainda se mantinha como hábito a visitação entre
eles, em 15% das respostas, como demonstra a TAB. 25. As pessoas
estabeleceram amizade desde a época em que se abrigaram nos acampamentos e
a sustentaram, após a mudança para os conjuntos, com visitas mútuas constantes.
Também nesses locais, a convivência entre parentes fortalecia o entrosamento entre
as moradoras: “Costumo ir na casa da minha sogra. No mais, não vou na casa de
muita gente, porque trabalho o dia todo” (faxineira, 32, 14G). “De vez em quando,
vou na casa da Salete, mas não é todo dia não. Ela mora na terceira casa depois da
pracinha do fundo, logo depois da casa da Jurema” (dona de casa, 39, 4G). “Vou lá
na casa da Socorro, que fica no beco principal, do lado da casa da Edna, aquela de
muro alto com um portão marrom, sabe?” (dona de casa, 28, 9G). Interessante notar
que esse hábito não foi registrado entre os entrevistados no Araguaia. Aqui seria
oportuno lembrar as observações de Certeau (1998, p. 177-188) sobre os percursos,
170
ao considerar a indicação do deslocamento para ac essar casas de amigos: ela era
definida pela referência espacial conhecida e assimilada por todos, e não pelo
endereço da rua interna em que ela se localizava.
As principais vias de acesso aos conjuntos também passaram a ser vivenciadas,
principalmente pelas moradoras, em 24% dos casos, de acordo com a TAB. 25, que
ficavam na calçada à tarde observando o movimento do trânsito e as crianças
brincando na calçada. Os encontros se davam à medida que os vizinhos passavam
ali para fazer alguma compra, pegar ônibus ou buscar as crianças na escola: “À
tarde, as pessoas sentam na calçada para descansar e conversar. Aí, sabe como é,
né? Um passa daqui, outro conversa dali...” (desempregada, 37, 13G).
Mesmo que grande número de pessoas se conhecesse por um longo período, as
respostas indicaram que 17% do universo pesquisado não se encontravam com
seus vizinhos. Os motivos eram justificados pelo trabalho, que demandava
dedicação de tempo, e porque não havia lugares onde se encontrar no conjunto:
“Não encontro com ninguém, porque saio de manhã e volto de noite. Nos fins de
semana, fico lavando minha roupa e cuidando da casa. É quando eu posso
descansar. Também eu quase não conheço ninguém” (faxineira, 35, 3G). “Não tem
nenhum lugar decente pra gente encontrar as pessoas aqui no conjunto”
(bordadeira, 26, 20A).
Cabe observar que era raro o acesso dos estabelecidos aos conjuntos. Tal situação
somente ocorria quando algum outsider conhecido necessitava de cuidados ou
quando eles iam à procura de mão-de-obra para prestação de serviços,
especialmente faxina ou serviços hidráulicos e elétricos.
5.2.1.2 Os encontros dos moradores nos bairros
Os bairros ofereciam espectro maior de vivência, visto que eram mais amplos e a
variedade de atividades ali desenvolvidas possibilitava o uso do espaço, tanto para
os seus moradores como para os outsiders.
Entre os estabelecidos, as práticas espaciais aconteciam de maneira similar àquelas
realizadas pelos outsiders: eles se encontravam nas ruas, se visitavam e, como as
suas ligações já vinham se estruturando ao longo de muito tempo, promoviam
171
reuniões que tornavam mais sólida a amizade entre eles. Cabe ressaltar que,
mesmo assim, 17% desses estabelecidos nos dois bairros, segundo a TAB. 26, só
se cumprimentavam e outros sequer freqüentavam algum evento social, tanto no
Alvorada como no Araguaia, mesmo que o tempo de permanência de grande parte
desse grupo fosse longo no local e as relações de vizinhança houvessem se
consolidado: “Não freqüento nenhum lugar por aqui” (desempregada, 36, 34A). “Não
tem onde encontrar meus vizinhos. A gente só se cumprimenta” (corretora, 59, 53G).
“Não encontro com meus amigos vizinhos, porque todos trabalham fora” (vendedora,
36, 4A).
TABELA 26 Onde os moradores dos bairros se encontram
Alvorada Araguaia Total Local
absoluto % absoluto % absoluto %
Porta de casa 9 38 2 9 11 23
Rua 5 21 8 35 13 28
Comércio 1 4 1 4 2 4
Casa de vizinhos 2 8 3 14 5 11
Igreja 3 12 4 17 7 15
Porta da escola - - 1 4 1 2
Não encontra 4 17 4 17 8 17
Total de incidências 24 100 23 100 47 100
Fonte: Pesquisa direta (dados compilados pela autora), 2003.
A maioria dos estabelecidos se encontrava nas portas das suas casas ao sair para o
trabalho, abrindo o portão da garagem ou molhando o jardim, conforme indica a
TAB. 26. Além do mais, esse grupo já se apresentava sedimentado pelo tempo de
moradia e os hábitos comuns já haviam se consolidado ao longo da sua convivência.
A exemplo dos moradores dos conjuntos, também a rua se apresentava como lugar
de encontro apropriado para a população dos bairros nos percursos a pé: “A gente
se encontra pela rua, quando sai a pé” (almoxarife, 39, 44G). “Quando vou pra
igreja, encontro muitos conhecidos pela rua” (costureira, 45, 38A).
As pessoas ainda se visitavam e promoviam reuniões informais, confraternizações,
aniversários, grupos de oração, festas religiosas e tardes festivas. Essa prática já
havia se tornado comum entre eles, desde tempos anteriores, quando se
172
encontravam nos fins de semana em residências próximas: “Não sou muito de
encontrar nas portas das casas das minhas vizinhas. Temos um grupo de oração,
onde a gente reza o terço, ou a gente se encontra pra conversar e trocar idéia,
comendo um salgadinho...” (costureira, 59, 49G). “Nós temos o terço toda segunda,
comemoramos os aniversários do mês e procuramos manter a turma unida, fazendo
uma confraternização nas nossas casas ou no sítio ” (desempregada, 42, 42G). “O
ano todo, a gente tem atividade: coroação em maio, barraquinha em junho e um
monte de festa da igreja. Em setembro, tem o passeio comunitário e outubro, o
almoço comunitário. O povo do conjunto só vai lá se a gente oferecer alguma coisa
pra eles” (aposentado, 61, 31A).
Cabe observar que os templos religiosos se transformaram num lugar de encontro
nos bairros, pois a prática de cultos e orações demandava regularidade e, com isso,
maior oportunidade de se encontrarem. Quanto às demais vivências no cotidiano,
desenvolvidas pelos estabelecidos , o comércio se apresentou como pouco
representativo, embora essa atividade disponib ilizasse atendimento eficiente, tanto
no nível local como regional. Uma das justificativas se dava porque alguns
moradores, principalmente os do Goiânia, faziam suas compras fora dessas regiões.
5.2.2 Os deslocamentos nos conjuntos e nos bairros
Diferentemente dos pontos de referência conceituados por Lynch, os percursos
distinguem o espaço geométrico do espaço antropológico. Os percursos, por nós
adotados como deslocamentos, vão delinear os caminhos vividos pelos indivíduos,
obedecendo a uma linguagem natural, específica da relação deles com o espaço.
Certeau (1998, p. 177-188-203) observa que as caminhadas atribuem aos percursos
um valor de verdade, um valor cognitivo ou um valor de transgressão, que passam a
tomar significado na medida em que deixam de ser roteiros e passam a ser
caminhos. Esse autor acredita que os relatos de lugares são bricolagens e que eles
retratam um conjunto simbólico e se expressam ligados a histórias perdidas e a
gestos opacos; são justapostos numa colagem em que suas relações não são
pensadas, mas postas como necessárias.
173
O exame dos lugares que apresentavam possibilidades da prática social, no
cotidiano das comunidades envolvidas, vai auxiliar no entendimento das relações
entre elas. Para isso, cabe registrar aqueles mais freqüentados no dia-a-dia para
compras, lazer e atividades religiosas e escolares. No que diz respeito às compras,
tornou-se necessário indicá-las nas diferentes escalas, tais como padaria, sacolão,
supermercado, farmácia, para que fossem analisadas as freqüências diárias,
semanais e esporádicas, que indicariam as possibilidades de encontro dos grupos
envolvidos. Nesse sentido, podem ser verificadas as incidências de freqüência em
cada um desses estabelecimentos e quais as possibilidades de encontros entre eles
nesses locais.
As respostas das TAB. 27 e 28 indicaram, conforme veremos adiante, que a maioria
das atividades praticadas pelos estabelecidos e pelos outsiders acontecia na região,
nas proximidades dos conjuntos, embora nem sempre esses lugares estivessem
localizados dentro dos limites dos bairros Alvorada e Araguaia.
5.2.2.1 Os deslocamentos no conjunto Goiânia e no bairro Alvorada
No Alvorada, a maioria das atividades comerciais se concentrava na avenida
Josefino Gonçalves da Silva, na rua Maria da Conceição Bonfim e na rua Tiziu,
ambas fora do limite do bairro, porém próximas a ele. Nessa última via, fica o ponto
final do ônibus que transita pela região.
Quanto às compras nos supermercados dos dois setores de estudo, elas se
efetuavam em função da proximidade, dos preços e das condições de pagamento
que, indubitavelmente, se apresentavam como fator de atração. De fato, esse
exemplo pode ser demonstrado por 74% dos depoentes do conjunto Goiânia, como
indicado na TAB. 27, que buscavam o supermercado Araponga para atender a essa
demanda. Em entrevista com um dos proprietários do estabelecimento, chamou
atenção o uso constante de cartões de crédito pela população do conjunto.
Verificou-se que esse estabelecimento era também freqüentado por 20% dos
habitantes dos bairros, o que poderia proporcionar possibilidade de encontros entre
os membros dos dois grupos. Cabe ressaltar, ainda, que tal mercado supria de pão
29% dos moradores do Goiânia, embora a qualidade do produto fosse questionada.
174
Outro supermercado que atendia à população do Goiânia, o Leva Tudo, se situa
numa das principais vias de concentração do comércio, fora do limite do Alvorada, e
atraía 22% dos entrevistados no conjunto, pois apresentava preço competitivo. Esse
estabelecimento comercial não foi indicado como lugar de compras pelos moradores
dos bairros.
Por outro lado, o Vitorino e o Quero-Quero, localizados fora dos limites do conjunto e
do bairro, só eram freqüentados pelos estabelecidos do bairro Alvorada, visto que,
para acessá-los, necessitava-se de algum meio de transporte. Cabe aqui a
observação de que esses consumidores faziam suas compras mensalmente, ao
passo que os outsiders do Goiânia, na maioria, faziam a provisão a cada semana,
ocasião em que recebiam o pagamento. Portanto, os habitantes do conjunto
freqüentam esses lugares com maior intensidade.
TABELA 27 Deslocamento dos moradores do conjunto Goiânia e do bairro Alvorada
Conjunto Goiânia Bairro Alvorada Local absoluto % absoluto %
Araponga 29 74 3 20 Leva Tudo 8 22 - -
Vitorino - - 3 20 Quero Quero - - 1 7
Ganha cesta básica 1 2 - - Cidade Nova 1 2 2 13 Santa Inês 0 - 1 7
Centro 0 - 5 33
Supermercado
Total de incidências 39 100 15 100 Mirloh 25 65 5 33
Araponga 11 29 - - Pão Gostoso 1 2 1 7
Castro - - 5 33 Não compra 1 2 - - Santa Inês 1 2 4 27
Padaria
Total de incidências 39 100 15 100 ABC 30 77 3 20
Marcos 6 15 1 7 Vitorino 2 6 - - Delivery - - 3 20
Não compra 1 2 - - Cidade Nova - - 2 13 Santa Inês - - 2 13
Centro - - 4 27
Sacolão
Total de incidências 39 100 15 100 (continu a...)
175
(conclusão)
Conjunto Goiânia Bairro Alvorada Local absoluto % absoluto %
Avenida 12 31 1 7 Leandro 4 11 2 13
Não compra 12 31 - - Delivery - - 4 27
Santa Inês 1 2 3 20 Cidade Nova 1 2 - - Maria Goretti 1 2 - -
Centro 8 21 5 33
Farmácia
Total de incidências 39 100 15 100 Maria Cecília 20 35 1 6 Luiz Bessa 15 26 3 20
José Alencar 5 9 - - Carrossel Encantado - - 1 6
José Calazans 4 7 - - Cidade Nova - - 2 12 Maria Gor etti 3 5 1 6 Santa Inês - - 2 12 São Marcos 5 9 - -
Centro 1 2 2 12 Fora da cidade - - 1 6 Não freqüenta 4 7 3 20
Escola
Total de incidências 57 100 16 100 Universal 15 38 2 13
Nossa Senhora d’Ajuda 8 21 - - Quadrangular 3 8 - - Deus é Amor 3 8 - - Não freqüenta 5 13 3 20 Cidade Nova 2 5 1 7 Maria Goretti - - 2 13 Santa Inês 1 2 1 7
Centro 2 5 5 33 Fora da cidade - - 1 7
Igreja
Total de incidências 39 100 15 100 Quadra 21 54 3 20
Escola Luiz de Bessa 3 8 - - Não pratica 15 38 3 20
Cidade Nova - - 5 34 Santa Inês - - 2 13
Centro - - 2 13
Lazer
Total de incidências 39 100 15 100
Fonte: Pesquisa direta (dados compilados pela autora), 2003.
As compras nas padarias próximas ao conjunto Goiânia se efetuavam,
simultaneamente, para a maioria dos dois grupos na Mirloh, localizada na avenida
Josefino Gonçalves da Silva, em frente ao conjunto, onde 65% dos entrevistados do
conjunto e 33% do bairro faziam suas compras diariamente. Também a Pão
Gostoso, situada na rodovia próxima ao conjunto, em direção ao Espírito Santo, era
176
referência de compras de pão no cotidiano para as duas comunidades, tornando-se
potencial de encontro para ambos os grupos.
FIGURA 43 Indicação dos percentuais de consumidores em supermercados, moradores do conjunto Goiânia e do bairro Alvorada
Fonte: Elaborado por Maria Cristina Villefort Teixeira e Beatriz Marinho Gomes com base em pesquisa de campo, 2003.
Apenas os moradores do bairro Alvorada compravam na padaria Castro. A sua
decoração se apresentava de maneira mais sofisticada, o que causava
constrangimento e gerava desconfiança aos outsiders do conjunto, que pensavam,
inclusive, que os preços dos produtos eram mais caros, conforme depoimento de
moradora do conjunto: “Eu compro aqui na padaria da avenida. O pão da Castro é
177
muito bom, mas lá é muito caro. A gente paga luxo!” (dona de casa, 39, 4G). Fato
que não se verificou, após a comparação dos preços com os das demais padarias
dos arredores.
FIGURA 44 Indicação dos percentuais de consumidores em padaria, moradores do conjunto Goiânia e do bairro Alvorada
Fonte: Elaborado por Maria Cristina Villefort Teixeira e Beatriz Marinho Gomes com base em pesquisa de campo, 2003.
A maioria das compras feitas no sacolão pelas duas comunidades se realizava no
ABC15 (77% do Goiânia e 20% do Alvorada, conforme a TAB. 27), pois ali era
15 O programa Abastecimento a Baixo Custo – ABC – é patrocinado pela Prefeitura Municipal, que fornece produtos hor tifrutigranjeiros sem intermediários, o que reduz o custo final dos produtos.
178
assegurado o abastecimento de alimentos frescos, a preço baixo. O sacolão do
Marcos vendia produtos frescos e, apesar de se situar mais longe, na rua Maria da
Conceição Bonfim, também era motivo de encontro dos dois grupos, porém sem
muita intensidade. Nessa atividade, os estabelecidos do bairro utilizavam o serviço
de entrega em domicílio que, ainda que fosse mais caro, significava para eles
conforto e economia de tempo. Foi verificado que 2% das famílias do conjunto não
faziam qualquer tipo de compra, pois suas condições eram precárias e eles
ganhavam cesta básica de associações beneficentes.
FIGURA 45 Indicação dos percentuais de consumidores em sacolão, moradores do conjunto Goiânia e do bairro Alvorada
Fonte: Elaborado por Maria Cristina Villefort Teixeira e Beatriz Marinho Gomes com base em pesquisa de campo, 2003.
179
As compras nas farmácias pelos dois grupos, nem tão freqüentes, ocorriam nas
drogarias Avenida e Leandro. A oportunidade de encontros nesses dois lugares
passava a ser esporádica, visto que mais da metade dos moradores do bairro
utilizava o serviço de entrega para o seu atendimento ou comprava em farmác ias
fora da região. Cabe ressaltar que grande parte dos entrevistados no conjunto
Goiânia recebia a medicação no posto de saúde, não freqüentando, portanto, as
farmácias próximas.
FIGURA 46 Indicação dos percentuais de consumidores em farmácia, moradores do conjunto Goiânia e do bairro Alvorada
Fonte: Elaborado por Maria Cristina Villefort Teixeira e Beatriz Marinho Gomes com base em pesquisa de campo, 2003.
180
Quanto à possibilidade de encontro nas escolas, uma prática facilitadora de
intercâmbios sociais, ela não acontecia como seria de esperar. Os alunos dos dois
grupos que freqüentavam o Maria Cecília e o Luiz de Bessa participavam de todas
as atividades nas escolas, mas raramente mantinham contatos extraclasse. No José
de Alencar, por sua vez, não foi matriculado nenhum morador do bairro Alvorada.
Metade dos que ainda se encontravam em fase de aprendizagem no bairro e 23%
dos outsiders entrevistados estudavam em instituições fora da região, tais como
universidades e entidades de ensino localizadas na área central da cidade.
FIGURA 47 Indicação dos percentuais de freqüentadores de escolas, moradores do conjunto Goiânia e do bairro Alvorada
Fonte: Elaborado por Maria Cristina Villefort Teixeira e Beatriz Marinho Gomes com base em pesquisa de campo, 2003.
181
As relações entre as duas comunidades ainda se tornavam possíveis: a TAB. 27
indica que 7% dos moradores do conjunto e 20% do bairro não se encontravam mais
em processo de formação nas escolas, mas esse fato não isentava os indivíduos de
se encontrarem nas portas dos colégios, ao encaminharem as crianças para o
estudo.
FIGURA 48 Indicação dos percentuais de freqüentadores de templos, moradores do conjunto Goiânia e do bairro Alvorada
Fonte: Elaborado por Maria Cristina Villefort Teixeira e Beatriz Marinho Gomes com base em pesquisa de campo, 2003.
Quanto às práticas religiosas, conforme indica o TAB. 2, 54% dos outsiders do
conjunto Goiânia praticavam a religião evangélica. A maioria deles era composta por
fiéis da Igreja Universal, que concentrava 38% dos praticantes do conjunto e 13% do
182
Alvorada. A proximidade e a facilidade de acesso às boas instalações também
facilitaram a prática dessa crença no templo para os dois grupos. Nesse sentido, o
relacionamento entre os moradores, dentro das igrejas, se mostrou amigável.
Por outro lado, os demais templos que seguiam essa crença atraíram somente
aqueles residentes no conjunto Goiânia, o que ocorreu também com os praticantes
católicos, cerca de 20%, que freqüentavam a igreja Nossa Senhora d’Ajuda,
localizada fora dos limites do bairro Alvorada. Observa -se, aqui, que a possibilidade
de encontro entre os dois grupos nos templos religiosos tornava-se difícil, devido à
pouca incidência comum dos cultos e à distância entre eles.
Nas atividades de lazer, a quadra próxima ao Goiânia era utilizada como o ponto de
encontro dos moradores do conjunto e do bairro. Como esse local era cedido pelo
proprietário para as crianças brincarem até as 17 horas, a partir desse horário, a
quadra passava a ser alugada para terceiros, destinando-se a eventos que
intensificavam encontros de membros dos dois grupos. Na creche anexa à escola
Luiz de Bessa, existe uma quadra que acolhe somente jovens do Goiânia para a
prática de vôlei, embora não haja participação de moradores do bairro nessa
atividade.
Algumas respostas de ambos os segmentos indicaram que não se praticava
qualquer atividade de lazer nas imediações, o que era justificado pela falta de
equipamentos, de informação e de hábito nessas funções.
A pesquisa indicou que um número significativo de moradores do bairro Alvorada
desenvolvia atividades fora da região: 53% faziam compras, 50% iam à escola, 60%
se dedicavam ao lazer e 67%, a atividades religiosas. Isso se justificava pela
facilidade de deslocamento para essas áreas, visto que grande parte dos
estabelecidos desse bairro era proprietária de automóveis, o que facilitava o acesso
a setores mais distantes da cidade. Outros fatores responsáveis pela busca das
atividades fora dos locais de origem foram a proximidade ao trabalho e a
concentração específica dessas atividades em questão no centro da cidade: “Eu
trago pão da padaria que fica perto do meu trabalho. Fica mais fácil” (orientadora
educacional, 49, 40G). “Faço minha caminhada na avenida José Cândido, porque eu
e meu marido vamos de carro e é mais seguro, porque tem pista de Cooper”
183
(desempregada, 55, 41G). “Eu faço hidro – hidroginástica – na Cidade Nova (bairro
localizado entre o Alvorada e o centro da cidade); por aqui, nem pensar. Olha,
depois das oito da noite, eu não saio de jeito nenhum” (cozinheira, 53, 47G). “Estudo
no Senac, no centro da cidade” (costureira, 45, 38A). A justificativa dos depoentes a
respeito de suas decisões na busca de locais externos confirma tendências comuns
a vários setores da cidade.
FIGURA 49 Indicação dos percentuais de praticantes de atividades de lazer, moradores do conjunto Goiânia e do bairro Alvorada
Fonte: Elaborado por Maria Cristina Villefort Teixeira e Beatriz Marinho Gomes com base em pesquisa de campo, 2003.
Não deixaram de existir, da parte dos habitantes do bairro Alvorada, manifestações
que retrataram o relacionamento com os outsiders de maneira distante,
184
considerados por eles como pessoas perigosas. Esse exemplo nos remete a Elias e
Scotson (2000, p. 20), nos estudos sobre o tema, que mostram os problemas
centrais referentes às distinções de valor atribuído a famílias já consolidadas no
local, que passam a se ver e a serem vistas pelos outros como melhores e
superiores : “Compro pão numa padaria da Cidade Nova”. “Esse povo fica muito na
rua. Não peço pro meu filho ir comprar pão lá embaixo pra ele não ter contato e não
encontrar com eles” (dona de casa, 37, 45G). “Encontro com muitos deles na
padaria e no supermercado, mas não converso com nenhum” (desempregada, 25,
43G). Mas nem por isso deixam de ocorrer manifestações preconceituosas que
indicam desajustamento, que só o tempo poderá atenuar.
5.2.2.2 Os deslocamentos no conjunto e no bairro Araguaia
Entre os moradores do conjunto Araguaia e do bairro Araguaia, essa diferenciação
não se assemelhou, ao exemplo anterior: a maioria das atividades se concentrava
no bairro e nos arredores, o que permitia maior contato entre os dois grupos. Isso
não impedia que se declarassem, ali também, as manifestações de desconforto em
relação aos outsiders . Somente quando se avaliou a possibilidade de encontros nas
escolas houve indicação do deslocamento da maioria dos entrevistados para outras
regiões da cidade, a exemplo do que sucedeu entre os moradores do Goiânia e do
Alvorada.
Grande parte das atividades de comércio e prestação de serviços nas escalas
regional e local acontecia na avenida Olinto Meireles. Outra concentração surgia ao
longo das ruas Maringá e Eduardo Carlos, geradoras de importante eixo que ligava o
Colégio Polivalente Celso Machado ao Hospital Júlia Kubitschek, ambos centros de
referência regional.
No que diz respeito às compras nos supermercados, havia maiores possibilidades
de encontros entre os habitantes do bairro e do conjunto no Parapai, visto que 68%
dos habitantes do conjunto Araguaia e 64% do bairro Araguaia, conforme indica a
TAB. 28, se dirigiam para esse supermercado, fato que aconteceu também no
Paranaíba, apesar de ser em menor incidência. Os motivos que levaram a tal
escolha consideraram a proximidade e as condições de pagamento facilitadas, a
exemplo das respostas das comunidades do Goiânia e do Alvorada. O
185
supermercado BH, apesar de distante do conjunto, apresentava ofertas de produtos
a preço mais acessível e atraía somente os consumidores outsiders do conjunto. Um
dos fatores que pode ter contribuído para o afastamento dos moradores do bairro é
a aparência muito popular das suas instalações.
TABELA 28 Deslocamento dos moradores do conjunto Araguaia e do bairro Araguaia
Conjunto Araguaia Bairro Araguaia Local absoluto % absoluto %
Parapai 20 68 9 64 Belo Horizonte 5 17 - -
Paranaíba 2 7 3 22 Fora da região 1 4 2 14
Ganha cesta básica 1 4 - -
Supermercado
Total de incidências 29 100 14 100 Itamar 16 55 4 28
Estrelinha - - 4 29 Bom Trigo 6 21 4 29
Belo Horizonte 2 7 1 7 Praça do Minério 3 10 - -
Parapai - - 1 7 Não compra 2 7 - -
Padaria
Total de incidências 29 100 14 100 ABC 23 80 8 57
Belo Horizonte 2 7 - - Lima 2 7 6 43
Fora da região 1 3 - - Não compra 1 3 - -
Sacolão
Total de incidências 29 100 14 100 Gerson Febem 19 66 7 50 Gerson Maringá 6 21 1 6
Araguaia - - 3 22 Fora da região 1 3 3 22
Ganha no posto de saúde 3 10 - -
Farmácia
Total de incidências 29 100 14 100 Isaura Santos 15 37 - -
Francisco Bicalho 3 8 1 6 Ana Alves 3 8 1 6
Pedro Aleixo - - 1 6 Escola de outro bairro 16 39 6 35
Não freqüenta 3 8 8 47
Escola
Total de incidências 40 100 17 100 Cristo Redentor 7 25 7 50 Santa Mônica 2 7 3 22
Evangélica Sirius 3 10 1 7 Quadrangular 1 3 - -
Maranata 4 14 - - Assembléia de Deus 3 10 - -
Católica de outro bairro 1 3 1 7 Evangélica de outro bairro 5 18 2 14
Não freqüenta 3 10 - -
Igreja
Total de incidências 29 100 14 100 (continua...)
186
(conclusão)
Quadra José Verano 12 41 1 6 Pedro Aleixo 3 10 - - Isaura Santos 2 7 - -
Rua 1 3 - - Fora da região - - 3 22
Não pratica 11 39 10 72
Lazer
Total de incidências 29 100 14 100
Fonte: Pesquisa direta (dados compilados pela autora), 2003.
FIGURA 50 Indicação dos percentuais de consumidores em supermercados, moradores do conjunto Araguaia e do bairro Araguaia
Fonte: Elaborado por Maria Cristina Villefort Teixeira e Beatriz Marinho Gomes com base em pesquisa de campo, 2003.
187
A compra diária do pão se dava, para a maioria dos outsiders pesquisados, na
venda do Itamar, que se situava na esquina das ruas Amparo da Serra e Coronel
Severiano, próxima ao conjunto Araguaia, cujo percentual de consumidores era
quase o dobro, pois compreendia 55% deles contra 14% dos do bairro. É evidente
que a proximidade foi o fator que mais influenciou para esse resultado. Para os
eventuais encontros em compras nas padarias, o lugar mais adequado para que se
efetivassem as relações cotidianas entre os dois grupos seria a venda do Itamar.
FIGURA 51 Indicação dos percentuais de consumidores em padaria, moradores do conjunto Araguaia e do bairro Araguaia
Fonte: Elaborado por Maria Cristina Villefort Teixeira e Beatriz Marinho Gomes com base em pesquisa de campo, 2003.
188
A panificadora Bom Trigo também atendia simultaneamente aos consumidores do
bairro (29%) e do conjunto (21%, conforme a TAB. 28), bem como o supermercado
BH, embora neste tenha se manifestado menor freqüência. A padaria Estrelinha, por
sua vez, não era o lugar procurado por consumidores dos conjuntos, pois se tornava
distante para o seu deslocamento diário.
Ao mesmo tempo, a padaria da praça do Minério era freqüentada somente por
moradores do conjunto, porque esses consumidores tinham como bom motivo
passear naquele lugar, considerado muito bonito e cheio de flor. Essa manifestação
lembra as observações de Bourdieu (1998b), Santos (1997b) e Lynch (1990), que
afirmam que o envolvimento dos indivíduos com o lugar se dá além de questões
pragmáticas, retratando o reflexo dos valores atribuídos a eles e estabelecendo,
assim, relações topofílicas significativas.
No que diz respeito às compras no sacolão, o ABC concentrava 80% dos
freqüentadores do conjunto e 57% do bairro, de acordo com a TAB. 28, pois ele era
próximo à praça da FEBEM e, além disso, se avizinhava de outros estabelecimentos
de comércio local, tais como açougue, loja de aviamentos e o supe rmercado
Parapai. Nesse local se evidenciavam os encontros dos moradores da região,
tornando possível maior intercâmbio entre eles. Tal situação pôde ser comprovada
pelas manifestações dos usuários: “Sabe que eu aproveito pra ir no Parapai e já faço
tudo por ali. Aquela região da praça de FEBEM é muito boa e tem de tudo. É onde a
gente encontra os conhecidos” (dona de casa, 33, 5A). “Olha, eu vou pra praça da
Febem e resolvo tudo por ali e depois, quando é no sábado, ainda tomo uma
cervejinha antes do almoç o. A mulher não gosta muito não, mas eu encontro com os
meus amigos e bato um papo” (aposentado, 77, 41A).
O sacolão Lima, apesar de se localizar fora do percurso cotidiano dos moradores do
conjunto, foi citado como local de compra de frutas e produtos hortigranjeiros, tanto
pelos entrevistados dali como do bairro. A longa distância ao conjunto foi o fator que
explicou a freqüência do sacolão Maringá somente pelos estabelecidos compradores
do bairro.
189
FIGURA 52 Indicação dos percentuais de consumidores em sacolão, moradores do conjunto Araguaia e do bairro Araguaia
Fonte: Elaborado por Maria Cristina Villefort Teixeira e Beatriz Marinho Gomes com base em pesquisa de campo, 2003.
Nessa região, os habitantes ainda não tiravam partido dos benefícios do serviço de
entrega em domicílio. A rede de farmácias Gerson dominava o comércio de
medicamentos e duas dessas lojas eram ponto de concentração de vendas para a
população. A maior demanda se dava na Gerson próxima à praça da Febem, onde a
maioria dos dois grupos era atendida. A drogaria Araguaia foi citada somente pelos
moradores do bairro, pois se localizava em ponto estratégico da região, embora
distante do conjunto.
190
FIGURA 53 Indicação dos percentuais de consumidores em farmácia, moradores do conjunto Araguaia e do bairro Araguaia
Fonte: Elaborado por Maria Cristina Villefort Teixeira e Beatriz Marinho Gomes com base em pesquisa de campo, 2003.
As escolas Francisco Bicalho e Ana Alves foram os estabelecimentos de ensino
freqüentados pelas duas comunidades, mas, mesmo assim, apresentaram baixa
incidência, com 8% de estudantes no conjunto e 6% no bairro, conforme a TAB. 28.
Também nesse caso, a aproximação entre os jovens dos conjuntos e dos bairros se
dava no período das aulas, mas poucos eram os intercâmbios efetivados
extraclasse. Configuravam-se, assim, as condições de estigmatização, em que um
grupo passava a afixar um rótulo de inferioridade humana e fazê-lo prevalecer em
função de uma figuração específica que os dois grupos formavam entre si (ELIAS E
SCOTSON, 2000, p. 23). Em contrapartida, as portas das escolas serviam de palco
191
para práticas sociais entre eles, chegando até a atrair a presença cotidiana de
pessoas ao local.
FIGURA 54 Indicação dos percentuais de estudantes, moradores do conjunto Araguaia e do bairro Araguaia
Fonte: Elaborado por Maria Cristina Villefort Teixeira e Beatriz Marinho Gomes com base em pesquisa de campo, 2003.
A Escola Municipal Isaura Santos era a mais procurada pelos habitantes do conjunto
(38%), embora o percurso de acesso a ela fosse dificultado pelo cruzamento da
avenida Olinto Meireles. Essa instituição era ampla e disponibilizava maior número
de vagas para todas as idades. A falta de alunos do bairro dentro do universo
192
pesquisado impossibilitou o encontro das duas comunidades nesse estabelecimento
de ensino.
Quanto à questão religiosa, a maioria dos entrevistados declarou se dedicar à
prática do catolicismo, sendo que a ação dos padres das igrejas Cristo Redentor e
Santa Mônica envolvia os dois grupos nas atividades comunitárias em 32% dos fiéis
do conjunto e 72% do bairro. Assim, surgia a possibilidade favorável de encontros
entre os moradores católicos do Araguaia e os do bairro, durante os cultos e as
festas religiosas, sendo que estas eram realizadas na Semana Santa, em maio,
época de coroações, em junho, com barraquinhas, e em setembro, quando se
comemorava a primavera.
FIGURA 55 Indicação dos percentuais de fiéis, moradores do conjunto Araguaia e do bairro Araguaia
Fonte: Elaborado por Maria Cristina Villefort Teixeira e Beatriz Marinho Gomes com base em pesquisa de campo, 2003.
193
FIGURA 56 Vista da Igreja Cristo Redentor Fonte: Acervo particular da autora.
A igreja S írius, evangélica, era a única que acolhia, em seus cultos, fiéis tanto
outsiders quanto estabelecidos, pois nos demais templos essas atividades religiosas
eram praticadas apenas pelos moradores dos conjuntos. Fato comum entre os
católicos e evangélicos era a prática de missas e cultos em regiões mais afastadas
do bairro, com a presença de 21% dos fiéis tanto do conjunto como do bairro. Isso
se devia principalmente aos costumes mantidos pela tradição familiar, que
buscavam a realização das atividades, nos fins de semana, em locais mais
afastados, inclusive em cidades próximas da capital.
A prática de esportes se efetivava na quadra José Verano, um dos poucos lugares
que acolhiam os esportistas dos dois grupos nos jogos de futebol, representando,
portanto, novas chances de encontro entre eles. As demais respostas indicavam que
as quadras das escolas Pedro Aleixo e Isaura Santos davam suporte aos jogos dos
alunos nos horários fora de aula, mas elas eram freqüentadas apenas por
estudantes que moravam no conjunto, o que restringia a oportunidade de membros
dos dois grupos se encontrarem.
Cabe observar, ainda, que um alto índice das respostas indicou que 39% dos
moradores do Araguaia e 72% do bairro não praticavam qualquer atividade de lazer
194
ou esportiva. Os motivos eram justificados pelo desejo deles de permanecerem em
casa e por não terem se habituado, desde a infância, a praticar essas atividades.
FIGURA 57 Indicação dos percentuais de praticantes de atividades de lazer, moradores do conjunto Araguaia e do bairro Araguaia
Fonte: Elaborado por Maria Cristina Villefort Teixeira e Beatriz Marinho Gomes com base em pesquisa de campo, 2003.
Grosso modo, pode-se concluir que o cotidiano vivido pelos habitantes dos
conjuntos e dos bairros se diferenciou nos dois estudos de caso, mesmo
considerando que o processo de implantação e ocupação dos conjuntos Goiânia e
195
Alvorada tenha sido semelhante e simultâneo. As comunidades envolvidas nos
conjuntos apresentaram, no cotidiano, atividades distintas entre si.
As práticas de grande parte dos moradores dos bairros se dava fora da região,
chegando até a ocorrer além dos limites da cidade. A motivação para esse
comportamento se deveu às facilidades proporcionadas nessas áreas mais
afastadas, tais como proximidade do local de trabalho, acesso a estabelecimentos
que ofereciam maior variedade de produtos e preços mais acessíveis e, não
surpreendentemente, o desejo de não cruzarem com a população do conjunto no
seu dia-a-dia.
Por outro lado, os habitantes do conjunto Araguaia e do bairro Araguaia
freqüentavam os mesmos lugares nas atividades domésticas e de trabalho no dia -a-
dia e pode-se avaliar que o entrosamento entre os participantes das duas
comunidades se manifestava mais harmonicamente, se comparado ao estudo de
caso anterior. Ainda assim, a pesquisa não apresentou aspectos que identificassem
tendências que levassem a um efetivo entrosamento.
Cabe ressaltar que a participação das lideranças religiosas, nas comunidades em
estudo, contribuiu para que o relacionamento entre os dois grupos se efetuasse de
maneira menos agressiva. Outro aspecto que se apresentou como facilitador da
relação amigável entre os habitantes do conjunto e do bairro foi o padrão
educacional, de renda e da constituição das moradias dos habitantes do bairro
Araguaia. Esses fatores caracterizavam maior aproximação, ainda mais que foi
constatada menor diferenciação em relação ao modo de vida daqueles que
chegavam ao local, o que provocou, assim, maior aceitação dos estabelecidos no
bairro.
196
6 INTOLERÂNCIA ENTRE ESTABELECIDOS E OUTSIDERS
Em projetos habitacionais que impliquem novas concentrações de populações são
indispensáveis os cuidados relativos à forma em que as mesmas se entrosam. No
presente trabalho, os resultados das pesquisas indicaram claros sintomas de
intolerância entre os estabelecidos e os outsiders, cujas manifestações serão
avaliadas neste capítulo. Consideramos mais objetivo analisar os aspectos
referentes às práticas sociais nos conjuntos e às relações entre os grupos
envolvidos componentes da população resultante. Nessa etapa do trabalho, foram
realizados questionários com os dois grupos envolvidos e entrevistas com antigos
moradores dos bairros, os estabelecidos . Estes são instrumentos de grande
importância para a compreensão do entrosamento entre eles no espaço.
No momento em que grupos diferenciados passam a conviver e a estabelecer
relações de vizinhança entre si, podem acontecer redes de solidariedade, mas
podem também surgir conflitos, decorrentes da origem, da cultura e dos modos de
vida predominantes em cada um desses grupos. No sentido de reproduzir as
relações sociais, o fato de estar junto pode ser apenas uma etapa da vida de um
grupo; já o fato de se separar assinala o fim de um encontro (JOSEPH, 2000, p. 66).
E por que isso acontece? As possibilidades de valorização e apropriação do lugar se
expressam nas formas de sociabilidade e podem retratar, nas experiências vividas,
os níveis de tolerância e de intolerância que cada grupo apresenta internamente e
em relação ao outro.
Para tentar entender como isso acontece, inicialmente, cabe retomar as diretrizes da
sociologia urbana estabelecida pela Escola de Chicago, nas quais uma cidade é
definida como “um núcleo relativamente grande, denso e permanente, de indivíduos
socialmente heterogêneos” (WIRTH, 1973, p. 96-107). Aliás, o grande desafio dos
estudiosos é descobrir as formas de ação e organização social que emergem em
grupamentos compactos, relativamente permanentes, de grande número de
indivíduos heterogêneos. Para Wirth, a inter-relação do urbanismo com o modo de
vida pode levar ao maior conhecimento dos fenômenos sociais no meio urbano e ela
pode ser caracterizada de três maneiras: primeiro como uma estrutura física
197
consistindo uma base de população, uma tecnologia e uma ordem ecológica;
segundo como um sistema de organização social envolvendo uma estrutura social
característica, uma série de instituições sociais e um modelo típico de relações
sociais. Finalmente, essa inter-relação pode ser abordada como um conjunto de
atitudes, de idéias e como uma constelação de personalidades dedicadas a formas
típicas do comportamento coletivo e sujeitas a mecanismos de controle social. Sob
essas três formas, as relações sociais entre grupos heterogêneos podem se
manifestar, com freqüência, através da intolerância, fruto de relações conflituosas no
contato com o diferente.16
Aqui, Héritier (2000, p. 24) conceitua intolerância como a “expressão de uma
vontade de assegurar a coesão daquilo que é considerado como que saído de Si,
idêntico a Si, que destrói tudo o que se opõe a essa permanência absoluta”.
A intolerância também se refere à aceitação dogmática de uma série de concepções
sociais, políticas e religiosas e à identificação pessoal que dela decorre. Silva (1987)
considera que a intolerância está associada ao temor da alteração e da subversão
da ordem estabelecida e, se tal fato não ocorrer, ela carece de importância do ponto
de vista social.
Já Eco (2000, p. 17) admite que, entre outras formas, a intolerância tem raízes
biológicas e se manifesta entre os animais através da territorialidade, baseando-se
em reações emocionais superficiais. O ser humano, desde a infância, apresenta
intolerância em relação ao outro, instintivamente, se apropriando de tudo o que lhe
agrada. Para esse autor, a intolerância é uma condição natural, e o ser humano vai
aprendendo pouco a pouco a controlá -la através da permanente educação. A
importância desse aspecto justifica abordagem mais ampla, inclusive avalizada por
autores diversos.
Assim, a convivência com o diferente exige tolerância, pois ela permite acionar
funcionalmente a heterogeneidade (VAINER, 1998, p . 35) através do aprendizado, e
necessita de constante controle. Nesse sentido, Vainer avalia que, atualmente,
16 Referencia-se a Ecologia Urbana à sigla POETS: Population, Organization, Environment, Technology and Socio-psychology.
198
assistimos nas cidades ao crescimento das desigualdades, dos processos da
segmentação socioespacial e da violência, incrementados através da falta e da
precarização do emprego e dos cortes nos investimentos sociais. Esse
aprofundamento da desigualdade gera a construção de barreiras crescentes à
circulação e ao contato entre grupos sociais diferenciados, o que contradiz uma das
funções primordiais a serem estabelecidas nos centros urbanos, pois, além das
funções acima descritas, a cidade é o lugar do encontro do homem consigo mesmo;
ou se se prefere, o lugar do homem com sua humanidade (VAINER, 1998, p. 41-43).
Simmel (1973, p. 17) vai além e sua justificativa é de que, quando se trata de
relações do cidadão metropolitano, a tolerância sofre influência da questão
econômica e passa a determinar não apenas a indiferença, mas também a reserva.
Ela trata da auto-preservação dos indivíduos, face aos valores adotados para as
coisas que podem ser adquiridas, limitando a personalidade ao preço da
desvalorização de todo o mundo objetivo, cuja intensificação quantitativa é
transformada, gerando comportamentos como uma leve aversão, uma estranheza e
uma repulsão, chegando até à atitude blasé. Simmel afirma também que a essência
de tal atitude consiste no embotamento do poder de discriminar e, embora as coisas
apresentem significado e valores diferenciais, elas são destituídas de substância,
tratadas num tom uniformemente plano e fosco em que “o dinheiro torna-se o mais
assustador dos niveladores” (SIMMEL, 1973, p. 17)
Como exemplo, pode-se verificar, pelas manifestações das populações originais dos
bairros Alvorada e Araguaia, que vários desses fatores abordados pelos autores já
vinham induzindo esse comportamento. Essas comunidades já haviam estabelecido
fortes relações de vizinhança entre si ao longo da sua permanência nesses locais,
cujos laços reafirmaram a vinculação ao lugar através da proximidade, da busca de
objetivos comuns e dos encontros da população. Além do mais, esses moradores já
tinham uma consciência manifestada em várias lutas e conquistas, que os induzia a
demandar a utilização dos terrenos disponíveis para complementar a infra -estrutura
e implantar equipamentos carentes na região.
Ao mesmo tempo, as áreas urbanas para expansão representavam determinado
valor para os habitantes que ali viviam a sua cotidianidade. Então, a expectativa da
vizinhança em relação ao futuro uso desse espaço, não construído fisicamente, era
199
de que ele deveria ser apropriado dentro de critérios e de parâmetros que
retratassem ali a cultura, os valores e o modo de vida dos estabelecidos.
Quando os conjuntos foram implantados nessas áreas, surgiram reações contrárias
à sua construção, principalmente porque eles não atendiam às expectativas
daqueles que ali residiam anteriormente. Ao ser destinada uma função diferente de
suas expectativas, ou seja, um conjunto habitacional, a reação se intensificou, ainda
mais quando se verificou que tal empreendimento passaria a abrigar um grupo que
se caracterizava com costumes e modos de vida completamente diferentes dos
seus. Isso provocou uma série de manifestações e conflitos da população moradora
dos bairros contra a chegada dos novos habitantes, pois as diferenças percebidas
entre os dois grupos se tornavam ameaçadoras para o grupo que vinha se
mantendo coeso e adaptado na sua homogeneidade.
A URBEL não considerou essas circunstâncias e prosseguiu o processo de
implantação. Ainda mais que esse órgão, conhecendo tais diferenças, não se
preocupou em tomar medidas especiais a fim de atenuar as inevitáveis
discordâncias. E permaneceu na compreensão de que seria fácil integrar os novos
moradores com aqueles que já habitavam o local. Os objetivos dessa ação
tornavam-se importantes, pois seria uma oportunidade de inclusão dos menos
favorecidos no meio urbano, mesmo que as populações do conjunto e do entorno se
diferenciassem nos aspectos econômico, social e cultural. O grupo dos moradores
dos bairros, os estabelecidos , era composto, na sua maioria, por população de
classe média, cujos padrões se miravam em valores burgueses e que se
diferenciavam da situação dos novos habitantes, os outsiders , que buscavam, antes
de tudo, a casa própria e o acesso à infra-estrutura.
Ainda mais, acrescente -se que, no Alvorada, em 1995, o anúncio da construção do
conjunto Goiânia, através dos meios de comunicação, desencadeou reações
imediatas, pois segundo os habitantes mais antigos da região, não foi sequer
comunicada a construção de um conjunto habitacional nas proximidades. Esse fato
causou indignação em grande parte da população local, porque aquela comunidade
havia requisitado junto à Prefeitura Municipal a construção, no citado terreno, de
equipamentos urbanos precários ou ausentes na região, tais como postos de saúde
e policial, escolas ou centros comunitários. A declaração de um morador do conjunto
200
confirmou essa indignação: “a Prefeitura está implantando o conjunto sem dar
nenhuma contrapartida à comunidade como a melhoria da iluminação pública, posto
de saúde e escolas” (cf. ANEXO B).
Outro aspecto indicativo da revolta dos habitantes do local contra a implantação
desse assentamento foi a alegação de que seria perniciosa a convivência entre os
dois grupos e que esses conjuntos “poderiam representar um apartheid social:
estariam convivendo lado a lado, residências de pessoas de classe média com as
casas de famílias de baixa renda” (cf. ANEXO B).
Ao contrário do otimismo da URBEL, ocorreram evasões de habitantes do bairro, em
que os depoentes explicitaram como causa a implantação do conjunto. A simples
possibilidade de conviver com a nova vizinhança motivou a imediata mudança
desses antigos moradores. Esses habitantes se deslocaram para áreas mais
próximas do centro da cidade, providas de melhor qualidade de vida e que, para
eles, se resumia na proximidade de vizinhos com características semelhantes: “São
gente como a gente”, afirmou ex-residente do bairro Alvorada, atual morador do
centro da cidade.
Cabe ressaltar que a influência dos meios de comunicação era muito clara no
imaginário dos moradores antigos: os programas populares como, por exemplo, as
novelas, tornavam explícito o espírito da sociedade de consumo na busca de novos
valores, que expressavam maior poder e prestígio para o indivíduo, pelo fato de
possuir certos bens materiais. Como que “uma casa tão sonhada, bem implantada,
bem dividida, poderia ter nas suas imediações um conjunto habitacional?” Essa era
uma das várias colocações que os vizinhos faziam para apresentar sua indignação e
evitar a aproximação com o outro grupo. É curiosa a observação a respeito desse
conceito negativo generalizado quanto a planos habitacionais. No que diz respeito
ao projeto de novos assentamentos, torna-se importante considerar os fatos citados.
Outro motivo da saída dos moradores dos bairros foi a desvalorização das casas,
visto que grande parte deles temia que seus imóveis tivessem o preço desvalorizado
ainda mais. Aconteceram casos em que algumas residências foram vendidas “a
preço de banana, para cair fora dali o mais rápido possível”, segundo depoimento de
um deles. Essa afirmativa foi ratificada por moradores do entorno, que não eram
201
proprietários de imóveis para aluguel no Araguaia: “Se eu tivesse casa de valor pra
renda, ficaria preocupado. Teve um morador que mudou” (aposentado, 61, 31A). “O
conjunto acabou com o bairro. O valor das casas des abou. Coloquei minha casa à
venda pela metade do preço e não consegui vender” (vendedora, 47, 36A). Pode-se
observar, aqui, que a desvalorização não dizia respeito somente ao valor da terra,
mas retratava também o preconceito de indivíduos de classes mais favorecidas
contra a proximidade do outro ameaçador, presumidamente mais sujo, mais pobre e
mais feio que eles.
Do ponto de vista social, embora a prioridade do programa Área de Risco
propusesse abrigar famílias desalojadas e a sua aproximação e integração com os
habitantes dos arredores, essa segunda intenção, na realidade, não foi alcançada.
Tanto que a então presidente da URBEL, Dalva Stela Rodrigues, diante dos
protestos dos moradores do bairro contra a construção do conjunto, argumentou na
época do início da implantação do programa: “Com esses quatro pequenos
conjuntos estaremos com todas as famílias vítimas das chuvas de 1993 e 1994 fora
do risco [...] As famílias removidas de área de risco são trabalhadoras também. A
única diferença é que seus salários são baixos. Não são pessoas marginalizadas;
não são moradores de rua” (cf. ANEXO B). A declaração da presidente certamente
não considerou as conseqüências futuras da implantação do conjunto, que ainda
hoje se manifestam nas opiniões dos habitantes do bairro: a rejeição, a intolerância
e o preconceito foram sentimentos expressos com freqüência nas respostas da
presente pesquisa. Fatos que com a nova legislação urbanística, já em curso na
URBEL, tenderão a se atenuar.
Torna-se evidente que as repercussões negativas na época da implantação dos
conjuntos não foram devidamente consideradas no processo de planejamento e,
posteriormente, nas respectivas fases do assentamento, pois faltou continuidade na
orientação às populações, por parte dos órgãos responsáveis . Portanto, ao contrário
do esperado, as conseqüências dessa deficiência se retrataram de maneira
crescente no período de pós -ocupação. Essa não teria sido a única causa das
ocorrências, pois uma retomada histórica do processo desenvolvido indica que
inadequações do projeto ocorreram em desobediência a diretrizes e normas da
legislação vigente na época. A ausência de consulta prévia às respectivas
comunidades também gerou grande parte dos problemas ali existentes, que
202
poderiam identificar, desde o início, essas reações, ou então, conduzir a uma
solução mais adequada e conciliatória. Até mesmo contra-indicar a implantação do
conjunto nesse local, destinando-lhe terrenos disponíveis em outros setores da
cidade, de entorno mais adequado. Mas o que importa é a situação criada, que
exige retomada do problema, a fim de atenuar impactos e, de acordo com a
legislação atual, conduzir a população até à regularização fundiária, que implicará a
indispensável participação das comissões técnico-jurídicas, que apoiarão os fu turos
usuários.
Conflitos dessa natureza se retrataram desde os primeiros passos da pesquisa, nos
contatos com as populações envolvidas nos estudos de caso, os estabelecidos nos
bairros Alvorada e Araguaia e os outsiders nos conjuntos Goiânia e Araguaia.
Porém, à medida que o trabalho de campo avançou, foi possível verificar que, no
interior do conjunto, o relacionamento mútuo dos outsiders, embora em nível mais
brando, também apresentava algum tipo de conflito. Percebeu-se, então, a
necessidade de analisar não só as relações sociais entre os habitantes dos dois
grupos, mas também aquelas exercidas pelos moradores dos conjuntos entre si,
para que a condução do trabalho abrangesse um espectro mais amplo no que dizia
respeito à sua cotidianidade. Na verdade, essa deveria ser uma medida de amplo
sentido, como forma de efetivar melhorias de relacionamento.
6.1 As práticas sociais entre grupos no espaço
A tendência universal que se verifica quando dois grupos de origens diferenciadas
se aproximam resulta em divergências, cuja intensidade se manifesta na proporção
das diferenças sociais, econômicas e culturais dos mesmos. Essas circunstâncias
despertaram a atenção de variados autores. Dentre eles, podemos recorrer a Freud
(1997, p. 65-68), que, conforme seu profundo conhecimento da natureza humana,
assim as interpreta: “o ser humano apresenta uma predisposição à agressividade e
se uma pessoa for estranha para mim e não conseguir atrair-me por um de seus
próprios valores, me será muito difícil amá-la”. Na verdade, não precisa apenas
amar; é necessário, antes de tudo, respeitar. Assim, poderia haver a tendência de
esse estranho, mediante estímulos decorrentes da implantação de equipamentos e
eventos, estreitar suas relações no cotidiano.
203
Para esse autor, a existência da inclinação para a agressão, que podemos detectar
em nós mesmos e supor com justiça que ela está presente nos outros, constitui fator
que perturba nossos relacionamentos com o nosso próximo e força a civilização a
tão elevado dispêndio de energia. Em conseqüência dessa mútua hostilidade
primária dos seres humanos, a sociedade civilizada se vê, permanentemente,
ameaçada de desintegração, pois as paixões instintivas são mais fortes que os
interesses razoáveis. O fato, pela sua freqüência e constância demonstradas ,
realmente absorve energias a ponto de requerer atenções que, infelizmente, até o
presente, não têm sido levadas em conta. Mas que norteiam, fundamentalmente, as
recentes soluções que implicam em aproximações dos grupos.
Cabe lembrar, então, Bourdieu (1998a), que afirma que se pode ocupar, fisicamente,
um habitat, sem habitá-lo propriamente, falando se não se dispõem dos meios
tacitamente exigidos, a começar por um certo hábito. Esse autor lembra que o hábito
contribui para fazer o habitat, através dos costumes sociais mais ou menos
adequados, que ele estimula a fazer. Nesse sentido, existe a crença de que a
aproximação espacial de agentes muito distantes no espaço social pode ter um
efeito de aproximação social. E, assim, ele conclui: “nada é mais intolerável que a
proximidade física (vivenciada como promiscuidade) de pessoas socialmente
distantes” (BOURDIEU, 1998a, p. 165). Atenção especial deve ser dada ao
cotidiano, pois ele contém elementos e fatos que podem arrefecer os aspectos
negativos dessa intolerância citada.
Aliás, a existência de conflitos dessa natureza, retratada por Norbert Elias e John
Scotson (2000), demonstra que a forma original predominante da apropriação do
espaço pelos estabelecidos sofria o impacto da dos outsiders. O que mais chamou a
atenção no estudo dos pesquisadores é que não havia diferenciação de classe
social, étnica, racial, crença religiosa ou econômica entre os dois grupos, pois todos
os seus componentes eram trabalhadores da mesma fábrica, exercendo funções
semelhantes, com renda e nível educacional iguais. O único elemento distintivo entre
eles foi o tempo de moradia no local. Isso, no entender deles, não se configurava
como diferença entre classes; aliás, a diferenciação se dava intraclasse.
É oportuna uma referência ao es tudo de Bosi (1983), que recupera a história da
cidade de São Paulo através de depoimentos de velhos moradores, bem como ao
204
trabalho de Teixeira (1996) sobre o antigo bairro Floresta em Belo Horizonte. O
tempo de permanência no mesmo lugar estratifica as relações de afeto e os hábitos
das pessoas, retratando maior identificação do grupo com o lugar que, por sua vez,
estigmatiza aqueles que não construíram com ele o seu cotidiano.
De fato, o tempo de permanência no local poderia criar “o grau de coesão grupal, a
identificação coletiva e as normas comuns capazes de induzir à euforia gratificante
que acompanha a consciência de pertencer a um grupo de valor superior, com
desprezo complementar por outros grupos ” (ELIAS e SCOTSON, 2000, p. 21). O alto
grau de coesão de famílias que se conheciam por duas ou três gerações tornava os
recém -chegados estranhos, não apenas para os antigos residentes, como também
para eles próprios. O maior potencial de coesão era ativado pelo controle social dos
grupos mais antigos que, para preservar sua identidade e afirmar sua superioridade,
usavam como armas poderosas a exclusão e a estigmatização.
Na verdade, as condições de análise do presente trabalho parecem semelhantes às
dos estudos citados, porém ultrapassam esse nível, pois contemplam, ainda,
divergências e distanciamento nas relações sociais entre os dois grupos,
provocados, no mínimo, pelos aspectos econômicos e culturais.
6.1.1 A intolerância entre os pobres
A agressividade de grupos diversos em contatos iniciais é intensa em virtude da
diferenciação, mas tende a se atenuar. Nesse sentido, Freud (1997, p. 71) afirma
que a agressividade entre os indivíduos é uma forma de hostilidade contra intrusos,
exemplificada nas comunidades com territórios adjacentes que se relacionavam,
mas se empenhavam em manter rixas constantes, ridicularizando umas às outras.
Esse fenômeno foi identificado por ele como narcisismo das pequenas diferenças .
Na verdade, segundo esse estudioso, a agressividade constitui a base de toda
relação de afeto e amor entre as pessoas. Ela é retratada pela coesão entre os
membros da comunidade e constitui um dos vínculos de uma sociedade através das
identificações dos seus membros uns com os outros. Na medida em que a
manifestação da comunidade passa a refletir unicamente um pensamento, esse
único torna-se perigoso.
205
De fato, conforme observa Eco (2000, p. 17), não gostamos dos que são diferentes
de nós, “porque têm uma cor diferente de pele, porque falam uma língua que não
entendemos, porque comem rã, cachorro, macaco, porco, alho, porque usam
tatuagem”. É verdade que essa reação se limita ao contato inicial, em que sua
intensidade e sua duração, que se configuram nas diferenças sociais, culturais e
econômicas, tendem a se atenuar. Joseph (2000, p. 66) percebe essa dinâmica ao
expressar que “o mal-estar dos contatos mistos é uma cena primitiva da sociologia,
porque nos revela a tensão criada pelas relações sociais”.
Sob esse aspecto, é visível que a pobreza poderia ser um dos principais fatores que
levam ao agravamento da distância entre grupos nas sociedades modernas. Ela não
se configura simplesmente pela falta de bens materiais; ela corresponde a um
estado social específico, inferior e desvalorizado, marcando profundamente a
identidade daqueles que nela vivem. Segundo estudos realizados por Paugam
(2002), na mentalidade coletiva moderna, a pobreza é percebida de maneira
unicamente negativa; ela se torna “o símbolo do revés social e se traduz muitas
vezes na existência humana por uma degradação moral” (PAUGAM, 2002, p. 16).
Assim, a intolerância mais perigosa é sempre aquela que, na ausência de qualquer
doutrina, nasce dos impulsos elementares; por isso é que ela é difícil de ser
identificada e combatida com a ajuda de argumentos racionais e, nesse sentido, “a
intolerância mais terrível é a dos pobres, que são as vítimas da indiferença” (ECO,
2000, p. 18-19).
Essa mesma opinião é compartilhada pelo padre Joseph Wresinski nos estudos de
Gaulle -Anthonioz (2000, p. 158):
mais inesperada é a intolerância entre os pobres. Sua existência deve fortalecer nossa recusa à miséria e baseá-la em uma visão da realidade, tão exata quanto possível, para evitar, ao máximo, os bons sentimentos e uma certa ingenuidade [...] em terra de miséria, os ideais, certamente, são muitos, mas estão em contradição com as realidades da vida e as pessoas não podem se organizar para vivê -los em conjunto.
E esse estudioso vai além: “Eis toda a tragédia da miséria. Ter privado um homem
da cultura é mais grave que tê -lo privado do pão. Não lhe demos a possibilidade de
se identificar com um ideal”.
206
Os pobres, para Paugam (2002, p. 3), não são somente aqueles privados de
recursos econômicos, mas também os que exercem pouca influência sobre o poder
político, sendo que sua respeitabilidade corresponde geralmente à sua posição
social inferior. A nova pobreza remete a várias evoluções simultâneas, em particular,
à degradação do mercado de trabalho com a multiplicação dos empregos instáveis e
ao forte crescimento do desemprego, assim como ao enfraquecimento das ligações
sociais cujos principais sintomas são o aumento das rupturas conjugais e o declínio
das solidariedades de classe e de proximidade. Mesmo que a situação abordada no
presente trabalho não represente os casos extremos aqui citados, cabe incluir
previsões dos autores seguintes, no sentido de caracterizar situações que
inevitavelmente venham a ocorrer.
Tal situação torna-se ainda mais perversa à medida que o pobre passa de uma
identidade já negativa, uma espécie de não-identidade, de não-existência
administrativa, ao desaparecimento de qualquer registro. Joseph Wresinski afirma
que “o mal maior da pobreza extrema é viver como um morto -vivo durante toda a
existência, não conseguir ser levado em conta por ninguém, a ponto de até mesmo
seus sofrimentos serem ignorados” (GAULLE-ANTHONIOZ, 2000, p. 157).
No entanto, repetimos que, no presente estudo, as intenções definidas pelos
entrevistados levam, no mínimo, no caso de não ocorrer a indispensável orientação
dos órgãos competentes, aos ajustamentos naturais que ocorrem no território urbano
da capital.
Nesse sentido, se existe uma expressão do local, a relação progressiva com ele se
faz gradual e conjuntamente, no sentimento dos seus ocupantes, através de
processos cumulativos de trocas entre as pessoas. Por isso, a vizinhança existe sem
organização formal (PARK, 1973, p. 32). Acontece que a implantação dos conjuntos
Goiânia e Araguaia é uma formalização física e material, que certamente tem
influenciado nas relações sociais dos moradores, especialmente pelo fato de todos
eles terem apropriado esses conjuntos simultaneamente.
207
6.2 As práticas sociais nos conjuntos
Na pesquisa, durante os contatos iniciais com os moradores dos conjuntos Goiânia e
Araguaia, foi constatado que não só as relações entre os estabelecidos e os
outsiders se apresentavam conflituosas. Verificou-se também que o convívio entre
os moradores dos conjuntos indicava situações semelhantes. Ao se efetivar a
pesquisa, o que chamou atenção foi que 41% dos residentes de ambos os
conjuntos, conforme indicado na TAB. 29, não tinham qualquer tipo de convivência
com os demais membros internos, enquanto 26% do Goiânia e 21% do Araguaia
afirmavam que só se cumprimentavam nas suas relações cotidianas e ainda havia
quem, em menor proporção, não tivesse bom relacionamento com os demais, que
compreendia 2% no primeiro grupo e 3% no segundo.
TABELA 29 Relacionamento entre moradores dos conjuntos
Conjunto Goiânia Conjunto Araguaia Total Tipo de Relacionamento
absoluto % absoluto % absoluto %
Não tem co nvivência 16 41 12 41 28 41
Boa convivência 12 31 10 35 22 32
Só cumprimenta 10 26 6 21 16 24
Não tem bom relacionamento 1 2 1 3 2 3
Total de incidências 39 100 29 100 68 100
Fonte: Pesquisa direta (dados compilados pela autora), 2003.
Tal desarticulação provocou a ausência de qualquer representatividade dessas
comunidades ou de uma liderança que respondesse por ela. Esse fato foi
comprovado durante as discussões da II Conferência Municipal de Habitação,
realizada em Belo Horizonte, em dezembro de 2001, onde não havia representantes
de ambos os conjuntos.
Aliás, Ribeiro (2000, p. 20) considera que a liderança é reconhecida a partir da sua
identificação com o domínio de informação sobre o espaço analisado, com o contato
freqüente com responsáveis pelas intervenções, assessores e mediadores, com a
experiência em práticas de organização e mobilização e com a capacidade de
estimular e orientar a participação dos moradores. Além do mais, para melhor
entendimento do relacionamento entre as pessoas, Joseph (2000, p. 65-66) afirma
208
que é necessária a participação no grupo, e esse grupo passa a se configurar como
tal quando representa uma organização social cujos elementos são indivíduos que
se percebem como membros e que percebem a organização como entidade coletiva
distinta, separada das relações particulares que eles mantêm entre si.
Mesmo assim, segundo essa autora, na maioria dos casos, torna-se difícil
reconhecer lideranças, visto que, por princípio, a comunidade encontra-se
mobilizada e representada nas arenas construídas pela intervenção urbana. Esse
fato não se verificou nos conjuntos, pois a competição entre seus membros se
sobrepôs à sua participação na comunidade (RIBEIRO, 2000, p. 20).
Manifestações de moradores dos conjuntos Goiânia e Araguaia retrataram bem a
falta de lideranças representativas, característica comum aos mesmos, o que foi
bem observado por um residente do Goiânia: “Pra mim, a coisa mais importante
agora no conjunto é fazer uma sindicância pra melhorar o conjunto. Se não tirar uma
pessoa de frente pra tomar conta das coisas, nada vai pra frente” (desempregado,
53, 39G). Esse depoimento manifesta rara consciência capaz de indicar uma
potencialidade de liderança, embora não ficasse explícita sua disposição em exercê-
la.
Vários depoimentos demonstraram a necessidade de melhorar o entrosamento entre
os moradores, relacionado, em grande parte, com as diferenças entre as pessoas, o
que não impedia, no entanto, que permanecesse a característica de grupo:
“Antigamente quando a gente mudou pra cá, o pessoal era mais uma família. Hoje
são poucas as pessoas unidas. Não é mais uma família. A gente era mais unido”
(faxineira, 32, 14G). “Pra mim, o conjunto é uma comunidade de pessoas. Aqui era
pra ter mais entrosamento, mas não tem. Tem muito tipo de pessoas diferentes.
Precisava ter mais entendimento entre as famílias. Falta união” (dona de casa, 35,
10G). Não há, portanto, expectativa de uma liderança, pelo menos até que apareça
um fato novo que possa criar objetivos comuns nos dois grupos.
Isso mostra, conforme Elias e Scotson (2000, p. 166-179) afirmam, que os grupos
residenciais de famílias que constroem lares com certo grau de permanência
suscitam problemas próprios, cuja compreensão é fundamental para a constituição
da comunidade como comunidade. De fato, no caso em estudo, essa coesão dos
209
moradores dos conjuntos é passível de ocorrer. Mediante uma ação conjunta com os
órgãos competentes, no que diz respeito ao cotidiano, essas populações poderão
atingir a situação prevista pelos autores e serem conduzidas pelo complexo caminho
institucional que leva ao objetivo final, que é a regularização fundiária.
Na pesquisa, foi constatado que a maior parte dos habitantes dos conjuntos não se
relacionava com seus vizinhos, e foi demonstrado, por outro lado, que havia
ambiente da boa convivência para 31% dos habitantes do Goiânia e para 35% do
Araguaia, de acordo com a TAB. 29. Essas aproximações foram naturais,
decorrentes do relacionamento construído ao longo da história de vida comum
dessas pessoas, desde o tempo em que elas estiveram alojadas nos
acampamentos: “Tenho boa convivência com todo mundo, mas é cada um na sua”
(dona de boteco, 37, 15G). “Graças a Deus, convivo bem com todo mundo. É só
com essa mulher que sumiu, que não. Ela atrapalhou o conjunto. Ela mexia com
droga e teve que fugir” (pedinte, 64, 19A). “Sou amiga da Etelina e da Nora. O resto
eu conheço de vista. A gente se conhece desde o acampamento e foi aprofundando
nossa amizade com o passar dos anos” (dona de casa, 48, 26G). “Convivo com a
maioria, mas vou mais na casa da Rute. Ela é a mãezona de todos nós” (dona de
casa, 44, 25A). Como todo o espaço livre dos conjuntos já tem destinações, não há
possibilidade de implantação de equipamentos que poderiam contribuir para que as
relações cotidianas entre os outsiders se estreitassem no seu interior. A menos que
a URBEL promova um reajustamento dos usos desses espaços livres.
Embora grande parte dos habitantes dos conjuntos se identificasse com o local, foi
constatada, na pesquisa, a necessidade de alguns deles se isolarem para se
proteger, não se comprometer e resguardar a privacidade da família. Havia aqueles
que faziam questão de demonstrar total isolamento, manifestando sua discriminação
em relação aos membros do grupo ao qual pertenciam formalmente: “Não tenho
intimidade com ninguém; não converso com ninguém para falar se aqui é bom”
(bordadeira, 26, 20A). “Só conheço as pessoas de vista. É meu jeito de ser: evitar ter
contato pra não ter problemas” (vendedora, 28, 12A). “Não sou conhecida do
pessoal; eles são do Jatobá 4” – acampamento onde se estabeleceram vários
desabrigados do programa Área de Risco – (aposentada, 51, 11A). Essas
afirmações partiram de pessoas que enfrentaram situações diferenciadas, pois não
pertenciam ao grupo original que vinha convivendo desde o início do processo.
210
Outros entrevistados valorizavam sua moradia, mas mantinham distância em relação
aos vizinhos do conjunto: “Gosto mesmo é da minha casa. A gente avista ela lá de
longe. Mas eu não gosto de me misturar não” (dona de casa, 48, 26G).
Os questionários mostraram outros graves problemas que dificultaram o
relacionamento entre os moradores dos conjuntos: o tráfico de droga e o mau
comportamento dos vizinhos. As brigas dentro dos conjuntos provocaram
desavenças entre os habitantes do Goiânia e do Araguaia, pois a maioria das
pessoas que ali residia se sentia ameaçada e amedrontada. Essas realidades
inevitáveis, em casos dessa natureza, como o consumo de drogas, retrataram uma
nova prática social, que diferenciava as pessoas.
A convivência com esse mundo era uma coisa inevitável: crianças estavam
habituadas a brincar nos espaços coletivos, principalmente nas ruas internas,
enquanto jovens sentados nos passeios consumiam drogas. Alguns moradores
conviviam naturalmente com a situação e, de certa maneira, eram coniventes com
os traficantes: “Eles não amolam. Não tenho coragem de entregar ninguém, porque
eles não mexem com a gente” (dona de casa, 60, 17G). “Os detetives vieram me
perguntar se eu sabia de alguma coisa sobre o pessoal da droga, mas eu não falei
nada. Não tô aqui pra morrer de graça não” (dona de casa, 48, 26G).
Obviamente, os habitantes dos conjuntos se sentiam ameaçados, temendo
represálias, quando comentavam que havia pessoas no conjunto envolvidas com
droga: “Os maconheiros são o maior problema do conjunto. Eles não gostam que a
gente fala. Eles marcam a gente” (doméstica, 43, 18A). “Tem muita falta de união
entre os moradores. Com isso, está tendo infiltração de pessoas com outros hábitos
dentro do conjunto; com droga, num sabe?” (pedreiro, 53, 39G). “Tem os que vêm
de fora. Falar, ninguém fala” (dona de casa, 60, 23G).
Aliás, todos nos conjuntos sabiam quem eram os envolvidos com droga. Grande
parte dos vizinhos se relacionava socialmente com eles, mas temia a possibilidade
de ser identificada por terceiros, como integrante do grupo de marginais, o que
significava que eles seriam estigmatizados como traficantes ou usuários da mesma.
Por isso, evitavam contatos. Até mesmo utilizavam outra denominação para se
referirem a eles: malandragem, coisa estranha, porcariada, bandidagem, todos
211
esses termos indicando algum tipo de negação ou rejeição. Em alguns casos,
chegavam até a afirmar que os usuários de drogas eram provenientes das favelas
localizadas nas proximidades: “Não tenho nada a reclamar do conjunto. Fico mais
dentro de casa. Os vizinhos são maravilhosos, mas tem dia que dá vontade de
sumir, por causa dessa malandragem” (dona de casa, 42, 30G). “Tem muita
porcariada nesse lugar. Não resolve a polícia entrar e prender só alguns” (catadora,
63, 7A). “O povo de fora, com a bandidagem, é o maior problema do conjunto. Eles
vêm aqui e roubam. A polícia tem que freqüentar mais esse lado. Na verdade, o
contato com eles aqui é com o pessoal da casa 38” (dona de casa, 60, 36G).
Pôde-se observar que alguns dos que mudaram posteriormente para os conjuntos
não se sentiam como parte integrante do grupo, chegando a apresentar, também,
distanciamento dos moradores, como foi demonstrado no depoimento de uma nova
residente: “O que eu acho bonito é a união deles; eles brigam, mas continuam
unidos” (dona de casa, 37, 13A). Observa-se como a recém-chegada se distancia da
condição de membro do grupo.
Assim, mais uma vez, percebe-se que a intenção dos empreendedores e arquitetos
de implantar racionalmente as edificações não aconteceu após a ocupação dos
mesmos, não só sob o aspecto físico, mas também sob o ponto de vista das
relações sociais. Além disso, o entrosamento entre os habitantes dos conjuntos foi
agravado pela interrupção dos procedimentos de assistência às comunidades,
especialmente no campo social. O trabalho de informação dos passos da
implantação dos conjuntos, bem como da integração entre elas, através do incentivo
de atividades comuns, seriam bons exemplos de continuidade do processo de
ocupação.
6.3 As práticas sociais conjunto-bairro
Desde o início da implantação dos conjuntos que as manifestações dos habitantes
dos bairros Alvorada e Araguaia expressaram opiniões desfavoráveis ao
empreendimento. Primeiro, porque a ocupação das áreas livres não se verificou de
acordo com a expectativa da maioria, que pretendia uma vizinhança com
características e padrões semelhantes à existente; segundo, porque a
212
desvalorização dos seus imóveis foi conseqüência imediata da implantação dos
mesmos e, por último, porque os novos moradores se tornaram ameaça constante
para os que ali residiam, pois eram vistos pelos já estabelecidos como indivíduos
desconhecidos e de origem duvidosa. Além disso, o fato de todo esse novo grupo
chegar ao local ao mesmo tempo, também era considerado ameaçador para grande
parte de quem já residia ali, que preferiu se isolar ou até mesmo apresentar relações
de intolerância ao novo grupo.
6.3.1 “Um estranho no ninho”
Elias e Scotson (2000), na sua pesquisa, afirmam que, num núcleo de residentes
antigos, era atribuído um valor elevado aos padrões, às normas e ao estilo de vida
que eles haviam criado entre si. Tudo isso tinha, segundo eles, uma estreita ligação
com o respeito próprio e pelo que eles julgavam que lhes seria devido por aqueles
que não construíram com eles esses valores.
Os recém-chegados que se fixaram no loteamento foram vistos como uma ameaça a essa ordem, não porque tivessem qualquer intenção de perturbá-la, mas porque o seu comportamento levava os velhos residentes a achar que qualquer contato estreito com eles rebaixaria seu próprio status, que os arrastaria para baixo, para um status inferior em sua própria estima e na do mundo em geral, e que reduziria o prestígio de seu bairro, com todas as possibilidades de orgulho e satisfação que lhe estavam ligadas (ELIAS e SCOTSON, 2000, p. 167).
Os moradores dos bairros Alvorada e Araguaia adotaram processos semelhantes no
movimento contra a construção dos conjuntos, que eram, na maioria das vezes, mal
vistos e causavam reações extremadas da parte dos estabelecidos. Ao mesmo
tempo, receavam que os hábitos desenvolvidos pela maioria dos moradores até
então fossem alterados ou subvertidos, como lembra Silva (1987). Essa reação
gerou indisposição no relacionamento com os membros do outro grupo, que os
obrigava a conviver com esse outro desigual e desconhecido que chegava. O
contato com a diferença chegou a criar obstáculos para o respeito às normas de tal
convivência: “Fui contra a vinda do conjunto pra cá. Desde o início achei que ia dar
problema. No início, já vi de cara. Atualmente, as pessoas que apoiaram estão
super-arrependidas” (dona de casa, 51, 42A). “No começo, eu achava que seria uma
coisa mais bem organizada, que fossem pessoas selecionadas, como foi dito na
213
reunião: seriam pessoas que perderam suas casas, porque iam abrir ruas onde elas
moravam. Houve muita discussão e fui taxada como a ‘riquinha do bairro’, porque
não queria pobre aqui” (vendedora, 47, 36A). “Eu já não esperava coisa boa.
Participei do movimento contra ele desde o começo: paguei até advogado. Teve
gente que falou que não ia ter problema, que, no futuro, a gente ia comprando as
casinhas aos poucos e transformava tudo em prédios” (aposentado, 69, 52G).
Os depoimentos confirmaram a desconfiança em relação aos resultados do impacto
da construção dos conjuntos, que eles consideravam negativos, o que se verificou
na realidade. Desses comentários, pode-se concluir que a população não foi
integralmente informada quanto a aspectos e características do novo grupo a ser
atendido.
Para os moradores dos bairros Alvorada e Araguaia, os modos de vida dos outsiders
apresentavam grande distanciamento nas condições econômicas, culturais e sociais
em relação a eles, o que era expresso nos níveis de educação, de higiene, de
cultura e de acesso ao mercado de trabalho. Além do mais, grande parte dessa
população já residia no local há mais de 30 anos, com alto nível de coesão. Sob
esse ponto de vista, a coesão entre os estabelecidos no Alvorada e no Araguaia
apresentou um índice mais alto do que o predominante nos conjuntos. Isso leva,
para os seus membros, “as posições sociais com potencial de poder mais elevado,
excluindo dessa posição os membros dos outros grupos” (ELIAS e SCOTSON,
2000, p. 22), conforme os depoimentos: “A diferença está no estilo. Só de olhar para
as pessoas, a gente sabe que elas são diferentes. Só andam bêbados, não
trabalham. Os moradores do bairro são proprietários, são de classe média, de nível;
os do conjunto não” (vendedora, 47, 36A). “Tem muita diferença no modo de viver.
Lá é outro nível de convivência. Todo mundo diferente, completamente diferente. Eu
não vou misturar com eles lá. Vou ficar no meu cantinho. Pra quê que eu vou lá?”
(dona de casa, 70, 43A). “No bairro, todo mundo trabalha. Ali eles não trabalham, a
rua fica cheia de desocupados o dia inteiro. Alguém bebe no sábado e a gente finge
que não vê, porque tem muita gente dopada” (vendedora, 41, 43A). “No conjunto, é
uma meninada na rua, invadem a rua, os pais não ligam. Não é um ambiente que a
gente está acostumada” (dona de casa, 62, 35A).
214
Poder-se-ia admitir que, com o passar do tempo, tais reações seriam amenizadas.
Isso não se verificou com tanta evidência e tão rapidamente, pois indagados sobre o
que significava morar próximo a um conjunto habitacional, tanto os habitantes do
Alvorada como os do Araguaia ainda manifestavam certa intolerância em relação
aos novos vizinhos. Assim como aconteceu entre os outsiders, o principal fator que
levou a esse distanciamento foi a falta de segurança que, na maioria das vezes, se
vinculava às drogas para 60% dos habitantes do Alvorada e para 35% do Araguaia,
como indica a TAB. 30: “A única coisa é que não tem sossego para sair de casa
depois das nove. Tenho que voltar de táxi, pois os malandros já estão na rua”
(artesã, 29, 51G). “Ter um conjunto perto de casa é muito risco. Apesar deles
ficarem pra lá, tem a questão da segurança. Depois deles, teve mais assalto na
região” (aposentado, 59, 53G). “A única coisa que eu tenho medo é da violência.
Não é pelo fato de ser conjunto; é pelos desempregados, porque eles arranjam uma
forma mais fácil de ganhar dinheiro, o que se torna uma ameaça pra nós ”
(orientadora educacional, 49, 40G).
TABELA 30 O que significa morar próximo a um conjunto habitacional
Alvorada Araguaia Total Fator
absoluto % absoluto % absoluto %
Insegurança 9 60 6 35 15 47
Indiferença 5 34 2 12 7 22
Distanciamento - - 6 35 6 19
Vandalismo 1 6 1 6 2 6
Sujeira - - 1 6 1 3
Antes de construir era pior - - 1 6 1 3
Total de incidências 15 100 17 100 32 100
Fonte: Pesquisa direta (dados compilados pela autora), 2003.
Pode-se afirmar que esse é um fenômeno comum a todos os centros urbanos, mas
como os moradores dos conjuntos representavam o diferente e o ameaçador, eles
se tornaram para os estabelecidos um valor humano inferior ao que eles se
atribuíam. Aliás, o estigma social imposto pelo grupo mais poderoso ao de menor
peso social costuma penetrar na auto-imagem desse último e, com isso, enfraquecê-
lo e desarmá-lo (ELIAS e SCOTSON, 2000, p. 24). As respostas dos moradores dos
bairros Alvorada e Araguaia podem ilustrar essa diferença social atribuída: “A
215
diferença é muito grande, porque infelizmente tem muita gente que separa: tem
droga, tem ladrão. A diferença é essa e é deles também. Eles são os pobres e nós
os doutores. Isto gera distância” (professora, 39, 50G). “A diferença existe em tudo:
na educação, na higiene e no comportamento ” (artesã, 29, 51G). “Eles me parecem
revoltados: batem campainha e pedem pão. Se você não dá, eles fecham a cara,
ficam revoltados e falam palavrão” (dona de casa, 37, 45G). Essas reações
demonstram que nesse grupo ainda se mantêm atitudes de preconceito. Na
verdade, o impacto foi real sobre os modos de vida de ambos os grupos, mas o que
agravou essas reações contrárias à implantação dos conjuntos foram essas atitudes
preconceituosas.
A situação de morar próximo a esses estranhos era entendida pelos estabelecidos
como proximidade à favela, vista com preconceito e distanciamento, o que reforçava
ainda mais a diferença entre os dois grupos: “O conjunto é um problema, porque o
povo é estranho. Eles causam medo na gente. O tempo inteiro que a gente passa
por ali, está aquele bolo de gente: um tanto de homem e mulher bêbados. É
deprimente!” (orientadora educacional, 49, 40G).
Mais uma vez, para os estabelecidos dos bairros Alvorada e Araguaia, morar
próximo a um conjunto habitacional passava a significar proximidade com os outros
que eram diferentes, o que poderia ser entendido como ameaça, relacionada à
insegurança e à distância social: “Todo mundo tem oportunidade de ter uma casa.
Eles deveriam viver bem sem trair a gente. A gente os acolheu. Nós não ganhamos
nada com isso. Só perdemos. Temos que ser solidários, mas ficou difícil” (corretor,
59, 42A). “Pra mim, não significa nada. Não dou confiança, não bato papo. É eles
pra lá e eu pra cá. Quando eles mudaram, era faca pra cá, faca pra lá. Os ladrões
foram embora, mas têm muitos por lá que mexem com maconha” (aposentada, 70,
33A). “O conjunto não ameaçou quando veio: era mais novo, mais limpo, tinha umas
casinhas coloridas. Com o passar do tempo, perdeu e deu no que deu” (técnica
laboratorial, 38, 48G). Vê-se que os impactos dessa implantação no local
transcenderam aspectos físicos, mesmo que tenha se tornado evidente a
descaracterização dos conjuntos e resultaram, também, em constrangimentos
sociais, o que confirma as relações de exclusão percebidas.
216
Como foi bem exposto por Elias e Scotson, as diferenças nos modos de vida dos
moradores dos conjuntos e dos bairros implicam no distanciamento entre eles:
os sintomas de inferioridade que os grupos estabelecidos muito poderosos mais tendem a identificar nos grupos outsiders de baixo poder e que servem a seus membros com justificação de seu status elevado e prova do seu valor superior costumam ser gerados nos membros do grupo inferior – inferior em termos de sua relação de forças- pelas próprias condições de sua posição de outsiders e pela humilhação e opressão que lhe são concomitantes (ELIAS e SCOTSON, 2000, p. 28).
Essa relação de poder foi expressa pelos entrevistados: “As pessoas não estão
preparadas pra viver no meio da gente. Já são assim e não mudam de uma hora pra
outra. Fica uma convivência difícil” (costureira, 45, 38A). “Pra gente que mora aqui,
complicou bastante: o pessoal gosta de ficar à toa e não gosta de trabalhar; tem
muita gente estranha. Aqui era mais tranqüilo. Hoje é difícil não ver um policial
fazendo ocorrência” (gerente de loja, 45, 32A). “Na questão social, eles são muito
diferentes. A impressão que se tem do conjunto é quase uma favela. Acaba
intimidando as pessoas. Você tem que ficar com tudo trancado” (professora, 25,
43G).
Além disso, o preconceito passa a ser incorporado a outros tipos de sentimentos
mantidos pela população dos bairros. Ainda Elias e Scotson (2000, p. 177) elevam
essa percepção como um importante pano de fundo para afirmá-lo no contexto
“como mais um aspecto das crenças sociais de um grupo estabelecido, em defesa
de seu status e poder contra o que é sentido como uma agressão dos outsiders ”. Os
depoimentos de moradores do Goiânia podem ilustrar essa rejeição manifesta: “Eles
sentem que são discriminados, que a gente não trata todos como gente, mas nós
somos felizes. Eu não falo favela, falo conjunto. É uma palavra meio pesada. Eles
mesmos são diferentes com a gente, mas não podem reclamar” (costureira, 59,
49G). “Não dou a menor confiança pra esse povo que mora aí. Nem penso em entrar
lá” (dona de casa, 37, 45G).
Essa realidade constitui mais um argumento que reforça a necessidade de
reaproximação da URBEL, para que, conjuntamente com a população envolvida,
alcancem melhores condições de convívio. Felizmente, as opiniões não são
unânimes; elas são variáveis e têm gradações, o que constitui um atenuante nos
217
esforços de conciliação. Além disso, a intolerância dos outsiders não apresenta a
mesma intensidade, circunstância que faz prever otimismo quanto ao
relacionamento entre os dois grupos no futuro.
Mesmo acontecendo várias reações dos estabelecidos contra a implantação dos
conjuntos, surgiram depoimentos favoráveis à sua construção, chegando até a
retratar certa conformidade com a situação. Essas pessoas admitiam que, como
cidadãos, os novos habitantes teriam direito à moradia: “Aceitei. Quando as pessoas
estavam no Jatobá, nós fomos lá visitá-los. Aceitamos na época, porque era
Campanha da Fraternidade, era o ano dos sem -terra” (dona de casa, 62, 35A). “O
pessoal precisava de casa e ficamos sensibilizados. Meu marido foi contra e eu
fiquei dividida. Quem mandava mesmo era a Prefeitura; a gente não podia ir contra”
(dona de casa, 37, 13A). “Não tive nada contra; nem liguei. Tudo é válido. Eles
precisavam de um lugar pra morar” (aposentada, 62, 46G).
Mas até mesmo quando tratavam com naturalidade a presença de um assentamento
nas proximidades, muitos entrevistados não deixavam de apresentá -lo como
diferente em relação ao contexto em que viviam: “O conjunto não influenciou na
qualidade do bairro não, porque em todos os lugares da cidade tem favela perto”
(vendedora, 41, 40A). “Pra mim, todos nós temos direito à moradia. É um direito que
Deus deixou pra nós como ser humano. Agora, problema traz problema: o bairro foi
planejado para um certo tipo de pessoas e chegam essas pessoas daí. Dá muito
problema, muita briga” (aposentado, 58, 54G).
Apesar de não apresentarem distanciamento explícito no relacionamento com o
outro grupo, os estabelecidos do bairro Araguaia também depreciavam o
comportamento dos moradores das casinhas azuis , tratamento dado ao conjunto
Araguaia na época da implantação. Uma das moradoras, que alugou uma residência
no bairro há dois anos, alegou que não conhecia as casinhas azuis, pois se
soubesse da existência do conjunto, não teria feito a negociação.
Outro fato curioso chamou a atenção: foi construído um prédio em frente ao conjunto
Araguaia, na rua Amparo da Serra, no final de 2000. Dos 16 apartamentos
disponíveis, somente oito deles tinham sido vendidos até março de 2003, apesar de
anunciados com freqüência pelos meios de comunicação. O principal motivo
218
apresentado pelos pretendentes, para que a negociação não se realizasse, foi a
proximidade do conjunto.
FIGURA 58 Vista da esquina das ruas Amparo da Serra e Coronel Severiano no bairro Araguaia
Fonte: Acervo particular da autora.
Por outro lado, pode-se perceber que, já na época da pesquisa, aparecem sintomas
de uma natural aproximação entre os dois grupos, mas mesmo assim, a relação de
superioridade dos antigos moradores, comentada por Elias e Scotson, se faz
presente, como mostram os depoimentos: “Eles já civilizaram. Mesmo assim, eu
tomo cuidado. Nossa rua era sossegada antes do conjunto” (desempregada, 55,
41A). “Não concordei quando eles vieram pra cá. Fui contra; cheguei até a ir na
Câmara dos Vereadores, mas não adiantou. Atrapalhou, mas está dando pra levar:
agora não está tão ruim assim. Eles não perturbam tanto” (costureira, 59, 49G).
Algumas manifestações indicaram que já tinha havido melhora no comportamento
dos outsiders, a partir da sua convivência com a comunidade ali estabelecida
anteriormente: “É a mesma coisa; não altera nada. Já foi pior do que é hoje. Tinha
muita briga, muito barulho. Agora, graças a Deus, eles estão mais civilizados ” (dona
de casa, 62, 35A). “Depende muito das pessoas que moram nos conjuntos. Não
somos contra os conjuntos. Queremos pessoas selecionadas para termos
tranqüilidade” (almoxarife, 39, 44G).
Observações de campo mostraram que grande parte das antigas residências do
bairro apresentava muro alto ou grade na frente, sendo que algumas delas sequer
tinham campainha. Perguntados sobre a falta desse equipamento, os proprietários
responderam que não gostariam de ser importunados pelos novos vizinhos, pois
quando eles mudaram para o local, tocavam esse dispositivo ininterruptamente. A
estigmatização e a busca da tranqüilidade passaram a fazer parte dos hábitos da
comunidade existente, como forma de ajustamentos iniciais no contato com a nova
219
vizinhança. É verdade que sempre haverá manifestações comuns a relacionamentos
que ocorrem em qualquer setor urbano. Mas nem sempre, como no caso em estudo,
em que a intolerância seja pouco significativa.
Os moradores dos bairros viam como solução o afastamento físico do conjunto, para
que não houvesse ameaça ou qualquer impacto conseqüente da implantação
desses assentamentos, sempre ressaltando a diferença entre os grupos : “A URBEL
devia arrumar uma área um pouco mais distante, que não fosse misturada com a
gente. Tem muita gente boa, mas tem muita droga” (desempregada, 55, 41G). “Não
poderia nem começar a construir o conjunto; tem lugares bons pra construir
conjuntos, mas não é aqui no Goiânia. Tinha que colocar esse povo mais isolado,
em lugar mais apropriado” (artesã, 29, 51G). “Eu sugeri que fizessem um posto de
saúde ou policial, de utilidade pública e construísse o conjunto num terreno mais
distante” (aposentado, 52, 30A). “Devia construir o conjunto em outro lugar, com
pessoas de mais ou menos o mesmo tipo de vida. Pra eles, está tudo normal”
(costureira, 45, 38A).
6.3.1.1 Relacionamento entre os dois grupos: o olhar dos estabelecidos
A pesquisa indicou as formas em que ocorrem as práticas sociais entre os
habitantes dos bairros Alvorada e Araguaia. Ao serem questionados sobre o
relacionamento com os outsiders, cerca de metade dos estabelecidos entrevistados
demonstrou indiferença em relação aos primeiros, conforme a TAB. 31. Eles
alegaram que apenas os cumprimentavam, o que representava boa convivência
entre eles. Observa -se que só o fato de cumprimentar já era entendido como manter
o bom relacionamento com os vizinhos: “Só cumprimento. De primeiro, a gente ainda
fazia via-sacra nas casas deles. A relação é muito distante, mas se precisar, estou
pronta pra ajudar” (dona de casa, 62, 35A). “Passo e cumprimento por questão de
educação. Não desfaço de ninguém. Se eles pedem alguma coisa, dou”
(aposentada, 52, 39A). Embora as manifestações representem distanciamento, elas
indicam possíveis potencialidades de convivência no futuro.
220
TABELA 31 Relacionamento entre moradores dos bairros e dos conjuntos
Alvorada Araguaia Total Olhar dos moradores dos bairros
absoluto % absoluto % absoluto %
Só cumprimenta 7 47 6 50 13 45
Não tem convivência 7 47 7 43 14 49
Boa convivência 1 6 - - 1 3
Ajuda quando precisa - - 1 7 1 3
Total de incidências 15 100 14 100 29 100
Fonte: Pesquisa direta (dados compilados pela autora), 2003.
Dentre os entrevistados nos bairros, metade deles comprou o lote e construiu a sua
casa e a outra metade adquiriu casas de pessoas que desejariam sair do local por
causa da implantação do conjunto. Esses novos proprietários, num primeiro
momento, não viam os assentamentos como empecilho para os planos futuros; mas,
à medida que o tempo passava, o convívio entre os dois grupos foi se tornando
difícil. Mas, mesmo assim, seu nível de tolerância em relação aos outsiders era
maior do que o apresentado pelos demais estabelecidos. Isso pode ser explicado
pelo fato de esses novos moradores dos bairros não terem participado, ao longo do
tempo, da criação das normas que ditavam tacitamente a ordem estabelecida pelo
grupo ali instalado. Embora não se verificasse nenhuma manifestação de bom
relacionamento dos habitantes do bairro Araguaia com os moradores do conjunto,
exemplo de boa relação com a vizinhança do entorno, mesmo que distante, foi
constatado por 6% dos residentes do bairro Alvorada: “A meninada brinca na rua
nas férias, soltando papagaio. De vez em quando, um sobe no muro e preciso
chamar a atenção” (professora, 39, 50G). “Não traz nada de constrangimento. Se
você não atinge eles, eles não atingem você” (aposentada, 62, 46G). A chegada
voluntária de tais pessoas não causou impactos. Como se vê, as relações entre os
grupos são mais conciliadoras .
Ao mesmo tempo, 47% dos entrevistados do bairro Alvorada e 43% do Araguaia
afirmaram que não têm qualquer tipo de convivência com os participantes do outro
grupo e nem fazem questão de incentivá-la. Para eles, a melhor maneira de conviver
deveria ser através do distanciamento: “Não converso com ninguém. Não freqüento
aquele lugar” (aposentada, 70, 33A). “Não tenho contato com ninguém do conjunto”
(dona de casa, 51, 42A). “Não dou confiança pra esse povo que mora aí” (dona de
221
casa, 37, 45G). O distanciamento referido pode ser tomado como decisão comum a
situações dessa natureza, resultado de eventuais preconceitos, retratados ao longo
do estudo.
6.3.1.2 Relacionamento entre os dois grupos: o olhar dos outsiders
Também sob o ponto de vista dos habitantes dos conjuntos, pôde-se perceber que
as relações sociais entre as comunidades dos estabelecidos e dos outsiders não se
mostravam freqüentes, já que 43% dos moradores do Goiânia e 27% dos do
conjunto Araguaia admitiam que não tinham qualquer convivência com os habitantes
dos bairros adjacentes, como demonstra a TAB. 32. Ao verificar a distância física
entre esses dois grupos e, ainda, acrescentada a falta de encontros no seu
cotidiano, tomamos esse distanciamento como fator positivo.
TABELA 32 Relacionamento entre moradores dos conjuntos e dos bairros
Conjunto Goiânia Conjunto Araguaia Total Olhar do morador dos conjuntos
absoluto % absoluto % absoluto %
Não tem convivência 17 43 8 27 25 37
Boa convivência 6 15 10 35 16 24
Só cumprimenta 8 21 5 17 13 19
Não tem bom relacionamento 5 13 2 7 7 10
Ajuda quando precisa 3 8 4 14 7 10
Total de incidências 39 100 29 100 68 100
Fonte: Pesquisa direta (dados compilados pela autora), 2003.
Mesmo assim, o cumprimento entre as pessoas dos conjuntos e dos bairros foi
considerado como representação do seu relacionamento por somente 21% dos
entrevistados no Goiânia e 17% deles no Araguaia. Aliás, as manifestações dos
habitantes dos conjuntos indicaram que, mesmo havendo distanciamento, só o fato
de cumprimentar já era positivo e visto com satisfação, como no comentário de uma
moradora do conjunto: “Graças a Deus, eu me relaciono muito bem com eles, apesar
do pouco contato. Eu só cumprimento eles” (desempregada, 24, 1G). Ainda mais
considerando que, da parte do conjunto, as manifestações eram mais amistosas.
Fato curioso se refletiu nas respostas de 15% dos outsiders do Goiânia e 35% do
Araguaia, mostrando que o convívio entre os dois grupos se manifestava através do
222
bom relacionamento entre eles. Essa situação não foi confirmada pelos moradores
dos bairros que, por sua vez, tratavam de manter o maior distanciamento possível
com os novos vizinhos.
Aliás, para os moradores dos conjuntos, a pior condição de vida existente no local
era a rejeição que habitantes do bairro apresentavam por esse grupo. A intolerância
do outro grupo em relação a eles se mostra visível nos depoimentos desses
outsiders: “O problema do conjunto é a aceitação da população do bairro aí. Eles
não conseguem ver a gente como um conjunto. A URBEL deveria ter trabalhado
mais a cabeça deles e colocar eles na situação de ter maior aceitação dos
moradores daqui, fazer palestras. A gente é como cordeiro no meio dos lobos”
(pedreiro, 28, 22A). “Esse povo das casas grandes é muito esquisito. Eles não
podem nem ver a gente!” (catadora, 37, 34G). Na verdade, esses outsiders se
sentem excluídos e demonstram intuitivamente um desejo de aproximação. Portanto,
a repulsa não é mútua. Para casos como o presente, essa situação deve ser
considerada com otimismo. Além disso, as manifestações de expectativa quanto a
uma gestão conjunta entre as comunidades e a URBEL criam possibilidades de
integração.
6.4 Olhares sobre o futuro
Como se vê, estamos diante de uma situação em que bairros seguiam um processo
de urbanização semelhante aos dos demais setores da capital. O impacto da
inclusão dos conjuntos habitacionais destinados a grupos social, cultural e
economicamente inferiores alterou as expectativas quanto ao seu futuro. A pesquisa
realizada confirmou o resultado da solução proposta, na expectativa tanto dos
estabelecidos como dos outsiders, referente ao futuro de uma possível comunidade
resultante.
A expectativa do futuro dos bairros Alvorada e Araguaia foi avaliada pelos outsiders
como positiva, com 69% das respostas favoráveis para os entrevistados em ambos
os conjuntos, conforme o gráfico 6. No entanto, essa mesma avaliação não foi
seguida pelos habitantes dos bairros, em que 60% das expectativas do Alvorada e
50% do Araguaia observaram o futuro dos bairros com pessimismo.
223
GRÁFICO 6 Perspectiva futura dos bairros segundo seus moradores
0
5
10
15
20
25
30
Desenvolvimento Questões relativas aos conjuntos Relação entre os dois grupos Segurança
Expectativas positivas bairro Alvorada Expectativas negativas bairro AlvoradaExpectativas positivas bairro Araguaia Expectativas negativas bairro Araguaia
Fonte: Elaborado por Maria Cristina Villefort Teixeira e Beatriz Marinho Gomes com base em pesquisa de campo, 2003.
As manifestações indicando expectativa positiva quanto ao desenvolvimento dos
bairros e, conseqüentemente, dos conjuntos, foi o principal aspecto citado por 51%
dos entrevistados do conjunto Goiânia e para 42% dos do Araguaia. Esse otimismo
se baseava no aumento do comércio, na construção de novas edificações e na
melhoria da infra -estrutura e dos equipamentos urbanos, o que significava, para a
população, melhoria das condições objetivas de vida: “Já tem melhorado muito. Hoje
nós temos banco, casa de show; muita coisa está melhorando e vai melhorar ainda
mais” (dona de casa, 35, 10A). “A tendência é só melhorar. Já mudou muita coisa na
avenida: não tinha padaria, depósito de gás e pro futuro vai ser mais desenvolvido”
(faxineira, 37, 3G). “O bairro vai melhorar mais ainda. Hoje já tá cheio de casão,
umas mansão, que vai valorizar ainda mais a nossa área” (dona de casa, 28, 9G).
“Tem muita coisa pra melhorar no bairro, principalmente uma pracinha pras crianças
brincá, porque aqui no conjunto é tudo muito espremido” (desempregada, 37, 13G).
O desenvolvimento dos bairros Alvorada e Araguaia foi considerado também pelos
seus moradores como um dos principais fatores na previsão de sua melhoria para
20% dos habitantes do primeiro e para 29% do segundo, com justificativas
semelhantes às do grupo anterior, conforme o GRAF. 7: “Espero que melhore. O
Barreiro está expandindo muito. Precisa de uma faculdade e de um posto de saúde”
(gerente de loja, 32A). “Precisamos de banco e de correio pra facilitar o pagamento.
224
Vai melhorar muito” (corretor, 59, 53G). Deve-se registrar uma curiosa expectativa
de otimismo entre membros dos conjuntos e dos bairros, cuja somatória de opiniões
constitui uma maioria que certamente absorverá qualquer tentativa de integração.
GRÁFICO 7 Perspectiva futura dos bairros segundo moradores dos conjuntos
0
10
20
30
40
50
60
Desenvolvimento Questões relativas aos conjuntos Relação entre os dois grupos Segurança
Expectativas positivas conjunto Goiânia Expectativas negativas conjunto GoiâniaExpectativas positivas conjunto Araguaia Expectativas negativas conjunto Araguaia
Fonte: Elaborado por Maria Cristina Villefort Teixeira e Beatriz Marinho Gomes com base em pesquisa de campo, 2003.
As referências negativas nos bairros constituíram minoria pouco representativa em
relação às expectativas que levassem a agregações: “Não vai melhorar. Não tem
ninguém tomando frente de nada; não tem um líder. Eu não vejo ninguém querendo
pegar no chifre desse boi. Nós já quisemos fazer uma associação só para os
moradores da Fayal” (desempregada, 37, 45G). “Não tem como melhorar. A
tendência é estabilizar por aí mesmo. A não ser que se faça algum trabalho social
com as diversas comunidades” (dona de casa, 43, 37A). “Vai piorar muito. Não tem
ninguém para tomar iniciativa; não tem nenhum político para adotar o bairro. Cada
um faz o que quer. O bairro está crescendo, estão construindo, mas não tem um
líder. O conjunto desanimou todo mundo. Precisa ter um centro educacional, lazer,
mais escolas, mais igreja” (desempregada, 42, 42G). Apesar de manifestações
resistentes a uma perspectiva de bom relacionamento entre os dois grupos, os
espaços públicos remanescentes nos bairros poderão contribuir para a instalação de
equipamentos que serão indutores de toda a população do novo espaço. Esse fato
inegavelmente influenciará na convivência futura.
225
Outro aspecto a se assinalar é que ainda havia aqueles que acreditavam que um dia
essa situação poderá ser amenizada, em função do ajustamento natural que ocorre
no cotidiano dessas pessoas. Cabe notar que tais manifestações foram de
habitantes dos conjuntos, que desejariam que acontecesse um relacionamento
harmonioso entre eles e os estabelecidos : “Vai melhorar. Eles vão perder esse
preconceito que existe. Eles vão ver que a gente ganhou as casas. O que aconteceu
foi apropriação. O bairro é bom, eles compraram e acham que porque nós
ganhamos nossas casas, devemos alguma coisa pra eles” (pedreiro, 28, 22A). “Eu
gostaria que melhorasse, mas é difícil entrosar pessoas do bairro com as do
conjunto. Só porque a pessoa é pobre, não pode relaxar. Tem que mostrar pros
outros moradores o que estamos pensando e que é possível a gente caminhar junto.
A manifestação contra a chegada do conjunto foi muito forte. Se na época que
mudamos, que era só o povo do conjunto, eles já rejeitavam, agora que tem
infiltração do povo da vila São Jorge com as drogas é que não vão aceitar mesmo”
(pedreiro, 53, 39G). “Eu espero que melhore. Com o tempo, as pessoas vão
convivendo juntas e se entendendo uns com os outros. Todo mundo aqui é bom e
não tem motivo pra conviver assim” (doméstica, 43, 18A). Note-se que as
manifestações traduzem desejo de aproximação.
A segurança era sempre o fator mais significativo apresentado pelos dois grupos,
como se pôde ver nas respostas à expectativa dos outsiders no Goiânia e no
Araguaia. Isso ameaçava a população, que vislumbrava o agravamento da situação
nos bairros: “Se não mudar a droga nas casinhas, só vai piorar. As crianças menores
pegam o ritmo dos maiores. Alguns pequenos já estão até fumando. Isso ameaça a
gente demais” (artesã, 29, 51G). “Deveria melhorar, mas acho que não vai não. Se
eu falar demais, o povo do conjunto me põe pra correr. Mesmo se tiver um posto
policial dia e noite grudado aqui, não melhora não. Vou contar sem entrelinhas: os
garotinhos naquela praça são uma vergonha” (catadora, 63, 7A). Preocupações
comuns aos dois grupos, como, por exemplo, a segurança, poderão também levar a
um entendimento futuro.
No que diz respeito à visão do futuro dos conjuntos pelos seus moradores, as
respostas indicaram que houve equilíbrio de tendências positivas e negativas
esperadas tanto para o Goiânia como para o Araguaia. No primeiro, 42% dos
habitantes acreditavam que o conjunto passará por processo de melhoria e 58%
226
entendiam que as condições do conjunto irão piorar. Quanto ao segundo, cuja
previsão era um pouco mais otimista, 59% dos outsiders se posicionaram favoráveis
ao seu futuro contra 41% que vislumbraram que a situação local tenderá a piorar,
como indica a TAB. 33. Felizmente, ainda permanece no pensamento dessa
população a esperança de ocorrerem melhorias.
TABELA 33 Futuro dos conjuntos segundo seus moradores
Conjunto Goiânia Conjunto Araguaia
Vai Melhorar Vai Piorar Vai Melhorar Vai Piorar Opiniões
absoluto % absoluto % absoluto % absoluto %
Entrosamento entre as pessoas 7 18 11 28 6 21 5 17
Segurança 3 7 6 15 3 11 1 3
Desenvolvimento 4 10 - - - - - -
Droga - - 4 10 5 17 4 14
Estado das casas - - 2 5 2 7 - -
Estado do conjunto 2 5 - - - - - -
Casa própria 1 2 - - 1 3 - -
Tudo piora - - - - - - 2 7
Total de incidências 17 42 23 58 17 59 12 41
Fonte: Pesquisa direta (dados compilados pela autora), 2003.
Pode-se observar que os reflexos do cotidiano vivido sobre o futuro dos bairros
retratados na pesquisa influenciaram essa previsão. Os residentes do Goiânia foram
mais pessimistas ao apresentarem sua expectativa em relação ao entrosamento dos
vizinhos de conjunto, que, para 28% deles, ela se agravará; à segurança,
especialmente a falta de policiamento, que irá piorar para 15%; e à droga, para 10%
deles. Apesar de considerarem elevados os índices de agravamento em relação a
esses itens, os habitantes do conjunto Araguaia foram mais otimistas, pois 21%
acreditavam que o entrosamento entre eles irá melhorar, a segurança no local
atenderá a população para 11% dos entrevistados e as questões relativas à droga
serão sanadas fu turamente para 17% desses entrevistados.
O processo de adaptação que eles vivenciaram, a partir do momento em que
passaram a habitar o mesmo lugar, indicou que a desunião interna nos conjuntos
ainda continuaria marcando a convivência entre os seus membros, conforme foi
observado na descrença manifestada nas previsões: “Se for do jeito que tá, vai
227
piorar. O povo aqui é muito desunido, ninguém ajuda ninguém. Só vai piorando”
(dona de casa, 34, 37G). “Não tem melhorado nada até agora. Cada um quer ser
melhor que o outro. Não acredito que daqui pra frente pode melhorar não”
(aposentado, 49, 8A). “Eu acho que esse trem não vai melhorar não. Até hoje não
melhorou. Piorou foi mais” (dona de casa, 28, 9G). “O que está acontecendo aqui, só
Deus pra ajudar. Se tivesse que melhorar, já tinha melhorado” (dona de casa, 30,
16G). Embora essas manifestações sejam negativas, elas não traduzem explícita
intolerância.
Situações mais otimistas, porém, foram previstas por outsiders desses conjuntos,
com maior tendência de ajustamento interno da população, pois o tempo se
incumbirá de integrar os vizinhos e de estabelecer novas regras comuns, com a
participação das comunidades, como foi bem indicado nos estudos de Elias e
Scotson: “Chegou aí um trem difícil. Pode melhorar, se as pessoas ajudar. Depende
das pessoas para o conjunto melhorar. Não precisa ter dinheiro, tem que ter boa
vontade” (dona de casa, 35, 10G). “Vai melhorar sim. Com o tempo, vai vindo outras
pessoas novas. Aí elas vão investir mais no conjunto” (bordadeira, 43, 1A). “Se não
fizer um muro e não tiver pessoas que possam dar um conselho, pessoas de
autoridade, aqui dentro vai piorar. Se tiver lei aqui dentro, vai melhorar muito” (dona
de casa, 59, 29G). Como se pode notar nas manifestações dos entrevistados, existe
a expectativa do surgimento de uma liderança entre os moradores para conduzir a
organização dessas comunidades também do ponto de vista social. Além do mais,
cada personagem apresenta a sua subjetividade, através dos seus desejos e
expectativas.
A falta de segurança que, na maioria das vezes, era vinculada ao tráfico de drogas,
também foi indicada como motivo de preocupação para o futuro dos entrevistados
nos conjuntos, agravada pela deficiência do policiamento no local: “Deveria melhorar
em termos de segurança, mas acho difícil. Antes tinha policiamento na rua. Hoje já
não tem mais. Tá ficando muito perigoso” (tratadora de animais e corretora, 36, 9A).
O tráfico de drogas era, para os outsiders, grave fator de insegurança, que
demandava rigoroso policiamento e controle pelo Estado. As previsões levaram 10%
dos habitantes do Goiânia e 14% do Araguaia ao pessimismo, chegando a
considerar o problema insolúvel, como indica a TAB. 33. “Pelo jeito, vai piorar. Do
jeito que está indo, qualquer hora vai ter morte aqui na rua por causa desse povaréu
228
que junta aqui no Goiânia por causa da droga. Se os homens não derem um jeito,
vai ter problema. Tem que fiscalizar e dar de cima. A gente não pode fazer nada”
(dona de casa, 44, 7G). Cabe observar que este fator ocorre em todo o território
urbano da área metropolitana.
Por outro lado, ocorreram manifestações de uma nítida acomodação ao meio, ainda
permanecendo a esperança de se viver harmonicamente no local, como se verifica
nos depoimentos: “Tem como melhorar. As pessoas que mexiam com tráfico tiveram
que correr daqui e, de uns tempos pra cá, ficou mais calmo. A tendência é melhorar”
(desempregada, 36, 2A). “É. Aqui vai piorar em termos de vício. Se Deus não tiver
misericórdia, vai piorar demais da conta” (aposentada, 51, 11A).
Verificou-se que, embora houvesse manifestações negativas dos outsiders em
relação ao futuro do cotidiano dos conjuntos no que diz respeito aos aspectos da
convivência, da segurança e da droga, a pesquisa indicou que, no geral, as
previsões foram otimistas.
Finalmente, pode-se verificar, na pesquisa, que o relacionamento entre os
habitantes dos bairros Alvorada e Araguaia e os moradores dos conjuntos Goiânia e
Araguaia foi conflituoso desde a época da implantação desses assentamentos.
Esses conflitos não se limitaram apenas às diferenças econômicas, sociais e
culturais. Acrescentem-se a isso descuidos e omissões originais desde os projetos
arquitetônicos, seguidos da descontinuidade do seu processo de implantação. O
tempo de permanência dos estabelecidos no local foi também um dos fatores que
incrementaram as conseqüências negativas desse convívio. Os mais antigos se
consideravam superiores, por terem estabelecido com a sua comunidade normas
conjuntas que reforçaram a intolerância, o preconceito e o es tigma contra os que ali
chegaram posteriormente.
Apesar de existirem manifestações de intolerância no relacionamento cotidiano entre
os grupos, elas eram mais aparentes que reais e, na maioria dos casos, eventuais.
De toda forma, as tendências descritas levam a considerar com otimismo um lento
processo de ajustamento entre elas no futuro, mesmo com ausência de orientações
formais.
229
Assim, mais uma vez, deve-se considerar que, em programas dessa natureza,
implementados pelo Estado, é essencial o acompanhamento contínuo do processo
de implantação, desde a indicação dos futuros grupos de moradores, com a
constante presença dos agentes envolvidos, na busca do equilíbrio nas relações
sociais entre eles, até a ocupação posterior desses assentamentos. O mesmo deve
ser levado em conta quando se tratar dos aspectos físicos dessas implantações, em
que os projetos serão discutidos por todas as comunidades envolvidas.
230
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A política habitacional implantada após a Constituição de 1988 estabeleceu, dentre
outras diretrizes, a municipalização da política e a participação popular na produção
da moradia, condições inovadoras nesse processo. Para atender à nova conjuntura,
elas foram elaboradas para que se estabelecessem contatos mais efetivos com as
comunidades a serem atendidas, de modo que características de ordem local
priorizassem o atendimento a essas populações. Com isso, tornou-se prioritário o
assentamento de pequenos conjuntos em terrenos inseridos na malha urbana,
providos de infra-estrutura e equipamentos. Acrescente -se que ações de pós -
ocupação na implantação de tais assentamentos também deveriam ser contínuas,
de modo a se tornarem essenciais para a eficácia dos programas.
O presente trabalho indicou que os projetos dos conjuntos Goiânia e Araguaia,
implantados pela URBEL, embora tivessem sido concebidos sob a nova orientação
da política habitacional, ainda apresentaram soluções dos programas anteriores,
principalmente daqueles implantados pelo BNH: não houve participação efetiva dos
usuários no processo de implantação dos mesmos, a configuração original dos
conjuntos foi alterada e a demanda do espaço interno das edificações não foi
atendida satisfatoriamente. Além do mais, foi constatado que moradores que
residiam anteriormente nas proximidades desses conjuntos não aceitaram os novos
habitantes que chegaram aos assentamentos, estabelecendo até conflitos entre eles
em certos momentos.
Uma das razões da descontinuidade do processo se deveu à dificuldade de
reestruturação do órgão para se adaptar aos novos encaminhamentos da política
habitacional, visto que o programa Área de Risco, ao qual estão vinculados os
conjuntos, foi dos pioneiros na URBEL. O remanejamento do quadro técnico
demandou tempo para que se efetivassem os acertos necessários às novas normas
e à metodologia propostas .
Além do mais, devido ao caráter emergencial do atendimento a essa camada da
população, como conseqüência das chuvas, aumentou ainda mais a necessidade de
231
implantação de novas casas, o que demandou soluções imediatas para a provisão
da casa própria.
A participação popular ainda não se realizou plenamente em todo o processo da
produção dessas moradias naquele momento e as comunidades envolvidas nesses
projetos tiveram pouca ou nenhuma participação na sua elaboração, na sua
construção e nos passos que seguiram a sua ocupação. Não houve também, por
parte da URBEL, informações e discussões com as populações originais do local
sobre os novos assentamentos e permaneceu ainda a tendência de um súbito
abandono dos conjuntos por esse órgão após a entrega das casas .
De fato, as conseqüências da falta de participação nesses programas se tornaram
perniciosas desde o início, pois segmentos sociais com culturas e condições
financeiras diferentes foram obrigados a conviver proximamente sem que tivessem a
oportunidade de discutir conjuntamente a adequada apropriação do espaço por
ambos os lados. Além do mais, os conflitos entre os dois grupos se acentuavam por
não existir em qualquer um deles uma liderança que conduzisse tais negociações.
Os moradores dos bairros, na maioria, residiam nas proximidades por cerca de 30
anos. Grande parte deles tinha completado o segundo grau e a renda desse grupo
girava em torno de duas faixas salariais: uma de três a cinco salários mínimos e a
outra de seis a quinze salários. Grande parte desses moradores se dedicava ao
comércio e à prestação de serviços. Apesar de se encontrar um número significativo
de aposentados, eles ainda se dedicavam a algum tipo de atividade que, de certa
forma, contribuía para o aumento da renda familiar. A família nesse grupo se
compunha do casal e filhos, perfazendo a média de três a cinco pessoas na casa.
Na maioria dos casos, o sustento da casa era de responsabilidade do marido ou do
marido e da mulher juntos .
Os moradores dos conjuntos, oriundos na maioria do interior do Estado,
apresentaram baixa escolaridade, renda média em torno de dois salários mínimos,
sendo que grande parte deles se ocupava na prestação de serviço, em especial a
construção civil e o trabalho doméstico, respectivamente, para os homens e as
mulheres. O marido ainda era o responsável pela renda familiar, mas a mulher
também sustentava a casa, na condição de separada ou solteira .
232
Mais da metade dos domicílios nos conjuntos era ocupada por dois a cinco
habitantes e, quando dizia respeito a famílias estruturadas convencionalmente, sua
composição era de casal e dois filhos. Essa proporção crescia para até nove
moradores, quando eram acolhidos parentes como sogra, sobrinho ou cunhado. Em
grande parte, esses agregados contribuíam para a renda familiar em troca do abrigo.
Mesmo assim, a solidariedade manifestou-se nesse grupo, quando uma das
moradoras, em cuja casa residiam genro, netos e filha ainda abrigou um casal
morador de rua que estava à mercê do tempo em praça dos arredores.
Considerando as diferenças entre os dois grupos, esse aspecto interferiu nas
relações sociais entre eles desde o início do processo, pois, no convívio cotidiano, a
essas diferenças se agregaram o preconceito e o estigma dos antigos em relação
aos novos habitantes, manifestando até reações de intolerância. O tempo de
permanência dos estabelecidos no local permitiu aos mais antigos se considerarem
os donos do lugar. Eles se julgavam superiores por terem estabelecido nesse grupo
normas conjuntas que chegavam a determinar valores contra os novos moradores
dos conjuntos. Tanto que, nas relações cotidianas, os lugares freqüentados pelos
outsiders nem sempre eram os principais pontos de encontro dos moradores dos
bairros, que preferencialmente faziam suas compras ou se dedicavam ao lazer nas
proximidades do trabalho ou então se deslocavam para praticá-los.
Como conseqüência, as relações de poder configuradas pela maioria desses
moradores, os estabelecidos, demonstraram que a coesão entre eles, mesmo que
ela não se manifestasse em todas as situações praticadas no cotidiano, afirmou o
propósito de aparecer como resposta comum para os outsiders.
A reação inevitável dos moradores dos bairros apresentou maior diferenciação entre
os dois grupos quando ela se manifestou no espaço, visto que eles se sentiram
prejudicados por serem obrigados a morar próximo, o que não implica conviver com
pessoas que não dispunham das mesmas condições sociais e culturais que eles.
Nesse sentido, a intolerância chegou a ponto de levar estabelecidos que não
suportaram essa convivência se deslocarem para outros setores da cidade que
permitiriam a aproximação com seus pares.
233
Outro aspecto resultante da falta de controle da URBEL em relação ao processo de
ocupação diz respeito à formação dos grupos atendidos nesses conjuntos: os
pretendentes a novas moradias que já haviam estabelecido relações com seus
vizinhos nas antigas moradias, próximas às áreas de risco, foram remanejados para
lugares distantes da sua origem. Essa mobilidade provocou descontinuidade das
relações no seu novo modo de vida, demandando imediatamente novas
possibilidades de aproximação.
Mais um aspecto que retrata a falta de participação dos usuários no processo da
produção da moradia é a transformação delas pelos habitantes.
Aliás, essas pessoas se excluem, têm dificuldade de circular nos meios
administrativos e nem sempre se consideram em condições de discutir sobre seus
direitos e suas aspirações, embora o desejem, por descrença nos órgãos que
direcionam as ações para a moradia popular e pela conformidade, visto que elas se
adaptam com maior facilidade aos reveses que lhes foram impostos.
Da desobediência às normas, bem como do pouco cuidado no trato do projeto
arquitetônico e nas consultas à população, resultou a padronização excessiva das
moradias, fonte da insatisfação dos moradores, que lançaram mão de alternativas da
construção para melhor se adaptarem a elas. Mesmo assim, os resultados dos
estudos nos conjuntos Goiânia e Araguaia confirmaram que os usuários se
identificaram com as suas moradias, embora eles tivessem feito modificações na
maioria delas.
Ao ajustar os assentamentos às características naturais do terreno, os projetos
reduziram custos, que até poderiam se reverter em saldo positivo. Além disso, na
melhor adequação dessas propostas, poderia ser avaliada, ainda, a possibilidade de
flexibilização de espaços internos da moradia para cada família, contrapondo-se ao
rigor resultante da ditadura da Arquitetura. Nesse sentido, a padronização das
habitações se flexibilizaria, visto que ela ainda vem sendo adotada por grande parte
dos órgãos empreendedores da produção da habitação social, mesmo após a
municipalização da política habitacional. O cuidado do projeto ao tratar da
identificação do usuário com a sua moradia possibilita, mediante prévias audiências,
234
maior humanização da habitação social, com sentido mais objetivo dentro da
subjetividade de cada indivíduo.
Por outro lado, a indispensável complementação de projetos dessa natureza se
conseguiria mediante a convocação de lideranças capazes de incentivar o uso
adequado dos lugares no cotidiano, tirando partido das potencialidades locais, fato
que não se verificou nos conjuntos Goiânia e Araguaia. Então, poderiam favorecer o
processo de ajustamentos entre os diversos grupos envolvidos nos programas.
Com esse novo procedimento, a URBEL poderia amenizar a ocorrência de casos
semelhantes aos verificados nos conjuntos Goiânia e Araguaia, como as
modificações em grande parte das moradias, no que diz respeito aos aspectos
físicos. No que tange à questão social, seriam atenuados os conflitos dos habitantes
dos conjuntos entre si e com as comunidades que habitavam os bairros
anteriormente.
O novo olhar sobre a política habitacional municipalizada, resultado de novas
concepções de cidadania, mudanças tecnológicas e conquistas sociais, qualifica o
atendimento às necessidades da população local. Portanto, não se deve descuidar
também da gestão, em que, juntamente com os demais atores do processo, se
preservem características e potenc ialidades do meio.
Ao mesmo tempo, aquilo que se refere ao projeto arquitetônico deve ser submetido
criteriosamente às normas do Estatuto da Cidade e segundo elas, os atores devem
se articular com o envolvimento da população a ser atendida em todo o processo da
construção da moradia. O caminho seguido pelos profissionais das demais áreas
envolvidas no processo deve ocorrer simultaneamente, a fim de se atender
integralmente à sua multidisciplinaridade, nos aspectos econômicos, culturais e
sociais. Cuidados dessa natureza certamente evitarão circunstâncias como as
assinaladas nos conjuntos Goiânia e Araguaia.
Mesmo que o programa e os projetos estejam de acordo com a legislação
urbanística, a sua gestão ainda requer melhoria, principalmente quando se refere à
continuidade do processo de implantação desses projetos. Especificamente nos
programas Área de Risco, como é o caso dos conjuntos Goiânia e Araguaia, a
população envolvida apresenta condições socioculturais mínimas. A participação das
235
comunidades envolvidas desde o início do processo é, nesses casos, ainda mais,
fator essencial das respectivas adaptações físicas e sociais, com possibilidades de,
com o apoio da equipe de assistência social, os grupos melhor se ajustarem ao novo
modo de vida.
Este trabalho demonstra a necessidade de se levar em conta a natureza desigual da
formação social brasileira, que mantém grande parte da população excluída dos
padrões mínimos de cidadania e justiça social. É bom considerar que, dentro do
processo histórico das políticas habitacionais no Brasil, a intervenção pública, ao se
limitar a oferecer melhorias substanciais na qualidade habitacional, não contribuiu
satisfatoriamente para a eliminação das demais necessidades sociais, tais como
emprego, saúde, educação e suas conseqüências segregadoras para grande parte
dos cidadãos. Espera -se que o Estado, ao contrário do que ocorreu no passado, não
se descuide das obrigações financeiras, técnicas e sociais, quando se trata da
política da habitação.
Além disso, há a necessidade de implementação de uma ação contínua de todos os
atores na busca de novos programas e estruturas administrativas de apoio, em que
se avaliem experiências anteriores e que se configurem em programas habitacionais
adequados, conseqüentes dessa avaliação.
Não se deve esquecer que a nova legislação incumbe as administrações municipais,
juntamente com a comunidade, de patrocinar gestões que ressaltem a integração
dos diferentes grupos envolvidos nas suas relações cotidianas, como parte dos
programas de habitação soc ial. O caráter local da gestão permite a continuidade do
processo da implantação de conjuntos dessa natureza.
O processo de urbanização que ocorreu no país, nas últimas décadas, agravou as
condições para o problema da habitação social. Ainda mais que as populações que
se agregaram às cidades se submetem a um lento processo de evolução cultural,
econômico e social, ditado pelo meio urbano, fato que gera novos propósitos e
demandas da parte dessas populações. Conseqüentemente, a política habitacional
pode atender a esse processo, obrigando-se, então, a adotar metas capazes de
atender às gerações atuais e futuras.
236
Esta tese atinge importância fundamental nessa questão, pois atenderá a essa
dimensão de demanda, mediante um novo projeto, elaborado por um profissional
dotado de novos conceitos e, portanto, munido de novas orientações. Considerando
a atual estrutura dos cursos de Arquitetura e Urbanismo, verifica-se que há
necessidade de ampliar também a formação técnica dos atores dessa nova
modalidade de atendimento do problema habitacional.
237
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242
ANEXO A - Questionários
MORADOR DO CONJU NTO
O Sujeito
Idade: Sexo:
Escolaridade (até que série estudou):
Ocupação (com o que trabalha):
Local de trabalho (onde trabalha):
Origem (de onde vem):
Caminho que percorreu até chegar no conjunto:
Proprietário: c sim c não
Tempo de moradia no conjunto:
Quem mora na sua casa com você?
- Idade: sexo: c M c F parentesco:
- Idade: sexo: c M c F parentesco:
- Idade: sexo: c M c F parentesco:
Quem é responsável pelo sustento da família: c marido - c mulher - c filho - c outros
Renda familiar (quanto ganham):
A casa
Descrever como era a casa em que você morava antes
Você acha que melhorou sua qualidade de vida? Por quê?
O que você mais gosta na casa em que está morando agora?
O que você não gosta na casa em que está morando agora?
243
Existem problemas na casa onde você mora? Quais?
Você fez modificações na sua casa? Quais?
Você pretende fazer alguma modificação ou reforma na sua casa? Qual?
O conjunto
O que você mais gosta no conjunto? O que existe de bom no conjunto?
Quais os maiores problemas do conjunto? Existe uma maneira de resolvê- los?
Você conhece seus vizinhos do conjunto? c sim c não
Como você conheceu seus vizinhos?
Tem boa convivência com eles? c sim c não
Há lugares no conjunto onde você pode se encontrar com seus vizinhos? Onde?
Que tipo de convivência você tem com os moradores do conjunto:
- prestação de serviços:
- comércio:
- relacionamento social/amizade:
O entorno/vizinhança
De que lugar você tiraria uma foto do bairro? Por quê?
Cite um lugar de que você não gosta no bairro. Por quê?
244
Quais os lugares que você freqüenta no bairro para:
- compras: - padaria:
- supermercado:
- farmácia:
- sacolão:
- lazer:
- praticar esporte:
- festa:
- bar:
- igreja:
- ensino (escola dos filhos):
- outros:
Onde você se encontra com os moradores do bairro?
Como é o seu relacionamento com as pessoas que moram na vizinhança, fora do conjunto?
Você conhece ou participa de alguma associação de moradores? c Não - c Sim
Qual?
Seus filhos brincam na vizinhança? c Não c Sim
Onde: c em casa - c na rua - c no conjunto - c na área de lazer - c em outros lugares
Como você vê o futuro do conjunto? c melhor - c pior
Por quê?
E do bairro?
245
MORADOR DO ENTORNO
O Sujeito
Idade: Sexo:
Escolaridade:
Ocupação:
Local de trabalho:
Proprietário: c sim c não
Quem mora na sua casa com você?
- Idade: sexo: c M c F parentesco:
- Idade: sexo: c M c F parentesco:
- Idade: sexo: c M c F parentesco:
Quem é responsável pelo sustento da família: c marido - c mulher - c filho - c outros
Renda familiar:
Tempo de moradia no bairro:
Número de cômodos da casa:
Se for morador recente (menos de 7 anos/depois de 1996): de quem comprou?
Sabe por que o antigo proprietário vendeu?
Como ficou sabendo da venda da casa?
Se for morador antigo (mais de 7 anos/antes de 1996):
Qual foi sua reação quando soube da construção do conjunto?
Você acha que a construção do conjunto influenciou de alguma forma na qualidade do bairro? Como?
A URBEL informou previamente sobre a construção deste conjunto?
246
Como você acha que a URBEL deveria proceder diante de uma nova situação como esta?
O bairro/vizinhança
De que lugar você tiraria uma foto do bairro? Por quê?
Cite um lugar de que você não gosta no bairro. Por quê?
O conjunto
O que você mais gosta no conjunto? O que existe de bom no conjunto?
Quais os maiores problemas do conjunto? Existe uma maneira de resolvê- los?
Você conhece seus vizinhos do conjunto? c sim c não
Como você conheceu seus vizinhos?
Tem boa convivência com eles? c sim c não
Há lugares no conjunto onde você pode se encontrar com seus vizinhos? Onde?
Que tipo de convivência você tem com os moradores do conjunto:
- prestação de serviços:
- comércio:
- relacionamento social / amizade:
O entorno/vizinhança
De que lugar você tiraria uma foto do bairro? Por quê?
Cite um lugar de que você não gosta no bairro. Por quê?
247
Quais os lugares que você freqüenta no bairro para:
- compras: - padaria:
- supermercado:
- farmácia:
- sacolão:
- lazer: - praticar esporte:
- festa:
- bar:
- igreja:
- ensino (escola dos filhos):
- outros:
Desde que você mora aqui, notou modificações na vida do bairro? c Não - c Sim
Quais foram positivas?
Quais foram negativas?
Onde você se encontra com seus vizinhos de bairro?
Você conhece ou participa de alguma associação de moradores? c Não - c Sim
Qual?
Seus filhos brincam na vizinhança? c Não c Sim
Onde: c em casa - c na rua - c no conjunto - c na área de lazer - c em outros lugares
O conjunto
O que significa para você morar próximo a um conjunto habitacional?
Que tipo de convivência você tem com os moradores do conjunto:
- prestação de serviços:
- comércio:
- relacionamento social / amizade:
Como você se relaciona com as pessoas que moram no conjunto?
Existe alguma diferença entre os moradores do bairro e os moradores do conjunto? c Não - c Sim
Qual?
Como você vê o futuro do conjunto? c melhor - c pior
Por quê?
248
ANEXO B - Matérias de jornal
Fonte: MORADOR protesta contra construção de conjunto. Estado de Minas, Belo Horizonte, 1995.
249
Fonte: URBEL vai construir uma vila no bairro Goiânia. Estado de Minas, Belo Horizonte, 1995.
250
251
252
Fonte: Moradores inconformados com conjunto da Urbel. Diário da Tarde , Belo Horizonte, 8 ago .
1995.
FICHA CATALOGRÁFICA
Teixeira, Maria Cristina Villefort. T266e Espaço projetado e espaço vivido na habitação social: os conjuntos
Goiânia e Araguaia em Belo Horizonte / Maria Cristina Villefort Teixeira. Rio de Janeiro: UFRJ, 2004.
252 p. : il. Orientadora: Tamara Tânia Cohen Egler Tese (Doutorado) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto
de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional, 2004. 1. Arquitetura da habitação – Brasil 2. Arquitetura da habitação –
Belo Horizonte (MG) 3. Conjuntos habitacionais – Belo Horizonte (MG) 4. Conjunto habitacional Goiânia – Belo Horizonte – Teses 5. Conjunto habitacional Araguaia – Belo Horizonte – Teses I. Egler, Tamara Tânia Cohen II. Universidade Federal de Minas Gerais. Escola de Arquitetura III. Título
CDD : 728.981