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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE LETRAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
Escrita de melancolia e solidão:
O conto
de Lygia Fagundes Telles
Dissertação apresentada por Fabiana Cristina
de Camargo e Silva à banca examinadora do
Mestrado, como requisito parcial para a
obtenção do grau de Mestre em Literatura
Brasileira. Subárea: Literatura Brasileira e Vida
Cultural.
Orientadora: Profºa. Dra. Ângela Maria Dias
Niterói 2006
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FABIANA CRISTINA DE CAMARGO E SILVA
ESCRITA DE MELANCOLIA E SOLIDÃO: O CONTO DE LYGIA FAGUNDES TELLES
Dissertação apresentada por Fabiana Cristina
de Camargo e Silva à banca examinadora do
Mestrado, como requisito parcial para a
obtenção do grau de Mestre em Literatura
Brasileira. Subárea: Literatura Brasileira e Vida
Cultural.
BANCA EXAMINADORA
_________________________________________________________________________
Profa. Dra. Ângela Dias
Universidade Federal Fluminense
_________________________________________________________________________
Profa. Mathildes Demétrio
Universidade Federal Fluminense
_________________________________________________________________________
Prof. Sérgio Antônio Câmara PUC-RIO
Niterói 2006
Ao meu pai, com quem compartilhei vinte anos de boa música e literatura.
À minha querida mãe, grande artista e incentivadora, com quem continuo esta prazerosa
viagem pela apreciação estética.
AGRADECIMENTOS À minha orientadora, professora Ângela Maria Dias, pela docilidade, paciência e dedicação, mas, sobretudo, pela amizade durante todos estes anos. À banca examinadora, pela gentileza e dedicação na leitura de meu trabalho, desde a ocasião da banca de qualificação. À minha amiga e professora Sônia Monnerat, companheira desde a graduação, pela confiança, generosidade, e pelo exemplo de vida pessoal e acadêmica. À professora Mariângela Rios, pelo seu jeito generoso, simples e prático de ensinar e de ver a vida. À minha irmã e às amigas em comum, Jacque, Marcelle, Sigrid, Claudinha, Helô e Naná, pelo incentivo de sempre. A José Luis Sánchez, pelo amor, pelo carinho e por ter sempre acreditado em mim.
RESUMO Esta dissertação trata da solidão do sujeito na ficção curta de Lygia Fagundes Telles. Mostraremos como o despertar para a solidão do sujeito contribuiu para dar corpo a uma tendência literária que duraria por toda a modernidade. Nesta perspectiva, atravessamos a obra de Jean-Jacques Rousseau, precursor da escrita da interioridade, evidenciando o caráter positivo da solidão no universo deste autor. A dissertação aponta também a ambigüidade suscitada por tal sentimento na obra de Lygia, uma vez que, tendo em vista a obsessão de sua obra pelo tema da corrosão do indivíduo pelo tempo, o recurso à memória contada tanto pode evidenciar a negatividade quanto sugerir certa renovação do sujeito. Palavras-chave: Solidão; Rousseau; Lygia Fagundes Telles; reminiscência; negatividade; ambigüidade.
ABSTRACT
This dissertation deals with the idea of loneliness in Lygia Fagundes Telles’ shor t stories,
aiming to demonstrate how the awakening to individual loneliness contributed to the
construction of a literary trend, which would survive throughout Modernism.
In this perspective, we visit the work of Jean-Jacques Rousseau, to bring to fore some
possible positive aspects of loneliness as observed by the precursor of interior writing in
French literature and thought.
Also, we considered the ambiguity that such a felling may have in Lygia’s oeuvre, as it
shows an almost obsession by Time’s corroding character.
Through memory, Lygia emphasizes both the negative and the possible renovation of the
self.
Key-words: loneliness; Rousseau, Lygia Fagundes Telles, reminiscense; negativity;
ambiguity.
SUMÁRIO
1. Introdução 6 2. Jean-Jacques Rousseau e a escrita da interioridade 13 3. Escrita de solidão e melancolia: o conto de Lygia Fagundes Telles 25 4. Análise dos contos 31 5. Considerações finais 70 6. Referências Bibliográficas 74
Solidão é lava que cobre tudo Amargura em minha boca
Sorri seus dentes de chumbo. Solidão, palavra cavada no coração
Resignado e mudo no compasso da desilusão.
Desilusão, desilusão, Danço eu, dança você na dança da solidão.
(Paulinho da Viola)
1 - Introdução
O objeto desta dissertação é o estudo da solidão do sujeito no conto de Lygia
Fagundes Telles. Nossa opção por esta autora sustenta-se por sua grande contribuição para
a ficção brasileira do século XX. A autora, que admitiu sua estréia literária com Praia Viva,
em 1944, insere-se cronologicamente na geração dita de 45, ou do pós-guerra, o que explica
o recorrente sentimento de angústia existencial do universo de suas personagens.
Não obstante esta categorização formal, publicados dez livros de contos, quatro
romances, um de memórias e sete antologias (sendo a última de 2004), Lygia segue
brindando-nos com uma prosa que alcança um grau extremo de problematização da
subjetividade moderna. Se, por um lado, a ficção breve de Lygia Fagundes Telles revisita a
tradição, no que há de romântico em sua prosa, podemos dizer que ela transita entre esta e a
contemporaneidade, não só na leitura que faz da matéria do mundo e em sua reescritura,
mas no questionamento da própria maneira de dizer esta matéria, isto é, na fluidez das
fronteiras entre os gêneros que utiliza (evidenciada principalmente no que há de mais
recente em sua prosa curta), e entre vida e obra.
Como bem lembrou Ítalo Moriconi, em sua seleção de Os cem melhores contos
brasileiros do século, a partir dos anos 60 o conto passou por uma verdadeira explosão em
nosso país, uma autêntica revolução de qualidade. “A velocidade narrativa, a capacidade de
nocautear o leitor com seu impacto dramático concentrado, (...) fizeram do gênero o espaço
literário mais adequado à tradução dos sentimentos profundos e das contradições que
agitaram nossa alma basicamente urbana no decorrer das últimas quatro décadas.”
(MORICONI, 2000, p. 12). Lygia é, sem dúvida, uma das maiores representantes desta
“revolução”. A revolução operada na obra de Lygia evidencia-se, principalmente, pela
competência da autora em ilustrar a irreparável dissonância entre este homem em busca de
um sentido e um mundo estéril e esvaziado de sentido. É nesta “batalha” que se dá a
fertilidade da escrita de Lygia. Porque o conto, como assinalara Cortázar, “se move neste
plano do homem onde a vida e a expressão escrita dessa vida travam uma batalha fraternal”
(...); e o resultado desta batalha é próprio conto, uma síntese viva ao mesmo tempo que uma
vida sintetizada, algo assim como um tremor de água dentro de um cristal, uma fugacidade
numa permanência”.(CORTÁZAR, 1993, p. 150)
Nossa leitura dos contos tentará demonstrar que a palavra de Lygia Fagundes Telles
permanece, e que, muito embora a autora revisite a tradição, no aproveitamento dos temas,
se projetará numa nova experiência da subjetividade, na qual todo fundamento é ilusório, e
os tempos e espaços são intercambiáveis, como se o sujeito flutuasse numa zona indistinta
da vida. Um universo ficcional fundamentalmente marcado pela impossib ilidade de um
horizonte seguro para os personagens, uma ausência completa de télos.
Para tanto, nos propusemos a analisar a solidão sob duas óticas: por um lado, a
solidão como elemento de contribuição para o despertar de uma nova tendência literária – a
escrita da introspecção – que, em princípios do século XVIII, com Jean-Jacques Rousseau,
tem seu primeiro momento na história literária. Neste processo da obra do filósofo, o eu
fragmentado tenta reunificar-se pela experiência da memória. E por outro, a solidão na
literatura moderna do século XX que não se resolve com a “pura renovação” (que a
memória causa no homem romântico), uma vez que o sujeito, desiludido com a debilidade
de sua vida e de seu espírito, não encontra esperança na vida e nem persegue a unificação
do ser – meta que ainda parecia dada ao sujeito romântico.
Mostraremos em nosso estudo como o sonho, o devaneio podem continuar
associados às vivências de solidão, porém não são capazes de produzir reconforto e
soluções, que nem mesmo se oferecem pelo contato com o mundo. A solidão desses tempos
é marcada pela negatividade, uma solidão que pode fazer vislumbrar a morte, encarada
nesta acepção com muito pessimismo, em contraposição à morte para o romântico,
despojamento do corpo entendido como liberdade total da alma.
Para melhor esclarecer esta busca do ser através da linguagem, em escritas
associadas a recuperações pela memória, desde o período pré-romântico, atravessaremos
momentos da obra de Rousseau, culminando nossa análise mais cuidadosa em sua última
obra, Os devaneios do caminhante solitário. Nas palavras do próprio Rousseau:
Faço a mesma empresa que Montaigne, mas com um fim completamente
contrário ao seu: pois ele não escrevia senão para os outros, e eu escrevo meus
devaneios senão para mim. Se nos meus dias de velhice, nas proximidades da
partida, eu permanecer, como espero (...), sua leitura me lembrará a doçura que
experimento ao escrevê-los, e, fazendo renascer assim para mim o tempo
passado, duplicará, por assim dizer, minha existência. (STAROBINSKY, 1990,
P. 284.)
Em contrapartida, na seleção de elementos que melhor exemplifiquem a visão mais
pessimista da solidão, ou a dificuldade desta busca do ser pela linguagem, chegaremos ao
conto de Lygia Fagundes Telles, com especial ênfase para os contos “A ceia”, “A chave” e
“As pérolas”, “O moço do saxofone”, “Que se chama solidão”, “Pomba Enamorada ou uma
história de amor”, que consideramos serem os principais a desenvolver o tema da solidão
do sujeito como experiência de desilusão e desaparecimento, ou como pura errância, em
que o único sentido possível está no contínuo deslocamento e não no encontro. Uma
espécie de “ir-e-voltar de mãos vazias”, e sempre mais uma vez. Não apenas pelo fato da
obra da autora metaforizar a solitária condição humana, mas também pelo entrelaçamento
entre memórias autobiográficas e realidade, isto é, entre devaneios e experiência, que
observamos o legado do filósofo Jean-Jacques Rousseau na obra de Lygia.
Silviano Santiago diz que a ficção de Lygia Fagundes Telles é como um “mata-
borrão” que filtra as experiências do cotidiano e as transforma em escrita. Segundo ele,
na criação literária de Lygia, a escrita da memória e o texto da literatura confluem
aflitivamente para o lugar entre , aberto pelo contar dire ito e o contar mentiroso,
para a brecha ficcional, abrigo e esconderijo do narrador... Ela é uma espécie
nobre de papel mata-borrão que se encharca, primeiro, com a escrita dos
acontecimentos miúdos da realidade cotidiana, para, em seguida, representá-los
de uma perspectiva muito pessoal. (...) O narrador, ao subscrever e endossar as
garatujas do mata-borrão, reinventa-as e as transforma através da invenção de
personagens e coadjuvantes em que ama desdobrar-se.” (SANTIAGO, 1998,
p.280)
O desenvolvimento de nosso trabalho demonstrará como a exposição da
subjetividade, impondo-se através do relato autobiográfico, inicialmente com o artifício da
narração através de cartas e diários simulados, foi-se tornando “critério de validação do
romance”. Neste sentido, a relação estabelecida entre autor e receptor estreitou-se de tal
maneira que a ficção produzida pelo eu deixou de ser entendida como invenção, passando a
ser considerada manifestação da realidade.
Neste estudo, veremos que Rousseau foi o primeiro a experimentar a glória do
“pacto autobiográfico”, estudado por Lejeune. Ensinando os leitores a ler, nos prefácios de
seu primeiro e grande romance, Nova Heloísa, o genebrino solitário discutiu a leitura e a
maneira de ler seu romance, inaugurando, assim, um novo canal de comunicação entre dois
seres solitários, o escritor e o leitor. A partir da experiência da memória contada, enfatizou
sua honestidade, e criou um autor ideal, que falava do fundo do coração.
Esta busca desesperada pela verdade do ser, pelo conhecimento de si mesmo e pelo
reconhecimento dos outros perpassou toda a obra de Rousseau. Somente através do apelo à
linguagem ele pôde, então, transpor a distância que não conseguiu atravessar por meio da
ação. Apesar mesmo da incompreensão sofrida em seu relato das Confissões, quando tentou
a “transparência” como ideal, para Rousseau, “recolher-se em si mesmo é com certeza
aproximar-se de uma maior clareza racional e de uma evidência imediatamente sensível,
por oposição ao contra-senso que reina na sociedade”. (STAROBINSKY, 1991, p.52)
Por outro lado, veremos como na obra de Lygia Fagundes Telles o contra-senso
interior não é necessariamente menor que o exterior. Em toda parte, a opacidade e a
dissonância podem se fazer sentir. No universo ficcional da autora, tal ideal de
transparência não adquire o mesmo grau de eficiência.
Segundo a análise do rousseauísta Starobinski, o despojamento do mundo, esse
recuo para o âmbito da natureza, para o imaginário e para a intimidade do eu solitário traz
em si a capacidade de se tornar invulnerável. E é em Os devaneios... que esta tal
invulnerabilidade, aqui entendida como liberdade, objetivo maior do escritor romântico,
assume sua mais fiel representatividade. Esse sentir-se bem com a solidão, a felicidade de
estar em companhia da natureza, como refúgio da intemporalidade, típica do escritor
romântico, inaugura um traço em Rousseau que perduraria em autores da modernidade.
É neste sentido que estabelecemos a confrontação do tema da solidão em Rousseau,
como artifício de busca da verdade do ser como algo construtivo, e no conto de Lygia
Fagundes Telles, levando-se em consideração as inegáveis marcas românticas que
atravessam sua prosa. Na obra da autora, o status solitário não é capaz de salvaguardar o
indivíduo, mas, sim, de metamorfoseá-lo na direção da decadência.
Destacaremos em nosso estudo como o “não estar no mundo” em Rousseau, o
deixar-se levar pelo devaneio, apresenta, de maneira bem clara, a referência à solidão como
saída do caos, como algo de positivo, capaz de construir um meio de atingir a paz tão
sonhada. A solidão aqui, debruçada na nostalgia da memória, se não chega a dissipar a
desilusão, ao menos aponta para o caminho da virtude, da verdade, do bem mais precioso
que o indivíduo pode construir: a capacidade de desfrutar de sua própria existência, sem
precisar de mais nada para se preencher.
Paradoxalmente, com a análise dos contos de Lygia Fagundes Telles, mostraremos
que a mesma solidão que contribui para o desvelamento da subjetividade é aquela aponta
para o caos, para a degradação, para a decadência do ser. Na obra de Lygia, o sujeito parece
ser arrastado para uma série de desencontros que irão empurrá-lo para o inevitável abismo
da morte.
Neste sentido, demonstraremos que, para a maioria das personagens de Lygia no
corpus analisado, a lembrança, o saber, a maturidade e a consciência das coisas da vida são
experiências negativas, pois conduzem ao inevitável abandono do ser, impotente diante da
inexorabilidade do tempo. Constataremos que este sujeito, “diante do sentimento
unidirecional da passagem do tempo, como erosão, deperecimento, desgaste, jamais acolhe
a riqueza da experiência” (DIAS, 2001, 15).
Tendo em vista a contínua obsessão pelo tema da corrosão do indivíduo pelo tempo,
almejamos comprovar que é inegável que o ato da recordação, o apelo à memória, não
resolve a solidão do sujeito moderno, já que “mais prejudicial do que cigarro é a memória”
(TELLES, 1999, 141).
Nessa perspectiva, ao contrapor Os Devaneios... de Rousseau à obra ficcional de
Lygia, verificaremos algumas alternativas de tratamento da solidão na escrita da
instrospecção: da busca de um sentido unificante e justificador da existência à mais “irônica
melancolia do tempo” (DIAS, 2001, 15).
2 – Jean-Jacques Rousseau e a escrita da interioridade
O despertar para a subjetividade, evidenciado a partir do desgaste do paradigma do
mito como portador do imaginário público fez-se notar num primeiro momento no século
XVI, com a difusão da linguagem escrita, dando lugar à “moderna figura do autor1”, e ao
conseqüente estabelecimento do conceito de ficção. Esta crescente popularidade da
enunciação personalizada gerou a necessidade de se criar meios de legitimação do discurso
pelo seu conteúdo de verdade. Porém, é no alvorecer do século XVIII, com a literatura
revolucionária de Rousseau, que a questão da “verdade ficcional” terá seu primeiro marco
expressivo.
Segundo Ângela Maria Dias, em “Memória em ficção”, ensaio publicado pela
Revista Tempo Brasileiro,
a grande façanha da identidade consiste na definitiva arquitetura do conceito de
ficção, que ultima em pleno século XVIII. Neste momento, a cultura e a arte,
porque divorciadas da antiga representividade pública, esclesiástica e cortesã,
constituem esferas separadas da reproduçã o da vida social e passam a servir de
suporte ao ‘processo de autocompreensão das pessoas privadas’. (DIAS, 1995,
97)
Observa-se, a partir daí, uma transformação na relação entre escritor e leitor, e entre
leitor e o texto. A exposição da subjetividade, impondo-se através do relato autobiográfico,
com o artifício da narração através de cartas e diários simulados, vai-se tornando “critério
de validação do romance”, uma vez que vai criando meios de estabelecer empatias e
identificações entre autor e receptor, estreitando de tal maneira esta relação que a ficção 1 A expressão é usada por L. Costa Lima em Sociedade e discurso ficcional.
produzida pelo eu deixou de ser entendida como invenção, passando a ser considerada
manifestação da realidade.
Rousseau foi um dos primeiros a experimentar a glória do “pacto autobiográfico”,
estudado por Lejeune. Ensinando os leitores a ler, o genebrino solitário, através de suas
cartas, tentava tocar suas vidas interiores, abrindo as portas para o romantismo. Esta
estratégia requeria uma ruptura com a literatura convencional: em vez de se esconder na
narrativa e manipular personagens- fantoches, Rousseau lançava-se em suas obras e
esperava que o leitor fizesse o mesmo. E, deste, modo, não podemos deixar de citar os
personagens do primeiro e grande romance de Rousseau, Nova Heloísa, que se atiram à
leitura com a mesma entrega que o autor dedicou à leitura dos romances que sua mãe lhe
deixara. Como se trata de um romance epistolar, a trama desenvolve-se através da troca de
cartas. A vida não pode ser dissociada da leitura nem o amor, da escrita de cartas amorosas.
Na verdade, os amantes ensinam um ao outro a ler, da mesma maneira como ensinam-se
mutuamente o amor.
Nos prefácios desta obra, ele discute a leitura e a maneira de ler seu romance. Uma
espécie de defesa pessoal da acusação de estar publicando um romance, tendo em vista que,
para a época, os romances eram vistos ainda como perigo moral, especialmente quando
abordavam o amor e seus leitores eram as jovens senhoras. No entanto, ali estava ele,
exibindo seu nome num obra que falava de um tutor que seduz sua aluna e, mais tarde,
reúne-se a seu marido, num verdadeiro menage à trois.
Segundo E. Cassirer,
Antes de Rousseau, a sensibilidade lírica original parecia quase completamente
esgotada na França; até mesmo o nome e a peculiaridade do gênero lírico
pareciam esquecidos pela estética francesa. (...), e se o verso adquire uma
mobilidade e uma leveza jamais obtidas, esta leveza advém justamente do fato de
ele não estar mais sobrecarregado com um conteúdo verdadeiramente poético. Ele
se tornou um mero invólucro que se submete à idéia; serve como roupagem a
uma verdade filosófica ou moral; é um recurso cômodo para se atingir um
objetivo didático (...) surge, assim uma época na literatura francesa denominada
la poésie sans poésie. (CASSIRER, 1997, p. 82)
Esse problema existente na língua e na literatura francesas é quebrado somente por
Rousseau.
Escrito no momento em que rompia com Diderot e o grupo de filósofos, quando
gozava do reconhecimento por sua virtuosa moral sobre as artes e as ciências, Rousseau
alegou que Nova Heloísa não seria um romance, e sim uma coleção de cartas que ele estaria
apresentando na condição de editor, que reproduzia a comunicação de duas almas. Tratava -
se da escrita de gente estrangeira, muito humilde, que não interessaria, portanto, ao público
sofisticado da elite sócio-cultural. O leitor ideal deveria se despojar das convenções da
literatura bem como dos preconceitos da sociedade, o que evidentemente já representava
uma provocação política, pois deixava clara a sua insinuação de que a literatura era um
instrumento de que se havia utilizado o Antigo Regime. Para ele, a própria filosofia tornara-
se um modismo, sinônimo da sofisticação parisiense, então, buscou inventar uma nova
fórmula de fazer literatura, na qual pudesse defender a causa da virtude, apelando não para
o cidadão mas para o homem.
Rousseau tornou-se, portanto, o descobridor e o reanimador do mundo lírico. Foi a
reaparição desta força lírica que tanto impressionou e comoveu os contemporâneos de Nova
Heloísa. Eles não consideraram este romance uma obra da imaginação; sentiram-se
transportados do círculo da literatura para o centro de uma nova existência. O genebrino
solitário despertou antes de todos para esta Vita Nuova a partir da relação imediata com a
natureza, e foi o primeiro a despertá-la nos outros.
A retórica de Rousseau abria portanto um novo canal de comunicação entre dois
seres solitários, o escritor e o leitor, e reformulava seus papéis. O autor seria o estrangeiro,
profeta da virtude, e o leitor seria qualquer um que pudesse entender a linguagem do
coração. Há aqui um paradoxo evidenciado: se por um lado ele revolucionava o estatuto da
ficção, por outro, deixava clara a exigência de ser lido como o profeta da verdade absoluta,
retomando, assim, a maneira de ler que parece ter prevalecido nos séculos XVI e XVII: ler
para absorver a palavra de Deus. Este tipo de leitura parecia exigir do leitor um ato de fé,
uma fé incondicional no autor, que relacionou toda a sua obra consigo mesmo, com seu eu,
iniciando uma nova concepção de autor, que atingiria seu auge em Confissões. O
desvelamento de suas falhas morais, a partir da experiência da memória contada, enfatizava
sua honestidade, e criava um autor ideal, que falava do fundo do coração, uma espécie de
semideus. A partir daí, abria-se o caminho para a época da sensibilidade, e para o
Romantismo alemão e francês.
Esta busca desesperada pela verdade do ser, pelo conhecimento de si mesmo e pelo
reconhecimento dos outros perpassou toda a obra de Rousseau e some nte através do apelo à
linguagem pôde tomar corpo o seu projeto de dissolver os obstáculos do mundo exterior; a
linguagem será portanto a “potência mágica” que poderá transpor a distância que não
consegue atravessar por meio da ação. Se uma das principais características da
modernidade é justamente a dessacralização da arte e do artista, é interessante notar o
caráter “democrático” das Confissões de Rousseau.
Como assinalou Costa Lima, em Sociedade e discurso ficcional, nesta obra “todos
os homens são igua is”. Não devemos lê- la tomando-o como um sujeito autoritário, mas
como alguém que queria apenas ser compreendido. Porém, o próprio Rousseau, muito cedo
em seu relato das Confissões, perceberá que não basta ser “transparente” para ser bem
compreendido, e esta tentativa será realmente frustrada, restando a ele apenas o imaginário,
o devaneio, o recolhimento em sua intimidade, o entreter-se consigo mesmo, que consistirá
na consciência de sua própria solidão.
Segundo a análise do rousseauísta Starobinski, esse recuo para o imaginário e para a
intimidade do eu solitário traz em si “algo de ambíguo”.
De um lado, para Rousseau, é um retorno à independência total, à suficiência
perfeita do sentimento imediato. Mas, objetivamente, para nós, há aí um rodeio
com a finalidade de captar os olhares por meios que a presença física, por si só,
não possuía. Fazendo apelo à linguagem, a alma única de Jean-Jacques recorre à
mediação universal para melhor se manifestar em sua singularidade e em sua
hostilidade com o resto do mundo (...) tornar-se atraente sem se desprender de si
mesmo (...) Obter a atenção, a simpatia, a paixão dos outros, mas sem fazer nada
que não se abandonar à sedução de seus caros devaneios. Assim, ele será um
sedutor seduzido. (STAROBINSKY, 1991, p. 181)
A perseguição que enfrentará por parte da sociedade é para Rousseau o próprio
aprisionamento, mas percebe-se aqui um jogo duplo: ao expor o seu eu aos olhos dos
outros, fica claro o seu desejo de incitar um determinado tratamento, mas provoca essa
resposta como se não houvesse feito nada para tal comportamento, fingirá por vezes
surpreender-se. Para tal exposição do eu se utilizará de recursos de estilística (como a
presença repetitiva do adjetivo só), que darão o tom de súplica, enfatizarão seu
desapontamento com o mundo e tentarão explicar seu afastamento. Quisera ser apenas ele
mesmo, a sua vida interior. Sua solidão é seu refúgio, mas também é o modo de eximir-se
dos meios pelos quais é preciso passar para ir ao encontro dos outros. Ele espera fazer-se
amar sem fazer outra coisa senão ser ele mesmo.
Na verdade, Rousseau não quer assumir os riscos e as dificuldades que se interpõem
na comunicação direta com o próximo, perde assim a “verdade” de seu contato com o
outro, encerrado que está no abrigo inviolável de sua própria consciência. Por não ter
encarnado os “fantasmas” da ação mediadora, por não ter tido a vontade de se engajar
diretamente no universo do embate com o outro, define-se como escritor, como primeiro
romântico, pois não teve que transpor o caminho tortuoso que leva aos corações, não se
preocupou em estabelecer laços reais com ninguém, perdendo pois, a capacidade de viver a
"pureza de um sentimento" imediato.
Starobinski afirma que graças a esse despojamento, contudo, Rousseau escapa a
todo domínio, e torna-se invulnerável.
No momento em que o despojamento é consumado, no momento em que ‘de pior
nada mais é possível’, Rousseau recebe a revelação de uma liberdade que nada
pode destruir. A consciência permanece intacta, e provida de uma liberdade que
nada pode destruir. A perda de tudo transforma -se em posse absoluta, pois o
extremismo da adversidade põe em evidência esta parte do ser que jamais lhe será
tirada. (STAROBINSKY, 1991.)
Nesse sentido, pode-se dizer que sua própria alma é a única coisa que os homens
não podem dele levar.
Mas é em Os devaneios do caminhante solitário que esta tal liberdade, objetivo
maior do escritor romântico, assume sua mais fiel representatividade. Nesta obra, publicada
em 1782 como continuação de Confissões, só que orientada para uma nova ótica, ele
inovará tanto na forma como no conteúdo, desde a primeira frase: “Eis-me, portanto,
sozinho na terra...”(ROUSSEAU, 1986, p. 23), que constitui o cerne deste texto. Nesta
obra, dividida em dez Devaneios, a solidão, aqui entendida como liberdade do ser, está
expressa na busca de si mesmo, e especialmente da felicidade, a necessidade de amar e ser
amado, mas tudo resumido na tranqüilidade de se saber bastar-se a si mesmo. Este eu não é,
portanto, totalmente solitário, já que conta com a presença de Deus e seguirá neste eterno
caminhar para dentro de si que culminará com o retorno ao seio da mãe que nem mesmo
conheceu, evidenciado no décimo e último devaneio.
Segundo Jean Starobinski (1991), nesta obra o eu é sempre protagonista, e é para ele
que escreve, pois a palavra aqui não está mais voltada para o exterior e sim para a
indagação de seu próprio destino. No entanto, diante da incansável busca de si mesmo,
nesta necessidade de isolamento, ele se deparará com os outros, e com o não-eu, seu
alterego, que só pode se concretizar no Absoluto, no qual o eu encontra sua plenitude,
dirigido apenas pela força de sua intuição.
Ciente de que sua fala é incompleta, mal- interpretada pelos ouvintes, Rousseau
escreve suas Confissões, que serão lidas por Jacques Derrida, que a partir delas explicita
uma teoria do suplemento, revendo as relações da escrita como complemento da fala. Esta
realidade interior desconhecida da sociedade é então partilhada pela escrita que
suplementará os signos enganadores da fala. Ele precisa de signos porque as coisas elas
próprias não se bastam. Do mesmo modo, alguns objetos se interpõem entre os personagens
funcionando como suplementos ou substitutos de sua presença. Se ao escritor parece restar,
ainda nesta fase, a esperança, através da escrita como artifício de suplemento, já nos
Devaneios, logo na primeira caminhada, datada de 1776, esta remota esperança nas
gerações posteriores, se dissipa por completo, como podemos evidenciar na passagem a
seguir:
Poucos dias se passaram e novas reflexões me confirmaram como estava
errado em contar com a volta do público, mesmo numa outra época, visto que ele
é conduzido, no que me diz respeito, por guias que se renovam continuamente
nas corporações de que me têm aversão. Os indivíduos morrem, mas os corpos
coletivos não morrem. (ROUSSEAU, 1986, p. 25)
A partir de então ele resigna-se e passa a não mais temer, a nem mesmo esperar a
reação dos homens, e, assim, sente-se impassível a ponto de equiparar-se a Deus. Pretende
ocupar-se apenas consigo mesmo. Então, fixará pela escrita as felicidades que extraiu da
vida em solidão junto à natureza, para que, no futuro, próximo à velhice, ela faça com que
ele reviva o sentimento agradável de escrevê-las. Fazendo renascer o tempo passado,
ampliando portanto o tempo de sua existência, ressurgiria, pois, o outro (que já foi um dia)
em si mesmo.
O hábito de projetar-se para dentro de si mesmo atenuou aos poucos a sensação das
lembranças amargas, constituindo portanto um excelente recurso para a evasão da dor.
Esse recurso do qual me lembrei demasiadamente tarde, se tornou tão fecundo
que em breve bastou para me compensar de tudo. O hábito de entrar em mim
mesmo me fez perder enfim o sentimento e quase a lembrança de meus males;
aprendi assim, por minha própria experiência, que a fonte da verdadeira
felicidade está em nós e que não depende dos homens tornar verdadeiramente
infeliz aquele que sabe ser feliz. (ROUSSEAU, 1986, p. 31)
Esse sentir-se bem com a solidão, essa felicidade de estar em companhia da
natureza, como refúgio da intemporalidade, típica do escritor romântico, inaugura em
Rousseau um traço que perduraria em autores da modernidade.
Nessa perspectiva é que estabelecemos a diferenciação do tema da solidão em
Rousseau, como recurso na busca da essência do ser, como algo positivo, e no conto de
Lygia Fagundes Telles, uma solidão que se reverte por completo em negatividade.
O desafio solitário de Rousseau demonstra de maneira bem clara a referência à
solidão como escapismo. Na sua observação da vida, Rousseau concluiu que as paixões, a
escassez dos momentos prazerosos e a agitação dos objetos que estão ao redor do homem
não lhe permitem reconhecer este “sentimento da existência”, estado de verdadeira
felicidade, no qual não necessitamos de nada exterior a nós mesmos, e nem mesmo o tempo
é capaz de interferir, neste momento, afirma ele, “bastamo-nos a nós mesmos como Deus”.
Como podemos ver na passagem destacada a seguir:
O sentimento da existência, despojado de qualquer outro apego é por si mesmo
um sentimento precioso de contentamento e de paz, que sozinho bastaria para
tornar esta existência cara e doce a quem soubesse afastar de si todas as
impressões sensuais e terrenas que vêm continuamente nos afastar dela e
perturbar, na terra, sua suavidade. (ROUSSEAU, 1986, p. 77.)
Esta subjetividade que se pretende independente, que foi expurgada da sociedade
como uma doença contagiosa, encontra nesta solidão, na aversão pela vida ativa, as
compensações que o destino dos homens não lhe poderia trazer. Somente através da
experiência solitária, da descida ao inferno da própria intimidade, livre de todas as paixões
terrenas que a vida social proporciona, o sujeito é capaz de ver-se e de lançar-se nesta busca
pela virtude. Na impossibilidade de ser Deus, recusa tudo o que é prejudicial a esse espírito.
Fugir da sociedade é uma saída para a virtude, pois é preferível fugir a odiar a humanidade.
A partir desta reflexão, relatada na sétima caminhada de Os devaneios, Rousseau
reconhece-se portanto como um inadaptado, incapaz de viver entre os homens:
Então, para não os odiar, foi necessário fugir-lhes; então, refugiando-me na mãe
comum, procurei em seus braços subtrair-me aos ataques de seus filhos, tornei-
me solitário, ou como dizem misântropo, porque a mais selvagem solidão me
parece preferível à companhia dos maus, que somente se alimentam de traições e
ódio. (ROUSSEAU, 1986, p. 96.)
A predileção pela botânica para objeto de estudo e deleite parece estar associada ao
movimento cíclico da origem, uma vez que faz com que Rousseau retome o tempo da
transparência, a sua infância, que nada mais é que o tempo da felicidade e da comunicação
verdadeira e livre, e na renovação da memória é possível ser feliz de novo.
Para Rousseau, a sinceridade deveria ser o axioma, a premissa universal. Ele queria
dar ao coração a mesma importância que Descartes deu ao cogito. Como assinalou Costa
Lima,
A Rousseau ainda não ocorre que a vontade de ser sincero pode ser motivada por
algo a ela anterior; que a vontade de destruir todas as máscaras pode alimentar
outra máscara. Em suma, que não há um ponto estável, primário, irredutível que
possamos conquistar e converter em palavras. (...) Não há dúvida que em
Rousseau encontramos o indivíduo que somos. A impossibilidade de Jean-
Jacques tornar-se a transparência que desejou ser é o destino comum do indivíduo
moderno. (LIMA, 1986, 295)
Se partimos para o conto de Lygia Fagundes Telles, especialmente para os que
consideramos mais representativos da solidão, “A ceia”, “A chave”, “As pérolas”, “O moço
do Saxofone”, “Que se chama solidão” e “Pomba Enamorada ou uma história de amor”,
vemos que a mesma solidão que é capaz de desvelar a subjetividade é aquela que aponta
para o caos, para a decadência do ser. Na obra de Lygia, o sujeito é quase que arrastado
numa série de desencontros que irão empurrá- lo para o inevitável abismo da morte.
Segundo Ângela Maria Dias, em ensaio sobre a irônica melancolia do tempo na
obra de Lygia,
a obsessiva insistência no tema da fugacidade corrosiva e predatória do tempo,
bem como na implausividade dos caminhos da vida, de um lado, tornam a
rememoração uma espécie de saída obrigatória para desobstrução da perplexidade
e do espanto, de outro, esterilizam-na como possibilidade de renovação. Assim,
não existe a possibilidade de enriquecimento existencial ou da sabedoria trazidos
pela memória da experiência, já que, ao contrário de ser encarada como a
aventura solidária entre o homem e a sua circunstância, ela será exercida pela
ironia do narrador enquanto recuperação distanciada de um enredo como busca
degradada. (DIAS, 1990, p. 22)
De fato, no universo ficcional de Lygia, o sentimento da passagem do tempo é algo
degradante. Nessa perspectiva, a narrativa reminiscente funcionará como o revide do
sujeito ante o inevitável apagamento de sua existência. Como “pão a se dissolver na água”
(TELLES, 1982, p. 49), à subjetividade só resta este refúgio: o sentimento interior, e a
liberdade de escrever.
Se o êxito do relato autobiográfico está justamente na diafaneidade do narrado, no
grau de autenticidade do discurso, que linguagem seria tão fiel a ponto de transmitir o sabor
incomparável da experiência pessoal? Rousseau resolveu isso assim: “Terei sempre o estilo
que me vier”, isto é, sua fórmula deixava implícita uma vontade de ceder à iniciativa da
linguagem, sua obra se faria como fosse possível, e nisso residiu sua verdade: a linguagem
era a própria emoção expressa, em vez de meio ou ferramenta, para revelação de uma
realidade oculta; ela era o próprio segredo revelado. Ainda que a memória de evocação seja
falível, a cadeia dos sentimentos poderá reconstruir os fatos materiais esquecidos. O que
importa, de fato, não é a verdade histórica, mas a emoção de uma consciência deixando o
passado emergir e representar-se nela. Saímos do domínio da verdade e passamos então à
ordem da autenticidade. Segundo esta “lei da autenticidade”, a palavra não precisa
reproduzir uma realidade prévia, mas produzir uma verdade. Notar-se-á, pois, uma nova
concepção de linguagem, que permaneceria até o surrealismo.
De modo análogo, este reviver (ou refazer-se) pela memória afetiva se faz notar na
obra de Lygia, principalmente pelo fluxo da consciência. Presente, passado, reminiscências,
falas e ações podem aí misturar-se numa sintaxe descontínua, como num jorro de
pensamento, em livre expressão, que nos remetem irremediavelmente à escrita de Clarice
Lispector, amiga e contemporânea da autora.
Na ficção moderna de Lygia, vemos que essa mesma busca de Rousseau (pela
verdade do ser) é conduzida tão magistralmente que é capaz de revestir o signo lingüístico
de uma densidade que nos faz duvidar dos limites da representação. O mundo criado
simbolicamente passa a competir, portanto, com o real, e faz com que o protagonista se
enrede nas teias da linguagem, “esse terceiro elemento que se interpõe entre o sujeito e o
mundo, e que, ao mesmo tempo em que o afasta da experiência concreta da vida, é sua
única possibilidade de relação com o outro” (RÉGIS, 1998, p. 85). Assim, podemos dizer
que a autora logra o projeto máximo da literatura: a transgressão dos limites da palavra.
Em entrevista à revista Psicologia, a autora diz-nos:
Eu nunca sei o que é deste ou do outro mundo. Nós o tempo todo fazemos ficção
em cima da realidade e realidade em cima da ficção. O real e o fictício estão tão
misturados. É como a pele que aderiu à noz. Você tira a noz da casca e aquela
pele está tão aderida à semente que você não consegue separar mais. Assim eu
vejo a ficção e a realidade. Há ficções em que há verdades tão acreditadas, tão
aceitas, tão impregnadas de verdade que viram verdades. (...) você não consegue
mais descolar a pele do que é verdade e do que é fantasia.
3 - Escrita de solidão e melancolia: o conto de Lygia Fagundes Telles
Um ensaio de José Paulo Paes sobre a autora considera o “desencontro” a tônica de
toda a obra de Lygia. Concordamos com o autor, mas ousaríamos dizer mais. A principal
causa da solidão trágica dos personagens lygianos parece estar na incomunicabilidade. O
desencontro supõe não só uma frustração, mas um adiamento. Se há desencontro, é porque
houve uma falta (ou falha) de comunicação prévia, nem que seja no plano espiritual, ou
premonitório, e isso não ocorre apenas quando as personagens se perdem umas das outras,
mas principalmente no defrontamento. Até para adiar um encontro é preciso haver
comunicação; e na ficção curta de LFT não há. Na brevidade do conto não há espaço para
esse adiamento da comunicação (e para a esperança nele intrínseca). Na verdade, na
maioria dos contos de Lygia, a comunicação é imperfeita, quando não impossível. O que
vemos é sempre uma voz embargada, gemidos surdos na lona de um caminhão, frases
interrompidas, reticências, sussurros, balbucios, ou um instrumento musical que vem
emprestar voz àqueles que não conseguem dizer nada. Resta, portanto, um “falar para si”.
Há nos contos de Lygia Fagundes Telles uma espécie de fadiga do dizer a verdade,
uma certeza da inutilidade de explicação do mundo. Essa explicação só pode se dar,
portanto, na consciência do próprio personagem; na intensidade do seu solipsismo. Daí a
utilização do stream of consciousness, técnica que registra pela linguagem o fluxo contínuo
da consciência, “empurrando” a narrativa para fora do tempo linear. Assim, em muitos
contos vemos que não há diálogos, só pensamento. É como se o adensamento do sujeito nas
situações de solidão tirasse-lhe toda a capacidade de dicção, como veremos nas análises do
capítulo a seguir.
Essa falta de contato com o mundo ao redor é a marca da solidão trágica de Lygia
Fagundes Telles. Não deixa de haver alguma ressonância beckettiana nesse jogo de troca de
palavras que já não comunicam, apenas conformam um mundo que perdeu por completo a
sua substância. Em Beckett, e noutros autores do teatro do absurdo, muitas vezes, os
personagens falam por falar, somente para se conservar vivos, existindo, como em Molloy:
“Fiquei enfim a refletir, isto é, a escutar com mais intensidade.” (Beckett, 1988). A
linguagem é, portanto, o fio tênue que mantêm os personagens presos ao mundo.
Neste sentido, o silêncio experimentado por Rousseau ao término de Confissões
parece ressoar na narrativa de Lygia. Depois desta obra, a ele restou o silêncio. Não mais o
silêncio de cumplicidade, através do qual as almas sensíveis se comunicavam em Nova
Heloísa, mas o silêncio de seus leitores, o silêncio-obstáculo; o silêncio que viria a
encarcerá- lo para sempre em sua irremediável solidão.
Se na obra de Rousseau a linguagem assume esse caráter revelador, de alcance
ontológico, enquanto constituinte do ser, na ficção curta de Lygia Fagundes Telles a
linguagem acaba sendo uma barreira à comunicação. Nos poucos diálogos, vemos que as
palavras são ilusórias, elas estão quase sempre na contramão dos desejos das personagens.
Na busca de si mesmos, a fala dos personagens em nada contribui; ao contrário, torna-se
verdadeiro obstáculo, é capaz de apartá-los do mundo, condenando-os ao monólogo
interior, quiçá ao silêncio. À diferença do escapismo romântico de Rousseau, ao nosso ver,
na obra de Lygia, a linguagem é uma perfeita sala de espelhos.
O espelho – speculu – tem uma latência simbólica que pode nos ajudar a avançar
bastante na análise da obra de Lygia. É o objeto que o homem põe diante de si para ver
refletida nesta superfície sua própria imagem, ou seja, é conhecimento, exame,
consideração, especulação meticulosa da ação do tempo no orgânico, enfim, é
autoconhecimento.
Todos os objetos e seres no universo ficcional de Lygia são formas de
autoconhecimento, como se houvesse uma consciência sempre em extrema vigília, mas que
não garante qualquer redenção. O espelho polido pela contínua ação do tempo apenas
constata, revela.
É preciso observar que, se o misticismo e a religiosidade operassem numa ordem
espiritual sem abalos, se não se tratasse de uma metafísica em ruínas, o espelho, numa ótica
neoplatônica, poderia refletir na alma a beleza do mundo, e, assim seria capaz de
transformá- lo positivamente. Não é o caso.
Não por acaso, na maioria dos contos de Lygia, assim como na obra de Rousseau, as
histórias são narradas quase sempre em primeira pessoa. A autora se deixa invadir pelas
personagens, empresta sua voz a elas, e muitas vezes sem a mediação de um narrador.
Os personagens de Lygia conviverão quase o tempo todo com essa
incomunicabilidade, ou com sua voz interior. É como se falassem para abafar o ruído do
mundo, para restringir-se ao próprio eco. Tudo o que é dito tem um quê de exaustão, de
esgotamento anunciado de antemão. Os monólogos, na obra de Lygia, não seguem uma
ordem lógica, e podem carregar uma tonelada de fatos, um atrás do outro, mesmo que não
tenham nenhuma relação entre si. É assim que lemos em “Apenas um Saxofone”:
“[...] Sou mulher, logo só posso dizer palavrão em língua estrangeira, se possível,
fazendo parte de um poema. Então as pessoas em redor poderão ver como sou
autêntica e ao mesmo tempo erudita. Uma puta erudita, tão erudita que se
quisesse poderia dizer as piores bandalheiras em grego antigo. E a lesma ficaria
irreconhecível, como convém a uma lesma numa corola de quarenta e quatro
anos. Quarenta e quatro anos e cinco meses, meu Jesus. Foi rápido, não? Rápido.
Mais seis anos e terei meio século, tenho pensado muito nisso e sinto o próprio
frio secular que vem do assoalho e se infiltra no tapete. Meu tapete é persa, todos
os meus tapetes são persas...” (TELLES, 2004, p. 129)
A lógica desta personagem é capaz de misturar na mesma fala teorias sobre a
mulher e o palavrão, o medo da velhice e referências ao móveis da sala, é uma lógica
interna, própria.
(...) u ma lógica que não presta contas à causalidade. O que as
personagens dizem não corresponde a uma forma convencional de ver o mundo,
mas a uma forma pela qual elas se relacionam com a realidade, dela extraindo
elementos segundo a importância que eles têm para si; e depois, organizando-os
de acordo com o estado psicológico de cada momento. (MONTEIRO, 1980, p.
105).
Mesmo quando há diálogos ou ações bem objetivas, algo na narrativa de Lygia
provoca no leitor a sensação de que todas as falas e ações dos personagens não passam do
simulacro de um constante monólogo interior, já que, diante da impermeabilidade ao outro,
a experiência, uma vez vivida, logo se interioriza. Não há conciliação ou adaptação
possível. Todo contato gera um irremediável distanciamento – é nesse distanciamento que o
pensamento se torna cada vez mais sutil, mas essa agudeza do pensamento não é capaz de
criar um universo harmônico.
Vale notar aqui a distância do papel da linguagem entre Rousseau e Lygia. Nele, a
linguagem ao menos idealmente aproxima autor e leitor, num pacto autobiográfico. Nela, o
leitor é chamado a compartilhar da deriva interior dos personagens, mas isso não garante
qualquer ganho de autenticidade, transparência e verdade.
A dissonância é latente na obra de Lygia Fagundes Telles, de modo que o efeito de
realidade precisa ser suficientemente intenso para provocar a sensação de deslocamento, de
insegurança ou permanente tensão. A linguagem na obra de Lygia não tem outra
possibilidade senão voltar-se contra si mesma, apontando o seu próprio fracasso diante
daquilo que permite ser nomeado, daquilo que só indiretamente pode ser referido. E,
encerrando-se no indizível ou inominável, remete-nos mais uma vez aos monólogos de
Samuel Beckett, provocando no leitor uma sensação de náusea e desamparo. Ele se
descobre tão solitário quanto o personagem, sem consciência plena da trama, sem a
clarividência do narrador onisciente. Não é outro o efeito desconcertante dos contos de
Lygia Fagundes Telles.
Na solidão, o sujeito ganha uma consciência mais aguda do “estar-no-mundo”. O
sofrimento implica sempre num impulso de auto-descoberta, num desejo de auto-
conhecimento. O sujeito desperta de uma experimentação mecânica do mundo para uma
experiência vivida (Erlebnis). Trata-se do Leitmotiv dos relatos autobiográficos, dos
romances de formação. É o que podemos notar noutra passagem do conto supracitado:
(...) eu era jovem e não pensava nisso como não pensava em respirar. Alguém por
acaso fica atento ao ato de respirar? Fica, sim, mas quando a respiração se
esculhamba. Então dá aquela tristeza, puxa, eu respirava tão bem... (TELLES,
2004, p. 134)
Segundo a pesquisadora Nelly Novaes Coelho,
(...) as personagens de Lygia Fagundes Telles já nascem condenadas à solidão;
esta não surge condicionada por uma falha no relacionamento entre os homens,
mas é parte constitutiva do ser humano. É, portanto, ontológica e não
sociológica”. (COELHO, 1971, p.148)
Esta auto-descoberta emerge da condição antropocêntrica do homem moderno, que
o fará desprezar todo conhecimento transcendente para encerrar-se em si mesmo. Para este
homem que chamamos moderno, indagar-se e indagar o mundo em que vive será tão
fundamental quanto respirar. A descoberta do tempo compreenderá, concomitantemente,
um avanço e uma tragédia: se, por um lado, é a descoberta de sua individualidade, de sua
autonomia, por outro, é a trágica conscientização de sua finitude, de um Eu menor que o
mundo, de que basta estar vivo para começar a morrer. Estar no tempo é estar sujeito ao
próprio desaparecimento, à sua própria destruição. Não pagar tributos a uma transcendência
significa construir seu próprio mundo, viver na imanência, no “aqui e agora”, isto é,
nenhum adiamento é possível. Daí o desejo desarvorado de apreensão do instante, de
comunicação, de felicidade.
No entanto, esse autoconhecimento passa necessariamente pelo conhecimento do
mundo, e não há como fazê- lo senão pela palavra, pelo Logos, pelo discurso. “Logo”
significa ‘palavra’, ‘tratado’, ‘estudo’, ‘ciência’; ‘faculdade de raciocinar’, ‘razão’,
‘inteligência’, ‘entendimento’. E, ao mesmo tempo, significa ‘lugar’, ‘morada’. Assim, a
escrita da interioridade pode ser vista como a grande saída, o verdadeiro lugar (morada) do
homem moderno, uma forma de agarrar-se ao mundo, ainda que seja pela pala vra escrita.
O corpus analisado no capítulo a seguir é particularmente ilustrativo deste “falar
para si”, desta conscientização da solidão do indivíduo de hoje. Solidão moderna, como
assinalou Silviano Santiago em Poesia Completa (CDA, 2001), e não mais romântica.
Nossa intenção nas análises do capítulo a seguir é também demonstrar o que
consideramos “avançado” no tratamento da solidão no conto de Lygia, isto é, o quão a
autora aponta para a pós-modernidade, na medida em que na sua efabulação labiríntica não
há saídas nem utopias entrevistas nas situações de solidão em que estão submetidas as
personagens.
4 – Análise dos contos:
4.1 - “A ceia”
No primeiro conto em questão, “A ceia”, a inexorabilidade do tempo irá maltratar e
aos poucos empurrar a personagem Alice à inevitável solidão, imposta pelo desgaste da
relação amorosa e pela metamorfose física do envelhecimento. Desde os primeiros
instantes, a narrativa desprende um sabor de saudosismo, de despedida, e denuncia o fim da
ilusão da protagonista.
A protagonista Alice encontra-se com Eduardo num bar pela última vez. É o
prenúncio da solidão, pois trata-se de uma despedida. Seu amado vai casar-se com uma
mulher muito mais jovem. A diferença de idade entre as duas dá a Alice de maneira brutal a
dimensão de seu desgaste e faz com que ela utilize todos os meios possíveis para minimizar
as marcas de sua idade neste encontro, diante da desesperadora fraqueza que o fantasma da
solidão incita no sujeito. Mal chegam ao bar, ela já providencia uma forma de mascarar a
idade:
Sentaram-se numa mesa próxima ao muro e que parecia a menos favorecida pela
iluminação. Ela tirou o estojo da bolsa e retocou rapidamente os lábios. Em
seguida, com gesto tranqüilo mas firme, estendeu a mão até o abajur e apagou-o.
– As estrelas ficam maiores no escuro. (TELLES, 1999, p. 111.)
Nesta passagem, ainda que de modo sutil, notamos uma certa ambivalência. Se, por
um lado, é a constatação da cruel ação corrosiva do tempo, da pequenez e finitude do ser
humano diante da vida e do firmamento; por outro, “as estrelas brilham mais no escuro”.
Quer dizer, ainda que estes seres abandonados à sua própria sorte no mundo defrontem-se
com a escuridão, aqui entendida como a própria solidão do sujeito rejeitado, ainda assim é
capaz de acenar para alguma clarividência. Esta mesma solidão que dilacera o ser traz em si
algo de positivo, uma vez que pode convergir num autoconhecimento, na redescoberta de si
mesmo.
Mesmo assim, tudo na construção do ambiente parece contribuir para resvalar a
decadência: a fotofobia da personagem, a desviar-se da luz do abajur e da chama do
isqueiro - reveladora do avanço da idade -, uma folha seca que cai da árvore sobre a mesa
onde se estabeleceu o casal; por entre as pedras, um tufo de samambaia crescendo no mato
rasteiro; a nostalgia de uma música velha, na voz fanhosa de uma cantora que não se ouvia
desde a infância; a mancha na toalha da mesa do bar, e, ainda, um peixe de pedra
funcionando como fonte extinta com a boca escancarada, onde a água há muito secara,
como marcas indeléveis da representação da decadência e da solidão em que fatalmente
mergulhará a personagem da ficção.
Se seguimos com o exame das marcas estilísticas presentes no conto, verificamos
que, apesar da decadência do local, a atmosfera criada é altamente mística.
A certa altura do encontro, Alice comenta arrependida que, no último encontro deles
– quando provavelmente recebera a notícia do rompimento –, fizera uma grande cena na
qual quebrara um copo na mão: “aquela coisa assim dramática do vinho ir escorrendo
misturado com o sangue...”(p.113). Este comentário vem compor a atmosfera mística da
narrativa na medida em que nos remete inevitavelmente à imagem da transubstanciação do
vinho no Sangue de Cristo, isto é, ao milagre operado por Jesus Cristo em sua Última Ceia,
na qual converteu o pão e o vinho no seu Corpo e no seu Sangue.
Mais adiante, nova referência mística estabelecida pela própria protagonista na
analogia que faz entre sua situação e a Última Ceia de Jesus, e a traição que este sofrera: “–
Quem diria, hem? Nossa última ceia. Não falta nem o pão e o vinho. Depois, você me
beijará na face esquerda.” (IDEM, p. 118).
Além disso, se observamos o espaço onde se desenvolve a narrativa, vemos que as
mesas do restaurante “modesto e pouco freqüentado” (p.111) estão dispostas num “jardim
decadente” (p.118). Quando pensamos em jardim, imaginamos uma área limitada, de
vegetação planejada e muito verde. Ao mesmo tempo, a imagem do jardim está imediata e
indissociavelmente ligada à idéia do paraíso, o Éden perdido – morada do primeiro homem
e nostalgia de toda a sua descendência. No Cântico dos Cânticos da Bíblia, assim como na
tradição muçulmana e na interpretação de Freud, o jardim é sempre o espaço privilegiado
do amor, seja ele natureza ou corpo de mulher.
Na obra de Lygia, a insistência no tema do jardim e na cor verde é tão marcante que
é considerada estilisticamente um dos caracterizadores do seu texto. Para a pesquisadora
Vera Tietzmann Silva, o jardim na obra de Lygia Fagundes Telles representa
(...) o lugar de regresso: a um tempo passado, a um estado de paz, à inocência
perdida. É ao mesmo tempo o Éden e o ventre materno, a selva e o aprisco, é o
lugar de revelação. (SILVA, 1985, P.126).
O verde, esta cor altamente simbólica e ambígüa, transita profusamente na obra de
Lygia, por cenários, personagens e objetos. Este verde, que em muitos outros contos pode
ser a juventude, a esperança, o frescor, a crença, e também a metamorfose, no conto em
questão, não se revela vivo, intenso, esperançoso, mas embaçado, sombrio, sem vida.
Neste verde, folhas mortas ou secas caem sobre a mesa. “Nem água, nem flores,
nem gente.” (ibid, p. 119). Aqui, o jardim não só se apresenta como um espaço descuidado,
mas também transmite a dimensão do abandono de Alice:
Deram alguns passos contornando as mesas vazias. No meio do jardim decadente,
a fonte extinta. O peixe de pedra tinha a boca aberta, mas há muito a água secara,
deixando escancarado o rastro negro da sua passagem. Por entre as pedras, tufos
de sama mbaia enredados no mato rasteiro. (ibid, p. 118)
Aqui é necessário fazer um breve paralelo com outro magnífico conto da autora,
“Anão de Jardim”. Afinal, também é no jardim que habita a figura do anão, imagem do
obscuro, do grotesco, elo ou ponte com o outro mundo.
Neste conto, a presença de um anão filosofante e sarcástico no jardim rompe toda a
conotação bucólica deste espaço e simboliza a passagem para o subterrâneo, a transição do
jardim à gruta, onde o riso é somente da ordem da bufonaria, e todo o resto se revela
sombra e dissimulação. Que este anão habite o jardim, pensando poeticamente o espaço,
não é um mero acaso, pois, ainda que o jardim em alguns momentos represente, como
comentamos, a paz e a inocência, ele é, sobretudo, “o lugar de revelação”, como bem
assinalou a pesquisadora Vera Tiezmann. Tanto em “Anão de Jardim” quanto em “A ceia”,
o jardim será o palco das grandes descobertas.
Neste conto de fora do corpus analisado, que visitamos para ajudar a pensar a
questão do jardim, o anão é sobretudo aquele que tudo sabe, que vê através das máscaras.
Pela intelecção do anão de jardim nos é desvelada a farsa, a hipocrisia de uma família. Já
em “A ceia”, a consciência da transformação do amor em solidão no espaço do jardim
conduzirá à descoberta de uma nova realidade, sem o amado, porém possível, sob um céu
estrelado, onde as estrelas parecem maiores, o que nos faz vislumbrar um sinal de
esperança na vida.
Estes seres miniaturizados, como pequenos demônios do imaginário medieval,
“enroscam-se nas pernas das personagens” e tanto podem habitar espaços recônditos,
transitando por pequenas frestas, aparecendo e desaparecendo a cada instante, quanto
estabelecer-se num espaço privilegiado como o jardim, de onde tudo presenciam como
espectadores de um verdadeiro drama, ainda que inanimados.
O anão na obra de Lygia Fagundes Telles é, portanto, a mais completa visibilidade,
o minúsculo observador de toda a cena. Por vezes também o narrador onisciente – sempre
com uma nota amarga e sarcástica. O anão representa, assim, uma espécie de nível de
consciência mais profundo, que, de modo paradoxal, só pode ver mais com mais clareza
porque a matéria de seu ser é a loucura e a eterna solidão. Na desmedida, na falta de
proporção, na dissonância da natureza, vislumbra-se a interioridade sem abrigo ou disfarce.
Não é outro o sentido do grotesco no conto de Lygia. E seus símbolos se acham
aleatoriamente espalhados nos espaços que ela descreve como sinais, pequenas setas que
apontam para a teatralidade da vida dos personagens, para a encenação, em última
instância, circense, mas sem o riso inocente.
A ruína do cenário – denunciada pelo onisciente narrador e na própria fala de
Eduardo que destacamos a seguir – assemelha-se muito à própria devastação da
protagonista:
– Secou a fonte, secaram as flores, imagino como devia ter flores neste jardim e
como essa casa devia estar sempre cheia de gente, uma família imensa, crianças,
velhos, cachorros. Desapareceram todos. Ficou a casa... (ibid, p. 119)
Lygia simboliza em Alice a velha casa abandonada, a céu aberto, desprotegida,
cheia de espaços vazios, sintomas de ausências. Ela se transforma neste lugar feio, para
encontros rápidos, sem importância, nesta “não-casa”; esta concha que foi deixada, no
sentido bachelariano do termo.
Segundo Gastón Bachelard (1989), a casa é nosso “primeiro canto no mundo”,
nosso primeiro universo, espaço que acolhe, primeiro berço em que é colocado o homem
depois de ser “jogado no mundo”. Para o filósofo, encontrar a “concha inicial” em toda
moradia é a grande tarefa do fenomenólogo. A metodologia fenomenológica do pensador
ensina e sugere a valorização da imagem poética das coisas, a serviço do bem-estar do
homem no mundo.
Em A Poética do Espaço, Bachelard desenvolve a idéia do abrigo, do refúgio e da
proteção acendendo todas as luzes fugidias do devaneio. Nesta obra, ele trabalha os
“espaços vividos” e os “espaços amados”, tais como: a casa, a cabana, a gaveta, o cofre, o
armário, o ninho, a concha, a miniatura e a imensidão interior.
Na imagem da casa, o autor reconhece a maior força de integração para o
pensamento, para a lembrança e para o sonho. Nesta integração, o princípio de ligação se dá
pelo devaneio. No devaneio, que é sonho, fantasia, imaginação, felicidade, bem-estar,
alegria, lembramo-nos destes aposentos e aprendemos a morar em nós mesmos.
Graças à casa, grande parte de nossas lembranças são guardadas. A casa é um
refúgio e também um arquivo. Dentro da casa há ainda o porão, o sótão, outros cantos da
casa. Eles também podem representar partes desse refúgio e dessa memória. Diz o autor:
Todo canto de uma casa, todo o ângulo de um quarto, todo o espaço reduzido
onde gostamos de encolher-nos, de recolher-nos em nós mesmos, é, para a
imaginação, uma solidão, ou seja, o germe de um quarto, o germe de uma casa.
Dentro da casa tudo se diferencia, se multiplica. No mundo fora da casa, opera-
se uma diminuição do ser, uma espécie de embaralhamento dos caminhos. O
sonhador da casa sabe disso, e sente pela diminuição do ser exterior um aumento
da intensidade dos valores de intimidade. Bachelard comenta nesta obra que o
próprio Baudelaire, reconhecido citadino, já havia sentido numa tela de Lavieille
os “extratos da ventura de inverno” (BACHELARD, 2000, p. 57).
Nesta tela, onde aparece uma “choupana na orla de um bosque no inverno, a estação
triste”, o inverno parece ter sido evocado, como um reforço da felicidade de habitar. No
plano da imaginação, o inverno relembrado aumenta o valor de habitação da casa.
Baudelaire diz que o sonhador pede um inverno rude: “Pede (o sonhador) anualmente ao
céu tanta neve, granizo e geada quanto seja possível. É preciso que haja um inverno
canadense, um inverno russo. Seu ninho será mais quente, mais doce, mais amado...”
É interessante notar como tudo se ativa quando se acumulam as contradições. Esta
“ventura de inverno” baudelaireana será sintetizada pela máxima de Henri Bosco: “Quando
o abrigo é seguro, a tempestade é boa.”
Transformada nesta “não-casa”, sem teto nem paredes, neste descampado
decadente, Alice vai se desmantelando, despersonificando, à medida que metaforiza o
universo, o mundo exterior, em oposição à idéia de casa habitada e protegida. Nesta
dialética, Alice (universalizada) perde para a solidão e vai se tornando um não-eu. Sua
solidão é como a neve de Lavieille, aniquila o mundo exterior com extrema facilidade.
Neste processo de despersonalização, Alice vai aos poucos entrando em desespero,
porque nenhuma das armas que utiliza no encontro é capaz de reverter sua inevitável
condição de abandono:
– Você gosta do meu perfume, Eduardo? É novo.
...
– Cortei o cabelo. Remoça, não?
– Não sei se remoça, Alice, só sei que te vai bem. (ibid, p. 112, 113)
Tampouco a atitude desesperada da mulher ao agarrá- lo, beijá- lo, afundando a cara
em seu peito, contruibuirá. Nenhum artifício mudará a direção deste homem. Na fala dele –
e no uso de uma expressão provavelmente extraída do repertório da nova mulher – vemos
que a solidão de Alice é irreversível: “(...) O que passou, passou. Disco na prateleira” 2.
(ib id, p. 115)
E, para o leitor, ao final do conto, mais uma evidência do envelhecimento de Alice
(a esta altura com a “máscara repisada”) se dá quando o garçom volta a se aproximar justo
no desenlace da cena: “– Também discuto às vezes com a minha velha, mas depois fico
chateado à beça. Mãe tem sempre razão – murmurou ajudando-a a levantar-se. (ibid, p.
122.)
2 Grifo nosso.
4.2 - “A chave”
“A chave” vai contar a história de Tomás, um homem que troca sua mulher de
meia- idade por uma adolescente e vai trilhando sua trajetória rumo à solidão e à
decadência, à medida que a adolescente inocente transforma-se numa belíssima mulher da
sociedade, fútil e vazia, preocupada apenas em tratar de seu corpo para exibi- lo como
trunfo a qualquer platéia que lhe aparecesse.
...Uma exibicionista. Se soubesse a data da morte, doaria depressa o esqueleto à
Faculdade de Medicina, para continuar... (ibid, p. 70)
Jovem e cheia de energia, Magô passa a andar na contramão da vida de Tomás, que,
incapaz de acompanhar o seu ritmo, decide assumir sua idade, deixando-se ficar no
repouso, ciente de que mais dia menos dia, será contemplado com a infidelidade da mulher:
Descalça, seminua e radiosa com se estivesse debaixo do sol. Tanta energia meu
Deus. Havia nela energia em excesso, ai! A exuberância dos animais jovens,
cabelos demais, dentes demais, gestos demais, tudo em excesso. Eram agressivos
até quando respiravam. Podia quebrar uma perna. Mas não quebrava, naquela
idade os ossos deviam ser de aço. Bocejou. (ibid, p. 70)
Num primeiro momento do conto, o marido perde o interesse pela esposa ao
perceber o seu gradual desaparecimento:
Unhas e mãos de velha, incrível como as mãos envelheceram antes. Depois foram
os cabelos. Podia ter reagido. Não reagiu. Parecia mesmo satisfeita em se
entregar, pronto, agora vou ficar velha. E ficou. Gostava de jogar paciência, as
mãos muito brancas deslizando pelo baralho. A vitrola ligada, discos próprios dos
programas da saudade. “Mas Francisca, que horror, esse samba é antiquíssimo,
você tem que ouvir coisas novas!” Ela sacudia a cabeça, “Não quero, deixa eu
com as minhas músicas, essas outras me atordoam demais!” Tardes de Lindóia.
Os jardins, os copinhos, “Esta fonte é excelente para reumatismo...” (ibid, p. 70,
71)
O espaço da narrativa é justamente o da recuperação da memória, e o enredo avança
à medida que Tomás vai ficando cada vez mais consciente do grande equívoco cometido. A
lembrança permanente da ex-mulher e das afinidades que possuíam vão contribuindo para o
afastamento de Tomás e Magô. No espaço da ação ele é apenas levado, e o abismo entre os
dois é a tal ponto acentuado que ele só pode ser ele mesmo na lembrança:
Abriu a boca para bocejar, as mãos em concha diante da boca, aquecendo-as com
o bafo. Dormiria uma noite inteira e a outra noite inteira e a outra ainda... Noites
e noites dormindo até morrer de dormir. Na vitrola, a musiquinha sem neurose. E
Francisca ao lado, entretida na sua paciência, ah, como amava aquele doce som
das cartas que murmurejavam sobre a mesa enquanto ela também murmurava
coisas que não exigiam resposta. (ibid , p. 74)
Pelo sonho, ou devaneio, regressará ao seu passado, devolvendo à primeira esposa a
chave da liberdade que ela teria lhe concedido dez anos antes. É o lugar da narrativa
fantástica. A solidão de Tomás tentará a todo custo dissolver-se no sonho, no delírio:
Ah, se eu pudesse voltar sem nenhuma palavra, sem nenhuma explicação. Ela
também não diria nada: era como se ele tivesse ido comprar cigarros. “Tudo bem,
Francisquinha?”- perguntaria ao vê-la franzir de leve as sobrancelhas. Ela se
inclinaria para o baralho: “Está me faltando uma carta...” (ibid , p.75)
No entanto, não se reconhece mais, encontra sua própria voz “pastosa”, irreal. Não
se encaixa nem no sonho nem na realidade, vive deslocado, fora de foco. Suas lembranças
não dão conta da angústia de habitar esse não- lugar, e, assim, só é capaz de se encontrar na
solidão da memória.
Aqui observa-se mais uma vez certa ambigüidade na experiência da solidão, como
se houvesse uma face positiva na situação de solidão, uma melancólica aceitação deste
status, que, só na experiência da memória solitária pode trazer encontrar certo reconforto e
recobrar sua verdade interior.
4.3 - As pérolas
No conto “As pérolas”, o outro personagem Tomás herdara da mãe “os olhos de ver
à distância”, capazes de adivinhar o futuro. Reconhecendo-se em avançado estágio de sua
doença, sabe que está prestes a morrer, mas, para não aborrecer a mulher, dissimula esta
sensação fazendo uso de um “sorriso postiço”, motivado pelo amor à esposa. Ele sabe, ou
pelo menos pressente, na linha tênue entre o devaneio e a vidência, aqui entendida como
suposta realidade, que, nesta noite, numa reunião social, sua mulher vai rever o cunhado
Roberto e que, desse encontro, nascerá uma paixão. O que nos faz indagar se tal capacidade
de antecipar as situações representa alento, poder, ou algo que agudiza a melancolia do
personagem.
Atormentado pela certeza do próprio fim, sente-se só e abandonado e desperta em si
os piores sentimentos de ciúmes e despeito. Para ele, restara apenas o dom da previsão,
herança materna, e se, por um lado, através dela, sabe o que vai se passar, podendo até
mesmo com isso mudar o rumo dos acontecimentos, por outro, aproxima-se cada vez mais
de sua morte, como podemos ver na belíssima imagem dos botões de gerânio:
Apertou os olhos que foram se reduzindo, concentrados no vaso de gerânios no
peitoril da janela. “Eles sabem que nem chegarei a ver este botão desabrochar”.
Estendeu a mão ávida em direção à planta, colheu furtivamente alguns botões.
Esmigalhou-os entre os dedos. (ibid, p.144.)
A iminência da morte transforma Tomás num ser ambivalente; frágil e poderoso ao
mesmo tempo. Frágil pela vitória da doença sobre a carne, e pela imaginação que a
memória delirante provoca no ser; poderoso devido a seu dom de previsão, que lhe
conferirá a capacidade de mudar o rumo dos acontecimentos.
Diferentemente da narrativa de Rousseau, neste conto, a consciência da solidão que
a memória ou o delírio podem suscitar, é, para Tomás, algo que o orienta à dissimulação, à
opacidade, a fim de evitar a compaixão de sua mulher e não sucumbir.
A recomposição da cena do jantar pela memória é provocada pela escolha de
Lavínia por um vestido preto, reacendendo em Tomás a lembrança da última vez em que
estivera diante do “inimigo”, e esta imagem é tão nítida que era como se tivesse sido na
véspera, aquela noite há quase dez anos. Já quase derrotado pela doença, a memória do
passado é o fator que acelerará a sua ruína:
Dois dias antes do casamento. Lavínia estava assim mesmo, toda vestida de preto.
Como única jóia, trazia seu colar de pérolas, precisamente aquele que estava ali,
na caixa de cristal. Roberto fora o primeiro a chegar. Estava eufórico: “Que
elegância, Lavínia! Como lhe vai bem o preto, nunca te vi tão linda. Se eu fosse
você, faria o vestido de noiva preto. E estas pérolas? Presente do noivo?” Sim,
parecia satisfeitíssimo, mas no fundo do seu sorriso, sob a frivolidade dos
galanteios, lá no fundo, só ele, Tomás, adivinhava qualquer coisa de sombrio.
Não, não era ciúme nem propriamente mágoa, mas qualquer coisa assim como
sabor sarcástico de uma advertência, “Fique com ela, fique com ela por enquanto.
Depois veremos.” Depois era agora (...) A varanda, floreios de Chopin se
diluindo no silêncio, vago perfume de folhagem, vago luar, tudo vago. Nítido, só
os dois, tão nítidos. (ibid, p. 146.)
A lembrança daquele famigerado encontro, agravada pela exaustão da doença,
transportam Tomás para a tênue fronteira entre a memória e o delírio, entre a imaginação e
a realidade, de modo que não se vê escapatória para sua dor. E nesta convulsão da
memória, resta a ele apenas a solidão, quiçá a morte. Por isso, na tentativa desesperada de
alterar o curso dos acontecimentos que pôde prever revendo o passado, esconde o colar de
pérolas, peça-chave para a perfeita cena romântica que anteciparia a sua própria destruição :
Tudo ia acontecer como ele previra, tudo ia se desenrolar com a naturalidade do
inevitável, mas alguma coisa ele conseguira modificar, alguma coisa ele subtraíra
da cena e agora estava ali na sua mão: um acessório, um mesquinho acessório
mas indispensável para completar o quadro. Tinha a varanda, tinha Chopin, tinha
o luar, mas faltavam as pérolas. (ibid, p. 149)
Neste sentido, para a maioria das personagens de Lygia, a lembrança, o saber, a
maturidade e a consciência das coisas da vida são experiências negativas, na medida em
que conduzem ao inevitável abandono do ser, impotente diante da inexorabilidade do
tempo, que “diante do sentimento unidirecional da passagem do tempo, como erosão,
deperecimento, desgaste, jamais acolhe a riqueza da experiência”. 3
Muito embora nossa leitura e grande parte da fortuna crítica de Lygia esteja
fortemente orientada para ressaltar uma visão mais pessimista da solidão do sujeito, não
podemos encerrar a leitura da solidão na pura negatividade, uma vez que, a cada cena
melancólica, como assinalamos nas análises anteriores, certa ambigüidade depreende-se de
modo sub-reptício.
3 DIAS, Op.Cit.
4.4 - O moço do saxofone
A abertura de “O moço do saxofone” já nos apresenta o cenário da perfeita
decadência: uma pensão “fregue-mosca” (p. 295), de uma “polaca que quando moça fazia a
vida” (p. 295), por onde passam ou habitam artistas de quinta categoria, anões e motoristas
de caminhão. Tudo contribui para resvalar a solidão: os infelizes dos pensionistas; os
volantes, “uma corja que entrava e saía palitando os dentes” (p. 295); a comida de péssima
qualidade; os anões se enroscando nas pernas das pessoas e a música do saxofone.
No início do conto, de sua mesa, o narrador – caminhoneiro de passagem por
aquelas bandas –, assume a condição de mero espectador deste circo da degradação humana
até que é fortemente atingido pela música do saxofone.
Mas aquele saxofone era mesmo de entortar qualquer um. Tocava bem, não
discuto. O que me punha doente era o jeito, um jeito assim triste como o diabo,
acho que nunca mais vou ouvir ninguém tocar saxofone como aquele cara tocava.
(TELLES, 2004, p. 295)
O gemido abafado do saxofone o devolve à angustiante experiência de uma noite na
estrada em que deu carona a uma moça prestes a parir. Ela abafara os gritos na lona de seu
caminhão para não incomodá- lo, mas ele teria preferido que botasse a boca no mundo.
Tive vontade de rir também, mas justo nesse intante o saxofone começou a tocar
de um jeito abafado, sem fôlego como uma boca querendo gritar, mas com uma
mão tapando, os sons espremidos saindo por entre os dedos.
(...) – Parece gente pedindo socorro –, eu disse, enchendo meu copo de cerveja. –
Será que ele não tem uma música mais alegre?” (ibid, p. 296)
O som é tão perturbador que o motorista tenta, a princípio, rejeitá-lo, distraindo-se
com o blablabá de seu interlocutor, James, o engolidor de giletes, na vã tentativa de
preservar do desasossego daquele ambiente sua identidade de caminhoneiro-solitário (self-
sufficient).
– Mas por quê? – perguntei, bebendo mais depressa para acabar logo e me
mandar dali. A verdade é que não tinha nada com isso, nunca fui de me meter na
vida de ninguém, mas era melhor ouvir o tro-lo-ló do James do que o saxofone.
(ibid, 297)
Porém, no decorrer do diálogo aparentemente trivial, James vai informando o
caminhoneiro do motivo da tristeza do moço do saxofone e o narrador nem sequer
pressente o quanto está sendo convidado a participar desse jogo.
– A mulher engana ele até com o periquito – respondeu James, passando o miolo
de pão no fundo do prato para aproveitar o molho. – O pobre fica o dia inteiro
trancado, ensaiando. Não desce nem para comer. Enquanto isso, a cabra se deita
com tudo quanto é cristão que aparece. (ibid, p. 296)
A descrença no ser humano, essa grande consciência da solidão que move (ou
petrifica) as personagens do conto, é evidenciada pelo registro lingüístico adotado no conto,
que se reflete diretamente na linguaguem das personagens. Se as personagens em Lygia
falam como pensam, é natural que a linguagem seja a mais simples possível. A oralidade,
uma das marcas da escrita da autora, permite também o uso de palavrões, sempre que
exigidos pela realidade do personagem.
No conto em questão, o vocabulário de baixo calão do narrador e de seu interlocutor
imediato, James, dá a medida do nível social, do estilo de vida, e do verdadeiro abandono
em que estão inseridas essas personagens. Alguns trechos são mais ilustrativos4:
4 Os grifos nestes trechos ilustrativos são nossos.
Tinha os pensionistas e tinha os volantes, uma corja que entrava e saída palitando
os dentes”. (ibid p. 295)
Teve uma vez uma dona que mandei andar só porque no nosso primeiro
encontro, depois de comer um sanduíche, enfiou um palitão entre os dentes e
ficou de boca arreganhada, de tal jeito que eu podia ver até o que o palito ia
cavucando.” (ibid, p. 295)
A comida, uma bela porcaria e como se não bastasse ter que engolir aquelas
lavagens, tinha ainda os malditos anões...” (ibid, p. 295)
– Mas já vi que não dou sorte com mulher, torcem logo o nariz quando ficam
sabendo que engulo gilete, acho que ficam com medo de se cortar...”
– É uma música desgraçada de triste. (ibid, p. 296)
– Chifre dói.” (ibid, p. 297)
– Mulher é o diabo... (ibid, p. 300)
– Enquanto isso, a cabra se deita com tudo quanto é cristão que aparece. (ibid, p.
296)
Disposto a sair daquela atmosfera de abandono, o motorista sai em procura de um
banheiro e, na escada, acaba esbarrando em um anão:
Quando subi a escada de caracol, dei com um anão que vinha descendo. Um
anão, pensei. Assim que saí do reservado dei com ele no corredor, mas agora
estava com uma roupa diferente. Mudou de roupa, pensei meio espantado, porque
tinha sido rápido demais. E já descia a escada quando ele passou de novo na
minha frente, mas já com outra roupa. Fiquei meio tonto. Mas que raio de anão é
esse que muda de roupa de dois em dois minutos? Entendi depois, não era um só,
mas uma trempe deles, milhares de anões louros e de cabelo repartidinho do lado.
(ibid, 297)
Esses anões de circo, testemunhas mudas da solidão humana naquele pardieiro,
surgem de repente, e de todas as partes, enroscando-se nas pernas das pessoas. Por um lado,
eles representam miniaturas de homens; isto é, são a metáfora da pequenez humana. Neste
sentido, e numa visão benjaminiana de alegoria, em que todo o mundo se transforma em
coisa, pode-se afirmar que a pensão da velha polaca é o relicário dos melancólicos, a
coleção de miseráveis criaturas da velha polaca.
Como já disse Susan Sontag, em Sob o signo de Saturno (1986),
miniaturizar significa tornar inútil. Pois o que foi reduzido de forma tão grotesca,
de certa forma, é libertado de qualquer sentido – a pequenez é sua característica
mais notável. É, ao mesmo tempo, um todo (ou seja, completo) e um fragmento
(tão pequenino, na escala errada). Torna-se objeto de contemplação
desinteressada ou de devaneio. (SONTAG, 1986, p. 98)
A autora lembra ainda, citando Walter Benjamin, que “o único prazer que o
melancólico se permite, um prazer intenso, é a alegoria”.
Por outro lado, a presença do anão no texto abre uma brecha para o fantástico –
traço muito freqüente na obra de Lygia –, pelo caráter de grotesco e de sobrenatural que
esta figura traz em si. Eles surgem “do nada” e desaparecem do mesmo modo. O ambiente
é tão degradante que há lugar para tudo. Sendo assim, em relação aos homens-miniatura,
fica a suspeita de alucinação do narrador, que demonstrará seu mal-estar com a presença
deles desde o princípio: “Comida ruim, anão e saxofone. Anão me enche” (TELLES, 2004,
p.298).
Não se pode esquecer que, para Kayser, o grotesco é o mundo distanciado. O que
provoca estremecimento na obra de Lygia Fagundes Telles é a irrupção do absurdo em
meio a cenas completamente banais; a angústia parece fazer parte da ordem cotidiana do
mundo, o que somente provoca no leitor uma maior sensação de insegurança. Em O moço
do saxofone ninguém parece se incomodar com a música que ecoa pela pensão, ainda que
todos conheçam a sua dolorosa origem. Isto é, não é apenas na presença do elemento
fantástico, mas também no grau de absorção das situações angustiantes no curso natural da
vida que reside com toda latência o grotesco em Lygia Fagundes Telles.
A dinâmica que motiva o choro do saxofone finalmente se descortina e é
confirmada na passagem a seguir, pelas palavras de James:
– Quando ela entra no quarto com um tipo, ele começa a tocar, mas assim que ela
aparece, ele pára. Já reparou? Basta ela se enfurnar e ele já começa. (ibid, p. 300)
A partir daí, o narrador – que, apesar de não ser um exemplo de caráter, talvez
tivesse preferido passar como mero observador – acaba aceitando a provocação da moça e
entra no seu misterioso jogo de sedução.
Na primeira porta, aquela à direita da escada, bati de leve e fui entrando. Não sei
quanto tempo fiquei ali parado no meio do quarto: ali estava um moço segurando
um saxofone. Estava sentado numa cadeira, em mangas de camisa, me olhando
sem dizer uma palavra. Não parecia espantado nem nada, só me olhava. (ibid, p.
301.)
A apatia desse marido traído, típica dos melancólicos, como a imagem da mulher de
asas porém imóvel da gravura A melancolia I (1514), de Albrecht Dürer, é incompreensível
aos olhos do caminhoneiro:
– E você aceita tudo isso assim quieto? Não reage? Por que não lhe dá uma boa
sova, não lhe chuta com mala e tudo no meio da rua? Se fosse comigo, pomba, eu
já tinha rachado ela no meio! Me desculpe estar me metendo, mas quer dizer que
você não faz nada?
– Eu toco saxofone.
Fiquei olhando primeiro para a cara dele, que parecia feita de gesso de tão branca.
Depois olhei para o saxofone. Ele corria os dedos compridos pelos botões, de
baixo pra cima, de cima pra baixo, bem devagar, esperando que eu saísse para
começar a tocar. Limpou com um lenço o bocal do instrumento, antes de começar
com os malditos uivos. (ibid., p. 301, 302.)
A declaração impactante (“Eu toco saxofone”) pode assinalar um ato de força, de
resistência estóica diante da situação dolorosa. Mais uma vez, portanto, anuncia-se a
possibilidade de uma interpretação da capacidade de superação das adversidades por parte
dos personagens. No entanto, nada disso dissolve a pungente condição de solidão e
melancolia do universo fictício da autora. Tais sinais de superação permanecem como
tentativas de reversão do estado de coisas, que não necessariamente vão além de um efeito
narcótico.
A cena do diálogo entre o moço do saxofone e o caminhoneiro só não é mais tão
perturbadora do que o lamento que começa a sair do saxofone. Nosso narrador não suporta
o vazio em que é atirado; fica uns instantes petrificado e, em seguida, perde a potência
diante do absurdo da situação, isto é, miniaturiza-se, diminuído em sua virilidade, até que,
num ímpeto, foge desabalado.
Em Saturno nos Trópicos (2003), Moacyr Scliar comenta que, na Antigüidade
clássica, estudos sobre a melancolia associavam-na inicialmente a um desequilíbrio
produzido pela combustão da bile negra no organismo.
Essa combustão seria resultante de um “calor anormal” no corpo – o calor da
raiva, por exemplo, uma paixão que consome o espírito e acaba por esfriar e secar
o corpo. Metaforicamente falando, melancolia é isso; frieza e secura, enquanto a
alegria é quente e úmida. (SCLIAR, 2003, p. 72)
A frieza, traduzida pela falta de atitude e lividez do moço do saxofone, é, portanto,
sintomática da melancolia.
Novamente valendo-nos de Scliar, “o melancólico é magro, pálido, taciturno, lento,
silencioso, desconfiado, invejoso, ciumento e solitário – a solidão, aliás, é causa e
conseqüência da melancolia, assim como a inatividade. “Be not solitary, be not idle” – não
seja solitário, não seja inativo, recomendava Robert Burton.”
De acordo com Fábio Lucas, na maioria dos contos de Lygia Fagundes Telles, as
figuras masculinas são geralmente dependentes das femininas. Para ele, as personagens
masculinas não apresentam contornos tão bem definidos como as femininas:
[...] antes aparecem como signos designativos de função social ou de papel, como
símbolos de poder, de riqueza ou de status. Não dispõem da vibração e das
nuances das personagens femininas.
E, de fato, em “O moço do Saxofone” é pertinente a observação de Fábio Lucas.
Apesar de se tratar da história do saxofonista, há no conto personagens femininas que se
pretendem secundárias e, no entanto, submetem os homens à sua preponderância. Assim,
temos, em ordem decrescente de importância: a dona da pensão, senhoria daqueles pobres-
coitados e dona do espaço onde se desenvolve a ação dos personagens; a grávida, que ao
pegar carona no caminhão de nosso narrador, em certa medida, reumaniza um mau-caráter
que vive do transporte de contrabandos; e, finalmente, a esposa adúltera do músico, em
torno da qual o conto gravita. Por ela, movimentam-se todos os homens, seduzidos,
rendidos. Então nos perguntamos, sem ela, o que seria desse marido? Sem dúvida não
haveria música, nem tampouco solidão; matéria da qual se alimenta a narrativa.
A nosso ver, o saxofone representa a “droga” do marido para evitar a solidão.
Paradoxalmente, todo vício é sempre uma experiência solitária. Único refúgio de sua
covardia, o escudo de frio metal é usado para protegê - lo da “proliferação de forças – que
em vez de produtivas vêm a ser traumáticas –, anestesiando a vibratilidade do corpo ao
mundo e, portanto, seu afetos”5. Numa analogia à observação de Walter Benjamin, a
respeito dos objetos e materiais presentes na Melancolia I, podemos dizer que, duro e frio
como a pedra na gravura de Dürer, o saxofone constitui o principal símbolo da solidão e da
melancolia no conto.
5 Questão desenvolvida no artigo “Toxicômanos de identidade: subjetividade em tempos de globalização”, de Suely Rolnik.
4.5 – Que se chama solidão
No conto “Que se chama solidão”, a memória da narradora perscruta os canaviais de
sua infância e vai reconstruindo passo a passo toda a melancolia do ambiente. Todas as
personagens vêm, em maior ou menor medida, compor a solidão dessa infância. Elas são
descritas através dessa narradora memorialista, isto é, do olhar interior da menina; um
mundo à parte. De costas para o mundo real, a narrativa parte da interioridade de uma
personagem focal. Tanto é um olhar de dentro que quase não aparecem características
físicas da narradora. Nem mesmo seu nome. Nela importa mais a visão interior, pela qual
nos faz conhecer cada uma das personagens, do que “um pé machucado (corte, espinho)”.
Walter Benjamin, citando Lukács, reconhece que “o sujeito só pode ultrapassar o
dualismo da interioridade e da exterioridade quando percebe a unidade de toda sua vida...
na corrente vital do seu passado, resumida na reminiscência...”. É por meio deste olhar de
dentro e para trás, nesse “chão movediço” da memória que se tece a narrativa em questão.
Logo no início, somos apresentados à instabilidade quiçá profissional do pai, que
obriga a família a estar sempre arrumando as malas e partindo. Assim, muito cedo a menina
experimentará a solidão da despedida.
A tia um dia explicou, esse tipo de homem que não consegue parar muito tempo
no mesmo lugar e por isso estava sempre sendo removido de uma cidade a outra
como promotor. Ou delegado. Então minha mãe fazia os tais cálculos de futuro,
dava aquele suspiro e ia t ocar piano. E depois, arrumar as malas. (TELLES, 2004,
p. 179)
Sua primeira pajem, a irônica Maricota, uma moça que sua mãe recolhera de um
orfanato, vem a ser seus primeiros olhos no mundo:
Quando não aparecia nada melhor a gente ia até o campo para colher flores que
Maricota enfeixava num ramo e, com cara de santa, oferecia à Madrinha,
chamava minha mãe de Madrinha. Às vezes, ela desenhava com carvão no muro
as partes dos meninos e mostrava, É isto que fica no meio das pernas, está vendo?
É isto! Mas logo passava um trapo no muro e fazia a ameaça, Se você contar você
me paga! (ibid, p.181)
Essa espécie de tutora às avessas acaba fugindo com um trapezista. Esta será a
primeira grande perda da menina; o primeiro luto.
Tia Laura, “a viúva eterna”, mora com a família da menina. Em sua própria
condição de viúva, é latente a idéia de perda, morte e abandono. A maturidade dessa mulher
parece servir apenas para intensificar sua sensação de solidão e conduzir ao desengano e à
resignação.
Sua tia vive falando que agora é tarde, porque a Inês é morta, quem é essa tal de
Inês? (ibid, p. 179)
Afora os personagens, a linguagem é a grande constituinte do inventário
melancólico desse “chão da infância”, a saber: a mãe fazendo contas na ponta do lápis,
cigarro de palha do pai, machucado tratado com tintura de iodo, tacho de goiabada, valsa da
mãe ao piano, pé machucado e amarrado com tira de pano, a presença de pajens, sessão de
histórias fantásticas à noite, circo, a referência a “Navio Negreiro”, de Castro Alves,
procissão de sábado, anjo com asinhas de crepom, papelote nos cabelos, pique-pega: “quem
chegar por último vira sapo”, “Nesta rua nesta rua tem um bosque...”, desenho a carvão no
muro, mudança em carro-de-boi, fordeco velho, colégio de freiras, fogão a lenha,
quermesse no fim de ano, peru embrulhado em papel manteiga etc.
Apesar de ficar patente a intenção de criar uma atmosfera lírica, provocadora de um
ambiente sentimental, típica do molde romântico, a autora atualiza a forma, atirando o leitor
numa torrente de stream of consciousness, enquanto a menina-narradora vai se conhecendo
e aprendendo as dores do mundo.
A inclinação pela vertente fantástica, presente em alguns trechos do conto, faz
lembrar cenas do cinema expressionista, com seu universo enigmático, povoado de figuras
sobrenaturais. O exame da passagem a seguir mostra que a narrativa torna -se alucinatória,
fazendo surgir ou desaparecer seres. O espaço inicialmente iluminado pela luz do dia no
campo – onde as meninas colhem flores e brincam de pega –, após o jantar, passa a ser
banhado por uma débil luz de velas ou, na melhor das hipóteses, dos lampiões. A atmosfera
incerta de meia- luz, ao pé da escada, ao mesmo tempo em que faz referência à cultura
popular das narrativas orais compõe o cenário qua se irreal, de personagens extraídas do
expressionismo:
As histórias apavorantes das noites na escada. Eu fechava os olhos-ouvido nos
piores pedaços e o pior de todos era mesmo aquele, quando os ossos da alma
penada iam caindo diante do viajante que se abrigou no casarão abandonado.
Noite de tempestade, vinha o vento uivante e apagava a vela e a alma penada
ameaçando cair, Eu caio! Eu caio! – gemia a Maricota com a voz fanhosa das
caveiras. Pode cair! ordenava o valente viajante olhando para o teto. Então caía
um pé ou uma perna descarnada, ossos cadentes pulando e se buscando no chão
até formar o esqueleto.” (ibid, p. 181)
A narração só volta à “realidade” com um gesto abrupto de intolerância da pajem,
ou com a repreensão de algum adulto:
Em redor, a cachorrada latindo, Quer parar com isso? gritava a Maricota
sacudindo e jogando longe o cachorro mais exaltado. Nessas horas sempre
aparecia um dos grandes na janela (tia Laura, tio Garibaldi?) para impor o
respeito. (ibid, p. 181)
E, aqui, um detalhe nos chama a atenção: mesmo de volta ao espaço do “narrar
verdadeiro”, quem aparece na janela para repreendê- las? Tia Laura, acompanhada do
espectro de seu finado marido, evidenciado na interrogação “tio Garibaldi?”.
Tais marcas de intertextualidade com o cinema expressionista presentes no conto
reiteram o que Ítalo Calvino apontara entre as principais qualidades da arte literária nesta
virada de milênio: a “multiplicidade”. A multiplicidade, segundo o crítico, se constitui
numa tendência da literatura contemporânea de se compor como “rede de conexões entre os
fatos, entre as pessoas, entre as coisas do mundo” (CALVINO, 1994, p.121).
Inegavelmente, grande parte da produção literária atual tem seu projeto estético
calcado na multiplicidade, aspecto que norteia as ações e os pensamentos no mundo da
globalização. A produção literária contemporânea vem a ser, portanto, uma trama de tecido
permeável, que absorve realidades plurais e mutantes, cuja heterogeneidade não cabe mais
nos limites de uma narrativa ordenada e hierarquizada.
Na predileção pelos elementos fantásticos, evidenciada no conto “Que se chama
solidão”, já se nota a presença do grotesco que perpassará toda a ficção curta de Lygia.
O que se entende hoje pelo vocábulo “grotesco”, que vem do italiano la grottesca e
grottesco, derivados de grotta (gruta), ficou durante muito tempo limitado ao conceito do
cômico, do burlesco, do mau gosto, ou ainda, a uma aproximação com o aberrante,
fabuloso, caricatural.
Estes termos italianos foram cunhados para designar determinado tipo de
ornamentação encontrada em escavações feitas em Roma, nos fins do século XV. O que se
descobriu foi uma espécie de ornamentação antiga, até então desconhecida, e por isso
mesmo sem designação específica. Nela, podia-se notar o jogo livre, insólito e fantástico de
formas que se confundiam, que se mesclavam e estavam em constante processo de
transformação, tudo estava em movimento e metamorfose.
No longo prefácio de Cromwell, que é a defesa do drama romântico, Victor Hugo
ressalta a importância do surgimento do Cristianismo para o despertar da nova sensibilidade
dos homens para sua condição de duplos, isto é, de seres repartidos em alma e corpo e
destinados a uma vida também dupla – uma passageira e terrena, outra eterna e celestial.
Esta percepção de duplicidade era impossível na Antiguidade, pois os antigos não
atingiam a espiritualidade do universo, mantendo-se sempre presos ao visível e palpável da
natureza. Assim, “a musa puramente épica dos Antigos havia somente estudado a natureza
sob uma única face, repelindo sem piedade da arte quase tudo o que, no mundo submetido à
sua imitação, não se referia a um certo tipo de belo” (HUGO, 2002, p. 26).
Apenas na modernidade, com a difusão do Cristianismo e seu jogo de duplos, a
poesia foi conduzida à verdade. “A musa moderna – afirma Hugo – verá mais coisas com
um olhar mais elevado e mais amplo. Sentirá que tudo na criação não é humanamente belo,
que o feio existe ao lado do belo, o disforme perto do gracioso, o grotesco no reverso do
sublime, o mal com o bem, a sombra com a luz” (HUGO, 2002, p. 26).
Segundo o autor, o gênio moderno é resultado justamente da coexistência do
grotesco com o sublime, e desta junção surge uma infinidade complexa de formas e
possibilidades de criação artística, o que se opõe sensivelmente “à uniforme simplicidade
do gênio antigo” (HUGO, 2002, p. 28). De uma forma geral, o drama romântico – com o
seu componente grotesco coexistindo com o sublime – deveria caracterizar-se, enquanto
procedimento artístico, pela mistura de gêneros, só assim podendo realizar uma pintura
total da realidade como busca de uma poesia completa. É a busca desta poesia completa –
fruto da nova sensibilidade moderna e capaz de pintar a realidade como um todo complexo
– que motivou Victor Hugo a propor a destruição das teorias, das poéticas e dos sistemas.
O que se observa no conto de Lygia é uma espécie de rebaixamento do sublime
romântico. Se, para o romântico, o sublime é marcado por uma elevação do personagem, no
conto de Lygia a efabulação não parece convergir para nenhum tipo de resgate.
Assim como no universo kafkiano, no conto de Lygia o absurdo surge a priori. Não
há um preparo para o grotesco. Ele é descrito de um modo muito prosaico, frustrando no
leitor a expectativa de uma reação à altura por parte dos personagens.
Consideramos, portanto, que o grotesco em Lygia se aproxima bastante do universo
dos personagens kafkianos, fadados que estão a cumprir um pathos que jamais terá
desvelada a sua trama e, muito menos, o seu sentido moral.
No clássico “A Metamorfose”, de Kafka, observamos que as transformações
escapam da nossa percepção cotidiana e entram numa lógica do absurdo. Nada consegue
justificar a situação do protagonista Gregor Samsa. O enredo simplesmente começa assim.
A nenhum objetivo parece servir a sua condição de inseto asqueroso. Não se sabe sequer
por que a transformação se operou. Quer dizer, a narrativa não alcança nenhuma
justificação heróica ou trágica, mas resvala para um ponto qualquer, nota dissonante de
toda a realidade descrita, que, mesmo absurda, não é capaz de causar espanto nos
personagens.
Segundo Wolfgang Kayser,
Se pensarmos no cuidado com que Keller ou Hoffmann preparavam e
apresentavam os encontros com o abissal, os instantes de estranhamento do
mundo, torna-se ainda mais surpreendente a aplanação havida em Kafka. Nele,
não se dão “encontros”, irrupções repentinas, quaisquer estranhamentos
propriamente ditos, porquanto o mundo é estranho desde o começo. Não
perdemos o solo debaixo de nossos pés, porque nunca estivemos nele firmemente
postados; só que não o notamos de pronto. Para resumir o que ficou dito até aqui,
as narrativas de Kafka são grotescos latentes. (KAYSER, 2003, p. 126)
Em “Quem se chama solidão”, o grotesco se evidencia não só pela utilização dos
elementos do fantástico, mas, principalmente, pelo estabelecimento desta zona de
instabilidade, entre real e irreal, por esta falta de fundamento seguro em que se vê a
protagonista ao dar-se conta de sua condição solitária, e pelo grau de aceitação desta
arbitrariedade do mundo.
Como acontece na literatura kafkiana, a narrativa de Lygia vai desenredando aos
poucos os movimentos da consciência enquanto esta se mistura aos elementos do
esquecimento. Ambos autores imprimem um extremo poder ao onírico, de modo que “a
efetiva realidade é sempre irrealística” (op. cit, p. 125).
Segundo a ensaísta Sônia Régis, isto ocorre porque
ela escolheu trabalhar com um material difícil e escorregadio, pronto a escapar do
registro da memória para o esquecimento eterno: as névoas dos sonhos, as
sombras das fantasias, as fantasmáticas associações dos delírios, a aspereza dos
raciocínios, as bruscas mudanças dos sentimentos, o tumulto dos interesses
humanos, os estados alterados de consciência. (RÉGIS, 1998, p. 89)
No conto em questão, o enfrentamento da morte de Leocádia (a segunda pajem que
a mãe de menina recolhe depois da fuga de Maricota com o artista de circo) e, mais
especificamente, de seu espectro, é o ápice do entendimento da menina de sua condição de
ser solitário no mundo.
Nesta história de saudades e descobertas, é na ausência, isto é, na presença da
morte, da perda, que a narradora parece atingir o “grau de compreensão” do sentido da
vida, ao qual se referia Walter Benjamin. Segundo o filósofo, “nos enventos mortos do
passado eufemisticamente conhecidos como experiência” é possível encontrar o sentido da
vida. “Somente é possível entender o passado porque ele está morto” (BENJAMIN, 1996,
p. 214).
4.6 - Pomba Enamorada ou uma história de amor
Extremamente representativo do tema da solidão na obra de Lygia, o conto “Pomba
Enamorada ou uma história de amor” conta a história de uma paixão malograda. Narrando
a trajetória de uma mulher desprezada pelo amado, a autora mescla paixão (ou obsessão)
com ironia, autodestruição, ingenuidade, submissão, e a conseqüência de tudo isso, e por
que não dizer a própria causa, é a inevitável e mais perfeita solidão da protagonista.
Tudo começa no baile em que é coroada princesa do Baile da Primavera, “já que o
namorado da rainha tinha comprado todos os votos”, onde conhece Antenor, um sujeito
rude, que não “esquentava o rabo em nenhum emprego”, mas que lhe encanta desde o
primeiro momento, apesar, ou, quem sabe, por causa, de seu jeito grosseiro. Apesar da
fugacidade do encontro, de duração de uma valsa aproximadamente, a Valsa de Miosótis,
este momento marca para sempre a personagem. Não bastasse o melancólico ritmo desta
modalidade de dança, o título da valsa já nos insere numa atmosfera de despedida: o
miosótis, a inocente florzinha azul cultivada como ornamental é vulgarmente conhecida
como não-te-esqueças, não-te-esqueças-de-mim. A partir da inesquecível valsa, movida
pelo desejo, a protagonista começa uma busca desarvorada pelo seu amado. A etimologia
da palavra “desejo” demonstra que esta busca só pode levar a um vazio profundo, pois,
“desiderare” significava, na era clássica, desistir de ver os astros, uma expressão usada para
falar de ausência de esperança. Na evolução da palavra “desejar” ficou para o português o
sentido de “almejar, ter vontade de, querer”, como algo positivo.
No entanto, na opinião de Marilena Chauí, em relação ao desejo amoroso :
Desejo é relação entre seres humanos carentes. Por isso amamos até a loucura e
odiamos até a morte: nosso ser está em jogo em cada e em todos os afetos. Desejo
é paixão, diziam os clássicos... No entanto, a marca funda e indelével do desejo é
o jamais oferecer-nos a garantia de haver sido realizado. (CHAUÍ, 1984, p.159)
A partir desta visão, vemos que, mais do que uma grande paixão, a solidão é o
grande Leitmotiv da trajetória de Pomba Enamorada. Quanto mais carente e solitária, mais
propícia às armadilhas do próprio desejo estará uma pessoa. Logo nas primeiras linhas do
conto, temos uma idéia do perfil de nossa protagonista:
(...) e assim que o coração deu aquele tranco e o olho ficou cheio d’água pensou:
acho que vou amar ele para sempre.
Ao ser tirada teve uma tontura, enxugou as mãos molhadas de suor no corpete do
vestido (fingindo que alisava alguma prega) e de pernas bambas abriu-lhe os
braços e o sorriso. (TELLES, 2004, p. 19.)
E assim somos apresentados a essa moça ingênua e solitária do interior paulista
(coroada num baile do São Paulo Chique), pobre (ajudante de cabeleireira); leitora de
romances água-com-açúcar; noveleira; e crente, que iremos conhecer melhor no decorrer da
história.
A alegria do Baile da Primavera acaba quando Antenor parte com uma “escurinha
de frente única”, e a personagem acaba tendo de se desdobrar para encontrar o paradeiro de
seu amado. Descobre-o trabalhando numa oficina e, ao visitá-lo, é maltratada por ele. A
partir daí, configura-se o que a Psicanálise chamaria de “par funcional”, isto é, dois opostos
que se “completam” numa relação; neste caso, um sádico e uma masoquista. Isto fica claro
porque ela parece não se incomodar com a má recepção por parte do sujeito. Seguirá seu
desejo obsessivo telefonando diversas vezes para o trabalho dele “somente para ouvir sua
voz”, pedirá auxílio de um amigo homossexual para deixar recados, acenderá uma vela a
Deus e outra ao diabo – já que apela a Santo Antônio e a macumbas –, na ânsia desenfreada
de conquistar seu amor. Como Antenor não se comove, ela começa a escrever cartas de
amor sob o pseudônimo de Pomba Enamorada, e, mesmo assim, Antenor não se abala, bem
ao contrário, pede-lhe que o tire da cabeça.
Assim, a narrativa apresenta uma bifurcação – dois caminhos em direções opostas –
que supõe uma escolha transcendente. As situações de encontro são todas conflituosas,
dramáticas, o que transpõe a ação da personagem para o espaço da experiência psicológica.
A probabilidade de ser amada é uma ilusão. O ato executado não é possível, isto é, seu
desejo nunca será realizado, restando apenas a experiência do fracasso. Apesar das
inegáveis marcas românticas que compõem a personagem e a trama, a sucessão de
encontros malfadados e “portas-na-cara” e alguns aspectos grotescos e contraditórios em
sua aparência e gestual, como o sorriso da “princesa” do baile do clube ser “meio de lado”
para esconder uma falha no canino esquerdo; as doses de vermute que toma pelos “foras”
que leva e, ainda, a presença de Rôni, um homossexual estereotipado que atua como um
afetado conselheiro sentimental fazem com que a narrativa adquira um caráter tragicômico.
O golpe derradeiro sofrido pela protagonista vem com a notícia de que seu amado
está de casamento marcado. Quando ocorreu o casamento, em vez de chorar, Pomba
Enamorada
foi ao crediário Mappin, comprou um licoreiro, escreveu um cartão desejando-lhe
todas as felicidades do mundo (…) e quando chegou em casa bebeu soda
(cáustica)”. Após deixar o hospital, cinco quilos mais magra, escreveu-lhe um
bilhete “contando que quase tinha morrido mas se arrependia do gesto
tresloucado que lhe causara uma queimadura no queixo e outra na p erna, que ia se
casar com Gilvan que tinha sido muito bom no tempo em que esteve internada e
que a perdoasse por tudo o que aconteceu. (TELLES, 2004, p. 24)
O bilhete, recebido numa festa de São João, é desprezado solenemente e picotado
em muitos pedaços por Antenor na frente das pessoas.
Pomba Enamorada casa-se mas nunca esquece Antenor. Quando engravida, manda
para ele uma foto tirada no Cristo Redentor. Anos depois, no “noivado da sua caçula Maria
Aparecida, só por brincadeira, pediu que uma cigana muito famosa de seu bairro deitasse as
cartas e lesse seu futuro”. A cigana diz que um homem cujo nome iniciava com A., de
cabelos grisalhos, costeleta, motorista de ônibus chegará à rodoviária e mudará sua vida por
completo. Apesar de dizer que tudo era aquilo passado, “que já estava ficando velha demais
para pensar nessas bobagens”, Pomba Enamorada, já avó – calcula-se, portanto, passados
uns vinte anos pelo menos –, sabendo que Antenor é motorista de ônibus, no dia marcado,
veste sua roupa de festa, deixa a neta com a comadre e dirige-se à rodoviária, não sem antes
dar uma olhadinha no horóscopo do dia, que “não podia ser melhor”.
Recorrentes referências à “salvação” da protagonista perpassam todo o conto, isto é,
evocações das mais diversas escapatórias transcendentes para a concretização do seu sonho
impossível, tais como: Igreja dos Enforcados, Santo Antônio de gesso, galhinho de arruda
debaixo do travesseiro, o disco Ave-Maria dos Namorados comprado na liquidação,
conhecimentos sobre Astrologia, especia lmente sobre o signo de Capricórnio, as simpatias
feitas e as sugeridas pelas conhecidas, pratinho de doces oferecido para São Cosme e
Damião num jardim florido, foto no Corcovado, festa de São João, a linha de ônibus onde
trabalhava Antenor (Piracicaba – São Pedro), espécie de “linha direta” para o Céu,
casamento dele no “religioso”, o nome da filha (Maria Aparecida), e, finalmente, a visita à
cigana, que culminará no tão esperado “domingo” (dia santo, por excelência), dia em que
sua vida “mudaria para sempre”, todos esses elementos sugerem uma fé no poder de Deus
ou de um deus qualquer, já que, na vida, no devir, e, principalmente, no ser humano, não há
mais esperança. Por mais que a importância da fé e o romantismo sejam latentes no conto, é
igualmente inegável o tratamento irônico que a autora dá a esses temas. Desde o título, em
“Pomba Enamorada ou uma história de amor”, percebe-se o viés irônico. Uma história de
amor não pressupõe abandono, desprezo e rechaço, mas encontro, alegria, reciprocidade e
acolhimento; os heróis enfrentam obstáculos, mas, cedo ou tarde, alcançam o tão esperado
happy end.
“Pomba Enamorada” é, na verdade, a história de um desamor, e nela, Lygia nos
leva, do início ao fim, ao riso. Não há diálogos nem parágrafos no conto. A narrativa
poderia ser encarada como uma espécie de desabafo, uma confissão, ou um suspiro de
mulher apaixonada. Num só fôlego, alternando com maestria entre o discurso indireto e o
indireto livre, e recorrendo a uma pontuação habilidosa, a autora atinge sua estratégia
narrativa quando vem à tona a segunda história, isto é, uma espécie de “revanche”, ou parte
II, da principal, que Ricardo Piglia consideraria como uma história à parte, paralela e
invisível, presente em todo conto moderno. Trata-se de “un relato secreto, narrado de un
modo ellíptico y fragmentario”. Segundo o crítico, cada uma das histórias é contada de um
modo diferente. Trabalhar com duas histórias quer dizer trabalhar com duas lógicas
diferentes, isto é, dois sistemas diferentes de acaso. Os mesmos acontecimentos entram
simultaneamente em duas lógicas narrativas antagônicas.
La historia secreta se cuenta de un modo cada vez más elusivo. El cuento clásico
a la Poe contaba una historia anunciando que había otra; el cuento moderno
cuenta dos historias como se fueran una sola. (PIGLIA, R., s/data)
Em Pomba Enamorada, a “segunda história” passa a ser contada a partir do
momento em que a princesinha do São Paulo Chique, estereótipo da doce e submissa figura
feminina, vítima da solidão de ser rejeitada pelo ser amado, entregue a sua pouca sorte de
moça de interior massificada pela mídia, no ápice da rejeição (casamento de seu amado
com outra), toma uma atitude “tresloucada”: a tentativa de suicídio. Num primeiro olhar,
uma saída bem romântica, pela morte, que liberta. No entanto, a tragédia não se concretiza,
e o mito do amor-romântico se desfaz, porque a autora escapa pelo veio da comicidade. A
autora “ressuscita” a moça e a metamorfose que se opera é a do retorno. Ela tem, portanto,
a sua segunda chance, e, como é sabido, a ressurreição geralmente ocorre trazendo uma
“melhora” para o indivíduo. O casamento com Gilvan, o “bonzinho” por quem nutre um
sentimento fraterno, sem nenhuma sombra de volúpia, será uma espécie de “via
alternativa”, uma união “de fachada”, um paliativo para sua dolorosa solidão de mulher
rejeitada, mas também uma espécie de “desforra”:
Gilvan, você foi a minha salvação, ela soluçou na noite de núpcias enquanto
fechava os olhos para se lembrar melhor daquela noite em que apertou o braço de
Antenor debaixo do guarda-chuva. Quando engravidou, mandou-lhe um postal
com a vista do Cristo Redentor (ele morava agora em Piracicaba com a mulher e
as gêmeas) comunicando-lhe o quanto estava feliz, numa casa modesta mas
limpa, com sua televisão a cores, seu canário e seu cachorrinho chamado
Perereca. (TELLES, 2004, 24)
Outra evidência da metamorfose comportamental da personagem nesta fase, ou
“segunda história”, é a idéia de superação da velhice. A velhice na obra de Lygia é um tema
muito utilizado, porém normalmente associado à deterioração, à inexorabilidade do tempo,
à ruína, fraqueza, desmoronamento. No conto “A chave”, escreve Lygia: “(...) envelhecer é
ficar fora de foco: os traços vão ficando imprecisos e o contorno do rosto acaba por se
decompor como um pedaço de pão a se dissolver na água.”
Surpreendemente, neste momento do conto a velhice não impedirá que a
personagem vista a roupa das suas bodas de prata e parta em busca de seu sonho. Se
levamos em consideração a conotação sexual/ sensual implícita no final de Pomba
Enamorada, a atitude da personagem representa uma transgressão às convenções sociais,
ou, no mínimo, a quebra dessas expectativas: como conceber o fato de uma senhora casada,
mãe de dois filhos, já avó, deixar de tomar conta da neta e partir para um suposto encontro
amoroso (libidinoso) com outro homem que não o seu marido? Tendo em vista o caráter
histórico-cultural da construção das situações amorosas, como pensar o amor e,
principalmente, o sexo, na velhice?
Se não chega a resolver a solidão, a metamorfose sofrida pela personagem ao menos
é capaz de libertá- la de suas fantasias de amor-romântico clicherizado e burguês,
evidenciando a crítica social no texto da autora, nesta inversão (ou subversão) do perfil de
Pomba Enamorada.
Conforme observou a pesquisadora Vera Tiezmann Silva, na obra obra ficcional de
Lygia evidencia-se um “mitoestilo” constituído pela insistência num determinado grupo de
temas recorrentes e em certos artifícios de estilo e de efabulação, como a preferência por
algumas cores (em especial, o verde); a presença de certos animais entre os personagens
(cachorros, gatos, pássaros, ratos, formigas, sapos etc.), muitas vezes usados nas metáforas
e comparações; imagens características (jardim, fonte, estátua; gaiola, armadilha, ratoeira),
e, dentre estes elementos, a metamorfose parece ser um tema predominante. Ela pode
ocorrer tanto no plano antropomórfico, quanto no zoomórfico e em reificações. No conto
em questão, a metamorfose sofrida pela protagonista não apenas a retira de sua condição
clicherizada e patética, mas também, em certa medida, reveste- lhe de certa dignidade e
sarcasmo.
Segundo Barthes, o mito não serve para esconder a realidade, sua função não é fazer
desaparecê- la, mas deformá- la. E é justamente no momento em que a solidão da
personagem atinge seu ápice (casamento de seu amado com outra), que os processos de
deformidade e transformação (metamorfose) começam a se manifestar. A tentativa de
suicídio poderia ser considerada a primeira manifestação de metamorfose da protagonista
no conto – a mais radical de todas para o ser humano –, no entanto, como não é bem-
sucedida, fica como uma espécie de “ensaio” metamórfico- libertário da personagem
principal.
O destaque para a questão das cores nesta segunda parte da história também
contribui para a transformação da atmosfera solitária da narrativa: Antenor chegará “num
ônibus vermelho e amarelo”; um veículo de cores primárias, quentes, que, unidas, formam
o laranja, isto é, sugerem calor e alegria para este posssível encontro, mudando a
“tonalidade” da atmosfera do enredo.
Como bem observou Silviano Santiago, no artigo “A bolha e a folha. Estrutura e
inventário”:
Nos contos de Lygia, a solidão acaba por solidificar-se sob a forma do ponto final
que encerra um conto e abre a possibilidade do seguinte, emprestando ao
conjunto da sua ficção uma coerência de propósitos pouco comuns nas coletâneas
de contos da literatura brasileira contemporânea. No universo ficcional de Lygia,
não existem causas ou razões ocultas para a solidão (ou melhor, para o
envelhecimento, ou o ciúme, ou...). Todas as sensações, emoções e paixões estão
a nu e a descoberto para todos e qualquer. Estão a flor da pele, isto é,
exaustivamente descritas pelo narrador. Existe principalmente e apenas o
interminável inventário dos caminhos inventados pela sensualidade (...).”
(SANTIAGO, op. c it.)
Ainda que os elementos que se apresentam na “segunda história” transmitam uma
idéia ou ilusão de felicidade iminente, não há, porém, nenhuma garantia de saída da
solidão, muito menos de happy end, mas a reafirmação da continuação do desejo
exasperado de estabelecer laços afetivos a todo custo. A intringa sentimental passa a
funcionar, portanto, como uma espécie de “tábua de salvação contra a fatalidade da solidão
humana”. A idéia do falar por falar, a linguagem operando como um fio tênue que mantém
os personagens vivos. Assim como dissemos em outro momento, uma espécie de falar por
falar beckettiano.
5 - Considerações finais:
Este trabalho pretendeu revelar no corpus selecionado a preponderância do tema da
solidão e da melancolia do sujeito na obra de Lygia Fagundes Telles.
Inicialmente, com o intuito de estudar a solidão como recurso para o despertar de
uma nova tendência literária, privilegiamos o genebrino solitário Jean-Jacques Rousseau,
precussor do Romantismo, não só para evidenciar o ponto de partida desta escrita da
interioridade, mas também para sinalizar o desdobramento deste tema na modernidade e o
tratamento da linguagem nos dois autores.
Procuramos então apontar como a escrita de Rousseau está marcada pela crença
numa subjetividade demiúrgica, na plenitude do eu, e num ideal de transparência da
subjetividade pela linguagem. Em contrapartida, no conto de Lygia Fagundes Telles, este
sujeito cindido – conhecedor de sua finitude e da insuficiência da linguagem –, salvo em
algumas poucas situações, não parece encontrar redenção nem mesmo alternativas de
salvação da solidão.
A saída pelo sonho, pelo devaneio, e pela reminiscência é, portanto, um passeio que
abre para uma possibilidade de renovação do sujeito, entrevista nos dois autores, enquanto
refúgio, escapismo e reduplicamento da existência, no primeiro; e postulação da
imortalidade e autoconhecimento, na segunda.
A memória, por sua vez, também está intimamente ligada ao sentimento de finitude,
da inexorabilidade do tempo. Não deixa de ser uma reação ao efêmero, uma tentativa de
apreensão, de dar concreção ao vivido. No entanto, pode ser tão cruel quanto o espelho, que
tanto pode est ilhaçar como criar identidades. Assim, no tocante à escrita memorial,
tentamos apontar as marcas de ambigüidade presentes nos contos da autora, ainda que a
própria autora nos leve a crer em sua própria fala que “mais prejudicial do que cigarro é a
memória”. (A noite escura mais eu, p. 141).
É próprio do discurso metaficcional que leiamos e entendamos os fatos como
despiste. Não podemos tomá- lo como verdade absoluta. Assim, nesta ambigüidade da obra
da autora, neste lugar entre, como chamou Silviano Santiago, é que observamos a grandeza
do conto de Lygia. Nesta brecha ficcional apontada pelo crítico, vemos que tanto a mistura
do fantástico ao relato autobiográfico, evidenciado, por exemplo, no conto “Que chama
solidão”, quanto o apelo ao tragicômico em “Pomba Enamorada ou uma história de amor” e
em “A chave”, são marcas de uma literatura híbrida, rica, transgressora de uma ideologia
dominante.
Nestes contos, uma espécie de aviltamento do sublime romântico se opera, como se
se quisesse demonstrar a impossibilidade de elevação dos personagens. Neles a dualidade
sublime/grotesco, presente até mesmo no romantismo satânico, não tem mais lugar. No
conto de Lygia não há mais espaço para o triunfalismo do sublime, uma vez que os
personagens se vêem interditados, enredados que estão num alto grau de consciência de sua
condição solitária no mundo.
Daí a importância do papel da linguagem em nosso recorte. Se, para Rousseau, a
linguagem escrita é a “potência mágica” que irá transpor as dificuldades da comunicação e
derrubar as máscaras, e o voltar-se para si, o caminho da autenticidade; no conto de Lygia,
o conflito entre ser e parecer é uma tensão permanente, marcada por uma verdade que não
pode ser dita. Tudo é dissimulado, abafado; a incomunicabilidade é uma constante, como
vimos em todos os contos analisados. Nem a boca do peixe de pedra, fonte extinta, boca
generosa, em declarada analogia ao verso de Rilke, é capaz de trazer alguma resposta às
angústias dos personagens de “A Ceia”. O que explica o poder da metáfora e dos símbolos
na obra da autora, onde o não-dito e o gestual são sempre mais importantes que qualquer
ação.
Quando dissemos no capítulo anterior que a linguagem no conto de Lygia aprisiona
os personagens numa sala de espelhos – mais, num labirinto de espelhos –, apontamos para
o quanto estão enredadas com a realidade (leia-se, sobretudo, finitude) num nível extremo
de consciência. É pela lucidez que não conseguem agir; sentem-se paralisados pelo excesso
de pensamento, seres hamletianos que são. Exatamente por isso seus contos se acham num
ponto avançado, crítico, da modernidade, quando não há mais equilíbrio entre ação e
pensamento. Para agir, é preciso não pensar em excesso, como é o caso da jovem dos
“ossos de aço”, de “A chave”, ou é necessário ter um dom premonitório, como em “As
pérolas”. Qual será então o recurso típico do melancólico, daquele que escapa do mundo
prático da ação? A memória. Tal como cigarro, falso alento, parceira da solidão e da
melancolia, a memória muitas vezes será seu principal alimento.
A linguagem da memória tece uma grande teia nos pensamentos até que o indivíduo
se vê enclausurado na tal sala de espelhos. Cada lâmina desta sala pode vir a manifestar
uma realidade: por vezes, a de sujeitos paralisados, flagrados em sua inadaptabilidade ao
meio; noutras, uma espécie de revide do sujeito ao inapreensível, como se pela memória ou
pelo sonho fosse possível recuperar-se o elo perdido com a verdade interior, o que só
reforça a ressonância da literatura romântica na obra da autora.
No entanto, o que observamos, numa análise mais cuidadosa é que, muitas vezes, o
mundo do devaneio e da memória em que mergulham os personagens, enquanto tentativa
de renovação, é o mesmo das narrativas fantásticas, o que deixa mais uma vez, em aberto a
questão da autentidade do discurso. Os mesmos elementos que compõem uma literatura de
atmosfera, ao estilo de Edgar Alan Poe ou Hoffmmann, povoada de jardins, perfumes,
ossos, luzes débeis e outros detalhes fantasmagóricos, estão presentes na experiência
memorial da ficção curta desta autora.
Tudo é possível na escrita mítica de Lygia Fagundes Telles. Há nela uma
recorrência ou circularidade de signos que cumprem uma órbita. O universo de Lygia é
compacto, coerente e ordenado, isto, claro, do ponto de vista temático. Tendo em vista este
aspecto em sua obra, afastamos de imediato a impressão de caos ou falta de lógica interna.
O caos se instaura, portanto, como um princípio filosófico, como inerente ao mundo desde
sempre, próprio da condição humana, ainda que esta cultive seus desvios de atenção
(memória, religiosidade, misticismo etc.). É o caso da personagem Alice, de “A ceia”, que
se esquiva da luz do isqueiro que traz à tona a crueza de sua realidade e também o de
Tomás, de “A chave”, que vive fugindo dos espelhos que sua vaidosa Magô espalhara pela
casa, ou até do anão-narrador, que desvela a trama grotesca e sem sentido da vida de uma
família. Ao fim e ao cabo, todos fazem parte de um grupo compacto, em tudo semelhante,
girando em torno da mesma solidão.
Única certeza do sujeito esfacelado, a solidão projeta-se ameaçadora sobre todo o
corpus analisado, e pode ser vista na obra de Lygia como a grande morte e/ ou metamorfose
final e implacável deste sujeito.
6 – REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
ATAÍDE, V. “A narrativa de Lygia Fagundes Telles”. In: A narrativa de ficção. São Paulo,
McGraw-Hill do Brasil, 1974.
BACHELARD, G. A Poética do Espaço. São Paulo, Martins Fontes, 2000.
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