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ENTRE GANGUES E GALERAS: juventude, violncia e sociabilidade na periferia do Distrito Federal
TESE DE DOUTORADO Aluna Carla Coelho de Andrade Orientador Prof. Dr. Wilson Trajano Filho
Universidade de Braslia - UnB Instituto de Cincias Sociais - ICS Departamento de Antropologia DAN Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social - PPGAS 2007
Universidade de Braslia UnB Instituto de Cincias Sociais ICS Departamento de Antropologia DAN Programa de Ps-Graduo em Antropologia Social PPGAS ENTRE GANGUES E GALERAS: juventude, violncia e sociabilidade na periferia do Distrito Federal
Carla Coelho de Andrade
Tese apresentada ao Curso de Doutorado em Antropologia Social, do Departamento de Antropologia, do Instituto de Cincias Scias, como requisito parcial para obteno do ttulo de Doutor em Antropologia Social.
Orientador: Prof. Dr. Wilson Trajano Filho
Braslia DF Agosto de 2007
minha famlia, sem a qual no sou gente: meu querido pai, Wilson, sempre vivo entre ns, minha me, Fabola, minhas irms Paula, Fernanda e Andra, meus irmos Kim e Toni, minha afilhada Helena, meus sobrinhos Tiago, Bruno, Renata, Laura e Pedro, minha sobrinha neta Maria Clara e agregados, por ordem de chegada: Roberto, Arthur, Ana, Li, Rebeca e Carol. Registro aqui o meu amor e o meu infinito agradecimento.
AGRADECIMENTOS Muitas foram as pessoas que colaboraram, direta e indiretamente, para a
realizao deste trabalho. Nem todas sero aqui nominalmente lembradas, mas
estaro sempre no meu corao, inclusive as que passaram para o outro mundo sem
que eu tivesse a chance de a elas me dirigir para verbalizar a minha gratido.
Meu orientador, professor Wilson Trajano Filho, por quem nutro profunda
admirao, foi, como sempre, muito intrpido e assumiu com determinao o seu
papel de orientador num tema que at ento estava longe de seus horizontes
acadmicos. Ao Trajano sou infinitamente grata por seu ouvido atento, sua
preocupao em me apontar novas bibliografias, sua pacincia diga-se, comigo foi
testada ao limite e pela enorme dedicao na leitura de meus escritos. Seus
preciosismos nos comentrios escritos, muitas vezes permeados de um humor
contagiante nos nossos encontros pessoais para discuti-los, foram fundamentais no
enriquecimento de minha trajetria de vida. Claro, o meu orientador no responsvel
pelos meus equvocos neste trabalho. No mximo responsvel por alguns momentos
de agonia e desespero pelos quais passei. Agradeo!
As professoras Ana Lusa F. Sallas e La Perez so grandes personagens da
minha histria. H muitos anos conto com o estmulo dessas grandes e queridas
amigas, sempre muito afetuosas e amorosas. Ajudando-me nesta empreitada, elas
nunca deixaram de me enviar prontamente um artigo solicitado, uma referncia, uma
nova indicao bibliogrfica... Agradeo!
Minhas velhas companheiras de catacumba e de outras faanhas, Ins
Gonzaga Zatz e Leila Chalub Martins, so pessoas que no encontro palavras para
expressar a minha admirao e gratido. Desde que as conheci, temos caminhado
juntas pela vida enroscadas num forte lao de irmandade. As duas me ajudaram a
concretizar este trabalho de vrias maneiras, seja me substituindo em aulas e lendo os
meus escritos, seja participando ativamente das minhas alegrias e tristezas. Ins,
sempre com muita dedicao ao que faz e extremamente atenciosa comigo, cuidou da
reviso final do texto que ora apresento. Agradeo!
As inhas tambm marcaram forte presena no curso da elaborao deste
trabalho. Sandrinha (Sandra Mello), Marcinha (Mrcia Barreto), Luizinha (Lusa Villa
Verde) e Dadazinha (Oswalda Margarida), meu clube de mulheres, fizeram parte do
meu suporte emocional. Sem isso ningum chega a canto nenhum. Sandra Mello, que
conheci nos tempos de minha graduao em arquitetura, minha grande amiga desde
ento. J comemos mais de um saco de sal juntas e ainda estamos a, firmes e
determinadas a continuar juntas descobrindo a vida como ela . Como boa irm,
Sandrinha cuidou na ltima hora por culpa minha! da formatao final do texto e de
uma capa linda que s ela poderia ter a idia de fazer meio a tanta correria. Agradeo!
O companheirismo e apoio que a professora Carla Costa Teixeira me deu nos
ltimos anos foram fundamentais para a concretizao deste trabalho. A unio em
torno do nosso carlismo abanense ao qual tambm se juntou o querido professor
Antnio Carlos Souza Lima algo que jamais poderei esquecer. Tambm so
inesquecveis as nossas aventuras em torno do saneamento. Agradeo!
Meu adorado compadre Joo Etienne A. Pimentel me recebeu num momento
difcil da minha vida em Dallas, onde comecei a esboar a redao deste trabalho.
Seus comentrios naquela poca foram e continuam sendo inestimveis. Agradeo!
Finalmente, quero agradecer a boa convivncia no Departamento de
Antropologia da UnB. Aline Sapiezinskas, Juliana Melo e Mnica Nogueira foram
grandes companheiras de doutorado. No h como no deixar aqui registrado o meu
apreo por estas meninas. Sinto-me particularmente privilegiada por ter podido, nos
ltimos anos, manter algumas boas conversas com professores do DAN, como as que
tive com Roque Laraia, Klass Woortman, Jlio Csar Melatti, Gustavo Lins Ribeiro,
meu presidente, Lus Roberto Cardoso de Oliveira, Henyo Trindade Barretto, meu
secretrio, Lia Zanotta, Eurpedes Dias, Paul Litlle. Deste pequeno-grande mundo,
no h como esquecer da Rosa, parte dos velhos tempos, da Adriana, do Paulo e da
Branca, sempre extremamente gentis, solcitos e eficientes no dia-a-dia da secretaria.
Agradeo!
Muito obrigada a todos vocs!!!
ABSTRACT
Understanding the fields of sense that make dynamic the experiences of
young integrant of galeras or groups generically defined as gangs involved in
illicit activities and acts of violence, was the motivation of the present study. In a
more specific way, I centered my interest in the ways of interaction, actions and
values of these youngsters, instigated by the following question: what place the
violence occupies as a propeller field of experiences in their lives? As an
observation location, I took the periphery of Brasilia, where youth of popular
layers lives.
The guiding axis of my study was not understanding the causes of
violence. In a distinct way, I attempted to delineate cultural contents that are in
the base of its practice and to place this violence inside the social reception
system of the young. My concern was to try to perceive the relationship of the
young with the world, its values, its representations of itself and the other, in a
social-anthropologic perspective that considers the global way of life and that
searches the meanings understanding they, themselves, give to their acts and
beliefs. In this manner, despite interested in the violence of the gangs, I did
not focused myself only in the behavior of the young inside these groups, but I
tried to explore a variety of dimensions that cross and make dynamic the
experience of participation of the young in the gangs, locating them in different
plans of understanding and relationships.
RESUMO
Compreender os campos de sentido que dinamizam as experincias de
jovens integrantes de galeras ou grupos genericamente definidos como
gangues, enleados em atividades ilcitas e atos de violncia, foi a motivao
impulsionadora do presente estudo. De modo mais especfico, centrei meu
interesse nos modos de interao, prticas e valores desses jovens, instigada
pela seguinte questo: que lugar a violncia ocupa como campo propulsor de
experincias nas suas vidas? Como terreno de observao, tomei a periferia de
Braslia, onde moram jovens de camadas populares.
O eixo norteador de meu estudo no foi o entendimento de causas da
violncia. Procurei, de modo distinto, delinear contedos culturais que esto na
base do seu exerccio e situar essa violncia dentro do sistema de relaes
sociais dos jovens. Preocupei-me em tentar perceber a relao dos jovens com
o mundo, seus valores, suas representaes de si e do outro, numa
perspectiva scio-antropolgica que considera a globalidade de seu modo de
vida e que procura a compreenso dos significados que eles prprios do s
suas prticas e crenas. Desse modo, ainda que interessada na violncia das
gangues, no me detive unicamente no comportamento dos jovens no interior
desses grupos, mas tentei explorar uma variedade de dimenses que
atravessam e dinamizam a experincia de participao dos jovens nas
gangues, localizando-as em diferentes planos de entendimento e relaes.
SUMRIO Introduo
9
1. Percursos da pesquisa 25 2. Ordenamento do material emprico
39
Captulo 1. Viver na Periferia: o cotidiano e o olhar dos jovens
47
1.1. Viver na Ceilndia 49 1.2. Viver em Samambaia 59 1.3. Viver em Planaltina 66 1.4. Viver na periferia: unidade de referncia
72
Captulo 2. Estigma, Discriminao e Desigualdade Social: o Plano Piloto como espelho
75
2.1. Comparando-se aos jovens do Plano Piloto 76 2.2. Da pobreza e da riqueza 93 2.3. O Diabo o outro
101
Captulo 3. Outras Dimenses da Sociabilidade: famlia e trabalho
102
3.1. Famlia tudo: a percepo dos jovens da instituio familiar 102 3.2. Em nome da me 107 3.3. O trabalho e o trabalhador: ambivalncias 108 3.4. Crescer, para qu? Inseguranas e incertezas agravadas
118
Captulo 4. Gangues e Galeras: a violncia faz a diferena
121
4.1. O novo referencial da violncia 129 4.2. Os jovens e o imaginrio da violncia 133 4.3. Breve balano
137
Captulo 5. Anatomia e Performance das Gangues
140
5.1. Do ldico bandidagem 140 5.2. A Dinmica da formao das gangues: quando os ratos tornam-
se uma famlia 144
5.3. Entrar, permanecer e sair da gangue: norma e obedincia 148 5.4. Ser lder de uma gangue: comandando as amizades 155 5.5. O que fazem as gangues 159 5.6. Rivalidades e embates entre os grupos: a lgica da guerra no
tem sutilezas 165
5.7. A lei do mais valente, ou a lei do mais armado 171 5.8. Um avio est sempre mo: o convvio com as drogas 172 5.9. As Jovens e as gangues: preconceito e discriminao em relao
condio feminina 176
5.10. Gangue: rito de passagem?
178
Captulo 6. Trajetrias Reversveis: alternativas ao mundo do crime 182
6.1. Da gangue para o Hip Hop: a histria de Jadson Jones 183 6.2. De integrante de gangue homem de Deus: a histria de
Jeferson, Eduardo e Carliomar 193
6.3. Passagem de um mundo a outro
203
Captulo 7. O Jovem e a polcia: olhares cruzados 207
7.1. Falando sobre a polcia: um primeiro retrato feito pelos jovens 209 7.2. Falando sobre os jovens: um primeiro retrato feito pela polcia 213 7.3. Baculejo: a revista policial 216 7.4. A percepo do baculejo pelos jovens 220 7.5. A percepo do baculejo pelos policiais 225 7.6. O Estatuto da Criana e do Adolescente (ECA): mais um motivo
de tenso entre jovens e policiais 230
7.7. Jovens e polcia: quem o bandido? 237 7.8. Espaos de contradio 239 7.9. Sobre as diferentes interpretaes de uma mesma situao
social: de volta ao baculejo
240
Consideraes Finais
243
Bibliografia
250
Anexo 261 (i)
9
INTRODUO
Os jovens do Distrito Federal vm se notabilizando pelos confrontos
violentos envolvendo turmas. A rivalidade mantida entre as chamadas
gangues provoca enfrentamentos fsicos que causam ferimentos graves e no
raramente a morte de jovens. Soma-se a esses embates entre turmas de
jovens, qualificados por eles prprios como guerras, uma outra manifestao
da violncia que entrecorta suas aes: a prtica de atos ilcitos e ilegais, como
roubos, assaltos, furtos e depredaes de patrimnios pblicos e privados.
A mdia local d espao significativo aos comportamentos agressivos e
violentos da juventude, tornando o tema gangue numa das preocupaes
mais urgentes das autoridades polticas. Neste contexto de alarmismo
meditico, atos delinqentes e de violncia envolvendo as chamadas gangues
juvenis so capazes de render reportagens que atravessam vrios dias,
sempre alimentadas por testemunhas dos episdios e pela opinio de
especialistas, que se convertem em espcies de epidemilogos de ltima hora,
premidos pela misso de diagnosticar o alcance do problema e apontar
possveis solues. Contudo, o tratamento emergencial dado ao tema tende a
empobrecer sua anlise, apontando para a necessidade de maior
conhecimento desses grupos e da experincia concreta de vida dos jovens que
os integram, o que o presente estudo espera trazer como contribuio.
Compreender a dinmica desses agrupamentos juvenis foi a motivao
inicial da pesquisa que originou este trabalho. Como terreno de observao,
tomei trs cidades da periferia do Distrito Federal, onde moram jovens de
camadas populares. Vale dizer que ser jovem na periferia do Distrito Federal
uma condio particular, mas no homognea. No cotidiano das cidades dos
arredores do Plano Piloto de Braslia existem vrias juventudes vivendo essa
experincia etria que se relaciona com diferentes formas de sociabilidade.
Neste trabalho, tomei como norte de investigao um tipo de sociabilidade
juvenil que se d no contexto da cultura de rua e que se desenvolve no quadro
de grupos genericamente denominados gangues, cujo uso da violncia e de
outras prticas ilcitas constituem caractersticas essenciais. Centrei meu
10
interesse nos modos de interao, prticas e valores desses jovens, suas
relaes com o mundo, suas representaes de si e do outro, instigada pela
seguinte questo: que lugar a violncia ocupa como campo propulsor de
experincias nas suas vidas? Mas, longe de tentar encontrar as causas da
violncia praticada por e entre esses jovens, procurei delinear contedos
culturais que esto na base do exerccio dessa violncia e situ-la dentro do
seu sistema de relaes sociais, buscando a compreenso dos significados
que os prprios jovens do s suas prticas e crenas.
Note-se que a violncia um fenmeno corriqueiro no cotidiano da
populao residente nas reas urbanas pobres do Distrito Federal. Grande
parte dos jovens desses locais j vivenciou situaes ligadas a homicdios,
assaltos, roubos, furtos, estupros, agresses fsicas. Nos ltimos anos, tm se
registrado taxas elevadas e ascendentes de homicdios entre os jovens, a
maioria do sexo masculino1. A amplitude dos problemas de violncia e
criminalidade relacionados juventude do Distrito Federal, o crescente
encaminhamento de jovens para instituies correcionais chamam a ateno,
assim como tambm o chama os agrupamentos do tipo gangue, que envolvem
s vezes dezenas de jovens cmplices em atos ilcitos dos mais variados tipo.
Verifica-se que o Distrito Federal no est na contramo do Brasil: hoje
no pas, as altas taxas de mortes violentas atingem principalmente jovens em
idade produtiva, sendo que a primeira causa de mortalidade entre os que esto
na faixa de 15 a 24 anos o homicdio. Segundo a Polcia Militar, o nmero de
jovens que morrem assassinados a maioria por outros jovens da mesma
idade quase sete vezes maior do que o nmero de vtimas na populao
total do pas2. A violncia praticada contra, por e entre jovens traz a juventude
1 Dados fornecidos pela Promotoria de Justia e Defesa da Infncia e da Juventude revelam que entre 2003 e 2006 foram registrados 1.657 homicdios, 6.608 roubos e 2.040 portes ilegais de armas envolvendo crianas e adolescentes. 2 A situao no Brasil agravou-se da dcada de 80 em diante. No incio de 2002, o cientista poltico e antroplogo, Luiz Eduardo Soares, ex-coordenador de segurana do estado do Rio de Janeiro, declarou que a sociedade brasileira j apresenta um dficit de jovens do sexo masculino comparvel ao que se verifica em pases que esto em guerra. Nessa dinmica fratricida, jovens pobres das periferias e favelas matam jovens pobres das periferias e favelas. A fonte gravitacional que os recruta para o varejo do trfico de drogas lana-os em direo a outras prticas marginais, cujos desfechos so crimes contra o patrimnio e contra a vida uns e outros tendendo a confundir-se, em razo da intensidade crescente da violncia, derivada sobretudo da disponibilidade de armas (Revista ISTO, 9/01/2002).
11
para o centro dos debates: por que eles passaram a formar galeras ou gangues
para brigar entre si? Por que a criminalidade juvenil aumenta
espetacularmente? As respostas a estas questes vm tomando vrias
direes, passando pela problematizao de temas como pobreza, excluso
social, revolta de classe, ethos adolescente, cultura viril, hedonismo,
banalizao do mal, mudanas nas formas de organizao familiar, crime
organizado, mecanismos e dinmicas do atual mundo globalizado e de
consumo, entre outros.
O fato que a adeso de muitos dos nossos jovens aos valores da
violncia (Zaluar, 2004a) no tem explicao unvoca. Pertence a uma cadeia
de causas e efeitos que se entrecruzam, mas que parece no estar claramente
delineada, apesar dos muitos esforos nesse sentido e de a desagregao
provocada pela violncia ser considerada preocupante no cenrio nacional,
trazendo sofrimento a toda a populao, notadamente a dos grandes centros
urbanos do pas. Frise-se que os prprios jovens tm a violncia e a
criminalidade como suas principais preocupaes, sentindo-se por elas
constantemente ameaados, independente da classe social a qual pertencem.
Pesquisas realizadas com jovens de 15 a 24 anos, de sexo masculino e
feminino, de diferentes estratos econmicos e em diversas Regies
Metropolitanas (Belm, Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro,
Salvador e So Paulo) e no Distrito Federal constatam que hoje no Brasil, [...] o tempo juvenil, antes de se constituir um perodo livre de preocupaes de ordem prtica, encontra-se profundamente comprometido com questes relativas prpria preservao da vida (Silva, Souto & Soares, 2005:19).
Neste estudo, ao relacionar juventude e violncia tomando como cenrio
um ambiente no qual predomina a pobreza a periferia de Braslia , no
pretendo alimentar um imaginrio social, particularmente os das classes
mdias e altas, que interliga causalmente a pobreza a um maior potencial para
condutas anmicas, especialmente para a criminalidade, correlao que as
cincias sociais j h algum tempo contestam ferozmente3. Mas, ao mesmo
3 Michel Misse (2006) tece um panorama das relaes entre crime e pobreza no imaginrio social e na literatura sociolgica brasileira. Segundo o autor, na nossa literatura dos anos 1980, a esmagadora maioria dos trabalhos produzidos sobre a questo da violncia urbana e da
12
tempo, no deixo de concordar com Michel Misse (2006a) quando afirma que o
discurso sociolgico, ainda que contribua para nos desviar de alguns
preconceitos, tem sido incapaz de diluir o fantasma que essa correlao
reproduz no cotidiano dos moradores das grandes cidades brasileiras. Alm
disso, haveria nesse discurso certa viso paternalista em relao aos pobres,
que se traduz numa profunda miopia quanto ao que o autor chama de
criminalidade pobre, que seria [...] tambm aquela a que se aplica a maior reao moral e social, a maior visibilidade, o maior interesse da mdia e dos polticos, por ser em geral uma criminalidade que se desenvolve por meios violentos (Misse, op. cit.: 21)4.
Tambm no perco de vista que a eleio de um tema de pesquisa que
vincula juventude e violncia pode ser interpretada como mais uma
colaborao das cincias sociais no sentido de situar a juventude sob o prisma
do negativismo e de dar continuidade a uma perspectiva, estabelecida pela
sociologia funcionalista norte-americana nos anos 1920-30, que a associa a
comportamentos disfuncionais. Contudo, no creio que seja prudente as
cincias sociais colocarem de lado o entendimento de questes relevantes
criminalidade, mesmo quando no diretamente interessados no problema, criticam duramente a associao entre pobreza e criminalidade. Haveria trs tipos principais de crtica: o primeiro, que Misse chama de brechtiano, ou estrutural, posiciona a pobreza como uma mediao entre causas da pobreza e o crime: uma associao que perde, de per si, qualquer poder explicativo, pois a associao passa a ser entre as margens do rio que aprisionam suas guas (a estrutura social que produz a explorao, a pobreza e a revolta) e suas guas revoltas (entre as quais o crime) (Misse, op. cit.: 10); o segundo, que ele chama de relativista, tenta mostrar que a criminalidade se espalha de igual maneira por todas as classes sociais, sendo apenas mais perseguida nas classes subalternas que nas dominantes e, ainda, que os pobres se distinguem a si mesmos dos vagabundos e bandidos; o terceiro, de base estatstica, procura demonstrar o carter esprio da correlao por meio do cruzamento de dados e a crtica de como foram produzidos. Embora concorde com os trs tipos de crticas, tendo-as defendidos em diferentes ocasies, Misse acredita que as mesmas no esgotam o assunto, ao contrrio, levantam novos problemas que so por ele tratados de maneira bastante pertinente no decorrer de seu trabalho. 4 O autor tambm sustenta que o fato de as penitencirias e cadeias do Brasil possurem uma populao carcerria quase totalmente constituda de pobres no significa que a maioria dos criminosos do pas seja de pobres e que a pobreza seja a principal causa da criminalidade em geral. Contudo, tambm no significa que a privao relativa no seja uma causa importante da criminalidade, que a relao pobreza-crime seja apenas um esteretipo social e que a reproduo desse esteretipo seja a principal causa da associao pobreza-crime. Pode significar, entre outras coisas, que os agentes pobres (ou com poucos recursos alternativos) que operam diretamente a ao criminal, por limitao social na escala de seleo de meios e de preferncias criminais, mas tambm por outras razes, tendem a estar mais sujeitos ao emprego da violncia como meio criminal (Misse, op. cit: 23).
13
para a sociedade, como a violncia, delinqncia e criminalidade juvenis, e
encapsul-las num eixo disciplinar rgido e datado. Penso que, se o lxico de
temas associados juventude ganhou amplitude, essas questes, como
tambm as de rebeldia e revolta ou seja, os clssicos problemas que lhes
deu visibilidade ao longo de quase todo o sculo XX (Abramo, 1994) no
deixam de continuar sendo fundamentais na construo da problematizao da
juventude. O desafio , por exemplo, no caso da delinqncia e violncia
juvenis, tentar compreend-las ultrapassando modelos interpretativos que
partem do pressuposto de que os jovens so responsveis por boa parte das
mazelas sociais e desordem urbana e, a partir da, propor medidas de
regulao social, de disciplinarizao, controle e correo de seus vcios, como
foi o caso dos funcionalistas da escola de Chicago. No se trata, portanto, de
ficar cego diante de um tema de grande importncia no nosso pas de hoje,
mas sim o de tentar explor-lo buscando novos ngulos, situ-lo frente s
novas vivncias e dinmicas sociais. Velhos temas podem e devem ser
revisitados para um melhor entendimento dos dilemas da condio juvenil
atual.
No Brasil, em pouco mais de duas dcadas, a variedade de estudos e de
pesquisas consagrados juventude efetivamente se ampliou, produzindo um
alargamento dos limites conceituais dessa categoria. Aps vrios anos de
relativa ausncia do tema nos trabalhos acadmicos, passamos a assistir
divulgao de uma massa de escritos e pesquisas consagrados s mais
variadas dimenses da vivncia juvenil. Ora, se at os anos 80 o interesse
acadmico esteve orientado, com raras excees, pela viso do jovem como
ator poltico5, concentrando-se num segmento restrito a classe mdia urbana
e universitria , a retomada do tema juventude pauta-se pela preocupao 5 A reflexo sociolgica sobre juventude no Brasil tem nos anos 1960 um marco fundamental que permaneceu por muito tempo como referncia de anlise. As manifestaes juvenis so vistas como questionadoras da ordem social, revolucionrias de usos e costumes, e estruturadoras de utopias sociais e polticas. A gerao dessa dcada tipificou a juventude engajada, sendo o movimento estudantil, visto como expresso de uma certa politizao que apontava ideais de construo de uma nova sociedade, uma de suas formas mais caractersticas. O estudo de Octavio Ianni (1968) e as pesquisas de Marialice Foracchi (1972) so pioneiros nessa linha investigativa. Cabe salientar essa viso sobre a juventude, sendo tomada como paradigma para muitas reflexes posteriores, levou a uma desqualificao dos movimentos culturais juvenis surgidos nos anos subseqentes, que so vistos como expresso de alienao.
14
em situ-la frente a outras dimenses da vida em sociedade, como o lazer,
estilos e movimentos culturais, trabalho, escola, famlia, religio, padres de
consumo, sexualidade, entre outras. A diversidade que caracteriza a juventude
ganha, ento, nesse contexto, relevncia no pensamento social.
Atualmente a expresso juventudes no plural passou a ser
empregada com bastante freqncia como forma de enfatizar que, se tratando
de jovens, preciso ter em mente que esses constituem realidade plural e
multifacetada (Rezende, 1989; Novaes, 1998; Carrano, 2000; Abramo, 2005).
Ou seja, necessrio no perder de vista o fato de no existir um modo nico
de vivncia do tempo de juventude. Na verdade, h diferentes maneiras de ser
jovem na heterogeneidade econmica, social e cultural contempornea, onde
transitam identidades em fluxo, bem como possibilidades e cdigos culturais
mltiplos e diferenciados (Margulis, 2001; Groppo, 2000). Desse modo, a
noo de juventudes remete a um complexo processo scio-cultural e
econmico que se expressa simultaneamente em diversidades e
desigualdades objetivas e subjetivas. Toda e qualquer inferncia possvel
acerca da juventude no singular ganha plausibilidade somente se
matizada pela transversalidade que caracteriza a diversidade das experincias
juvenis.
A tendncia a colocar em relevo a pluralidade e especificidade das
experincias juvenis fato amplamente aceito e incorporado pelos estudiosos
do tema contrasta-se com uma outra que tambm se configura como um dos
principais eixos analticos pelo qual se desenvolveu a chamada sociologia da
juventude, qual seja, aquela que se inclina para uma idia genrica de
juventude, procurando definir e entender os elementos cristalizados que
estabelecem seus traos comuns. Como observam Cardoso e Sampaio (1995)
ao levantarem a Bibliografia sobre Juventude, na ampla gama de estudos
realizados, distintos em temticas e tipos de abordagem, possvel identificar
genericamente duas grandes tendncias que se opem e que, ao mesmo
tempo, se superpem ou se alternam de tempos em tempos: de um lado, uma
tendncia terica que, associando os jovens a contextos de grandes
transformaes, entende a juventude como uma identidade homognea,
15
genrica. A nfase da maioria dos primeiros estudos que trabalharam com a
idia genrica de juventude recaia sobre a dinmica geracional, nela vendo um
elemento quase natural6; de outro lado, uma tendncia, inicialmente vinculada
aos estudos da Escola de Chicago, que coloca em relevo a heterogeneidade
das experincias juvenis. A noo de subculturas juvenis se destaca nesse
segundo modo de abordar e conceituar a identidade juvenil. As abordagens
mais recentes vm procurando articular esses dois enfoques, orientando-se em
torno do reconhecimento da juventude no plural, isto , esquadrinhando a sua
diversidade interna, mas sem abrir mo do reconhecimento de uma experincia
geracional que permeia o campo, imprimindo-lhe uma tonalidade prpria
(Tavares & Camura, 2005).
O contexto brasileiro expressa, portanto, a possibilidade de mltiplas
vivncias juvenis no mundo contemporneo e sua correlao com experincias
localizadas em sistemas de valores especficos. Ao lado das inmeras formas
de associao juvenil e do crime organizado que arregimenta batalhes de
jovens nos grandes centros urbanos, emerge um elemento novo na cultura de
rua a partir do surgimento do fenmeno das galeras: turmas de jovens com
estrutura relativamente territorializada reunidas em torno de interesses
geralmente alheios violncia, mas que, alm de no estarem livres de praticar
atividades ilcitas e atos violentos, costumam manter rivalidades com outros
grupos para marcarem a posse de seu pedao (Magnani, 1998), produzindo
embates que podem terminar na tragdia de agresses extremamente graves e
homicdios.
Essas turmas registram sua presena nos distintos cenrios urbanos
nacionais e so tomadas, pela mdia e pelo imaginrio social por ela
profundamente influenciado, como um dos principais agentes da violncia,
6 Trata-se de estudos vinculados aos perodos marcados por acontecimentos de ampla repercusso, como, por exemplo, a ascenso do nazismo nos anos 1930, a consolidao dos regimes socialistas nos pases do Leste europeu e a difuso e fortalecimento dos movimentos de esquerda na dcada de 1950. Tais fenmenos trazem para o debate o carter intrinsecamente inquieto e inconformista das novas geraes e a defesa de uma sociologia da juventude como uma rea fecunda para a compreenso das profundas mudanas sociais e polticas que estavam ocorrendo na primeira metade do sculo XX. Em estudos posteriores, que tambm consideram o problema sociolgico das geraes, a noo de gerao se modifica, passando a ser vista como uma construo histrica e cultural. Ver, por exemplo, os estudos de Karl Mannheim (1968; 1978, 1982).
16
desordem e caos. De fato, o cotidiano das crnicas jornalsticas alimenta o
medo desses grupos, focalizando insistentemente a violncia e condutas de
risco de seus integrantes e aproximando-as, no sem sensacionalismo, ao
modelo de gangue existente nas cidades estadunidenses: Brigas entre
gangues rivais mata mais um jovem na Ceilndia; Gangues de adolescentes
provocam tumultuo em boate da zona sul do Rio; Gangues criam baderna e
assustam curitibanos; Gangues de menores barbarizam e so uma ameaa
crescente em Fortaleza. Tanto barulho em torno das chamadas gangues,
tornou-as questo de segurana pblica nacional7 e vem motivando a
realizao de diferentes estudos em vrias cidades.
Assinalo que gangues e galeras passaram a fazer parte do
vocabulrio corrente para definir um tipo indito de experincia juvenil no Brasil
e, particularmente, no Distrito Federal, onde centrei minhas observaes de
campo. Essas mesmas expresses comparecem tambm e h muito mais
tempo nos contextos estadunidense (gangs) e francs (galre) associadas do
mesmo modo a uma forma especfica de presena juvenil no espao pblico
urbano. Contudo, se, a princpio, o significado das gangues e galeras no
contexto urbano do Distrito Federal e de muitas cidades brasileiras parece
designar um fenmeno social assemelhado ao verificado nos Estados Unidos e
na Frana, podemos assinalar inmeros pontos de descontinuidade entre a
vivncia concreta desses grupos.
Verdadeiras ou falsas gangues? Mito folclrico americano transplantado
para o cenrio urbano brasileiro e, particularmente, para o Distrito Federal? De
fato, alguns grupos de jovens de Braslia incorporam a esttica, adotam rituais,
denominaes, estrutura e equipamentos simblicos que muito se assemelham
aos das gangues norte-americanas, mas quando buscamos compreend-los a
partir de seus prprios referentes culturais, a primeira constatao a de que
esse mimetismo est repleto de recriaes locais e interpretaes inditas do
7 Em julho de 2000, o governo brasileiro anunciou uma nova verso do Plano Nacional de Segurana Pblica, traduzido num conjunto de 124 medidas estratgicas visando a conter o avano da criminalidade no pas. Em meio a itens como a ampliao do nmero de vagas em penitencirias, o aumento e treinamento do quadro policial, melhoria das condies de trfego e das condies de uso noturno dos espaos pblicos em periferias e favelas, comparece como medida o combate s gangues juvenis (Presidncia da Repblica, 2000).
17
modelo de origem. O que no causa espanto, pois os processos culturais esto
repletos de casos de mimetismo, imitao e colagem, tambm chamados de
difuso cultural, que nunca, entretanto, alcanam a reproduo exata da verso
original (Zaluar, 1997; Ortiz, 1994). Observa-se ainda que, num mundo a cada
dia menor e mais denso, em pleno processo de compresso do tempo e do
espao, objetos e smbolos so compartilhados em larga escala, indo alm das
fronteiras nacionais. Nesse movimento de encolhimento do mundo,
referncias culturais locais passam a ser reconhecidas mundialmente,
integrando uma cultura global desvinculada de uma territoriedade especfica.
As gangues dos Estados Unidos, que ganharam interpretaes locais
pelo mundo afora, possuem dcadas de histria e desempenham um papel de
grande importncia na organizao da vida coletiva das cidades. Configuram-
se como um elemento caracterstico diviso do espao urbano naquele pas,
sendo que historicamente essa diviso suscita conflitos violentos de carter
notadamente tnico. Como lembra Zaluar (1997), nos Estados Unidos sempre
houve uma confuso entre etnia e bairro, raa e bairro, que faz parte da
forma peculiar de segregao tnica, ainda hoje muito marcante, das cidades
estadunidenses. J no Brasil, o modo de diviso das cidades e os conflitos dela
derivados assumem outra configurao histrica, expressando-se, por
exemplo, por meio de grupos e associaes que, apesar da rivalidade, s
vezes traduzida em embates violentos, produzem modos de sociabilidade
impregnados de antdotos da violncia8.
Alm de portadoras de uma longa histria, as gangues nos Estados
Unidos protagonizam uma vasta e variada literatura da qual fazem parte no
8 Segundo Zaluar (1997), enquanto nos Estados Unidos as gangues juvenis surgiram como uma das formas de organizao dos bairros pobres, representando-os e expressando a rivalidade entre os mesmos, no Brasil, especialmente no Rio de Janeiro e ulteriormente em outras cidades, observa-se o surgimento nas favelas e bairros populares das escolas de samba, dos blocos carnavalescos e dos times de futebol para represent-los e exprimir os conflitos, rixas e competio entre eles. Essas rivalidades, nem sempre isentas de conflitos violentos, eram claramente manifestas na apoteose dos desfiles e concursos carnavalescos, nas competies esportivas, atestando a importncia da festa como forma de conflito e sociabilidade que prega a unio, a comensalidade, a mistura, o festejar como antdotos da violncia sempre presente, mas contida ou transcendida pela festa. Zaluar ainda chama a ateno para o fato de hoje, no Brasil, se assistir ao esfacelamento dessas formas tradicionais de organizaes vicinais por estarmos diante de um novo tipo de guerra em que j pereceram, somente no Rio de Janeiro durante a dcada de 80, mais jovens homens do que os americanos mortos na Guerra do Vietn (Zaluar, op. cit.: 21-22)
18
somente trabalhos acadmicos, como tambm matrias jornalsticas, obras
literrias, cinematogrficas, relatrios governamentais, manuais prticos, guias
educativos e um conjunto de relatos autobiogrficos9. O tema comea a
adquirir destaque nas cincias sociais nos anos 1920, no mbito da renovao
dos estudos urbanos realizados pela Escola de Chicago.
A chamada primeira Escola de Chicago, inquieta com a crise e a
desorganizao social10 produzida pelo crescimento urbano acelerado e pela
falta de integrao no espao social e cultural urbano dos migrantes e
imigrantes que passam a ocupar as zonas pobres e decadentes daquela
cidade, consagrou s gangues muitos dos seus estudos clssicos11. A
segregao espacial, social e cultural, a crise motivada pelo enfraquecimento
dos valores, da moral e dos costumes tradicionais da populao pobre
imigrada, enfim, o gradual declnio das formas tradicionais de regular normas e
comportamentos, seriam responsveis pela formao e multiplicao de
gangues, que surgem como uma resposta dos jovens provenientes de meios
desfavorecidos e de famlias com dificuldades de integrao sociedade ampla
essa desorganizao ambiente. Alm disso, as gangues expressariam a
busca de uma identidade social, sendo que suas formas de funcionamento, de
pertencimento e posicionamento dos jovens a elas, bem como os jogos de
rivalidade, constituir-se-iam em vetores de uma identidade de substituio,
criadora de uma cultura que poderia favorecer a delinqncia (Lagre, 1996).
A Escola de Chicago fornece os primeiros postulados de uma sociologia
da delinqncia juvenil, referindo-se a problemas de integrao social de
microcomunidades, distanciadas das normas dominantes na sociedade. Aps
os anos 1930 e afastando-se do modelo da desorganizao social,
9 Wacquant (1994) tece uma crtica a esse conjunto de escritos, assinalando que, em sua maioria, os mesmos contribuem bem mais para a (re)produo de um mito nacional do que para o seu desaparecimento, alm de figurarem como um obstculo epistemolgico cincia das gangues na medida em que pouco contribuem ao conhecimento emprico de suas formas e funcionamentos. Alm disso, parte dessa literatura revela bastante sobre o medo e o pnico que as gangues inspiram s classes mdias e superiores da sociedade americana, que vivem a angstia de ver as gangues invadirem o espao reservado dos subrbios abastados. 10 As idias de crise e de desorganizao social foram bastante criticadas pelo evidente compromisso com o arcabouo terico funcionalista e, conseqentemente com uma noo consensual de ordem e uma forma homognea de organizao. 11 Dentre os clssicos que se enquadram na primeira teoria da Escola de Chicago, podemos citar o clebre estudo de Thrasher The Gang, publicado pela primeira vez em 1927.
19
numerosos trabalhos tratando do tema continuam a surgir em todos os
perodos da sociologia americana, dando margem confrontao de
tendncias e perspectivas tericas. O lugar privilegiado do objeto gangue no
desenvolvimento da sociologia da delinqncia juvenil aparece claramente nos
modelos culturalista, funcionalista e interacionista12. Zaluar (1997) salienta que
todas essas perspectivas tericas foram, em maior ou menor grau, criticadas
pelo seu compromisso com o positivismo que transformava as pessoas em
objeto, e seu comportamento, em fatalidade ou determinao, dificultando o
entendimento delas enquanto sujeitos que participam de forma ativa nas suas
escolhas e aes, apesar das constries e presses de foras de vrias
ordens (Zaluar, op. cit: 20).
Atualmente nos Estados Unidos a problemtica da gangue congrega
vrias linhas de pesquisa, alm de movimentos de opinio, impondo-se como
um objeto incontornvel para quem almeja compreender as transformaes
contemporneas da sociedade e da cultura urbanas americanas. Para alguns
pesquisadores, as gangues constituem a vanguarda dessa categoria de
populao de excludos reunida sob a denominao estigmatizadora de
underclass. H ainda os que focalizam principalmente a questo da formao
de uma identidade masculina dominante, fortemente delineada por foras
ecolgicas locais, tais como a segregao, a imigrao e a excluso da escola
e do mercado de trabalho. As gangues constituem tambm objeto de interesse
primordial na anlise da nova criminalidade subproletria e da violncia de rua,
responsvel pelas altas taxas de mortalidade e pelo enorme nmero de
encarceramento de jovens de origem afro-americana e hispnica13.
Soma-se a essas linhas de pesquisas, uma outra encabeada pelo
antroplogo Snchez-Jankowiski, que tem dado suporte analtico s 12 Na Escola de Chicago surgem outras obras, posteriores ao trabalho de Thrasher, que constituem referncias obrigatrias nos estudos sobre delinqncia juvenil: Juvenile Delinquency in Urban Areas, de Clifford Shaw & Henry McKay (1942); Street Corner Society, de William Foote Whyte (1943). Como exemplo de autores e obras paradigmticos da sociologia da delinqncia juvenil podemos citar Albert Cohen (1955), representando a vertente culturalista, com Delinquent Boys: The Culture of the Gang;Richard A. Cloward & Lloyd B. Ohlin (1960), representando os funcionalistas, com Delinquency and Opportunity: A Theory of Delinquent Gangs; David Matza (1964), representando os interacionistas, com Delinquent and Drif. 13 Wacquant (1994) faz um breve painel dessas linhas de pesquisa, situando-nos em relao s principais publicaes a partir dos anos 80.
20
investigaes sobre juventude e crime no Brasil. Autor de um dos estudos
contemporneos mais originais e inovadores consagrados s gangues norte
americanas14, Snchez-Jankowiski (1991) defende a idia de que, em se
tratando da principal engrenagem na enorme mquina do comrcio das drogas,
as gangues merecem ser pensadas na qualidade de empreendimento
informal, caracterstico aos bairros pobres e segregados das cidades
americanas. De acordo com o antroplogo, agrupamentos juvenis pouco
estruturados, por praticarem atos ilcitos e terem comportamentos
territorialistas, tm sido rotulados como gangues em razo do preconceito
social e tambm porque existe uma enorme deficincia conceitual entre os
pesquisadores do tema. Ao redimensionar o lugar que os atos ilegais ocupam
neste tipo de organizao social, Snchez-Jankowiski chama a ateno para a
racionalidade instrumental prpria das gangues, que implica em inmeras
estratgias que objetivam a acumulao de recursos, independentemente da
legalidade ou ilegalidade das atividades associadas a essas estratgias. Na
sua viso, as gangues so organizaes que conduzem negcios com
caractersticas empresariais. Melhor dizendo, so empresas que administram
seus negcios com competncia e exatamente por isso precisam ser bastante
organizadas e slidas, pois quanto mais o forem, melhor sucedido ser o
negcio.
Na Frana, outro contexto que vem sido usado como referncia nas
anlises realizadas no Brasil sobre violncia e juventude, o fenmeno dos
bandos (bandes) de jovens no novo e a literatura sociolgica costuma
remontar sua histria desde o incio do sculo XX. Apaches na Belle poque,
blousons noirs nos anos 1960, passando pelos loubards, skinheads e
chegando aos cailleras e zoulous dos anos 1980, cada poca tem seus
bandos que refletem os estilos e as mentalidades do tempo. Alguns autores
assinalam perodos histricos em que os bandos desapareceram, mas
atualmente h uma tendncia a reconhecer o retorno do fenmeno. Embora
14 O estudo de Martin Sanchez-Jankowski consagrado s gangues urbanas nos Estados Unidos destaca-se das massas dos escritos e rompe com a literatura anterior. Um dos aspectos que chama a ateno no plano terico o fato do autor retirar a gangue do paradigma da criminologia e do desvio, colocando-a na esfera da sociologia das organizaes e dos modos de estruturao dos meios proletrios.
21
no se saiba muito sobre sua amplitude e sobre sua realidade concreta,
tornam-se cada vez mais visveis agrupamentos juvenis que se associam tendo
como fonte de inspirao os modelos cinematogrficos e miditicos das
gangues americanas. Mas, a rigor, estudiosos tendem a afirmar que no se
tratam de gangs ( Mauger, 1993; Esterle-Hedibel, 1997).
Ao lado de inmeros trabalhos que tentam compreender a multiplicidade
de formas da juventude francesa marcar sua presena no espao pblico,
principalmente urbano, h hoje um grande interesse de pesquisadores por um
modo particular de sociabilidade juvenil e uma maneira de viver a juventude no
meio popular na Frana contempornea. Trata-se da experincia da galre,
noo introduzida por Dubet (1987) e que colabora na compreenso dos
modos de interao, prticas e valores dos jovens dos meios populares
daquele pas.
A galre, segundo Dubet, corresponde a um tipo de vivncia juvenil que
emergiu em um contexto no mais estruturado em torno do mundo operrio e
do trabalho, que organizavam a vida social das classes trabalhadoras e seus
bairros de residncia, onde predominavam mecanismos de integrao,
sentimentos de pertencimento e acordos normativos comunitrios. Em razo
das transformaes no mundo do trabalho e enfraquecimento do movimento
operrio e de uma conscincia de classe, esses mecanismos, sentimentos e
acordos foram paulatinamente desarticulados. Esses bairros, antes bairros
operrios, passaram a condio de periferias de pobres relegadas e
estigmatizadas, ocupadas por uma populao heterognea, desempregada ou
subempregada, diferenciada social e culturalmente, marcada por conflitos e
tenses decorrentes da imigrao e pela realidade da excluso. So tais
condies que formam as bases estruturadoras da galre.
A galre para Dubet , antes de tudo, uma experincia de vida. Trata-se
de um modo de deixar a existncia deriva, de sociabilidade solta, plena de
niilismo, autodestrutividade e raiva (rage), sociabilidade esta marcada por
atividades criminais intermitentes, transitrias e de pequena gravidade
pequenas incivilidades, nos temos de Dubet , por uma marginalidade difusa
e violncia sem objeto. Galrer largar-se ao -toa a espera do tempo passar,
22
no apenas porque no se tem uma ocupao, um trabalho, mas tambm
porque no h motivao para encontrar um; ficar circulando, para matar o
tempo, entre pontos onde se concentram jovens bares, clubes e esquinas ,
na espera que algo acontea; praticar pequenos delitos, como jogar pedras
em vitrines, roubar e furtar os ricos na cidade, vender quantidades pequenas
de drogas; s vezes brigar, ferir ou matar em conflitos normalmente
individualizados, pois os jovens no travam batalhas entre si, embora tenham
uma vaga ligao com os bairros onde moram. A delinqncia da galre
associada ao seu modo de vida, no sendo organizada e nem profissional. Os
jovens so mobilizados para praticarem atividades ilcitas e ilegais ou se
deixarem conduzir pelo excesso, pelo vazio e pela raiva decorrentes da
privao de conscincia de classe, da diluio dos laos sociais nos bairros
operrios e da prpria ausncia de conflito social. Os que galrent no se
agrupam em redes estveis que propiciam a formao de uma identidade
comum. De modo distinto, no existe qualquer forma relativamente organizada
de pertencimento a um grupo e uma identidade que no seja essa diluda e
incerta de ser da galre e no de uma determinada galre. Dubet acredita que
a galre impede a formao de bandos (bandes) e gangs, ou seja, de grupos
estveis, exatamente pela sua heterogeneidade e ausncia de regulao e
controle tambm nas relaes dos jovens entre si.
Do dilogo de Dubet com modelos clssicos para buscar o entendimento
da experincia da galre, resta-lhe a certeza de que sua leitura sociolgica no
pode resultar de uma colagem dessas teorias na medida em que a experincia
da galre as ultrapassa. Segundo o autor, precisamente a raiva, resultante
da privao de conscincia de classe, e seus efeitos sobre todas as outras
dimenses da experincia, o elemento chave desestabilizador que impede
reduzir a galre a um problema de integrao e a um excesso de frustao, e
que impulsiona os atores para alm das etiquetas que lhes so atribudas
(Dubet, op. cit: 152).
Nem gangs estadunidenses, nem galres francesas. No Brasil, o que tem
sido chamado de gangue est longe da realidade de uma gang americana,
23
apesar de alguns elementos morfolgicos darem margem a tal aproximao15.
As gangues que marcam sua presena o nosso cenrio urbano, ao contrrio
das gangs estadunidenses, no conduzem negcios com caractersticas
empresariais. Geralmente tm, como as gangs, uma demarcao territorial,
liderana definida, interao recorrente e engajamento em comportamento
violento como prticas fundamentais de estruturao distintiva, mas no
objetivam exatamente assegurarem aos seus integrantes um meio de vida
permanente, com possibilidade de mobilidade social pelos ganhos advindos de
prticas delinqentes e ilcitas. Tanto que os jovens integrantes das nossas
chamadas gangues como o presente estudo de caso sobre o Distrito Federal
pretende mostrar , se tm comportamentos transgressores e engajam-se em
atividades ilegais, o fazem de forma passageira e no acumulam recursos,
costumando abandonar essas prticas na idade adulta.
O significado imputado por Dubet dimenso de classe e de revolta
mas sem conscincia de classe uma das caractersticas que tem levado
antroplogos e socilogos a aproximar o caso da galre francesa do das
galeras em diferentes partes do Brasil, muito mais do que as suas
semelhanas morfolgicas (Misse, 2006b). Isto porque a noo de classe
social que Dubet traz de volta ao debate para examinar o comportamento
juvenil remete a uma srie de questes afeitas ao universo dos jovens pobres
moradores das reas rotuladas como crticas, inseguras e perigosas. No caso
dos jovens do Distrito Federal, suas turmas, ora denominadas gangues ou
galeras cada vez mais difcil diferenci-las , possuem estrutura
relativamente territorializada, criam cdigos e linguagens particulares, brigam
entre si, muitas vezes com graves ferimentos e mortes, e seus integrantes
podem participar do pequeno trfico de drogas, de assaltos e roubos. Embora
se distanciem do modelo difuso de sociabilidade da galre descrito por Dubet,
h na experincia de vida desses jovens algo que os aproxima: a
15 Os critrios gerais tradicionalmente definidores de uma gangue em pesquisas americanas so: estrutura formal de organizao, hierarquia, liderana definida, identificao com um territrio, interao recorrente, longevidade e engajamento em comportamento violento. Nota-se que cada estado e jurisdio local nos EUA tende a adotar sua prpria definio de gangue, no existindo uma definio standard.
24
desmotivao com a escola, a perda de sentido do trabalho, o sentimento de
serem estigmatizados por serem pobres e viverem em locais relegados, uma
certa revolta diante das desigualdades sociais e a transformao do cio a
falta do que fazer, retomando os seus prprios termos em uma violncia
tornada corriqueira e banal. Como os atores que personificam a experincia da
galre, os jovens objeto deste estudo, procuram, por meio de atividades ilcitas
e ilegais, se inserir na cultura de massa e do consumo e participarem do
mundo dos outros (material e simblico), quaisquer que sejam as definies
que tenham desses Outros (Misse, 2006b). Contudo, seria um erro aproximar
demais as galeras de Braslia das galres francesas e desconsiderar as
descontinuidades entre essas experincias. At porque, como mencionado,
nas galres da periferia das cidades francesas no h qualquer articulao de
grupo lderes, regras de comportamento, rituais iniciticos ou uma revolta
focalizada contra um inimigo claro, mas sim uma sociabilidade absolutamente
solta.
Encontrei em Braslia gangues e galeras, com feies prprias. Jovens
entre 15 e 24 anos, a maioria nascida no Distrito Federal, vivendo dilemas
especficos do incio deste milnio, estruturando-se em grupos praticantes de
transgresses e delitos, interiorizando os valores da virilidade, o que os levam
a responder desafios sempre atravs da agresso fsica, e protagonizando, ao
lado de outros jovens de nossas grandes cidades, a violncia urbana do pas.
Cabe assinalar que violncia foi uma categoria que, discutida com os
jovens, se mostrou capaz de fazer emergir um conjunto de idias, anseios e
inquietaes e que permitiu reunir componentes importantes da sua realidade,
tais como a sua conscincia de classe, a sua posio na sociedade, suas
interaes sociais na rua, na escola e na famlia, seus confrontos com o
desafio do mercado de trabalho, suas experincias enquanto grupo etrio,
entre outros. O conceito de violncia serviu, portanto, como mote que
possibilitou a apreenso das maneiras como os jovens do significado ao seu
cotidiano e das formas como o constroem. Desse modo, o leitor no encontrar
neste estudo o entendimento da relao entre juventude e violncia a partir da
investigao da violncia como acontecimento, como observao direta de
25
uma prtica concreta (Digenes, 1998) e, sim, representaes que os jovens
tm do mundo que o cerca expressas e assinaladas tendo por referncia este
tema. Dizendo de outro modo, a perspectiva adotada no estabelece como
eixo bsico e limite da pesquisa a identificao do porqu a violncia acontece,
mas focaliza uma rede de significados culturais (Geertz, 1973) produzida
pelos jovens da periferia quando elaboram suas percepes sobre a mesma.
1. Percursos da pesquisa
A pesquisa de campo foi realizada em trs cidades perifricas do Distrito
Federal: Ceilndia, Samambaia e Planaltina. Seu incio, em 1998, esteve
vinculada ao meu trabalho como pesquisadora da UNESCO, onde fui
introduzida ao tema juventude. Em se tratando, em principio, de uma proposta
de trabalho tipo survey, utilizando abordagens metodolgicas
complementares abordagem compreensiva e extensiva (amostragem de 900
questionrios) , o tempo desempenhava um papel fundamental16. Nos anos
seguintes, j desvinculada da instituio promotora da investigao, continuei
realizando visitas espordicas a esses lugares e desenvolvi, de forma mais ou
menos sistemtica, uma pesquisa complementar.
A eleio de Ceilndia, Samambaia e Planaltina foi feita a partir de um
levantamento das zonas do Distrito Federal nas quais o fenmeno das
gangues juvenis agrupamentos que cada vez mais chamavam a ateno
por suas prticas transgressoras e violentas ganhava maior expresso. Esse
mapeamento foi realizado a partir de pesquisas em arquivos de jornais,
registros e estatsticas policiais de ocorrncias envolvendo jovens, conversas
com delegados e agentes da Polcia Civil. 16 Apresentei UNESCO o relatrio da pesquisa qualitativa, com sistematizao e anlise da investigao de campo, em fevereiro de 1999. Coube UNESCO fazer o cruzamento entre os dados qualitativos e quantitativos. A pesquisa foi publicada ainda no ano de 1999, com o ttulo Gangues, Galeras, Chegados e Rappers: juventude, violncia e cidadania nas cidades da periferia de Braslia, sob a coordenao da sociloga Miriam Abramovay e participaes do tambm socilogo Julio Waiselfisz e da cientista poltica Maria das Graas Rua. O trabalho que ora proponho difere do relatrio da UNESCO tanto no que diz respeito ao contedo e profundidade da reflexo, quanto na forma de organizao, muito embora a primeira sistematizao que fiz para a UNESCO dos dados por mim colhidos em campo me tenha sido de grande utilidade.
26
Os jovens informantes pertencem faixa etria entre 15 a 24 anos,
demarcao utilizada na maioria das anlises demogrficas que necessitam de
um parmetro de definio da adolescncia e juventude17. A utilizao dessas
idades como referncia certamente pode ser questionada, sobretudo quando
se considera juventude no apenas como uma categoria etria ou biolgica.
Ainda que o elemento biolgico participe de modo crucial nas nossas
percepes do que seja juventude, existe, retomando um tema de grandes
discusses travadas nas cincias sociais, uma clara demarcao entre o
processo biolgico e o social18. Van Gennep (1977), no seu clssico Ritos de
Passagem, mostra que a existncia de uma puberdade social no
coincidente com a puberdade biolgica19. ries (1981) sublinha que as noes
e percepes da infncia e da juventude so scio-historicamente construdas,
isto , variam no tempo, de uma cultura para outra e tambm at mesmo no
interior de uma mesma sociedade20.
Pierre Bourdieu (1981), abordando o problema da categorizao etria,
coloca-o de outra maneira:
17 Observa-se que os limites de idade para se definirem adolescncia e juventude so extremamente variados, pois esto sujeitos a padres scio-culturais diferenciados e a tratamento estatsticos diversos, conforme as instituies que refletem ou atuam junto a esse segmento da populao. A Organizao Internacional da Juventude define esses parmetros entre 15 e 24 anos. A Organizao Pan-Americana da Sade/Organizao Mundial da Sade - OPS/OMS define diferenciadamente adolescncia e juventude por suas especificidades fisiolgicas, psicolgicas e sociolgicas. Segundo a OPS/OMS, a adolescncia constitui um processo fundamentalmente biolgico, durante o qual se aceleram o desenvolvimento cognitivo e a estruturao da personalidade. Abrange as idades de 10 a 19 anos e dividida em etapas de pr-adolescncia (de 10 a 14 anos) e adolescncia propriamente dita (de 15 a 19 anos). J o conceito de juventude, por sua vez, resume uma categoria essencialmente social, que indica o processo de preparao dos indivduos para assumirem o papel de adulto na sociedade, tanto no plano familiar quanto no profissional, abarcando a faixa etria dos 15 aos 24 anos. 18 Nas clssicas discusses levadas a cabo por socilogos e antroplogos, fica demonstrada a determinao scio-cultural de comportamentos que antes eram atribudos a uma natureza biolgica. Lvi-Strauss (1982), por sua vez, afirma que a cultura no pode ser considerada nem simplesmente justaposta nem simplesmente sobreposta vida. Em certo sentido substitui-se vida, e em outro a utiliza e a transforma para realizar uma sntese de nova ordem (Lvi-Strauss, op. cit: 42). 19 Ver tambm os trabalhos de Mead (1968) e Galland (1991). 20 Existe uma massa de estudos etnogrficos que demonstram as variaes das categorias de idade em sociedades no ocidentais, mas h tambm estudos realizados no interior do mundo ocidental que demonstram estas variaes, como o feito por Varagnac (1968) entre camponeses franceses, meio aos quais o autor detectou um sistema de categorizao de idade dividido em oito etapas: primeira infncia (fim do aleitamento); crianas; os jovens e as jovens; os recm-casados; os pais e mes de famlia; os vivos e as vivas, os velhos e, finalmente, os falecidos.
27
[...] as divises entre idades so arbitrrias [e] a fronteira entre juventude e velhice em todas as sociedades objeto de luta [...]. Juventude e velhice no so dadas, mas so construdas socialmente, numa luta entre jovens e velhos (Bourdieu, op. cit.: 144-45).
Ou seja, o significado de ser jovem relacional a outras categorias de
idade. No entanto, dependendo do que se defina como sendo o jovem e a
juventude pode-se estabelecer o que seria prprio e natural a este grupo.
Ao analisar as discusses no mbito das cincias sociais acerca da
noo de juventude, Lus Groppo (2000) conclui que, no aspecto da definio e
conceituao, h, por parte dos cientistas sociais, uma fraca colaborao: as
definies de juventude passeiam por dois critrios principais, que nunca se
conciliam realmente: o critrio etrio (herdeiro das primeiras definies
fisiopsicolgicas) e o critrio scio-cultural (Groppo, op. cit: 9). Groppo tambm
mostra que a sociologia e a antropologia, mesmo negando ou enfatizando a
relatividade do critrio etrio, acabam recriando o mito da juventude como
classe social definida por este critrio. No entanto, explica o socilogo, embora
realmente no exista uma classe social formada por todos os indivduos de
uma mesma faixa etria, a categoria social juventude assim como outras baseadas nas faixas etrias tem uma importncia crucial para o entendimento de diversas caractersticas das sociedades modernas, o funcionamento delas e suas transformaes. Por exemplo, acompanhar as metamorfoses dos significados e vivncias sociais da juventude um recurso iluminador para o entendimento das metamorfoses da prpria modernidade em diversos aspectos, como a arte-cultura, o lazer, o mercado de consumo, as relaes cotidianas, a poltica no-institucional, etc. Por outro lado, deve-se reconhecer que a sociedade moderna constituda no apenas sobre as estruturas de classe que lhe so prprias, mas tambm sobre as faixas etrias e a cronologizao do curso da vida. A criao das instituies modernas do sculo XIX e XX como a escola, o Estado, o direito, o mundo do trabalho industrial, etc tambm se baseou no reconhecimento das faixas etrias e na institucionalizao do curso da vida (Groppo, op. cit: 12)
Como o antroplogo aproxima-se de jovens que tm como um dos
traos de comportamento o envolvimento rotineiro com prticas transgressoras
e violentas? Quais as estratgias utilizadas para mover-se em ambientes
qualificados como antro de bandidos e marginais sem correr riscos de perder a
integridade fsica ou mesmo a vida?
28
Acredito que, para um antroplogo, a entrada em no importa qual o
universo investigado sempre movida por uma dose significativa de acasos e
experimentos do tipo ensaio e erro. Funcionamos, de certa forma, maneira
de detetives, sempre dispostos a descobrir novas pistas, persistindo em trilhas,
abandonando outras j longamente percorridas. Creio ainda, como outros
cientistas sociais, que no existe mtodo universal e que a escolha de um
mtodo depende tanto da natureza do objeto quanto tambm da natureza das
questes colocadas pelo pesquisador (Dubet, 1987).
Alba Zaluar (1996), relembrando a poca em que deu incio aos seus
estudos sobre a violncia urbana na cidade do Rio de Janeiro, no comeo dos
anos 1980, chama a ateno para os limites das possibilidades de interao
entre o antroplogo e seus informantes, impostos pela prpria temtica. Este tema no implicava o risco permanente do fazer etnogrfico de virar nativo, permitindo transformaes radicais e poticas na persona do antroplogo. No caso em questo, este vir-a-ser teria como resultado certo um processo penal, uma ficha policial suja e a impossibilidade de obter atestado de bons antecedentes, talvez para o resto da vida. Os outros atrativos e riscos romnticos da etnografia herica, qual seja, o de morrer em pleno trabalho de campo uma morte digna pelo golpe certeiro de um bordume, uma flechada de bravo, indomvel, desconhecido indgena em algum recanto natural do planeta, equivalente do paraso, tambm no tem equivalente entre os riscos advindos de trabalhar com a transgresso metropolitana. Virar presunto, arquivo morto, queima de arquivo no tem, convenhamos, o mesmo apelo ou dignidade (Zaluar, op. cit.: 50).
Na continuidade de sua pesquisa no mesmo bairro popular do Rio de
Janeiro, j no final daquela dcada, as limitaes so tantas que Zaluar
(2004a) no segue mais a praxe da etnografia estive l , admitindo que [...] as barreiras eram to mos fortes que os fatos no puderam ser relativizados na verso e me deparei com a mentira. Voltei para c e deixei l assistentes de pesquisa que no estiveram l porque eram de l. Driblei a mentira, mas a passagem do c para o l ficou restrita ao ouvido que ouvia a gravao das entrevistas feitas por outrem ou ao olho que lia o texto delas (Zaluar, op. cit: 11).
No caso da minha pesquisa realizada em locais onde as estatsticas
revelavam alto ndice de violncia interpessoal homicdios e vtimas de balas
perdidas e com jovens envolvidos em transgresses e delitos a insegurana
que envolvia o trabalho de campo obrigava a pensar em algumas estratgias
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para a sua viabilizao, procurando minimizar os riscos minha segurana
pessoal, assim como a dos meus informantes, sempre na mira da polcia.
Embora estivesse acostumada periferia de Braslia e aos pobres
urbanos, que de modo algum me assustavam, ao contrrio do que acontece
com boa parte das classes altas e mdias brasileiras, fui tomada de
insegurana e medo: uma coisa estudar padres de moradia, estratgias de
invaso de terras, mercado informal de trabalho, renda mnima21, outra ter
como objeto de estudo grupos envolvidos com a criminalidade violenta. Na
verdade, a leitura direcionada de jornais, o contato com a polcia e com jovens
condenados pela lei, os insistentes pedidos de ateno e cuidado por parte de
familiares e amigos nos suscita uma certa parania. Ficamos esperando o
assalto, o roubo, as balas perdidas, a agresso dos drogados. Explicando essa
sensao de medo que subitamente nos assola nas primeiras tentativas de
aproximaes das gangues juvenis, Digenes (1998) ressalta que o medo instala-se em cada um de ns porque somos partcipes de uma ampliada e estratgica engrenagem cuja sustentao o terror. Fechamo-nos na redoma do individualismo, na crena do salve-se quem puder, tentando eliminar qualquer ameaa de perigo nossa suposta estabilidade (Digenes, op. cit: 16).
Mas no cabe relativizar demais. Uma coisa me parece certa: alm de
implicar realmente em alguns riscos, quase impossvel chegar at as turmas
de jovens enleadas em atividades ilcitas por contato direto, nos locais onde
atuam e se concentram. Mesmo podendo conseguir uma aproximao
amistosa, o desconhecimento e desconfiana da minha identidade poderia
produzir uma grande limitao ao nosso dilogo. Desse modo, como estratgia
para iniciar o trabalho de campo, procurei identificar alguns mediadores de
confiana dos participantes de gangues para abrir um primeiro canal de
comunicao com os jovens. Essa identificao foi-me facilitada por pessoas
que desenvolvem trabalhos sociais com ex-integrantes de gangues e que me
apresentaram a jovens adeptos do movimento Hip Hop na sua vertente
musical, o rap.
21 Refiro-me a alguns dos trabalhos que desenvolvi na periferia de Braslia.
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A relao estabelecida com essas pessoas foi de extrema importncia
no sentido de aberturas de portas, de facilitao de contatos e de formao de
uma primeira rede de informantes. Por meio delas, no somente travei relaes
com rappers, conheci pichadores e jovens dados a outras formas de
transgresses, como tambm pude ganhar a confiana de alguns dentre eles.
Revendo minhas notas de campo, constato que o perodo em que essas
pessoas participaram da minha rotina como mediadoras no foi de fato muito
extenso, teve a durao de aproximadamente um ms. Embora tenhamos
mantido comunicaes ao longo da pesquisa, nossas posturas e objetivos em
relao aos jovens divergiam. Era necessrio, portanto, continuar o meu
caminho sozinha. Alm disso, na medida em que comecei a aproximar-me dos
jovens que elas haviam me apresentado, algumas de suas informaes
tornaram-se bastante suspeitas: jovens que nunca tinham passado pelo CAJE
(Centro de Atendimento Juvenil Especializado), rgo vinculado Secretaria
de Segurana Pblica, me foram introduzidos como sendo perigosos
homicidas condenados pela lei, traficantes, assaltantes, jurados de morte, etc.
Outros que me foram apresentados como regenerados continuavam
engajadssimos em prticas delinqentes.
Vrios membros de grupos de rap tm uma trajetria de vida marcada
por um passado no qual o envolvimento direto com gangues e prticas de
violncia esteve presente. O convvio com esses rappers foi um grande
facilitador da aproximao de jovens que ainda participam do mundo do
crime. Tambm permitiu ajudar na compreenso de um conjunto de idias e
valores difundido entre esses jovens, funcionando como intrpretes de mapas
e cdigos socioculturais (Velho, 2004). Assinala-se que os grupos de rap, alm
de atuarem em territoriedades contguas ou superpostas s das gangues,
partilham com essas turmas uma mesma identidade scio-econmica e cultural
e, sendo a voz da periferia, tal como se auto-definem, procuram expressar,
por meio da msica, as principais dificuldades que os jovens enfrentam em seu
cotidiano, fazendo do preconceito, da marginalidade e da violncia que cercam
suas vidas temas constantes e inspiradores de seus versos. Portanto,
incorporar os participantes do movimento Hip Hop como informantes inseriu-se
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numa perspectiva de continuum, isto , gangues, galeras e grupos de rap,
ainda que guardem especificidades, foram tratados como partes entrelaadas
de um imaginrio sobre a vida e vivncia dos jovens da periferia urbana da
capital.
Uma outra estratgia de pesquisa foi utilizar a escola como canal de
acesso aos jovens. Pelos dados obtidos por meio de entrevistas e conversas
informais, integrar uma gangue, em Braslia, no era sinnimo de estar
necessariamente fora da escola. Entrando em contato com as Delegacias
Regionais de Ensino de Ceilndia, Samambaia e Planaltina, foram-me
apontados estabelecimentos escolares onde a ocorrncia de incidentes
envolvendo disputas e rivalidades entre gangues faziam parte da rotina. Nas
escolas, a partir das falas colhidas em grupos de discusses formados
artificialmente com jovens que levantavam suspeitas, entre profissionais de
ensino, de envolvimento com gangues e galeras, e tomando como eixo
norteador das conversas as temticas violncia e juventude, tentei formar um
panorama das preocupaes, vises de mundo e formas de sociabilidade dos
jovens da periferia de Braslia, assim como apreender suas percepes sobre
os modos de participao da juventude em grupos identitrios e territoriais. A
utilizao da tcnica de Grupo Focal22, ou grupo de discusso, um recurso
22 A tcnica de Grupo Focal ganhou fora nas cincias sociais por propiciar a coleta, em pouco tempo e em profundidade, de um volume importante de informao sobre os valores, atitudes, crenas e percepes do grupo ou populao investigados. Trata-se, segundo David Morgan (1988), de uma ferramenta que viabiliza o acesso, por meio da interao grupal, s vises e aos dados que dificilmente seriam obtidos sem a situao peculiar de troca e debate. Desde sua origem, nos anos 40, a tcnica busca incorporar o processo de influncia mtua das opinies e atitudes entre membros de grupos. O trabalho com a tcnica de Grupo Focal faz emergir tanto os aspectos cognitivos - opinies, influncias, idias - quanto os interacionais - conflitos, lideranas, alianas e as vivncias singulares dos indivduos e do grupo de referncia. Para conhecer detalhes sobre o mtodo e tcnica de Grupo Focal ver tambm Krueger (1988), Stewart (1990) e Simard (1989). Vejo muitos pontos de convergncia entre o mtodo do Focus Groups, ou grupo de discusso, com o mtodo de interveno sociolgica, do qual o trabalho Dubet, La Galre : jeunes en survie, comentado na seo precedente, um dos melhores exemplos de sua aplicao. Mas, se por um lado, os dois mtodos em muito se aproximam em termos de operacionalizao, no fundamento de suas concepes ganham larga distncia: no mtodo de interveno sociolgica h o compromisso militante do pesquisador, que deve intencionalmente conduzir o grupo a um distanciamento de seu discurso, fazendo com que se interrogue e lance um olhar crtico sobre suas prticas. Tendo esse objetivo como um dos centrais da pesquisa, o pesquisador no somente registra e observa a conduta do grupo, mas intervm, submetendo constantemente suas anlises ao grupo concernente. Para uma apresentao completa desse tipo de abordagem ver Touraine (1974). Para uma crtica ao mtodo ver Amiot (1980).
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que possibilita a interpretao e reinterpretao de diversas realidades vividas
e sentidas pelos atores. Partindo de uma estruturao dialgica, cabe ao
pesquisador assumir uma atitude de escuta, de abertura, habilitando-o a
recolher de forma o mais neutra possvel as crenas, atitudes, valores e
diferenas de percepes do grupo investigado. A validade deste mtodo que
ele permite recolher as percepes dos atores sociais, livre de idias
preconcebidas e de hipteses preestabelecidas. As categorias e os conceitos
analticos so construdos a partir dos discursos, na compreenso e explicao
de determinados comportamentos sociais, na anlise de suas causas e efeitos,
em que cada ator incitado a participar com sua histria, expressando o
entendimento de cada situao colocada em seus prprios termos.
A um antroplogo, pode causar estranheza essa idia de compor grupos
de discusses em escolas. Ser que essa tcnica convm para o tipo de
realidade estudada? Como colocar certo nmero de jovens numa espcie de
laboratrio e querer, a partir da, compreender a estrutura das gangues?
Afinal, onde fica o contexto cultural? Como saber se o discurso ou no
endereado a algum de fora? Questes pertinentes que podem ser
formuladas para uma pesquisadora que tinha como propsito realizar uma
leitura das gangues com aporte terico antropolgico e que sempre
reconheceu, como Katz (1986), que nenhuma tcnica de coleta de dados
neutra, ao contrrio, possui uma leitura que se faz da cincia e de seus
modelos tericos.
Nos primeiros contatos travados nas escolas, procurava explicar muito
bem e em detalhe a temtica que vinha desenvolvendo. Dizia que procurava
reunir jovens que os professores suspeitavam que aprontassem fora dos
muros da escola, que no estava interessada em violncia na escola, em
problemas de conduta e de rendimento escolar, que gostaria de formar grupos
homogneos em termos de idade, que no necessitava necessariamente de
homogeneidade em termo de sexo, que as entrevistas durariam no mnimo
duas horas e que gostaria de conversar somente com quem tivesse vontade.
Aos poucos minhas explicaes foram deliberadamente tornado-se mais
sumrias, resumindo-se quase to somente s exigncias do perfil e
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constituio dos grupos, o que era uma estratgia para evitar introdues
totalmente equivocadas aos jovens, como no deixou de acontecer. Exemplo
disso que fui apresentada para alguns grupos como palestrante do tema
juventude e violncia, como algum que vinha conversar sobre seus
problemas na escola, na famlia, sobre drogas. Mal ou bem introduzida, no
raro fui confundida com psicloga, assistente social, jornalista, polcia,
professora, o que virou uma marca do trabalho de campo. Com o tempo
acostumei-me, sabia que no final das contas eles, os jovens, ou ao menos a
maioria deles, ficavam em dvida se eu realmente me enquadrava em alguma
dessas categorias. Os que absolutamente duvidavam de minha identidade,
sempre tiveram a liberdade de abandonar a entrevista. E no fcil para um
pesquisador assistir a batida em retirada de um grupo inteiro, como duas vezes
me aconteceu.
Descobri, a partir de relatos contundentes acerca da violncia policial,
que um dos maiores problemas dos jovens era a polcia. Eu dizia que
escreveria um livro sobre eles, que garantiria o anonimato para proteg-los e
que eles podiam inventar um nome, que registraria a conversa em gravador,
autorizada claro, porque era humana e minha memria no poderia reter
todas as suas falas. Vale dizer que tal atitude funcionava como uma faca de
dois gumes: se, por um lado, era uma forma de deixar claro que eles podiam
confiar em mim e que eles no corriam o risco de serem denunciados polcia,
por outro, constitua numa forma de diminu-los em importncia, ao menos,
assim, muitos jovens me fizeram crer. Afinal, se escreveria um livro sobre eles,
porque no revelaria suas identidades? Quanto mais novos eram os
integrantes do grupo, mais a questo se colocava, independente ou no do
engajamento dos jovens em atividades delinqentes.
Algumas vezes, minhas perguntas pareciam aos jovens to estpidas e
bvias que, em meio s entrevistas, alguns declaravam que dificilmente eu
poderia fazer parte da polcia. Caso se tratasse de polcia feminina, conheceria
melhor as grias, estaria melhor inteirada das situaes narradas, da lngua
local e no os interromperia tanto para perguntar O que voc quer dizer
quando fala ... ?, Me explica, como essa histria ... ?. No entanto, essas
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indagaes, aparentemente bvias, normalmente desencadeavam uma srie
de narrativas que me permitiam conhecer detalhes das experincias dos
jovens. H. Becker (1985), em seu estudo sobre os outsiders, ao falar do uso de
grias entre seus informantes, chama a ateno para a necessidade do
pesquisador, mesmo conhecendo o significado de certas expresses, insistir
nas explicaes para perceber a lgica desenvolvida por diferentes atores
sociais. Em outra obra, onde trata mais precisamente de questes relativas a
mtodos, Becker (1994) tambm afirma o quo relevante procurar saber
sobre o como. As perguntas que sondam detalhes concretos de eventos e sua seqncia produzem respostas que sero menos ideolgicas e mitolgicas e mais teis para a reconstruo de vivncia e eventos passados. Nesse sentido, perguntar como sempre mais rico do que perguntar por que, at porque por que? transfere para o entrevistado um trabalho analtico que o prprio pesquisador devia estar fazendo (Becker, op. cit:: 146).
Para meu espanto, na primeira entrevista em escolas, alm do prazer
em falar uma das caractersticas de comportamento com o qual venho me
deparando depois que iniciei minhas pesquisas sobre juventude , os jovens
revelaram bastante familiaridade com o tema gangue. Contavam da
existncia de muitas em sua cidade e de seus envolvimentos pessoais com
prticas delinqentes. Falavam da violncia em seu cotidiano, da relao que
tinham com a polcia, do que significava ser jovem de periferia. O roteiro
previsto, elaborado a partir das primeiras entrevistas realizadas, era seguido
sem praticamente minha interferncia, flua nas falas e discusses
apaixonadas travadas entre eles. Friso que esse roteiro, embora mantendo
uma estrutura de idias bsicas, foi vrias vezes modificado no curso da
pesquisa de campo em funo da lgica e linguagem com as quais os jovens
organizavam seus discursos, como tambm em funo de novos temas que
paulatinamente iam sendo introduzidos.
Assim como com os rappers e muitos outros jovens entrevistados fora
do mbito escolar, observei que um nmero significativo dos jovens
entrevistados nas escolas narrava suas experincias em tempo pretrito. Esses
depoimentos no passado, somados aos daqueles jovens que continuavam
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engajados em prticas criminais, me ajudaram a ampliar o panorama da
realidade dos grupos juvenis denominados gangues.
Ao final de cada encontro sempre perguntava aos jovens sobre o que
eles achavam do rap. Eles se desmanchavam em sorrisos: o rap fala a
verdade, nada fantasiado, a voz da periferia. E passavam a cantar no
maior entusiasmo. Em seguida, pediam-me para escutar a gravao da
entrevista. Muitos estavam tendo a oportunidade de ouvir pela primeira vez o
registro de suas vozes e no escondiam a fascinao com que viviam esta
experincia.
Ao trmino do trabalho de campo nas escolas, meus dois gravadores
estavam inteiramente destrudos. A presena de um gravador nas entrevistas,
embora no constrangesse as falas, tambm nunca passou despercebida, pois
o colocava no centro das rodas de discusso. Terminado um lado da fita, no
raro a pessoa com a palavra voltava a repetir as ltimas palavras, esperando
que eu ajustasse o gravador de modo a garantir o registro de sua fala. Alguns
jovens, mais inquietos, de vez em quando o chutavam longe, simulando uma
situao de no intencionalidade e de profundo lamento pelo ocorrido, o que
sempre encarei com muito bom humor e como parte do ethos adolescente.
Descobri que minhas entrevistas, sem que isso tivesse sido proposto
como um dos objetivos de pesquisa, diferentemente do que intencionalmente
propem Dubet (1987) em seu estudo sobre as galres francesas, revelaram-
se como um momento de reflexo para os jovens sobre suas condutas, seu
dia-a-dia na periferia, suas condies de pobreza e de ser jovem, por
exemplo.
Sempre dizia, ao trmino desses encontros, estar disposta a continuar a
ouvi-los, que esperava que isso pudesse se realizar em breve. E, de fato, dei
prosseguimento, individual ou coletivamente, a vrias entrevistas, iniciadas
com vinte e quatro grupos formados nas escolas, com uma mdia aproximada
de oito participantes em cada um. Esse nmero de grupos entrevistados
correspondeu ao critrio de saturao. Quando percebi que as entrevistas
comearam a ficar repetitivas e que havia uma densidade nas narrativas, decidi
que era o momento de parar de formar esses grupos de discusses. Os
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pontos invariantes de abordagem, retomando os termos de Geertz (1973),
podiam ser melhor aprofundados na observao direta dos jovens fora do
mbito escolar.
Assim, ciente de que a inteligibilidade dos significados culturais das
experincias, prticas e comportamentos dos jovens dificilmente poderia ser
alcanada somente a partir das formulaes discursivas produzidas em grupos
constitudos nas escolas e diante da dificuldade de chegar at as gangues por
contato direto, propus, ento, como estratgia, apoiar-me em alguns
informantes identificados nos grupos de discusso para me inserir em espaos
no institucionalizados e potencializar a riqueza da observao direta. Portanto,
uma das vantagens que a formao dos grupos de discusses trouxe, alm da
possibilidade de coletar um volume considervel de informao sobre os
valores, atitudes, crenas e percepes dos jovens, foi o contato com
informantes chaves com quem estabeleci uma relao fora do ambiente
escolar. Estes, assim como os rappers, tornaram-se importantes mediadores
de confiana dos participantes das gangues.
Os jovens que expressaram o desejo de estender suas falas sempre
preferiram faz-lo na rua, longe de colegas de escola e, principalmente, dos
profissionais de ensino. Alm disso, na rua podiam apresentar-me os
companheiros de aprontao, mostrar-me melhor parte de seu cotidiano, os
lugares que costumavam freqentar, as pichaes, as armas, enfim, o lado que
consideravam positivo e o lado adverso do mundo da periferia. O convvio com
esses jovens na rua e em outros espaos naturais de sociabilidade revelou
aspectos de extrema importncia em termos da dimenso cultural dos fatos
narrados, de cdigos de relao e dos valores que fundamentam suas idias e
condutas23.
Imediatamente ocorre-me o exemplo da relao que mantm com a
polcia. Objeto de um discurso pleno de raiva e revolta, a polcia, diziam os 23 Lepoutre (1997), em estudo realizado no contexto da periferia parisiense, explora com bastante perspiccia o tema da integrao do jovem, particularmente do adolescente, ao sistema de valores da cultura das ruas. Em diferentes pontos de seu trabalho, o antroplogo procura assinalar que, em se tratando de pesquisas sobre jovens, de extrema importncia situar os discursos com referncia ao universo da rua, local privilegiado de sociabilidade juvenil.
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jovens nos grupos de discusses, era parte de sua rotina, sendo que as
abordagens policiais no tinham hora nem lugar e aconteciam cercadas de
brutalidade e maus tratos. Tive a oportunidade de presenciar algumas dessas
abordagens e discuti-las, logo em seguida, com os jovens concernidos. Um dos
problemas fundamentais para os jovens, articulado imediatamente aps a
retirada da polcia, no era exatamente a brutalidade da revista, que no
deixava de ser comentada, mas a situao de exposio pblica a que eram
sujeitados, entendida como uma enorme humilhao. No que essa
humilhao no estivesse revelada nas falas colhidas nos grupos constitudos
nas escolas, mas a vivncia in situ possibilitou-me compreender melhor qual a
dimenso da mesma no drama que constitui a relao entre os jovens e a
polcia.
No convvio num espao no institucionalizado, como a rua, tive
oportunidade de conhecer jovens que h muito haviam deixado a escola, que
passavam o dia pulando de esquina em esquina, de praa em praa,
conversando um pouco ali e aqui, fumando maconha com amigos daqui e de
l. Tive tambm a chance de perceber que dificilmente os jovens deixam-se
entrevistar sozinhos, que, freqentemente, buscam formar um grupo, dando a
entender que o conjunto, a voz coletiva, uma maneira usual de colocarem-
se no mundo. Presenciei ainda o trfico de drogas, feito na minha vista, mas
sempre negado com tal.
O que quero deixar claro o fato de que na rua e em outros espaos
naturais de sociabilidade, alm de minha imaginao e intuio estarem
sempre sendo colocadas a prova, obrigando-me a constantes improvisaes, o
discurso dos jovens era posto em prtica, era atualizado em situaes bastante
concretas que ora o afirmava, ora o contradizia, e, no restam dvidas, sempre
o enriquecia.
Assim, o material etnogrfico da pesquisa foi colhido a partir de um
procedimento metodolgico que combina a observao direta com a recolh