Post on 23-Jan-2016
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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO
INSTITUTO DE ARQUITETURA E URBANISMO DE SÃO CARLOS
ENTRE AS “EXPOSIÇÕES DE BILHETERIA” E OS “MUSEUS OUTDOORS”: UMA ANÁLISE DO
IMPACTO NEOLIBERAL NO ESPAÇO ARTÍSTICO
IAU 5907 TEORIAS E CONCEPÇÕES DA MODERNIDADE
Profa. Dra. Cibele Saliba Rizek
9412322 Guilherme Vendramini Cuoghi
O7 / 2015 São Carlos
ENTRE AS “EXPOSIÇOES DE BILHETERIA” E OS “MUSEUS OUTDOORS”:
UMA ANÁLISE DO IMPACTO NEOLIBERAL NO ESPAÇO ARTÍSTICO
CUOGHI, Guilherme Vendramini1
Os espaços destinados às exposições de obras artísticas, de peças teatrais, de concertos musicais e demais manifestações culturais sempre tiveram, de modo geral ao longo da história, presença marcante na vivência das grandes cidades, sendo figuras ímpares na construção da identidade cultural de determinada sociedade. Tais espaços metamorfoseiam-se ao longo das décadas acompanhando as transformações políticas, sociais e culturais num movimento onde o que muda não é somente o conteúdo exposto – transpondo obras novas no lugar das antigas – mas, principalmente, as relações estabelecidas entre o público e a obra. Na via contrária, pode-se dizer também que tais relações corroboram para os desdobramentos da produção artística e cultural. Em suma, o espaço expositivo é, em si, um dispositivo que, ao mesmo tempo em que reflete determinado momento cultural (presente), concatena seu momento posterior (futuro) pela abertura ao público e pela potencialidade crítica imbricada ao espaço. Desta maneira, ele transforma e transforma-se constantemente.
Só no último século, os museus e galerias de arte se transformaram em palco
importantíssimo no desenvolvimento das artes e da cultura. Na primeira metade do
século, a crença da transformação social pelo viés da transformação cultural fez com
que tais recintos assumissem posição de grande importância no Movimento Moderno,
servindo não só como meio de divulgação como também instrumento de
implementação de suas ideologias. As exposições e atividades proporcionadas pelas
“máquinas expositivas” tinham como um de seus objetivos a formação do homem
moderno2. Contudo, os diálogos travados entre o espaço de exposição, as obras e
contato com o público acabaram contribuindo para avanços tanto na arte quando no
próprio espaço expositivo. Nas palavras do crítico de arte Brian O’Doherty, “a história
do modernismo é enquadrada por esse espaço [galeria] intimamente; ou melhor, a
história da arte moderna pode ser correlacionada com as mudanças nesse espaço e na
maneira como o vemos”3.
Se a primeira metade do século XX há certa insistência da arte e da arquitetura modernas como ferramentas de transformação social, colocando a arte dentro de um rígido controle da produção cultural, debatendo-se o que era ou não arte (o que se encaixa ou não nas premissas do movimento moderno), o que se vê na segunda metade do século XX é um grande movimento de resistência, por parte dos artistas, às instituições, à racionalidade e ao determinismo unilateral (ou “universalidade
1 Guilherme Vendramini Cuoghi é bacharel em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal de
Uberlância (UFU), mestrando do programa pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo. E-mail: gvcuoghi@usp.br 2 Para melhor análise do papel dos museus na divulgação e implementação da ideologia moderna no
Brasil, ver LOURENÇO, Maria França. Museus acolhem o Moderno. São Paulo: Editora EDUSP, 1999. 3 O´DOHERTY, Brian. No interior do cubo branco: a ideologia do Espaço da Arte. São Paulo, Martins
Fontes, 2002, p.2-3
moderna”) até então vigentes. As neo-vanguardas artísticas da década de 19604 representam, em síntese, este momento de contracultura, de ruptura com as amarras institucionais e mercadológicas em favor da diversidade e da heterogeneidade na produção cultural e artística. Para isso, deixam de lado os meios tradicionais, como pintura e escultura, para lançar possibilidades inéditas no campo artístico por meio de happenings, assemblages, performances, instalações, environments e obras de site-especific.
Contudo, de uma maneira ou de outra, a arte produzida em meados dos anos
60 não deixou de se relacionar com o espaço da galeria, pelo contrário, o que ela fez
foi assumir uma postura reflexiva ante ao espaço expositivo, com obras/propostas que
ora dialogassem criticamente com os aspectos físicos da galeria ora com a estrutura
cultural definida pelas instituições de arte. Para a curadora e crítica de arte Miwon
Kwon, obras como o Condensation Cube (1963-65), de Hans Haacke – onde o artista
enfatiza a interferência da umidade da galeria no objeto de arte Minimalista puro – ou
os recortes na parede da galeria de Lawrence Weiner (1968) – que remove o reboco
branco da parede a fim de revelar “a realidade básica por trás do cubo branco
‘neutro’“ –, entre outras, são exemplos de obras que se encaixam no primeiro caso,
pois denotam a tarefa de expor os aspectos obscurecidos da instituição através da
relação literal com a arquitetura do espaço expositivo5.
Já o segundo caso, pode ser exemplificado por obras de artistas como Michael
Asher e Mierle Laderman Ukeles. A obra sem título executada por Asher em 1974 para
Claire Copley Gallery, em Los Angeles, se trata da exposição da sala administrativa da
galeria: uma composição que conta com a presença do diretor/curador sentado frente
a uma mesa, com papeladas de documentos e estantes ao redor. A ação
aparentemente simplista de Asher – de quem derruba um cenário de papelão de uma
peça de teatro mostrando seu backstage – revela ao espectador o sistema ao qual o
artista e arte estão sujeitos: a negociação econômica, mercadológica, social e política.
Na série Maintence Art *“Arte de Manutenção”+ (1973) de Mierle Laderman Ukeles
para o museu Wadsworth Atheneum em Hartford, Connecticut, a artista realizou
performances que consistiam na manutenção do museu por quatro horas em dias
distintos, onde ela literalmente se encarregava de manter a pureza do espaço
expositivo: esfregando, lavando e limpando com as próprias mãos o chão da parte
interna e externa do museu. Segundo Kwon, a ação de Ukeles possui postura crítica
sobre os afazeres domésticos relacionados à figura da mulher – arrumar, limpar, lavar
e tirar a poeira – ao mesmo tempo em que revela a extensão intocada da auto-
presentação do museu, onde seus espaços perfeitamente brancos e imaculados,
emblemáticos à sua "neutralidade", são estruturalmente dependentes do trabalho 4 Apesar da produção de arte neo-vanguardista permear as décadas de 1950 até meados de 1970,
muitos autores adotam o período dos anos 60 como síntese para tratar deste período da produção de arte. 5 KWON, Miwon. One place after another: Site Specific art and locational identity. Cambridge:
The MIT Press, 2002, p. 14.
oculto e desvalorizado de manutenção e conservação diária. “Ao tematizar essa
dependência, Ukeles colocou o museu como um sistema hierárquico de relações de
trabalho e problematizou a divisão social e de gênero entre as noções de público e do
privado”6. Neste sentido, é possível acrescentar que Ukeles, ao expor as questões
hierárquicas de serviços relacionados ao museu, expõe criticamente a visão que este
tem sobre o artista enquanto prestador de serviço à instituição. Assim,
enquanto o Minimalismo desafiava o hermetismo idealista do objeto de arte
autônomo ao atribuir seu significado ao espaço de sua apresentação, a
posterior abordagem crítico-institucional [das neo-vanguardas] complicou
ainda mais esse deslocamento ao enfatizar o hermetismo idealista do espaço
de apresentação em si7.
Por outro lado, a forte crise econômica das décadas de 60 e 70 atingia as
cidades do regime capitalista e grande parte dos museus e galerias foram afetados,
fechando suas portas. Os artistas se viam, então, obrigados a procurar espaços
alternativos e, alguns deles, acabaram encontrando esta possibilidade nos subúrbios
de Nova York; mais especificamente, na região ao sul da Houston Street, conhecida
como SoHo. Com o baixo recolhimento de impostos e a insuficiência de recursos, a
megalópole americana não tinha como cuidar de desabrigados ou reformar os edifícios
em estado precário de conservação. Numa tentativa de reverter essa situação, a
prefeitura decidiu permitir que os artistas ocupassem os armazéns vazios, dentre
outros edifícios abandonados, como estúdio ou galeria em regiões suburbanas, tais
como o SoHo8. Neste contexto, surgiram galerias como a 112 Greene Street que reunia
artistas plásticos – como Gordon Matta-Clark, Robert Smithson, Christo, Hélio Oiticica
–, músicos, poetas e membros da comunidade local para mancomunar performances e
intervenções no bairro, a fim de promover festas e eventos solidários e travar
discussões sobre arte, sociedade e, sobretudo, política9. Tais galerias funcionavam
como um grande atelier voltado para a rua, misturando-se com a cidade.
6 Idem, 2002, p. 19.
7 Idem, 2002, p. 13
8 CRAWFORD, Jane. Gordon Matta-Clark uma comunidade utópica: o Soho na década de 1970. In:
CUEVAS, Tatiana; RANGEL, Gabriela (ed.). Gordon Matta-Clark: desfazer o espaço. Catálogo de Exposição, 11 de fev-04 de abr. 2010. São Paulo: Museu de Arte Moderna de São Paulo, 2010, p. 46. 9 Vale lembrar, que o contexto da guerra do Vietnã dividia os interesses sociais dos políticos nos Estados
Unidos. Segundo Jane Crawford, “os Estados Unidos encontravam-se então mergulhados numa guerra impopular, que era incapaz de ganhar e que, no fim, era difícil (senão impossível) de entender completamente. Além disso, [...] o governo tentava ocultar, enganar e manipular informações sobre a guerra, para conseguir apoio da população” ao mesmo tempo em que obrigava os jovens ao serviço militar no Vietnã – em circunstâncias horríveis, muito longe daquilo que o governo divulgava nas televisões ou jornais. A incredulidade americana às propagandas do governo e às instituições em geral, afastaram as pessoas da opinião oficial. “Criaram-se então diversas organizações estudantis contra a guerra, tais como o SDS (Students for a Democratic Society), e organizaram-se passeatas pacíficas de protestos e piquetes, aos quais o governo respondia frequentemente com mão dura e muita violência. Em outras palavras: os Estados Unidos declararam guerra a seus próprios filhos”. Idem, 2010, p. 44-45
Desta relação, surgiram obras como Dumpstep Duplex (1973), em que Gordon
Matta-Clark monta em frente às galerias Holly Solomon e 112 Greene Street uma casa
feita a partir de um enorme cubo de lixo e convida vários de seus amigos para uma
performance, “num esforço para chamar atenção perante as difíceis circunstâncias
enfrentadas pelos mendigos”10. A união de diferentes públicos (artistas, desabrigados
e moradores) promovida pelo objeto artístico tinha a intenção de aliviar, mesmo que
momentaneamente, as tristes condições dos inúmeros sem-teto vivendo no SoHo.
Dumpstep Duplex ilustra, de maneira sintética, as posturas adotadas por diferentes
artistas residentes no SoHo, onde as inovações artísticas surgiam pela liberdade da
produção e do contato ativo com a comunidade na busca de alternativas que
pudessem restaurar a cidade nos tempos de crise. As galerias e produções artísticas no
SoHo borravam a distinção entre arte, sociedade e cidade.
Aqueles artistas que tiveram a sorte de residir em Nova York durante as décadas de 1960 e 70 fizeram parte de uma comunidade artística única por sua íntima convivência, algo que lhes permitiu gozar de total liberdade para desafiar e subverter qualquer dos paradigmas existentes no mundo da arte. Eram anos de enorme energia e criatividade, que serviram para alargar os parâmetros e a linguagem da arte11
Enquanto parte da produção vanguardista dos anos 60 e 70 alcançou novos
rumos pela abertura e liberdade dada aos artistas pelas instituições – como nos casos
da arte de cunho crítico-institucional explanadas por Miwon Kwon –, por outro, os
desdobramentos da arte só foram possíveis quando o espaço expositivo foi cedido por
completo aos artistas; ou seja, quando o gerenciamento, a manutenção, a curadoria,
os objetivos almejados entre público e obra: tudo estava sobre a administração dos
próprios artistas – como no caso das galerias do SoHo. As discussões e produções
artísticas deste período alcançam grande magnitude até hoje no contexto
contemporâneo e, por isso, é inegável que a liberdade dada às expressões artísticas e
aos espaços expositivos foi a protagonista na promoção do campo cultural e artístico.
Porém, tal liberdade às artes só fora possível pelo papel desempenhado pelo Estado
no contexto político do welfare state (ou “Estado do Bem-Estar Social”)12 que, além de
distribuir bolsas a jovens artistas e financiar os museus e galerias de arte (de modo
direto ou indireto, por renúncia fiscal), contribuiu para à experimentação e a
democratização dos valores culturais ao designar a responsabilidade curatorial a
críticos, historiadores, artistas e representantes da comunidade.
Contudo, a pressão da crise econômica na virada dos anos 70 para os 80,
culmina na transformação do cenário político-econômico e o welfare state cede lugar
10
Idem, p. 52 11
Idem, p. 44 12
O welfare state ou “Estado do Bem-Estar social” pode ser resumido como a postura de organização política e econômica que coloca o Estado como principal agente regulador da vida social e econômica.
ao neoliberalismo, operante até os dias atuais. Se os anos 60 e 70 são marcados pelos
grandes avanços na produção cultural e artística, no neoliberalismo isto muda
completamente. O financiamento artístico sai da alçada do poder estatal e é
transferido para as iniciativas privadas. Nesta mudança de contexto a arte
descompassa e, para sobreviver, regressa aos meios tradicionais, aos interesses de
mercado e ao consumo; tal como lamenta Jane Crawford, artista e companheira de
Gordon Matta-Clark no SoHo:
Durante os anos 1980, o dinheiro e a fama escolheram caprichosamente alguns artistas, enquanto outros permaneceram ignorados. Já não era possível sair a campo em igualdade de condições. Os mesmos artistas que alguns anos antes trabalhavam e viviam juntos, agora estavam permanentemente segregados pelas etiquetas do sucesso e do fracasso, da fama e do esquecimento. A arte voltou aos meios mais tradicionais, como a pintura e a escultura, no interior dos espaços institucionais. [...] Ante os novos mercados surgidos na Europa e nos Estados Unidos, o mundo da arte tornou-se comercialmente orientado, a própria arte converteu-se em uma atividade mais mercantil e menos idealista, e avida democrática em comunidade ficou definitivamente como uma lembrança do passado.13
O TRIUNFO DA RACIONALIDADE NEOLIBERAL
A situação descrita anteriormente no SoHo em Nova York partilha o cenário
econômico e socail alarmante sentido por grande parte dos países capitalistas nos
períodos de 60 e 70. A alta dos barris de petróleo (crise do petróleo de 1973) e a crise
econômica e social do regime “fordista”14 somam-se como fatores responsáveis pelo
decréscimo das taxas de lucro, de crescimento, de acumulação de capital e de
investimento que acabaram se refletindo no aumento do número de desempregos.
Este cenário caótico, de insatisfação social e política regados pela crise financeira,
acabou se tornando a oportunidade perfeita para a elite conservadora de direita
colocar em xeque a gestão socialdemocrata do welfare state e implantar o
neoliberalismo como retomada ao poder.
O primeiro ataque da direita ao welfarismo se dá pela questão da
ingovernabilidade das democracias, conforme manifestado pelo relatório intitulado
The Crisis of Democracy *“A Crise da Democracia”+, encomendado pela Comissão
13
Idem, p. 57 14
O princípio fordista concilia-se aos do taylorismo com regras de distribuição favorável do aumento dos valores no acréscimo dos salários reais (indexados aos preços e ganhos de produtividade). Ou seja, da evolução dos salários em função do valor da mercadoria. Esta articulação da produção com o consumo de massas se apoiava, além disso, no caráter relativamente autocentrado – o circuito macroeconômico centrado na base territorial do Estado-nação – desse modelo de crescimento que garantia certa “solidariedade” macroeconômica entre o salário e os ganhos. DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. La nueva razon del mundo. Barcelona: Gedisa editora, 2013. p. 195
Trilateral15 e compartilhada pelos demais dirigentes dos países capitalistas: “Os peritos
convidados para formular o seu diagnóstico em 1975 constataram que os governantes
se tornaram incapazes de governar devido ao envolvimento excessivo dos governados
na vida política e social”16. Segundo Pierre Dardot e Christian Laval, o que os redatores
da Comissão Trilateral se queixavam era do excesso de democracia surgido nos anos de
1960, “a ascensão das reivindicações igualitárias e o desejo de participação política
ativa das classes mais pobres e mais marginalizadas”, o que pode ser resumido como
uma chamada a impor limites às reinvindicações, à democracia política17. A queixa ao
excesso de democracia e de proteção social são apenas algumas das reclamações
alavancadas pela direita neste período, os demais questionamentos sobre as políticas
do welfare state se aprofundavam em insatisfações quanto à regulação keynesiana
macroeconômica, à propriedade pública das empresas, ao sistema fiscal progressivo,
às limitações e restrições do setor privado por regulamentações estritas –
especialmente em matéria de direito do trabalho e representação dos assalariados. Em
suma, as críticas neoliberais resguardavam interesses em usufruir de novas
possibilidades de crescimento, de maior lucratividade e liberdade aos agentes privados
num momento a inflação parecia se convertido em problema prioritário18. Assim, as
fortes críticas contra o Estado somadas às promessas de luta contra a inflação e a
restauração dos lucros colaboraram para o êxito ideológico neoliberal e a retirada do
seu plano da gaveta19.
Pierre Dardot e Christian Laval pontuam o triunfo da política conservadora e
neoliberal no Ocidente na virada dos anos 1980, com a ascensão ao poder de figuras
como Ronald Reagan – eleito presidente dos EUA de 1981 a 1989 pelo Partido
Republicano, conservador, de extrema direita – e Margaret Thatcher – Primeira
Ministra Britânica de 1979 a 1990 e líder do Partido Conservador. Para os estudiosos,
Reagan e Thatcher “simbolizam esta ruptura com o welfarismo da socialdemocracia e a
instauração de novas políticas que se se supunham ser capazes de superar a inflação
galopante, a redução dos lucros e a desaceleração do crescimento”20. Armadas conta
15
A Comissão Trilateral foi uma organização fundada em 1973 por David Rockefeller, cujos membros seletos pertenciam à elite política e econômica mundial dos Estados Unidos, Europa e Japão. 16
DARDOT; LAVAL, 2013, p. 194-195 17
Idem p.195 18
Idem p. 189. 19
Apesar do seu aparecimento no cenário político a partir dos anos 1980, vale ressaltar que o neoliberalismo já vinha sendo elaborado e discutido como reforma política. O termo “neoliberalismo” fora cunhado pelo sociólogo e economista alemão Alexander Rüstow em 1938 na busca de respostas para a crescente influência dos ideais socialistas e fascistas na Europa. Contudo, a data de origem do neoliberalismo, para alguns autores, data de 1944 com a publicação do livro O Caminho da Servidão, do economista austríaco Friedrich Rayek – que três anos mais tarde irá criar juntamente com Milton Friedman, Ludwig von Mises, Michael Polanyi, Karl Popper e Lionel Robbins a Mont Pelerin Society, uma organização em defesa do neoliberalismo. AUGUSTIN, André Coutinho. O neoliberalismo e seu impacto na política cultural brasileira. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS CULTURAIS, 2., 2011, Rio de Janeiro. Anais... Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 2011 20
DARDOT; LAVAL, 2013, p. 189
a inflação e a restauração dos lucros, as políticas econômicas e sociais instauradas
neste período marcham rumo ao retorno ao mercado (ou livre mercado). Uma vez que
neste tipo de política, predomina-se a ideia de que
[...] para os mercados funcionarem bem, deve se reduzir os impostos, diminuir
o gasto público, chegando a limitar sua evolução mediante regras
constitucionais, transferir ao setor privado as empresas públicas, restringir a
proteção social, privilegiar as soluções individuais frente aos riscos, controlar o
crescimento de massa monetária para reduzir a inflação, dispor de uma moeda
forte e estável, desregulamentar os mercados, em particular o do trabalho. No
fundo, se o compromisso social-democrata era sinônimo de intervencionismo
estatal, por outro lado o compromisso neoliberal era sinônimo de livre
mercado21.
O triunfo neoliberal nos anos 1980 se embasou nas críticas ao papel
socialdemocrata do Estado, por um lado, e na defesa do consumo, por outro, numa
inversão de valores que substitui a ideia de um problema de mercado, de ordem
capitalista, por um problema de governo – o governo não é a solução, e sim o
problema. Assim, o que se assiste é a uma inversão completa da crítica social:
enquanto que, até os anos 1970, o desemprego, as desigualdades sociais, a
inflação, a alienação e todas as patologias sociais eram relacionadas com o
capitalismo, a partir dos anos 1980 os mesmo males eram sistematicamente
atribuídos ao Estado. O capitalismo já não é o problema, foi convertido na
solução universal22.
Segundo Dardot e Laval, este tipo de política neoliberal é muito mais do que
uma simples restauração do puro capitalismo e do liberalismo tradicional. A lógica
neoliberal traz consigo alterações profundas nas regras de funcionamento do
capitalismo modificando radicalmente o modo de exercício do poder governamental.
Para eles, estas novas regras do sistema econômico “revelam uma subordinação a
certo tipo de racionalidade política e social articulada com a mundialização e
financeirização do capitalismo”23 e passam a afetar as relações sociais. As medidas
neoliberais mais conhecidas, como a privatização das empresas públicas e os
movimentos de desregulamentação econômica, representam esta nova orientação das
regras de jogo que afeta os diferentes capitalismos (nacionais e entre classes). Para
Dardot e Laval, os objetivos alcançados pelo modelo neoliberal – tais como a
desarticulação do Estado social e a privatização – se formaram progressivamente, de
modo estratégico24, através de práticas discursivas e de dispositivos de poder
21
Idem, p. 191 22
Idem, p. 210 23
Idem, p. 190 24
Neste caso, “estratégia” faz referência ao termo “estratégia neoliberal” utilizados por Dardot e Laval para designar o “conjunto de discursos, de práticas e dispositivos de poder destinados a instaurar novas
destinados a modificar os mecanismos econômicos e transformar o comportamento
social25. O domínio cada vez maior do setor privado (pela privatização crescente do
setor público) contribuiu para uma maior liberdade das manobras empresarias,
legitimando a concorrência generalizada26. Esta última foi a grande responsável pela
transformação comportamental entre indivíduos, pois resulta de técnicas e de
dispositivos disciplinares –“sistemas de coerção, tanto econômicas como sociais, cuja
função foi obrigar os indivíduos a governar-se através da pressão da competição, de
acordo com os princípios de cálculo maximizador [relação custo/benefício] e numa
lógica de valorização de capital”27.
O neoliberalismo, portanto, está longe de ser apenas uma operação econômica
alternativa que surgiu para driblar a crise nos anos 1980. Possui uma lógica ampla que
parte do campo financeiro para reordenar as forças políticas e comportamentais em
diferentes níveis – do empresarial ao individual. A racionalidade neoliberal substitui o
interesse público (democrático) pelo interesse privado (individual); favorece o
consumo e o lucro no lugar dos benefícios ao público geral (gerenciamento de riscos);
instaura a competição no lugar da solidariedade. Em suma, a racionalidade neoliberal
atinge os setores mais variados, trazendo consequências preocupantes a cada um
deles, como é o caso da produção cultural e artística.
O projeto político neoliberal, de favorecimento dos setores dominantes, não
ficou restrito à política econômica. Aos poucos ele foi transformando as
demais políticas públicas, entre elas a política cultural28
O NEOLIBERALISMO E A POLÍTICA CULTURAL
Logo que assumiu a presidência dos Estados Unidos em 1981, Reagan procurou
tomar medidas para reduzir pela metade as verbas destinados às instituições de
cultura, como o National Endowment for the Arts (NEA) e o National Endowment for
the Humanities (NEH), e extinguir o Institute of Museum Service (IMS) sob a alegação
de que o desenvolvimento das artes estavam orientados para objetivos sociais e não
artísticos, e o governo deveria financiar apenas a alta cultura29. Tais medidas foram
barradas pela mobilização da comunidade artística, mas não sobreviveu aos anos
condições políticas, de modificar as regras de funcionamento econômico e de transformar as relações sociais”. Idem, p. 191 25
Idem, p. 197-198 26
“Enquanto que a ordem econômica keynesiana e fordista se baseavam na ideia de que a competição
entre empresas e entre economias capitalistas deveria estar emoldurada dentro de regras fixas comuns
em matéria de taxas de câmbio, políticas comerciais e repartição dos lucros, a nova norma neoliberal
instaurada no final dos anos 1980 coloca a competição/concorrência como regra suprema e universal de
governo”. Idem, p.197-198. Em outras palavras, se dos anos 1930 a 1970 há a contenção da competição,
a partir dos anos 1980 ela é regulamentada. 27
Idem, p. 193 28
AUGUSTIN, p. 6 29
Idem, p.6-7
seguintes. Segundo o economista André C. Augustin, nos últimos anos o orçamento do
NEA foi drasticamente reduzindo, passando a apenas 0,001% do PIB dos Estados
Unidos, o que corresponde a uma porcentagem seis vezes menor do que em 198030.
Por outro lado, Reagan também buscou aumentar o patrocínio privado na
esfera cultural. Num primeiro momento, suas iniciativas restringiram-se às reformas
fiscais onde os empresários poderiam descontar uma parcela dos tributos devidos na
forma de incentivo aos fundos culturais31. O fundo destinado às instituições artísticas e
culturais, como o NEA, fora administrado pelo aliado de Reagan, Frank Hodsoll, no
mesmo período que o primeiro atuou na presidência norte-americana (de 1981 a
1989). A postura administrativa de Hodsoll atuava em defesa da arte comercial; em
suas declarações públicas, frequentemente equiparava os filmes comerciais aos não-
comerciais e sustentava a aproximação do artista ao mercado32. O caso da Inglaterra
não dista das políticas americanas. No mesmo período das mudanças politico-culturais
implantadas por Reagan, o governo de Thatcher anunciou cortes no orçamento do Arts
Council, aprovou a transferência de recursos públicos para a Associação para o
Patrocínio Empresarial das Artes e ainda lançou folhetos de incentivo ao patrocínio
cultural pelas instituições privadas sob o título “The arts are your business” *“A arte é o
seu negócio”+33 – como quem diz para as empresas: “a arte não pertence mais ao
domínio público; agora ela é problema seu”. Lamentavelmente, as orientações
político-culturais assumidas por figuras como Hodsoll, nos Estados Unidos, e Margaret
Thatcher, na Inglaterra, não se restringiram a esses dois países, pelo contrário, suas
ações inspiraram os demais governantes tomando, contudo, diferentes proporções.
No Brasil, as políticas neoliberais foram consolidadas no âmbito cultural em meados dos anos 1990, com a eleição de Fernando Collor de Mello. No pouco tempo que permaneceu no poder34, Collor trouxe consequências desastrosas à cultura: fechou o Ministério da Cultura, substituindo-o por uma secretaria, extinguiu a EMBRAFILME, a Funarte, a Fundação Nacional de Artes Cênicas, entre outros órgãos ligados à cultura35. Como se não bastasse tal desestruturação, o próximo passo de Collor, em 1991, foi decisivo para inibir ainda mais o desenvolvimento artístico e lançar as bases do atual cenário cultural no Brasil – a Lei Rouanet36.
30
Idem, p.7 31
Situação que pode ser ilustrada pelas alterações na Lei de Imposto de Recuperação Econômicas em 1981 que consistia no aumento de 5% para 10% da renda tributável das empresas destinados às entidades caritativas. 32
“Sobre o apoio do NEA os espaços alternativos de arte, *Hodsoll+ disse: ‘a maioria dos artistas gostaria de ter uma galeria comercial, [...] a reputação do artista é feita no mercado’”. WU, 2007, apud AUGUSTIN, 2011, p. 8 33
Idem, p. 8 34
Fernando Collor de Mello assumiu a presidência do Brasil em março de 1990, deixando o cargo em dezembro de 1992 sob o processo de impugnação de mandato (Impeachment). 35
Idem, p. 11 36
A Lei Federal de Incentivo à Cultura, também conhecida como “Lei Rouanet” – em uma “homenagem às avessas” ao filósofo e diplomata brasileiro Sérgio Paulo Rouanet – é a Lei nº 8.313, de 23 de Dezembro De 1991.
Dentre os mecanismos previstos pela Lei Rouanet, destaca-se a possibilidade de
pessoas físicas ou jurídicas poderem destinar parte ou o total dos valores contribuídos
ao Imposto de Renda (IR)37 a projetos culturais, na forma de doação ou investimento.
Para ser beneficiado pela lei, um projeto deve ter a aprovação prévia do Ministério da
Cultura (MinC) e, uma vez aprovado, o autor da proposta é autorizado a captar
recursos para a execução do seu projeto, pois a aprovação não garante que os recursos
necessários para sua aplicação sejam alcançados, apenas que o projeto em questão
esteja disponível para investidores e contribuintes do IR. O resultado disto é que os
projetos culturais verdadeiramente contemplados pela Lei acabam sendo aqueles mais
atrativos à publicidade das grandes empresas, uma vez que estas são as principais
responsáveis pelo investimento massivo e concentrado. Assim, “apesar de [os
projetos] serem públicos, são as empresas (geralmente seus departamentos de
marketing) que decidem quais projetos receberão incentivos e quais não receberão”38.
A Lei Rouanet ausentou o MinC da tarefa de administrar os fundos públicos destinados
à cultura terceirizando-a aos interesses do setor privado.
É importante acentuar que tais posturas adotadas pelo setor privado não
correspondem a estratégias administrativas que se utilizam de brechas legislativas
para seu próprio benefício. A possibilidade de agregar valor à marca por meio do apoio
a uma iniciativa cultural, de aproximar o relacionamento com clientes e atrair novos
clientes por meio do vínculo da sua marca com projetos de valor, de projetar a
empresa nos materiais de divulgação dos projetos, entre outras vantagens, se
encontram explícitas nas campanhas do Estado para incentivar os investimentos
privados em cultura – intitulada “benefícios para quem apoia”.
Diferentemente das manobras adotadas por Reagan ou Thatcher no
investimento privado da cultura do seu país, onde poder público possuía certa
autonomia no destino de aplicação do investimento em cultura – ainda que
administrado por figuras nomeadas pelo interesse privado –, no caso do Brasil é o
poder privado quem assume a tarefa de destinar as verbas arrecadadas para a cultura
e, consequentemente, torna-se o principal responsável pelo desenvolvimento cultural
do país. Em outros termos, com a Lei Rouanet, deixa-se de captar grande parte do
valor destinado aos fundos públicos e sua aplicabilidade nos diversos setores do país,
incluso a cultura, para se transformar em campanha publicitária gratuita: um grande
negócio.
Frente ao grande destaque dado ao interesse privado no destino cultural do
país, cabem as reflexões: Que tipos de projetos culturais são financiados e que
intenções eles carregam? A quem se destinam ou representam: o grande público ou a
37
Apesar dos valores deduzidos pelas empresas no início da Lei serem previstos a máximos 30% e 40, eles chegam a alcançar 66% e 76% em 1997. No mesmo ano, a lei é alterada e a alíquota do abatimento passa a ser 100%. 38
Idem, p.12
elite dominante? E, finalmente: quais consequências estes projetos trazem aos
espaços expositivos e à produção artística?
Segundo Augustin, de 1993 a 2009, o maior número de projetos contemplados
pela Lei Rouanet se concentra no Sudeste do país, correspondendo a quase 80%
recursos captados, enquanto que a as demais localidades, como Norte e Centro Oeste,
ficam bem abaixo, com 1% e 3,2% respectivamente. Uma análise minuciosa revela
ainda que há uma concentração dos recursos dentro de cada região e cidade, onde os
bairros mais ricos são os mais privilegiados – a cidade de São Paulo, por exemplo,
recebeu 46,9% de todos os recursos destinados ao Sudeste em 200939. A distribuição
desigual de recursos acontece pelo interesse empresarial em atingir as regiões onde se
concentra a elite dominante do país – seus clientes de maior importância. Desta
maneira, a aplicação de recursos públicos ao invés de priorizar a parcelas da população
que carece de acesso à cultura, ampliando-a, acaba contemplando as regiões onde
existe naturalmente o financiamento privado à cultura. Em contrapartida, os tipos de
projetos patrocinados são aqueles que atraem a maior concentração de público (ou
“futuros clientes” para as empresas). O evento internacional do Cirque du Soleil
ocorrido em 2005, exemplifica o afastamento da questão da democratização da
cultura e a aproximação com determinada classe social:
[O Cirque du Soleil] Era um evento inacessível para a maioria da população
brasileira, com ingressos variando de R$ 100,00 a R$ 370,00. O Bradesco foi o
principal patrocinador, com 4,3 milhões de reais. Ainda que a totalidade desse
valor tenha sido abatida do imposto de renda, o banco teve o direito de ter seu
nome em todos os materiais de divulgação da turnê, além de garantir que o
primeiro lote de ingressos fosse vendido apenas a clientes Prime Bradesco40.
O Estado não só delega a cultura a uma classe específica da população,
fortalecendo seu caráter de dominação, como se ausenta das decisões referentes ao
tipo de cultura favorecida. Segundo Augustin, “a consequência mais importante do
neoliberalismo não é a ausência de Estado. Pelo contrário, é justamente uma política
realizada através do Estado para restaurar o poder de uma classe”41.
A diminuição da democratização somada à predominância do interesse privado
traz consequências preocupantes à cultura em seus mais variados meios. Concertos
musicais, espetáculos de dança, peças teatrais, mostras de cinema42, obras artísticas e
39
Idem, p. 14 40
Idem, p.15 41
Idem, p. 5 42
Quanto ao cenário cinematográfico, vale o destaque a Lei Audiovisual de 1993 (Lei Federal 8.685/93) que, segundo Augustin, “[...] é ainda mais ‘generosa’ com os empresários: além do investimento ter 100% de benefício fiscal, ainda pode ser lançado como despesa operacional, chegando a um incentivo de 125%. Ou seja, se com a Rouanet a empresa faz propaganda de graça, com a Lei do Audiovisual ela ainda recebe dinheiro extra do governo. Além disso, a empresa investidora tem direitos sobre os lucros do filme, na proporção do valor investido”. Idem, p.13.
espaços expositivos passam a ter seu valor cultural é medido pelo sucesso de
bilheteria. Neste novo cenário onde o que impera é o atrativo do público e a
divulgação da empresa, não há espaço para grupos de artistas menores ou de
vanguarda – que, para tentar sobreviver, precisam se adaptar ao mercado, deixando
de lado a inovação e as questões ideológicas e políticas. No contexto neoliberal o
entendimento de cultura foi extraviado: virou consumo, entretenimento e marketing.
A RACIONALIDADE NEOLIBERAL NOS ESPAÇOS DE PRODUÇÃO ARTÍSTICA
Obras, curadores, espaços públicos voltados para exposição artística se
transformaram, ao longo das últimas décadas, em palco de atuação de grandes
empresários e políticos onde antes não havia interesse ou possibilidade. A
racionalidade neoliberal atingiu o meio artístico fazendo deste o seu campo expandido
de atuação. Como consequência, as obras artísticas majoritariamente financiadas pelo
setor privado recaem sobre a produção artística de “alta cultura”: já consagrada, de
nível mundial, altamente valorizada e reconhecida. Exposições contendo obras de
Leonardo da Vinci, de Picasso, de Van Gogh, dos Surrealistas, entre outros grandes
nomes da pintura e da escultura são facilmente encontradas em museus e pinacotecas
das grandes cidades ano após ano. São, em maioria, mostras que não representam
riscos para o investidor, pois atraem o grande público ao mesmo tempo em que
contém poucas obras-primas expostas. Imbuídas de prestígio e valor social (status
social), a aplicação de capital na alta cultura resguarda estratégias de dominação pela
aproximação com a classe elitista, e de valorização da imagem da empresa, pela
conversão do valor artístico em valor da marca.
A teoria do “capital cultural” desenvolvida pelo sociólogo francês Pierre
Bourdieu, é útil para a compreensão que o sistema de gosto e valor da arte ocupa nas
formações políticas, económicas e sociais atuais. Para Bourdieu, o mundo das artes
surge “como uma forma de ideologia hegemônica, em que a transmissão das artes de
uma geração para a outra serve para conservar e reproduzir a posição dominante da
classe dominante. O capital cultural [...] serve assim como um ‘instrumento de
dominação’”43. O “capital cultural” (também referenciado como “capital simbólico” ou
“capital social”) para Bourdieu refere-se, portanto, não só ao conhecimento e a
familiaridade com diferentes estilos e produções artísticas mas também faz alusão ao
prestígio e valor social. Para a especialista em cultura e arte contemporânea, Chin-Tao
Wu, as empresas têm consciência das implicações sociais – como posição simbólica,
status e valor social – que a arte ocupa na mente das pessoas (consumidores) e, a
partir disso, utilizam-na como outra modalidade em suas estratégias de publicidade e
de relações públicas. Em suas palavras, a arte é utilizada “para penetrar no ‘marketing
de nicho’: uma maneira de brigar para uma entrada em um grupo social mais
43
BOURDIEU, 1998, apud WU, 2007, p. 17
sofisticado através da identificação com seus gostos específicos”44. Ou seja, as
empresas fazem o uso do capital cultural na intenção de converte-lo em capital
econômico/financeiro.
Além do interesse empresarial, a “arte de bilheteria” adquire tamanha
importância no contexto neoliberal pela substituição das figuras de curadores e
diretores de museus e galerias. Tais cargos cada vez mais deixam de ser ocupados por
figuras ligadas ao meio artístico para dar lugar a membros da elite econômica45 cuja
maior preocupação não está no desenvolvimento da arte, mas sim na quantidade de
investimento arrecadado por sua instituição. Os diretores e curadores de museus e
galerias de hoje assumem posturas de grandes empresários que enxergam a arte como
meio de atrair capital e expandir e ampliar o espaço expositivo, que passa de
“promotor cultural” a sinônimo de “grande negócio”.
O papel radicalmente transformado que os museus de arte começaram a
exercer na década de 1980 se percebe, de modo mais explícito, na imensa
popularidade das “exposições de bilheteria”. [...] o efeito mais importante da
mudança de um financiamento público para o empresarial foi a nova ênfase
sobre as "mostras de grande sucesso”. Estas exposições, concebidas para atrair
o maior número de gente possível ao museu, se converteram em critérios para
medir o êxito ou fracasso da instituição. [...] A popularidade das exposições de
sucesso de bilheteria, entretanto, indica uma transformação mais profunda no
funcionamento dos museus produzidos pelo capital empresarial na década de
1980, a saber, sua incrível expansão. [...] A política de ampliação de um museu
está, pois, estritamente ligada à ambição de seu diretor46.
Atualmente, a questão do investimento empresarial é tão forte para as
instituições que muitas delas passaram a deixar de lado sua autonomia na organização
de mostras artísticas que abrigam – principal função do museu. Segundo o jornalista
Fabio Cypriano, em reportagem à Folha de São Paulo em 2001, muitas das “mostras de
bilheteria” (ou de “risco zero”) expostas pelos museus públicos não são nem criadas
nem organizadas pelas instituições. Ou seja, os museus são alugados pelos produtores
culturais em parceria com instituições privadas. Na mesma reportagem, Cypriano traz
o depoimento de Stella Teixeira de Barros, na época diretora do Centro Cultural São
Paulo, que enfatiza esta situação: "os museus estão abrindo mão de sua função e ficam
à mercê das mostras que lhes são oferecidas". Sobre a questão da terceirização nas
organizações das exposições, ela continua: "o governo está abrindo mão até de
44
WU, Chin-tao. Privatizar la cultura. Madrid: Editora Akal, 2007., p. 19 45
A nova política de governo de Margaret Thatcher, por exemplo, diminuiu o número de membros ligados à arte e aumentou o número de membros do setor empresarial no Tate Gallery, em Londres. Segundo Chin-Tao Wu, um exemplo de destaque na intervenção de Thatcher foi à nomeação do “homem de negócios” Dennis Stevenson para a presidência da Tate em 1988, em substituição de Richard Rogers, arquiteto mundialmente reconhecido. Idem, p. 125-126 46
WU, 2007, p. 163
organizar as mostras no exterior sobre os 500 anos, que são feitas por uma entidade
privada, a BrasilConnects. É como se os produtores substituíssem a ação do Ministério
da Cultura"47.
Como visto até aqui, as empresas não estão interessadas no desenvolvimento
da arte, mas sim na potencialidade comercial e mercadológica. O foco empresarial em
determinado tipo de produção artística, como a arte de alta cultura ou “arte de
bilheteria”, resguardam estratégias de aproximação com a classe dominante, de
atrativo de investimentos e de futuros clientes bem como a publicidade e valorização
da marca. Preocupados com os vínculos entre a arte que financiam e a imagem da
empresa, os executivos procuram se afastar da arte de vanguarda pelo seu caráter
crítico – uma vez que esta é caracterizada pela resistência às forças capitalista de
mercado, afastando o vínculo com o consumo (de objeto artístico transponível e
negociável), e procura evidenciar conflitos políticos e tensões sociais, de raça, de
gênero, etc. Para a elite conservadora de direta a arte vanguardista expressa ideias
subversivas/controvertidas e, portanto, representam um “risco de investimento”. Em
contraponto, promovem e supervalorizam a arte comercial, neutra e decorativa.
Portanto, não há espaço para grupos de artistas menores e, menos ainda, para a arte
de vanguarda: os artistas precisam se adaptar ao mercado e deixar de lado suas
inovações, suas questões ideológicas e políticas.
A maior ameaça que o colecionismo empresarial representa na produção de
arte contemporânea tem a ver com seu poder neutralizador e higienizante. A
arte de vanguarda, cujo objetivo consiste supostamente em confrontar e
desafiar a cultura dominante e o status quo, uma vez que passa a aumentar
suas ligações com o mundo empresarial, pode converter-se, em seguida, em
nada mais que uma decoração de parede cara; perde sua capacidade crítica e
passa a ser assimilado à participação do fortalecimento do ethos empresarial
dominante e de seus valores48
Se em alguns casos a produção artística é indiretamente direcionada pelo
mercado e pelo interesse empresarial, em outros sua influência é estritamente
explícita. Entre 1996 e 1997, por exemplo, o importante Museu de Arte Modera
(MOMA) de Oxford, na Inglaterra, se transformou em agente de relações públicas de
seus patrocinadores. A marca de vodca Absolut não só deu nome à exposição, “Absolut
Vision”, como destacou uma pintura do artista Chris Ofili cujo tema era a própria
garrafa de vodca da marca. Além disso, a pintura de Ofili “foi elogiada pelo diretor de
departamento do museu, David Elliot, como um ‘novo trabalho emocionante’, e foi
adicionada à própria coleção de arte corporativa da Absolut”49. Em outros casos, o
47
CYPRIANO, Fabio. Artes plásticas nos tempos do neoliberalismo. Folha de São Paulo, São Paulo, 04 de setembro de 2001. 48
WU, 2007, p. 309 49
Idem, p. 185
domínio empresarial na produção artística se dá pela promoção de prêmios de arte
ligados ao seu nome, como acontece com a “Philip Morris Art Awards” que leva no
título a empresa de cigarro americana pelo mundo inteiro – como, por exemplo, a
“Philip Morris Award in Japan”, no Japão, e a “Philip Morris ASEAN Art Awards”,
associada com as nações do sudeste asiático. Segundo Chin-Tao Wu, os prêmios de
arte se tornaram um veículo de promoção valioso para as multinacionais que
procuram ampliar sua dominação global de mercado, uma vez que representam a
possibilidade de fazer sua marca atravessar barreiras culturais e nacionais50. Estes
exemplos demostram a grande influência do setor privado não só da produção
artística local, mas em escala global.
Enquanto as multinacionais afetam diretamente a produção artística em nível
global através de premiações, no Brasil, as empresas atingem outra escala pela
construção dos espaços expositivos. O aumento cada vez maior do
gerenciamento/domínio privado no setor cultural e artístico fez com que as empresas
passassem a fundar seus próprios museus e institutos culturais51. Quando não
encontram salas para exposição dentro dos seus edifícios empresariais, a iniciativa
privada, com a ajuda do poder público, investe na construção de novos museus.
Assiste-se assim, o crescimento vertiginoso dos “museus outdoors”: espaços
expositivos de conteúdos culturais incipientes (ou inexistentes), erigidos
principalmente nas grandes capitais, em regiões históricas ou de grande atrativo
turístico, cuja principal função é servir de estande de exibição e levar o nome das
empresas por todo território nacional. São casos como o Museu das Telecomunicações,
pertencente ao Instituto “Oi Futuro”, localizado no edifício histórico localizado no
bairro do Flamengo no Rio de Janeiro; o Museu das Minas e Metais, promovido pela
empresa siderúrgica Gerdau, localizado no centro de Belo Horizonte no prédio da
antiga Secretaria de Estado da Educação; o Espaço Votorantim, localizado no edifício
José Ermírio de Moraes (antiga sede da Votorantim Metais) no centro histórico de São
Paulo; o Museu do Futebol, realizado em parceria com a Rede Globo, localizado no
Estádio do Pacaembu em São Paulo; o Museu da Língua Portuguesa também
implantado em parceria com a Rede Globo e com a Fundação Roberto Marinho,
localizado na Estação da Luz; entre outros.
Tais museus construídos aos moldes neoliberais apelam para a tecnologia e a
interatividade na tentativa de hastear a bandeira da inovação e do desenvolvimento. O
que conseguem alcançar, contudo, é a criação de espaços assépticos, passivos, vazios
de conteúdo cultural, onde a visita ao museu não se distancia em nada da experiência
50
Idem, p. 191 51
A exemplo: o Instituto “Oi Futuro” – da empresa de telefonia “Oi”, formada em 1998 a partir da privatização do Sistema Telebrás –, o Instituto “Itaú Cultural” – pertencente ao banco brasileiro de capital aberto “Itaú”, que coleciona títulos de lucros históricos no país. Em 2011, o Itaú Cultural foi escolhido pela Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo para ser o novo gestor do Auditório Ibirapuera.
das tendas de um parque de diversões ou de um filme hollywoodiano. Em outras
palavras, o neoliberalismo retirou dos espaços públicos o seu papel na promoção de
livres manifestações culturais, artísticas, políticas e sociais substituindo-o pelo conceito
de shopping center global – privado, neutro, atemporal, que promove o consumo e
lazer.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
No cenário político do welfare state os espaços expositivos eram territórios
frutíferos às manifestações artísticas e às questões políticas e sociais, ao passo que no
neoliberalismo o museu mudou seu foco, foi apropriado pelas empresas como mais
uma oportunidade de expandir seu negócio e abrir frente à concorrência de mercado.
Incentivadas pelo poder público, as mostras culturais e artísticas foram tratadas como
oportunidade para atrair novos investimentos e fomentar a competição empresarial.
Neste cenário de conflito, a imagem do museu foi borrada: o espaço destinado à
promoção cultural agora se aproxima de estandes de vendas em feiras empresariais,
enquanto que o status público/privado dos museus perde o sentido – se possui origem
pública, atua sobre interesses privados, se têm origem privada é possui abertura
equitativa ao público. A produção artística, por sua vez, teve seu valor artístico
alterado: se antes estava associado às inovações ou contribuições de determinada
obra ao desenvolvimento da arte – seja através de seu discurso ou de seu caráter
estético –, contemporaneamente passou a se limitar à capacidade mercadológica,
publicitária, de se aliar à classe dominante, de atrair maior quantidade de público e de
investimento. Os artistas, intimidados pelo domínio privado, de um lado, e pela
competição generalizada da lógica neoliberal, de outro, acabaram aderindo às
demandas de mercado e deixaram as questões sociais e artísticas pra depois.
Resta agora analisar se os movimentos artísticos e culturais representam
resistência no contexto neoliberal; ou melhor, se as alternativas encontradas pela arte
nos espaços dedicados à arte contemporânea – como o Palais de Tokyo, em Nova York
–, nas bienais – como a Bienal de Veneza –, e até mesmo nos coletivos e ocupações
urbanas – como as do Minhocão e do Largo da Batata, ambas em São Paulo –
garantem a devia expressão e liberdade para o desenvolvimento artístico. Pois, se a
arte produzida pelas neo-vanguardas na década de 60 e 70, abordada no início deste
trabalho, alcançaram grandes avanços no meio artístico por sua autonomia crítica e
expressiva, chegando a confrontar às próprias instituições que as financiavam, no
contexto neoliberal algo semelhante parece difícil acontecer. A arte encontra-se em
retrocesso. O racionalismo neoliberal não só enfraqueceu o espírito de comunidade e
solidariedade dos artistas, como instaurou a competição generalizada no meio artístico
esvaziando tanto a arte quanto o espaço expositivo de qualquer conteúdo – a não ser
o lucro.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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