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ENTRE A PROIBIÇÃO DO TRÁFICO ATLÂNTICO E O VENTRE LIVRE: AS
DINÂMICAS DA ESCRAVIDÃO E DA IMIGRAÇÃO EUROPEIA EM SÃO PAULO
(1831-1871)
Antonio Marco Ventura Martins (História /Unesp)
Orientador: Prof. Dr. Ricardo Alexandre Ferreira
Palavras-Chave: Escravidão, Imigração, São Paulo.
Interessa nesse trabalho problematizar a visão histórica constituída pelos autores que ao
se dedicarem à abordagem da escravidão no século XIX, privilegiaram o processo de “transição
do trabalho escravo para o trabalho livre”.1Atento às simplificações e generalizações de análises
que tomam a imigração europeia e o trabalho livre como um sucedâneo natural e condenatório
da escravidão e de sua forma decorrente de trabalho, procurou-se nesse texto, a partir da leitura
dos Anais da Assembleia Legislativa Provincial de São Paulo e das falas proferidas pelos
Presidentes de Província entre 1831 e 1871, historicizar as questões colocadas aos coevos diante
dos impasses que envolviam escravidão e a imigração europeia, priorizando uma abordagem
relacional de hierarquia e de atração, ou seja, a partir das questões ligadas à escravidão se
constituíam as possibilidades e estratégias para o desenvolvimento de uma política
imigracionista, sem tomar o trabalho escravo como um obstáculo para o livre.2
Crítico à ênfase abolicionista que marcou parte da produção historiográfica sobre a
escravidão brasileira, busca-se aqui, dar relevo a uma província que tardiamente desenvolveu
uma crescente demanda por braços escravos, nacionais e africanos, e que acabou por marcar
significativamente a dinâmica e o destino da escravidão e da imigração no Brasil do oitocentos.
A província de São Paulo experimentou uma importante transformação em seu quadro
econômico ao longo do século XIX. Deixou sua condição secundária para, ao longo das décadas
de 1830 e 1840, assumir uma posição de destaque no cenário mais amplo do Império do Brasil,
principalmente pela expansão que a cafeicultura proporcionaria. É importante, no entanto,
salientar que a agricultura cafeeira que se notabilizaria, em um primeiro momento, pela
1Entre alguns trabalhos, ver: COSTA, Emília Viotti da. Da senzala à colônia. 4ª ed. São Paulo: Editora da Unesp,
1998; COSTA, Emilia Viotti da. Da monarquia à república. 7ª ed. São Paulo: UNESP, 1999; BEIGUELMAN,
Paula. A crise do escravismo e a grande imigração. São Paulo: Brasiliense, 1981; BEIGUELMAN, Paula.
Pequenos estudos de ciência política. 2ª ed. São Paulo: Pioneira, 1973. LAMOUNIER, Maria Lucia. Da escravidão
ao trabalho livre. Campinas: Papirus, 1988; GEBARA, Ademir. O mercado de trabalho livre no Brasil. São
Paulo: Brasiliense, 1986; STOLCKE, Verena & HALL, Michael. A introdução do trabalho livre nas fazendas de café de São Paulo. In: Revista Brasileira de História, nº 6, 1983, pp. 80-120; CARVALHO, José Murilo de. A
Construção da Ordem/ Teatro de Sombras. Rio de Janeiro: Ed. da UFRJ/Relume Dumará, 1996. 2 Seguiremos as perspectivas iniciadas por: SLENES, Robert. Grandeza ou decadência: o mercado de escravos e
a economia cafeeira da província do Rio de Janeiro. 1850-1888.In: COSTA, Iraci del Nero (org). Brasil: História
Econômica e Demográfica. São Paulo: IPE, 1986, p.103-155.
produção do Vale do Paraíba e, num momento posterior, em virtude dos grãos produzidos pelo
chamado Oeste Paulista, se valeria de uma estrutura desenvolvida em momento anterior,
vinculada à produção de alimentos e à agricultura canavieira da segunda metade do século
XVIII, destacadamente pelos incentivos realizados a partir do governo do Morgado de Mateus.
Concomitantemente ao alastramento da lavoura do café, no século XIX, por terras paulistas,
deu-se também a necessidade de abastecer, de maneira satisfatória, essas áreas com a mão de
obra escrava de negros africanos.3
Essa prática se colocaria como desafio aos setores políticos e econômicos envolvidos
nessa empreitada, já que no Brasil o tráfico negreiro africano fora proibido e colocado na
ilegalidade pela lei de 1831, depois pela lei de 1850 e a própria instituição da escravidão,
sofreria com a lei de 1871, consideráveis dificuldades para sua continuidade e reprodução,
momentos esses que convergiram com fases fundamentais da produção cafeeira na província
paulista.
Passada a euforia da abdicação, o Império encontrava-se imerso em conturbadas
revoltas. Excluídos os exaltados, aliados de véspera, os liberais tidos como moderados seriam
os grandes vencedores do 7 de abril e os condutores mores da nova política regencial, - pelo
menos até 1837 com o chamado avanço liberal -, realizada num tumultuado terreno.
Em São Paulo, como a composição do poder provincial em 1831, sobretudo do Conselho
Geral e do Conselho da Presidência, era de maioria moderada, verificou-se a tentativa de
garantir apoio político à Regência estabelecida. Esse apoio aos poucos se efetivou na
participação de políticos paulistas em cargos centrais no executivo imperial, assim como na
composição do legislativo, fundamentais na condução das questões mais delicadas e
importantes do período.4
Em meio à instabilidade política do momento, houve a aprovação da lei de 07 de
novembro de 1831, que proibia o tráfico atlântico de africanos para o Brasil e garantia a
liberdade aos escravos que entrassem no país após a data de sua promulgação. Em São Paulo,
3 Para uma melhor compreensão da relação entre a expansão cafeeira, a demanda por mão de obra e o ritmo de
crescimento e fixação da população escrava em São Paulo, ver: COSTA, Emilia Viotti da. Da senzala à colônia.
4ª ed. São Paulo: Fundação Editora da Unesp, 1998 e LUNA, Francisco Vidal; KLEIN, Herbert. Op. cit. 2006; 4 Em relação à composição e ao posicionamento político dos Conselhos de Províncias e Conselhos de Presidência
de São Paulo entre 1831 e 1834, ver: LEME, Marisa Saenz. Dinâmicas centrípetas e centrífugas na formação do
Estado monárquico no Brasil: o papel do Conselho Geral da província de São Paulo. Revista Brasileira de História.
Vol.28, nº 55, São Paulo, Janeiro-junho de 2008; OLIVEIRA, Carlos Eduardo França de. Construtores do Império, defensores da província: São Paulo e Minas Gerais na formação do Estado nacional e dos poderes locais, 1824-
1834. São Paulo. Tese ( Doutorado em História), FFLCH-USP, 2014 e para o projeto político liberal paulista, ver:
HOLANDA, Sérgio Buarque. São Paulo. In: HOLANDA, Sérgio Buarque de (org). História Geral da Civilização
Brasileira. 6ª Ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil , 1995, T. 2, v.2, pp. 415 a 472; DOLNIKHOFF, Miriam. O
pacto imperial. Origens do federalismo no Brasil. São Paulo: Globo Editora, 2005.
a polêmica lei ganharia destaques em diversos espaços de manifestações de opiniões, seja nos
periódicos5, nas representações enviadas pelas câmaras municipais ao governo provincial6 e na
própria assembleia legislativa7 que expressava o locus da pressão e representação dos senhores
de escravos.
É importante destacar que os proprietários de terras e de escravos de São Paulo
extrapolaram o âmbito provincial em suas reclamações contra o fim do tráfico e encaminharam
várias petições ao parlamento, argumentando que esse tipo de legislação contrariava os
interesses da nação porque, sem a importação de escravos, a agricultura, que representava a
principal força econômica, entraria em processo de falência.8
Compreendem-se essas reivindicações e manifestações contrárias à lei de 1831
promovidas em São Paulo, pela sua expansão econômica, com destaque para a agricultura
cafeeira que demandaria um contingente de escravaria cada vez maior e pela legitimidade de
séculos de prática que significava a escravidão e suas formas de manutenção e reprodução.9 Os
cafeicultores que controlavam 1/3 da escravaria empregada na agricultura na província paulista
passaram a possuir 95% do contingente cativo em fins da década de 1830. Em 1817 havia 94
proprietários de escravos que produziam café; em 1822 eles eram 276 e em 1829 passaram a
ser 413 e em 1854 eram 2.600 fazendas de café. Esse número continuou em uma consideravel
crescente a partir de 1850 quando o café se expandiu para o oeste paulista e passou a competir
com o açúcar e ali o suplantou10. Em 1869, o deputado provincial, Paula Ferreira, em seu
discurso na Assembléia Legislativa, indicava: “ Senhores, a província de São Paulo é o café”.
E concluimos, o café era o escravo.
Determinadas estratégias foram realizadas para a construção desse cenário acima
apresentado: a primeira foi a intensificação do tráfico11 nos momentos que antecederam a
ilegalidade pelo acordo com os ingleses em 1831, a segunda, foi o tráfico como contrabando,
ou seja, a ilegalidade tornava-se uma alternativa e prática corrente.12 A terceira e quarta foi o
5 O Novo Farol Paulistano, nº40, 21/12/1831 e O Justiceiro, nº10, 1835. 6 Anais da Assembleia Legislativa Provincial de São Paulo, 23 de fevereiro de 1835, vol. I, p.71-72. A partir de
agora A.A.L.P.S.P. 7 Atas da Câmara dos Deputados, 30 de janeiro de 1843, I, p.437. 8 BETHELL, Leslie. A abolição do tráfico de escravos no Brasil, 1807-1869. Rio de Janeiro: Expressão Cultural,
1976, p. 87. 9 Conforme Parron houve uma redução abrupta na entrada de escravos no centro-sul do Brasil entre 1831 e 1835,
em torno de 4.000 escravos. PARRON, Tâmis. . 2011. 10 LUNA, Francisco Vidal; KLEIN, Herbert. Evolução da sociedade e economia escravista de São Paulo, de
1750 a 1850. São Paulo: Edusp, 2006, p.93. 11 Para maiores informações do tráfico atlântico para o sudeste, ver: FLORENTINO, Manolo. Em costas negras.
Uma história do tráfico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro ( séculos XVIII e XX). São Paulo: UNESP,
2014. 12 “Vós não ignoraes (sic) quão vãs têm sido as providencias dadas para não se escravizarem africanos,
introduzidos furtivamente nas nossas praias, seja pela conivência, e omissão das autoridades, ou seja pela
tráfico interprovincial e intraprovincial que se intensificou a partir da efetividade da lei Eusébio
de Queirós em 1850, momento em que o Oeste Paulista ingressava na produção.
Uma opção que se colocava no universo das possibilidades frente às necessidades de
alternativas aos problemas decorrentes da política proibitiva do tráfico atlântico e da questão
relativa à “escassez de braços”, poderia ter sido o próprio trabalhador livre nacional. Em São
Paulo, tais indivíduos encontravam-se dispersos por toda a província vivendo em condições que
lhes permitia absterem-se de vender sua força de trabalho de maneira sistemática.13 Aliás,
constantes e diversas foram as críticas direcionadas ao trabalhor livre nacional nos discursos
realizados pelos membros da Assembleia Legislativa paulista. Pouco acreditada na sua
perspectiva produtiva e moral, essa força de trabalho continuou em um plano secundário nos
debates legislativos provinciais como possível resposta à demanda da agricultura.
Ganharam corpo nesse contexto de leis proibitivas ao tráfico atlântico africano e de
expansão produtiva cafeeira, os projetos em torno da mão de obra decorrente da imigração14.
Mais uma vez olharam para fora. Cogitaram-se trabalhadores asiáticos (os coolies), porém, com
poucas simpatias nutridas pelos produtores e políticos paulistas por esses imigrantes, foi
engrossada, desde o início, o coro das vozes em defesa dos europeus e mais tardiamente, dos
americanos do norte. Dominava, no debate político provincial, que, “ se a colonisação pode
influir grandemente nos destinos do Imperio, cumpre que tratemos com preferencia de convidar
para o paiz e a provincia uma população affecta aos habitos de ordem e trabalho, como
predisposta á cultura da intelligencia”.15 A ideia de uma superioridade moral, importante no
contexto de construção da nação, reafirmaria a opção pelos europeus.
Concomitante ao esforço para ampliar a mão de obra escrava disponível, a província
paulista tornou-se uma das principais frentes de experimentos imigrantistas, inicialmente sob
ineficcacia (sic) das leis...”. Fala do presidente da província, Rafael Tobias de Aguiar. A.A.L.P.S.P. -1835-1836,
vol.1, pp-9-10. 13 Para maiores informações sobre o trabalhador livre nacional, ver: EISEMBERG, Peter. “O Homem
Esquecido”: O trabalhador livre nacional no século XIX. Homens Esquecidos. Campinas: UNICAMP, 1989 e
FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens Livres na Ordem Escravocrata. São Paulo: UNESP, 1997. 14 Para maiores informações sobre a relação entre escravidão e imigração europeia, ver: ALENCASTRO, Luis
Felipe de. Proletários e escravos. Imigrantes portugueses e cativos africanos no rio d Janeiro, 1850-1872. Novos
Estudos CEBRAP, Nº 21, julho de 1988, pp. 30-56; LAMOUNIER, Maria Lúcia. Da escravidão ao trabalho livre:
a lei de locação de serviços de 1879. Campinas: Papirus, 1988 e BEIGUELMAN, Paula. A crise do escravismo e
a grande imigração. São Paulo: Brasiliense, 1981.
15 Discurso proferido pelo Dr. José Antonio Saraiva, presidente da província de São Paulo por ocasião da
abertura do ano legislativo da A.A.L.P.S.P.em 15/02/1855, p.363.
os auspícios de particulares como Nicolau Vergueiro e depois com a articulação do poder
provincial a partir da Assembleia Legislativa e de seu executivo.16
A política imigrantista foi, assim, apresentada como parte da solução do problema que
a escravidão se tornou a partir do fim do tráfico atlântico, em meados do século XIX, e os
caminhos a serem por ela percorridos estariam ligados a uma gama de circunstância vinculada
à agenda escravagista.
A leitura da documentação possibilitou identificar um intenso debate de opiniões
convergentes e divergentes a respeito das variadas necessidades da agricultura provincial e das
desejadas finalidades que orientariam a imigração em São Paulo, ao longo do período abordado.
De maneira geral, pode-se definir essas orientações da seguinte maneira: suprimento da
carência de trabalhadores nas obras públicas e privadas, principalmente nas aberturas e
manutenções de estradas e ferrovias tão necessárias para o desenvolvimento da província;
destinadas ao povoamento das áreas virgens ou abandonadas como maneira de povoar o “vazio
demográfico”; abastecimento de braços para demanda da lavoura cafeeira; desenvolvimento
de uma produção agrícola para abastecer o mercado interno e a aumentar a riqueza provincial.
Quanto ao discurso construído a respeito da vinda do imigrante europeu, não significou
até 1870, um movimento que por objetivo e essência negasse a escravidão. Mesmo após essa
data, é necessário destacar que o discurso da imigração como um movimento de repulsa,
negação e suplantação da escravidão passou a ser problematizado, por uma ideia de
protelamento da solução para um tempo futuro indefinido e para ser resolvido ao longo da
História e não por uma questão de intervenção vislumbrada para o presente, quase que por um
plano metafísico. Encerrando os trabalhos legislativos do ano de 1869, o presidente da
Assembleia, concluía: “ A História dará solução a esta questão; ella que não pode ser
dominada pela acção dos governos, estudará as causas, e as revelará com a probidade
scientifica que a characterisa”.17
Mesmo quando se fala a partir de uma noção temporal é de uma perspectiva quase
natural que se estabeleceria as diretrizes para debater possíveis medidas para acabar com a
escravidão. Por ocasião do debate sobre a lei do Elemento Servil, que seria publicada em 1871,
o deputado Whitaker retomou em sua fala, para problematizá-la, a citação do deputado Oliveira
Braga, que entendia:
16 Os debates e propostas em relação ao modelo a ser constituído da política de imigração e colonização em São
Paulo é assunto recorrente nas sessões da Assembleia. 17 A.A.L.S.P. 1869. Apêndice, p-9.
“que para chegarmos a um fim desejável, era bastante a libertação do ventre e para
provar esta proposição citou o nobre deputado o exemplo de outras nações que
tractavam da libertação de seus escravos, exibindo ao mesmo tempo uma estatística
por meio da qual procurou demonstrar que no decréscimo da população escrava, no
nascimento e no óbito, encontravam-se bazes para acreditar-se que no praso de 35
anos seria, entre nós extinta a escravidão”.18
Reconhecido emancipacionista e entusiasta da imigração americana, o deputado
Whitaker, atacava parte das ideias de Oliveira Braga no que se referia a suficiência da libertação
do ventre para a extinção da escravidão, no entanto, reconhecia a impossibilidade de tratar de
maneira imediata sobre o processo emancipatório:
“...Devia fazer um protesto contra a sua proposição de que é bastante a libertação
do ventre para que a escravidão se extingua em pouco tempo. No entanto, sou o
primeiro a reconhecer que não se pode tractar imediatamente da emancipação; mas
também desejava que podessemos gosar no Paiz disso que se chama libertação de
escravos em um praso menos longo que aquelle de trianta e tantos anos”.19
Esse posicionamento, do deputado Withaker, era lugar comum entre os adeptos do
processo de emancipação do trabalho escravo. O que demonstra que ainda era distante uma
visualização do trabalho e da produção da riqueza paulista sem a presença da instituição
escrava. O que se buscava era estimular diante desse cenário a vinda dos imigrantes para a
composição da força de trabalho e da colonização na província.
Volto assim, a chamar a atenção, para a perspectiva teleológica de parcela da
historiografia que abordou a questão da escravidão pela ótica abolicionista na província de São
Paulo, com ênfase na “ transição do trabalho escravo para o trabalho livre”, pois, essa postura
empalidece o debate, tira as nervuras dos impasses colocados como desafios às ações cotidianas
dos coevos para dar as respostas aos seus problemas momentâneos e coloca como prioritárias
percepções históricas que podem levar a simplificações dos anseios, sentimentos e aspirações
que permeavam os debates intensos sobre a temática presenciado nas fontes abordadas.
Na 25ª sessão da Assembleia Legislativa da província de São Paulo, de 19 de junho de
1869, essa questão da escravidão e da imigração foi colocada nos seguintes termos pelo
deputado Whitaker:
18 A.A.L.P.S.P.1869. p.210. 19 A.A.L.P.S.P. 1869, p.210.
“ ...Para o immigrante não só serve os terrenos virgens como os já cançados,
encherga nelle uma outra face importantíssima, qual a que diz respeito à
emancipação do elemento servil. Sr. Presidente, onde vamos parar sinão refletirmos
para as consequências desta questão? V. Exc. Sabe que os escravos vindos do norte
estão encarecendo de tal forma, que quasi posso assegurar, que daqui á dous ou três
anos não teremos um escravo ainda pelo maior preço; os mananciais donde eles vem,
extinguem-se. Não sei porque não se ha de pensar nesta questão, não sei o que ha na
atmosfera que nos faz calar, quando é ella a questão mais vital, principalmente para
a província de São Paulo! Mas, Sr. Presidente, a par disto vejo que a questão é
melindrosa, que precisa de acurado estudo; mas, este acurado estudo é a respeito da
escravidão em si, e da sua emancipação, e não a respeito da substituição de braços,
que é do que falo agora...Receia-se falar nisso, oculta-se o que se pensa a respeito, e
nem sobre a immigração se quer dizer uma palavra! Começou –se a falar nisto a
quatro anos, porem, nada mais se disse, parece que era apenas um ensaio pueril...”.20
A urgência do debate sobre a abolição do elemento servil não era apenas uma questão
melindrosa que exigiria uma análise mais acurada. O melindre era na verdade uma
condicionante do processo imigratório. O próprio tráfico interprovincial21 afetava e conformava
o debate que deveria encaminhar, segundo alguns defensores, o desenvolvimento da agenda
imigrantista, a partir, de uma política de substituição de braços que naquele momento não
significava o fim do sistema escravista.
Ainda que as necessidades de mão de obra, fossem distintas, nas diferentes áreas da
expansão cafeeira na província, assim como nas demais atividades produtivas, a Assembleia
Legislativa não tinha se tornado o locus tomado pela representação em defesa de uma agenda
imigrantista de tendência abolicionista. Escravidão e imigração, acomodavam-se em uma
condição de hierarquia, complementaridade e atração.
Quanto a imigração europeia, a política oficial previa o assentamento em pequena
propriedade (núcleos coloniais), mediante a compra de lotes originários das terras devolutas.
Tratava-se de um projeto cuja execução fomentaria, em longo prazo, a imigração espontânea,
para o país. Aliás, a assembleia provincial enfrentando dificuldades em colocar em prática esse
modelo de colonização, enviou em 1842, à câmara dos deputados uma representação
informando:
20 A.A.L.P.S.P. 1869, p.233. 21 Para maiores informações sobre o tráfico interprovincial, ver: ; GRAHAN, Richard. Nos tumbeiros mais uma vez? O comércio interprovincial de escravos no Brasil. Afro-Ásia, nº 27, 2002, pp.121-160
SILVA, Ana Rosa Cloclet da. Tráfico interprovincial de escravos e seus impactos na concentração da população
da província de São Paulo: Século XIX. Campinas: Apeb, 2008.; SLENES, Robert. Grandeza ou decadência: o
mercado de escravos e a economia cafeeira da província do Rio de Janeiro. 1850-1888.In: COSTA, Iraci del Nero
(org). Brasil: História Econômica e Demográfica. São Paulo: IPE, 1986, p.103-155.
“Os obstáculos que ela tem encontrado em todas as suas vistas, e planos de
colonização estrangeira por não se achar designado por lei quaes os bens nacionais,
e quaes os provinciaes: o que a inhibe de poder dispor de uma parte da grande
extensão de terrenos devolutas, que se encontra nesta Provincia...”.22
Em parte a resposta seria dada pela lei nº 514, de 28 de outubro de 1848, ao transferir
para as províncias as terras devolutas que poderiam ser destinadas à colonização teria
provocado um alento na atividade imigratória para o país.23 De maneira geral, essa medida
proporcionou às províncias transformar a imigração em uma política regional. Além disso, essa
política de transformar os colonos em pequenos proprietários, encontrara forte resistência entre
os proprietários e políticos provinciais como por diversas vezes ficaram registradas nos debates
legislativos. A fala do presidente da província, José Antonio Saraiva, em 1855 é lapidar em
relação a esse assunto:
“ ...Estou convencido de que a grande propriedade não pode ser fracionada com
rapidez, e mesmo esse fracionamento tem limites além dos quaes não pode ir. Assim
o systema de tornar proprietários todos os colonos tem também defeitos, e defeitos
talvez tão graves como os de parceria...”.24
O acesso à terra pelos colonos, já havia sido motivo de intenso debate nas esferas
legislativas do país, e que culminaria com a Lei de Terras de 1850, que procurava legalizar as
terras particulares e, ao mesmo tempo delimitar as terras públicas e limitar o acesso aos
imigrantes.
A parceria que também decepcionaria as partes envolvidas no contrato, seria uma
alternativa, enquanto a imigração oficial não era concretizada. Uma das formas de sanar as
necessidades da agricultura residia no financiamento de passagens de colonos a serem
transportados para as fazendas de café. Esse custo caberia aos fazendeiros e excepcionalmente
ao Estado. Em São Paulo, o poder provincial, tornou-se um importante aliado dos fazendeiros
nessa política para encontrar soluções aos problemas da mão de obra, inclusive liberando
valores para os contratantes.
Nos debates legislativos de finais da década de 1860 e início de 1870, mais do que o
encaminhamento da agenda abolicionista, o que os coevos de fato se ocuparam fora com o
22 A.A.L.P.S.P.1842, p.39. 23 IOTTI, Luiza H. Imigração e colonização. Legislação de 1747-1915. Caxias do Sul: EDUCS, 2001. P.23. 24 A.A.L.P.S.P.1855, p. 404.
formato de uma imigração a ser efetivada. A escravidão era uma verdade de mais de três
séculos, enquanto a imigração nuançava altos e baixos, avanços e retrocessos, aliás, a reboque
da primeira.
Em um acalorado debate a respeito de um contrato para trazer até a província, mil
famílias, escolhidas entre agricultores do sul dos Estados Unidos, os deputados Paula Souza,
Oliveira Braga e Whithaker apresentaram em seus discursos e propostas, as complexidades dos
caminhos a serem enfrentados pelos defensores da imigração:
“Sr. B. de Paula Souza:...Mas os alemães pertencem a uma raça muito vigorosa,
trabalhadora e morigerada, mas não são os melhores, são tão bons, talvez como os
americanos no que toca amor ao trabalho, moralidade, respeito a lei e a autoridade.
(...) Elles (alemães) veem como colonos, e o projeto o que tem em vista é convidar
uma nação forte e vigorosa para conviver conosco. Immigração é uma cousa, e
colonização é outra muito diversa. Colono quer dizer cultivador, immigrante quer
dizer novo habitante. Nos queremos os americanos como paulistas novos, como
paulistas adoptivos...Só que não convem a immigração do sul, porque são homens
que possuíram escravos.
Sr. Whithaker:...Qualificou minhas ideias de antiliberais...pelo facto de ir procurar os americanos do sul, exatamente onde está mais enraizado a instituição da
escravidão.
Sr: B. de Paula Souza: Só o facto desses homens terem tidos escravos é motivo para
não serem bons entre nós? Elles trazem escravos?
Sr. Oliveira Braga: Mas, veem comprar.
Sr. B. de Paula Souza: Que comprem? É uma instituição do paiz.”.25
Esse debate em relação à diferenciação entre grupos de imigrantes que deveriam ser
direcionados para finalidades distintas e suas perspectivas de integração na sociedade paulista,
tornou-se uma constante com a imigração sob a tutela do poder provincial e apontavam para
direções que refletiam as necessidades e anseios de interesses regionais. Os estigmas
construídos pelos contemporâneos a respeito dos grupos que para cá viriam não devem ser
menosprezados para uma melhor compreensão do fluxo migratório para a província, pois entre
várias possibilidades algumas direcionaram essa complexa construção da política imigratória
no século XIX.
Pensar que a imigração, pressupõe, apenas o trabalhador livre que vem rivalizar com o
escravo, nacional ou africano, é desconsiderar o peso da própria ordem escravista, aliás,
responsável por parte das experiências fracassadas com o trabalho livre, como Ibicaba, por
exemplo. Talvez os americanos do sul, pela experiência escravista devessem ser mais aptos
para uma integração como novos paulistas em uma sociedade que construía seus valores
escravistas? Pois, como disse o deputado B. de Paula Souza: “ que comprem, é uma instituição
do paiz?
25 A.A.L.P.S.P. 1869, p.248.
Ora, as diversas fases da imigração, as diferentes formas de contratos em busca de um
ajustamento ante o padrão escravista: como a parceria, a locação de serviço e o colonato, os
tratamentos dispensados aos imigrantes e as distintas finalidades para a qual a imigração se
constituiria na província paulista, inclusive seus insucessos e decepções, para além de
demonstrar um processo guiado para a superação da escravidão pelas incompatibilidades e a
constituição de um mercado de trabalho livre como consequência da preocupação dos
cafeicultores em manter o controle sobre o processo de reorganização do mercado de trabalho,
demonstra sua complementaridade, hierarquicamente determinada pela escravidão e pela
representação que a própria instituição adquiriria e que cada vez mais definiria econômica e
socialmente a província paulista do século XIX, ou seja, a escravidão era o denominador
comum.
A lei do Elemento Servil de 1871 representaria, ao mesmo tempo, um ataque à verdade
que a escravidão tinha se constituído e sua prorrogação. Representaria também uma nova
possibilidade para se estimular a experimentada imigração estrangeira, ainda mais que se
desenvolveriam medidas restritivas ao tráfico interprovincial para São Paulo. Essas questões
acima levantadas são características que permitem problematizar esse caráter determinado,
gradual e inevitável da superação do trabalho escravo pelo trabalho livre. Assim, a agenda
imigrantista não significaria a substituição ou condenação do cativeiro e nem a escravidão um
estorvo à imigração.
Considerações Finais
A escravidão africana se tornaria central na economia da província paulista do século
XIX e a necessidade de sua manutenção e expansão seria responsável por constituições de
práticas que acabariam conformando o jogo político e a dinâmica do poder provincial. Assim,
desenvolveu-se uma peculiar política imigrantista europeia como parte constituinte da solução
do problema que a escravidão se tornaria na província em franca expansão de sua atividade
econômica, sobretudo cafeeira, e que demandaria uma crescente dependência de braços. A
escravidão, no período abordado, se recrudescia, concentrando-se inicialmente na produção do
açúcar e posteriormente do café.
A província paulista se tornaria, em 1872, a terceira maior área escravista do Império e
uma veterana na política imigracionista que mesmo com os percalços, também avançara, e seria
fundamental para a sua consolidação a partir dos anos 1880. Assim, priorizou-se, uma
abordagem do processo imigratório como uma construção socialmente determinada ante as
necessidades que os coevos se deparavam e também como um elemento complementar a
política de manutenção e de preservação e não de exclusão da escravidão na província paulista.
FONTES:
Anais da Assembleia Legislativa Provincial de São Paulo (1835-1871).
JORNAIS:
O Novo Farol Paulistano, nº40, 21/12/1831.
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