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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO - UFPE
CENTRO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS - CFCH
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ANTROPOLOGIA - PPGA
TTHHIIAAGGOO AANNGGEELLIINN LLEEMMOOSS BBIIAANNCCHHEETTTTII
EEnnttiiddaaddeess ee RRiittuuaaiiss eemm TTrrnnssiittoo SSiimmbblliiccoo:: UUmmaa AAnnlliissee ddooss EExxuuss nnoo CCoonntteexxttoo AAffrroo--bbrraassiilleeiirroo ee
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Entidades e Rituais em Trnsito Simblico: Uma Anlise dos Exus no Contexto Afro-brasileiro e nas Sesses de Descarrego da IURD.
Thiago Angelin Lemos Bianchetti
Dissertao de mestrado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Antropologia da Universidade Federal de Pernambuco, como requisito parcial para obteno do ttulo de Mestre em Antropologia. Sob a orientao do Prof. Dr. Roberto Mauro Cortez Motta (UFPE) e a Co-orientao da Prof Dr. Rachel Rocha de Almeida Barros (UFAL).
RECIFE-PE, 2011
Catalogao na fonte Bibliotecria Maria do Carmo de Paiva CRB-4 1291.
B577e Bianchetti, Thiago Angelin Lemos. Entidades e rituais em trnsito simblico : uma anlise dos exus no contexto afro-brasileiro e nas sesses de descarrego da IURD / Thiago Angelin Lemos Bianchetti. - Recife: O autor, 2011.
219 f. : il. ; 30 cm. Orientador: Prof. Dr. Roberto Mauro Cortez Motta. Co-orientadora: Prof. Dr. Rachel Rocha de Almeida Barros. Dissertao (Mestrado) - Universidade Federal de Pernambuco,
CFCH. Programa de Ps-Graduao em Antropologia, 2011. Inclui bibliografia. 1. Antropologia. 2. Cultos afro-brasileiros Macei (AL). 3. Exu
(Orix). 4. Pentecostalismo. 5. Igrejas pentecostais. 6. Igreja Universal do Reino de Deus. I. Motta, Roberto Mauro Cortez (Orientador). II. Barros, Rachel Rocha de Almeida (Co-orientadora). III. Titulo.
301 CDD (22.ed.) UFPE (CFCH2011-81)
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Exu In1
In, mo juba In, eu lhe apresento meus humildes respeitos
In, mo jb iy In, In lhe apresento os respeitos do mundo
In, mo juba Eu lhe apresento os meus humildes respeitos
In, In mo juba iy In, In lhe apresento os respeitos do mundo
In, Krk In no venha com pensamentos cruis
In, In Kork iy In no venha com pensamentos cruis para o
mundo
In, Krk In no venha com pensamentos cruis
In, In krk iy In no venha com pensamentos cruis para o
mundo
In, k o w gba In venha e proteja
In, In, k o w gba iy In venha e proteja o mundo
In, k o w gba In venha e proteja
In, In, k o w gba iy In venha e proteja o mundo
Z2
! Z quando for pra Zalagoas
Toma cuidado com o balano da canoa
Faa tudo que quiser
S no maltrate o corao dessa mulher
1 - A belssima toada de invocao ao s In foi etnografada no livro Os Ng e a morte: Pde, ss e
o culto gun na Bahia de Juana Elbein dos Santos (1986). 2 - Msica interpretada pela Orquestra de Tambores de Alagoas (lbum: Bantus e Caets). A cano de
domnio pblico comumente entoada nos terreiros de Umbanda da capital para homenagear Seu Z Pilintra. H outra verso cantada que diz: Seu Z Pilintra quando vem de Alagoas toma cuidado com o balano da canoa (...) (verso disponvel em: http://www.4shared.com/audio/hSFAjtbW/06_-_Seu_Z_Pilintra_qdo_vem_de.html).
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Agradecimentos
Exu, Lary!
Omoknrin dlfin, (O homem forte de dlfin)
l sns s or es els (Exu, que senta no p dos outros).
Ogun, gn ie!!
gn alada mj (Ogum, dono de dois faces)
O fi kan sn oko (Usou um deles para preparar a horta)
O fi kan ye ona (e o outro para abrir caminho).
Agradecido sempre as energias e divindades que fazem do universo humano
uma pea ainda mais vivel e agradvel para se estar bem no mundo.
Agradeo com intenso respeito a minha famlia que a maior segurana que
possuo na vida. Especialmente a Rose Meire Lemos Bianchetti, Denevaldo Jos
Bianchetti e Maria Clara Lemos. Tambm a minha irm Bruna, minhas tias: Terezinha,
Vera, Snia e Rosiane. Grato tambm pela famlia Trilha do Mar, adquirida no rumo da
vida.
Agradeo em especial ao meu primo e desenhista Kemesson Lemos por ter feito
as ilustraes que abrem como capa cada captulo dessa dissertao.
A minha companheira Juliana Barretto, por todo amor e fora dirigidos a mim;
tambm pelas crticas e sugestes tericas e metodolgicas dedicadas a esse projeto. A
quem devo minha gratido por ter me direcionado a fora da Hoasca (Daime) que muito
contribui para meu auto-entendimento nesse perodo.
Sou extremamente grato ao meu orientador Roberto Motta, pela dedicao ao
projeto, pelo comprometimento e, principalmente, pela figura sbia e perspicaz que .
Seu olhar antropolgico (seja atravs dos seus textos publicados ou nos direcionamentos
sugeridos ao campo terico) juntamente com suas crticas foram cruciais para o bom
andamento do trabalho.
Grato Prof. Rachel Rocha de Almeida Barros, pela co-orientao desse
trabalho, figura que tem acompanhado e feito sugestes a esse projeto desde a
Graduao em Cincias Sociais pela UFAL, tambm pelo exemplo de profissional, de
dedicao ao ensino pblico e de pesquisadora que tem sido a mim.
Academicamente falando, minha passagem pelo PPGA/UFPE, posso afirmar, foi
facilitada por encontrar pessoas de competncia e profissionalismo exemplar. Agradeo
a todos os professores e especificamente aqueles que eu tive a oportunidade de um
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contato mais direto nas disciplinas e cursos ministrados. Agradeo em especial ao Prof.
Peter Schrder, pelas sugestes metodolgicas discutidas na disciplina Metodologia e
Tcnica de Pesquisa Antropolgica e pela parceria desenvolvida durante o estgio
supervisionado; Prof. Roberta Campos pelas discusses em sala de aula que
certamente trouxeram aberturas de leituras ao projeto dissertativo; Prof. Vnia Fialho
pelo curso de Laudos Antropolgicos e a pessoa gentil que ; Prof. Maria do Carmo
Brando pelas contribuies em sala de aula e pelas sugestes dadas a esse estudo ainda
quando se tratava do projeto inicial; Prof Sylvana Brando por ter participado da pr-
banca dessa dissertao com suas importantes contribuies; ao Prof. Luis Felipe Rios
por ter participado de todas as etapas avaliativas deste trabalho, mas, sobretudo, pelo
comprometimento e pelo seu rico olhar antropolgico, sem o qual, vrios insights
ficariam pelo caminho.
Agradeo ao Prof. Silo Amorin (UFPB) pela sua amizade e por ter aberto os
arquivos do filme documentrio 1912, O quebra de Xang; tambm Prof Slvia
Martins (UFAL) pela sua amizade e sua incessante disposio em colaborar, grato!
A turma do mestrado de 2009 (e aos que se agregaram a ela no caminho) que
sem dvida fez valer a parceria, as crticas e as descontraes. Aos amigos, aquele forte
abrao! Agradeo a Ana Laura e Mroni Laurindo, com os quais convivi em Recife
dividindo casa e amizade. Em especial a duas amigas queridssimas, primeiramente, a
Nbia Michella, alagoana de firmeza, que tenho o grato prazer de t-la como referncia
de inmeras coisas h alguns anos e a Flvia, pernambucana do grau, que conheci ao
longo do percurso no mestrado, grato por tudo!
Ao importantssimo projeto de concesso de bolsas da CAPES que permite com
que novos pesquisadores sejam formados sem que precisem dividir suas tarefas
acadmicas em busca de uma atividade profissional remunerada. A manuteno e a
criao de novas iniciativas como essa devem ser incentivadas sempre.
Sou extremamente grato a todos os membros do Palcio de Iemanj que abriram
suas vidas religiosas; em especial ao babalorix Zeca, que muito generosamente abriu
as portas da sua casa de ax; tambm pela permisso dos registros de suas imagens.
Agradecido a todos, mas em especial aos lderes e entrevistados: alm de Seu Zeca,
temos a ialorix Noca e seu esposo Quixabeira, madrinha Cia, Dona Carminha, Dona
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Geruza, Seu Temperinho, Jaragu, Tiago, ao og Jorge, Maria, Eduardo, Jnior, Lo,
Marcos, Samuel, Gilmar.
Tambm com muito respeito e admirao agradeo as outras casas de ax que
abriram suas portas a esse projeto. Fao meno aqui aos nomes dos lderes das casas de
ax por onde passei para prestigiar, na figura dos respectivos, cada terreiro e tambm
para ser sucinto, agradeo aos babalorixs: Clio Rodrigues, Seu Ferreira, Manoel
Xoroqu, s Ialorixs Mirian, Veronildes (me Vera), Maria de Lourdes, Dona Celina,
Dona Jurema, Dona Zuleide, ao babalorix Elias e ao filho-de-santo Robson T Od da
cidade de So Paulo (amigo on-line).
Tambm agradeo muitssimo aos lderes, aos obreiros e membros da IURD que
concederam entrevista ou contriburam de alguma forma para esse estudo. Agradeo em
especial ao pastor titular e auxiliar do templo da IURD no Jacintinho.
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RESUMO
Esta dissertao tem como objetivo etnografar o trnsito simblico de entidades
conhecidas do panteo afro-brasileiro que sincreticamente alam-se no contexto
litrgico da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD). Para tanto, pretende-se ao longo
do trabalho compreender como os arqutipos de Exus e Pombas-gira so identificados
no contexto das religies de matriz africana (Umbanda, Candombl e Xangs) e, a partir
de ento, observar sua insero ritual na sesso de descarrego daquela denominao. O
estudo empreende uma jornada etnogrfica em alguns terreiros da cidade a fim de
levantar dados especficos a respeito dos arqutipos dos Exus (tambm conhecidos
como Bar e Legba em algumas casas). O aprofundamento da etnografia se d na Rua
So Jorge, no bairro do Jacintinho em Macei-AL, onde na mesma localidade (a menos
de 50 metros) se encontram o terreiro Palcio de Iemanj, que, todas as segundas-feiras,
realiza seus toques em homenagem aos Exus, e uma sede da IURD, onde a mesma
empreende um ritual de expurgo dos Exus e Pombas-gira em seus fieis. Nesses dois
segmentos religiosos pretende-se compreender as identificaes dadas aos Exus e
Pombas-gira e a dinmica simblica que as mesmas adquirem entre os rituais afro-
brasileiros e as sesses de descarrego da IURD.
Palavras chaves: Religies Afro-brasileiras, Neopentecostalismo, IURD, Exus.
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ABSTRACT
This study has the purpose of presenting an ethnographic description on how entities
recognized from African-Brazialian religions are liturgically and through synchretism
attached to the religion Igreja Universal do Reino de Deus (IURD). Therefore, the
objective is to understand how archetypes of Exus and Pombas-gira are identified
within African-Brazilian religions (such as, Umbanda, Candombl and Xangs) and to
observe their inception within the descarrego ritual from IURD. An ethnographic
journey is conducted into the terreiros from Macei in order to gather specific data
about the archetypes of Exus (also known as Bar and Legba in some houses). The
ethnography is more detailed on So Jorge Street in the Jacintinho neighborhood,
which is close to Palcio de Iemanj, where every Mondays, they play drums (toques)
praising Exus, while a IURD church is also close, where rituals purging Exus and
Pombas-gira from their followers are undertaken. Thus, the aim is to understand how
Exus and Pombas-gira are identified and which are their symbolic dynamics within
African-Brazilian religions and also among the descarrego IURD rituals.
Keywords: African-Brazilian religions, Neopentcostalism, IURD, Exus.
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SUMRIO
INTRODUO ............................................................................................................. 12
Perspectivas Terico-Metodolgicas utilizada em campo.........................................23
Percurso da leitura e informaes tcnicas.................................................................26
1. CAPTULO:
1.1 - O Neopentecostalismo e o contexto histrico-social da IURD...........................30
2. CAPTULO:
2.1 - A Organizao do Culto na IURD.......................................................................45
2.2 - A Sesso de Descarrego.........................................................................................50
2.3 - A identidade de Exu e Pomba-gira nos cultos da IURD sombra de Rose
DLafien..........................................................................................................................80
2.4 - Os Exus alm dos afro-brasileiros: a construo iurdiana de uma entidade
sem mironga...............................................................................................................92
3. CAPTULO:
3.1 - Exu: as literaturas e o campo Afro-religioso......................................................99
3.2 - Exu na encruzilhada dos humanos: visibilidade e percurso..........................108
4. CAPTULO:
4.1 - A Rua So Jorge: o culto de Exu no Palcio de Iemanj.................................132
4.2 - Hoje no Xang tem toque pros home............................................................138
4.3 - Exu no recebe dinheiro, ele gosta de farra!..................................................152
5 CAPTULO:
5.1 - A entidade Exu e sua visibilidade religiosa em alguns segmentos de Candombls em Macei..............................................................................................172
5.2 - Exu no Ncleo de Cultura Afro Brasileira Iy Ogun-t (gge-nag).............172
5.3 - Bar no Il Nif Omi Omo Possu Bt - Casa de amor e f (gge).................181
5.4 - Exu no Abass de Angola Oy Bal Tradio de Alagoas (Angola)...............184
5.5 - Exu no Il Ax Legionir Nit Xoroqu Legba Zambi Vodum (angola-
gge)..............................................................................................................................188
Consideraes finais....................................................................................................196
Referncias Bibliogrficas..........................................................................................205
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INTRODUO
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Introduo
Esta pesquisa etnogrfica se desenvolve no bairro do Jacintinho3, periferia de
Macei-AL, onde, na Rua So Jorge, se situa o terreiro Palcio de Iemanj (casa de ax
que tambm abriga a sede de uma das federaes do estado, a Federao Umbandista
dos Cultos fricos de Alagoas) e o templo da IURD 4 que se encontra no cruzamento
entre a referida Rua e a Avenida Cleto Campelo. O terreiro se localiza a uma distncia
aproximada de 50 metros do templo da IURD; proximidade que h dois anos, quando
ainda realizava minha pesquisa de concluso de curso vinculada ao ICS/UFAL5, me
chamou bastante a ateno, pois se colocou para mim, ali, a oportunidade de estudar os
aspectos socioculturais dessas duas perspectivas religiosas e, sobretudo, observar como
se dava o trnsito das entidades Exu e Pomba-gira em ambas as esferas de culto. Esses
dois segmentos religiosos se envolvem ou promovem atualmente um dos mais curiosos
casos, e no menos controversos, nos estudos sobre sincretismo no pas: a utilizao de
smbolos afro-brasileiros em contexto neopentecostal. Caracterstica amplamente
perceptvel a partir dos cultos iurdianos e de algumas outras correntes neopentecostais.
Se por um lado coerente falar da importncia dos Exus dentro do universo
umbandista, torna-se confuso e contraditrio quando se enfatiza que estas entidades
tambm so elementos significantes e, at mesmo indispensveis, nos rituais das
teras-feiras de descarrego, patrocinados pela IURD (BIANCHETTI, 2008:134). Pois,
se sabido que na Umbanda e no Candombl a entidade Exu cultuada e ofertada,
sabe-se tambm, por outro lado, que na IURD que elas so metafrica e
metonimicamente teis para promover a difamao das religies afro-brasileiras ao
associarem a identidade de Exu ao demnio no momento do expurgo.
Na j referida abordagem que se empreendeu em 2008, tentou-se realizar um
estudo em ambas as casas de culto na pretenso de abordar questes de conflito entre as 3 - O bairro do Jacintinho possui o maior nmero de casas de ax da capital, segundo o mapeamento realizado por Cavalcanti e Rogrio so mais de 86 terreiros no bairro (o nmero pode ser maior, pois a pesquisa registrou apenas os federados) (2008:21). A populao que habita o bairro corresponde a 9,86% da populao da capital alagoana. O mesmo situado numa rea de 17.424 metros quadrados, o Jacintinho [, hoje,] atinge uma populao superior, segundo o ltimo censo IBGE 2000, a 83.931 mil habitantes, incluindo todas as grotas e antigos stios. Publicado em: http://www.coisasdemaceio.com.br/modules/news/article.php?storyid=10811 4 - Usaremos aqui o abreviativo IURD quando nos referirmos Igreja Universal do Reino de Deus. Abreviao utilizada por Freston (1994). 5 Instituto de Cincias Sociais da Universidade Federal de Alagoas.
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duas perspectivas religiosas, tenso esta j bastante conhecida no circuito antropolgico,
sociolgico e, sobretudo, na grande mdia. Naquela ocasio, a pesquisa no conseguiu
sair do plano ideal, pois o pastor e outros lderes responsveis por aquela sede da IURD
no Jacintinho no se agradaram da ideia de algum andar na macumba6 na segunda-
feira - dia destinados aos cultos de Exus no Palcio de Iemanj - e na tera-feira ir ao
templo da IURD, a mudana para todos, seja estudante, seja quem for, arrematou o
pastor, e interou, no caso, voc escolhe. Optou-se, naquela ocasio, por mudar de
templo. Procurou-se um templo da IURD onde houvesse mais liberdade prtica da
pesquisa de campo e que o estudo no interviesse sobremaneira ou desagradavelmente
no andamento das tarefas da igreja. Pretendia-se, com a dissociao da figura do
pesquisador com a macumba no campo da IURD, manter a oportunidade de continuar
realizando a pesquisa no terreiro, onde se intua ter bons interlocutores, sem que se
revelassem profundos desgastes. Tambm porque os fiis do terreiro se mostraram
abertos ao dilogo sobre seus rituais, o que podia se perceber no acolhimento que os
mesmos demonstraram perspectiva de pesquisa durante as visitas feitas ao local; algo
que sem dvida indispensvel a qualquer pesquisador. Por isso, optou-se por mudar de
templo da Universal (a pesquisa na ocasio realizou-se na IURD do bairro de
Mangabeiras) para continuar conservando a boa relao que havia com o terreiro
Palcio de Iemanj naquela momento.
Um ano e meio se passaram, veio a oportunidade de ingressar com meu projeto
de mestrado justo ao PPGA/UFPE e, por critrios do ofcio do antroplogo, o advento
da ida ao campo de pesquisa, ou de um retorno a ele. Foi a que o quadro na Rua So
Jorge mudou significativamente durante esse meio tempo, pois voltando quele mesmo
templo da IURD, no qual houve o impedimento da pesquisa, observou-se que a igreja
teria passado por significativas mudanas em sua liderana; o antigo pastor e alguns
obreiros contrrios ideia do primeiro projeto no ano de 2008 no mais se encontravam
naquele templo. Nesta segunda tentativa, encontrou-se um cenrio totalmente diferente,
e aps conversa com o pastor Jamerson7 (responsvel pela igreja atualmente), mesmo
6 - Como algumas vezes me foi dito no templo da IURD, ou serve a deus ou ao diabo, foi recomendao na poca. 7 - O nome do pastor fictcio para resguardar a privacidade que me pediu. Resolvi manter esse padro em todas as outras entrevistas realizadas com os lderes e obreiros da IURD no Jacintinho. Reserva que pareceu ser uma tnica mxima por parte dos entrevistados e, posteriormente, foi usada como um elemento propcio minha estratgia no campo de pesquisa.
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que ainda embaraado e desconfiado com a ideia, pois no entendia bem qual o motivo
de se fazer estudo em uma igreja, foi autorizada a insero da pesquisa no templo. Aos
poucos foi sendo explicado, no s ao lder, mas aos outros membros da igreja, o
objetivo do estudo. O pastor pensou e no viu problemas em realizar a pesquisa, bem
como a realizao de algumas entrevistas com os membros da igreja, desde que eles
permitissem e se sentissem vontade para participarem. Contudo, com o pastor
Jamerson no foi possvel nenhum entrevista, alegou falta de tempo, mas pudemos
manter dilogos breves com ele aps os cultos, o que j estava de bom tamanho, pois
algo semelhante com a antiga liderana estaria fora de cogitao. A pesquisa teria
avanado alguns importantes passos. A partir deste novo cenrio, ponderou-se retomar
as primeiras ideias guardadas anteriormente com extrema frustrao e repens-las no
contexto atual que a pesquisa se desenhava.
Na pesquisa realizada em 2008, o templo da IURD escolhido, diante da
impossibilidade de estudo naquele da Rua So Jorge, foi o do bairro de Mangabeiras,
uma igreja denominada de Templo Maior por ser a principal sede na capital alagoana.
Nesse templo, poca, obteve-se a liberao da pesquisa concedida pelo bispo Andr,
ento responsvel. Assim, naquele outro contexto poltico da IURD, desenvolveu-se a
pesquisa, sempre com muita desconfiana e sob olhares. Dois anos se passaram e em
2010, ao voltar ao mesmo templo da IURD na Mangabeiras, onde supostamente parecia
propcio voltar a realizar meus estudos, ao buscar a to esperada liberao obteve-se
como resposta um no bem educado, e sem nenhuma possibilidade de argumentao. O
bispo Srgio Crrea, lder estadual da instituio nesse novo contexto, alegou que a
IURD vem sofrendo muitos ataques feitos pela mdia e por isso h uma ordem expressa
da direo nacional em So Paulo para no permitir qualquer tipo de pesquisa, matrias
jornalsticas ou qualquer tipo de entrevista no mbito da sede; recomendou procurar as
pessoas fora do templo. Logo ao chegar a esse templo notou-se que havia vrios
cartazes anexados por todos os lados, onde informavam ser expressamente proibido
gravar, filmar ou fotografar qualquer ambiente da igreja ou por ocasio do culto;
preocupao essa que - embora sempre parece existir nas entrelinhas - nunca foi to
bem expressa e amplamente sinalizada para os desavisados que entrassem naquela
igreja. Contudo, embora no concordando com a ideia de pesquisar no templo de sua
administrao, o bispo informou que seria possvel assistir aos cultos sempre que
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desejado, mas que no poderia grav-los, mas seria bem vindo para aprender. Foi o
no decisivo para que a pesquisa retornasse IURD e ao terreiro Palcio de Iemanj da
Rua So Jorge efetivamente.
Com efeito, a esta altura, as possibilidades de pesquisar no templo da IURD
Jacintinho teriam mudado completamente em relao ao ano de 2008, enquanto que o
templo da IURD Mangabeiras no parecia ser mais o caminho vivel. A lgica se
inverte e tudo passa ou volta a informar que o universo de pesquisa com humanos
dinmico, poltico e cheio de nuances. Tanto a negao como a liberao por parte dos
lderes destas igrejas me proporcionou refletir melhor a organizao das ideias, e no
apenas o campo de pesquisa onde se iria atuar, mas refletir sobre as complexidades
apresentadas no campo antropolgico a partir de vrias problemticas no s internas ao
grupo, mas externas a ele, como, por exemplo, as investidas da mdia, sobretudo da
Rede Globo de Televiso e os escndalos que supostamente envolveria a igreja e seu
lder Edir Macedo. A partir da conjuntura desses eventos foi permitido pensar nas
formas e estratgias de insero no campo da Rua So Jorge para no acabar sendo o
prprio drago a ser espetado na histria (em ambas as esferas religiosas). Fala-se isso
tendo em vista as dificuldades que poderia (e j se espera que assim o fosse) surgir
quando, mais cedo ou mais tarde, a identidade do pesquisador no campo fosse de
alguma forma associada, do lado dos iurdianos, ao universo do terreiro e, do lado
desses, IURD. Resolveu-se, dado dificuldade sensvel, pensar bem no que poderia
ser feito, perguntado ou, simplesmente, comentado.
Quanto aos adeptos do terreiro, assim que explicado o objetivo do projeto, foi
rapidamente entendido, juntamente com as pretenses que havia nas idas ao terreiro e,
sobretudo, ao templo da IURD; ideia que nunca incomodou no terreiro, at mesmo
posteriormente as pessoas nem mais se lembravam da insero da pesquisa na IURD.
Algo que, francamente, j se esperava que acontecesse em relao ao campo afro-
brasileiro, por pensar essa esfera como tendo uma tica mais flexvel.
Sempre se refletiu que o maior e principal problema seria ser visto
semanalmente pelos da IURD no terreiro e, o pior, como isso reverberaria na pesquisa
que se empreendia no templo. Logo nas primeiras semanas que fui visto indo ao terreiro
era notrio o mal-estar e algumas indisposies por parte dos iurdianos. Quanto mais se
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explicava aos fiis que a inteno da pesquisa era compreender as entidades nos dois
universos, menos eles compreendiam. Como uma pessoa pode buscar essas coisas?,
essa frase refere-se exclamao da obreira Josefa quando na ocasio soube que a
pesquisa tinha incluses no terreiro. Afinal, para eles, se tratava de um ambiente
perigoso para se andar, como salientou o obreiro Jailson em outra ocasio. Ao invs de
retroceder minha presena em um ou outro local de culto, resolvi intensificar minhas
idas IURD e ao terreiro, mesmo sabendo das consequncias que isso poderia ter entre
os iurdianos. O sentido era arriscar ou rotinizar, logo no incio da pesquisa, essa
situao, principalmente na IURD. Fixou-se a ideia de uma identidade pessoal e de
pesquisa que, imprescindivelmente, precisava do trnsito nos dois plos, ao menos para
fins de estudo; a transitoriedade que se pretendia obter no espao da igreja e do terreiro
havia de deixar bem claro essa inteno logo no incio do estudo, pois caso houvesse
algum inconveniente, rapidamente se poderia pensar em alternativas viveis.
A primeira visita ao campo foi feita no dia 16 de Fevereiro de 2010, um visita
rpida para explicar ao pastor Jamerson a natureza do trabalho. Aps uma semana,
retornei para saber a resposta do lder sobre a possvel autorizao ou no. O mesmo
no lembrava muito bem do que se tratava, mas lembrava do meu interesse para estudar
aspectos religiosos no templo; meio que apressado, mas gentil e sorridente como de
costume, autorizou que comeasse, mas recomendou que no forasse ningum a nada.
Tinha, at ento, uma autorizao seguida da tal recomendao tica muito contundente.
Mas ao comear o campo, no mesmo dia em que me concedeu a autorizao, dia 23, ao
procurar alguns obreiros para obter as primeiras entrevistas notei que muitos no
queriam se arriscar sem antes receber a ordem expressa do pastor Jamerson ou do seu
auxiliar Renan. Durante um ms s foi mais ou menos vivel abordar fiis no templo,
pois todos os obreiros pareciam indiferentes pesquisa, mesmo informados de que o
pastor Jamerson j teria autorizado o estudo.
Aps uma das sesses de descarrego procuro o pastor titular para pedi-lhe, se
possvel, que autorizasse seus subordinados a darem entrevistas. Por motivos no
divulgados pelo pastor, passou duas semanas para faz-lo. Mas, pelo que soube atravs
de uma obreira, por sinal uma das primeiras a conceder entrevista, s foi dito aos
obreiros que havia um estudante no templo querendo pesquisar a igreja e quem quisesse
deveria me procurar, mas que deveriam ter cuidado com o que iriam dizer.
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Um bom exemplo dessa tenso no campo foi o ocorrido com a entrevistada
Ariane. Ao me aproximar da jovem, alguns obreiros se mostraram curiosos e atentos
com a possibilidade da entrevista. Criou-se uma tenso, pois muitos ainda no
entendiam o que eu realmente estava fazendo ali ou talvez no fosse claro para os
lderes algum querer fazer um estudo sobre uma igreja. Tanto que as duas perguntas
mais tpicas foram: que tipo de pesquisa essa? Para quer serve esse estudo? Mesmo
tentando esclarecer de forma simples: que a pesquisa visa compreender como os fiis
explicam as possesses e as entidades espirituais que entram nas pessoas na sesso de
descarrego, as dvidas ainda continuavam frequentes.
Ariane foi uma das minhas primeiras abordagens no templo, vrios obreiros
passaram olhando curiosos para o gravador. At que uma obreira chegou junto a ns e
perguntou o que eu estava fazendo ali com aquele gravador e se o pastor teria
autorizado a realizao desse estudo, mesmo respondendo que sim e que ela poderia no
apenas confirmar com ele, mas acompanhar a entrevista, a obreira ainda ficou intrigada
com a histria e perguntou se era para jornal. Expliquei que no se tratava de nenhuma
matria jornalstica e, sim, um estudo antropolgico para a universidade. Mesmo com
todo o esforo para explicar-lhe a natureza do estudo, a obreira, desconfiada, sentou
entre ns e comeou a mudar de assunto: perguntava se teria gostado do culto, o que
acha sobre o que Deus tinha a fazer por mim, do que achava sobre a obra da libertao.
Sobre essas perguntas tentei ser o mais educado e formal possvel, esquivando-me, tanto
quanto possvel, do proselitismo. Vendo a mesma que meu interesse maior naquele
momento era entrevistar a fiel, pois j ficava avanada a hora, aproveitou quando a fiel
lhe disse que aps a libertao sua cabea e seu pescoo estavam doloridos, e a levou
rapidamente dali para falar com o pastor e tomar algum remdio.
Havia um clima em suspenso. No demonstrei reprovao e deixei ambas bem
vontade. Logo quando retirou a fiel do banco onde estvamos lhe falou algumas coisas e
saiu com ela em direo ao pastor auxiliar. Chegando ao pastor, o mesmo fez-lhe uma
orao e logo em seguida a jovem novamente se manifesta, a me que continuou ao meu
lado disse: eu sabia que a no tinha dor de cabea coisa nenhuma, era essa coisa ruim
que est nela, agindo. A coisa ruim a qual se referia a me era uma Pomba-gira, que
teria manifestado na jovem minutos antes, no culto. A jovem voltou sorridente e disse-
me estar bem melhor, perguntei se ainda gostaria de conceder a entrevista, afirmou que
sim. Percebi que ao retornar de onde tnhamos parado, por algum motivo no claro para
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mim, a jovem estava mais sucinta em suas respostas, mais formal. Cogitei que talvez
fosse pela relao tensa que muitas vezes entrevistados demonstram diante do gravador
e da figura do pesquisador, ou mesmo, talvez por orientaes que a obreira teria lhe
passado.
O clima para entrevistas com obreiros durante os dois primeiros meses ainda era
de suspenso, at que tentei entrevistar os dois pastores responsveis, julgando com isso
algum sucesso entre os obreiros e os fiis. O pastor titular sempre se esquivava por um
motivo ou outro e no concedeu entrevista para esse estudo em momento algum8; foi
atravs de uma entrevista feita com o pastor auxiliar que as portas se abriram para
outras abordagens no templo. A notcia que o pastor Renan teria dado entrevista
circulou rpido entre outras lideranas, da, alguns se sentiram mais vontade, outros
no se agradaram da ideia em momento algum e outros s quiseram falar se no fosse
usado o gravador, e assim o foi em dois casos. Ao todo foram 16 entrevistas feitas com
membros e frequentadores da IURD, apenas uma das entrevistas no foi realizada no
templo do Jacintinho9, todas as outras foram realizadas antes ou aps a Sesso de
Descarrego na tera-feira (13 entrevistas), ou na Reunio dos Filhos de Deus na quarta-
feira (apenas duas entrevistas)10.
Durante os meses de Fevereiro a Junho de 2010 intensifiquei o campo e as
abordagens de entrevistas na IURD a fim de completar meu campo o mais rpido para,
finalmente, ficar um pouco mais vontade para transitar entre os meses de julho a
outubro no terreiro. Mesmo com isso, as visitas aos toques dos Exus nas segundas-feiras
aconteciam desde maro e se estendiam at outubro do mesmo ano entre o povo-do-
santo, porm, com uma frequncia semanal maior na casa de ax durante os meses de
julho e setembro. Entretanto, essa delimitao foi apenas virtual, pois sempre que
julguei necessrio circular em ambos os espaos o fiz, o que aconteceu nos dias 08 e 22
de junho e 10 de agosto quando j havendo concentrado minha atuao na casa de ax
resolvi voltar ao templo para tirar algumas dvidas. A pesquisa de campo somou, assim,
8 - O pastor titular, sempre alegando falta de tempo ou cansao, no concedeu entrevista; marcou oito vezes nosso encontro, mas no comparecia ou desmarcava. Resolvi desistir dele e seguir com outros informantes. 9 - Trata-se do pedreiro Gilberto que conheci por ocasio de alguns servios prestados por ele na minha residncia. O fiel frequenta o Templo Maior da IURD que fica no bairro de Mangabeiras. 10 - Nem todas as entrevistas realizadas durante o trabalho de campo foram usadas nesse estudo. Dentre as 16 entrevistas, duas pessoas no me permitiram gravar o udio.
20
nove meses de insero no campo distribudos entre a igreja e o terreiro, um perodo de
tempo a mais do que o planejado.
Na IURD foram feitas 20 visitas s teras-feiras do descarrego e duas Reunio
dos Filhos de Deus que acontecem s quartas-feiras. J no terreiro Palcio de Iemanj
foram 38 visitas, sendo 30 nos dias de toques destinados aos Exus, duas nas reunies do
Preto Velho Serrania, que acontecem s quartas-feiras, cinco nas reunies destinadas
aos Orixs, que acontecem s sextas-feiras11. Alm desses dois segmentos religiosos
foram visitadas em Macei mais nove casas de ax e uma em Recife, as quais
contriburam com importantes ideias e entrevistas para a construo desse estudo, so
elas: a do babalorix Clio Rodrigues, Ncleo de Cultura Afro Brasileira Iy Ogun-T
(nao gge-nag), trs visitas para fins de pesquisa e duas entrevistas gravadas; a casa
da ialorix Mirian, o Il Nif Omi Omo Pas Bt - Casa de Amor e F (nao gge),
uma visita e uma entrevista gravada; a casa da ialorix Veronildes, do Abass de
Angola Oy Bal Tradio de Alagoas (nao angola), uma visita e uma entrevista
gravada; a casa do babalorix Manoel Xoroqu, o Il Ax Legionir Nit Xoroqu
Legba Zambi Vodum (nao angola-gge), duas visitas e uma entrevista gravada; a casa
da ialorix Maria de Lourdes, terreiro Oxum Miraguassi (nao nag), duas visitas e
uma entrevista gravada; a casa do babalorix Ferreira, Centro Esprita Santa Ceclia
(nao xamb), trs visitas e uma entrevista gravada; a casa da ialorix Celina, Castelo
de Pai Oxal Oxaluf (nag-umbanda), duas visitas e uma entrevista gravada; a casa de
Me Jurema, Terreiro de Umbanda, sem nome, duas visitas e uma entrevista no
gravada; o terreiro do babalorix Elias, A Corte de Air, trs visitas e uma conversa
informal; a casa da ialorix Zuleide, terreiro de Arranca-Tco em Recife-PE (nao
nag), uma visita e uma entrevista gravada; e uma ltima em So Paulo, Associao
Cultural Beneficente e Educacional do Templo Religioso Il se Oba Nl y Oba Ati
Baba In, atravs do filho-de-santo Robson T Od, a qual no foi realizada nenhuma
visita in loco, toda a comunicao com esse fiel foi feita por emails, pude entrar em
contato e conhecer virtualmente o mesmo atravs do site que ele administra
11 - Tambm tive a oportunidade de ir a outras festas ocasionais, mas no para fins de pesquisa, como numa viagem em que acompanhei o terreiro at o municpio de Coruripe-AL entre os dias 30 e 31 de Julho de 2010 onde, na ocasio, um filho-de-santo do babalorix Zeca, Seu Sebastio, ento lder do terreiro Palcio de Iemanj no referido municpio, realizava a festa de uma obrigao de dois filhos-de-santo de sua casa, ocasio em que o terreiro Palcio de Iemanj de Macei com frequncia se desloca quele municpio para participar de tal festividade que quase sempre acontece no ms de julho.
21
(www.povodosanto.wordpress.com). Nas sete ltimas casas as referncias textuais no
so to expressas, mas de forma geral contriburam significativamente para o
entendimento das figuras de Exus/Legbas, Pombas-gira e as formas de culto das
religies afro-brasileiras nessa pesquisa. Alm do material produzido em campo,
utilizou-se aqui tambm algumas entrevistas de babalorixs da capital do arquivo do
filme 1912, o Quebra de Xang, documentrio dirigido pelo antroplogo Silo Amorim.
Algumas pesquisas foram feitas ao acervo digital do CNFCP (Centro Nacional de
Folclore e Cultura Popular) a fim de levantar matrias jornalsticas e textos acadmicos
sobre as religies afro-brasileiras e, especificamente, sobre a entidade Exu.
No que diz respeito insero no campo da Rua So Jorge, ir e vir ao terreiro
nas segundas-feiras e retornar a ele s teras-feiras para visitas IURD, fez-se perceber,
paulatinamente, como a presena do pesquisador no campo agua certas expectativas
religiosas das mais diversas e, por outro, estimula as investidas religiosas dos fiis de
ambos os lados. Na IURD pode-se dizer que as expectativas giravam em torno da minha
possvel libertao ou converso igreja, at mesmo, pude notar, em algumas das
sesses, alguns olhares vigilantes por parte de obreiros. Ateno que se dirigia a mim,
como buscando encontrar alguma espcie de emoo, entusiasmos pelo culto, ou, quem
sabe, uma manifestao, no sentido performtico da palavra. A insero nesse campo se
caracterizaria, posso dizer, dentro de um misto de expectativas que se encontrava, a
cada dia, em uma situao decrescente, tanto para os lderes da igreja, quanto para mim,
pois enquanto havia no comeo um certo estmulo por parte dos lderes em empreender
a obra da libertao em mim, nos ltimos dois meses foi percebido por eles que o meu
caso talvez fosse perdido, pois quanto mais ia ao templo, tanto mais ia ao terreiro.
Isso era motivo de incompreenso, era como se nada do que teria escutado durante
aqueles meses no templo tivesse fixado ou ganhado fundo, eu era o Exu que tendo
contato com segmento afro-brasileiro no conseguia manifestar no templo. Algo que se
expressou, de forma cabal, em determinada ocasio de entrevista, quando conversava
com uma obreira e perguntava-lhe o que acreditava ser a libertao. A mesma, acredito,
j um tanto impaciente talvez com minha incompreenso sobre a verdade, ou no
vendo nenhuma iniciativa minha pela converso, ao invs de entrar no assunto que teria
sugerido, exclamou: eu no sei o que tanto voc estuda! Voc no j conhece a
verdade? Anda em coisa errada porque quer. Voc deveria era se libertar. No precisei
22
de gravador para aquilo ficar registrado. Dias aps recordava a impacincia da obreira e
aquela expressa regulada me vinha mente como se ela estivesse do lado repetindo a
sentena. Isso me foi dito no ltimo ms de pesquisa, em junho de 2010, no sei se em
decorrncia disso ou se j por ter obtido algumas importantes e principais entrevistas e
experincias nesse campo, resolvi dar por encerrado o campo naquele ms. Pretendia
fechar o campo em julho, mas visto o desgaste resolvi antecip-lo. Tambm em menos
de 30 dias chegaria o ms de Exu na cidade, agosto, e talvez fosse melhor dedicar meu
esforo total entre os afro-brasileiros.
A pesquisa de campo que tenha como experimentao o contato direto com os
pesquisados, traz consigo os efeitos da presena do pesquisador no campo. Segundo
Georges & Jones (1980:04), a presena do pesquisador no campo pode trazer efeitos
desconhecidos sobre o bem-estar futuro dos indivduos ou grupos, pois o processo de
insero no campo deve ser interpretado em nvel real quando se trata de gente
estudando gente. Assim mostra os autores:
Quando temos pessoas estudando outras, todos os indivduos envolvidos apresentam necessariamente sentimentos ambguos uns em relao aos outros pelo menos inicialmente. Tanto os pesquisadores de campo quanto os informantes vem-se obrigados a lidar com os dilemas criados pela natureza da sua relao (op. cit.: 19).
E assim o foi desde quando comecei a empreender o estudo na Rua So Jorge.
Pude perceber e acompanhar o caso da entidade Exu e Pomba-gira e seu respectivo
trnsito simblico nessas duas esferas religiosas com a sensao evidente que alm
dessas figuras eu tambm possua uma identidade em trnsito simblico, onde por um
lado, ascendia s relaes de afeto e amizades que a cotidianidade e a constncia no(s)
terreiro(s) trazia, e de um outro lado, tambm motivado pela frequncia da minha
pessoa, decrescia as interaes e os contatos na IURD. No que isso proporcionasse um
desgaste cindido, mas as expectativas reposicionavam, muito claramente e muito em
relao aos interesses prioritrios.
J em relao escolha do terreiro Palcio de Iemanj como objeto de estudo
alguns aspectos interpessoais e religiosos foram fundamentais. Como j mencionado
aqui, em 2008 tive a oportunidade de iniciar nessa casa de ax minha pesquisa sobre as
entidades Exu e Pomba-gira, terreiro que seria uma das bases de informaes para o
23
Trabalho de Concluso de Curso (TCC) em cincias sociais na UFAL12. Ao terminar o
referido trabalho notei que havia muito o que pesquisar sobre os Exus na Umbanda e a
sua insero na IURD. Durante a construo do pr-projeto para essa dissertao,
algumas abordagens e aprofundamentos que extrapolariam o formato do TCC naquele
momento, foram pensados para compor o projeto dissertativo. Pela boa insero e
relacionamento que tive com os lderes e filhos-de-santo do terreiro Palcio de Iemanj
notei que seria meio passo percorrido caso pudesse voltar l para aprofundar a pesquisa.
Alm do que foi l onde pude perceber que os Exus da linha de Umbanda atuavam
semanalmente (com algumas poucas excees), algo que facilitaria meu encontro com
as entidades, os filhos-de-santo e os lderes da casa no momento da execuo da
pesquisa de campo e as respectivas entrevistas que adviria. Parte significativa das
entrevistas realizadas na casa de ax (15 entrevistas ao total) foi feita antes ou depois
das festas destinadas s entidades nas segundas-feiras.
A pesquisa de campo no terreiro mais parecia uma continuidade do que j vinha
estudando ou das visitas que ora ou outra resolvia fazer a casa. Ao comunicar meu
retorno ao babalorix Zeca para estudar sua casa de ax o mesmo foi bastante solcito e
se colocou disposio das possveis entrevistas que iria precisar. A expectativa de
retorno casa, em fevereiro de 2010, mais parecia uma conveno para eu mesmo
delimitar o incio formal da pesquisa, pois para os membros do terreiro meu trabalho ali
parecia ter comeado desde 2009, pois sempre que podia, saa de Recife para Macei
para acompanhar alguma festa ou toque especial. Alguns filhos-de-santo do terreiro,
sobretudo aqueles com quem em 2008 no tive muito contato, ainda me identificavam
como o rapaz da Universidade ou o rapaz das fotos13. As relaes foram se
naturalizando em alguns meses e junto com elas meu nome foi tomando seu posto.
Os fiis do terreiro so pessoas que sustentam suas vidas com trabalhos bem
modestos e humildes, tais como empregadas domsticas, diaristas, vendedores
12 O referido trabalho foi defendido em 2008 no Instituto de Cincias Sociais da UFAL com o ttulo: Elementos de Rituais Afro-brasileiros sob a tica de Re-significao Iurdiana: uma Etnografia dos Exus na Umbanda e na Igreja Universal do Reino de Deus, sob orientao da Prof. Dr Rachel Rocha. 13 - Fiz algumas intervenes fotogrficas no terreiro a fim de cobrir as festa e obrigaes e posteriormente devolv-las comunidade em Cd ou Dvd. s vezes revelava algumas e presenteava alguns membros. Isso me fez notar que certas barreiras se abriam entre aqueles que eu no tinha muito contato, a fotografia, nesse sentido, foi um excelente instrumento para estabelecer o feedback.
24
autnomos, mecnicos, aposentados, donas de casa e/ou trabalhadores de pequenos
ganhos feitos no oferecimento de trabalhos religiosos, tal como deitar um bzio, uma
carta, um trabalho de despacho, um banho de ervas e outros. Muitos moram em casas
populares, grotas e conjuntos residenciais, a maioria no bairro do Jacintinho ou
periferias adjacentes.
Em relao escolha de Exu como expoente desse estudo, devo dizer que desde
a graduao penso no sentimento ambguo no qual se envolve a identidade dele, pois se
por um lado alguns o associam precariedade mgica, ao imaginrio dos trabalhos de
esquerda e a coisas malficas, por outro, h os que destinem a ele melhor sorte,
compreendendo-o como benvolo, guardio e poderoso. Essa disputa simblica em
torno da identidade de Exu no parece t-la simplesmente desgastado, mas transportado-
a outras esferas e novas circunstncias culturais emblemticas. Desde dcada de 70 que
esse senso ambguo, que insiste em recair sobre Exu, parece se reapresentar ao saber
antropolgico em meio a um segmento inusitado, os neopentecostais, sobretudo a
IURD. E essa apario de Exu na Igreja Universal causa, sem dvida, certa estranheza
para alguns, porm, para alm do fato curioso que , concebe-se aqui que h
singularidades a serem buscadas nessa insero da entidade no universo neopentecostal
que foge simples curiosidade.
a partir desse cenrio imbricado e sob tais circunstncias metodolgicas que se
pode observar, ao longo deste estudo, como as referidas entidades so percebidas nos
universos afro-brasileiro e neopentecostal em questo. Para tentar compreender a
identidade do arqutipo de Exu, a pesquisa permeou e ouviu no s adeptos do Palcio
de Iemanj e da IURD no Jacintinho, mas tambm outros lderes religiosos do
Candombl na cidade, onde a proposta fundamental, alada desde o comeo do projeto,
: compreender como as entidades conhecidas como Exu e Pomba-gira e outros
smbolos afro-brasileiros so entendidos entre alguns segmentos de terreiros da cidade
e, mais especificamente, entre os fiis da IURD e do terreiro na Rua So Jorge.
Perspectiva Terico-Metodolgica utilizada em campo
Metodologicamente parte-se da concepo de Minayo (1994) que interpreta a
pesquisa qualitativa como um caminho que responde a questes muito particulares, pois
25
ela se preocupa, nas Cincias Sociais, com um nvel de realidade que no pode ser
quantificado (Idem: 21). Segundo Bauer, Gaskell & Allum, a pesquisa qualitativa tem
como trunfo o deslocamento da anlise, vista diversas vezes como central na pesquisa,
ateno com a qualidade e coleta dos dados (2002:24). Atravs de uma abordagem
qualitativa e por meio de tcnicas de observao direta e participante pretende-se
produzir o material etnogrfico proposto nos objetivos do projeto (BERNARD, 2006).
Desta forma foram usadas tcnicas de entrevistas estritamente ligadas pesquisa
qualitativa.
Por meio de entrevistas no-diretivas, seguindo Chizzotti, ao mostrar que este
tipo de entrevista rene um corpus qualitativo de informaes que se baseia na
racionalidade comunicacional, buscou-se produzir os dados da pesquisa nos dois
universos religiosos (1995:85); como tambm atravs da entrevista aprofundada, que
explora uma reao particular dos sujeitos pesquisados a um determinado estmulo,
pretende-se compreender as caractersticas e identificaes dadas s entidades
espirituais na IURD e entre os afro-brasileiros (GRANAI, 1977:207). Na mesma linha
qualitativa, utiliza-se da entrevista no-estruturada ou informal que, como prope
Cortes, se diferenciaria das demais tcnicas por sua abertura em relao ao roteiro, onde
o entrevistador pode conduzir alguns temas importantes por meio de vrias tcnicas
alm das discursivas, tais como quadros, pinturas e fotos, assim a pesquisa do tipo
informal visa que as pessoas se expressem livremente sobre o que pensam (CORTES,
1998:19; BAUER, 2002:21).
Pretende-se, atravs de tcnicas de entrevistas que contemplem a oralidade, tais
como a histria oral e entrevistas narrativas tambm, abordar o fenmeno pesquisado.
Vangelista mostra que a fonte oral proporciona uma viso subjetiva que (...) entretm
constantes dilogos interiores com o sentir de um grupo (2006:188); autores como
Jovchelovitch & Bauer veem a entrevista narrativa como uma forma de encorajar o
entrevistado a contar sobre si mesmo ou sobre o grupo a qual pertence (2002:93).
Para abordar e compreender o trnsito simblico e ritual das entidades afro-
brasileiras no universo da IURD utiliza-se aqui conceitos primordiais a essa discusso,
tais como o de sincretismo religioso proposto por Steil (2001:31), onde o concebe como
uma sntese de vrios elementos integrados por uma lgica estrutural elementar, isto ,
uma forma de ordenao durvel das coisas e do mundo, algo, segundo o mesmo,
26
presente em todas as religies, quebrando com o sentido de pureza ou originalidade
religiosa. Utiliza-se tambm aqui, mais especificamente, os conceitos de sincretismo
metonmico e metafrico proposto em Motta (1991:253). Por sincretismo metonmico o
autor pretende elucidar a capacidade simblica que os seres espirituais tm de se
aproximarem ontologicamente um do outro no circuito de algumas culturas religiosas.
J em relao ao sincretismo metafrico o autor compreende que a associao
acontece em termos representativos, no de fato, antes lembra autor, uma forma
sucinta que pressupe elementos que se ligam a uma matriz ontolgica. Segundo Victor
Turner, a metfora assume um tom de complementaridade, enfatizando a sua
perspectiva dinmica, ou como prope o autor, engendram o pensamento em sua
coatividade (2008:25). Assim, torna-se essencial mostrar como esta capacidade
semntica da metafrica vai constituindo outro elemento central, a ideia de smbolo
multivocal, que o autor define como passvel de muitos significados, mas com os
significados centrais ligados analogicamente (op.cit.24). Em relao ao conceito de
ritual, Victor Turner o percebe como uma conduta formal, onde a experincia, a sada
do cotidiano, encontra significados coletivos, expresses que se amparam nas
referncias simblicas e, sobretudo, fornece ao processo social, no qual est envolvido o
sujeito, elementos retricos (1990). Tambm imprescindvel articular a concepo que
se move nesse trabalho sobre simbolismo ritual. Segundo Sherry Ortner, o simbolismo
ritual opera reorganizando as representaes da experincia e da conscincia do sujeito
em relao s realidades postas.
The reshaping of consciousness or experience that takes place in ritual is by definition a reorganization of the relationship between the subject and what may for convenience be called reality. Ritual symbolism always operates on both elements, reorganizing (representations of) reality, and at the same time reorganizing (representations of) (1978:09)14.
Importante destacar o conceito de corpo ou de corporificao ritual, assim como
proposto por Thomas Csordas, para elucidar a perspectiva da utilizao performtica do
14 - Possvel traduo: "O novo delineamento da conscincia ou da experincia que acontece num ritual por definio uma reorganizao do relacionamento entre o sujeito e o que por convenincia pode ser chamado de realidade. O simbolismo ritual sempre opera sobre ambos os elementos, reorganizando (representaes da) realidade e ao mesmo tempo reorganizando (representaes de)".
27
corpo no momento da possesso dos fiis na IURD (2008). No devemos entender aqui
a ideia de corporificao em relao semntica proposta pela biologia e pela fsica,
mas pelo contedo semntico que se estabelece nas linguagens perceptivas do ritual e
da performance que devemos entender a ideia de corpo. Na linguagem corporal de
autoridade e de submisso que se estabelece entre curador e possesso entenda-se a
noo de habitus, e no o binmio objeto-sujeito, assim,
Esse domnio culturalmente predeterminado, e tanto a descoberta espontnea de uma srie de espritos tipicamente relacionados como a sua salincia experiencial emprica para o suplicante podem ser entendidas em termos do modo com que disposio so orquestradas no habitus (CSORDAS, 2008:117).
A concepo de techniques du corps tambm pode ampliar o entendimento sobre
corporificao ritual multissensorial, pois aes como rir, chorar, gritar e cair so
objetificadas no nvel do sagrado na experincia do corpo, at mesmo as mais incomuns
ao cotidiano (op. cit.:120). Nesse sentido, nenhum corpo est destitudo de informaes
no momento do rito e da performance, ele socialmente informado (op. cit.: 109).
Dessa forma, a imagem multissensorial que se apresenta no ritual de possesso e cura da
IURD faz-se objetificada no apenas atravs do estabelecimento das entidades do
panteo afro-brasileiro no momento do culto, mas pela capacidade que as experincias e
subjetividades guardam sobre aquelas referncias do universo negro (at mesmo do
contexto performtico), assim, o corpo traz consigo elementos e passa a ser um agente
socialmente informado.
Percurso da leitura e informaes tcnicas
O 1 captulo prope-se a articular, mesmo que brevemente, alguns aspectos
histricos e sociais da IURD. Trata-se de um captulo, mais especificamente, de
organizao de alguns conceitos chaves, percursos e contextualizao poltica da Igreja
Universal no pas e no mundo; elementos que foram pesquisados em bibliografias
especializadas de setores acadmicos e/ou jornalsticos, mas, sobretudo, em publicaes
sociolgicas, antropolgicas e historiogrficas que se propuseram a refletir sobre o
neopentecostalismo iurdiano.
No 2 captulo faz-se uma abordagem mais voltada etnogrfica e projeo de
reflexes tericas das sesses de descarrego promovidas pela IURD no bairro do
Jacintinho, em Macei. nesse material que se percebe algumas especificidades que s
28
seriam possveis acessar por meio do trabalho de campo, onde as projees tericas
podem iluminar o ambiente, mas de forma alguma estabelecer padres. Pode-se
observar nesse 2 captulo a reorganizao simblica e a insero ritual que os Exus e
Pombas-gira do tipo umbandista ganham na sesso de descarrego. Tambm, como os
agentes sociais iurdianos entendem essas figuras, quais so os valores simblicos
atribudos no momento da transposio ou do trnsito delas ao templo. Principalmente,
tentar compreender de que forma e a que custo referncias simblicas e rituais dos afro-
brasileiros podem estar presentes no contexto neopentecostal iurdiano.
No 3 captulo busca-se organizar uma discusso apoiada em bibliografias
antropolgicas sobre a entidade Exu, desde seu contexto africano, passando por suas
referncias no universo do Candombl, sem deixar de contextualizar os aspectos
umbandista da entidade. Sobretudo, levanta-se nessa parte do trabalho, como
especialistas na temtica observaram a entidade e o processo de demonizao do
mesmo. Tambm se tenta mostrar, por meio de uma reflexo sobre os aspectos
sincrticos que erigiram a entidade no Brasil, como o imbricado processo cultural
brasileiro dotou o arqutipo de Exu de categorias representativas, nem sempre bem
vistas por alguns segmentos, numa miscelnea de conhecimentos e caractersticas que
garantem seu poder, sua personalidade dbia e sua fundamental atuao nos terreiros
afro-brasileiros dos mais diversos lugares do pas; desta forma, mesmo quando a
ambiguidade sobre a sua personalidade e seus atos se estabelece, sua presena notvel
e indispensvel ao ax.
No 4 captulo a pesquisa etnogrfica ganha os limites rituais e simblicos da
identidade de Exu no terreiro Palcio de Iemanj, na Rua So Jorge, Jacintinho, liderado
pelo babalorix Zeca. Nesse momento do trabalho observam-se as representaes e o
formato ritual da referida casa, a fim de apresentar uma compreenso dos Exus e
Pombas-gira por meio da explicao dos fiis desse universo religioso. O intuito aqui
proporcionar a esses sujeitos e ao leitor uma polifonia de discursos, sobre os quais
incidem as representaes e compreenses a respeito dos Exus e Pombas-gira no seu
reduto matriz. A perspectiva prope apresentar a importncia e a indispensabilidade
ritual dessas entidades no contexto do ax, justamente para que se observem as
diferenas significativas entre a posio da entidade na IURD e no terreiro.
O 5 e ltimo captulo abre um espao para que se compreenda por meio de
outras casas de ax, sobretudo casas que reivindicam o discurso da tradio africana em
29
suas liturgias, algumas referncia e caractersticas identitrias sobre os Exus.
Especificamente, aborda-se nesse momento a identificao religiosa dada a Exu em
quatro terreiros da capital, o Ncleo de Cultura Afro Brasileira Iy Ogun-T, o Il Nif
Omi Omo Pas Bt - Casa de Amor e F, o Abass de Angola Oy Bal Tradio de
Alagoas e o Il Ax Legionir Nit Xoroqu Legba Zambi Vodum.
Para melhor compreenso das citaes e intervenes no texto deve-se notar que
as referncias diretas no corpo do texto, sejam elas de algum autor ou de algum
entrevistado, viro entre aspas; j as citaes e entrevistas destacadas do corpo do
texto viro com recuo de pargrafo, fonte reduzida e sem aspas; sempre que for
necessrio intervir no corpo destas citaes, seja no corpo ou destacadas do texto,
utiliza-se fonte em itlico, acompanhada de colchetes para destacar possveis
esclarecimentos necessrios boa compreenso do enredo citado.
30
CAPTULO I
31
1.1- O Neopentecostalismo e o contexto histrico-social da IURD
No decorrer do sculo XX, o Brasil experimentou um processo de pluralizao religiosa resultante da sedimentao, superposio, acumulao e re-elaborao de tradies religiosas as mais diversas, como as de origem portuguesa, indgena, africana e, mais tarde, europia e asitica. Nesse processo houve a quebra do monoplio simblico mantido at ento pelo catolicismo, provocada pelo desenvolvimento de diversas expresses religiosas de matriz protestante acompanhada da insurgncia de novos movimentos religiosos [...] (Rodrigues, 2003:13).
Para melhor entender o panorama e a formao sociohistrica da Igreja
Universal do Reino de Deus, um novo tipo de religiosidade que emergiu no Brasil na
dcada de 70, mas que veio se processando desde a dcada de 10 com o pentecostalismo
clssico (Mariano, 1999:29), se faz necessrio compreender o que se convencionou
chamar, na categoria sociolgica, de pentecostalismo e neopentecostalismo (1999:32).
Mas antes de passar para a conceituao sociolgica, importante, tambm,
salientar o significado que a palavra pentecostes tem para os evanglicos pentecostais. A
priori, deve-se notar que uma referncia clara passagem bblica dos Atos dos
apstolos 2,1-13, tendo como ponto central o dia de pentecostes, quando o Esprito
Santo desceu e se manifestou atravs do dom de lnguas estranhas, exorcizando
demnios e dando o dom da cura aos discpulos de Cristo. Este episdio o referencial
dos pentecostalistas na experincia cotidiana das suas liturgias (Bonfantti, 2005:01).
Conforme Mariano, este evento bblico acabou caracterizando a manifestao religiosa
de diversos grupos comprometidos com uma renovao carismtica, como tambm com
os dons do Esprito Santo e o dom de lnguas estranhas (1999:28). Bonfim mostra que
este fenmeno, o de falar lnguas estanhas, conhecido como glossolalia ou balbuciar
inarticulado das palavras, caracterstica preferencial dos pentecostais. Ethos religioso
que surge e se desenvolve no incio do sculo XX nos EUA e que acaba se irradiando
pelo mundo em apenas seis anos (2007:63).
A trajetria das igrejas evanglicas nunca foi to ascendente15. Dados
apresentados por uma pesquisa do Centro de Estatstica Religiosa e Investigaes
Sociais (CERIS) mostram que a Igreja Catlica perdeu nas ltimas dcadas cerca de 15
milhes de adeptos, e que, a cada dez ex-catlicos, sete se tornaram evanglicos. Outro 15 - Revista Veja, 12 de Julho de 2006, N 27. Ttulo da capa da revista O Pastor Show; Ttulo da entrevista: Os Novos Pastores, pela jornalista Camila Pereira e Juliana Linhares;
32
dado interessante trazido pela Fundao Getlio Vargas (FGV), onde a instituio
calcula que percentual de evanglicos brasileiros passou de 15% para 18% da
populao. Esses dados so contrastantes quando comparados com os de apenas doze
anos atrs, que indicam que poca nada mais que 9% da populao brasileira era
composta por evanglicos. Na periferia das regies metropolitanas os nmeros superam
a perspectiva geral das estatsticas e os dados mostram a dinmica e a versatilidade que
as denominaes neopentecostais conseguiram embutir no frenesi religioso do pas em
pouco mais de uma dcada16.
Pode-se observar que o fenmeno religioso no pas tem sido algo muito
abordado pela grande mdia, pelos populares, como tambm, no circuito acadmico.
Aps uma inegvel hegemonia da igreja catlica no pas, tambm estatisticamente
constitudo como o pas de maior populao catlica do mundo, a atual situao
religiosa do Brasil tem sido, segundo os dados estatsticos de cada ano, (re)configurada
pela efervescncia evanglica. O perfil religioso do pas tem mudado vertiginosamente
sua configurao denominacional e o Brasil tem ostentado tambm, alm do ttulo de
maior pas catlico do mundo, o de segundo maior pas protestante do mundo, perdendo
apenas para os EUA (BONFATTI, idem: 1-2).
Atravs da categoria pentecostal, Freston compreende trs movimentos na
religiosidade brasileira. Fluxo que tem sua origem a partir da dcada de 10, passando
pelas dcadas de 50, 60 e 70 e chegando aos nossos dias. O autor realiza um corte
histrico-institucional nos movimentos que ascenderam na sociedade brasileira da
dcada de 10 contemporaneidade (1994: 67, 113 e 131).
Os cortes se classificam, segundo o entendimento do autor, em ondas no
movimento religioso. Pelo termo ondas, Freston entende que a frentica das
denominaes acontece na seguinte ordem: a primeira onda corresponde ao movimento
religioso que se originou na dcada de 10 e que marcou a chegada no Brasil das igrejas
Congregao Crist no Brasil e Assemblia de Deus (1994: 67), que, segundo Almeida,
foram movimentos religiosos distantes de questes scio-polticas das regies onde se
estalaram, no estado do Paran e Par respectivamente (2009:28). Observa-se, ainda
referente leitura de Almeida, que a linguagem de combate s outras religies por meio
do discurso proselitistas, na poca o catolicismo, j eram incurses feitas no campo 16 - Pesquisa realizada pela sociloga Slvia Regina Fernandes. A pesquisa abrangeu cinqenta municpios brasileiros. Revista Veja (Idem:78).
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religioso por essas primeiras igrejas pentecostais, o que, de certa forma, d
caractersticas identitrias s novas denominaes pentecostais ainda hoje (Idem:
ibidem), linguagem de ataque que se processou contra o catolicismo, mas que
empreendeu novas investidas contra as religies afro-brasileiras, amerndias (tais como
as ayahuasqueiras) e orientais17.
Na dcada de 50 surge a segunda onda, com o aparecimento da igreja
Quadrangular e o movimento da Cura Divina movimento paraeclesistico que reuniu
pastores e fiis de vrias igrejas, evento realizado pela igreja do Evangelho
Quadrangular, fato que culminou na insurgncia de outras denominaes evanglicas
(Soares, 1990:77) - entre esta surge outras, tais como a Brasil para Cristo e Deus
Amor, marcando o aparecimento pentecostal no Brasil (1994:113). A igreja do
Evangelho Quadrangular j existia nos EUA, por isso deve ser vista como a primeira
importao institucional-religiosa pentecostal estabelecida no Brasil, diferentemente da
Congregao Crist e Assemblia de Deus que foram fundadas em territrio brasileiro
por missionrios vindos dos EUA, mas que, originalmente, eram ligados a outras
denominaes. A Assemblia de Deus, ligada a Igreja Presbiteriana, e que, por ciso, foi
fundada por Luigi Francescon e seu irmo G. Lombardi; a Congregao Crist do
Brasil, ligada igreja Batista e fundada pelos suecos Gunnar Vingren e Daniel Berg,
que aps contato com o reavivamento pentecostal em 1906 nos EUA receberam uma
profecia mostrando-lhes que deveriam ir a um lugar chamado Par para levar a
palavra de Deus, mesmo sem nem saber onde situava-se tal lugar (ALMEIDA, op. cit.:
25-27).
A terceira onda, movimento que mais se observa ao longo deste trabalho,
corresponde ao surgimento do ethos neopentecostal, com a criao da Igreja de Nova
Vida, denominao que deu origem formao das Igrejas Universal do Reino de Deus,
Internacional da Graa de Deus, Cristo Vive e outras. Este perodo foi marcado por
uma crescente variedade de denominaes jamais vista no pas (1994:131) e (1999:32).
Utiliza-se neste trabalho o termo neopentecostal no sentido adotado por Freston
(1993), Oro (1993) e Mariano (1995; 1999), em que os autores, sobretudo Mariano,
destacam que o prefixo neo uma forma de classificar a dissidncia do movimento
neopentecostal em relao ao pentecostalismo clssico da dcada de 10 (1999:33). 17 - Sobre isso ver: http://folha.arcauniversal.com.br/integra.jsp?codcanal=10032&cod=148779&edicao=937
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O termo neopentecostal desenvolveu-se, no contexto sociolgico, para designar
uma mudana qualitativa no movimento religioso na dcada de 70, no Brasil, em
relao ao contexto religioso das igrejas inseridas na segunda onda. De forma que
alguns socilogos classificaram o movimento ascendente ao pentecostalismo como a
terceira onda, mostrando algo novo e inusitado na religiosidade de algumas
denominaes deste perodo. Todavia, existe outro fator que merece ser lembrado
dentro da argumentao de Mariano. A terminologia neopentecostal tambm se baseou
no surgimento da Igreja Universal do Reino de Deus IURD que considerada como
a maior novidade do neopentecostalismo do pas (op. cit.: 34). Percebe-se que esta
denominao religiosa apresenta caractersticas to inovadoras para o contexto de sua
poca, que s aps o seu aparecimento no cenrio religioso que o termo
neopentecostal cunhado (idem). A importncia de tal fato nos faz lembrar que mesmo
j havendo surgido outras denominaes somente com o aparecimento da IURD o
termo ganha um sentido especial (1999:33).
Entre outras peculiaridades que caracterizam os pentecostalistas e
neopentecostalistas destaca-se seu maior engajamento em questes polticas e
comunicacionais. Almeida destaca que os primeiros pentecostais eram indiferentes a
questes polticas, visavam questes emotivas e espiritualistas baseados em um total
afastamento do mundo (2009:27-28). Embora o pentecostalismo no tenha
continuado to afastado do mundo assim, desde a redemocratizao do pas participa
e compe ativamente o cenrio do legislativo do pas com seus candidatos que ficaram
conhecidos por compor a bancada evanglica. A dcada de 80 pode ser vista como
um perodo de maior adeso aos meios de comunicao em massa pelos protestantes
histricos e, sobretudo, pelos (neo)pentecostalistas (op. cit.: 38). Diante do crescimento
poltico e comunicacional desses segmentos evanglicos no pas, no h como no
observar o estrondoso desenvolvimento da IURD nessas reas.
importante mencionar que a terceira onda das denominaes neopentecostais
tm como cenrio de fundo urbano a cidade do Rio de Janeiro, diferentemente do
cenrio das igrejas, situadas no movimento de segunda onda, que foram denominaes
surgidas em So Paulo (MARIANO, 1999:35). Salientando, segundo Mariano, que a
formao da liderana pentecostal paulista permeada por imigrantes de nvel cultural
simples, destaque-se que o contexto da liderana neopentecostal carioca constitudo
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por citadinos de nvel cultural um pouco mais elevado e pele mais clara (Idem:
ibidem).
Outros fatores contribuem para caracterizar a IURD como uma denominao
que est inserida no movimento neopentecostal; os primeiros e principais fatores so:
realizam rituais de cura divina, rituais de prosperidade, exorcismo, se opem aos afro-
brasileiros, incentivam a expressividade emocional e se utilizam dos meios de
comunicao de massa (idem: 34-35). Assim define Mariano o conceito de
neopentecostal:
Para ser enquadrada como neopentecostal, portanto, uma igreja fundada a partir de meados da dcada de 70 deve apresentar as caractersticas teolgicas e comportamentais distintivas dessa corrente. Quanto mais prxima destas caractersticas estiver, tanto mais adequada ser classific-la como neopentecostal. Isto , quanto menos sectria e asctica e quanto mais liberal e tendente a investir em atividades extra-igreja (empresariais, polticas, culturais, assistncias), sobretudo naquelas tradicionalmente rejeitadas ou reprovadas pelo pentencostalismo clssico, mais prxima tal hipottica igreja estar do esprito, do ethos e do modo de ser dos componentes da vertente neopentecostal (Idem: 37).
Outros autores tambm empregam o termo neopentecostal para denominar este
crescente movimento de denominaes que se caracterizam por realizar evangelizao
de massa nos meios de comunicao, atingem as classes menos favorecidas, pregam a
cura divina, prosperidade financeira, libertao dos demnios e poder no sobrenatural,
tais como Mendona (1994), Jardino (1994), Birman (1995). Segundo Mariano, o termo
acabou sendo referncia angular para os principais estudos sociolgicos de religio,
estudos que envolvessem as novas formas de ascetismo pentecostalista no Brasil (op.
cit.:33).
Destacam-se aqui alguns aspectos fundamentais para melhor compreender a
trajetria histrica do neopentecostalismo no Brasil. O primeiro diz respeito
exacerbao da guerra espiritual contra o Diabo, algo evidente e identificatrio desta
corrente religiosa. Segundo Soares (1990:88), a Guerra Santa com este termo a
autora faz referncia aos ataques e investidas contra os smbolos das religies afro-
brasileiras pelos evanglicos a forma pela qual certas denominaes pem em
prtica a obra da libertao. Nota-se que a libertao do crente s investidas do Diabo
acontece no nvel em que aquele se distancia das prticas afro-brasileiras dentre outras
prticas seculares.
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Segundo ponto, a admoestao da teologia da prosperidade. Teoria que, para
Rodrigues, prega os desfrutes dos bens materiais pelos filhos de Deus, ideologia que
assume que os crentes devem, no somente usufruir dos bens materiais, mas acumular
riquezas na face da terra para demonstrar as bnos de deus para todos ainda em Terra
(2003:81-82), Macedo, segundo o jornal O Globo, admoesta aos fiis que o dinheiro
a mola propulsora da f (GIUBELLI, 2002:387). Este tipo de teologia estimula o
crente iurdiano a ter uma relao explcita com o universo de bens e consumo
capitalista. Ainda segundo Macedo, o crente deve estar disposto a aceitar a
responsabilidade de ser um dos scios e administradores da obra de Deus [...]. H
dialogicidade entre a teologia da prosperidade, ou mercado de bens simblicos, e o
discurso de mercado capitalista, no entanto, isso s ser possvel dentro do ascetismo
religioso neopentecostal, se o fiel tiver:
(...) uma existncia prspera [,pois] a prova cabal do derramamento do poder de Deus sobre a vida do cristo, que fora abenoado pelo Senhor com riqueza, abundncia e prosperidade nesta terra, em um contexto econmico que se fundamenta no iderio que rege o mercado e nomeia, entre seus vrios aspectos de sustentao terica e filosfica, a tica para o consumo como indispensvel para a sua expanso (Rodrigues, 2003:82).
A questo do dinheiro um aspecto fundamental para compreender o significado
da prosperidade do fiel envolvido nos rituais. Pois o dinheiro passa a ter um valor
subjetivo, re-introduzido na posio religiosa iurdiana, ou ento, do ponto de vista
ritualstico, passa a ser at esquecido como fundamental, no entanto, ele passa a ser
fundamental em outra instncia, nos rituais de dzimos e ofertas, momento pelo qual o
valor doado o para glria da divindade18. A contribuio financeira introduzida no
plano do ritual de forma a barganhar com o sagrado as bnos para os fiis (Bonfatti,
2005:7). Quando o fiel deposita sua oferta, a divindade passa a ser credor do ofertante,
tendo o compromisso de honrar seu pacto com ele.
A liberalizao dos estereotipados usos e costumes de santidade seria um
terceiro ponto citado por Mariano (1999:36); o crente deve eliminar os dolos e prticas
idlatras de sua vida, pois a centralidade do crente deve estar na figura divina. Esta
ojeriza da IURD pelos signos catlicos e catlico-populares culminou com o episdio
18 - Estima-se que s em dzimos a IURD arrecade R$ 1 bilho por ano (BENEDITO, 2006:233).
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que ficou conhecido como o chute santa, quando em pleno feriado de Nossa
Senhora Aparecida, dia 12 de outubro de 1995, o bispo, na poca, Srgio Von Helde
desprendeu chutes e socos na imagem catlica. Algo que promoveu um terrvel mal
estar entre a IURD e a comunidade catlica no pas.
E um ltimo ponto chamado ateno por Oro (1992), a estruturao
empresarial na qual se baseiam as religies no ascetismo neopentecostalista. Tendo em
vista a administrao das bnos celestes na terra, o crente deve se portar como
embaixador, procurador ou administrador de tudo que o Senhor construiu e deixou
sobre a terra (Rodrigues, 2003:95).
Dentre os pontos supracitados o que mais solicitado nesse trabalho o
primeiro aspecto, o ideal de Guerra-Santa no pas do sincretismo. Constata-se que o
ideal da Guerra-Santa imbui os fiis evanglicos do esprito de combate ao mal, este
podendo ser, guardado as suas propores, uma analogia direta aos cultos afro-
brasileiros (Soares 1990:76). Segundo o Pr. Macedo, o Brasil no apresenta um quadro
desenvolvido devido falta de ateno a alguns males causados pelas religies afro-
brasileiras. Para Macedo:
Se o povo brasileiro tivesse os olhos bem abertos contra a feitiaria, a bruxaria e a magia, oficializadas pela Umbanda, Quimbanda, Candombl, Kardecismo e outros nomes que vivem destruindo as vidas e os lares, certamente seramos um pas bem mais desenvolvido (Macedo, 1982:50).
A crise espiritual deve ser tratada em primeiro lugar; logo, surgem vrios
tratamentos espirituais que possam erradicar de fato o mal da vida do fiel convertido.
Segundo Soares (1990:80), o mal que deve ser eliminado da vida do crente um papel a
ser cumprido pela igreja dentro do plano divino. A eliminao do mal se concretiza na
prtica de expulso dos demnios, e estes ganham identificao quando associados aos
elementos de religiosidade afro-brasileira, tais como os Orixs e, sobretudo, os Exus.
De modo que o crente pode escolher entre ser templo do Esprito Santo ou cavalo de
um exu, como coloca Macedo em uma das suas citaes:
Ele o crente pode ser templo do Esprito Santo ou cavalo, burrinho, aparelho ou porteira de um exu ou um caboclo ou demnios semelhantes. Pode ter paz consigo mesmo e com Deus ou viver num inferno com tudo e com todos (Macedo, 1982:13).
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A prtica de associar os Orixs e os Exus aos demnios algo absolutamente
comum dentro da IURD, algo facilmente identificado atravs do discurso de suas
lideranas. Contudo, a capacidade de se libertar dos demnios s depende do livre-
arbtrio do fiel (Macedo, 1982:84).
Falar aqui da postura libertadora da IURD no intermdio de seus fiis, me
remete a outra instncia conceitual: se o crente passa a ser liberto, o de algo ou alguma
coisa, e a que aparece o fenmeno da possesso para que, em seguida, se efetue a
obra da libertao na vida do fiel. Abordo esta relao mais adiante, bastando, no
momento, citar a relao que h entre os fenmenos de possesso e de libertao para
ampliar o sentido histrico do neopentecostalismo.
Com todas estas caractersticas, a IURD consolida um quadro institucional
bastante estvel no cenrio religioso do pas, Benedito mostra que se a IURD fosse
formal e legalmente uma empresa estaria na 29 posio no ranking das maiores e
melhores empresas do pas (2006:232). Mariano afirma que a mdia de templos erigidos
chegou a 1 por dia na dcada de 90 (1999:65); Bonfim (2007:63) apresenta dados de
crescimento dos membros desta denominao que mostram o acrscimo de 269 mil em
1991 para 2,1 milho de adeptos em 2000. Hoje se estima que a igreja congregue em
suas fileiras, segundo a prpria, mais de 12 milhes de pessoas
(GIUMBELLI,2002:383). Entretanto, vale salientar que o quadro de fiis desta
denominao situa-se dentro do que se convencionou classificar como pblico flutuante,
uma forma sazonal de consumo ritual (BIRMAN, 1996:104), pois poucos so os
membros que foram ou obtiveram formao inicial evanglica de base iurdiana ou de
qualquer outra corrente protestante, alcanando, e de certa forma preferindo, pessoas
ligadas direta ou indiretamente s religies afro-brasileiras e de baixa escolaridade
(GIUMBELLI, 2002:377). Segundo Fernandes, apenas 5% dos fiis iurdianos criados
em um lar evanglico so ditos convertidos mesma; j os fiis de outras denominaes
ditas histricas apresentam o quadro de 52% daqueles que obtiveram formao
evanglica de bero (1996:06). Entrevistando um dos pastores da IURD no templo do
Jacintinho, bairro popular em Macei (AL), este exemplifica bem a ideia de um pblico
flutuante na IURD:
nosso objetivo no tirar a pessoa da religio dela, no esse nosso objetivo, nosso objetivo levar com que a vida dessas pessoas vo
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mudar (sic), a na proporo que ela comea a vir na igreja ela vai tendo conhecimento da verdade19.
Entre outras especificidades, vale observar que a IURD est presente em 80
pases e possui no exterior 600 mil fiis. Sua expanso internacional comea pelo
Paraguai em 1985, 1986 nos EUA e em 1989 na Argentina obtendo a xito
considervel, assim como na frica do Sul, que possua, at 2001, 181 templos. Embora
no tenha acesso a canais de TV, possui rdios e o jornal Universal News; mas
enfrentou dissabores em pases como 1) Portugal: tais como o insucesso de sua entrada
no cenrio poltico do pas, onde teve duas tentativas frustradas: a) de ingressar na vida
poltica do pas atravs de coligaes partidrias, que no foi levada adiante, em razo
das reaes contrrias advindas de diversos segmentos da sociedade portuguesa, b) no
mal sucedido empreendimento da formao do PG (Partido da Gente) (ORO, 2004:143)
e c) atravs do ilustre caso onde a igreja tentou comprar o Coliseu do Porto, cone do
cenrio artstico da cidade, e que aps vrios protestos realizados por artistas, polticos e
por parte da populao local, o lugar conseguiu ser comprado pela Sociedade dos
Amigos do Coliseu do Porto (Idem:ibidem)20.
Entretanto, todos esses episdios no inviabilizaram o desenvolvimento da igreja
em Portugal. O fato de a IURD alegar sofrer com as teorias persecutrias levantou a
discusso sobre a liberdade religiosa e assim foram acalentando-se os nimos,
entretanto, ainda sim, desconfiados de sua oposio no pas, os iurdianos foram
alcanando um nvel de aceitao entre os populares.
No Uruguai, o cenrio da igreja at os fins dos anos 90 era inexpressivo, tendo
em vista que na virada da dcada a IURD conseguiu crescimento significativo, seno de
adeptos, ao menos de audincia televisiva, ocupando importantes meios televisivos21. A
IURD, no Uruguai, acabou importando do Brasil suas duas principais armas: a
abordagem televisiva e a guerra santa, esta agora endereada s religies afro-uruguaia
que aproximadamente h 60 anos esto presentes naquele pas. A importao de tal
19 - Entrevista concedida em 12.03.2010 no templo da IURD no Jacintinho em Macei. 20 - Caso semelhante ocorreu na Frana, quando da compra do cinema La Scala pela IURD. A reao por parte de artistas e cineastas foi tamanha que aps mobilizaes ocorreu uma reverso da aquisio daquela sala de espetculo, como ocorreu na cidade do Porto com o Coliseu (ORO. Op.cit: 150). 21 - A primeira aquisio miditica no Uruguai ocorreu no ano 2000, quando a IURD comeou a ocupar o espao televisivo do pas (meia hora por dia) no Canal 12; dispunha tambm de algumas horas de programao de rdio nas madrugadas, com o programa Pare de Sufrir. Posteriormente tambm ocupou o Canal 10 naquele mesmo pas (ORO, op.cit.:147).
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estratgia trouxe consigo expresses pejorativas j bem conhecidas pela populao afro-
brasileira, tais como, encostos, casas de espritos e casas de encostos, entretanto,
personalizadas realidade da santeria uruguaia (op. cit.: 148).
No Mxico, logo no incio de sua institucionalizao (fins dos anos 80), a Igreja
Universal teve que amargar a expulso de 50 pastores brasileiros por no se encontrar
devidamente regulamentada no pas, algo que s viria a acontecer em 2001. A igreja
possui 24 templos aproximadamente e tem como rebanho os mexicanos de classes
mdias e empobrecidas, mas em nenhum caso miserveis (Reyes, apud. op. cit.: 149).
Alm disso, h um agravante, o Guadalupismo. Segundo Pedro Oro:
(...) os fiis mexicanos, especialmente das camadas baixas da sociedade, elaboram em torno da figura da Virgem todo um conjunto de prticas religiosas (aes mgicas, ofertas, contratos, pedidos, promessas, devocionismo pessoal), que uma igreja como a IURD geralmente explora. Ou seja, o espao religioso que geralmente a IURD ocupa j est, em grande medida, preenchido pelo Guadalupismo (Idem:ibidem).
Contudo, seu crescimento se d tambm neste pas via os meios miditicos.
Embora exista naquele pas algumas barreiras na legislao que delimitam o uso
televisivo por segmentos religiosos, a IURD injeta cerca de 5 milhes na estruturao
desse formato para divulgao da obra e na tentativa de superar o Guadalupismo. Os
principais problemas aferidos ao seu modesto crescimento esto, segundo Oro, em dois
fatores: o primeiro so os empecilhos de ordem prtica, a legislao, e o segundo de
ordem simblica, a fora que a Virgem de Guadalupe exerce sobre a religiosidade
popular dos mexicanos (ORO, op. cit.: 150).
Na Frana, a IURD se estabelece por volta 1992 e se instala em distritos
tradicionalmente ocupados por migrantes africanos. Os seus primeiros quadros de fiis
so imigrantes portugueses e idosos franceses, logo em seguida h uma baixa no quadro
de fiis portugueses que se queixaram da presso exercida pela igreja em torno dos
dzimos e das ofertas. Em um segundo momento, com fiis africanos, h uma mudana
no quadro de pastores, e lderes negros passam a administrar os templos, ao contrrio de
quando seu pblico majoritrio era de migrantes portugueses. Segundo Pedro Oro, no
discurso tambm comeam a ser incorporadas palavras como feitiaria e bruxaria
(op. cit.:150). Um aspecto a partir do qual se percebe uma importante atuao da igreja,
e que, pode-se dizer, tambm d exemplo no Brasil, o da adaptao rpida e
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estratgica ao imaginrio e simbolismo do seu pblico. Na Frana, diante da nova
situao vivida, a IURD adotou uma estratgia na qual:
Aos aspectos psicologizantes e a realizao de cultos relativamente tranqilos cederam lugar a rituais performticos que desembocavam em violentas possesses (Idem:ibidem).
No entanto, pode-se dizer que depois do caso do cinema La Scala e da incluso
da IURD na lista da Misso Interministerial de Luta contra as Seitas, estando a igreja
oficial e publicamente classificada enquanto tal, na Frana a IURD declinou
significativamente (Aubre, apud ORO, op. cit: 151).
No contexto nacional, a situao institucional passou a ser extremamente
prspera, ainda que envolvida em conturbadas e ambguas ocorrncias, registrando
problemas nas instncias jurdicas e, entre outras, com os segmentos catlicos, afro-
brasileiros e evanglicos.
No mbito jurdico, a IURD passou a receber inmeros processos judiciais por
estelionato, charlatanismo, curandeirismo, extorso, explorao e vilipndio de culto
(MARIANO, 1999:80; GIUBELLI, Op. cit.: 378-379; 381). Tem tambm sido alvo de
aes judiciais, ao civil pblica movida por segmentos afro-brasileiros em vrios
estados do pas, ao indenizatria por danos morais de ex-adeptos. Registrem-se,
ainda, casos de indenizaes por vilipndio de culto e por danos morais, como o ento
ilustre caso de Me Gilda, na Bahia, que morreu de infarto em 21 de janeiro de 2000,
um dia aps assin