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UNIVERSIDADE DE SO PAULO Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas
Departamento de Filosofia
Programa de ps-graduao em Filosofia
EDNA AMARAL DE ANDRADE ADELL
A Linguagem e os Signos nas Teorias do
Conhecimento no Sculo das Luzes
Verso Corrigida
So Paulo
2016
EDNA AMARAL DE ANDRADE ADELL
A Linguagem e os Signos nas Teorias do
Conhecimento no Sculo das Luzes
Verso Corrigida
Tese apresentada ao Programa de Ps-
Graduao em Filosofia do Departamento de
Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e
Cincias Humanas da Universidade de So
Paulo para obteno do ttulo de Doutor em
Filosofia sob a orientao do Prof. Dr. Pedro
Paulo Garrido Pimenta.
So Paulo
2016
AGRADECIMENTOS
Aps anos de trabalho na elaborao desta tese de doutorado, chego ao final
deste desafio que demandou muito estudo, pesquisa e dedicao.
com muita emoo que expresso aqui os mais profundos e sinceros
agradecimentos a todos aqueles que me ajudaram a tornar possvel a realizao desse
trabalho.
Primeiramente, agradeo ao meu orientador Prof. Dr. Pedro Paulo Garrido
Pimenta. No existem palavras para expressar como serei eternamente grata. uma
imensa honra e orgulho t-lo ao meu lado como mestre durante toda a ps-graduao.
Jamais me esquecerei de seus preciosos ensinamentos, sbios conselhos e infinita
pacincia. Sem suas intervenes precisas, sempre feitas no momento exato, esse
trabalho no teria sido concludo.
Profa. Dra. Maria das Graas de Souza e ao Prof. Dr. Ferno de Oliveira
Salles dos Santos Cruz, que participaram da banca de qualificao e cujas importantes
sugestes e crticas levantadas no exame muito contriburam para a elaborao final da
presente tese.
Aos professores do Programa de Doutorado em filosofia da FFLCH, pela
orientao e apoio ao longo de todo o curso.
Secretaria do Departamento de Filosofia da USP, em especial Marie Mrcia
Pedroso, Geni Ferreira Lima e Luciana Nbrega, por toda colaborao, ateno e
gentilezas dispensadas.
minha me, por seu carinho, amor e compreenso. Minha gratido eterna por
suas palavras sempre sbias e doces e seu incentivo constante.
Aos meus irmos Edmea e Celso, pelo apoio e incentivo nos momentos de
desnimo e por toda a ajuda que me prestaram durante minha estadia em Paris no incio
e no final da minha pesquisa.
minha irm Edilene, pelo seu carinho, amizade e encorajamento. Muitas
vezes, foi seu apoio incondicional que me permitiu dar andamento nas pesquisas e
concluir todas as etapas dentro dos prazos previstos.
A todos os amigos e colegas, que de algum modo contriburam para o
desenvolvimento e concluso desse trabalho.
Por fim, mas no menos importante, ao meu amigo e companheiro Darci, por
seu carinho, bondade, compreenso e pacincia em todos os difceis momentos dessa
longa jornada.
Quando eu uso uma palavra, disse Humpty Dumpty
num tom bastante desdenhoso, ela significa exatamente o que quero que signifique: nem mais nem menos.
A questo , disse Alice, se pode fazer as palavras
significarem tantas coisas diferentes.
(Lewis Caroll, Alice atravs do Espelho)
RESUMO
ADELL, E. A. A. A linguagem e os signos nas teorias do conhecimento no sculo das
Luzes. 2016. 158 f. Dissertao (Doutorado) Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias
Humanas. Departamento de Filosofia, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2016.
O objetivo da presente dissertao mostrar a necessidade dos signos e da
linguagem nas teorias de conhecimento na Frana no sculo XVIII.
Embora muitos outros filsofos tenham investigado a questo da importncia e
da necessidade da linguagem, tais como Rousseau e Du Marsais, analisamos os textos
de Condillac e Diderot, nos quais os signos e a linguagem so considerados essenciais
para a aquisio de conhecimento. Tal escolha foi feita, pois tanto Condillac quanto
Diderot tomaram o surdo e mudo de nascena como exemplo para corroborarem suas
teses sobre a origem da linguagem.
A primeira obra apresentada o Essai sur lorigine des connaissances humaines
(Ensaio sobre a origem dos conhecimentos humanos) de Condillac, que baseou seu
trabalho no empirismo de John Locke no An Essay Concerning Human Understanding
(Ensaio Acerca do Entenimento Humano).
Na Primeira Parte do Ensaio, Condillac discute a origem e o desenvolvimento
das faculdades da mente e do conhecimento humano. Para ele, a nica fonte de todos os
nossos conhecimentos encontra-se na sensao e todas as outras operaes da mente so
derivadas da. Porm, para que essas operaes se desenvolvam o uso dos signos e a
linugagem se fazem absolutamente necessrios. A Segunda Parte da obra descreve a
origem e o progresso da linguagem cujos signos naturais so gradualmente substitudos
por signos institudos e sons articulados, formando-se a linugagem fontica articulada.
A segunda obra analisada o Tratado das Sensaes, na qual Condillac
demostra como as ideias se originam da sensao. Ele acredita que necessrio estudar
os sentidos separadamente para poder distinguir quais ideias devem ser atribudas a cada
sentido. Dessa forma, pode-se observar como os sentidos so treinados e como um
sentido pode auxiliar o outro.
Em seguida, estudamos a Carta sobre os surdos e mudos de Diderot, texto no
qual o autor francs investiga diversos tpicos estticos, lingusticos e epistemolgicos.
Ele inicia a Carta com uma discusso sobre as inverses lingusticas e observa que o
assunto somente pode ser tratado se primeiramente considerarmos como as linguagens
foram formadas, o que conduz o enciclopedista a analisar a ordem natural das ideias e
expresses. Para ele, a ordem natural s pode ser verificada por meio de um estduo da
linguagem de gestos, visto que, os gestos exprimem melhor que as palavras. Para
comprovar sua tese sobre a linguagem de gestos, ele utiliza exemplos da lingugaem
gestual de surdos e mudos.
Ele ento desenvolve uma teoria sobre os hierglifos, na qual a imagem
hieroglfica rene em uma nica expresso todo um conjunto de sensaes e ideias,
passando pela linguagem de gestos, pantomima, prosdia, msica e pintura. Baseado na
teoria dos hierglifos, ele mostra o conflito existente entre a ordem simultnea das
ideias formadas em nosso pensamento e a ordem sucessiva do discurso. No final do
texto, ele retoma os principais argumentos do debate precedente sobre a ordem das
palavras.
Palavras-chave: Linguagem, signos, percepo, sensao, surdo-mudo, teoria do
conhecimento.
ABSTRACT
ADELL, E. A. A. Language and signs in the theories of knowledge of the
Enlightenment. 2016. 158 f. Thesis (Doctoral) - Faculdade de Filosofia, Letras e
Cincias Humanas. Departamento de Filosofia, Universidade de So Paulo, So Paulo,
2016.
The objective of this thesis is to show the necessity of signs and language in the
theories of knowledge in France in the 18th
century.
Although several philosophers investigated the question of the importance and
necessity of language, such as Rousseau and Du Marsais, we analysed texts of
Condillac and Diderot, in which signs and language are considered to be essential for
knowledge acquisition. Such choice was made since Condillac and Diderot considered
the deaf-mute from birth as an example to corroborate their theses about the origin of
language.
The first book presented is the Essai sur lorigine des connaissances humanines
by Condillac that based his work in the empiricism in the An Essay Concerning Human
Understanding by John Locke.
In Part I of the Essay, Condillac discuss the origin and development of the
faculties of the mind and human knowledge. According to him, the only source for all
knowledge is the sensation and the other operations are derived from this. However, for
these operations to be developed the usage of signs and language are absolutely
necessary. Part II of the Essay describes the origin and progress of the language which
natural signs are gradually replaced by instituted signs and articulate sounds, what turn
them into articulate phonetic language.
The second text analysed is the Treatise on Sensations in which Condillac
demonstrates how ideas come from sensation. He believes that it is necessary to study
the senses separately to be able to distinguish which ideas should be assigned to each
sense. In this way, it is possible to observe how the senses are trained and how a sense
can aid another one.
After that, we studied the Letter on the deaf and dumb by Diderot in which the
French author investigates several aesthetics, linguistics and epistemological topics. He
stars the Letter with a discussion about linguistic inversions and observes that the
subject can only be dealt with if first we take into account how languages were formed.
This leads the encyclopaedist to analyse the natural order of ideas and expressions. To
corroborate his theses about gestural language, he uses examples of the deaf and dumb
gestural language.
Then, he develops a theory about hieroglyphs, in which the hieroglyphic image
joins in one simple expression a whole set of sensations and ideas, going through
pantomime, prosody, music and painting. Based on the theory of hieroglyphs, he shows
the conflict that exists between the simultaneous order of formed ideas in our thought
and the successive order of speech. At the endo of the text, he returns to the main
arguments of the previous debate about the order of the words.
Key-words: Language, signs, perception, sensation, deaf and dumb, theory of
knowledge.
LISTA DE ILUSTRAES
Figura 1 - Paisagem com uma serpente ..................................................................... 147
Figura 2 Netuno acalmando a tempestade ............................................................... 149
Figura 3 Prancha para a Lettre sur les sourds et les muets - fragmento musical
annimo e Prancha para a Lettre sur les sourds et les muets - desenho de uma gravura
de Frans van Mieris, Les effets de la peste .................................................................. 150
Figura 4 - Gravura de Frans Van Mieris, De natura rerum, Leyde, 1725 ................. 151
SUMRIO
1. INTRODUO..................................................................................................... 10
2. CONDILLAC ....................................................................................................... 22
2.1. A teoria dos signos e a aquisio de conhecimento no Ensaio ................... 22
2.2. A ordem natural das palavras e as inverses lingusticas .......................... 61
2.3. A linguagem e os signos no Tratado das Sensaes ..................................... 71
3. DIDEROT ............................................................................................................. 88
3.1. As inverses lingusticas na Carta sobre os surdos e mudos ....................... 88
3.2 A linguagem de gestos .................................................................................... 94
3.3 A alma e as operaes da mente ................................................................... 115
4. CONCLUSO ........................................................................................................ 143
5. REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ................................................................ 152
10
1. INTRODUO
O mundo coberto de signos que preciso decifrar, e estes signos,
que revelam semelhanas e afinidades, no passam, eles prprios, de formas da similitude. Conhecer ser, pois, interpretar: ir da marca
visvel ao que se diz atravs dela e, sem ela, permaneceria palavra
muda, adormecida nas coisas. Ns, homens, descobrimos tudo o que
est oculto nas montanhas por meio de sinais e correspondncias exteriores; e assim que encontramos todas as propriedades das
ervas e tudo o que est nas pedras.
(Michel Foucault, As palavras e as coisas)
O estudo da linguagem sempre esteve relacionado com o estudo da filosofia,
epistemologia e retrica. No entanto, nos sculos XVII e XVIII foram levantadas
diversas questes fundamentais sobre o carter da linguagem e sua relao com o
pensamento e conhecimento humano.
As teorias lingusticas do sculo XVIII consideraram a linguagem como um dos
fatores que definia e caracterizava o ser humano dentro de uma nova viso
epistemolgica baseada no empirismo ingls de John Locke cuja premissa era a origem
sensorial das ideias. Esta nfase na epistemologia deslocou as novas teorias da
metafsica para a psicologia.
O Essay Concerning Human Understanding (Ensaio acerca do Entendimento
Humano) de Locke, publicado em 1690, dedicado ao entendimento da natureza e
limites do conhecimento humano, e o pensador ingls usa o conceito de ideia para
descrever a sensao, reflexo, percepo, memria e conhecimento. Locke prope uma
teoria epistemolgica que enfatiza a experincia sensvel na qual residiria toda a origem
do conhecimento humano.
A verso francesa do empirismo de Locke tornou-se conhecida como
sensualismo e seu representante mais influente foi o abade tienne Bonnot de
Condillac. Para muitos historiadores, os fundamentos da filosofia francesa do sculo das
Luzes, no que diz respeito ao conhecimento e psicologia, foram formulados pelo
abade francs.
Condillac trouxe contribuies relevantes ao desenvolvimento de uma teoria
psicolgica do conhecimento baseada na sensao, bem como incluiu a necessidade da
linguagem para o desenvolvimento das operaes da mente. Ele tomou por base uma
11
associao da fsica de Newton e da psicologia de Locke. Dedicou-se principalmente
anlise dos problemas psicolgicos, partindo de uma severa crtica ao racionalismo e ao
inatismo dos filsofos do sculo XVII, tais como Descartes, Malebranche, Spinoza e
Leibniz. Sua crtica baseou-se na insuficincia de explicaes desses autores sobre a
origem dos conhecimentos intelectuais.
Muitos filsofos iluministas franceses, como Rousseau e Du Marsais, tambm
contriburam na formulao de teorias da linguagem e no investigaram a linguagem
somente de forma terica dentro do uso de normas e regras estabelecidas; os estudos
tiveram como fundamento a anlise da funo que a linguagem exercia no homem e na
sociedade como um todo.
No entanto, dentre as diversas obras publicadas na poca, duas delas
desempenharam um papel essencial para o desenvolvimento das futuras teorias
lingusticas. O Ensaio sobre a Origem dos Conhecimentos Humanos (1746) do abade
tienne Bonnot de Condillac, obra na qual ele baseia sua teoria sensualista do
pensamento na necessidade de signos e linguagem para o desenvolvimento das
operaes da alma, e a Carta sobre os Surdos e Mudos de Denis Diderot (1751), que
aborda os mesmos problemas epistemolgicos apresentados no Ensaio, combinando-os
com questes estticas. Um dos pontos em comum nos dois textos encontra-se no fato
de que Condillac e Diderot tomaram como exemplo a privao da audio para
corroborarem suas teses.
Tanto a teoria de Condillac quanto a teoria de Diderot distanciaram-se do
cartesianismo racionalista que havia dominado o pensamento do sculo XVII e ainda
exercia muita influncia at meados do sculo XVIII.
No Ensaio, Condillac concentra-se em desenvolver as teorias de Locke
apresentadas no Ensaio Acerca do Entendimento Humano e apresenta uma teoria do
conhecimento de uma forma mais completa e sistemtica. Ele compartilha muitas ideias
de Locke e segue parcialmente o trabalho do filsofo ingls, porm discorda dele em
vrias questes, e corrige-o em alguns pontos. Na verdade, Condillac tenta apresentar a
psicologia de Locke em bases mais slidas. Diferentemente de Locke, que no Ensaio
afirma que todo conhecimento humano tem sua origem na sensao (nossa experincia
do mundo exterior) e reflexo (nossa experincia das operaes da mente), Condillac
12
rejeita essa hiptese dualista e afirma que a sensao a nica fonte de nossos
conhecimentos, princpio no qual se baseou para desenvolver uma teoria de linguagem.
O filsofo francs concorda com Locke ao declarar que as ideias tm sua fonte
de origem na percepo dos sentidos, porm afirma que o homem no pode raciocinar
clara e distintamente sem a linguagem. Para ele a linguagem no somente o elemento,
mas tambm o instrumento principal do desenvolvimento do pensamento, e assim, o
progresso da teoria lingustica passa a depender de uma nova orientao epistemolgica.
De acordo com Derrida,
(...) a relao de Condillac com Locke ser anloga relao de Locke com seus predecessores. A cincia do entendimento humano, tal como
esse ltimo (Locke) habilmente inaugurou, Condillac, ao repeti-la, corrigindo-a, completando-a, notavelmente sobre a questo decisiva
da linguagem, no far, portanto nada mais que a fundamentar:
finalmente e pela primeira vez. 1
De fato, embora a teoria do conhecimento de Condillac seja muito similar aos
princpios adotados por Locke, o abade francs reduzindo todas as operaes do
entendimento humano a um nico princpio, deriva todas as faculdades da mente
exclusivamente da sensao, sendo essa a base de toda a verdade e todo conhecimento.
Esse um dos principais aspectos da reviso das teses de Locke realizada por Condillac.
Monzani afirma que,
O projeto de Condillac, portanto, consiste em desvendar a gerao das
operaes mentais por meio de sua derivao, efetivamente assinalada, a partir da sensao.
2
O Ensaio tem por objetivo resolver trs questes cruciais: investigar o
desenvolvimento das operaes da alma, determinar o papel da linguagem ao longo
desse desenvolvimento e mostrar que o progresso das operaes mentais e a aquisio
de conhecimentos esto intrinsicamente relacionados com a linguagem.
Podemos apontar os pontos fundamentais para o desenvolvimento da
epistemologia de Condillac no Ensaio para resolver as questes acima mencionadas.
Para ele, todo o seu argumento depende de duas noes: a ligao de ideias (liaison
dides) e a linguagem de ao (langage daction).
1 DERRIDA, Jacques, Larchologie du frivole, Paris: ditions Galile, 1990, p. 27. 2 MONZANI, Luiz Roberto, Desejo e Prazer na Idade Moderna. Curitiba: Champagnat, 2011, p. 191.
13
O princpio da ligao de ideias utilizado por Condillac para explicar a
origem das operaes do entendimento. O conceito de ligao de ideias baseia-se na
combinao de signos e ideias, bem como na ligao de ideias umas com as outras de
diversas maneiras, que ocorre pela associao de seus respectivos signos. por meio
dos signos que os contedos da mente podem ser estabelecidos e combinados.
Portanto, os signos, na teoria de Condillac, desempenham um papel crucial,
pois somente com a ajuda deles que se torna possvel o desenvolvimento gradual e
progressivo dos diferentes estgios das operaes cognitivas a partir da primeira
impresso sensorial em uma sucesso na qual pensamentos e signos so
interdependentes.
Tendo reconhecido a necessidade dos signos, Condillac admite que seria
preciso mostrar como ns adquirimos o hbito de usar os signos e como nos tornamos
capazes de empreg-los. Para isso, ele precisa considerar a origem da linguagem que
ocorreu a partir das necessidades imediatas da vida e que inicialmente eram
comunicados por meio de gestos e gritos espontneos e que ele designa como
linguagem de ao.
Os primeiros signos fonticos surgiram aps os estgios iniciais da linguagem
de ao e, por meio de um desenvolvimento mtuo das operaes da mente e dos
signos, formou-se a linguagem fontica articulada.
O tema seguinte abordado por Condillac no Ensaio trata da ordem das palavras
e das inverses lingusticas.
De acordo com Condillac, todas as operaes cognitivas da alma so sensaes
transformadas com a ajuda dos signos lingusticos. Nesse contexto, ele contesta os
postulados que determinavam a ordem fixa e natural das palavras. Ao invs da ordem
natural considerada pelos racionalistas, ele argumenta que a ligao de ideias o
princpio que une as partes do discurso em um todo. Ele apresenta o desenvolvimento
da linguagem como um processo que parte da linguagem de ao e gestos,
compreendida como uma linguagem de simultaneidade de ideias, at chegar na
linguagem de voz articulada, reconhecida como uma linguagem de ideias sucessivas.
14
Em outras palavras, da mesma forma que nossos sentidos recebem inmeras
impresses simultaneamente, vrios pensamentos formam uma noo de um todo ao
mesmo tempo em nossa conscincia. No entanto, devido necessidade da comunicao,
essa simultaneidade transformada em uma ordem linear. Logo, no existe uma ordem
padronizada para o arranjo das ideias. o grau de interesse que define a ordem das
palavras.
A questo das inverses lingusticas foi analisada mais profundamente por
Diderot na Carta sobre os Surdos e Mudos.
Cumpre observar que Condillac, anos mais tarde, publicou o Tratado das
Sensaes (1754). Embora esse Tratado no tenha um enfoque direto e especfico sobre
a linguagem, de muita relevncia para o esclarecimento das experincias sensoriais
que conduzem aquisio de conhecimentos.
A ideia central de Condillac no Tratado das Sensaes investigar o
entendimento humano por meio de uma anlise rigorosa a partir da primeira experincia
sensorial. De acordo com Condillac, para resolvermos todas as questes envolvidas no
processo de aquisio de conhecimento, seria necessrio estudar cada sentido
separadamente, distinguindo com preciso quais as ideias originadas por este ou aquele
sentido. Tambm seria essencial observar como cada sentido poderia ser treinado e
como um sentido poderia auxiliar as funes desempenhadas por outro. Condillac
afirma que o resultado final dessas investigaes seria no somente conhecer os
contedos da conscincia, como queria Locke, mas tambm suas atividades e formas de
pensamento que constituiriam simples transformaes de sensaes passivas bsicas.
Dessa forma, ele reafirma seu argumento do Ensaio de que somente as sensaes so a
fonte de conhecimento, rejeitando novamente a tese dualista de Locke que afirma que
todo conhecimento humano ocorre a partir da sensao e da reflexo.
A Carta sobre os Surdos e Mudos consiste em uma resposta s teorias estticas,
lingusticas e epistemolgicas do abade Charles de Batteux. De acordo com o subttulo
da obra, vemos que Diderot descreve diversos tpicos com segue:
Onde se trata da origem das inverses, da harmonia de estilo, do
sublime de situaes, de algumas vantagens da lngua francesa sobre a
15
maior parte das lnguas antigas e modernas, e por ocasio da
expresso particular nas belas-artes. 3
Adotando as teses de Condillac sobre a origem e a interdependncia existente
entre pensamento e linguagem, ele parte da questo lingustica das inverses, ou ainda,
da ordem do discurso apresentada em um primeiro plano, para chegar ao tema principal
da Carta, que mais esttico do que propriamente lingustico.
Para percorrer esse caminho, ele analisa a origem das ideias e da linguagem
passando por temas como a linguagem dos gestos, a pantomima, a prosdia, a msica, a
pintura, bem como a diferena existente entre a ordem simultnea das ideias e a ordem
sucessiva do discurso, para chegar a uma teoria de hierglifos que rene em uma nica
expresso o conjunto de sensaes e ideias.
Alguns comentadores consideram a Carta como sendo a principal investigao
esttica de Diderot, embora ele j houvesse escrito sobre o assunto no artigo Beau na
Encyclopdie.
Apesar da Carta constituir uma resposta ao abade Batteux, conforme explicado
ao editor escolhido por Diderot para a impresso da obra, ela de fato dedicada a uma
vasta gama de tpicos envolvendo linguagem e percepo que para ele fundamentam o
tema das relaes entre as artes. Na maior parte do texto, seu interesse sobre como as
artes so percebidas e no como so concebidas.
A ideia de Diderot para analisar as inverses interrogar um surdo-mudo que
seja capaz de fornecer, graas ao seu desconhecimento da linguagem, esclarecimentos
sem preconceitos sobre a ordem do discurso. Baseado nas respostas do surdo-mudo, ele
aborda em seguida a questo esttica, uma vez que as inverses se deparam
constantemente com as expresses da linguagem artstica que em oposio sucesso
do discurso, ocorrem pela instantaneidade. De fato, o significado das coisas nas artes
apresenta-se em um nico instante. A partir da simultaneidade das percepes possvel
a reflexo da unidade da expresso artstica.
Observamos que dentre os vrios debates filosficos ocorridos no sculo XVIII
sobre a questo da linguagem, a controvrsia sobre a ordem das palavras, denominada
3 DIDEROT, Denis, Carta sobre os surdos e mudos, in Diderot Obras II, Esttica, Potica e Contos, J.
Guinsburg. So Paulo: Editora Perspectiva S.A., 2000, p. 93.
16
querela das inverses, marcou o antagonismo existente entre os racionalistas, formado
pelos sucessores de Descartes, e os sensualistas, seguidores das teorias de Locke e
Condillac. Foi a partir do debate sobre a ordem das palavras e das inverses que teve
incio a investigao da linguagem do ponto de vista filosfico, apesar desses tpicos
estarem relacionados com a gramtica e aparentemente no terem relao com a
filosofia. De acordo com Ricken.
Mas foi precisamente a importncia filosfica das questes
relacionadas com a ordem das palavras e seu significado para a
estrutura da sentena que tornou esse tpico um dos problemas lingusticos mais amplamente discutidos no sculo XVII e
especialmente no sculo XVIII. Pois o tema tambm apresentou
questes importantes sobre a relao entre linguagem, pensamento e
realidade (...). 4
Tanto os defensores cartesianos quanto os sensualistas assumiram a existncia
de uma ordem de palavras que emanava da natureza, conduzindo o foco da discusso
para dois outros tpicos. O primeiro ponto a ser discutido seria definir o que poderia ser
considerado como ordem natural; o segundo ponto tratava da superioridade da lngua
francesa com relao s outras lnguas modernas e as lnguas antigas, principalmente o
latim.
A inverso era definida como a diferena existente na ordem das palavras com
relao a determinada norma, supostamente natural ou no, da sequncia de
pensamentos e da sequncia das partes do discurso. De acordo com Ricken,
(...) seria necessrio decidir se essa sequncia era o efeito de um
pensamento a priori, ou da experincia; ou decidir o que era natural, o
desenvolvimento do pensamento abstrato, ou dos sentimentos que
experimentam os homens nas situaes concretas e variveis. 5
Era preciso investigar qual a base do pensamento e da sua expresso lingustica
na ordem das palavras e da combinao de palavras em sentenas: a razo a priori,
conforme a hiptese das ideias inatas dos cartesianos, ou as sensaes e a reflexo que
surgem delas, em conformidade com os sensualistas. Ricken questiona:
Deve-se assumir que existe um modelo natural da ordem de palavras que expressa as leis de cognio a priori, ou as normas da ordem de
palavras so resultado de um desenvolvimento histrico, e dessa
4 RICKEN, Ulrich, Linguistics, anthropology and philosophy in the French Enlightenment. Londres e
Nova Iorque: Routledge, 1994. Traduzido do alemo para o ingls por Robert E. Norton, p. 111. 5 RICKEN, Ulrich, Grammaire et philosophie au sicle des Lumires. Lille: PUL Publications de
LUniversit de Lille III, 1978, p. 10.
17
forma da experincia? E a funo comunicativa da linguagem exige
que uma sentena de palavras esteja em conformidade com a
hierarquia lgica de categorias de pensamento abstrato, ou em vez disso com a intensidade das percepes humanas e sentimentos em
situaes variveis? 6
O debate teve seu incio no sculo XVII, com a teoria racionalista que tinha
como hiptese que
(...) a sequncia de pensamentos no ato de cognio e das partes correspondentes da sentena no ato de comunicao derivavam de
uma hierarquia de categorias lgicas que se supunha serem
naturalmente dadas. A suposta sequncia de sujeito verbo objeto correspondia estrutura de sentena francesa normal e era dessa
forma vista como um argumento para a clareza particular do francs. 7
Para os racionalistas, as proposies formadas na lngua francesa seguiam a
ordem natural das palavras que era explicada em funo da razo inata dos homens.
Assim, todos os desvios encontrados na denominada ordem natural eram chamados de
inverses, e eram considerados ofensas contra a clareza da expresso lingustica. Isso
assegurava que a lngua francesa era a lngua com mais clareza dentre todas as outras.
No detalharemos todos os autores que participaram do debate e suas teorias;
vamos nos ater aos sensualistas, por eles serem o foco de nossa investigao.
Condillac, rejeitando a hiptese das ideias inatas e considerando o processo de
cognio como sensao transformada com a ajuda de signos lingusticos, contesta os
postulados da ordem natural das palavras. No lugar da ordem natural apresentada pelos
racionalistas ele estabelece as ligaes de ideias como o princpio que rene as partes do
discurso como um todo. Isso ocorre do mesmo modo quando nossos sentidos so
afetados por inmeras impresses ao mesmo tempo e vrios pensamentos se formam em
nossa conscincia em um todo simultneo. Quando essa simultaneidade transformada
em uma ordem linear para tornar possvel a comunicao lingustica, no existe uma
ordem padronizada para o arranjo das ideias. A construo natural aquela nas qual as
palavras so dispostas de tal maneira que as ideias que elas exprimem se ligam
diretamente uma s outras. Portanto, as inverses somente ocorrem quando a construo
no direta, ou ainda, quando a ligao de ideias no observada.
6 RICKEN, Linguistics, anthropology and philosophy in the French Enlightenment, p. 112. 7 RICKEN, Linguistics, anthropology and philosophy in the French Enlightenment, p. 112.
18
Para Batteux, o francs seria uma lngua de inverses, enquanto que o latim
manteria a ordem natural das ideias. Para ele, o francs tem muito mais inverses que o
latim e o grego, porm a ordem das palavras no francs to natural quanto o em
qualquer outra lngua.
Diderot, no entanto, ao reexaminar a questo das inverses na lngua francesa,
mostra que a questo no era to simples. Ele considera dois cenrios diferentes para
analisar a hiptese de Batteux. No primeiro caso, o enciclopedista compara a ordem
sinttica da lngua francesa com a ordem na qual os sentidos naturalmente recebem as
impresses sensoriais. Ou seja, ao tentar identificar um objeto nossos sentidos so
primeiramente afetados pelo tamanho, forma e cor do objeto em questo. Com base
nessas informaes sensoriais somos capazes de identificar o que vemos. A descrio
do objeto traduzido por meio de adjetivos naturalmente precede a identificao dele,
que representada por um substantivo. Da, pode-se concluir que como a lngua
francesa posiciona o adjetivo aps o substantivo, ela invertida quando comparada
ordem natural das ideias. A concluso de Diderot parece confirmar a tese de Batteux.
Porm, ele vai alm e busca saber o que ocorre quando tentamos descrever o objeto para
outra pessoa fazendo uso da linguagem. A maneira mais rpida de comunicao seria
identificar o objeto antes de descrev-lo, posicionando assim o substantivo antes do
adjetivo, como ocorre no francs. Por consequncia, Diderot conclui que a lngua
francesa possui inverses quando comparada ordem natural das ideias, porm uma
lngua perfeita para a lgica de conversao que a ordem de instituio.
Embora o ttulo da Carta sobre os Surdos e Mudos Para o uso dos que ouvem
e falam possa sugerir uma continuao da Carta sobre os cegos Para o uso dos que
veem, isso no se confirma. verdade que, em ambas as Cartas, Diderot segue a
mesma metodologia e toma como modelos o cego e o surdo-mudo de nascena,
respectivamente, por suas anormalidades e pela privao de seus sentidos, para suas
investigaes e dessa forma compreender a gerao das ideias e sua relao com a
linguagem para chegar a uma concepo superior da verdade. No entanto, o prprio
autor das Cartas explica o motivo pelo qual escolheu, para sua segunda Carta, um ttulo
similar primeira:
Concordo ainda que ele (o ttulo) feito imitao de um outro ttulo
que no muito bom: mas eu estou cansado de procurar um melhor.
19
Assim, de qualquer importncia que vos parea a escolha de um ttulo,
o de minha Carta restar tal como . 8
Na Carta sobre os Cegos, o homem cego usado como modelo para mostrar a
filosofia sensualista, na qual todo pensamento derivado das sensaes. o homem
cego de nascena que nos permite compreender melhor a origem das ideias de simetria e
beleza. Na Carta sobre os Surdos-mudos, o surdo-mudo utilizado para analisar o
progresso da linguagem e a relao existente entre as artes.
A Carta sobre os cegos evidencia a relevncia do tato. A Carta sobre os surdos
e mudos revela a importncia do gesto.
No entanto, na primeira Carta vemos que a questo da aquisio de
conhecimentos pode ser tratada independentemente da linguagem, ao passo que na
segunda Carta, Diderot aborda a relao entre o pensamento e linguagem e faz isso por
meio de um debate sobre as inverses lingusticas.
Cumpre observar que, como na Carta sobre os cegos, a questo da
simultaneidade das percepes est presente na Carta sobre os surdos e mudos, na qual
Diderot afirma que o esprito concebe vrias ideias ao mesmo tempo, porm o discurso
as descreve sucessivamente. essa a ideia que se faz necessria para fundamentar sua
teoria da linguagem e ele a exprime por meios poticos.
No nos cabe aqui especular as relaes existentes entre a Carta sobre os surdos
e mudos e os escritos de Condillac, uma vez que, embora saibamos de sua amizade, a
colaborao e influncia recprocas ainda no foram analisadas detalhadamente. No
entanto, iremos observar alguns pontos em que o Ensaio de Condillac anuncia diversas
ideias contidas na Carta sobre os surdos e mudos. De acordo com Chouillet:
A marca de Condillac visvel em muitos lugares da Carta. Trinta e quatro passagens referem-se ao texto do Ensaio e oito delas so
transposies diretas. 9
Nessa nova abordagem filosfica, o tema da privao de um dos sentidos passou
a ser objeto de debates de maior importncia para os pensadores da poca, pois todas as
teorias sensualistas relacionadas com a aquisio de conhecimento tinham como base os
sentidos do olfato, paladar, viso, audio e tato.
8 DIDEROT, Carta sobre os surdos e mudos, p. 92. 9 CHOUILLET, Jacques, La Formation des Ides Esthtiques de Diderot. Paris: Librairie Armand Colin,
1973, p. 167.
20
Na Frana, foram feitas diversas experincias com surdos, mudos e cegos, cujos
resultados levaram a muitas especulaes sobre as origens do conhecimento e da
linguagem.
Apesar de existirem diversas referncias aos surdos e cegos desde a
Antiguidade, foi no sculo das Luzes que o debate sobre a privao de sentidos e a
aquisio de conhecimentos encontrou seu apogeu. Esses desafortunados foram
tomados como testemunhas das teorias controversas que opunham ao pensamento
cartesiano sobre a origem inata das ideias a teoria de Locke, que se baseava na origem
sensorial das ideias.
No que diz respeito s teorias da linguagem, a privao da audio levantou trs
questes fundamentais: O pensamento existe antes da linguagem? Pode-se afirmar que a
linguagem uma caracterstica do ser humano? Como seria o homem sem linguagem?
Os surdos e os cegos assumiram um papel de grande importncia para a filosofia
da experincia, pois de acordo com as novas teorias do conhecimento, tanto os surdos
como os cegos no poderiam ter ideias claras e distintas das coisas percebidas pelo
rgo que lhes faltasse.
Ao longo de toda a Idade Mdia, acreditou-se que o surdo-mudo era incapaz de
adquirir qualquer tipo de conhecimento. Em vrios pases, existiam leis que no
permitiam a esses desafortunados que herdassem bens, contrassem matrimnio e
frequentassem escolas. Os pais colocavam seus filhos surdos em monastrios para
escond-los da sociedade.
A mudez era considerada mais ou menos um sinnimo de surdez. Isso ocorria,
no porque o surdo fosse incapaz de ouvir os sons da fala, mas porque ele sofria de uma
doena que afetava seu rgo da fala, bem como seu rgo da audio. Desse modo, ele
no podia aprender, pois o conhecimento era largamente adquirido por meio da
linguagem convencional e em muitos casos, o surdo-mudo se apresentava mais prximo
dos brutos em inteligncia do que dos homens ditos normais (falantes e ouvintes).
Como consequncia, os relatos mais antigos sobre surdos-mudos que foram ensinados a
compreender o que era fala e escrita, e o perfeito discurso e sons, narram curas
miraculosas, uma vez que a surdez sendo infligida por Deus, somente poderia ser curada
por interveno divina.
21
Embora o surdo tenha sido considerado por muitos sculos como incapaz de
falar, sabe-se que ele sempre pode se comunicar, pelo menos com as pessoas ao se redor
por meio de gestos simples e fceis de serem compreendidos.
Sinais gestuais eram indispensveis para o surdo-mudo, pois era o modo como
ele podia comunicar suas necessidades fsicas e seus desejos bsicos para seus
familiares e pessoas prximas. Os gestos pareciam ser apropriados para comunicao
apenas no nvel primitivo e por isso era restrito somente queles que os compreendiam.
Fora do ambiente familiar, os signos pareciam ser estranhos, inconvenientes e pouco
prticos para serem utilizados. Muitas vezes, a gesticulao do surdo era associada a
uma aparente idiotia, tornando-o socialmente inaceitvel.
Por no haver uma instituio que encorajasse a utilizao de sinais inventados,
o desenvolvimento geral da linguagem era muito restrito. Os sinais convencionais
utilizados por familiares com o surdo-mudo no tinham razo para serem perpetuados
aps a morte dele.
No domnio epistemolgico, a Carta mostra que o homem, antes de formar
ideias, precisa encontrar signos para ser capaz de exprimir e transmitir suas percepes.
Para que isso ocorra, Diderot percebe a necessidade de investigar as origens do
pensamento e da linguagem.
No que diz respeito s teorias da linguagem, a privao da audio levantou trs
questes fundamentais: O pensamento existe antes da linguagem? Pode-se afirmar que a
linguagem uma caracterstica do ser humano? Como seria o homem sem linguagem?
Ao tomar como exemplo vivo o surdo e mudo, Diderot aborda a questo do
gesto e da lingustica, afirmando que o gesto precede a linguagem e que mais sublime
do que as expresses orais.
Ele observa o discurso gestual de diversos surdos e mudos para compar-lo ao
discurso falado. Dessa forma, pode-se analisar o tipo de pensamento possvel e se existe
alguma linguagem que pode ser desenvolvida por algum privado da capacidade de
ouvir.
Para ele, pelo estudo das expresses dos surdos de nascena, podemos entender
a origem das linguagens.
22
2. CONDILLAC
2.1 A TEORIA DOS SIGNOS E A AQUISIO DE
CONHECIMENTO NO ENSAIO
No Ensaio, Condillac considera o estudo do esprito humano como sendo o
ponto crucial do estudo filosfico e toma como ponto de partida para sua anlise a
origem da gerao de nossas ideias. A tese de Condillac afirma que:
(...) no existem em absoluto ideias que no sejam adquiridas: as primeiras vm imediatamente dos sentidos; as outras so devidas
experincia, e se multiplicam na medida em que somos mais capazes
de refletir. 10
De acordo com o autor francs:
As sensaes e as operaes da alma so portanto os materiais de todos os nossos conhecimentos: materiais que a reflexo executa,
buscando por combinaes as relaes que elas contm. 11
Para ele a reflexo uma sequncia de comparao de sensaes, indispensvel
para a vida mental. Dessa forma, ele concebe a reflexo como sendo uma sensation
transforme (sensao transformada).
Por conseguinte, o objetivo de sua teoria mostrar que todas as operaes
mentais, baseadas nas representaes das sensaes, ou melhor, nos signos e na
linguagem, so responsveis pelo desenvolvimento e aquisio do conhecimento. Para
termos conscincia de uma sensao, aps sua impresso, ela precisa se transformar em
uma imagem, que nada mais que um signo.
Condillac mostra que a progresso das operaes do entendimento ocorre na
medida em que a linguagem se desenvolve, e formula uma teoria sobre o assunto na
qual tanto o papel quanto a origem dos signos so de fundamental importncia.
A teoria de linguagem de Condillac apresentada no Ensaio como uma
correo do que ele julgou estar faltando na teoria de Locke, uma vez que esse no fez
10 CONDILLAC, tienne Bonnot de, Essai sur lorigine des connaissances humaines in Oeuvres
Philosophiques de Condillac Volume 1 Texte tabli et present par Georges Le Roy. Paris: Presses
Universitaires de Frana, 1947, Parte I, Seo I, Cap. 1, 5, p. 6. 11 CONDILLAC, Essai sur lorigine des connaissances humaines, Parte I, Seo I, Cap. 1, 5, p. 6.
23
muitas consideraes sobre o papel da linguagem nos processos mentais e cognitivos
mais elevados.
Segundo Charrak,
Pode-se dizer que, quando ele se engaja na apresentao ordenada das teses de Locke, Condillac parte deste captulo (Livro IV, Cap. XXI, 1 e 4) do Essay de 1690 para reler o conjunto do tratado e para
organizar todas as revises que ele julga necessrias em torno da
terceira seo dessa diviso, da qual ele vai finalmente desenvolver as ramificaes at interpretar a prpria metafsica, como uma cincia do
entendimento humano, nos termos de uma semitica. 12
Para o pensador ingls, a linguagem uma criao da reflexo preexistente,
pois suas investigaes sobre a influncia que as palavras podem ter sobre o
pensamento no consideram a questo da origem e constituio das ideias.
Por outro lado, Condillac analisa a linguagem e o pensamento como resultado
do processo de interao das sensaes e dos signos. Para ele, o pensamento e a
linguagem esto inter-relacionados e so consequncias de uma abstrao e de um
aperfeioamento contnuo que tm sua origem nas sensaes e na linguagem de ao,
definida por ele como uma mistura de gestos e sons no articulados.
O prprio Locke reconhece que tardiamente se deu conta da necessidade de
considerar o importante papel da linguagem e dos signos no decorrer de seu trabalho
sobre o entendimento humano. Para ele, o esprito seria capaz de pensar sem o auxlio
da linguagem. exatamente este papel constitutivo da linguagem para o pensamento
que Condillac considera um avano essencial com relao Locke. De acordo com o
abade francs:
Eis o que impediu Locke de descobrir o quanto os signos so necessrios para o exerccio das operaes da alma. Ele supe que o
esprito faz as proposies mentais nas quais ele rene ou separa as ideias sem a interveno das palavras.
13
Apesar disso, Condillac elogia Locke por considerar que o filsofo ingls foi o
primeiro pensador a escrever sobre linguagem em um tratado filosfico. Afirma que
Locke observou muito bem que as palavras e a maneira pela qual ns as usamos podem
esclarecer o princpio de nossas ideias. Porm, por no ter investigado a questo
12 CHARRAK, Andre, Empririsme et Mtaphysique. Paris: Libraire Philosophique J. Vrin, 2003, p. 71
72. 13 CONDILLAC, Essai sur lorigine des connaissances humaines, Parte I, seo IV, Cap. II, 27, p. 48.
24
profundamente, o filsofo ingls explicou de modo imperfeito os desenvolvimentos do
entendimento humano.
Para Condillac o uso de signos a verdadeira causa dos progressos do
entendimento, e o uso dos signos que faz com que o entendimento humano seja capaz
de se desenvolver.
Ao propor uma teoria de signos sensualista, na qual a linguagem desempenha
um papel fundamental na teoria cognitiva, Condillac vai alm do sistema estabelecido
por Locke no Ensaio. De acordo com Ricken:
Pela incluso consistente de uma noo sensualista do signo, Condillac foi capaz de remover o restante de racionalismo que
permanecia na filosofia de Locke na forma de uma capacidade de pensamento a priori, e ele levou o sensualismo concluso lgica de
que todas as faculdades da cognio surgem da sensao. 14
Portanto, o projeto de Condillac consiste em mostrar como se d a gerao das
operaes mentais que derivam umas das outras partindo da sensao.
Para empreender seu projeto, o pensador francs rejeita o estudo da natureza da
alma e privilegia o exame das diversas operaes que surgem efetivamente na
experincia.
O autor francs inicia o Ensaio descrevendo a metafsica como sendo a cincia
responsvel por ampliar e esclarecer a mente humana:
A cincia que mais contribui para tornar o esprito luminoso, preciso e extenso, e que por consequncia deve preparar o esprito ao estudo de
todas as outras a metafsica. 15
Para ele, necessrio distinguir entre dois tipos de metafsica. A primeira, tem
a ambio de resolver todos os mistrios, a natureza, a essncia de todos os seres, as
causas mais escondidas 16
, e outra que mais modesta e que conhece as limitaes da
mente humana e sabe se conter dentro dos limites que lhe so estabelecidos. Essa
segunda a verdadeira metafsica. Esse o ponto crucial do assunto.
14 RICKEN, Linguistics, anthropology and philosophy in the French Enlightenment, p. 78. 15
CONDILLAC, Essai sur lorigine des connaissances humaines, Introduo, p. 3. 16 CONDILLAC, Essai sur lorigine des connaissances humaines, Introduo, p. 3.
25
A maioria dos filsofos seguiu sempre as concepes da primeira metafsica, e
foi Locke quem deu incio ao estudo da segunda metafsica, restringindo-a s
investigaes sobre o esprito humano, suas operaes e suas limitaes.
Condillac critica os Escolsticos, Cartesianos e Leibnizianos por suas buscas a
tipos ambiciosos de metafsicas pelas quais eles tentaram explicar as causas mais
escondidas, construindo sistemas logicamente coerentes cujas realidades eram
deduzidas a priori. Ele sustenta uma posio do sculo XVIII que denuncia os sistemas
abstratos que defendem regrar a cincia antes da aplicao efetiva do entendimento aos
diferentes objetos da experincia.
Para Condillac, a metafsica, uma vez que considera a constituio dos
conhecimentos, deve analisar as ideias, sua origem e sua gerao. Ele rejeita o estudo da
natureza da alma e privilegia o exame de suas diversas operaes que surgem
efetivamente na experincia.
De acordo com Monzani,
A Metafsica, assim, nada mais ser que a descrio e explicao das operaes do entendimento humano, sem jamais preocupar-se com
sua natureza ltima. 17
Segundo Condillac, a busca por respostas para essas questes resulta na origem
de muitos erros. De acordo com Derrida, a m metafsica consistiu em um mau uso
da linguagem que tambm de uma m filosofia da linguagem 18
. E ele complementa:
Ela somente ser corrigida portanto ao elaborar uma outra teoria dos signos e das palavras, ao praticar uma outra linguagem. Esse o
projeto constante e o mais evidente do Essai. 19
Ou seja, Condillac busca uma metafsica
(...) mais limitada, que relaciona suas investigaes fraqueza do
esprito humano, e se mostra to pouco preocupada com aquilo que lhe escapa, quanto vida por aquilo que pode alcanar, ela sabe se
conter nos limites que lhe so estabelecidos. 20
17 MONZANI, Desejo e Prazer na Idade Moderna, p. 190 -191. 18 DERRIDA, Larchologie du frivole, p. 18. 19 DERRIDA, Larchologie du frivole, p. 18. 20 CONDILLAC, Essai sur lorigine des connaissances humaines, Introduo, p. 3.
26
Portanto, a metafsica designa essencialmente o que ser conhecida mais tarde
como sendo uma teoria do conhecimento e que ser engendrada pela anlise.
Condillac afirma que, apesar de Locke no ter considerado a linguagem como
parte do desenvolvimento das operaes mentais, o autor ingls o nico (...) que se
limitou ao estudo do esprito humano, e alcanou esse objetivo com sucesso. 21
Como o interesse de Condillac se encontra na investigao da gnese do
esprito humano, ele afirma na Introduo do Ensaio:
Nosso primeiro objetivo, aquele que no devemos jamais perder de vista, o estudo do esprito humano; no para descobrir sua natureza, mas para conhecer suas operaes; observar com que arte se
combinam, e como devemos gui-las, a fim de adquirir toda a
inteligncia de que somos capazes. necessrio ascendermos origem de nossas ideias, revelar como elas so produzidas, tra-las
at os limites que a natureza estabelece para elas, para determinar a
extenso e os limites de nossos conhecimentos e renovar todo o
entendimento humano. Somente pelo caminho da observao podemos fazer essas investigaes com sucesso (...).
22
Mais adiante, explica que seu
(...) projeto reduzir a um nico princpio tudo o que diz respeito ao entendimento humano, e esse princpio no ser nem uma proposio
vaga, nem uma mxima abstrata, nem uma suposio injustificada; mas uma experincia constante, cujas consequncias sero
confirmadas por novas experincias. 23
Encontramos em algumas obras de Condillac, crticas e elogios a Locke que
so voltados interpretao das primeiras etapas da gerao dos conhecimentos. Ele
censura o filsofo ingls por ele no ter se aprofundado mais no assunto, uma vez que
no considerou o tema como sendo de seu interesse principal. Para Condillac, Locke
no estudou adequadamente a origem de nosso conhecimento. Para o autor francs,
embora Locke esteja certo em sua afirmao sobre a origem de nossos conhecimentos,
ele no explica claramente como esse processo ocorre. Condillac afirma:
Esse ingls (Locke) sem dvida lanou muita luz sobre o assunto (que nossos conhecimentos se originam nos sentidos), mas ainda deixou
obscuridades. Veremos que no atentou maioria dos juzos que se
mesclam a todas as nossas sensaes; que no reconheceu quo necessrio nos aprender a tocar, a ver a ouvir, etc.; todas as
21 CONDILLAC, Essai sur lorigine des connaissances humaines, Introduo, p. 3. 22 CONDILLAC, Essai sur lorigine des connaissances humaines, Introduo, p. 4. 23 CONDILLAC, Essai sur lorigine des connaissances humaines, Introduo, p. 4.
27
faculdades da alma lhe pareceram qualidades inatas, e no suspeitou
que elas poderiam ter suas origens na prpria sensao. 24
Na verdade, Condillac descreve seu prprio objetivo baseado no que Locke
deixou de fazer, contrapondo o mrito relativo desse ltimo aos erros dos que o
precederam:
Os Escolsticos e Cartesianos no conheciam nem a origem, nem a gerao de nossos conhecimentos: porque o princpio das ideias
inatas e a noo vaga do entendimento que eles utilizaram como ponto de partida no tm nenhuma ligao com essa descoberta. Locke teve
melhor xito, pois ele comeou nos sentidos; e ele somente deixou
coisas imperfeitas em sua obra porque no desenvolveu os primeiros
progressos das operaes da alma. Eu tentei fazer o que esse filsofo esqueceu; eu comecei pela primeira operao da alma, e me parece,
no somente fiz uma anlise completa do entendimento, mas tambm
descobri a necessidade absoluta dos signos e o princpio da ligao das ideias.
25
Condillac reitera essa sua posio em seus trabalhos futuros. No Tratado dos
Sistemas (1749), ele escreve:
Ele (Locke) conhecia a origem de nossos conhecimentos, mas ele no desenvolveu os seus progressos em um detalhamento muito
abrangente e claro. 26
Posteriormente, no Tratado das Sensaes (1754), ele declara:
No basta repetir, seguindo Locke, que todos os nossos conhecimentos vm dos sentidos: se no sei como vm, haverei de crer que, to logo que objetos exeram impresses em ns, temos
todas as ideias que nossas sensaes podem conter, e estarei
enganado. 27
A investigao de Condillac sobre a origem e desenvolvimento das ideias o
ponto inicial para uma anlise de seu sistema, no qual ele apresenta uma deduo
gentica e analtica das operaes da alma. Seu interesse est em mostrar como essas
operaes se desenvolvem a partir da percepo. Ele mostra, passo a passo, como a
alma desenvolve suas operaes em um progresso sucessivo e contnuo. Para ele, tanto
a experincia como o conhecimento que resulta da experincia tm sua origem nos
sentidos.
24 CONDILLAC, tienne Bonnot de, Tratado das Sensaes. Campinas: Editora da UNICAMP, 1993.
Trad. Denise Bottmann, p. 32 33. 25 CONDILLAC, Essai sur lorigine des connaissances humaines, Parte II, Seo II, Cap. 3, 39, p. 114. 26 CONDILLAC, tienne Bonnot de, Trait des Systmes in Oeuvres Compltes de Condillac Tome II.
Paris: Imprimerie De CH. Houel, 1798, p. 129. 27 CONDILLAC, Tratado das Sensaes, Parte III, Cap. 3, 6, p. 172-173.
28
Condillac descreve as operaes da alma no Ensaio no captulo intitulado Da
anlise e da gerao das operaes da alma, no qual ele apresenta uma hierarquia
dessas operaes em uma ordem ascendente, partindo daquela que ele considera a mais
primitiva para as mais complexas, a saber: sensao (percepo sensorial imediata),
percepo, conscincia, ateno, reminiscncia, imaginao, contemplao, memria e
reflexo. Isso , ele transforma a partir da sensao imediata todas as outras operaes
hierarquicamente organizadas no entendimento.
Em outras palavras, a progresso na aquisio de conhecimentos um processo
no qual a sensao transformada em reflexo por meio de associaes lgicas entre
ideias e analogias produzidas pelo uso de signos.
Ele afirma,
No me limitarei a dar definies. Vou tentar contempl-las (as operaes da alma) sob um ponto de vista mais luminoso do que foi feito at agora. Trata-se de desenvolver seus progressos, e de ver
como todas elas se desenvolvem a partir de uma primeira, que
apenas uma simples percepo. 28
E segue explicando, a percepo ou impresso ocasionada na alma pela ao
dos sentidos a primeira operao do entendimento. 29
Para Condillac, as percepes so as impresses que nos afetam quando
entramos em contato com as coisas que esto nossa volta; as sensaes so os dados
dos sentidos. Possumos apenas a possibilidade de conhecer os efeitos que os objetos
nos causam, porm no temos como conhecer os objetos em si. Conforme Condillac,
isso ocorre pois nossos rgos sensoriais, pelos quais adquirimos todo conhecimento
que possumos, so afetados somente pelas situaes que se passam no mundo exterior.
As sensaes representam os corpos por uma srie de ideias imediatas, tais
como: cor, odor, sabor, sonoridade, extenso, forma, grandeza, movimento, etc. Assim,
Condillac faz trs distines em nossas sensaes: 1) a percepo que ns
experimentamos; 2) a relao estabelecida entre ela e as coisas que esto fora de ns e
que so a sua causa; e 3) o juzo segundo o qual a percepo representa a essncia do
28 CONDILLAC, Essai sur lorigine des connaissances humaines, Parte I, Seo 2, p. 10. 29 CONDILLAC, Essai sur lorigine des connaissances humaines, Parte I, Seo I, Cap. 1, 1, p. 10
11.
29
objeto. 30
Segundo o pensador francs, nossos erros so essencialmente vinculados ao
estabelecimento do juzo e s podem ser corrigidos pela experincia e reflexo.
Condillac apresenta a percepo como sendo a impresso ocasionada na mente
pela ao dos sentidos e a classifica como a primeira operao do entendimento. Ou
seja, a percepo o primeiro e mnimo grau do conhecimento.
Segundo o abade francs, que segue Locke com exatido, todos os indivduos
so sempre conscientes de suas percepes, o que significa que toda percepo
acompanhada de conscincia. Ter conscincia de algo implica em nos tornarmos
conscientes das impresses que nos atingem. O que ocorre muitas vezes que ns no
podemos admitir um grande nmero de nossas percepes, no porque no temos
conscincia delas, mas porque elas so esquecidas logo aps nos afetarem. Dessa forma,
percepo e conscincia so nomes diferentes para a mesma operao. Quando vista
como impresso feita na mente, denominamos percepo; quando faz sua presena
conhecida pela mente, conscincia. 31
A conscincia, desprovida de conhecimento, encontra-se reduzida ao
conhecimento imediato produzido pelas sensaes e percepes, enquanto que as ideias
que so criadas por elas so imagens gravadas na mente.
Esse ponto muito importante, uma vez que mostra a busca de Condillac por
uma correlao slida entre as operaes da alma e a apreenso dos materiais. Charrak
explica:
Podemos, parece-nos, tirar uma consequncia mais geral dessa correlao: se ela no fosse observada, a boa metafsica desrespeitaria na realidade seus limites os corpos podendo causar certos
pensamentos sem passar pelas operaes da alma que se aplicam a
eles (materialismo), ou a alma tirando de si prpria certas ideias,
independentemente dos sentidos (idealismo). 32
Condillac distingue dois tipos de percepo das quais temos conscincia: (1) as
percepes que ns lembramos pelo menos no momento seguinte; e (2) as percepes
que ns esquecemos to logo as temos. E acrescenta,
30 CONDILLAC, Essai sur lorigine des connaissances humaines, Parte I, Seo I, Cap. II, 11, p. 9. 31 CONDILLAC, Essai sur lorigine des connaissances humaines, Parte I, Seo II, Cap. 1, 4, p. 11. 32 CHARRAK, Empririsme et Mtaphysique, p. 53.
30
Eu penso, portanto que ns temos sempre conscincia das impresses feitas na alma, mas s vezes de uma maneira to fraca, que ns no
nos lembramos delas no momento seguinte. 33
A prxima operao que ele apresenta a ateno. Ela ocorre quando nossa
conscincia seleciona e se detm em uma percepo particular dentre vrias percepes.
Ou seja, a ateno se d quando a conscincia est focada em determinado objeto,
excluso de outros. Quando nossa ateno especialmente dirigida a um objeto, as
circunstncias da percepo ou sua intensidade atuam para que tal operao ocorra.
Geralmente, a ateno atrada pelas percepes que so mais agradveis e menos
dolorosas. Portanto, a experincia de prazer e dor o que primeiro nos instrui para
focarmos nossa ateno:
As coisas atraem nossa ateno pelo lado em que elas tm mais relao com nosso temperamento, nossas paixes e nosso estado. So
essas relaes que fazem com que elas nos afetem com mais fora, e com que tenhamos delas uma conscincia mais viva.
34
Alm disso, quanto mais aumenta a conscincia sobre determinado objeto,
mais a conscincia sobre outros diminui, como ocorre em um espetculo, no qual
lembramos melhor de certas passagens do que de outras. De fato, a falta de lembrana
de um objeto significa que a ateno dada a ele no foi suficiente.
essencial enfatizar que o papel da ateno absolutamente crucial na
sequncia das operaes da alma apresentada por Condillac. De acordo com Charrak, a
ateno constitui a primeira transformao significativa do sensvel. 35
importante tambm ressaltar o papel da lembrana. Sem ela, qualquer
sequncia de percepes isoladas no poderia constituir uma experincia verdadeira.
Para se ter a ateno focada em algo necessrio que ela adquira uma dimenso
temporal que vai estabelecer todas as operaes seguintes. Ocorre que, quando objetos
atraem nossa ateno, nossa conscincia nos d conhecimento das nossas percepes e
se elas se repetem, tornamo-nos cientes de que j as tivemos antes e as reconhecemos
como sendo nossas ou afetando um ser que o prprio self, apesar de sua variedade e
sucesso. Dessa forma, a conscincia transforma-se em uma nova operao, que nos
33 CONDILLAC, Essai sur lorigine des connaissances humaines, Parte I, Seo II, Cap. 1, 9, p. 12. 34 CONDILLAC, Essai sur lorigine des connaissances humaines, Parte I, Seo II, Cap. 1, 14, p. 13. 35 CHARRAK, Empririsme et Mtaphysique, p. 52.
31
serve a todo momento e que Condillac considera como sendo a base para a constituio
da experincia. Ele denomina essa nova operao reminiscncia.
Portanto, a reminiscncia se d quando temos uma percepo que j tivemos
anteriormente e somos capazes de reconhec-la. Condillac observa que a operao da
reminiscncia permite preservar uma ligao em srie entre as percepes que
experimentamos em diferentes momentos. A reminiscncia a condio necessria para
a preservao do eu. O filsofo explica:
(...) se a ligao que existe entre as percepes que eu experimento presentemente, as que eu experimentei ontem, e a conscincia do meu ser fosse destruda, eu seria incapaz de saber que o que aconteceu
comigo ontem, aconteceu de fato para mim mesmo. Se essa ligao
fosse interrompida toda noite, eu comearia, por assim dizer, cada dia uma nova vida, e ningum poderia me convencer que o eu de hoje o
eu da vspera. 36
Sem a reminiscncia, cada momento da vida pareceria o primeiro de nossas
existncias. Ele enfatiza, por isso que eu considero essa ligao como uma primeira
experincia que deve ser suficiente para explicar todas as outras. 37
Condillac resume o encadeamento dessas primeiras operaes da mente de
forma clara e simples. Existe na mente uma percepo simples que nada mais do que a
impresso recebida dos objetos e de onde surgem as outras trs operaes. Quando a
mente nota a presena dessa impresso, temos a conscincia. Se o conhecimento
adquirido a partir dessa impresso parece ser a nica percepo de que somos
conscientes, temos a ateno. Porm, se o conhecimento j afetou a mente
anteriormente, temos a reminiscncia. Assim, a conscincia diz mente: existe uma
percepo; a ateno diz: existe uma percepo que a nica que voc tem; e a
reminiscncia diz: existe uma percepo que voc j teve antes.
As trs operaes seguintes so imaginao, contemplao e memria. Elas
dependem da experincia vivenciada e aprendida, uma vez que ocorrem na ausncia dos
objetos que as ocasionam. Vejamos como Condillac as analisa.
Quando uma percepo permanece no esprito na ausncia do objeto que a
ocasiona, temos a imaginao. A imaginao torna-se possvel quando uma determinada
36 CONDILLAC, Essai sur lorigine des connaissances humaines, Parte I, Seo II, Cap. 1, 15, p. 14. 37 CONDILLAC, Essai sur lorigine des connaissances humaines, Parte I, Seo II, Cap. 1, 15, p. 14.
32
percepo se torna familiar a partir de vrias experincias prvias que fazem com que a
mente encontre facilidade para repetir a percepo conforme nossa vontade. Muitas
vezes basta o nome de um objeto para evocar a representao dele, como se ele
estivesse na frente de nossos olhos.
Entretanto, nem sempre conseguimos reviver as percepes que tivemos.
Tomemos uma flor como exemplo. Podemos lembrar as circunstncias em que a vimos
e representar a fragrncia como a ideia geral de uma percepo que afete o sentido do
olfato, mas no podemos experimentar novamente a percepo em si. Condillac
denomina a operao que produz esse efeito de memria.
Outra operao que surge a partir da conexo que a ateno estabelece entre
nossas ideias a contemplao. Essa operao consiste em preservar, sem interrupo, a
percepo, o nome, ou as circunstncias de um objeto que no est mais presente, ou
seja, continuamos a pensar em algo que est ausente. Essa operao pode ser atribuda
imaginao, caso conserve a percepo em si, ou memria, caso conserve somente o
nome ou as circunstncias em que a percepo nos afetou.
Em suma, se a percepo se apresenta sob a forma da imagem de um objeto
que ns podemos reconhecer, temos a imaginao. Se a percepo despertada somente
com o nome ou as circunstncias do objeto ou ainda com a ideia abstrata da percepo,
d-se a memria. E, se ns conservamos, sem nenhuma interrupo, seja a imagem, seja
o nome do objeto que acaba de desaparecer, temos a contemplao, que se refere
imaginao em um caso e memria no outro.
A ltima operao da alma analisada por Condillac a reflexo. Ela ocorre
quando aplicamos nossa ateno a diversos objetos simultaneamente ou nas diferentes
partes de um nico objeto. Dessa forma, pode-se afirmar que a reflexo o controle da
ateno.
De acordo com Monzani,
A reflexo , de certa forma, o acabamento do processo. O ponto inicial, o germe de seu desenvolvimento est na percepo, e o fruto
na reflexo, que possibilita as operaes de distinguir, comparar,
decompor, analisar e sintetizar. 38
38 MONZANI, Desejo e Prazer na Idade Moderna, p. 193.
33
Logo, para Condillac, parte-se da sensao, passa-se por vrias operaes
progressivas da mente, para s ento, chegar reflexo e ao conhecimento.
Com essas explicaes, Condillac mostra a interdependncia das operaes da
mente e como elas so encadeadas a partir da primeira. Ele resume:
Ns comeamos ao experimentar percepes das quais no temos conscincia. Ns formamos em seguida uma conscincia mais viva de
algumas percepes, e essa conscincia se torna ateno. A partir da, as ideias se ligam e, como consequncia, ns reconhecemos as
percepes que ns j tivemos e nos reconhecemos como o mesmo ser
que as teve: isso constitui a reminiscncia. A alma desperta suas percepes, conserva-as, ou evoca somente os signos? imaginao,
contemplao e memria; e se ela mesma controla sua ateno,
reflexo. Enfim, da reflexo nascem todas as outras. propriamente a
reflexo que distingue, compara, compe, decompe e analisa, uma vez que essas so somente maneiras diferentes de conduzir a ateno.
A partir da, juzo, raciocnio e concepo so naturalmente formados
em sequncia e o resultado o entendimento. 39
Portanto, a partir da reflexo que Condillac analisa as operaes que
consistem em distinguir, abstrair, comparar, compor e decompor nossas ideias, afirmar,
negar, julgar, raciocinar e conceber. Com a ajuda mtua, essas faculdades se
desenvolvem e o poder do signo sobre a ideia produz todo o entendimento.
Vejamos como ela explica essas operaes.
Ao direcionarmos nossa ateno para um objeto somos capazes de decompor
as ideias que recebemos em conjunto. Esse discernimento das diferenas objetivas
constitui a distino. Quando distinguimos as qualidades separadas do objeto, temos a
abstrao. Se distinguirmos as qualidades comuns a vrios objetos, temos a
generalizao.
A comparao ocorre quando confrontamos as ideias apreendidas alternada ou
simultaneamente para extrair suas relaes. Ao reunirmos vrias ideias em uma s, ou
ao dividirmos uma nica ideia em vrias, temos a composio e a decomposio de
onde saem as comparaes e combinaes infinitas.
Se as relaes so convenientes e expressas pela ligao da ideia palavra ,
temos a afirmao. Por outro lado, se as relaes no so adequadas e so expressas
39 CONDILLAC, Essai sur lorigine des connaissances humaines, Parte I, Seo II, Cap. 8, 74, p. 28.
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pelas palavras no , temos a negao. Essa dupla operao denominada juzo e o
encadeamento de juzos denominado raciocnio.
O resultado dessas operaes, determinando exatamente as ideias e suas
relaes, a concepo.
Aps a anlise dessas operaes, Condillac conclui que o entendimento um
conjunto ou combinao das operaes da mente no qual se verifica o conhecimento.
Cumpre observar, no entanto, que a ateno a atividade fundamental da alma.
Para se chegar reflexo, necessria a comparao entre percepes, e a ateno
responsvel por essa operao.
A ateno tambm , para Condillac, o que causa a ligao das ideias, que para
ele o nico princpio que permite a evocao da percepo ou de uma srie delas.
Condillac resume a gerao das operaes da alma como segue:
A principal vantagem que resulta da maneira pela qual eu considerei as operaes da alma que podemos ver claramente como o bom
senso, o esprito, a razo e seus contrrios nascem igualmente de um mesmo princpio, que a ligao de ideias umas com as outras; que
vemos, em um nvel mais alto que essa ligao produzida pelo uso
de signos. Esse o princpio. Eu vou terminar (essa seo) com uma recapitulao do que foi dito.
Somos capazes de mais reflexo na proporo em que temos mais
razo. Essa ltima faculdade produz, portanto a reflexo. Por um lado, a reflexo nos torna mestres de nossa ateno; ela produz, portanto
ateno: por outro lado, ela nos faz ligar nossas ideias; ela produz,
portanto a memria. Da nasce a anlise, de onde se forma a
reminiscncia, que d lugar imaginao.
pelo meio da reflexo que ns ganhamos controle da imaginao, e
temos o exerccio da memria somente muito tempo depois de termos
o domnio da imaginao; e essas duas operaes produzem a concepo.
O entendimento difere da imaginao como a operao que consiste
em conceber difere da anlise. Quanto s operaes que consistem em distinguir, comparar, compor, decompor, julgar, raciocinar, elas
nascem umas das outras, e so os efeitos imediatos da imaginao e da
memria. Tal a gerao de operaes da alma. 40
40 CONDILLAC, Essai sur lorigine des connaissances humaines, Parte I, Seo II, Cap. X, 107,
p. 36 - 37.
35
importante enfatizar que na Introduo do Ensaio, Condillac explica que
todo seu argumento depende do conceito de ligao de ideias (liaison dide) e da
linguagem de ao (langage daction).
Para compreendermos o conceito de ligao de ideias, de suma importncia
analisarmos a diferena que existe entre a definio de ideia na teoria condilaquiana e
lockeana.
Locke no distingue claramente ideia de sensao. Para ele, sensaes so tipos
variados de ideias. 41
Ele define uma ideia como o termo mais indicado para significar
qualquer coisa que consiste no objeto do entendimento quando o homem pensa, (...). 42
Dessa forma, para Locke, a ideia um termo geral, um conceito bsico. Nesse
sentido, uma sensao tambm uma ideia, visto que objeto da mais simples operao
da mente, ou seja, da percepo.
A mente recebe percepes e sensaes que se tornam ideias simples e ideias
complexas no esprito. De acordo com Locke,
De modo que em qualquer lugar que existe sentido ou percepo, nesse local alguma ideia realmente produzida, e presente no
entendimento. 43
Portanto, existe uma relao direta entre percepo e ideia.
Por outro lado, Condillac define sensao como uma impresso que vem
diretamente do sentido; o registro mental mais bsico de um estmulo externo. A ideia
uma imagem da percepo, a sensao referida a algo alm de si mesma. Isso significa
que para Condillac, os dois conceitos so idnticos:
Pode-se chamar as ideias simples indiferentemente de percepes ou ideias; mas no devemos cham-las noes, porque elas no so obra do esprito.
44
Essa definio mantida consistentemente mesmo em seus trabalhos mais
tardios.
41 LOCKE, John, Ensaio acerca do Entendimento Humano. So Paulo: Editora Nova Cultural Ltda, Os
Pensadores, 1999, Trad. Anoar Aiex, Livro II, Cap. 1, 1, p. 57. 42 LOCKE, Ensaio acerca do Entendimento Humano, Introduo, 8, p. 32. 43 LOCKE, John, An Essay Concerning Human Understanding. Londres: William Tegg & CO., 1849 (30
edio), Livro II, Cap. IX, 4, p. 82. 44 CONDILLAC, Essai sur lorigine des connaissances humaines, Parte I, Seo III, 16, p. 40.
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Tanto para Locke como para Condillac, as ideias simples so a base do
pensamento; suas associaes e encadeamento o que as tornam dinmicas. Quanto s
ideias complexas, Locke explica:
As ideias formadas pela reunio de vrias simples denominam-se complexas, tais como beleza, gratido, homem, exrcito, universo. Embora complicada por vrias ideias simples, ou ideias complexas
formadas de simples, quando a mente deseja pode consider-las cada
uma por si mesma, como uma coisa inteira e designada por um nome.
45
Entretanto, Condillac apresenta apenas um simples comentrio sobre o assunto:
Eu denomino ideia complexa a reunio ou a coleo de vrias percepes; e ideia
simples, uma percepo considerada nica. 46
Como j mencionado anteriormente, na Introduo do Ensaio, Condillac
explica que todo seu argumento depende do conceito de ligao de ideias (liaison
dide) e da linguagem de ao (langage daction).
O conceito de ligao de ideias (liaison dides) proposto por Condillac o
princpio fundamental para fixar e combinar ideias, e consequentemente para o
desenvolvimento do pensamento. Seu conceito inclui a combinao de ideias e signos
bem como a ligao das ideias entre si, o que somente ocorre com a conexo de seus
signos respectivos.
Para Condillac, a ligao de ideias produzida a partir da experincia, que o
princpio nico da gerao dos conhecimentos humanos e de tudo que diz respeito ao
entendimento. Ele acrescenta que a ligao de ideias pode desempenhar ainda melhor
essa funo quando ela se desenvolve na ligao de ideias com signos. De acordo com
Charrak,
(...) dessa forma, ela (a ligao de ideias) ultrapassa as associaes diretamente prescritas pela vivacidade ou repetio da experincia sensvel, para designar todas as conexes entre ideias compreendida
a, as mais abstratas. 47
Pode-se afirmar ento que a experincia o nico critrio para a constituio
do pensamento e est intimamente relacionada com a percepo sensorial. Para
45 LOCKE, Ensaio acerca do Entendimento Humano, Livro II, Cap. XII, 1, p. 91. 46 CONDILLAC, Essai sur lorigine des connaissances humaines, Parte I, Seo III, 1, p. 37. 47 CHARRAK, Empririsme et Mtaphysique, p. 41.
37
Condillac, a experincia no somente nos fornece ideias ou materiais brutos para o
conhecimento, mas tambm nos ensina a focar a ateno, lembrar, imaginar, abstrair,
julgar e raciocinar. Ela nos fornece as melhores lies para o desempenho dessas
operaes e nos ensina como essas operaes devem ser realizadas. A experincia
tambm forma nossos desejos e nos instrui sobre o que desejar em funo de nossas
necessidades, que governam nossa ateno. A cada uma de nossas necessidades a
ateno associa a percepo do objeto que a satisfaz; aps essa percepo, ela liga
aquelas que a acompanham e outras, em um encadeamento crescente. E como nossas
necessidades so interligadas, forma-se uma rede cada vez mais complexa, na qual cada
ideia capaz de evocar, a partir dela, toda uma srie.
Isso significa que a necessidade tem uma funo essencial no estabelecimento
do princpio da ligao de ideias. Ela est relacionada espontaneamente ao estado
psicolgico do indivduo que busca o objeto exterior que o possa satisfazer. Segundo o
autor do Ensaio:
(...) as coisas somente chamam nossa ateno pela relao que elas tm com nosso temperamento, nossas paixes, nosso estado ou, para
dizer em uma palavra, com nossas necessidades; como consequncia,
a mesma ateno abrange ao mesmo tempo nossas ideias de necessidade e das coisas relacionadas a ela, ligando-as.
48
Veremos adiante como a necessidade o principal fator que move o
encadeamento das operaes (percepo, conscincia, ateno e reminiscncia) em
indivduos isolados.
Condillac explica:
A uma necessidade est ligada a ideia da coisa que prpria para satisfaz-la; a essa ideia est ligada aquela do lugar onde essa coisa se
encontra; a essa (ideia) aquela das pessoas que ali ns vimos; a essa ltima, as ideias dos prazeres ou dos desgostos que delas recebemos, e
vrias outras. Podemos at mesmo observar que medida que a cadeia
se estende, ela se subdivide em diferentes elos; de forma que, quanto mais nos distanciamos do primeiro anel, mais os elos se multiplicam.
Uma primeira ideia fundamental est ligada a duas ou trs outras, cada
uma delas, a um igual nmero, ou mesmo maior, e assim por diante. 49
Para que tenhamos o domnio sobre as ideias de forma a combin-las
habilmente, ns dependemos da formao de um pensamento discursivo. a linguagem
48 CONDILLAC, Essai sur lorigine des connaissances humaines, Parte I, Seo II, Cap. III, 28, p. 17. 49 CONDILLAC, Essai sur lorigine des connaissances humaines, Parte I, Seo II, Cap. III, 29, p. 17.
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que nos permite combinar pensamentos e construir o conhecimento. As ideias ligam-se
com os signos, e Condillac afirma somente por esse meio que elas se ligam entre
si. 50
Em outras palavras, de acordo com Condillac, para termos uma ideia
necessrio que uma sensao se vincule a outras (sejam de caracteres iguais, sejam de
caracteres diferentes) por meio de um signo ou de um smbolo, e o conjunto formado
por esses signos ou smbolos nada mais que a linguagem. Ao utilizarmos esse
conjunto de signos, organizamos e combinamos os contedos da mente e ento
formamos conceitos e juzos que nos conduzem ao conhecimento. pelo uso das
palavras que ns conseguimos desenvolver um mtodo de reflexo.
Conforme Monzani,
(...) sobretudo no estabelecimento da reflexo que o uso dos signos fundamental. E todas as operaes que dela dependem esto basicamente ligadas ao uso dos signos, j que s eles tornam possveis
as operaes complexas na medida em que o signo faz o papel do
significado.51
Portanto, o plano de Condillac, no que diz respeito ao estudo da gerao das
operaes da alma, abrange dois processos. O primeiro seguir as operaes a partir da
percepo, isto , voltar primeira operao do esprito de onde resultam todas as outras
e o segundo mostrar como adquirimos o hbito do uso dos signos, que significa
retornar linguagem de ao a partir da qual constitumos todas as outras linguagens.
De acordo com Ricken,
Na opinio de Condillac, somente com a ajuda de signos, os diferentes estgios das operaes cognitivas poderiam gradualmente se desenvolver a partir da impresso sensorial originada em um processo
pelo qual pensamentos e signos so interdependentes. 52
O fundamento para que o filsofo francs interprete a aquisio de
conhecimentos e o progresso intelectual humano sendo essencialmente dependente da
linguagem encontra-se na Introduo do Ensaio, na qual ele explica a relao existente
50 CONDILLAC, Essai sur lorigine des connaissances humaines, Introduo, p. 4. 51 MONZANI, Desejo e Prazer na Idade Moderna, p. 197. 52 RICKEN, Linguistics, anthropology and philosophy in the French Enlightenment, p. 79.
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entre os signos da linguagem e a sensao, e afirma estar convencido de que o uso de
signos o princpio que desenvolve o grmen de todas as nossas ideias. 53
Para Condillac o uso dos signos a verdadeira causa dos progressos do
entendimento. So os signos que fazem com que o entendimento humano seja capaz de
um desenvolvimento do qual os animais no so suscetveis. 54
Segundo Lefvre,
Para Condillac, o signo uma causa determinante absolutamente necessria para o desenvolvimento do esprito. Ele por si s permite
fixar e reunir as ideias; passar de uma ideia simples a uma ideia
complexa; formar noes matemticas, as de nmeros e sua srie; as noes fsicas, aquela do ouro que agrupa diversas qualidades; as
noes morais, como a justia, que rene uma coleo de elementos sob
a forma de um arqutipo. 55
Como para Condillac somente a sensao d origem ao conhecimento, o signo
torna possvel a passagem da sensao para a reflexo (sensation transforme). ele
conclui que sem os signos o progresso intelectual no possvel:
Conclumos que, para termos ideias sobre as quais sejamos capazes de refletir, precisamos imaginar signos que sirvam como ligaes para os
diferentes conjuntos de ideias simples, e que nossas noes somente sero exatas na medida em que tivermos inventado, de forma
ordenada, signos que possam determin-las. 56
Dessa passagem, podemos afirmar que Condillac concede aos signos um papel
fundamental nos desenvolvimentos mais elevados da sensao. Ou ainda, a linguagem e
os signos so necessrios para a origem, desenvolvimento e operao do pensamento.
A linguagem desempenha um papel totalmente diferente daquele apresentado pelas
teorias racionalistas, nas quais o signo lingustico figurava como uma ferramenta
utilizada para comunicar pensamentos que existiam independentemente da linguagem.
De acordo com Aarsleff, Sem linguagem e signos, a capacidade inata do
homem para refletir, sua razo, no poderia ter se manifestado e ter se desenvolvido. 57
53 CONDILLAC, Essai sur lorigine des connaissances humaines, Introduo, p. 5. 54 CONDILLAC, Essai sur lorigine des connaissances humaines, Parte I, Seo II, Cap. IV, 46, p. 21. 55 LEFVRE, Roger, Condillac ou la joie de vivre. Paris: ditions Seghers, 1966, p. 23. 56 CONDILLAC, Essai sur lorigine des connaissances humaines, Parte I, Seo IV, Cap. 1, 9, p. 43. 57 AARSLEFF, Hans, The tradition of Condillac: The problem of the origin of language in the eighteenth century and the debate in the Berlin Academy before Herder, In From Locke to Saussure Essays on the
40
Para Condillac, se ns pensarmos cuidadosamente sobre as coisas, prestarmos
mais ateno linguagem, aperfeioando-a e usando-a com proficincia, ento o
progresso do esprito humano estar garantido. Segundo Condillac,
(...) os progressos do esprito humano dependem inteiramente da habilidade com a qual ns nos servimos da linguagem. Esse princpio simples e derrama uma grande luz sobre o assunto: at onde sei,
ningum o reconheceu antes de mim. 58
Em outras palavras, investigar a origem da linguagem significa buscar
compreender como se d a aquisio de conhecimento e entendimento humanos, e
encontrar o princpio correto de sua sistematizao, isto , encontrar um mtodo preciso,
conforme faz Condillac na segunda parte do Ensaio.
Pode parecer um pouco vulgar afirmar que Condillac transformou a teoria de
conhecimento de Locke em uma teoria sobre a origem da linguagem, mas de fato o
que parece ter ocorrido. De acordo com Charrak, Condillac afirma que a linguagem ,
no somente o elemento, mas sim o instrumento principal do desenvolvimento do
pensamento. 59
Isto implica que, para Condillac, a linguagem necessria para nos permitir
pensar, tomando-se o pensamento como ato discursivo, ou melhor, de organizao das
percepes em uma srie. Ele chega a essa concluso partindo do princpio de que a
anlise o nico mtodo para se adquirir conhecimento e que somente podemos fazer
anlises utilizando signos. o signo que permite a anlise do pensamento, por
conseguinte, a constituio do signo inseparvel da anlise. Ou seja, somente com a
ajuda de signos que os diferentes estgios das operaes cognitivas podem ser
gradualmente desenvolvidos a partir da impresso original dos sentidos em um processo
pelo qual o pensamento e a linguagem so mutuamente dependentes.
Para o autor francs, a anlise o mtodo natural para se chegar verdade e
consiste em compor e decompor nossas ideias e compar-las, para assim descobrirmos
as relaes que existem entre elas, chegando a novas ideias. Esse mtodo permite ainda
que se faa o caminho inverso, at chegarmos origem de todas as coisas, como um
study of language and the intellectual history. Minneapolis, EUA: University of Minnesota Press, 1985,
p. 164. 58 CONDILLAC, Essai sur lorigine des connaissances humaines, Parte I, Seo II, Cap. XI, 107 (a),
p. 36. 59 CHARRAK, Empririsme et Mtaphysique, p. 72.
41
mecnico que desmonta e remonta uma mquina para entender seu funcionamento. Isso
se d ordenando as ideias a partir das mais simples at as mais complexas, compondo-as
e decompondo-as para compar-las, observando as semelhanas e diferenas, em busca
de novas relaes pa