Post on 07-Jan-2017
UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARABA CENTRO DE CINCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LETRAS
LEANDRO CSAR ALBUQUERQUE DE FREITAS Ecos buclicos: relaes entre as Buclicas de Virglio e a
primeira parte da Marlia de Dirceu de Gonzaga
Joo Pessoa, 2008
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Leandro Csar Albuquerque de Freitas
Ecos buclicos: relaes entre as Buclicas de Virglio e a primeira parte da Marlia de Dirceu de Gonzaga
Dissertao apresentada ao Programa em Ps-Graduao em Letras da Universidade Federal da Parabacomo requisito obteno do ttulo de Mestre na rea de Literatura e Cultura
Orientador: Prof. Dr. Milton Marques Jnior
Joo Pessoa, 2008
F866e Freitas, Leandro Csar de Albuquerque. Ecos buclicos: relaes entre as Buclicas
de Virglio e a primeira parte da Marlia de Dirceu de Gonzaga / Leandro Csar Albuquerque de Freitas.- Joo Pessoa, 2008. 181p.
Orientador: Milton Marques Jnior Dissertao (Mestrado) UFPB/CCHLA
1. Virglio (Pblio Virglio Maro) crtica e interpretao. 2. Gonzaga, Toms Antnio crtica e interpretao. 3. Literatura comparada. 4. Buclicas crtica e interpretao. 5. Marlia de Dirceu crtica e interpretao.
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AGRADECIMENTOS Agradeo em primeiro lugar a minha famlia, sem a qual nada de minha trajetria seria
possvel. A meu pai e a minha me, pela pacincia, carinho e incentivo; a meus irmos, pela
companhia; avs, tios e tias, por me fazerem ver que esta mais que uma conquista pessoal; a
tia Clarice especialmente, pelo abrigo oferecido; a Emilia por compartilhar esta trajetria
longa.
Agradeo tambm ao Professor Doutor Milton Marques Jnior pela inspirao e orientao
que antecedem a este trabalho; Professora Doutora Sandra Luna, pelos mesmos motivos e ao
Professor Doutor Juvino Alves Maia Jnior pela prontido com que sempre nos auxiliava.
Agradeo ao CNPq, pelo financiamento e cobertura nesses dois anos.
Finalmente a todos que de uma forma ou de outra acabaram se tornando minha famlia neste
processo.
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RESUMO
Este trabalho prope uma anlise comparativa entre as Buclicas de Virglio e a primeira
parte da Marlia de Dirceu de Toms Antnio Gonzaga. Em seu decorrer, discorremos sobre o
gnero buclico e as caractersticas peculiares deste tipo de composio, tambm efetuamos
um pequeno relato biogrfico de Virglio e Toms Antnio Gonzaga para a devida
contextualizao dos autores. Seguidamente tratamos das Buclicas, analisando sua estrutura
textual e a forma como essa estrutura auxilia na composio lrica, provendo um cenrio a
partir do qual os temas so desenvolvidos. A anlise estrutural e a dos temas que se segue
buscam iniciar um referencial comparativo para as duas obras, tendo em vista a antecedncia
da obra de Virglio. A anlise da Marlia de Dirceu segue das Buclicas, novamente
seguimos a seqncia estrutura-tema em que verificamos a distino estrutural da segunda
obra com relao primeira, a despeito da preservao de certos temas e elementos
expressivos. Por fim realizamos uma comparao em que apesar de verificarmos as distines
estruturais das duas obras, apontamos similaridades e propomos um estudo de influncia.
Palavras-chave: Buclicas, Marlia de Dirceu, poesia pastoril, Arcadismo brasileiro
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ABSTRACT
This research proposes a comparative analisys between Virgils Eclogues and the first part of
Marlia de Dirceu, a poem written by the blazilian poet Toms Antnio Gonzaga. Throught
the development of this work, we discuss Pastoral Poetry and some peculiar features of this
kind os composition; we also perform a brief narration of both poets lifes to propiciate some
contextualization. After the first part we deal with The Eclogues, analizing its textual structure
and the way this structure helps the lyrical performance, providing scenes and backgrounds
from where some themes are develop. The structural analysis and the themes analysis aim to
build a comparative reference for the works in question, in face of the precedence of Virgils
poem. Marlia de Dirceus analisys is the next, again we follow the structure-theme sequence
in whic we verify a structural distiction between the second and the first text, despite of the
preservation of some themes and expressive elements. Finally we perform the comparison in
which we show the strutural diferences although we also point the similarities and propose an
influence study relating the works.
Key-words: Eglogues, Marlia de Dirceu, Pastoral Poetry, Brazilian Arcadism.
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SUMRIO AGRADECIMENTOS.................................................................................................................................................4 RESUMO ......................................................................................................................................................................5 ABSTRACT ..................................................................................................................................................................6 SUMRIO.....................................................................................................................................................................7 INTRODUO ............................................................................................................................................................8 I - A POESIA BUCLICA - UM GNERO EM DOIS MOMENTOS.................................................................12
IDENTIDADES............................................................................................................................................................19 VIRGLIO ..................................................................................................................................................................19 TOMS ANTNIO GONZAGA.....................................................................................................................................27
II AS BUCLICAS, GNERO E TEMAS ..............................................................................................................47 OS MODOS DE ENUNCIAO .....................................................................................................................................50 A ENCENAES ........................................................................................................................................................72 TEMAS......................................................................................................................................................................74 A SOLUO DAS BUCLICAS....................................................................................................................................77 OS TEMAS NAS BUCLICAS ......................................................................................................................................78
O amor ................................................................................................................................................................78 O Locus amoenus................................................................................................................................................81 Homenagens aos deuses .....................................................................................................................................86
III O ARCADISMO ...................................................................................................................................................90 MARLIA DE DIRCEU ................................................................................................................................................97
A Conquista de Marlia.......................................................................................................................................99 A construo de Marlia ...................................................................................................................................119 A intensidade do Amor......................................................................................................................................126
SNTESE...................................................................................................................................................................134 IV COMPARAO.................................................................................................................................................135
O BUCOLISMO ........................................................................................................................................................135 O Ambiente .......................................................................................................................................................137 As estruturas .....................................................................................................................................................139
OS TEMAS ..............................................................................................................................................................144 O Amor..............................................................................................................................................................145 O Locus Amoenus .............................................................................................................................................152 Os motivos ........................................................................................................................................................157
A INFLUNCIA ........................................................................................................................................................166 CONSIDERAES FINAIS...................................................................................................................................175 BIBLIOGRAFIA......................................................................................................................................................178
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INTRODUO
Comparar natural, portanto inevitvel. Imagina-se que desde que o homem efetuou
seu primeiro intercmbio cultural com outro grupo humano, enveredou pelo caminho das
medidas e paralelos, observando as semelhanas e diferenas perceptveis no que diz respeito
s solues propostas por diferentes grupos aos diversos campos da experincia humana.
Ignorando-se as motivaes etnocntricas para tal procedimento, deve-se reconhecer que a
comparao, como conseqncia natural dos intercmbios culturais, deu seguimento a outros
processos que em muito auxiliaram as transformaes scio-culturais e o progresso cientfico
e tecnolgico nos grupos que melhor a souberam aproveitar.
Dentre todas as possveis entidades alvo de comparao, certamente os bens culturais
so os de maior incidncia, ou ao menos os que mais comoo geram. Isso porque so mais
do que meras produes, mas bens que, pelo fato de serem altamente significativos para as
culturas que os engendra, tolhem a receptividade a outros bens estranhos ou aliengenas. No
diferente com a literatura, pelo contrrio, sua modalidade de difuso, a palavra, sempre deu
espao para propagao de idias particulares e desde o comeo foi um meio de afirmao dos
valores culturais. Veja-se o caso das mais antigas epopias que comearam como textos orais
e assim permaneceram por centenas de anos, sempre foram todas, em ltima anlise,
justificadoras e difusoras dos procedimentos e modos de vida dos povos que as criaram.
Possivelmente, a universalidade do esprito humano e o intercmbio cultural que
realizamos desde tempos imemoriais tenham nos proporcionado a habilidade de reconhecer
aquilo o que produzimos textualmente como parte de nossa prpria experincia humana,
mesmo quando emissor e receptor distam quilmetros e milnios um do outro. Assim, ao
compartilharmos histrias ou obras de arte de fontes mais distantes possveis, somos capazes
de obter entendimento sobre suas representaes. Justifica-se assim o proceder da comparao
livre? Em parte, pelo menos tanto quanto se justifica comparar o nascimento de um beb com
a construo de um carro, afinal, em essncia, ambos so criaes humanas at ento no
reproduzidas por outra espcie. No entanto, quanto mais nos aprofundamos nos objetos a
serem contrapostos, cedo ou tarde eles revelaro pontos de divergncia a partir dos quais
constituem entidades distintas, o que os torna incompatveis para o processo. Em se tratando
de produes artsticas, especialmente as literrias, freqentemente nos encontramos entre os
dois extremos da progresso, a similaridade essencial e distino ltima, tendo que justificar a
pertinncia do procedimento de comparao no manejo dos dois plos.
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H sempre um ponto de convergncia? Arriscamos dizer que possivelmente sim. A
crescente gama de abordagens dos textos literrios prov muitas possibilidades para os
estudos comparativos. Os pontos de contato entre as culturas e as redes de influncia durante
a histria da humanidade foram muitos, permitindo a circulao de idias, temas, emoes
que sofreram vrias abordagens e evolues na maneira de serem expressas; esses
ressurgimentos normalmente possibilitam muitos trabalhos comparativos. Contudo, na
posse de dois textos to distantes no tempo e espao como as Buclicas, de Virglio e Marlia
de Dirceu, de Toms Antnio Gonzaga, mediante que critrios se justifica o estabelecimento
de parmetros de comparao? A literatura comparada uma disciplina desafiadora que a
cada dia supre detratores e fomentadores com mais diversos argumentos para suas convices.
No caso das Buclicas e da Marlia de Dirceu, entretanto, vrios pontos comuns
parecem indicar no s a possibilidade mast tambm a urgncia de uma anlise desse porte,
ainda mais que ambos os textos se vm aproximados pelo tipo literrio conhecido como
poesia pastoril. Nesse vis, contraporamos meramente uma obra dita fundadora e outra
difusora do gnero se adotssemos as concepes consensuais acerca da poesia pastoril, e
teramos possivelmente material para um trabalho coerente e extenso. Os cotejamentos dos
pontos de convergncia e divergncia dos temas j configurariam um trabalho satisfatrio,
uma vez que lidamos com obras de arte que seguem uma tradio.
Esses indcios preliminares conduziro os procedimentos deste trabalho, que se
pautar na busca do entendimento do gnero que perpassa os dois poemas, de suas
repercusses temticas e finalmente da relao criativa estabelecida entre as obras. Ao final,
pretendemos ter em mos um quadro satisfatrio das aproximaes e distncias que marcam
as produes, e possivelmente definir a natureza da relao entre elas.
Convm esclarecer que, no que se refere obra de Gonzaga, abordaremos nesta
anlise apenas a primeira parte do poema. O motivo para essa escolha reside no fato de a
segunda parte da obra ser notoriamente marcada pelos drsticos eventos da vida do poeta, sua
priso e degredo, em virtude de seu envolvimento na inconfidncia mineira. Como a primeira
parte j oferece todo o arcabouo estrutural e temtico que ser utilizado em toda a extenso
da obra, sem a interferncia de acontecimentos que certamente exigem uma avaliao
diferenciada, julgamos mais sucinto nos ater apenas primeira parte de seu poema.
Para os fins desta anlise, seguimos uma seqncia de cinco captulos. No primeiro,
contextualizamos a poesia buclica, apontando suas caractersticas particulares e possveis
elementos de aproximao entre os textos em comparao neste trabalho. Uma pequena
contextualizao foi feita de modo a melhor compreender as obras e os autores em seus
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respectivos contextos. Para o primeiro captulo foram fundamentais os trabalhos de Mrcio
Luiz Moitinha Ribeiro em sua dissertao A Poesia Pastoril: as Buclicas de Virglio; Pierre
Grimmal e seu trabalho biogrfico Virglio, ou o segundo nascimento de Roma; e Adelto
Gonalves e seu livro Gonzaga, um poeta do iluminismo.
No segundo captulo nos dedicamos s Buclicas, buscamos abordar cuidadosamente
a questo do gnero literrio predominante no poema como forma de explicitar o processo de
formao do ambiente buclico. Sabe-se que as Buclicas reformularam o poema pastoril e
fundaram um tradio muito especfica, pela anlise da estrutura do texto que justificamos
os elementos dessa tradio. Feita essa anlise estrutural, apresentamos algumas anlises dos
temas presentes na obra, formando o lastro para nossa comparao. No segundo captulo nos
valemos principalmente dos textos de Kte Hamburguer, A lgica da criao literria;
Umberto Eco, Lector in fabula; e Roland Barthes, A aventura semiolgica.
No terceiro captulo nos dedicamos primeira parte da Marlia de Dirceu. Primeiro,
julgamos pertinente abordar o movimento esttico em que ela se enquadra, o Arcadismo, e a
forma como este movimento orienta de maneira bem especfica a execuo das obras nele
inseridas. Depois, seguindo a seqncia de abordagem estrutura-tema, mostramos o quo a
obra rcade difere da clssica no quesito estrutura e como, por outro lado, podemos aproximar
as duas obras segundo os seus temas, que, mesmo diludos esparsamente no texto,
contemplam os caminhos da obra clssica, as Buclicas. Para esse captulo foram
fundamentais os textos de Antonio Candido, Formao da literatura brasileira; Jorge Luiz
Ruedas de la Serna, Arcdia, tradio e mudana; e Olivier Reboul, Introduo Retrica.
No quarto captulo efetuamos a comparao, o foco est nas caractersticas estruturais
do poema buclico, levantadas principalmente no segundo captulo, e nos temas e
desenvolvimentos levantados no segundo e terceiro captulos. Por fim, listadas algumas
proximidades e distncias, apresentamos uma proposta de estudo de influncia que pretende
apontar um elo concreto possvel entre as obras. Nesse captulo nos valemos principalmente
dos estudos de Harold Bloom em sua obra A angstia da influncia; e Umberto Eco em seu
livro Interpretao e superinterpretao.
Por fim, no quinto captulo apresentamos as consideraes finais acerca do trabalho.
Outros textos relevantes utilizados so Construo e Arte das Buclicas de Virglio de
Joo Pedro Mendes; Virgile: Bucoliques de E. Saint-Denis; Virgil, the Eglogues, de Guy Lee;
e Virglio, Buclicas, de Maria Isabel Rebelo Gonalves; Alguns usados como fontes do texto
latino ou como fontes de tradues. As tradues prprias foram feitas com base em dois
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dicionrios, o Dicionrio latino portugus de F. R. dos Santos Saraiva e o Diconrio de
latim-portugus da Porto editora.
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1 - A POESIA BUCLICA - UM GNERO EM DOIS MOMENTOS
Com mais de dois mil anos de ocorrncia, a poesia pastoril um gnero de muitos
autores e re-visitaes sem, no entanto, atrair a quantidade de ateno que outros gneros
contemporneos ao seu surgimento obtiveram. A etimologia do seu nome acusa sua origem
grega, seu nome deriva de bouko/loj (boieiro, pastor), e se refere a um gnero potico que
privilegia personagens e ambientes campestres, envolvidos em atividades de criao de
animais. Como boa parte dos gneros antigos, uma forma de poesia que no se define
explicitamente por seu metro ou forma, e sim pelo seu assunto ou orientao temtica central.
Ribeiro(RIBEIRO, 2006, p.123)1 a define claramente segundo esse aspecto:
Strictu Sensu uma forma de poesia na qual o protagonista o bouclos
(bouko/loj) , isto , o boieiro ou o vaqueiro, com predomnio para o guardador
de gado bovino, por ser o mais antigo entre os pastores. Latu sensu, seria o
gnero literrio, em verso, em que figuravam, num cenrio campestre, os
guardadores de gado como principais atores, podendo ser boieiros,
vaqueiros, pastores de cabras ou de ovelhas. (RIBEIRO, 2006, p.13)
As origens primitivas dessa modalidade de poesia ainda so um ponto de discusso,
sabe-se que Tecrito2 de Siracusa foi seu primeiro difusor em forma escrita na Grcia ao
compor seus Idlios, mas a tradio que o antecedia permanece em questo. Ribeiro aponta
uma relao entre a poesia pastoril e as colheitas das vindimas ou as dionisacas na Grcia
antiga (RIBEIRO, 2006, p.12), afirma tambm que muitos dos rituais e elementos descritos
pela poesia referem-se a atividades realizadas por gente do campo em celebraes deusa
rtemis. Seja como for, com relativa certeza que podemos afirmar que os dois autores
responsveis pela conformao do gnero como ficou notoriamente conhecido foram
Tecrito, ao se valer de personagens e cenrios campestres na composio de seus idlios; e
Virglio ao agregar valores filosficos aos temas propostos por seu antecessor.
1. Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de Ps-graduao em Letras Clssicas do DLCV da FLFCH da Universidade de So Paulo. 2 O poeta teria nascido ao final do sculo IV a.C. (em 310 ou 309), em Siracusa na Siclia e falecido no meio do sculo III a.C. (250 ou 249). De sua produo potica restam-nos os Idlios e alguns poemas esparsos; os Idlios so compostos por poemas de tipos variados entre os quais poemas buclicos.
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Modernamente, nos afirma Ribeiro3 haver vrios termos intercambiveis para retratar
esse tipo de poesia: idlio, gloga, pastoral, buclicas; embora na Antigidade alguns desses
termos definissem modalidades poticas distintas. Para os fins deste trabalho, utilizaremos a
concepo moderna que permite o livre uso de todos como sinnimos, a exceo de gloga,
que especificamente corresponder s partes do poema de Virglio.
A poesia Buclica foi certamente alada a uma posio de prestgio entre escritores e
leitores mais experientes, contudo, no se pode comparar sua popularidade com a de gneros
com a pica ou a tragdia, esses bem mais freqentadas como se pode atestar pelo nmero de
edies, tradues e adaptaes que possuem. No obstante essa menor disseminao, essa
modalidade de poesia logrou, ao longo dos sculos, ser esteio para muitos escritores e poetas
que em algum momento de suas vidas cultivaram a fantasia pastoril em suas produes.
Possivelmente, o motivo de sua timidez editorial seja o mesmo de seus no raros
retornos e redescobertas por parte de autores e pblico; ambos, em vrios momentos da
histria, tm retomado, a seu modo e em suas culturas, os mesmos motivos e cenrios
estabelecidos na Antigidade greco-romana. Esse motivo seria a opo por uma representao
no extrema das relaes humanas, representao em que no est em foco a eminncia das
aes, seus dilemas e assombrosos resultados como ocorre na poesia pica, na tragdia; ou o
absurdo e a ruptura com padres, como ocorre na comdia.
Outra modalidade de composio da qual a poesia buclica de distancia ligeiramente
a poesia de carter eminentemente subjetivo, a que convencionamos chamar de lrica. Embora
haja uma preocupao com estados de alma e expresso do interior na poesia pastoril, no se
pode dizer que ela rescinda de referncias objetivas e priorize os acontecimentos do eu em
detrimento de uma conformao objetiva de um mundo. Para Rosenfeld (ROSENFELD,
2004), a falta de objetividade lrica prescinde inclusive da configurao de um personagem
central na busca pela expresso de um estado emocional.
Quanto mais os traos lricos se salientarem, tanto menos se constituir um
mundo objetivo, independente das intensas emoes da subjetividade que se
exprime. Prevalecer a fuso da alma que canta com o mundo, no havendo
distncia entre sujeito e objeto. Ao contrrio, o mundo, a natureza, os deuses,
so apenas evocados e nomeados para, com maior fora, exprimir a tristeza a
solido ou a alegria da alma que canta. (ROSENFELD. 2004, p.23)
3 Ribeiro esclarece que o Idlio era uma composio potica breve para os antigos; a gloga ou cloga, um extrato ou parte de um poema; buclica e pastoral so termos que designam praticamente o mesmo tipo potico, a poesia buclica, sendo um termo grego e o outro moderno, no tendo sido utilizado na Antigidade. (RIBEIRO, 2006, P. 1-13)
http://150.165.241.35/scripts/odwp032k.dll?showbrief=ufpb_wpor:ufpb_por:pn:T:CARD:NEW:rosenfeld,|anatol
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O poema buclico compe nitidamente cenrio e personagens, passos fundamentais
para o gnero pico e dramtico, mas no preza por uma descrio de acontecimentos
significativos que componham uma diegese, vale-se desses elementos narrativos para uso
expressivo dos estados de alma e sensaes dos personagens, atitude preponderantemente
lrica. Essa confuso governa um gnero complexo que efetua na prpria estrutura textual
aquilo mesmo que faz no tema: a fuso do indivduo com o mundo que o cerca sem que
ambos percam sua situao de entidades autnomas. Essa situao aparentemente paradoxal
projeta um tipo de composio muito rica em que o eu se expressa atravs de cores mais
ntidas. Isso porque na formao das imagens sempre resta um resduo objetivo dos signos
usados para comp-la, de modo que o tropo final possa ser desdobrado no apenas em termos
do eu que se expressa, mas tambm em termos dos elementos usados em sua composio.
Dada a dificuldade em se executar uma composio buclica, no dificilmente vemos
poetas de gabarito arriscando suas penas no mundo dos pastores com mais e menos
notoriedade. certo que nem todos se destacam nesse feito, as Buclicas de Cames no so
nem de longe to apreciadas quanto os seus sonetos ou Os Lusadas; Sannazaro, no entanto,
estabeleceu um movimento com base em seu poema Arcdia. No decorrer da histria das
artes, durante alguns momentos, especialmente, o retorno aos ideais clssicos de composio
artstica, leia-se os ideais greco-romanos, alimentou rupturas em momentos vistos como
ndulos de tenso criativa. A fantasia de que havia se perdido algo que s o retorno s fontes
proveria possibilitou, em momentos como o classicismo e o Neoclassicismo, uma reviravolta
necessria ao processo criativo da civilizao ocidental.
Nesses instantes, a busca de modelos sempre recaa sobre os grandes poetas, ou pelo
menos queles que a tradio crtica aprendeu a chamar de grandes por motivos que no nos
convm analisar agora. Sendo assim, artistas da estatura de Homero, Tecrito, Virglio e
Horcio eram seguidos com relativa fidedignidade, normalmente marcada por tonalidades
ideolgicas e estticas contemporneas que viam o modelo anterior como um exemplo
impoluto de arte sublime.
No Brasil, nossa literatura em formao apenas pde acompanhar as revises culturais
a partir do movimento rcade. Antes disso, durante o classicismo, no dispnhamos de
material intelectual para tanto, a cultura letrada ainda engatinhava nos primrdios da
colonizao. Essa mesma colonizao, entretanto, cultivou rapidamente um ambiente
propcio, de modo que em menos de 200 anos j demonstraramos competncias literrias
louvveis.
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Toms Antnio Gonzaga, sendo uma dessas competncias, reivindicado como
membro de duas literaturas nacionais, a brasileira e portuguesa. O motivo para isso est bem
alm de sua provenincia ou de seu tempo de vida no Brasil ou Portugal, dados que os
clamantes mais exaltados poderiam levantar em prol de suas causas, mas que dificilmente
levariam a uma concluso. O motivo da celeuma est basicamente na maior obra do autor,
Marlia de Dirceu. No fosse a publicao desse poema, Gonzaga se veria facilmente no
terceiro plano da histria, como um nome menor a participar da malfadada conjurao
mineira em 1789.
poca de seu lanamento em Portugal, em 1792, Marlia de Dirceu foi um sucesso
editorial tremendo. O autor, que nesse perodo j se encontrava exilado em Moambique,
havia organizado boa parte da publicao e enviado o texto durante sua priso na Ilha das
Cobras, no Rio de Janeiro. bem provvel que esse sucesso lhe tenha sido providencial, a
julgar a lenincia com que foi tratado se comparado a outros inconfidentes de maior prestgio
e poder econmico, que tiveram que cumprir degredos mais duros.
Seguindo o gosto rcade de composio, Marlia de Dirceu se valia dos mesmos
elementos pastoris utilizados h muito por diversos poetas para expressar de maneira ntima
as vrias facetas e momentos de um sentimento: o amor. Soma-se a isso a tendncia de cunho
iluminista que, em busca da clareza, chega quase a didatizar o poema, transformando-o numa
pea de argumentao em que se projetam interlocutores intermedirios, que so justificativas
poticas para o tom explicativo ou argumentativo em ltima anlise destinado ao leitor.
Mesmo assim, o tom confessional e corts colore com paixo o doce ambiente buclico em
versos curtos, dando forma a muitas ponderaes acerca do sentimento amoroso que s alguns
anos depois se tornariam moeda corrente nas representaes literrias. Por isso, no obstante o
tributo a duas tradies igualmente demandadoras, o Iluminismo e o bucolismo, Gonzaga
maneja uma potica nica, o que para Slvio Romero (ROMERO, 2001) foi sua grande
diferenciao em meio massa amorfa de poetas que abundavam em um ambiente esttico
to marcado. Diz o crtico: Gonzaga era, porm, um verdadeiro talento; porque atravs
daquelas roupagens arcdicas deixa notar as belezas de um lirismo franco e at as verdades de
um realismo perfeito (ROMERO, 2001, p. 273)
Como os outros rcades, buscaria na fonte clssica os elementos de sua potica. Essa
tendncia teria base no neoclassicismo francs, movimento de retomada radical da esttica
clssica que se difundia no mesmo meio que as idias iluministas. Os rcades parecem ter
preferido apenas um aspecto dessa retomada e tiveram Virglio e sua poesia buclica como a
fonte esttica e ideolgica do movimento. Embora tenha que se dizer que a poesia pastoril
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antecede s Buclicas do mantuano, a partir dele que se delineia o ambiente pastoril como
um ideal de existncia. Ao optar por escrever poemas pastoris, e desse modo trazer mais essa
forma ao gosto romano, Virglio ultrapassa seu antecessor, Tecrito, ao propor um sutil
equilbrio entre a rusticidade e delicadeza de esprito. No seria por acaso que comporia essa
idia, possivelmente imbudo do esprito reformador da corte do imperador Otaviano, deu os
primeiros passos na elaborao da estrutura ideolgica do novo governo. Ruedas de La Serna
(DE LA SERNA, 1995) aponta essa pitoresca mescla de elementos to distintos:
Desse modo, Virglio, ao construir sua Arcdia, no renuncia ao saber,
cultura de seu tempo, no procura tampouco reproduzir um mundo
primitivo, que afinal se mostraria falso, tratando de ser realista ou
pitoresco, seno que constri um mundo ideal e, por isso mesmo, tanto
mais real, pois se funda nas capacidades verdadeiras do esprito humano e
para o qual convergem as aspiraes universais do homem: a liberdade e a
felicidade. (RUEDAS De LA SERNA. 1995 p. 47)
Para Ruedas de La Serna h um propsito nessa elaborao de Virglio que os rcades
setecentistas claramente fizeram seu, o de propor um modelo para a restaurao do mundo em
que valores antigos viessem a sobrepor o estado de injustia presente e reorganizar o mundo
sua feio essencial. Bem antes de escrever sua Eneida, essa ordem para a qual tende o
poema pico j est formada nas Buclicas, trata-se afinal de um gnero literrio fortemente
marcado por um componente filosfico que possivelmente reconduzido tona a cada
reincidncia.
Um estudo comparativo da manifestao do gnero buclico nas duas obras uma boa
justificativa para este trabalho, tratando o estudo de um modo cronolgico, poderemos
inquirir de que forma Gonzaga se apropria do gnero e qual os desvios promovidos pelas
diferenas culturais dos perodos e ambientes em que surgiram os textos. Mais ainda, poder-
se- questionar de que forma o Gnero determina o prprio modo de enunciao apresentado
na obra, se h rigidez ou se possvel associar textos to dspares estruturalmente sob um
mesmo modo esttico.
Um outro ponto para a aproximao em uma anlise o dos temas veiculados pelos
textos. Certamente vinculado ao estudo do gnero, este vis de anlise pode conduzir a
observao das diferentes elaboraes dos temas e do modo como os motivos referentes a eles
so explorados nas duas obras. Prontamente pode-se vislumbrar o grande tema que perfaz
ambas as produes, o amor; no caso das Buclicas, explorado em diversas manifestaes, e
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na Marlia de Dirceu, trabalhado exausto em uma manifestao nica. Contudo,
certamente no se trata do nico tema presente, uma vez que podemos depurar outros
advindos do gnero textual que compartilham, a exemplo do locus amoenus.
Desde Virglio vemos que a poesia pastoril, mesmo empenhando muito de sua
extenso na composio de cenrios, insere temas externos sobre os quais pondera valendo-se
do arcabouo temtico do universo buclico. Essas inseres, normalmente tratadas como os
assuntos da obra, extrapolam os temas convencionais, valendo-se deles como prefigurao
ideolgica, pois conduzem a uma opinio acerca do referido assunto condizente com a
organizao ideolgica do universo pastoril. este o caso das glogas I e IX das Buclicas
em que se apresentam as conseqncias de uma desapropriao de terras aos pastores;
tambm temos elementos dessas intruses na Marlia de Dirceu, obra conhecida por valer-
se claramente de elementos da vida do poeta para engendrar os assuntos por ela tratados,
especialmente em sua segunda parte.
Welleck e Warren (2003) inserem o tipo de anlise que se vale de tais elementos
biogrficos numa categoria intitulada abordagem extrnseca do estudo da literatura, nessa
abordagem incluem-se tambm os estudos que se valem de elementos de psicologia, dados
sobre a sociedade, idias que marcam a obra e tambm a relao da literatura com outras
artes. Contraposto a esse tipo de procedimento est o estudo intrnseco que se pauta na
abordagem do texto com entidade autnoma. Consideramos as abordagens extrnsecas
desnecessrias para os fins deste trabalho por serem muito marcadas por elementos
contextuais e biogrficos, tais caractersticas tornariam uma anlise criteriosa um tanto difcil.
Evitaremos, portanto, s constataes que encontram na biografia dos autores as justificativas
para este ou aquele procedimento na obra, embora nos casos das duas obras em questo,
isoladamente, seja este um procedimento pertinente. Ao invs, seguiremos um estudo
intrnseco e optaremos por entender de que forma os complexos temticos do bucolismo
conduzem a abordagem de certos temas em dois momentos distintos do gnero. Portanto, os
temas abordados para esta comparao sero aqueles contingentes poesia buclica, de modo
a possibilitar uma avaliao das diferenas de suas manifestaes nos dois textos.
Ainda h um ponto importante a se considerar para os procedimentos deste trabalho.
Embora o gnero seja um elemento de aproximao analtica entre as duas obras, no s pela
forma do texto em si, mas pelos complexos temticos que dispe, ele no o nico. Um fator
complicador deve ser considerado como presente na relao entre os textos em questo: a
noo livremente difundida de que Gonzaga bebeu exaustivamente da fonte virgiliana.
Embora seja um ponto de consenso, no s com relao a Gonzaga, mas quanto aos rcades
18
de maneira geral, no se encontram muitos estudos que se disponham a averiguar esse fato na
prtica. Normalmente, as afirmaes so centradas na influncia do neoclassicismo francs,
este sim notoriamente conhecido por esse fato.
Interessante como uma idia to difundida nos manuais de Literatura Brasileira tenha
rendido, na prtica, to poucas buscas efetivas dessas relaes. Em geral, os estudiosos se
resumem a mencionar essa suposta relao e ter como certo que os bancos educacionais dos
autores proveram os contatos necessrios. Se essas relaes estticas so tidas por garantidas,
e pouco h alm de associaes rpidas que as comprovem, necessria a realizao de
averiguaes efetivas dessas relaes, contemplando as fontes reais com os textos rcades,
no apenas tomando a conhecida mediao dos ditames neoclssicos como prova definitiva.
Uma pergunta a se fazer nesse sentido qual o tipo de relao estabelecida por cada
autor com suas fontes clssicas? de se esperar que se a relao existe, como notoriamente
aceito, ela deve se basear na leitura que o poeta rcade fez de sua fonte. Toda leitura que
fomenta um novo texto est na verdade motivando um tipo de reviso ou re-visita a
determinado elemento desse texto, entender a natureza dessa reviso em cada caso pode
compor um melhor quadro da feio neoclssica dos rcades brasileiros.
No caso de Gonzaga, as freqentes associaes com Virglio so reforadas pelas
semelhanas na elaborao do ambiente entre a Marlia de Dirceu e as Buclicas, e o fato de
serem obras extensas que se valem de personagens, cenrio e motivos pastoris. Mas a relao
entre as obras possivelmente transcende a coincidncia de gneros ou a satisfao, por parte
de Gonzaga, de elementos estticos em voga em seu perodo literrio. certo que o poeta
rcade leu as Buclicas como parte de sua formao no colgio e mesmo posteriormente;
alega-se que ele as teve em grande considerao, quase como um espectro pairando sobre sua
criao, como referncia e censura. Muito embora isso seja perfeitamente plausvel, em toda a
literatura pesquisada para este trabalho apenas encontramos uma meno direta dessa possvel
ocorrncia, isolada mas certamente respeitvel; Adelto Gonalves (GONALVES, 1999) em
sua extensa biografia do autor nos diz:
J levava o gosto pela Antigidade que marcaria sua poesia. Carregava uma
predileo manifesta por Virglio, pois considerava a stira uma forma do
gnero pico. Era contumaz leitor das Buclicas. Mas no negava o gnio do
italiano Tasso que sonhava superar Homero e Virglio. (GONALVES,
1999, p. 70)
19
Uma afirmao como essa chega a soar corajosa no meio de tantas omisses de peso.
Talvez simplesmente essa idia tenha ficado corrente demais para sequer demandar um estudo
analtico ou um levantamento mais cuidadoso, mas o fato que, agora suficientemente
embasada, ela justifica a conduo deste trabalho nos meandros do estudo da influncia.
Assim, seria a leitura de Gonzaga das Buclicas determinante do ponto de vista das opes
feitas por ele na Marlia de Dirceu? Est seu texto marcado de alguma forma pela eminncia
atribuda a Virglio em seu poema pastoril?
O tema da influncia certamente espinhoso uma vez que pode sempre conduzir a
comparaes esprias e a erros de diagnstico por desconhecimento de outras relaes mais
pertinentes, um escrutnio cauteloso dever fornecer bases slidas para esse procedimento. A
anlise comparativa se estabelecer sobre os citados parmetros: gnero, temas e influncia.
Para tanto, procederemos inicialmente a um estudo independente de ambas as obras a fim de
melhor contextualiz-las sem apressar ou forar concluses por via da utilizao de
procedimentos inadequados de anlise.
1.1 Identidades
Embora no seja este um estudo comparatista de vis biogrfico, cremos que no
poderamos proceder sem uma exposio ligeira das trajetrias de vida dos poetas. Isso
porque pretendemos fazer referncia a acontecimentos e caractersticas que apenas sero mais
bem compreendidos se apresentados e coligidos dentro de uma descrio biogrfica. De que
outra forma viramos a melhor compreender o universo de idias e influncias a que ambos
estiveram submetidos e que foram essenciais para o respectivos caminhos trilhados? Com
intuito de evitar menes vazias ou intruses e notas explicativas no decorrer da anlise,
esperamos que essa rpida elaborao biogrfica proveja as informaes importantes a que no
referiremos no decorrer deste trabalho.
1.2 Virglio
Virglio certamente uma daquelas figuras histricas cujas realizaes e falta de dados
precisos compem um quadro por demais colorido de suas vidas, dada a aura com que suas
figuras acabam ungidas. Certamente, as melhores referncias em termos de dados biogrficos
seriam as daquelas pessoas que viveram num perodo prximo ao da pessoa biografada. Outra
fonte confivel de dados no caso de uma biografia ilustre, sempre so os registros da poca,
tendo em mente a necessidade de provirem de uma cultura letrada no caso de estarmos
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lidando com uma cultura antiga. Se considerarmos ento a projeo alcanada pelo poeta de
Mntua no Ocidente e o fato de ele ser um poeta de inigualvel envergadura entre os romanos,
poderamos esperar montar um rico mosaico com todos os fragmentos supostamente
disposio.
Nada poderia ser mais enganoso neste caso especial, justamente a projeo e o sucesso
parecem ter contribudo de alguma forma para as vrias distores nos relatos biogrficos,
alm, claro, de seu incio no ilustre, que logicamente impediu a fixao de dados acerca do
incio de sua vida. O caso especial da projeo do poeta no imaginrio do povo romano trata,
muitas vezes, de preencher lacunas irremediveis com narrativas apaixonantes, mas
dificilmente crveis; parecendo muito mais narrativas de uma cultura popular oral ciosa por
perpetuar a imagem alentadora do vate iluminado, atravs de feitos de picardia e perspiccia.
Os autores que nos do conta da biografia de Publio Virglio Maro repetem-se ao dizer
que o poeta teria nascido durante o primeiro consulado de Pompeu e Crasso, em 70 a.C., em
outubro, no povoado de Andes, prximo a Mntua. Como viveu 52 anos, acompanhou um dos
perodos mais marcantes da histria romana: os ltimos momentos da repblica agnica e a
construo do imprio que projetou para a histria a imponncia da cidade. Outros dados a
respeito dos quais os bigrafos parecem no discordar so os nomes de seus pais, o pai
Tambm era Virglio e a me chamava-se Magia Polla. A origem humilde do Virglio pai
inicia os pontos de discordncia, ora oleiro segundo uns, ora viator4 (GRIMMAL, 1992, p.17)
do pai de sua futura esposa, um magistrado, segundo outros; o fato que, aparentemente, teria
angariado uma quantidade satisfatria de bens graas ao trabalho, tanto que poca do
nascimento do poeta, j usufrua de uma condio de vida mediana.
O que se sabe de sua educao pelos relatos dos bigrafos que, apesar de sua
condio no abastada, usufruiu de uma educao de boa qualidade. Sua infncia teria sido
em Cremona, onde seus pais possuam sua principal propriedade, l teria estudado as
disciplinas em voga, gramtica e lngua grega. Uma interpolao ao texto de Donato presente
em um manuscrito Bodleiano do sculo XV(MENDES, 1997, p. 368) acrescenta ainda
medicina e matemtica a estas disciplinas. Segundo o tal manuscrito, o poeta teria se aplicado
a estas duas disciplinas de forma a se destacar5.
Alternativamente, atribuem-se os estudos em medicina e matemtica sua estadia em
Milo e Roma, o que parece ser digno de mais crdito. Segundo os bigrafos, o poeta teria
4 Viajante, mensageiro, uma forma de representante comercial. 5 Essa interpolao, no entanto parece mais justificar uma anedota que aparece posteriormente no texto, no podendo ser creditada com seriedade.
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rumado para Milo aps receber sua toga viril no ano de 55 a.C.; Virglio teria ento 16 ou 17
anos. A Milo teria ido para estudar retrica, nessa disciplina foi aluno de Epidio, estudou
tambm direito romano, o que seria trajeto comum ao jovem em situao econmica mediana
do perodo. No que se refere retrica, no teria mostrado nenhum entusiasmo, sofreu uma
significativa frustrao em um discurso em algum frum romano, o que fez com que essa
fosse sua nica investida na profisso durante sua vida. Aproveitou melhor o tempo se
inteirando a respeito das disciplinas de matemtica e medicina. Nesta ltima, os estudiosos da
obra potica acusam ter Virglio seguido as concepes cientficas de Prsias (GRIMAL,
1992, p.32) (doutrina de asclepades). Quanto matemtica, teria se interessado pelo
esoterismo pitagrico, essa idia amplamente apoiada por algumas anlises das Buclicas
que explicam a estruturao das glogas e a contagem dos versos em cada uma com base em
modelos elaborados pela escola pitagrica.
No se sabe ao certo quanto tempo teria Virglio permanecido a estudar, sabe-se que
teria nesse perodo transitado entre Milo e Roma e especula-se, dada sua situao e
ambientes que teria freqentado, que teria tido contato com futuras figuras histricas de
importncia capital para o imprio romano e para sua vida, incluindo o prprio futuro
imperador, Otaviano. Ainda em Roma, teria se familiarizado com a poesia de Lucrcio e tido
assim o seu primeiro contato com a filosofia Epicurista, o que seria responsvel por uma
mudana de ares e de rumo em sua vida.
Por ter se encantado com os princpios do epicurismo, nesse aspecto os bigrafos
concordam que levava j uma vida bem ao gosto de algumas das doutrinas do sistema
filosfico, partiu de Roma a Npoles. No bem conhecida a data quando essa mudana teria
ocorrido, contudo, de se esperar que tenha sido no depois de 49 a.C. quando a rivalidade
entre Pompeu e Csar se acirrava causando apreenso entre os cidados de Roma. Ia a
Npoles em busca dos ensinamentos da doutrina Epicurista, especificamente do filsofo
Siro. L, passaria muitos anos aprendendo o modo de vida da doutrina e recebendo os
ensinamentos de seu mestre, teria tambm nesse ambiente conhecido uma outra leva de
amigos ilustres, entre os quais AlfenoVaro, que em algum tempo o ajudaria bastante,
merecendo por isso uma homenagem em uma de suas glogas.
Embora parecesse gozar de tranqilidade material e espiritual em Npoles, no tardou
para as confuses que agitavam o imprio prevalecerem na vida do poeta. Saiu em 43 ou 42
a.C. da cidade, possivelmente em virtude de ter sido pessoalmente afetado por uma poltica de
compensao aos soldados romanos que tomaram parte nas guerras civis entre Otaviano e
Antnio aps a batalha de Filipos em 42 a. C. Cremona seria a cidade inicialmente afetada
22
pelo processo de expropriao, mas a quantidade de soldados a serem beneficiados
ultrapassou as possibilidades geogrficas da regio e Mntua acabou inclusa. Essa teria sido a
razo mais factvel para o trnsito do poeta para a Glia Cisalpina que estava sob o governo
do lugar-tenente Asnio Polio, nomeado por Marco Antnio.
Virglio teria recorrido a trs pessoas em busca de iseno no caso da desapropriao,
Polio, j conhecido seu, teria sido o primeiro; posteriormente teria recorrido ao futuro
sucessor de Pilo, Alfeno Varo e finalmente a Caio Cornlio Graco, atravs deste,
possivelmente, passou a ter o contato com Otaviano. No h dados concretos acerca do que
teria acontecido propriedade do poeta em Mntua, a tradio muito facilmente deduz que ele
as teria reavido no atravs de suas amizades, mas pela interveno do prprio Otaviano, que
em uma visita do poeta teria lhe garantido a restituio. A favor desse argumento a crtica
utiliza a citao da gloga I, que representa o ocorrido atravs de seus personagens. O fato
historicamente constatado que Virglio jamais voltou a Mntua, do que facilmente se deduz
no ter reavido a propriedade, mas ter sido beneficiado pelo imperador de maneira distinta.
Todo esse processo parece ter durado um longo perodo, durante o qual o poeta ficou
sob a proteo de Polio na Cisalpina. Justamente Polio quem, segundo os bigrafos, teria
incitado o poeta a compor as Buclicas, tarefa essa que iniciaria sob o seu governo e
terminaria posteriormente, durante um trinio conforme atestam Suetnio e Donato. As
perturbaes continuaram entre os poderosos de Roma e a batalha de Pergia em 40 a.C.,
onde Otaviano derrotou o irmo e a esposa de Marco Antnio sem que este tomasse parte no
conflito, forou uma retirada de Polio at Brindisi. Em Brindisi a soluo foi pacfica,
Otaviano enviou Mecenas para a negociao e Polio ainda terminou esse ano como cnsul.
Marco Antnio casaria com Otaviana, irm do futuro imperador de forma a garantir uma paz
duradoura.
Em 39, quando possivelmente terminou suas Buclicas , a Cisalpina j se encontrava
sob o governo de Alfeno Varo, tudo o que se pode deduzir a partir daqui at os primeiros
contatos com Mecenas, que Virglio j gozava de algum prestgio, pois o veremos mais
frente rodeado pelos partidrios de Otaviano, transio essa que o poeta fez num momento
oportuno e que lhe garantiu os muitos sucessos posteriores. Grimal (1992, p.96) conjectura
que um importante agente nesse processo de mudana poltica tenha sido o poeta Caio
Cornlio Graco, partidrio de Csar tanto quanto Polio, que teria lutado pela causa de Marco
Antnio aps o assassinato do cnsul mas logo cedo teria aderido ao lado de Otaviano. Isso
teria sido muito proveitoso para Virglio, que havia desfrutado anteriormente da hospitalidade
23
de um conhecido adversrio, Polio, ainda que as contendas estivessem temporariamente
resolvidas pela via da paz.
Seja como for, em 39 a.C. as Buclicas so publicadas, possivelmente graas s boas
relaes estabelecidas com Mecenas, que rapidamente deve ter percebido o valor do poeta
bem como sua utilidade formao de um novo iderio, afeito s orientaes de Augusto.
Mecenas pouco a pouco compunha sua corte pessoal de poetas e intelectuais, caracterstica
que o faria conhecido pela histria. Horcio cita uma viagem, realizada em 37 a.C., momento
em que Mecenas e sua comitiva de ilustres viajam at Brindisi com vistas a amenizar Marco
Antnio a respeito da retomada das hostilidades entre Otaviano e Sexto Pompeu em 38.
Compuseram esta comitiva Horcio, Vrio, Plcio Tuca, Mecenas e Virglio, indicando a boa
relao que j mantinha o poeta com quem viria a ser seu mais importante incentivador.
Durante esse perodo, j estaria Virglio ruminando os primeiros versos de seu
segundo poema de grande extenso, As Gergicas. Diz-se que Mecenas teria sido o
fomentador do poema e teria mesmo incitado o poeta a escrever a obra como forma de
propagar a filosofia de governo de Augusto. Grimal afirma ser essa uma interpretao
anacrnica, marcada pelo pensamento iluminista, que no condiz com a natureza das relaes
entre Virglio e o poder romano naquele momento. Diz Grimal que a agricultura no era a
principal fonte de renda do imprio e sim os impostos recolhidos das provncias; no faria
sentido partir de algum membro do governo uma incitao a um tema que no representaria
ganhos ou adeses s polticas de Otaviano. Virglio, ao iniciar o poema parece ter pensado
mais profundamente o processo de transformao do estado romano.
O fato que o poeta no escrevia para atender alguma exigncia feita por um superior,
ao acompanhar a pacificao que lentamente vinha sendo propiciada pelo novo cnsul, pode
ter desejado promover na poesia aquilo que avaliava ser a cura para os conflitos que ainda
pairavam. Teria se valido de velhas concepes romanas de comedimento e piedade que
sempre incitavam os cidados a preferirem a segurana da terra e do trabalho ao desvario.
Esse valor caracteristicamente romano estava em crise devido ao rpido surto de crescimento
que o ltimo sculo havia propiciado por causa da expanso e das guerras. O maior exemplo
era dado pela aristocracia, que havia aumentado exponencialmente as riquezas devido seus
crescentes negcios e incurses no mundo exterior, Grimal (GRIMAL. 1912, p.140) aponta
um surto desse desejo de retorno terra partindo do povo em direo aos governantes.
Uma idia profundamente arraigada na conscincia romana queria que a
classe dirigente tirasse seus rendimentos da agricultura e no do comrcio ou
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da usura. Mesmo depois de todas as transformaes que, ao longo dos
sculos, haviam modificado profundamente a sociedade romana, essa
tradio obstinava-se em continuar viva: parece que s os homens
acostumados vida no campo, com seus valores, sua ascese, estavam
qualificados para dirigir os assuntos de Roma.
Virglio no estava seguindo recomendaes ou pedidos para o poema, tinha ele idia
prpria do que seria melhor e soube lidar com os anseios do povo ao construir uma pea
didtica que falava do trabalho na terra. Fomentava o gosto pela terra e valorizava o velho
comedimento romano, era definitivamente um artista consciente e visionrio, sem dvida
nenhuma consciente do prprio trabalho. Sabia que os cidados romano, cansados de tantos
embates internos que h muito dominavam o cenrio poltico e militar, estavam mais
propensos a reforar as tradies em nome de um pouco de paz, coisa da qual ainda no
usufruiriam por completo at a batalha de cio, em 31 a.C. O poeta demorou sete anos para
finalizar a obra, de 37 a 30 a.C., tempo em que passou principalmente em Npoles, cidade que
elegera como morada.
Donato descreve Virglio como de alta estatura, feies rsticas e de sade frgil,
sofrendo de dores de cabea, estmago e garganta. Era tmido, evitando ir a Roma e quando
ia, no freqentava as multides. Mesmo em Npoles os habitantes do local o apelidaram de
a virgem, um trocadilho com o seu nome que aludia ao fato de ele se comportar como uma,
ao ficar maior parte do tempo em casa. Esse carter tmido e frgil se mostrava obstinado
quanto se tratava de suas composies, era criterioso e lento, pois fazia questo de apurar ao
mximo os seus versos.
Consta que ele comeava o dia ditando certa quantidade de versos medida
que ia compondo e que os remanejava durante o resto do dia, retomava-os,
fazendo supresses, de tal forma que, no incio da noite s restava um
pequeno nmero deles (GRIMAL. 1912, p.123).
Aps a vitria de cio em 31 a.C., onde Otaviano derrotou as foras de Marco
Antonio, o cnsul permaneceu por quatro dias em Atela para se recuperar, l teria desfrutado
de uma audio das Gergicas realizada por Virglio e Mecenas. O mundo romano finalmente
seguia rumo pacificao sob os auspcios daquele que viria a ser o primeiro imperador, a
competncia potica do mantuano seria mais que desejada para a fixao e justificao dos
feitos grandiosos que Augusto realizara e ainda realizaria. O tom pico seria o melhor
25
possvel para a representao desses eventos, Virglio certamente estaria interessado nessa
misso, ensaiava seu grande poema havia muito e certamente estava a altura da tarefa.
Contudo, novamente no seria essa obra feita da maneira que desejavam seus
demandantes; o critrio elevado do poeta no o permitiria escrever como um simples
louvaminheiro da escolta do cnsul, para esse trabalho haveria vrios outros. A magnitude da
obra que conceberia ultrapassaria em muito as pretenses dos governantes de Roma, pois
mais do que alardear a propaganda governista, iria fixar no imaginrio romano e mundial a
histria mtica da fundao da cidade.
Apesar de se alar a Eneida mesma categoria da Ilada e Odissia, em termos de
grandeza esttica, so obras ligeiramente diferentes no que se refere a sua concepo.
Estruturalmente, para a construo da Eneida, alm de Homero, Virglio j tinha disposio
modelos histricos de escrita como as de Herdoto, Tucdides e exemplos de narrativa mtico-
histrica romana vindo de autores como nio. Quanto ao assunto de sua obra, muitos
elementos esparsos havia nas narrativas locais e na histria para serem coligidos em um
modelo mtico unificado que justificasse a fundao de Roma. A exemplo das lendas da
fundao da cidade, dos primeiros reis e mesmo os relatos amplamente difundidos que davam
conta que Enias, um guerreiro troiano sobrevivente ao massacre da cidade, havia aportado
nas terras do Lcio. Por fim, havia tambm as instituies romanas, todas com base na
religio, mesmo as administrativas, j h muito se perpetuavam sem que houvesse qualquer
conhecimento difundido de seu princpio, Virglio buscaria justific-las atravs de seu poema;
o arremate poltico seria a associao da famlia do cnsul Otaviano descendncia de
Enias, valeu-se para isso do nome do filho do heri, Iulo, ao qual apresentou com antigo
ancestral da Gens Julia, qual pertencia Jlio Csar, tio av e pai adotivo de Otaviano. Desse
modo, contemplaria as pretenses polticas do governante sem comprometer a narrativa
central de sua obra com a louvao de eventos recentes e ainda no claramente absorvidos
pela opinio popular, talvez, por isso, sob risco no sofrerem recepo menos controversa.
O empenho com que trataria o trabalho seria o mesmo com que realizara os anteriores,
por isso demorou cerca de 11 anos, de 30 a 19 a.C., em sua escrita sem que conseguisse
finalizar o poema a contento. Otaviano acompanhava a progresso do trabalho, e sempre,
atravs de correspondncia, estimulava o poeta e lhe pedia para conhecer os fragmentos
prontos. A correspondncia de Virglio, alm de dar satisfao do progresso do trabalho,
justificava a demora devido a pesquisas que estavam sendo realizadas, alegam os crticos e
historiadores que essas pesquisas eram as leituras dos textos sibilinos.
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Otaviano teve oportunidade de apreciar a progresso da Eneida, ao menos tem-se o
registro de uma ocasio, em 23 a.C., em que ele e a irm participaram de um audio de trs
cantos prontos. Conta-nos Donato que ao ler os cantos II, IV e VI na corte do imperador, o
poeta provocou o desmaio de Otaviana, ao ler uma passagem em que consta o nome de seu
filho, Marcelo, morto no ano anterior, presente no canto IV, nos versos 882 a 883.
O tempo empenhado na elaborao da Eneida parece no ter sido o bastante para os
brios do poeta, acostumado a tratar com excessivo zelo suas obras. Aps onze anos de escrita,
faltava, em sua opinio, checar os pontos cruciais de sua narrativa com seus prprios olhos,
empreendeu uma viagem para a sia Menor e Grcia para realizar seu intento. Sobre esse
evento seu amigo Horcio teria dedicado uns versos em sua ode I, 3:
Sic te diua potens Cypri,
sic fratres Helenae, lucida sidera,
uentorumque regat pater
obstrictis aliis praeter Iapyga,
nauis, quae tibi creditum
debes Vergilium; finibus Atticis
reddas incolumem precor
et serues animae dimidium meae
(HOR. Ode I, 3, v. 1-8)
Assim tu poderosa deusa da Cpria
assim os irmos de Helena, estrelas luzentes,
e o pai dos ventos6 te conduza
com outros ligados, exceto o Ipige7,
nave, que a ti foi confiado Virglio, deves;
que tu o Restituas intacto da fronteira da tica,
e guardes a metade de minha alma.
Em 19 a.C., aos 52 anos, deu incio sua ltima jornada com a intenso de permanecer
em viagem por trs anos, aps isso pretendia a aposentadoria e a dedicao filosofia
(SAINT-DENIS, 200, p.19). Como parte de seu itinerrio, foi a Mgara de onde saiu
combalido. Aparentemente o sol forte afetou sua frgil sade de tal forma que no continuaria
6 Trata-se de olo. 7 Originalmente Ipix ( )Iaouc) era um heri cretense, fillho de Ddalo. Aps aventuras decorridas na Itlia, o heri e seus companheiros tentaram regressar Creta, no entanto, empurrados por uma tempestade, desembarcaram na regio de Tarento, no sul da Itlia. O nome do heri passou ento como designativo do nome dos ventos que ocorrem naquela regio.
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sua viagem, dirigiu-se para Atenas onde encontrou-se com a comitiva de Augusto retornando
do Oriente onde efetuara visitas s provncias do imprio. O imperador, vendo o estado do
poeta convenceu-o a seguir com ele de volta, mas Virglio no sobreviveria viagem,
sobreveio-lhe a morte no 11 dia das calendas de outubro na cidade de Brindisi.
Os comentadores reproduzem uma histria segundo a qual antes da viagem, vendo o
estado incompleto em que se encontrava sua obra, Virglio incumbiu Vrio da queima dos
manuscritos da Eneida, no caso de algo lhe suceder. J prximo a sua morte, teria renovado o
pedido, a negativa de Vrio fez com que o poeta exigisse outra promessa, de Vrio e de Tuca,
de que no publicassem nada que ele mesmo no houvesse publicado. Coube ao Imperador
Otaviano a interveno direta no assunto, afinal, ele no poderia permitir que a obra que
definiria culturalmente e intelectualmente seu imprio fosse perdida. Sendo assim, ordenou a
Vrio e Tuca que se encarregassem dos arremates que se fizessem necessrios.
Virglio foi enterrado em Npoles, teria ele mesmo composto seu curto epitfio, mas
quanto a isso permanecem controvrsias:
Mantua me genuit, Calabri rapuere, tenet nunc
Parthenope, cecini pascua, rura, duces
Mntua me gerou, os Calbrios me arrebataram, me tem agora
o Partenope, cantei pastagens, os campos, os generais.
Seu tmulo terminaria sendo alvo de devoo, aparentemente a excelncia de sua obra
lhe outorgou o velho desgnio do vate inspirado, essa influncia marcou mesmo idade mdia
crist que no deixava de ver valor vaticinante em seus versos.
1.3 Toms Antnio Gonzaga
Dada a natureza oficial das profisses que exerceram Gonzaga e seu pai, o poeta
uma figura histrica mais facilmente rastrevel do que Virglio. Contudo, durante muito
tempo, poucos dados precisos de sua vida foram conhecidos, mesmo tendo sido ele to
impactante editorialmente e tendo logo ingresso no patamar dos grandes escritores de lngua
portuguesa. O motivo para isso, como veremos, deve-se ao fato de ter vivido uma trajetria
quase nmade, que exigiria do pesquisador de sua biografia a herclea tarefa de efetuar um
levantamento de documentos em trs continentes e mais de seis cidades.
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Tal trabalho ficou muito tempo por fazer, at que em 2000 o jornalista Adelto
Gonalves publicasse um extenso tratado biogrfico a respeito do poeta8, fruto de anos de
investigao nos arquivos reinis no Brasil e em Portugal. Seu trabalho se diferenciou dos
demais pelo volume de pesquisas realizado e pelo fato de incluir um perodo at ento
desconhecido da vida de Gonzaga, seu exlio em Moambique. Desse tratado, extramos, com
muita confiana, a absoluta maioria das informaes acerca do poeta e de sua trajetria.
Nascido em 11 de agosto de 1744 no Porto, Toms Antnio Gonzaga era o stimo
filho dos primos Joo Bernardo Gonzaga e Tomsia Isabel Clark. Seu pai e seu av paterno
eram cariocas e sua me filha de um negociante ingls chamado John Clark com a portuguesa
Mariana Jason. Joo Bernardo era sobrinho de Mariana, e foi a Coimbra estudar Direito em
1726, hospedava-se constantemente na casa da tia, envolveu-se amorosamente com a prima
com quem veio a casar e ter os sete filhos.
Aps se formar em 1732, Joo Bernardo Gonzaga entrou para a o servio pblico, em
1740, foi nomeado juiz de fora em Montalegre, funo que desempenhou at 1742. Estava no
Porto na ocasio do nascimento de seu stimo filho, tambm na morte de sua mulher nove
meses depois. Em 1745, foi nomeado Juiz de Fora em Tondela, onde ficou at 1750
exercendo a funo, deixando os filhos mais novos aos cuidados dos tios e da av.
Nesse nterim, Portugal passava por uma crise financeira e de poder que
proporcionaria uma mudana extraordinria em sua histria. A decadncia de D. Joo V e a
ascenso de D. Jos ao trono proporcionaram um longo vcuo de poder pela enfermidade do
primeiro e a inapetncia do segundo, nesse vcuo ascendia o ministro Sebastio Jos de
Carvalho e Melo que viria a ser o Marqus de Pombal. Foi Justamente o prprio ministro
quem despachou Jos Bernardo para o cargo de ouvidor-geral de Pernambuco, em 20 de
novembro de 1751, tendo partido no mesmo ano com os dois filhos mais novos, Jos Gomes e
Toms Antnio.
Em Recife, Joo Bernardo espalhou fama de funcionrio diligente, acumulava muitas
funes alm da de ouvidor geral. Morou em Olinda e l conheceu sua segunda esposa,
Madalena Tomsia. Embora convivesse com ela amorosamente, o ouvidor tinha que obter
permisso real para matrimnio, o que no fez por muito tempo. Quanto aos meninos,
provvel que tenham comeado a estudar no Colgio dos Padres da Companhia de Jesus,
coisa que em breve ia mudar.
8 GONALVES, Adelto. Gonzaga, um poeta do iluminismo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
29
Em Lisboa, o terremoto de 1755 serviu para consolidar o poder do futuro marqus de
Pombal; ele iniciou uma perseguio aos inimigos polticos e aos Jesutas que culminaria na
desativao da Ordem alguns anos depois. Em janeiro de 1759, Joo Bernardo foi transferido
novamente, dessa vez para o cargo de Intendente do Ouro e Presidente da Mesa de Inspeo
na Bahia. Chegando na Bahia, o pai de Gonzaga se deparou com um estado de tenso
constante, levando em conta as perseguies efetuadas contra os desafetos do ministro
Carvalho e Melo.
Nesse clima, quase certo que seus filhos tenham sido matriculados em outra escola
que no a Jesuta, a prudncia era uma das caractersticas de Joo Bernardo. Gozava de uma
situao confortvel, tanto em termos de poder quanto financeiramente; novamente se
destacou pela diligncia com que cumpria a funo. Certos testemunhos do conta que o
jovem Toms Antnio tenha passado certo tempo na casa da tia Lourena Felipa no Rio de
Janeiro, possivelmente durante a fase de adaptao da famlia na Bahia, seja como for, para l
retornou rapidamente e nesse estado completou seus estudos.
Em 1761 os dois filhos de Joo Bernardo, com os estudos de Filosofia e Retrica
concludos, partiram numa nau para Lisboa a fim de se matricularem em Coimbra. Jos
Bernardo s foi em 1764, l finalmente pde contrair npcias com Tomsia Madalena aps
anos de solicitaes. Dos dois irmos, apenas Gonzaga viria a cursar a universidade, Jos
Gomes preferiria a carreira no comrcio, mesmo assim, devido a uma doena, o jovem
Gonzaga s ingressaria em Coimbra em 1763.
Na universidade, Toms Antnio Gonzaga travou contato com importantes influncias
para sua vida posterior, seu companheiro de aventuras foi Incio Jos de Alvarenga, na poca
j estudante adiantado do curso de Leis da Universidade de Coimbra. O contato com os
pensadores humanistas no se deveu, contudo, s ctedras da universidade; na poca a
reforma do ensino promovida por Pombal no havia ainda atingido o nvel superior, coisa que
s ocorreria em 1772.
Estando a universidade ainda presa a uma grade curricular atrasada, o contato do poeta
com textos e idias iluministas e humanistas possivelmente se deu atravs dos grmios
secretos que se difundiam entre os alunos da universidade. Amplamente influenciados por
Verney, seria uma das principais influncias do pensamento iluminista por se difundir em
Portugal, esses grupos liam Montesquieu, Pope, John Locke e Hobes; e as influncias
Humanistas tais como Voltaire, Shakespeare e Horcio.
Formou-se em 1768, com o ttulo de bacharel, poderia dedicar-se ao exerccio da
profisso ou mesmo pleitear a magistratura. Retornou ao Porto onde permaneceu por quase
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um ano, de l foi a Lisboa viver com o pai e exercer a profisso de advogado. Amante das
letras e leitor de poetas clssicos como Virglio e Horcio, recentemente liberados com a
extino do index jesutico, o jovem Gonzaga, possivelmente enfunado pelas mudanas
culturais e transformaes no ensino promovidas por Carvalho e Melo, se candidatou a uma
vaga na magistratura na Universidade de Coimbra em 1773.
O seu por muito tempo obscuro Tratado de Direito Natural nasceu da sua tentativa em
angariar prestgio e aprovao para a posio que pleiteava. Talhado com cuidado, o texto
satisfaz os complicados meandros ideolgicos impostos pelas aes do ministro Carvalho e
Melo, ora flertando com preceitos ilustrados, ora com o absolutismo, tudo isso com
justificativas retricas e laudatrias ntidas. Mesmo com essa tentativa, Gonzaga nem obteve
resposta, no se sabe se foi objetivamente descartado ou se nem sequer foi lido, o fato que
no assumiu a ctedra e, ao que parece, preferiu ele mesmo esquecer o texto, passando o resto
da vida vivendo e escrevendo muitas concepes contrrias que l professava.
Em 1777 caiu o Ministro Carvalho e Melo sem que lhe fossem imputadas penas pelos
anos de despotismo esclarecido. O novo governo portugus temperou a dose de retrocesso
poltico que promoveu, dados os ntidos avanos econmicos e sociais estabelecidos pela
poltica do controverso marqus de Pombal. Graas queda do Marqus, inmeras pessoas
condenadas ao ostracismo ou priso puderam retornar a seus ofcios e suas vidas. Esse
parece ter sido o caso de Gonzaga e seu pai em 1778, ele nomeado a Juiz de fora em Beja, e
Joo Bernardo promovido Casa da Suplicao em Lisboa. Em Beja, Gonzaga permaneceu
por dois anos, de 1779 a 1881, l gozaria de posio de poder e prestgio e faria seu primeiro
filho, Luiz Antnio Gonzaga, a quem no criaria.
Em Beja, permaneceria at ser nomeado Ouvidor Geral de Vila-Rica (GONALVES,
1999, p.84), voltou ento para Lisboa e de l partiu para o Rio de Janeiro. No comeo da
dcada de 1780, Minas estava no meio de uma crise econmica que comeara 30 anos antes.
A vila, embora j no fosse mais um acampamento mineiro, era ainda um amontoado de casas
de pedra, pau-a-pique, igrejas e poucos edifcios. Compunha-se de 320 mil habitantes, sendo
os negros maioria. A vila havia se desenvolvido com base em duas freguesias histricas, Ouro
Preto e Antnio Dias nas partes baixas das colunas prximos a crregos; os povoados
encontraram-se posteriormente no alto do Santa Quitria.
Gonzaga chegou em Vila Rica em 12 de dezembro de 1782, substituindo Manuel
Joaquim Pedroso. Ao chegar, a primitiva situao burocrtica da colnia fez com que
Gonzaga viesse a acumular funes de ouvidor, situao corriqueira para uma terra em que
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faltavam homens doutos 9. Os homens ricos eram poucos e logo foram conhecidos por ele. A
maior parte da populao variava de pobre a miservel, destacavam-se os funcionrios
pblicos, o clero, comerciantes e os envolvidos com a extrao do ouro. A capitania tinha que
importar muitos dos bens consumveis em virtude do fato de a maioria das pessoas estar
comprometida com a extrao.
Dom Rodrigo Jos de Menezes, governador quando da chegada de Gonzaga, alertava a
coroa sobre a necessidade de mudanas estruturais a fim de contornar a crise e parar a
derrama de riquezas pelo contrabando, contudo tais mudanas propostas sempre caminhavam
para a construo de uma maior autonomia da regio o que no interessava ao ministro
Martinho de Melo e Castro.
O ouvidor Gonzaga era conhecido por seu rigor, sobretudo, tendia a agir ao p da letra
judicial e com muito rigor quando os envolvidos fossem os menos privilegiados. Estava entre
o sqito do governador a comparecer s tertlias noturnas em seu palcio. Havia outros
como ele, o Intendente do Ouro, Pires Bandeira; dom frei Domingos da Encarnao Pontevel,
amigo e interlocutor de Gonzaga em debates acerca de religio; Padre Pascoal Bernadino
Lopes de Matos, ex-jesuta e figura de prestgio junto ao governador; Cludio Manuel da
Costa; o mdico Toms de Aquino Belo e Freitas; Joo Rodrigues de Macedo; o velho Jos
Lus Saio, secretrio do governo.
Contudo, a situao poltica de Minas estava para mudar. Vindo de Gois, onde j
tinha sido governador desde 1778 at 24 de junho de 1783, Cunha Menezes trazia o seu
sqito em 23 de Agosto de 1783, mas s tomaria posse em 10 de outubro. Cunha Meneses
era um homem prtico, no distinguia entre reinis e mestios no que se refere aplicao de
benefcios ou outorgao de direitos, o que freqentemente irritava os magistrados
portugueses. Era conhecida tambm sua vida bomia e escandalosa para os padres da poca,
a seu favor tinha a fama do homem que havia pacificado a tribo dos Caiaps no serto de
Gois. Quando tomou posse j causou m impresso ao ouvidor por no cumprimentar os
ministros e camaristas que acompanhavam o seu cortejo, deixou-os ao relento durante a
cerimnia.
9 As suas atribuies eram a jurisdio ordinria civil e criminal; corregedoria oficial da comarca encarregado de confirmar as eleies do senado. Fiscalizava tambm o comportamento das autoridades menores, juzes e procuradores; pedia as contas aos testamenteiros (provedor de resduos), arrecadava as contas dos finados com herdeiros ausentes (provedor de defuntos e ausentes). Era tambm membro da junta de administrao e arrecadao da Real Fazenda junto com os deputados, procurador, tesoureiro geral, escrivo e o governador. Tinha tambm a superintendncia das causas sobre a terra e a gua, presidia as disputas militares e a junta julgadora dos recursos da vara eclesistica.
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Claramente, Cunha Menezes procurava agradar ao seu sqito mais do que aos
homens de poder da regio, o que lhe angariou de cedo antipatias. Pouco a pouco tais pessoas
foram substituindo os aristocratas locais nos cargos de poder e confiana. Com esse cenrio o
novo governador pde, sob o pretexto de combater o contrabando, enriquecer a si mesmo e a
seus comparsas. Outros antigos membros da oligarquia corrupta souberam tirar proveito e se
aproximaram do governador continuando na rede de benefcios sobre os recursos do Estado.
Um dos seus primeiros feitos foi ordenar a reedificao das casas da Fazenda dos Pastos, em
Cachoeira dos Campos sem consultar a cmara. Enfrentou a oposio da junta da fazenda, que
alegava estarem os gastos proibidos pela coroa, o procurador Bandeira e Gonzaga, entre
outros, protestaram, mas ele efetuou a obra assim mesmo.
Comearam as cartas queixosas de Gonzaga rainha, o governador tambm tratava de
fazer o mesmo ao passo que restringia cada vez mais o campo de ao do ouvidor. Assim
prosseguiam as relaes entre o ouvidor e o governador, e as arbitrariedades do segundo,
chegando este a mandar soltar 30 presos acusados de contrabando depois de fazer o meirinho
que os prendeu arcar com as expensas dos rus.
Um ponto fulcral nas desavenas entre os dois foi a reunio da junta da real fazenda, a
fim de definir o melhor contrato para as entradas em 3 de dezembro de 1784. Joaquim
Silvrio dos Reis tinha sido o arrematante anterior e devia somas avultadas a fazenda.
Gonzaga e Bandeira uniram-se em torno de um nome, o capito da ordenana Antnio
Ferreira da Silva, que apresentava melhores condies e fiadores. Por questes de desavenas
dos outros membros da junta acabou se impondo a vontade do Governador e o capito de
cavalaria auxiliar, Jos Pereira Marques, arrematou o contrato pelo perodo de seis anos, o
dobro regulamentado, mesmo sem as condies claras de sust-lo.
As acusaes bilaterais se sucederam a Portugal, o procurador Bandeira e o ouvidor
Gonzaga trataram de apresentar o caso da arbitrariedade do governador ao Errio Rgio e ao
ministro Martinho Melo e Castro; o governador por sua vez acusou os dois de se unirem num
compl; O Errio Rgio ficou com os magistrados, enquanto Melo e Castro preferiu a verso
do governador. O relatrio enviado pelo escrivo e deputado Carlos Jos da Silva, da Junta da
Real Fazenda, ao ministro Martinho de Melo e Castro sobre ocorrido com o contrato das
entradas foi decisivo para a formao de uma imagem negativa do ouvidor na mente do
ministro. Tambm no fez boa imagem do governador e concluiu que era um caso de gangues
diversas disputando o Errio Rgio por interesse.
Queixas contra o governador nunca faltaram em Portugal, ainda assim a distncia o
favorecia e ele acabava sempre agindo com audcia e autoritarismo. No se importava
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tambm com os gastos pblicos, um ms aps a sua posse ficou insatisfeito com as contas da
cmara que havia pedido, ainda assim providenciou para que se construsse um prdio nico
para a Casa da Cmara e a Cadeia. Em 1 de Abril de 1874, o governador se dizia de posse da
autorizao para efetuar a construo, ele mesmo pediu auxlio ao ouvidor para que facilitasse
o processo, a cmara fez o mesmo, Gonzaga no se ops.
Para tal construo, a falta de recursos foi remediada com a organizao de uma loteria
e a falta de mo e obra com a utilizao dos prisioneiros vadios, negros fugidos e pessoas em
dvida com a lei. O ouvidor se arrependeu do apoio por conta da violncia com que os homens
eram tratados, bem como com o ponto de corrupo em que a nova casa da Cmara se
tornaria. Por esse e outros motivos, suas crticas s posies do governador tinham que partir
de um ponto annimo, era perigoso para um homem em sua posio ousar sair s claras.
Entretanto, embora construsse um quadro muito desagradvel do governador,
criticando inclusive seu comportamento libidinoso, havia muita incoerncia na maneira de
agir do ouvidor. Enquanto ele mesmo questionava a moralidade do governador, incorria no
mesmo erro ao se deitar com escravas ou ao manter um caso amoroso com Maria Anselma,
em quem faria um filho que no criaria, ainda que no o enjeitasse oficialmente. O que lhe
incomodava era a clareza com que Cunha Meneses exercia sua devassido sendo um homem
pblico. O fato que a ferrenha oposio que fazia Gonzaga, s contribua para a diminuio
do seu prprio poder e prestgio.
As cartas queixosas para a coroa se sucediam de ambos os lados, entre as queixas do
governador contra Gonzaga estava a de no proceder com as cobranas devidas ao seu cargo,
bem como as prestaes de contas de suas aes e da cmara. Havia atraso nas prestaes de
contas real fazenda e no pagamento das teras que a cmara devia fazer. Esses atrasos
deviam-se principalmente morosidade do sistema burocrtico, e a problemas de cobranas
de pequenas dvidas em grande nmero, de qualquer forma era combustvel para o embate.
Em 1786, com a morte de Pedro Jos da Silva, tesoureiro da Real e Almoxarife dos
armazns reais, repetiu-se a situao da arrematao dos contratos das entradas. Com vrios
nomes propostos e sem consenso, o governador decidiu por um seu protegido para o cargo.
Outras cartas do ouvidor se seguiram a Lisboa, mas ao final o protegido do governador
permaneceu no cargo.
Como praticamente no podia exercer sua autoridade de direito em plena funo,
Gonzaga a exercia com excessivo zelo nos limites dados, assim em casos pequenos era de um
rigor extremo e desproporcional ao caso. Uma das searas que ainda lhe ficava eram as
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questes religiosas, Cunha Menezes nunca se ocupou delas deixando ento ao cargo do
ouvidor sem suas interferncias.
No comeo de 1786, com a chegada da notcia dos casamentos entre as cortes de
Portugal e Espanha, em 8 de maio do ano anterior, Cunha Meneses decide realizar uma festa
de grandes propores. Em 15 de maro, o governador determinou que a Cmara deveria
realizar a festa, esta, por estar devendo dinheiro das teras, pediu a Gonzaga um adiamento na
cobrana, pois a festa seria substancialmente cara, e mesmo os recursos a serem adiados
no seriam o bastante.
A Cmara encontrava a presso constante do lado do governador e a inexorabilidade
do ouvidor em adiar as cobranas e aprovar as contas, o ouvidor dizia agir de acordo com uma
ordem Rgia de 1765, que recomendava limitar os regozijos pblicos e festas de igreja. Os
camaristas cederam presso, prevaleceu a vontade do governador. O ouvidor ainda tentou
contra-argumentar, mas os camaristas fizeram ouvidos moucos, ainda que os planos
grandiosos do governador ultrapassassem muito os recursos da cmara.
Em 14 de maio de 1786, realizou-se a proclamada festa de Cunha Meneses. Por se
tratar de uma festa de cunho oficial, o ouvidor no podia faltar. As conseqncias no
demoram a chegar, Albergaria, o presidente da cmara que aprovou os gastos da festa, havia
decidido que no poderia pagar os dividendos. As cobranas passaram ao seu sucessor no
cargo da Cmara, Cludio Manuel da Costa, que tratou de intimar Albergaria que sempre saa
com uma desculpa insuficiente.
Os olhos se voltavam agora para o Ouvidor, o relatrio a ser enviado ao Errio Rgio
por ele certamente condenaria os camaristas a tirar do prprio bolso as altas expensas da festa.
Mas tudo foi habilmente manejado por Gonzaga, ele sabia que os camaristas, os maiores
prejudicados no caso de uma deciso judicial desfavorvel, haviam sido forados pelo
governador execuo da festa. Concedeu ento aos mesmos quatro anos para a confirmao
das contas, tempo suficiente para que a burocracia, a lentido e as sucesses dessem tudo por
perdido
O estado de desagregao poltica e os resultados exguos nas cobranas da coroa
comearam a irritar o ministro Martinho de Castro e Melo, no confiando mais em nenhuma
das partes do longo litgio preferiu acreditar na palavra de seus funcionrios e espies e
atribuir igual desonestidade e culpa ao ouvidor e ao governador pelos desgovernos das
finanas. A 10 de agosto de 1786, o Viscondede Barbacena foi nomeado governador de
Minas, um ms antes Gonzaga havia sido nomeado relao da Bahia, estas alteraes,
embora sugeridas, ainda levariam tempo e a soluo a curto prazo efetuada por Martinho e
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Melo foi ordenar a Cunha Menezes que fizesse o necessrio para tapar os vazamentos de
dinheiro em Minas
Logicamente, o Governador tratou de perseguir com afinco seus inimigos enquanto
ainda agia com condescendncia com os seus amigos. A ferocidade do governador provocou
muitos descontentamentos, inclusive da oligarquia local, pois muitos dos afetados pertenciam
a famlias de prestgio. Os excessos cometidos pelo governador, desta vez por zelo, enchiam o
ouvidor de trabalho, uma vez que seu cargo acumulava muitas funes. Ao passo que tratava
com rigor os que no compactuavam com sua poltica e eram pegos em contravenes, Cunha
Menezes dava carta branca aos seus, foi assim que deu a Jos Pereira Marques poderes para
cobrar as dvidas dos inadimplentes.
No final de 1786, Jos de Sousa Lobo e Melo, novo comandante do destacamento da
Serra Diamantina, sob ordens do governador, comeou a prender indiscriminadamente
culpados e inocentes de contrabando. Ao mesmo tempo a Junta Diamantina efetuava prises e
encaminhava presos para o ouvidor para efetuar as expulses. Alguns desses presos eram
aliviados pelo governador por terem sido presos cumprindo ordens dos seus protegidos.
Apesar de toda conturbao poltica enfrentada pelo ouvidor, sua vida pessoal
apontava um futuro promissor, desde o incio de 1786 Gonzaga nutria o amor por Maria
Dorotia Joaquina de Seixas filha do capito Baltazar Joo Mainrique, motivo para o ouvidor
ir missa todos os domingos, ainda que fosse um homem cultivado pelo iluminismo. A
paixo possivelmente teve incio com as visitas da menina casa da tia Antnia Cludia
Casimira Seixas, vizinha do ouvidor. O pai de Dorotia sofreria um revs nesse mesmo ano,
sendo substitudo por Jos de Souza Lobo e Melo no destacamento da Serra Diamantina de
Itacambiriu, acusado de colaborar com o contrabando.
As acusaes contra Mainrique nunca seriam levadas ao termo, Gonzaga tambm no
tratou de ajudar o pai da amada no processo, possivelmente por saber disso. O fato que o
substituto, o tenente Lobo, superaria em muito o apoio ao contrabando na regio. A relao
com a famlia de Dorotia corria bem, tanto que o casamento foi marcado para o final de
1787, o capito estava tambm preso ao ouvidor e lhe devendo em virtude do que devia
justia. Como estava nomeado desde fevereiro para a Bahia, Gonzaga queria estar livre e, para
garantir que isso acontecesse, solicitou corte que o processo fosse feito localmente por Pires
Bandeira, houve aceite em setembro de 1786.
O ministro Martinho de Melo e Castro no recebeu bem o ato e a rainha o revogou em
12 de setembro de 1787, mandando que o ouvidor apenas se movesse com a chegada do
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substituto. O vaie-vem ainda teve outro revs quando em novembro a rainha nomeou Pires
Bandeira Juiz Sindicante. De qualquer forma, Gonzaga ficaria no cargo at 1788.
Por essas pocas, o capitalista Joo Rodrigues de Macedo, um dos homens mais ricos
da regio, andava s turras com a real fazenda. Desde 1783 ele havia sido avisado a no
continuar com as suntuosas obras de sua manso, pois devia muito ao errio rgio para exibir
tal quantidade de dinheiro. Como muitos, ele se confiava, com a chegada de Cunha Meneses e
Gonzaga, em fazer as amizades e postergar os problemas ao infinito, j possua os camaristas
nos bolsos e daria um jeito em outras autoridades. Contudo, os tempos eram outros, o ministro
Martinho e Melo olhava com ateno para os desmandos da capitania, Portugal havia gastado
avultadas quantias com o ouro que comeava a escassear.
As desculpas do governador sempre recaam sobre os cobradores, Gonzaga sendo o
principal deles, enquanto fazia vazar para seus bolsos quantias enormes de ouros e diamantes.
Gonzaga sentia-se insatisfeito com o estado das coisas, provvel se imaginar que muitas de
suas queixas pessoais comeassem a ressoar um tom nacionalista diante dos desmandos
cometidos pela coroa. Macedo era um dos capitalistas a quem uma eventual independncia
mais favoreceria pelo