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7/23/2019 D.scarlatti e a Cultura Portuguesa
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Domenico Scarlatti e a
Cultura Portuguesa
Humberto d vila
No podia dar-me mais satisfao e conforto ler, na Abertu-
ra desta revista, a posio expendida por Franois Lesure, o
abalisado diretor de estudos da cole des Hautes tudes, da
Sorbonne (Paris), de que a prioridade da musicologia, em cada
pas, deve ser dada s raizes e caminhos da prpria msica, de
preferncia a tentar descobrir a verdadeira ideologia do Rug ou,
ento, a tratar uma vez mais da origem da forma-sonata . E
acrescenta o antigo chefe do Departamento de Msica da Biblio-
teca Nacional francesa, exortando diretamente o Brasil, que se
espera um recen seamento exaustivo das obras que subsistem
desde a poca colonial, situando a natureza da sua escrita; dispor
de estudos aprofundados concernentes as atividades dos concertos
no sculo XIX; verificar as influncias que foram exercidas no
desenvolvimento do ensino, formao de um pblico e as premis-
sas duma crtica musical especfica (...) As questes so numero-
sas, necessitando mais acentuadamente de pesquisas em arquivos
locais, correspondncia existente e informaes da imprensa da
poca .
Estas palavras s no so profticas em
relao
a Portugal por
virem a posteriori. So de 1990 e exprimem lima orientao que,
embora traduza uma idia geral em curso na musicologia contem-
pornea, j estava a ser aplicada institucionalmente, em Portugal.
desde 1976. Outro no foi o esprito que levou criao, pelo
signatrio, dum servio de musicologia no organismo estatal com-
petente na rea do patrimnio cultural.
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Preenchendo um vazio na Administrao pblica, que possi-
bilitara a disperso, o extravio e a perda de inumerveis e valiosos
manuscritos, instrumentos e toda a classe de documentos auxiliares
da histria, o novo servio guiou-se logo de incio por uma idia
principal: rastrear, recuperar e classificar o mais possvel tudo o
que representasse qualquer contribuio para o enriquecimento do
acervo repertorial, ou para o melhor conhecimento da histria da
msica em Portugal, e se encontrasse ainda fora do circuito orga-
nizado dos arquivos, bibliotecas e museus nacionais. A sua tarefa
consistiu numa espcie de trabalho arqueolgico: tal como para
este tudo importa - uma esqurola ssea, um caco de barro, um
fragmento de metal ou as pedras dum antigo castrejo -, tambm na
misso que o referido departamento a si prprio imps todo o
vestgio do novo passado musical era encarado com igual interesse,
desde a pgina solta duma partitura original, testemunho da cria-
tividade artstica dum ignoto annimo, a um carto de visita, a um
anncio de lies, com a indicao do preo, ou a cartas avulsas,
que conservam simples dados cronolgicos ou impresses colhi-
das ao vivo, sem deixar, no mesmo lote, programas de concertos
idos, desenhos e velhas fotografias, utenslios de uso pessoal, etc.
Mas enquanto, no caso do arquelogo, o material reunido o seu
objeto de estudo, ali o que se visava era, com a humildade que
compete a um servio pblico, salvar o que estava em risco de
desaparecer, inventariar, para encorpor-Io no
patrimnio
da na-
o, e criar as condies para que esse repositrio fosse colocado,
da melhor maneira, ao dispor de todos. A safra foi copiosa e
reveladora de quanto sobreviveu
devastao dos tempos, num
terreno que, comprovando a existncia duma profusa atividade e
duma extensa tradio, se encontrava praticamente inexplorado,
bastardo de qualquer ao sistemtica de prospeco sob chancela
oficial. Em alfarrabistas, lojas de livros antigos, ferro-velhos,
armazns de papel, casas de antigidades e residncias particulares
ou na posse de artistas ou dos seus herdeiros, comeou-se a
descobrir um esplio vastssimo e percentualmente significativo.
Ofertas, propostas, pistas e avisos choviam e, a breve trecho,
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tinha-se acumulado uma enorme massa de muitos milhares de
documentos, ou afins, de diversa ordem. S partituras manuscritas
dos sculos XVIII e XIX, principalmente, ascendem a mais de
20.000. Por vezes, partes soltas permitiam completar obras que
jazem truncadas nos arquivos. Alguns instrumentos preciosos de
feitura portuguesa foram entretanto resgatados, um deles na Ale-
manha, e iniciou-se, paralelamente, uma campanha de restauro de
rgos histricos pilhados ou em degradao na maioria das igre-
jas. Os resultados favorveis obtidos chegaram a fazer pensar na
criao dum organismo autnomo que proporcionasse tanto ao
ivestigador como ao pblico interessado a apreciao em conjunto,
num mesmo local, dum determinado problema
musicolgico,
quer
pela consulta de livros e documentos, quer pela observao das
peas organolgicas concernentes a uma poca dada, quer, ainda,
pela ilustrao iconogrfica, quer, finalmente, pela experimenta-
o ao piano de composies do seu interesse ou pela sua escuta
fonogrfica, caso houvesse as gravaes respectivas. Esta gama de
possibilidades constituiria, igualmente, para o
artista
intrprete
desejoso de renovar o seu
repertrio,
uma fonte de sugestes
permanente. Por motivos polticos, por incompreenso do seu
alcance, por ignorncia, no final de contas, o projeto, apenas
encetado, no foi por diante. Ficou uma grande frustrao, mas
tambm o conforto de se ter colocado sob abrigo e recuperado para
a cincia e para a arte colees que, na situao de abandono em
que estavam, corriam o risco de, mais tarde ou mais cedo, acabarem
por desaparecer como, anteriormente, tantas outras.
Ora, entre os muitos esplios recolhidos, acha-se o histrico
arquivo musical do conde de Redondo, D. Fernando de Sousa
Coutinho sc, XIX), esclarecido melrnano e amador, que man-
tinha em casa, com a famlia, os amigos e at os criados uma
pequena orquestra e, mesmo eventualmente, um coro para a exe-
cuo de obras tanto religiosas, na sua capela, como profanas, nos
seus sales. Quis o acaso, talvez para confirmar o acerto da ao
empreendida, que do numeroso acervo constasse um livro, mag-
nificamente encadernado e de primorosa ca ligrafia,
COI11
este ttulo:
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Li bro di Tocare / Per Cem balo e / Tutti / D eI Sig
re
Cavaliero / D
Domenico Scarlatti
Era, obviamente, uma seleo de peas de
cravo da autoria do compositor napolitano, que, como se sabe,
viveu alguns anos em Lisboa no reinado de D. Joo V, indo morrer
em Madrid aonde acompanhou a sua real e talentosa discpula D.
Maria Brbara de Bragana, quando do casamento desta com
Fernando
VI
de Espanha. A coletnea, por razes deduzi veis, deve
ter sido elaborada para fornecer msica nova corte lisboeta, onde
o autor continuava a ser muito apreciado, e enviada de Madrid. O
conde de Redondo, pela sua fortuna e relaes com o meio musical,
pde dar-se ao gosto de reunir uma notvel coleo de partituras,
grande palie autografas; a sua posio na corte ter-lhe- propor-
cionado um dia o acesso preciosa coletnea scarlattiana, uma jia
a valorizar o conjunto. Mas estava ele longe, nesse tempo, de
avaliar todo o significado do volume.
O
meu imediato cuidado, ao deparar-se-me o exemplar, foi o
de providenciar no sentido de que se procedesse ao cotejo do
incipit de cada pea com o das Sonatas reconhecidas do mestre
napolitano, tarefa em que contei com dois creditados colaborado-
res: o sbio professor Santiago Kastner e o jovem musiclogo Joo
Azevedo, hoje bibliotecrio do Teatro Nacional de S. CarIos, a
pera de Lisboa. O primeiro, consultando os inventrios existentes
(Longo, Kirkpatrick, etc.) e valendo-se dos seus contactos junto
de arquivos italianos, espanhis e outros, chegou a esta concluso
surpreendente: de todas as sonatas compiladas, uma havia, a nO25
da srie, que no coincidia com qualquer outra, era desconhecida
e podia, pois, considerar-se indita. O segundo, que fazia ento em
Kassel (RFA) um estgio na Redao do
RISM
(Rpertoire Inter-
national des Sources Musicales), confirmou no computador central
da organizao que nenhum
incipit
de peas scarlattianas conser-
vadas em qualquer palie do Mundo correspondia ao fornecido. O
achado era de festejar, pois se verificava no prprio ano de 1985,
o dos centenrios do nascimento de Bach, Hndel e Scarlatti.
Numa conferncia de imprensa, realizada no Instituto Portugus
do Patrimnio Cultural, em junho (V. D irio de Noticias Lisboa,
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de 20 desse ms e ano), coube-me assim o privilgio de anunciar
ao Mundo a boa nova, como a contribuio de Portugal s come-
moraes a decorrer. No podia ela ser melhor - e o fato s por si
justificava a razo de ser do Departamento de Musicologia daquele
organismo e coroava de xito a sua poltica.
Esta a histria recente da compilao que o professor
Gerhard Doderer, do Departamento de Cincias Musicais da Uni-
versidade Nova de Lisboa, tomou a iniciativa de publicar numa
excelente edio fac-similada do Instituto Nacional de Investiga-
o Cientfica (1991), antecedida dum importante estudo daquele
musiclogo, ornada dalgumas estampas e acompanhada dum disco
compacto com a interpretao de treze sonatas, entre elas a nO25,
pela cravista Cremilde Rosado Fernandes num instrumento portu-
gus do sculo XV
O estudo importante por, alm da matria de anlise do
manuscrito, aproveitar ao professor Doderer para revelar o resul-
tado das suas investigaes numa fonte ainda no.explorada neste
aspecto (Vaticano, Arquivio Segreto. Secretaria di Stato-Portogal-
10). A entrada de Scarlatti na capital pot1uguesa estava at agora
envolta em dvidas e controvrsias. Um dos relatrios peridicos
de Mons. Vicente Bicchi, nncio apostlico, consigna a data exata
da chegada do compositor, por via terrestre: 29 de novembro de
1719. Este , daqui em diante, um dado adquirido, que no se pode
ignorar e pe cobro a mais conjeturas dos historiadores. A sua
estada em Lisboa no foi porm contnua, o que alis se sabia, mas
as duas interrupes efetuadas, ambas por deslocaes a Roma,
esto delimitadas com mais certeza: uma deu-se de 1724 a 1725,
localizando-se em 1
de janeiro de 1726 o recomeo das atividades
do msico na capela real; a outra, por motivo do seu casamento,
decorreu entre 28 de janeiro do ano seguinte e 27 de dezembro de
1729, para logo se seguir a viagem na comitiva de D. Maria
Brbara, a caminho de Sevilha. O signatrio, que fez parte da
comisso nacional das comemoraes scarIattianas, s tem que
congratular-se com a eliminao dum escolho com que ele prprio
se debateu.
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As relaes de amizade, admirao e considerao recproca
entre o napolitano e a sua discpula um dos episdios humanos
e artsticos mais interessantes que se registram e exemplificam
quanto uma personalidade espiritualmente influente pode alterar
por completo o rumo da vida e da obra dum artista. A princesa de
Bragana no era uma figura vulgar, quer moral quer musicalmen-
te. Possua grande talento artstico e, a julgar pelo virtuosismo da
escrita scarlattiana expresso nas tocate, que o nome equivalente
dado s sonatas, ter chegado a igualar o mestre em dedos e estilo.
No fora assim, e, a mais dessa referncia tcnica, no se com-
preenderia, s pela conservao dum emprego, a dedicao dum
msico de tal envergadura at o fim da vida.
O aspecto mais saliente da mudana operada no trabalho
compositivo de Scarlatti reside precisamente naquilo a que dever
a celebridade: a sua produo cravstica. Podemos imaginar que,
se se tivesse mantido em Roma, continuaria a ser, predominante-
mente, um compositor de msica religiosa, de cantatas e de parti-
turas cnicas, nas quais no logrou especial xito. Com o
conhecimento de Maria Brbara, e atendendo constante curiosi-
dade dela por variar de repertrio e, tambm, s menores possibi-
lidades operacionais noutros gneros que as corte de Lisboa e
Madrid lhe proporcionavam, a sua veia voltou-se quase exclusiva-
mente para o teclado: a prova est em que a maior parte do
espantoso conjunto de qase 600 sonatas que dele resta se pode
situar entre 1719 e 1757, ou seja, desde a chegada a Lisboa at a
morte. A sua qualidade de mestre de capela na corte portuguesa,
onde tinha por substituto o nosso grande Carlos de Seixas (1704-
1742), implicava que se votasse no s s necessidades do culto,
mas igualmente s festas palacianas e, da, as cantatas e serenatas
que comps para celebraes determinadas, que a correspondncia
de Mons. Bicchi deixa entender, segundo Dederer, em maior
nmero do que se supunha. Na corte madrilena, no tinha outras
funes e curioso observar que o famoso Farinelli, que gozava
do mximo poder nos meios cortesos e bem o conhecia, tendo-lhe
valido financeiramente em situaes de apuro por dvidas de jogo,
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nunca se lembrasse dele ao organizar as suas faustosas temporadas
de pera italiana.
O
Libro di Tocate per Cenibalo
do IPPC (FCR 194.1), onde
se copiam 60 sonatas, por si mesmo um exemplar nico no
esplio do compositor e at agora desconhecido; ademais da
incluso da sonata indita, na tonalidade de l maior, preferida do
autor, contm outras informaes que acrescentam o seu valor
documental, no obstante as restantes peas da coletnea serem,
com variantes em certos casos, as recenseadas noutras partes.
Naturalmente que a ordem das sonatas aqui diferente da nume-
rao de Kirkpatrick, mas, confrontando-as, nem sempre conferem
em alguns elementos, oferecendo as de Lisboa indicaes de
andamento que permitem corrigir ou completar as verses corren-
tes. Por exemplo: o Non Presto de K. 118 Allegro em Lisboa,
como igualmente o a K. 125, marcada Vivo. Acontece haver
sonatas de Lisboa omissas quanto a andamento, o que se pode
suprir, por sua vez, graas aos manuscritos de Veneza e Parma,
como fez Kirkpatrick, mas o contrrio tambm se d e a K. 145,
sem qualquer indicao, pode agora regular-se pela sua equivalen-
te Lx. 36, rubricada Alf
DOU
Presto. Na maioria dos casos,
coincidem porm. Relativamente a esta ltima sonata, de cuja
autoria se duvidava, o manuscrito FCR 194.1 (IPPC) vem confir-
mar a nica cpia em que aparecia at aqui (Cambridge, Fitzwil-
liam Museum), como sendo na verdade de Scarlatti. Ressalta ainda
da observao das peas do manuscrito de Lisboa, como sublinha
G. Doderer, a estrutura de um s andamento bipartido, e, por vezes,
o emparelhamento de sonatas que nas demais verses figuram
independentes. Outros aspectos, como a repetio de compassos,
duplicao de notas, etc., recomendam por parte do estudioso e do
executante-intrprete uma consulta atenta desta edio fac-simila-
da.
Baseando-se na extenso dos instrumentos ibricos, o prof.
Doderer entrega-se a seguir a uma anlise das partituras, com
inteno de averiguar os perodos de criao. A maioria dos
manuscritos de Veneza e Parma correspondentes s composies
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do nosso livro est assinalada com os anos 1742 e 1749, muito
depois da sada do msico de Lisboa, o que natural. Algumas
podero ser mesmo posteriores. O mbito normal dos cravos
portugueses na altura da estada do compositor em Portugal era de
D-r .. ou
D-rni
(51 e 53 teclas) e isso caracterizaria
cronologicamente as sonatas compostas em Lisboa. Absol utizando
este mtodo, J. H. van der Meer havia proposto uma classificao
da obra de Scarlatti por perodos organolgicos, que refletem a
evoluo crescente do nmero de teclas. evidente que uma pea
com extenso grande (que chega, passado 1750, ao mbito Sol 1
a sol = 61 teclas) no pode ter sido concebida para instrumento
mais reduzido. Mas o contrrio possvel: o fato de se ter
disposio uma orquestra sinfnica no impede que se escreva para
conjunto de cmara ... D. Maria Brbara possua em Madrid
instrumentos de vrias dimenses, o que daria plena liberdade de
inspirao ao seu compositor, e s a circunstncia de a maior parte
das peas da coletnea do conde de Redondo ser de mbito
alargado pode, com efeito, autorizar a concluso de que o manus-
crito Lx. 194.1 no ter sido organizado antes de meados dos anos
de setecentos , tanto mais que apenas uma palie das peas desse
manuscrito poder ser executada em instrumentos portugueses
disponveis no perodo lisboeta de Scarlatti. Quanto me parece,
somente critrios estilsticos e morfolgicos permitiro destrinar
o j velho problema da cronologia das sonatas.
No que tange a Portugal, a excluso das de maior extenso
circunscreve o campo de observao, no qual entram, por sua vez,
as caractersticas especiais de construo do cravo e do piano de
martelos portugueses, que os distinguem dos seus congneres
doutros pases europeus (a este propsito, o prof. Doderer no
deixa de apontar Lisboa como o palco de passagem do cravo para
o pianoforte ).
Devem-se a este musiclogo, e a alguns outros estrangeiros,
como o citado van der Meer, as mais recentes investigaes sobre
a natureza acstica e factual dos instrumentos portugueses, quer
no respeitante ao temperamento musical quer s particularidades
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de fabrico, que condicionaram de modo peculiar a criao sonora
nesta faixa da Pennsula Ibrica. Doderer enumera, em pormenor,
essas particularidades, denunciativas duma tradicional e autno-
ma maneira de construir instrumentos de tecla e corda no Portugal
setecentista e de que temos por relevantes o tipo de madeiras
nacionais utilizadas nas diversas partes, o corpo mais alongado por
meio da duplicao do segmento vibratrio das cordas de oitava a
oitava, a colocao de rguas e ilhargas, a forma do cavalete em
S, a disposio de dois registros de 8 ps e o emprego do lato no
encordoamento,
De tudo isto, o que, no entanto, pode ter mais interesse para
o artista, para o crtico, e afinal para o pblico, o seu resultado
esttico, que deve ser tido em conta, modernamente, na concep-
tualizao
da linguagem de Scarlatti - aquela que ele havia em
mente como conseqncia da sua converso auditiva aos novos
meios. Essa sensao de autenticidade, que tanto domina as pre-
ocupaes atuais de reconstituio erudita da msica antiga, -nos
forneci da, com o volume em apreo, no registro sonoro, que o
acompanha, dum instrumento bem representativo e genuno da arte
portuguesa: o cravo de Joaquim Jos Antunes
D-m i ),
datado
de Lisboa 1758 (IPPC, MIC 372). Tambm nisto se toma notado
o mrito do Departamento de Musicologia, que tinha a seu cargo
a valiosa coleo nacional de instrumentos musicais antigos, ao
promover em 1986 o seu- restauro, reconhecido o alcance da
proposta da conceituada Casa Neupert, de Bamberga (RFA), para,
com todas as garantias, o fazer a troco de autorizao para a sua
cpia comercial. Tal acordo, susceptvel de proporcionar a difuso
no Mundo dum produto tpico da cultura portuguesa, possibilita
hoje a todos os interessados a posse duma rplica dum to famoso
cravo dessa origem. O mais impressionante na audio que o disco
nos oferece, no sem a conscincia de que a recebemos filtrada
pelo requinte das interpretaes de Cremilde Rosado Fernandes,
artista estilstica e virtuosisticamente afeioada ao gnero e, bem
assim, ao autor, a comoo de se estar a ouvir velhas sonoridades
e captar, dum mundo desaparecido e distante, graas conjugao
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Cravo por+uqus de Joaquim Jos Antunes (Lisboa,1758)
Gravura do estudo de G.Doderer in
L i b n o d i T o c a t e
~en
C e . m b a l o . . ,
de DornenicoScar1atti (Lisboa,
INIe,
1991)
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do esprito scarlattiano e da alma do instrumento, essa i magem
sonora - a que se refere Doderer - que marca de forma pastosa o
espectro meldico, num conjunto de linhas opulentas e aromti-
cas ,
Humberto d vila Musiclogo e investigador. Fundador da
Juventude Musical Portuguesa. Antigo diretor do Departamento
de Musicologia do Instituto Portugus do Patrimnio Cultural.
Presidente da Assembleia Geral do Conselho Portugus da
Msica.