Post on 07-Apr-2018
8/3/2019 Drummond de Bosi
http://slidepdf.com/reader/full/drummond-de-bosi 1/12
Ceu , inferno
o sincretismo faz-se na cabeca de Evandro e S(lvlll,
que, nao aderindo rigorosamente a nenhum dos culte I
podem com maier desenvoltura armar esquemas de S(JlI
bolos e meraforas que transitam pelos dois universos e (I
abracam com 0 brilho sedutor das imagens: assirn, Di
nisos transformado em pao e vinho, e 0Cristo da eucarisi h idisrribuida aos pobres. Alias, e muito bela a intuicao de IIIIt
culto em que todos comungam, fraternos, a santidadc d n
trigo e da uva, superando, deste modo, a fase selvagern d \l
antropofagia e da escravidao, praticas que rernanescem d l'
urn mundo arcaico e violento. Se asprimitivas bacantes ( 1 1 1 I
delirio matavam a dentadas touros e vacas e comiam CI't! I
as suas carnes, as comunidades orficas p os te rio re s, i gL I1 d
mente sagradas a Dionisos, guardavam 0 jejum e absl
nharn-se escrupulosamente de ingerir carne. Orfeu cantu ,
purifica, liberta.
Fica assim adarado (em parte, creio) 0 simbolismo e l ntitulo central: Sol subterrdneo. E todo urn movirnentu IIsentido que se reconhece n a im ag em fe ita de 1uze t re va , I I
opressao e esperanc;:a,A partir dela talvez se iluminem IIII
lhor os caminhos deste narrador surpreeridente que III
oitenta anos ainda nos delta frutos tao doces e tao fres 'II~
Um prirneiro caminho que foi sendo balizado pela obsc
sao do carcere e pelas marcas de medo e angustia qm: II
correm no dia-a-dia do suspeito, do perseguido, do pn:l iIIl
do exilado, numa palavra, do hOJ11emque vive em esm III
subrerraneo. E urn outro caminho, de saida, que ja n5tl Ibasta com 0 ceu do presente, mas quer abracar urn lllw'lo
de ser l ivre modelarmente arribuido ao cidadao antigo"d
urn tempo em que os ritos do povo falavam no advento ' I i iurn reino de justica,
98..
"A maquina d o m u nd o"
entre 0 s im b olo e a a leg oria
"N. ature,enchanteresse sans pitie,
rivale toujours vicrorieuse, laisse-moi!
Cesse de tenter mes desirs et rnon orgueil!"
Charles Baudelaire, "Le confiteor
de I'artiste", e m L e s pl ee n d e P ar is
o primeiro contato com '~maquina do mund "
m u de Car.lo s Drummond de Andrade. c id 0 Pl°~-, onV1 a a uma .el~turu metafisica. Desde 0 titulo universal n b A
I"l'. ,. a sua a rangen-
.1 , ate as nguras do eu e do mundo que n I d-. " ee se ao emIJIltraponto, passando pelo tom grave de adagio filosofi-
I)que longamente 0 sustenta.
Seo crftico e versado nas correnres fenomenol6gicas
tCl.1ta<;:aoed. retomar 0exernplo de He'd' . I'tl HI' '. . 1 egger que, en-o oe derlin, interpreta as seus poem "0 '"
II I n b'" . as retorno e -;:.?
,em, ranca com~ citras de uma relacao entre 0Ser-aqui
Damn) e 0seu horrzonte ollto16gico, transpessoal,l 0 pro-
Dr~ffim~(nd talvez nos encorajasse a trilhar esse carni-
ao situar :A . maquina do mundo" entre as "'T .lentatrvas
ll~~2~artin Heidegger, A p pr oc he d e H o e! de rl in , Paris, Galli~
8/3/2019 Drummond de Bosi
http://slidepdf.com/reader/full/drummond-de-bosi 2/12
Ceu,inferno
il I de explicacao e de interpretacao do estar-no-mundo" , como
.I. _ q figura na sua A n to lo g ia p o et ica . 2
~ ~Essa abordagem, porern, correria 0isco de colher limi]'anto precocemente asessencias a-historicas latentes no dis
~ 4 curso poetico (0 Ser, 0Tempo), sem por em relevo os mo-
Idos peculiares de forrnar, que a.mensagem foi encontran
do para dizer , passo a passo, 0 seu sentido,
~ No caso de "A maquina do mundo", uma entrada im e
\. ~ diatamente metafisica poderia descurar a marcacao de L Im
- 0 processo vital para compreender 0 todo. 0poema desdo ..
) bra-se francamente em uma linha narrativa.
j Em outras palavras: 0 tema do desencomro entre 0su
S \ je,ito eo. Universe nao e tratado liricamente, sob as especlcs
4 ~de uma linguagem sintetica, centrada t~0.-s6 na aparicao e\"';0-J na norneacao das suas figuras. Ao contrano, 0que temos ~I
~ (J 1ma eadeia de situacoes existenciais. Uma sequencia no temc l ~ ipo e no espa<;o, que e necessario pontuar e palmilhar.
-J.b-gd Alsue inh ..~ ~ .Q -- guem, urn carom ante, n~rra em pnmelra pessou,
l- lVagueava por uma estrada de Mmas quando se deparou
\ com um,~eS,tra~ha cena, que ~!e reconh.ece im~ediatame,:nll'
~1;...omo a maquma do mundo . A ~alllf;st~~ao se faZp(~I
c..:,~ {' . irnagens e palavras, mas sem voz, Nao ha dialogo, 0U n . 1
( \ , r verso, abarcando Natureza e Historia, abre-se ao viajor (I
, j , . ~ ofereee-Ihe, a segr,e,d." do se.ll enign:a, outrora procuradu
~ - & - - r vamente. Ele, porem, retrai-se, hesi ta em responder, ! ; ; I i i
quanto urn outro ente interior 0domina e 0 compele a n'
cusar-se aquele dom tardio. 0 eu baixa enfim os olhos eo
rno quem ja desistiu de penetrar 0 sentido das coisas, IL
"A rnaquina do rnundo" entre 0 sfrnbolo e aalegoria
II l1ic(;) ,arnaquina do mundo se recomp6e e se fecha. 0
1 1 11 1 1 1 1 hante segue pela mesma estrada, voltando a situa-III iI~idal.
o simples resumo da materia narrada leva aperceber
1 1 1 ( " lriqueza dos seus significados nao se atinge de cho-
III'. d e urna vez por todas, pois a mensagem do poema cons-
1 , ' , 1 , ~ C i ! . 1 1 0 tempo. Discernem-se passos, eventos, gestos bern
m ueados, embora discreros, porque solenes, calados.
Em vez de "partes" a analise apreende ondas, cujas ver-
t H I l S se tocam e se unem ~o movirnento semantico geral.
Illecafora e tanto mais verdadeira quando se nota que
IIIHl das passagens de urn momento ao outre ocorre den-
IIII do rnesmo terceto e ate do mesmo pedodo.
Tl'anscrevo 0 texto, assinalando com barras duplas os
IlIn'li05 de viragem em que a narrativa inflecte de maneira
ll 'II.~(,~el.E lembrando urna sentenca incisiva de Maritain:I I t iyO de toda particao e distinguir para unir. )
~/)
!j
~
~
_ f : -].
-+_"
A MAQUINA DO MUNDO
"E como eu palmilhasse vagamente
uma estrada de Minas, pedregosa,
e no fecho da tarde urn sino roueo
sernisturasse ao sam de meus sapatos
que era pausado e seco; e avespairassem
no ceu de chumbo, e suas forrnas pretas
lentamente se fossem diluindo
na escuridao rnaior, vinda dos montes
e de meu proprio ser desenganado,
10 1
2 Rio de Janeiro, J o s e Olympia, 1962.
100
8/3/2019 Drummond de Bosi
http://slidepdf.com/reader/full/drummond-de-bosi 3/12
Ceu , inferno
a maquina do mundo se entreabriu
para quem de a romper ja se esquivava
e s6 de 0 t er pensado se carpia. II
Abriu-se majestosa e circunspecta,
sem ernitir urn som que Fosse impuro
nem urn dado maior que 0 roleravel
pel as pupilas gas tas na inspecao
continua e dolorosa do deserro,
e pe la mente exausta de men tar
toda uma realidade que transcende
a pr6pria imagem sua debuxada
no rosto do misterio, nos abi smos.
Abriu-se em calma pura, e eonvidando
quantos sentidos e intuicoes res tavam
a quem de os ter usado os ja perdera
e nem desejaria recobra-los,
se em vao e para sempre repet imos
as mesmos sem roteiro tristes per iplos,
convidando-os a todos, em coorte,
a se aplicarem sobre 0 pasto inedito
da natureza mitica das coisas,
assim me disse , embora voz alguma
ou sopro au eeo au simples percussao
atestasse que alguern, sabre a moritanha,
a out ro a lguem, notu rno e mise rave l,
em coloquio se estava dir igindo: 1 /
"0 que procuraste em ti au fora de
102
"A maquina do mundo" entre 0 s lmbulo e a a legor ia
t eu ser rest rito e nunca se rnostrou,
mesmo afetando dar-se au se rendenda,
e,a cada ins tanre mais se retraindo,
olha, repata, auscuIta: essa riqueza
sobrante a toda perola, essa ciencia
subl ime e forrnidavel, mas hermetica ,
essa total explicacao da vida,
esse nexo primeiro e s ingular,
que nern concebes mais, pai s tao esquivo
se revelou ante a pesquisa ardente
em que te consumisre . .. ve, contempla,
abre teu peito para agasalha-lo", //
As rnais soberbas pontes e edificios ,
o que nas oficinas se elabora,
o que pensado foi e logo atinge
distancia superior ao pensamento,
os recurs os da terra dominados ,
e as pa ixoes e as impulses e as tormentos
etudo que define 0 ser terrestre
ou se prolonga ate nos ani rnai s
r.l chega a s plantas para se embeber
n o sono rancoroso dos minerios,
(h i volta ao mundo e torna a se engolfar
na estranha ordem georne trica de tudo,
l'0 absurdo original e seus enigmas ,
suas verdades al tas mais que todos
monumentos erguidos a verdade;
103
8/3/2019 Drummond de Bosi
http://slidepdf.com/reader/full/drummond-de-bosi 4/12
A treva rnais estrita ja pousara
sabre a estrada de Minas, pedregosa,
e a maquina do mundo, repelida,
.;:.._------
C e u , inferno"A maqu ina do rnundo" entre 0 stmbo!o e a a le go ri a
e as rnernorias dos deuses, e 0solene
sent imento de morte, que floresce
no caule da existencia mais gloriosa,
tude se apresentou nesse relance
e me chamou para seu reino augusto,afinal submetido a vista humana. / /
se foj miudamente recompondo,
enquanro eu, avaIiando a que perdera,seguia vagaroso, de maos pensas."
Em uma primeira tentativa de aproxirnacao podern-
~I" ~ J ,n ru b tl tu l os a os seis rnomentos: (a) 0 e ne on tr o n o m ei o
,I tI' / f lminho; (b ) a a bertura da m dq uina do m undo e 0 anun-
In t i l ! { . sua fo la ; (c ) 0 d is cu rs o d o m u nd o; (d ) a ep ifo nia d o
I I IhN!' rso; (e) a r ec us a d o eu: (f) 0fecham ento do m un do e a
, I , d t d d o eu J: c o nd ic d o d e e a mi nh a nt e.
Mas, como eu re lutasse em responder
a tal apelo assim maravilhoso,
pais a fe se abrandara, e mesmo 0 anseio,
a esperanca mais minima - esse anelo
de ver desvanecida a treva espessa
que entre os raios do sol inda se filtra;
como defuntas crencas convocadas
, presto e fremen te nao se produzi ssema de novo tingir a neutra face
que vou pelos caminhos demonstrando,
e como se outro ser, nao mais aquele
habit ante de mim ha tantos anos,
105
Nel mezzo del cammin . ..
Quando a poema se abre, ji cornecou a viagern do
fhlll'lIdoL pela estrada de Minas e do mundo. 0 hornem se
I h u 1mmeio da travessia, e a sua fala tarnbem: "E como
II [ u ilm ll ha ss e v a ga rn en te . .. " .
() prirneiro signa e uma conjuncao coordenativa (E),
IIII /,Ir e urn percurso que continua no tempo e no espas:o.
( ~omo did. 0poeta que algo esta em curso, sem prin-
II' II, ne m rota, nem termo fixo (urn andar vagamente ) , e
III I l lgo aconteceu no interior desse fluxo temporal? Cha-
II IItc~n<;:aopara 0usa de certas esrruturas gramaticais
fI' ptlt·Jodo unico e entrancado, que enfeixa os quatro
I 1 1 1 I I ' u 5 tercetos. A construcao e classica, em tenso equi-
1 1 1 1 1 , V~iri.asoracoes subordinadas, presas entre si, com 0
I", II;U modo subjuntivo ( co m o e u p a lm il ha ss e; e [como]
passasse a comandar minha vontade
que, ja de si voh ive l, se cerrava
sernelhante a essas flares reticentes
em si rnesmas abertas e fechadas;
coma se um dom tardio ja DaD fora
. apetecivel, antes despiciendo,
baixei as olhos, incurioso, lasso,
desdenhanda colher a coi sa oferta
que se abria gratuita a meu engenho. / /
104
8/3/2019 Drummond de Bosi
http://slidepdf.com/reader/full/drummond-de-bosi 5/12
u m s in o r ou co s e m i st ur as se ; e [como] a v esp a i ra s sem; e [como]
s u as f o rma s p r et a s s eJo s sem d i lu in d o) , precedem a oracao ca-
pital, de que dependem: a m dq uina do m undo Sf entreabriu.
o modo verbal escolhido, com a sintaxe a latina, su -
gere uma atmosfera grave: 0 paema lida com 0 destine.
Quante ao contraste dos tempos, denota uma oposicao de
relevo semantico: de urn lado, a travessia 6 urn continuo,
nao finito, que 0 passado imperfeito transp6e fielmente
( pa lmi lh a ss e , J o ss em d il u in d o . .. ) ; de outro, rompe 0 evento,
a inesperada epifania do mundo, 0 que e urn fata isolado,irreversivel, enunciado pontualmente pelo passado perfei-
r1i to: entreabriu.
t , . . . . '3 1 ; _ A d i fe re n ca entre 0 processo e 0 acontecirnento, entre
'r. 4i~devir e a aparicao, conhece desdobramentos ao longo do
: I ~ irtexto. Nesta altura da analise, int.eressa apanhar os proce-
) ifdimentos de linguagem que configuram urn certo climaexistencial, urn pathos que afeta 0 narrador antes da abet-
-1 tura da maquina do mundo,
l i . " " ch NdoSversos indicDiais'Saor,m)asigdnificante ~aorm
d
a~i1)('l,
r : ave a estetica e e. ancns pro uz uma smtese e ima-
)...Il- gem e estado anlmico, 0 discurso entra em plena regime
das correspondencias que tornam possfvel a formacao de
uma estrutura simb61ica. Entre 0viajor e a Natureza cons
tituern-se analogias em torno de qualidades que passanl n
ser comuns: a lentidao e 0 negrume.
LENTIDAo. 0arrador percorria a estrada palmo a p a l
mo, sern pressa nem rumo fixo: v ag a men t e. E 0 som do
sapatos - meronirnia dos seus passos - era pausado. Do
lado da Natureza: as aves pairavam, isto e , voavam cornu
que paradas, adejavam apenas sem sair do rnesmo slt!o, I'
as suas formas se dilularn l en t amen t e. Urn cornpasso de 1 1 1 1
106
"A maqulna do mundo" entre 0 simbolo e a alegoria
» . . . . \
'o~~sco demorado sustern 0andamento interior deste pri- ~ t. :
metro tempo. t ; ; : ;
N~GRUME. Para dar 0 tom a paisagem, as expressoes ~~
N'"Q varias: 0fic ho d a tar de , 0 s in o ro uco , 0 c eu d e c hum bo , a s''_ > ,
/ ( J ' 1 ' ; r n a s r e t a s dos passaros, a e sc ur id do m a im ; v in da d os m o n - s : - ; _ I
Jr!~' .e tambem (e aqui a fusao e sintatica, alern de simboli- 'j,in ) uinda do meu proprio ser desenganado. ~~
No meio do poema, volrara a correspondencia tonal: ~
'Ill 'Inconta a aparicao da miquina do mundo se sabe "urn ~
t I'notumo". IIw_ _£le.("' vL O tuS V"t.xJ « :>
o arnbiente ressoa na alma ea ensombra. Ressoa: vivemIIll1bos0mesmo tempo lento. Eo ocaso e cornum a ambos.
~6 existe processo sirnbolico quando as imagens se en-
Illf'/:atn em urn solo de afinidades. Symbolon e juncao dos f.! fc'I'cntes, costura, amplexo. 0 que 0 eu narrative desco-
IIII', nesta primeira passagem, e a inerencia ao seu mundo <
II' W ic ). , enquanto universo familiar . Dai, a i inica notacao 1. onntfica precisa, a estrada de Minas pedregosa, queabre ~
h,d IH 0 poema, e que todo leitor de Drummond reconhe-
(limo figuraconatural, duramente lapidada no curso da
Ihl IJi(Jgrafia poetica:
"Alguns anos vivi em Itabira.
Principalmenre nasci em Itabira.
Por isso so u triste, orgulhoso: de ferro.
Noventa por cento de ferro nas calcadas,
Oitenta por cento de ferro nas almas.
B esse alheamento do que na vida e porosidade'------..._
j ~ A J - Y . < , _ [e cornunicacao." -,
! / ' I ' i j J J ' " - ' I~ ("Confidencia do irabirano", /
~ tfr~\ em Sentimento do muwJ , ; )
107
8/3/2019 Drummond de Bosi
http://slidepdf.com/reader/full/drummond-de-bosi 6/12
46
C t : J': ;
:;
j _ JsS~
4 - , J :
!i ~
I sI c 1I
~
(_ 0 V1 \J L oL o
c s u . in~o ~ f ~ ' ~ U L \ t U)r. 'c>tc\.A(<l.
Av- o.r=I'J~\.). .JL.o ~>D.~
[ta-bira: arvore de pedra; madeira de fibras ferrosas,
impenetraveis.
A esse contexto singular e diterenciado, que entretern
com 0eu relacoes de coextensividade; a esse espaco v iv ido,
que lhe serve de rnetafora para conotar os seusmodos de ser;
a essa duracao da experiencia quotidiana e coricreta, opoe-se a rnaquina do mundo:
"a maquina do mundo se entreabriu
para quem de a romper ja se esquivava
e 56 de 0 ter pensado se carpia."
o corte entre uma situacao e outra e vis fvel , embora
( a fio sintatico mantenha bem unido todo ° discurso. Emplena locus de convfvio sobrevern a imagem de um ser es-
tranho, que, apesar de pretender a figura da totalidade, ealheio ao sujeiro a quem se apresenta, repentino,
A partir dessa epifania, que logo se rnostrara em glo-
riosa procissao, 0 narrador vai refluindo para 0 passado e
lernbrando 0quanto se empenhara, inutilrnente, na com-
preensao desse mesmo "mundo",
No repertorio da poesia brasileira e taro que a lura fius-tica pelo conhecimento em si mesmo venha assinalada de
forma tao dramatica, como se fora um embate de vida e
motte. Os verbos, em geral s6brios no mais discreto dos
estilistas, confessam aqui violencias insuspeitadas: rompel'
a rnaquina do mundo; e carpir-se pelo fato de ° ter deseja-do outrora. Carpir-se: a palavra e forte, quer dizer "lamen-tar-se", "chorar de arrependimenro"; e, se a lermos no sell
registro arcaizanre, que, de resto, afina com a diccao do pot:..
ma, vale "arrancar os cabelos de dar" , como 0azem as car-
pideiras no velar do morto. Mais adiante, 0 poeta recorda
108
"A rnaquina do mundo" entre 0 s imbolo e a alegoria ~~~c.lLL
.\ru - l b z n CGu--~ '(rS7 Q_J
r a as "defuntas crencas" em uma realidade que seja inteli-
gIvel para 0 homern.
Hi, pois, uma hist6ria por tras desta oferta a prirnei-ra vista gratuira e rnisteriosa; e e uma historia de esqui-vancas e de malogros reiterados,
'V.ffJ j , , 1 . 1 1 "l~ &;)
Da aber tu r a a o co n v it e c - /, 0 t,CL~Ln ~~~
~<A ...._ 'VV\ 'VV\p "V\.J___.:_
o s e rmo su bl im i s convem a este relance de figuracao
'osmica, cujo rnodelo aha na tradicao de nossa lingua se
encontra no canto X de Os lu sf a da s ; e 0momenta em que a
d 'usaTetis descortinaa Vasco da Gamaavisao do Universe:
"Aqui um globo veern no ar, que 0 lume
Clarissimo por de penetrava,
De modo que 0 seu centro esta evidente,Como a sua superHcie claramente"
(X, 77)
< 'Uniforrne, perfeito, em si sus t ido ,
Qual, enfim, a Arquetipo que 0 eriou"
(X, 79)
C O V e s a q u i a grande maquina do Mundo,
Eterea e elemental, que fabrieada ~=-
Assim foi do Saber, alto e profunda,
Que e sem principio e metalimitado."
( X, 8 0)
~ o que diz 0 epiteto "rnajesrosa", atribuldo a maqui-
III, U I 1 l predicado novo, drummondiano, se acresce ao da
Ihl Imponencia: ela e tambern "circunspecta": espia, aten-
1D 9
8/3/2019 Drummond de Bosi
http://slidepdf.com/reader/full/drummond-de-bosi 7/12
Ceu, inferno'.'Amaquina do mund,o" entre ~ simbolo e a alegoria r: / •
,I Q " " . ,. ." " I v da. 7 < t ? p l j _ _ ? f ' , ~v ..e " (() j) 01 I> .::
Ill'llimento. E percorre-se 0 trajeto que vai de Kant a Scho-
p ' nhauer, da filosofia crftica a intuicao da dor universal:
ta, em todas as direcoes, e, como a Esfinge, reclusa na sua
essencia petrea, e capaz de olhar e, muda, significar. Nadaresta da transparencia luminosa do cosmos renascentista,
A cena que, em Camoes, se afigura objeto de maravi-
lha e devocao, pois "fabricadal assim foi do Saber, alto e
profunda", decai, no poeta moderno, a mundo desencan-
tado, sem deuses nem rnitos (so a memoria destes), mas
nem por isso menos enigrnatico e temiveL Ele ja 0 dissera
na "Elegia 1938", quando a humanidade parecia ter entra-
. do no tunel sem tim do nazismo:~
"Nem existir e mais que urn exercfcio
de pesquisa r de vida urn vago indlcio ,
a provar a nos mesmos que, vivendo,
estarnos para doer, estamos doendo"
( "R e lo gi o d o Rosar io", em C l a ro e n ig m a ).
Ulna antecipacao do micleo tematico de "Amaquina
I d" "0 . "dI tllun 0 enconrra-se no texto em pros a erugma , e
M u m s p o em a s , cuja situacao iniciallhe e sirnetrica:"Arnas a noire pelo poder de aniquilamento que ) l
encerra/ e sabes que, dorrnindo, os problemas te dis- 11
pensam de morrer.! Mas ° te rrfvel desperta r prova a
existencia c ia Grande Miquina/ e r e repoe, pequenino,
em face de indeci fraveis palmeiras." J
;L
~
-r dEntao, a rnaquina era a Egura metonimica da sociedade,
~ Agora, e a propria relacaodo eu com a mundo exterior
6 que vern enfrentada de modo imediato e em um discurso
.: r de tensao maxima. Sobe ao primeiro plano da consciencin
i- 1 j a busca de ,un: s~~tido que 0 sUj:ito empree~deu, e qu~'
'1 1 forma a pre-his ton a da sua narranva, As p u pi la s g a st as e I
. " , 1 ~ m en te e xa us ta d e m en ta r (0 pleonasmo ?i~ d.a int~~sida.'ll '
~ - . : - t ~ do processo) saoo remate de uma angusna cogll1~lVaqlw
: : ! > 1~e debateu em van contra 0 rnuro de pe~ra da re~hdadu:
~ <, J ., 0horizonte de pensamento tangencla a kantiana COt ,1 I
~ l_ e m s i, a n6umeno, incognosdvel, alem daqueles fen6mel1().~
~ que sao, no poema, as imagens do mundo apenas esbocadus
no rosto do misterio, Ou no abismo (abyssos. sem fundo),
o afa de conhecer veio a consumir nao s6 as olhos ['
o intelecto, mas a alma toda, cuja condicao de existir C II
" As p ed ra s c am in ha va m p el a e stra da . Eis que uma '))
j , il l 'lna escura lhes barra °carninho."
A~cas pedras, aqui antropornorfizadas, conjurarn-se
III IIIn "esforco de compreender" a Coisa, mas esta e "inter-" "B . h d i b "II I IIIre , arra 0 carrun .0 e me Ita, 0 scura.
EuCt'etal1to, por urn ato de absoluta gratuidade, que
Ilnnn 0arbftrio onipotente do outro em vez de resgata-
In . Imdquina do mundo chama "os sentidos" e "as intui- >, ~ d t ! viajante "a se aplicarem sabre 0 pasta inedito da
II" l ' ' 1 , U mitica das coisas",
t) 'Clnvidado ji rodara nos "mesmos sem roteiro tr is-c _ , . . , 1
p 1 , 1 ' i p los" , exp ressao densa do drculo vicioso, aparente-
III
N imsaldas, eterno retorno do mesmo on de se move VI ' l l , l t e l indagador ate a exaustao, Nessa altura, a miquina
I I , i " , I I 1 ' n s sintomaticamente sern voz. A sua convocacao rI I I I d I, nao passa p e lasrotas da intersubjetividade: um dia- IfI,ll, impossiveis, pois nern a Coisa emite som algum, nern _
ldado, "noturno c miseravel", c dado re'4~
-~ eJ"~0-111
8/3/2019 Drummond de Bosi
http://slidepdf.com/reader/full/drummond-de-bosi 8/12
C a u , Inferno " A m O ( lU ln o d o rnUlldo" entre 0 simbolo e a alegoria
i~ " ,I,.:l" " [ " ' r ~ ~ " " i ( . ,< . . ~ C _ C _ ~ ~ ~
H I' 1I11i ,to, permanece exterior a vontade faustica: e 0 enig-1 1 1 1 1 ,'lira 0 qual aponra a alegoria da miquina do rnundo.
A descr ic ao, arnpla, desdobra-se por sete tercetos en-
Illdlidos, Nao se trata de uma figurac;:ao organics do Uni-
I~I"r na s d .e uma sucessao de atr iburos que se perfilarn em
Ihlm :l i rn a generalidade, .A scdac ;: ao junta abstrato com abstraro, 0 proeesso de
1IIII1l.cnU e curnulativo, e tudo vai submetendo a estruturaI W I I '[ ' sea da Coisa que, afinal , e sumariada sob a expres-IIIIlpldar de ' •
"estranha ordem geornetrica de tudo." / \D1 S "a:
A Imilise dos termos que nomeiam os elementos do
II III ' iseema poe a nu a carencia dos seus liames com 0
j ·1 , / ' 0 " d e narrador, Nao hi nesse discurso "muita exigen- ?~
II'~II' I @ detalhe", precisamenre 0 que observou Benjamin ':::
".III 'I' ve r os modos estilfsticos da alegoria, Os aspectos &I ' t IIu l n r e s nQS q uais a vida universal se prismatiza sao (
It I , " d u 5 ; reduzidos, enfim supressos em favor de uma ;;
I J 1l,1~'n(1) generica (designatio: significas:ao de cirna para '~
Ill. que rudo abraca e nada estreita em suas malhas ex- I;:- 'Illllf'l~celargas: ;;, ; i . L f ~('f1.C( 0 -1,III'II'los.ciefimdores tam am 0 lugar de Imagens capa-
I! I t 'ol'ciar lernbrancas no espectador, 0 sangue dos
IlItI'IIIN e dos dias, que corre nas veias da Hist6ria dan-
I 1111'CU I ' e calor, dessora-se em frases vagas como: )
"0 que nas oficinas se elabora," , ~
H r - r d cl ! o 1"I~ Gluepensado foi e logo atinge
dL~ti!1.nciauperior ao pensamento,"
, b I!vV7 c_b~. ~.~~<I 1 13 (
o "noturno" reintroduz a simbologia da abertura,
Quanta ao estado "miseravel" do homem perante a
i m ag o m u nd i, volta em textos de filosofias diversas,
Misero e 0 naura cristae representado na epopeia d G
Camoes, a que nao falta urn veio de Idade Media outonal:
"Faz-te merce, varao, a Sapiencia
, g i L s" c",F . ~s Suprema de, co'os olhos ~or~or~is,
~veres 0quenao pode a vacl~~,Cla
Dos errados e miseros mortals
(X, 76)
Misero e 0 Islandes que, no dialogo de Leopardi , foge
sem cessar de uma Natureza indemente de fogo e neve.
Misero, sareastieamente misero, e 0 sujeito do delirio nas
Memorias P ostu m as d e Brds Cubas , que, arrastado pel os c a-
belos ate a . origem dos seculos, ouve de Pandora a declare
Mlet.. <;:aodo seu nada. '"" .Em Drummond, a percepr; :aodo intervaleentre a n1[1-
quina do mundo e a seu espectador e tao aguda que s6 (I
. ..1silencio pode significa-la, 0 silencio de ambos marca a C I . 1 '
~a~legOria no poema.
i ;~~cJ)~I
o mundo a lego ri zado
. 1 . E, no entanro, hi 0 discurso. Urn so perlodo cerradu
' . J , em si mesmo, Pelo seu teor pode-se reconstituir a que 1(
-t ria sido 0 objero da "pesquisa ardente" em que se consu
S ):- 'mira a viajor, ' Iudo quanta ele, "ser restri to", desejou corn
~ preender em tentativas frustradas, rende-se agora na I 1 1 l l~ ,~f\ insolita das ofertas, 0 dom, enquanto gratulto e porqm
'") !)
112
8/3/2019 Drummond de Bosi
http://slidepdf.com/reader/full/drummond-de-bosi 9/12
o que seria peculiar a existencia dos homens, 0 qUt"
na o se totaliza nunea em razao da variedade inesgotavel dONI
seus perfis, e subsumido no mais alto grau de abstracio
("essa total explicacao da vida", "esse nexo p r ime i ro e si n
gular"), au achatado ate 0nivel das plantas e dos animaln
"tude que define 0 ser terrestre".Prevalecem formas gramaticais neutras, genericas: (.1
que, tudo que.
Uma so metafora revolve as rafzes familiares do pOCllI.
e muda a registro alegorico em simbolo animista:/)
~ "0 sono rancoroso dos minerios." ./1./)
Par essa unica fenda, entreaberta em urn atimo, e po s
sfvel divisar as Minas, hahira e suas pedras, 0 subsolo d e
orgulho, a dar da memoria. Mas 0conjunto, uniforrne e m
seu matiz de cinza, afasta qualquer conotacao intimisra . .A
enfase e dada ao tema do "absurdo original e seus enigmas,/
suas verdades alras mais que todos/ monumentos erguidos
1a verdade".
~~ Quando 0 discurso passa da linguagem cognitiva (ex
~
p ii ca (f io , n ex o, e ni gm a , v er da de s, v er da de ) a u~a referenda
a vida, esta e neutralizada em suas celulas, pOlS0 que flo.
~
iesce no caule da existencia e 0 "solene sentimento de mot-
~ ~ te". Que reino e este, qualificado como augusto pela s u n
1 majestade, mas que, exposto em procissao de apoteose, c i d :
\ i\ sinais da propria agonia? A ordem que tern por funda-
mento uma simetria irnplacavel e , niio por acaso, tida par
1estranha.
. Walter Benjamin, empenhado em resgatar a potencia-
, b lidade dialetica de toda alegoria, entreviu no~ seus meca-
. .. .. _ iv . tnismos de reificacao vestigios de opress6es milenares:
- r : : i~p:s -
"3
"A r naquina do mundo" ent re 0 simbolo e a alegoria
"Apersonalizacao aleg6rica dissimulou sempre a
f a t e > de que a sua missao nao era personalizar alga pro-
I 'l 'ioda coisa, mas, ao contrario, dar a s coisas uma
fMma mais imponente, arrnando-a como pessoa."3
o poeta sabe d isso , por suas proprias vias, quando topa
u o meio da estrada com a Coisa , e a converte em alegoria:
Ih N \ll'a e renitente ate mesmo no ato de oferecet aos rnor-
lit! us seus tesouros. "A natureza inteira e personificada, nao
! I . ' I L s e r interiorizada, mas para ser -- desalrnada.r ''
~
A recusa htLiD ~C\ a : 0 ~ C £ )
o rnundo sob a forma de emblema e 0 teatro da alte-,Id.lle, e aqui assiste razao a Lukacs quando, na esteira de
(iu the, trava alegoria e transcendencia no mesmo proces-_1 1 intelectual.?
Na historia interna da obra poetica de Carlos Drum-
umnd de Andrade, a consciencia sempre reclamou, em face
II!numdo, os seus direitos. Dai, a forca de negatividade
1 1 1 1 ! (trompe em versos como estes, que nem 0 embalo da
Illluiga a lc an ca d i sf ar ca r:
"Que diz a boca do munda?
.3 Walter Benjamin. O ri ge m d o d ra ma b ar ro co a le mi io , a pu dG e or g1 1 I 1 ( t l . c ~ , .Esttftica, Barcelona, Grijalbo, 1967, vol. 4, P: 462.
4 Frase de Cysarz, estudioso da [Irica barroca; Benjamin a trans-
IIvena obra mencionada.
5 Georg Lukacs, "Alegorla y sirnbolo", in Estetica; pp. 423-74 .
115114
8/3/2019 Drummond de Bosi
http://slidepdf.com/reader/full/drummond-de-bosi 10/12
Ceu, inferno - - 4 ~ G~
~k~~1eu bern, 0mundo e fechado,se nao for antes vazio.
a mundo e talvez: e e s6.Talvez nem seja talvez.
amundo nao vale a pena."
("Can tiga de enganar", em C l a ro e n ig m a )
E urn modo de resistir, este, todo seu, obliquo e pCI'
tinaz, E que conhece urn veemente contraponto, manitestn
por tantos outros poemas, no desejo incansavel de amar,
sempre reiterado apesar, ou por causa, da morte que pul
sa e espreita na carne de todos os homens. Amor e mOI'I'I'
rondam urn ao outro, sem cessar.
E ''A ,. d d " , dm .. maqumao mun 0 , eo gesto a recusa qlil'
se risca em primeiro plano. Nao se trata mais de urn e, gilt'
sela a continuidade de uma viagem ("E como eu palmi,
lhasse vagamente ..."); a hora traz 0memento adverso domas: "Mas, como eu relutasse ..." .
o animo e reticente. 0 passo para tras desencadela
urna acao interior atentarnente seguida e escavada nos sere
tercetos que comp6em essa unidade de significacao. 0 el:l
quema sintatico e 0mesmo que opera na abertura: oral):(k,~
modalizadas no subjuntivo - modo incerto e dubio - (!
amarradas entre si enquanto preparam 0desfecho expres-
so na oracao principal. No corneco, a figura regente era iI
da maquina do mundo que "seentreabriu"; no final, eo aro
de retracao do eu, oposto ao mundo, que "baixa as olhos",como se os fechasse para nao poder ver.
Nessa contraposicao, macerada em varias passagens do
discurso, esta a chave sernantica do poema.
Nao e univoca, porem, a interpretacao deste baixar o.~
116
VA rnaquina do mundo" entre 0 simbolo e a alegoria
, 6 - c L L ) < , c U ' l (J7 r r U l A - 7
'h " I"incurioso, lasso,! desdenhando colher a coisa ofer-
t ) gcsto pode ser entendido como a fixacao de urn rno-
II d~ 'ser proprio do viajor, ou entao significar a ultima
" ' I " d e . . : urn desa f io de que ° poema div i sou as lutas e as
I Iflllas n el m ez zo d el c am m in .
A prlmeira leitura, de cadencias ontol6gicas, detem-seIIl·gtttividade, tomada em si mesma, e que parece mo-
I 111''01' dentro 0 ate da desistencia, Fastio, aborrecimento,
'p i ItU'tfl vitae au, lembrando 0 belo rerrno cunhado pela Q(
1I1"~lamedieval, acidia (do grego, via latirn, acedia). Que t~, 1 1 " 1 tusencia de cuidado, tibieza para com as coisas mais
t l , l I n l i e s , preguica do coracao, "torpor espiritual que irn- ;.
1 " all' de encetar 0 bern" au procurar a verdade, conforme
11I1111~aO precisa de Santo Tomas." Da esfera etico-religiosa
I II l JN e nasceu, e que sobrevive ainda na fi losofia de Kier-
~ ~~tnf~d,ara quem a melancolia e pecado capical, 0 con-
1 1 0 passou, com variantes de linguagem, para os pessimis- _
neili,cais,Leopardi e Schopenhauer, e existencialistas co-
1 1 1 1 1Irddegge~ e Sartre, Em todos, 0 enfaro diante do mun-
III l~urna experiencia fundadora, pois revela ao homem 0
•Irnmo gratuidade ou pura indiferenca, Os adjetivos "in-<
1 1 1 1 ( 3 1 1 0 " e "lasso", que 0caminhante atribui a si proprio, e -'
~ nf 'l Ilfao"desdenhando colher a coisa oferta", poderiam
uutar-se entre asmanifestacoes dessa tendencia do espfri-
' " h uma ne . d._u- : ; ; ~1...---'M a s ha uma segunda lei tura que me parece dialetizar
interior, pois tenta compreender 0 processo que leva aowdo de addia. Esta nao e urn dado, uma expressao in-
..«,~-;;tLct/
fi E rn S u m ma Th e ol og i ca . I I, I I, q. 3 5, a. 1.
117
8/3/2019 Drummond de Bosi
http://slidepdf.com/reader/full/drummond-de-bosi 11/12
variante do carater do eu narrador, mas procede de uma
historia de empenho sobre 0 real, uma paixao da mente,
~ue os termos "fe", "crencas", ":s~era.n<;a", "anelo" e "an~
seio" tesremunham com toda evidencia, A recusa torna-sc
inteligfvel a luz desse passado de experiencia e ~esencanto.
A indecisao do viajor em aceitar a dom tardio do m~n~o do e urn indlcio de que 0 seu nd o final veio se~do curt~~.o
no tempo. A des c ri c ao da vontade i rr e so l u ta , o s ci lan te , ap oi a -
se no simile das "flo res reticentes em si mesmas abertas e
(CC fechadas", imagem de uma alma dividida entre escolhas
diflceis, tanto que provocam a aparicao inespera~a dessc
fantasmitico a lt er e g o: "e como se ou tro se r, nao rnais aque-
le i habitante de rnirn hi tantos anos '; passasse a cornandar
!('e ' l l minha vontade".
1'rV r G\ Hi; ponanto, urn l ti ne ra ri um m e nt is que.m~lopo,\11
(
urn movimento de procura, ardor, frustracao, Inslst~nCLl1i
enleio, enfim rejeicao: 0 que d a a mudanca de desejo en I
recusa urn significado de desengano viri l, e nao apenas 1 . 1 1 l !
, i= tom de fastio. d o i ; , v C G \ , . . . . J - v : A l : f 0'J , ' ~ J
A . r . 7 ilU- r C L r 1 P 1 f - l : _
A ,} , ~ ; v v 2 - . \ A . . ( . A . G \ A ca min ho , de n ov o
Desdenhada a visao da Grande Maquina, 0 carninhun
te regressa ao seu mundo, a estrada de Minas pedregosa, 1 \
noire ji se fechou de todo, e e percebida como "atreva m I~i "
estnta . . 'I'Torna-se possfvel, com 0 retorno ao conte~to f a m l l h u ,
dizer a correspondencia entre a sujeito e 0 unrverso il,I,1
t riz de anti gas e novas metaforas:
118
"A maquina do mundo" entre 0 simbclo e a alegoria
"E noire. Sinto que e noirenao porque a sombra descesse
(bern me importa a face negra),
mas porque dentro de rnirn,
no fundo de mirn, 0griro
se calou, fez-se desanimo.
Sinro que nos somas noire,
(.
que palpitamos no eSCUfO
e em noire nos dissolvemos.
Simo quee noire no vente,
noire nas aguas, na pedra."
("Passagem da noire", em A rosa do povo)
Altlgoria e simbola, duas formas de conhecimento e de
Ill'/lSaCI e, ao mesma tempo, dais modos de tratar 0 sig- _ Y f . ,IIIII' {eieo: "cifra da transcendencia" (a locucao e de jas- ~~
J I ),. 1 alegoria, pesquisa da imanencia do eu no Outro, e J
I I I III1II'() noeu, 0 simbolo.
(Jllando prevalece 0 regime alegorico, a Natureza e a
J II/win comp6em antes urn t he at ru m m un di do que uma
III II I l~U.O que envolva 0 sujeito em carne e osso e 0 afete
"hi p:'lI.ticularidade biognifica. Isto posto, nada impede "> , ; > '
II ,.1 ul'gC>I'iaforce 0lei tor (ou 0 especrador) a perceber-
I 1 11 11 1 tim ser aleatorio e vulneravel, lancado em urn rnun-
1 1 1 1 1 ' Ihe c estranho.
JlIII t tA rnaquina do mundo", 0processo alegorico
I t l " l qnnse todo 0 espac;o da significac;ao, reservando a sI l d l l j n s a possibilidade do convivio especular do nar- Y - ; >
In m a paisagem. Tal comnesti dito na arte poetica
nunmond, 0mundo nao se reflete na alma, nem "a
I l I H : l " rima com "a incorrespondente palavra ou-
119
8/3/2019 Drummond de Bosi
http://slidepdf.com/reader/full/drummond-de-bosi 12/12
tono", A opcao por urn tratamento musical de ruru I III
des talvez explique a paradoxal harmonia de "A 1 11 ij:ll
do mundo", escrita segundo 0 modelo da terza " l , / t I I ( 1 1 i 1 , 1 1
tesca, mas . .. sem rima, ji que os seus d e ca ss ll ab os ~ hIII
gorosamente brancos.
Dante, no Canto XXII do "Paraiso", tendo I lubidu 1 1 1 1
~ oitavo ceu - 0 das estrelas fixas, sob 0 signa de (l'l1iII~
t! ) "presso all'u.ltima salu.te" -. recebe de.Beatriz o.convite pll'll
I
contemplar 0mundo inteiro a seus pes, "com olhos IIUI
d "e agu os :
II
Cau, inferno
/
flllll'" till 1llIliHltl" entre 0 simbolo e a alegoria
1 1 1 1 1 1 1 1 1 '!l u i undo com juizos de valor tao sobran-
I 1111,' ,IIIII 'lm ~t1esq_uinhoque fa~dos homens feras!"
e I '!lOHm·llemnl1Itamente rnaIScomplexa, e a sua ""
\ III III '1'1 cia ciencia, infinitamente mais irdua. E
I I " " I,quando ousa falar do cosmos, traz no seu
I I ' I II reento d a perplexidade:
I I I lQl j , I I1CO ell, avaliando 0 que perdera,
_.f\ull vagaroso, de maos pensas."
"Col visa ritorna i per tutt e quan te
le set te spere, e vidi questo globe
tal , ch' io sorr is i del suo vii sembiante."?
("Paraiso", XXII, 133-35)
A pequenez do nosso mundo, vista do firrnarnento, l i l Ysorrir ironicamente 0 poeta, que e sempre 0 juiz soberbe:
"L'aiuola che ci fa tanto feroc i
[ . . . J
tutta m'apparve da' colli aile foci."8
I ("Paraiso", XXII, 151 e 153)
I j Mas no poeta nosso conremporaneo ja nao vigoram as
;J ~obustas certezas que forravam a alma do Exilado e lhe per-
,j1~Traducao literal: "Com 0010me volrei P'" todas quantas/
= : l ; 5> ~ sere esferas, e vi este globol tal, que eu sorri da sua viI aparencia".
~ + . . . . J 8 Traducao literal: "0 canteiro que nos faz tao ferozesl [.. .]1 to-
do me apareceu das colinas a s fozes".
12 0 12 1