Post on 08-Jul-2020
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Raphael Ricardo de Faro Passos
Do evento ao fato: o realismo peirceano como intersecção entre o real, o signo
e o direito
MESTRADO EM DIREITO
SÃO PAULO
2016
Raphael Ricardo de Faro Passos
Do evento ao fato: o realismo peirceano como intersecção entre o real, o signo
e o direito
MESTRADO EM DIREITO
Dissertação apresentada à Banca Examinadora
da Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, como exigência parcial para obtenção do
título de Mestre em Filosofia do Direito, sob a
orientação da Professora Dra. Clarice Von
Oerzten de Araújo.
SÃO PAULO
2016
Banca Examinadora:
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À minha esposa e fiel escudeira de todas as
horas pela paciência, amor e instigação a ser
sempre o melhor de mim, e ao meu filhinho,
ainda no seu primeiro ano de vida, de quem
tirei horas preciosas de convívio, mas quem
no meu coração esteve em todos os momentos
dessa trajetória como objeto de profunda
inspiração.
O todo da ciência é nada mais do que um
refinamento do pensamento cotidiano. É por
essa razão que o pensamento crítico não pode
possivelmente estar restrito ao exame de
conceitos do seu específico campo. Ele não
pode proceder sem considerar criticamente um
problema mais difícil, o problema de analisar a
natureza do pensamento cotidiano.
(Albert Einstein)
Quando dentro do útero do tempo, tudo que de
novo retrocede ao caos será restaurado e, o
caos é o grau sobre o qual a realidade é escrita.
(Autor desconhecido)
Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma tem mil faces secretas sob a face
neutra e te pergunta, sem interesse pela
resposta, pobre ou terrível, que lhe deres:
Trouxeste a chave?
(Calor Drummond de Andrade)
RESUMO
Trata-se de estudo referente a evento e/ou fato como ponto de partida para interseção entre
realidade, signo e direito. O estudo se erige com pés firmes no realismo peirceano para
encontrar confluências em diversas escolas realistas, passando pela Antiguidade, Idade
Média, Idade Moderna e Idade Contemporânea. O modelo filosófico é instigado, igualmente,
pelas ideias de Merleau-Ponty e Lacan, máxime, no que se refere ao olhar que é o
entrelaçamento entre o homem e a natureza, donde também surge uma correlação simbiótica
do signo com o mundo sensível num embaralhamento de camadas na perspectiva das
categorias ceno-pitagóricas peirceanas da primeiridade, segundidade e terceiridade. Disso
eclode o parâmetro filosófico de que, no palco do signo, há uma espécie de gravação que
nele resta do objeto da realidade, o que desencadeia um processo de gravação semeiótico ad
infinitum de signo para signo, implicando, para fins de um dualismo meramente dogmático-
pedagógico, a contemplação de signos gravadores e signos gravados e, igualmente, de uma
realidade semeiótica (que é uma realidade do signo) e de uma summa realidade (que é uma
realidade na qual estão os eventos do mundo). O modelo filosófico é aplicado ao fenômeno
jurídico visualizado na perspectiva do signo ou aglomerado de signos (signos jurídicos), em
um panorama de signo gravador (jurídico) e signo gravado (da linguagem cotidiana). Nesse
contexto, tendo em vista a tendência, pela qual se conclui, de a linguagem cotidiana se
prolongar ao objeto da summa realidade, por conta de um continuum de investigação na
experiência objetivo-multidimensional, que é o expediente que permite a comunicação do
jurídico aos sujeitos de direito na sociedade de direito, tem-se que uma mais adequada teoria
a gravar o fenômeno jurídico seria aquela que se designa “teoria semeiótico↔estesiológica
do direito”. Dela exsurge que o direito é um fenômeno semeiótico↔estesiológico donde
signos jurídicos tendem, em um continuum, a um entrelaçamento com a summa realidade, o
que autoriza uma comunicação jurídica eficaz socialmente, sobrevivendo o direito
simbioticamente como ingrediente social e, como consequência, possibilitando-se a
perseguição do ideal de uma justiça convencionada.
Palavras-chave: Evento, Fato, Realidade, Verdade, Signo, Direito.
ABSTRACT
The present study refers to event and/or fact as the phenomenological basis for an
intersection between reality, sign and the law. The study arises firmly grounded on Peirce’s
realism alongside introspections on diverse schools of realism, passing through antiquity,
the Middle Ages, modern and contemporary periods. The philosophical model is instigated,
equally, by the ideas of Merleau-Ponty and Lacan, principally in reference to the gaze that
is the interrelationship between man and nature. From there emerges a symbiotic
relationship between the sign and the sensitive world in a shuffling of layers relating to
Peirce’s ceno-pythagorean categories of firstness, secondness, thirdness. As such, the
philosophical parameter appears in order to show that, in terms of sign, there is a sort of
imprinting phenomenon of the object onto the subject, deriving from it, an imprinting
process that goes on ad infinitum from one sign to the other. That entails two types of signs:
imprinting signs and imprinted signs and also two sorts of reality: semeiotic reality (reality
of the sign) and summa reality (reality where the events are). The philosophical model is
then applied to the law seen as language – a collection of signs (legal signs), which are
viewed as imprinting legal signs over the imprinted signs of the ordinary language. In such
a context, as the conclusion is that ordinary language extends to the object of summa reality
as a result of a continuum of investigation in the sensitive experience, which will be the
foundation that will allow legal communication between those who are subject to the law,
the findings were that a more adequate theory to describe the legal phenomenon is a so-
called “semeiotical↔esthesiological legal theory”. As a reslt of it, the work’s hypothesis is
that the law is an esthesiological-semeiotical phenomenon, from which signs tend, in a
continuum, to be interrelated to the summa reality, allowing legal communication to be
efficiant and, ultimately, the survival of the law in a symbiotic manner to be seen as a social
ingredient.
Keywords: Event, Fact, Reality, Truth, Sign, Law.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ................................................................................................................. 10
PARTE 1 – REALISMO JURÍDICO .............................................................................. 15
1.1 Fundamentos Filosóficos do Realismo Jurídico ........................................................ 16
1.1.1 Realismo Platônico (Idade Antiga) ....................................................................... 16
1.1.2 Realismo Aristotélico (Idade Antiga).................................................................... 25
1.1.3 Realismo Escotista (Idade Média) ......................................................................... 31
1.1.4 Realismo Kantiano (Idade Moderna) .................................................................... 51
1.1.5 Realismo Peirceano (Idade Contemporânea) ........................................................ 69
1.1.5.1 Prime matter e Haecceitas no Escotismo Versus Primeiridade, Segundidade e
Terceiridade no Realismo Peirceano ................................................................ 75
1.1.5.2 Semeiótica e suas Divisões, Correspondências com Kant e Compreensão Inicial
de Realidade e Verdade .................................................................................... 85
1.1.6 Merleau-Ponty e a Ideia de Entrelaçamento – o Quiasma entre Sujeito e Objeto
(Idade Contemporânea) ......................................................................................... 91
1.1.7 Giro Especulativo (Idade Contemporânea) ........................................................... 95
1.2 Escolas Estadunidense e Escandinava do Realismo Jurídico .................................. 102
1.2.1 Realismo Jurídico Estadunidense ........................................................................ 106
1.2.2 Realismo Jurídico Escandinavo........................................................................... 114
1.3 Realismo Jurídico no Sistema Jurídico Brasileiro ................................................... 122
PARTE 2 – REALIDADE E VERDADE JURÍDICAS ............................................... 127
2.1 Realidade Jurídica e Convenção no Direito ............................................................. 127
2.2 Verdade Jurídica....................................................................................................... 134
2.3 Signo, Proposição e Norma ...................................................................................... 141
2.4 Interpretação e Aplicação no Domínio do Direito ................................................... 158
PARTE 3 – SIGNOS JURÍDICOS ................................................................................ 165
3.1 Signos Gravadores e Signos Gravados (Teoria Semeiótico↔estesiológica de
Gravação): Papel da Semeiótica como Ferramenta de Compreensão do Fenômeno
Jurídico ..................................................................................................................... 167
3.2 Significado e Significante dos Signos Jurídicos: Papel da Semiologia como
Ferramenta para Compreensão do Direito ............................................................... 173
3.3 Substância e Forma dos Signos Jurídicos ................................................................ 181
3.4 Signos Jurídicos com Função Prescritiva, Impositiva, Cogente e Realizativa ........ 190
3.5 Papel da Sintaxe Gramatical para Fins da Interpretação das Regras de Direito ...... 197
PARTE 4 – EVENTO VERSUS FATO NO PALCO DO DIREITO ......................... 201
4.1 Fato Jurídico na Lei e Jurisprudência....................................................................... 201
4.2 Fato Jurídico na Dogmática Jurídica ........................................................................ 219
4.3 Narrativas Judiciais .................................................................................................. 226
4.4 Diferença entre Evento e Fato na Linguagem Jurídica ............................................ 231
4.5 Fato Jurídico sob a Perspectiva da Diferença entre Objetos, Eventos e Fatos ......... 244
4.6 Evento, Fato Jurídico, Crença Jurídica e Provas ...................................................... 250
4.7 Crítica à Expressão Fato Jurídico ............................................................................. 266
PARTE 5 - DIREITO, TEMPO E PASSADO .............................................................. 278
5.1 Limitação Temporal e Direitos Subjetivos .............................................................. 279
5.2 O Fim do Jogo Jurídico (Prescrição, Decadência e Preclusão) ................................ 291
5.3 O Fim do Jogo Jurídico (Irretroatividade e Anterioridade) ..................................... 301
6 CONCLUSÃO ............................................................................................................... 306
REFERÊNCIAS................................................................................................................311
10
INTRODUÇÃO
O presente estudo refere-se à inquietação do autor acerca da realidade do fenômeno
jurídico e da participação de evento e fato na determinação do que se chama positividade
social do direito. A problemática, portanto, erige-se a partir do fenômeno social para se
contestar a indagação de como poderia o direito – compreendido no seu aspecto semeiótico
(peirceano), gravar na sua positividade social a realidade “como ela é”.
Disso nasce o título que nomeia o estudo: “do evento ao fato: o realismo peirceano
como intersecção entre o real, o signo e o direito”, por meio do qual se objetiva abraçar toda
a problemática da inquietação em foco.
Nesse chão, perseguem-se, em uma investigação de pretensão científica, os
parâmetros de uma perspectiva simbiótica do fenômeno jurídico com vistas a, na
interdisciplinaridade, clarificar sua participação, com orientação objetiva, do que se chama
summa realidade, da qual deve partir a estruturação do edifício jurídico e para a qual deve
voltar em um processo contínuo de atualização.
Todo percurso científico principia-se pela eleição de um método. Tendo em vista que
o ferramental teórico mais firme utilizado para mecanizar a textualização presente se apoia
na teoria peirceana, desta emerge o método que se utiliza: o método abdutivo.
A instrução de sua utilização parte do próprio Peirce (CP 2.96), de quem se grava a
abdução como método que permite iniciar novas ideias. Suas peculiaridades envolvem, em
um silogismo abdutivo, a gravação (na nomenclatura que aqui se cunha) de eventos em suas
premissas, os quais autorizarão uma similaridade (semelhança) com o evento a ser gravado
(Peirce fala em representado) na conclusão.
Nesse método, não se leva a afirmar positivamente na conclusão, mas a uma
inclinação de que nesta há uma gravação (Peirce fala em representação) de um evento que é
o evento objeto das premissas. A linha é a de que a conclusão grava um evento que se une
por semelhança à realidade.
As premissas, no caso do método abdutivo, são de sorte comprobatória, é dizer, são
elas que levam à inclinação da conclusão, mas como em um “silogismo sempre em
suspenso”, como deve ser em qualquer ciência, eis que as premissas (abdutivas) servirão
para que, por meio da investigação científica, possa-se, num continuum, ligar-se cada vez
mais à realidade, mas já se admitindo que a conclusão será sempre falível e atualizável.
11
Os fundamentos que permitem as premissas no silogismo abdutivo originam-se do
realismo peirceano capilarizado por introspecções realistas em Platão, Aristóteles, Scotus e
Kant, bem como com confluências em Merleau-Ponty, Lacan e Žižek, para falar das “escolas
filosóficas”. No âmbito jurídico, há uma encontro com Holmes, Pound e Llewellyn – no
palco da escola realista estadunidense, bem como com Ross e Olivecrona, no altar da escola
realista escandinava.
A semiologia saussuriana é ferramenta de contraponto com o que aqui se chama
semeiótica (peirceana), opção de nomenclatura utilizada para diferenciar essa ciência de
outras ciências chamadas “semióticas”, mas que não têm o mesmo objeto de estudo, eis que
o da semeiótica seria mais amplo.
A semeiótica se aplica para fazer prevalecer uma visão realista sobre o nominalismo,
digladiando-se aqui com temas centrais, como a questão dos universais e particulares,
proposições, verdade, realidade, tempo e espaço.
A construção dogmática tem influência relevante da linguística pottieriana, máxime,
no que respeita à diferença entre significado sintático e significado semântico, usando-se,
igualmente, noções do estruturalismo jakobsoniano. No que toca aos universais e
particulares, Strawson é base firme e contraponto importante para fazer prevalecer a visão
peirceana sobre realidade.
Na dogmática nacional, há exploração de argumentos relativos a temas jurídicos
plurais, tais quais: fato jurídico; interpretação do direito; aplicação do direito; prescrição;
decadência; preclusão; coisa julgada; orientações jurisprudenciais, entre outros, apoiados em
Pontes de Miranda, Miguel Reale, Tercio Sampaio Ferraz Jr., Willis Santiano Guerra Filho,
Clarice von Oertzen Araujo, Paulo de Barros Carvalho, entre outros.
Especificamente em relação ao tema do evento e do fato, a incursão é profunda na
origem das palavras, englobando noções problemáticas de etimologia, com apontamentos
em diferentes línguas para fins de se demonstrar o percurso etimológico de evento e fato na
história até se alcançar a gravação linguística prevalecente no português.
A fundação firme solidificada pela filosofia, semeiótica, semiologia e linguística
autoriza uma visualização mais “evidenciada” ou com orientação objetiva (base empírica,
materialismo) dos fenômenos jurídicos.
Faz-se uso de um dualismo, o qual se justifica somente para fins dogmático-
pedagógicos, entre summa realidade (summa rerum) e realidade semeiótica (interssígnica)
e, igualmente, entre evento absoluto e evento semeiótico, para fazer diferençar a perspectiva
12
externa do absoluto da realidade (summa realidade e evento absoluto) da perspectiva
semeiótica ou que se refere a signos (realidade semeiótica e evento semeiótico).
Outra distinção que se faz diz respeito ao meio de gravação do signo. Trata-se do
meio fisíco-semeiótico como sendo aquele canal do signo na perspectiva da palavra escrita,
por exemplo, mas também do meio psíquico-semeiótico como sendo o ponto de contato do
signo no altiplano da mente.
Ao se usar a predicação “semeiótico”, isso se faz não para predicar uma ciência, mas
sim como atributivo de signo – do grego σημεῖον (sēmeion). A visão que se quer fazer
prevalecer, no entanto, é aquela referente ao signo numa compreensão ampla que abarca,
tanto os signos escritos, falados e gestuais, como o signo na perspectiva do pensamento
(mente), aqui particularmente na sua faceta que permite conhecimento. Isso autoriza um
estudo ampliativo que não se restringe à linguagem, expandindo a visualização do direito
para dimensões além-fronteiriças do direito como linguagem.
No que se refere ao termo summa realidade, a ideia por detrás da nomenclatura
summa realidade é gravar a realidade num sentido de absoluto. “Summa” do latim
(OXFORD LATIN DICTIONARY, 1968, p. 1867) como summa rerum (a totalidade da
matéria), no sentido de “todo”, “totalidade”.
Nesse contexto, dentro do edifício do direito, o ponto de partida é o fenômeno
jurídico na perspectiva do que se chamou signo jurídico, mas com orietação objetivo-
multidimensional. A visualização que se tem de signo jurídico é, pois, ampliativa, não se
restringindo ao texto de lei. O estudo principia-se do signo jurídico em sua multiplicidade
de dimensões. Signo jurídico escrito, falado, gestual, bem como o pensamento jurídico numa
extensão que se acomoda no que se refere aqui a conhecimento jurídico.
A perspectiva de partida do signo que se tem aqui bebe na fonte da tríade peirceana,
porém, em uma linha que a aproxima dos elementos vislumbrados por Scotus, como é o caso
da haecceitas escotista, eis que se percebe o signo (e também o signo jurídico), igualmente,
no plano de uma “entidade positiva” – a qual determina a natureza daquilo ao qual ela
pertence. Nesse contexto, como se a summa realidade (summa rerum) necessitasse de uma
carga positiva – uma carga de positivação.
Dizer que o ponto de partida é o signo não significa que o panorama seja nominalista,
eis que aqui se quer privilegiar uma orientação objetiva – realismo empírico. Sabe-se que
uma das formas de comunicação do jurídido se faz fortemente com base no substrato
semeiótico, o qual, no entanto, para o que aqui se defende, nasce de uma experiência
13
objetiva, o que implica uma perspectiva que vai muito além do signo numa visão de signo
escrito, por exemplo.
O além-fronteiras do signo como experiência objetiva se baseia na ideia de
entrelaçamento que se destaca da teoria de Merleau-Ponty, com confluências em Lacan e
Žižek. Essa ideia exsurge para visualizar o homem como prolongamento do objeto e vice-
versa na diferença entre olho e olhar, no sentido de que esse olhar é justamente a intersecção
desse prolongamento, o quiasma, o coito que há no que se observa e o observador.
Disso decorre dizer que resta no observador, como numa simbiose, uma porção da
summa realidade. Há, pois, uma espécie de gravação. Daí, também, isso se estender ao signo,
cujo fundamento é uma ideia do homem, no sentido de que ali, igualmente, aparece algo
impresso, algo gravado. No signo jurídico, em uma ontologia indireta, também, pois, haveria
uma porção do real, sem a qual a comunicação jurídica não seria possível e, portanto, a
sobrevivência do direito em sociedade como fenômeno social que é.
Dessa visualização, coloca-se que o signo jurídico é uma espécie de signo gravador
e que o signo da linguagem cotidiana é um signo gravado. Em um, uma linguagem
gravadora e, em outro, uma linguagem gravada, que encontram meio e fim no
entrelaçamento com o objeto da summa realidade.
Isso se coaduna com o método abdutivo que se elege, eis que é chão firme nesse
estudo a noção de que realidade não é somente aquilo que é externo (summa realidade ou
realidade absoluta), mas também aquilo que é semeiótico, de modo que é possível, no
método abdutivo, investigar cientificamente a partir de signos, sem prejuízos de método e
resultado, tendo-se, ainda assim, uma orientação objetiva do que se estuda.
A ideia, no estudo, é edificar crença científica em direção de que o direito, nas
múltiplas perspectivas mencionadas, é organismo vivo que necessariamente tem de se
correlacionar, em alguma instância, com a summa realidade, a qual, no entanto, não deve ser
refletida no direito, devendo o direito, em verdade, gravá-la.
Outra ferramenta que se explora aqui para estudar o fenômeno jurídico é a ideia de
significado semântico e significado sintático, demonstrando-se, com base em Pottier, que a
díade saussuriana (significante e significado) pode ser ampliada, de modo que no significado
do signo há outra díade – a do significado semântico e do significado sintático, concepções
que podem ser aplicadas com acuidade para auxiliar no estudo do direito, máxime, no que é
relativo às ideias de vigência, eficácia, hierarquia, competência e capacidade de agentes,
entre outros tópicos.
14
Com tudo isso e sob a justificativa de que há dispersão científico-jurídica sobre o
tema na atual dogmática, objetiva-se uma contribuição à comunidade jurídica, a qual possa
fazer desvendar, ou auxiliar em direção a essa finalidade, qual é a correlação necessária do
direito com a realidade, por que ela deve existir com vistas à efetividade e eficácia das regras
jurídicas (signos jurídicos), e por qual motivo isso atende aos anseios da sociedade de direito
com mira firme, a partir de um direito como organismo simbiótico, na busca de uma justiça
convencionada – não com olhar intrassistêmico, mas sim com um tempero interdisciplinar,
extrassistêmico e interepistêmico.
15
PARTE 1 – REALISMO JURÍDICO
Nesta primeira parte do estudo, tem-se por objetivo abarcar o tema da realidade
extralinguística, o que aqui se designa “summa realidade” ou “realidade absoluta”, como um
ponto de partida para conhecer a realidade semeiótica, a qual está relacionada com o signo
em sentido amplo (não somente linguagem), e dentro da qual está, como espécie do gênero,
a realidade jurídica.
Nesse contexto, adentrar-se-á no tema do realismo como corrente de pensamento
filosófico – o que aqui se chama “realismo filosófico”, encontrando suporte, principalmente,
no realismo peirceano para as explicações que se fazem, desenvolvendo-se o estudo até se
cuidar do que se designa “realismo jurídico”, o qual envolve o que se chama “escola
estadunidense” e “escola escandinava” do realismo jurídico.
No desenvolvimento dos temas, diversos outros subtemas serão tratados nas
subdivisões que se fizerem necessárias, dentre as quais se pode destacar: função de verdade
aplicável à realidade jurídica e extrajurídica sob a perspectiva da concepção de verdade no
realismo peirceano; diferença da posição realista em relação à posição nominalista;
posicionamento de realidade (jurídica) e verdade (jurídica) dentro da fenomenologia
peirceana na divisão de primeiridade, segundidade e terceiridade; convenção na linguagem
cotidiana e na linguagem jurídica; proposição lógica, científica, jurídica e cotejo com as
normas jurídicas; e aplicação e interpretação no domínio do direito.
Para principiar o estudo, vê-se necessária uma investigação histórica, ainda que breve
e limitada temporalmente, do realismo como corrente filosófica, a qual não tem o objetivo,
desde já se esclarece, de esgotar com ares finalísticos um estudo histórico do realismo
filosófico, mas tão somente, como restará claro na sequência, tratar de algumas “escolas”
realistas de importância para o presente texto, desde a antiguidade até a idade
contemporânea.
Roga-se aqui por paciência, eis que se trata de estudo longo, mas absolutamente
necessário para fincar firmemente os pés na filosofia da realidade, trazendo compreensão
que é imprescindível para que, mais adiante, trate-se do tema do realismo jurídico e, pois, de
sua aplicação aos temas duros de importância para a dogmática nacional.
Diga-se, antes de começar, que o estudo filosófico pretende construir a fundação do
edifício do realismo jurídico com fundamento peirceano, de modo que a seleção dos textos
16
de pesquisa e autores é “tendenciosa”, eis que mira aprontar o caminho para clarificações
relativas aos usos e concepções peirceanas de realidade.
Por esse motivo que desde Peirce se desceu a Scotus e desse, irremediavelmente, a
Aristóteles e Platão. A doutrina kantiana é utilizada como um contraponto, tendo em vista a
importância especial da “Crítica da Razão Pura” para a construção do pensamento peirceano
e também de óbvias aproximações possíveis de se fazer com Kant acerca do tema da
realidade em um corte, como se verá, que se apoia mais no que se chama seu “realismo
empírico” do que na sua lógica transcendental.
1.1 Fundamentos Filosóficos do Realismo Jurídico
As divisões por época levadas a efeito na sequência jazem em parênteses após os
nomes das “escolas” do realismo de que se falará. A divisão se baseia na seguinte
nomenclatura: a) Idade Antiga (compreende-se de cerca de 4000 a.C. até 476 d.C., quando
ocorre a queda do Império Romano do Ocidente); b) Idade Média (entre o ano de 476 d.C.
até 1453, quando ocorre a conquista de Constantinopla pelos turcos otomanos e,
consequentemente, a queda do Império Romano do Oriente); c) Idade Moderna (é
considerada de 1453 até 1789, quando da eclosão da Revolução Francesa; d) Idade
Contemporânea (compreende-se de 1789 até aos dias atuais).
Os fundamentos filosóficos em direção ao realismo jurídico se fincam em algumas
escolas do realismo que aqui se designa “filosófico”. Não se teve a pretensão de esgotar o
tema, apresentando todas as escolas do realismo, mas tão somente aquelas que, para fins do
presente estudo, pareceram melhor fundamentar o realismo peirceano, o qual serve de viga
mestra para sustentação do edifício científico que aqui se pretende construir.
1.1.1 Realismo Platônico (Idade Antiga)
Traçar um apanhado histórico de determinada linha de pensamento é demasiado
complexo e não diz com o conteúdo precípuo do presente trabalho, de modo que o que se
faz aqui, no que diz respeito ao realismo, é uma tentativa de análise histórica a qual já nasce
frustrada.
Nesse contexto, quer se principiar pelo realismo platônico, máxime, pela diferença
em Platão do “realismo in re” (ou realismo moderado) e “realismo ante rem” (realismo
extremo). O estudo é baseado em excelente artigo de Guy Hamelin, publicado no Jounal of
Ancient Philosophy.
17
O embate mais que secular no palco da filosofia entre realistas e nominalistas
circunda a compreensão de universais e particulares, “entidades” que devem ser
previamente, ainda que de maneira breve, entendidas pelos leitores para que se possa seguir
o estudo do realismo platônico.
Nesse contexto, da maneira breve antecipada, diga-se que universal, segundo
Abbagnano (1998, p. 982), pode ter um significado objetivo no sentido de indicar “uma
determinação qualquer, que pode pertencer ou ser atribuída a várias coisas” e um significado
subjetivo no sentido de indicar “a possibilidade de um juízo (que diga respeito ao verdadeiro
ou falso, ao belo e ao feio, ao bem e ao mal etc.) ser válido para todos os seres racionais”.
Interessa aqui o primeiro significado. Nesse piso, Abbagnano (1998, p. 982) traz que
o universal pode ser vislumbrado sob duas perspectivas: a ontológica e a lógica. No que diz
respeito à primeira, universal “é a forma, a ideia ou a essência que pode ser partilhada por
várias coisas e que confere às coisas a natureza ou o caráter que têm em comum”. No que
diz respeito à segunda, é “o que, por sua natureza, pode ser predicado de muitas coisas”.
Nesse contexto, traga-se ainda o exemplo de Bates (2010, p. 3) do qual se podem
extrair explicações fecundas. Pense-se no crepúsculo e em uma rosa. Visualize-se que podem
ser vistos juntamente em um entardecer e que são ambos vermelhos. Assim, se o crepúsculo
e a rosa compartilham o mesmo tom de vermelho, então essa cor vermelha é um universal.
“Aquele tom existe [...] no crepúsculo e também num distinto, desvinculado objeto, a rosa,
ao mesmo tempo”.
A questão que se põe para compreensão dos universais refere-se à circunstância de
ser o tom de vermelho na rosa o mesmo tom de vermelho do crepúsculo ou simplesmente
um tom de vermelho semelhante em ambos. Bates (2010, p. 3) explica que a recorrência de
semelhanças elas mesmas não implica por si só a existência de universais.
Para notar a existência de universais, segundo Bates (2010, p. 4), é preciso se
perguntar se a semelhança entre coisas pode estar ao mesmo tempo em vários lugares. Se
uma moeda e um relógio são comparados, eventuais semelhanças compartilhadas não
permitem que essas entidades (moeda e relógio) estejam, em relação à eventual semelhança
compartilhada, em mais de um lugar ao mesmo tempo. O mesmo não se pode dizer de uma
cor. A cor pode estar em mais de um lugar e em várias entidades compartilhadas ao mesmo
tempo.
Outro ponto a se notar em relação aos universais é que um universal não é uma parte
menor de uma parte maior. Bates (2010, p. 4) traz que os universais têm uma capacidade de
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localização múltipla como característica principal. As peças de um quebra-cabeça não são
uma parte própria do todo que é o quebra-cabeça, ou seja, o mesmo quebra-cabeça em
localizações desvinculadas, mas sim partes diferentes, que pertencem a um todo, em
localizações desvinculadas.
Relativamente aos particulares, tem-se, em Lalande (1999, p. 797), para o que
interessa aqui, que particular é aquilo “que não pertence a todos os indivíduos de uma
espécie considerada, mas apenas a alguns deles ou mesmo a um só”. Além disso, Lalande
(1999, p. 797) traz que, em lógica, particular “é a proposição que diz respeito a alguns
indivíduos (indeterminados) de uma classe, ou mesmo a um só, se não for determinada”.
Não se quer adiantar nesse momento o sentido lógico de universal e particular, eis
que será devidamente tratado quando se estudar aqui o tema das proposições. Feita essa
introdução ao tema dos universais e particulares, volta-se ao realismo platônico.
Nesse contexto, traga-se que Hamelin (2009, p. 1) atenta para a circunstância de que
os autores mediáveis nomeiam a concepção de Platão acerca de universais de ante rem. Se
um universal é ante rem é porque ele é anterior na realidade e na existência aos particulares.
Aqui os universais seriam “coisas” transcendentes de existência anterior à dos particulares.
Aqui, segundo Hamelin (2009, p. 1), os universais seriam como que modelos matemáticos,
cujas formas ideais podem ser compreendidas pelo intelecto e podem se encontrar, de
maneira imperfeita, no mundo dos sentidos”. Um exemplo seria a forma geométrica do
círculo que não depende da existência de um círculo perfeito no mundo sensível.
Aqui haveria, segundo Hamelin (2009, p. 2), um “realismo extremo” em Platão,
diante do qual universais seriam o mesmo que as ideias que lhes dão fundamento, das quais
participariam os particulares correspondentes, por exemplo, “a Idéia de homem é a realidade
universal da qual participam todos os homens individuais”.
Hamelin (2009, p. 2) atenta para a circunstância de que “Ideia” nesse contexto:
não se refere a uma ideia subjetiva, enquanto noção ou conceito mental
individual. Em vez disso, trata-se de uma Ideia objetiva, independente da
minha mente, que constitui toda a realidade, da qual participam indivíduos
correspondentes. Daí o termo “realismo”, não epistemológico, mas, sim,
ontológico, melhor descrito pela expressão “realismo dos universais” (Destacou-se).
Hamelin (2009, p. 2) aponta que a subsunção única do realismo platônico ao dito
“realismo ante rem” não é verdadeira, haja vista que na obra de Platão podem ser
19
encontradas, ao menos duas concepções de universais: a dita “ante rem” e uma outra
chamada “in re” (no sentido de que se refere à coisa real).
Para apoiar a diferenciação entre o realismo in re e o realismo anti rem, Hamelin se
socorre de dois textos de Platão: Mênon (diálogo de Platão, no qual o autor se ocupa da
virtude) e Fédon (diálogo de Platão que retrata a morte de Sócrates, obra mais tardia na
cronologia do autor).
Analisando os escritos de Platão, com base na narrativa de Hamelin, extraiu-se, na
sequência, os seguintes trechos de Mênon (PLATÃO, 2001, p. 19) para suportar o que está
por vir:
MEN. Podes dizer-me, Sócrates: a virtude é coisa que se ensina? Ou não é
coisa que se ensina mas que se adquire pelo exercício? Ou nem coisa que
se adquire pelo exercício nem coisa que se aprende, mas algo que advém
aos homens por natureza ou por alguma outra maneira?
[...]
Eu próprio, em realidade, Mênon, também me encontro nesse estado. Sofro
com meus concidadãos da mesma carência no que se refere a esse assunto,
e me censuro a mim mesmo por não saber absolutamente nada sobre a
virtude. E, quem não sabe o que uma coisa é, como poderia saber que
tipo de coisa ela é? Ou te parece ser possível alguém que não conhece
absolutamente quem é Mênon, esse alguém saber se ele é belo, se é rico
e ainda se é nobre, ou se é mesmo o contrário dessas coisas? Parece-te
ser isso possível?
[...]
SO. Uma sorte bem grande parece que tive, Mênon, se, procurando uma só
virtude, encontrei um enxame delas pousado junto a ti. Entretanto, Mênon,
a propósito dessa imagem, essa sobre o enxame, se, perguntando eu,
sobre o ser da abelha, o que ele é, dissesses que elas são muitas e
assumem toda variedade de formas, o que me responderias se te
perguntasse: "dizes serem elas muitas e de toda variedade de formas e
diferentes umas das outras quanto ao serem elas abelhas? Ou quanto
a isso elas não diferem nada, mas sim quanto a outra coisa, por
exemplo quanto à beleza, ou ao tamanho, ou quanto a qualquer outra
coisa desse tipo? Dize: que responderias, sendo interrogado assim?
MEN. Eu, de minha parte, diria que, quanto a serem abelhas, não
diferem nada umas das outras.
SO. Se então eu dissesse depois disso: "nesse caso, dize-me e isso aqui,
Mênon: aquilo quanto a que elas nada diferem, mas quanto a que são
todas o mesmo, que afirmas ser isso?" Poderias, sem dúvida, dizer-me
alguma coisa?
MEN. Sim, poderia.
SO. Ora, é assim também no que se refere às virtudes. Embora sejam
muitas e assumam toda variedade de formas, têm todas um caráter
único, <que é> o mesmo, graças ao qual são virtudes, para o qual, tendo
voltado seu olhar, a alguém que está respondendo é perfeitamente possível,
penso, fazer ver, a quem lhe fez a pergunta, o que vem a ser a virtude. Ou
não entendes o que digo?
20
MEN. Acho que entendo sim. Contudo, ainda não apreendo, como quero
pelo menos, aquilo que é perguntado. (Destacou-se).
Fundamentado em Mênon, Hamelin (2009) explica que ali dois conceitos
fundamentais do realismo platônico na linha in re podem ser identificados: o de não-
diferenciação essencial e essência compartilhada.
A alegoria da abelha trazida por Sócrates no texto para explicar o que é virtude a
Mênon clarifica de maneira salutar o que se quer significar por realismo in re (ou realismo
moderado). Para Sócrates, a circunstância de ser abelha é imanente a todas as abelhas, é
dizer, trata-se de uma essência compartilhada pela classe das abelhas, sendo o mesmo que
dizer que, em relação à circunstância de serem abelhas, elas (abelhas) não diferem, o que
implica aqui uma não-diferenciação essencial.
É por isso que Hamelin (2009, p. 5) aponta que: “A essência ou a substância da abelha
é imanente às abelhas ou está in re, o que faz com que as abelhas não difiram ou não se
distingam umas das outras”.
Aqui o interpretado é que, em Mênon, Platão atribui ao universal o predicado de ser
único e geral a todos os seres (caráter único ou geral), mas que não é exatamente, por tal
motivo, necessariamente separado dos seres como particulares1.
Para entender isso, é preciso compreender o uso da palavra grega , a qual, na
versão ao português que aqui se utilizou do texto platônico, foi vertida como “caráter único”,
mas também pode ser compreendida como “caráter geral”, tendo ainda diversas outras
versões possíveis em Platão.
Nesse específico, Hamelin (2009, p. 6) esclarece que em Mênon a palavra grega
ganha o sentido de realidade não sensível que não tem diferença ontológica com os
indivíduos que recebem a sua natureza e o seu nome dela.
Hamelin (2009, p. 6) esclarece que “receber sua natureza” diz com uma “causa
ontológica” do universal em relação ao particular, sendo que “receber seu nome” diz com
uma “causa epônima” (no sentido de que empresta o nome) do universal em direção ao
particular.
Isso quer dizer que a causa ontológica e a causa epônima em relação a um particular
em Mênon não se diferenciam, de modo que se pode dizer que a natureza ou substância do
1 O uso do itálico se deve à distinção de alguns termos em relação a outros por conta de serem utilizados (os
que estão em itálico) com sentido diferente do habitual.
21
particular corresponde à definição do universal (lógico), ou como diz Hamelin (2009, p. 7)
“definir uma abelha na sua realidade particular também é definir uma espécie animal”.
De maneira muito mais simples, a conclusão aqui é que, trazendo a alegoria das
abelhas, abelhas na sua realidade (in re) de abelha (particular) não são distintas entre si, eis
que a elas se pode atribuir um caráter comum ( ), que é o seu universal (realidade não
sensível).
Portanto, corresponde dizer, em Mênon, que abelhas possuem uma natureza real
comum e um caráter universal comum, eis que universal e particular não são completamente
independentes. Segundo Hamelin (2009, p. 7), essa não diferenciação dos particulares
(como no caso das abelhas) leva à identidade (no universal), constituindo a problemática
básica dos universais e a fundamentação da teoria realista. Aqui, os particulares que
possuem uma característica comum por conta do universal são, pois, iguais entre si nessa
medida.
Finalmente, diga-se que Hamelin (2009, p. 6) aponta que o uso de em Mênon
se harmoniza com o uso da palavra grega no mesmo texto. A palavra grega
pode encontrar em português o uso de “substância”, sendo que em Mênon, conforme o autor
em questão, tem o sentido de realidade inteligível imanente aos seres sensíveis particulares
e concretos.
Vista a questão sob o ângulo do realismo in re (realismo moderado) no Mênon de
Platão, passa-se agora a analisar a problemática sob o ponto de vista do dito realismo ante
rem (realismo extremo na obra Fédon do mesmo Platão).
Veja-se abaixo trecho em Fédon que autoriza sacar a razão pela qual se trata de um
realismo ante rem (PLATÃO, 1972, p. 115):
EQUÉCRATES:
- E também a nossa, dos que lá não estivemos, mas que ouvimos agora o
teu relato! Dize-me, porém: como prosseguiu a conversa?
FÉDON:
- Se não me engano, depois de haverem concordado com ele nesse ponto
e admitido a existência real de cada uma das ideias, e igualmente que
os demais objetos, que delas participam, delas também recebem as
suas denominações, Sócrates perguntou o seguinte:
- Se disseres que Símias é maior do que Sócrates, mas menor do que Fédon,
não terás dito, acaso, que em Símias se encontram essas duas coisas:
grandeza e pequenez?
- Sim.
- Mas, na realidade - não é? - reconheces que nesta frase: "Símias é
maior do que Sócrates", o modo por que a linguagem se exprime não
22
corresponde à verdade e que indubitavelmente não pertence à
natureza de Símias o ser maior, pelo simples fato de ser Símias, mas
sim pela grandeza, na medida em que a possui, e tampouco se pode
dizer que seja maior do que Sócrates porque Sócrates é Sócrates, mas
unicamente porque Sócrates participa da pequenez, em relação à
grandeza dele?
- Efetivamente assim é.
- E, da mesma forma, também Fédon não o ultrapassa pelo simples fato de
ser Fédon, mas sim porque Fédon possui grandeza em comparação com a
pequenez de Símias?
- De fato.
- Ora, temos que Símias é chamado pequeno e também grande; está
entre os dois: submete sua pequenez à grandeza de um, para que este
o ultrapasse, enquanto que o outro apresenta uma grandeza que
ultrapassa sua pequenez. (Destacou-se).
Conforme aponta Hamelin (2009, p. 9), o uso da palavra grega aqui tem outra
aplicação, absorvendo o sentido de realidade não sensível, que constitui toda a realidade, da
qual os seres sensíveis são desprovidos, o que implica dizer que “somente a Ideia é real e
possui uma verdadeira existência, enquanto que os particulares que participam dela são
apenas participações, que sobrevivem, por assim dizer, por procuração”.
Segundo Hamelin (2009, p. 9), a substância ( ) dessa Ideia em Fédon tem o
sentido de “natureza ou essência de uma coisa, enquanto essa essência está concebida como
sendo ontologicamente diferente das realidades nomeadas a partir dela”.
Aqui uma diferença salta aos olhos no cotejo que se pode fazer com os sentidos que
foram atribuídos em Mênon, é dizer, há uma separação da Ideia com o sensível, pois que a
substância que com ela se harmoniza é diferente da realidade sensível, de modo que aqui o
universal não precisa corresponder em nenhum grau necessariamente com os particulares,
a exemplo do que se pode dizer das Ideias matemáticas, como no caso do círculo geométrico
não ter de corresponder ao círculo sensível, como mencionado anteriormente. Aqui, pois,
um realismo extremo (ou ante rem).
Ao se isolar o universal num reino autônomo (realismo ante rem) em relação ao
particular, acaba-se por remontar, igualmente, à separação da filosofia em domínios
diferentes trazida pelos estoicos, é dizer, na divisão em domínio físico, lógico e estético.
Ao se focar na diferença entre o domínio físico e lógico da filosofia estoica,
evoluindo-se para como se desenvolveram as teorias linguísticas contemporâneas,
principalmente aquelas baseadas numa visão nominalista, notar-se-á que elas se
fundamentam no domínio lógico da filosofia estoica, o que difere da evolução que se verifica
nas teorias científicas modernas, como no caso da física, química etc.
23
Isso, em termos de teoria da linguagem, causa uma imensa diferença de visualização,
máxime, no que toca à verdade lógica, a qual, como traz Yngve (1996, p. 17), não precisaria
encontrar evidência no sentidos para se estabelecer dentro do domínio lógico da filosofia
estoica.
Esse tipo de aproximação do tema dos universais e particulares dentro da teoria da
linguagem causa impactos contemporâneos importantíssimos, permitindo a formação de
verdades que não necessitariam encontrar piso na realidade sensível, o que também se
justifica sob o olhar do realismo ante rem no Fédon de Platão, mas o que diferiria da
visualização do tema no Mênon de Platão.
Nesse contexto de diferentes aproximações realistas em Mênon e Fédon, Hamelin
(2009, p. 10) esclarece que há, pois, uma realidade das Formas imanentes (realismo in re) e
uma realidade das Formas separadas (ante rem), clarificando que Forma tem o sentido de
caracteres gerais ( ).
No realismo in re, especificamente, conforme já apontado, tais caracteres gerais
(Forma) terão a função dupla ontológica e epônima, de modo que nomear algo deve implicar
uma relação ontológica com tais caracteres gerais (função ontológica), sendo que, se
constatada a presença dessa Forma (caracteres gerais) em um particular, poder-se-á nomeá-
lo segundo essa Forma.
Nessa linha, dito de outra forma: nomear é também, pois, corresponder caracteres
gerais (causa epônima) em uma dada coisa (particular), sendo que elementos de uma classe
(universal) também precisam encontrar correspondência ontológica.
Portanto, a verdade ontológica de uma coisa, sua substância ou essência, depende
(como causa epônima), nessa linha de pensamento, da correção da denominação, de modo
que, conforme aponta Hamelin (2009, p. 10), “somente o ouro verdadeiro pode ser chamado
ouro”. Aqui causa epônima e causa ontológica acabam por se confundir, pois a ontologia
dependerá da nomeação.
Finalmente, segundo traz Hamelin (2009, p. 11), Sócrates defendeu, essencialmente,
duas teses filosóficas, as quais se tornaram pedra mestre para o desenvolvimento da filosofia,
é dizer, o discurso indutivo e a definição universal.
Segundo o autor, essas metodologias socráticas têm por finalidade alcançar um
significado universal que, “talvez, não seja imanente nos particulares sensíveis, mas também
não está separado em um outro mundo” (HAMELIN, 2009, p. 12).
24
Essa é a visão socrática que, segundo Hamelin (2009, p. 12), aparece em Mênon, ou
seja, não há uma separação absoluta do universal em relação ao particular, o que se
distingue do que se pode verificar no Fédon, no qual a percepção é de um universal abstraído
que é separado do sensível.
Porém, dessa dicotomia aparente, Hamelin (2009, p. 12) conclui que “o uso do
exemplo das abelhas, no Mênon, para esclarecer o que é virtude é, certamente, mais
figurativo e concreto, mas parece conduzir Platão, por outro lado, a defender um realismo in
re dos universais”.
A explicação disso parece se erigir da própria alegoria das abelhas utilizada por
Platão no Mênon, eis que ao fazer uso de uma relação entre gêneros e espécies naturais,
reforçou-se mais, conforme aponta Hamelin (2009, p. 12), uma aceitação de uma “existência
real” dos particulares do que por intermédio de objetos ideais que correspondem
materialmente apenas imperfeitamente, como é o caso dos objetos matemáticos.
Entretanto, o que se pode verificar da percepção de Hamelin (2009) é que a separação
(em mundos diferentes) dos universais em relação aos particulares implica que a existência
dos primeiros não depende da existência dos últimos, o que poderia ser extraído de Fédon,
levando o realismo platônico, como tem prevalecido na visão tradicional, a um realismo ante
rem.
Essa visão tradicional do realismo platônico pode ser confirmada em Bunnin (2004,
p. 591), o qual esclarece que “o realismo platônico argumenta que universais existem num
reino deles próprios e são mais reais que os objetos sensíveis, os quais nunca são
completamente instanciados na experiência cotidiana”.
Porém, Hamelin batalha contra essa compreensão do pensamento platônico,
justificando-se em Mênon, como se viu, para trazer que essa visão tradicional do pensamento
platônica pode ser contestada no sentido de que, ao se utilizar do exemplo da relação entre
gêneros e espécies naturais (alegoria da abelha), o que exsurge é que o universal depende
em alguma instância do particular (em relação ao ser abelha – como gênero, as abelhas –
como espécies, não se distinguem entre si), de modo que não estaria o universal, ao menos
do que se pode depreender do Mênon, em um reino isolado, havendo, pois, um certo trânsito
entre reinos, do que decorre se tratar de um realismo in re e não ante rem.
Tal visão pode ser assemelhada, em certa medida, ao realismo aristotélico, no que
diz respeito aos universais in re, como se verificará na sequência.
25
Antes disso, importa dizer que a explanação sobre a diferenciação entre realismo in
re e realismo ante rem em Platão se justifica em uma visualização para fins do fenômeno
jurídico, na medida em que aqui o que se quer sustentar é que, diante do fenômeno jurídico
deve haver uma correlação entre a realidade jurídica (tipo de realidade semeiótica) e o que
aqui se chama summa realidade ou realidade absoluta.
Desse modo, não seria possível falar em universais (signo jurídico geral e potencial)
e particulares (signo jurídico particular ou singular separados em domínios diferentes, eis
que, se assim fosse, o direito seria mera vontade do legislador e/ou da autoridade competente
para o gravar sem fundamentação na vontade social e na realidade subjacente – a summa
realidade.
Portanto, a visão de um realismo in re em Platão com a visualização de universais,
por sua vez, também in re, esses entendidos como aqueles que, em alguma medida,
correspondem com particulares, não precedendo estes, como se pode sacar de Fédon, mas
sim se conformando a eles em algum grau, como se pode extrair de Mênon, implica que as
os signos gerais e potenciais (visualizados como universais) gravados pelo legislador, em
verdade, em alguma medida, têm de encontrar correspondência na summa realidade. Trata-
se, pois, de uma quetão de correlação.
1.1.2 Realismo Aristotélico (Idade Antiga)
O realismo aristotélico, segundo Bunnin (2004, p. 591), defende que “o universal não
tem uma existência separada propriamente, mas é uma estrutura embutida nas coisas (um
universal in re)”.
Para Faria (1986, p. 69), Aristóteles posiciona-se em apoio à plausibilidade de uma
ciência sobre o real concreto no sentido de que seria “possível conhecer o que é o real
concreto e mutável por meio de definições e conceitos que permanecem inalterados”.
Nessa linha, segundo Faria (1986, p. 69), para Aristóteles, o universo seria um todo
ordenado segundo leis constantes e imutáveis, de modo que tal ordem imutável regeria a
natureza e o que nela ocorre, mas também a política, moral ou estética. “Antecedendo, como
fundamento, as diversas ciências que se interessam por diversos aspectos do ser, existe uma
ciência ‘primeira’, a Sabedoria (depois designada como Metafísica), que estuda o Ser e
procura enunciar essa ordem subjacente e que torna inteligíveis todos os fenômenos”.
Em trecho de Metafísica, Aristóteles (apud FARIA, 1986, p. 71) critica Platão
trazendo que:
26
A mais importante questão que devemos colocar seria a de perguntar
enfim que socorro as ideias trazem para os entes sensíveis [...]. Com
efeito, elas não são para esses seres a causa de nenhum movimento e
de nenhuma mudança. Também não trazem nenhum concurso para a
ciência dos outros seres [...] nem para explicar a sua existência, pois
não são nem ao menos imanentes às coisas que delas participam; se
fossem imanentes, talvez pudessem assemelhar-se a causas dos seres,
como o branco é a causa da brancura no ser branco, entrando em sua
composição [...]. Por outro lado, os outros objetos não podem tampouco
provir das ideias, em qualquer dos sentidos em que se entende
ordinariamente essa expressão de. — Quanto a dizer que as ideias são
os paradigmas e que as outras coisas participam delas, isso não passa
do uso de palavras destituídas de sentido, e de metáforas poéticas. Onde então se trabalha com os olhos fixos nas ideias? Pode acontecer, com
efeito, que algum ser exista e se torne semelhante a um outro, sem que por
isso tenha sido modelado a partir desse outro [...]. Além disso, teríamos
diversos paradigmas do mesmo ser e, por conseguinte, diversas ideias
desse ser; por exemplo, para o homem teríamos o animal, o bípede, e ao
mesmo tempo também o homem em si. Além do mais, as ideias não serão
paradigmas apenas dos seres sensíveis, mas também das próprias
ideias, e, por exemplo, o gênero, enquanto gênero, será o paradigma
das espécies contidas nele: a mesma coisa será portanto paradigma e
imagem. E depois pareceria impossível que a substância fosse
separada daquilo de que ela é substância. Como então as ideias, que
são a substância das coisas, seriam separadas das coisas? (Destacou-
se).
Como se verifica do trecho de Metafísica, Aristóteles nega a possibilidade de ideias
serem a causa das coisas, de modo que somente poeticamente seria admitido dizer que coisas
participam de ideias, do que se conclui que as causas do ser são causas das ideias acerca
desse ser.
Desse modo, quais seriam as causas do ser? Em trecho de Metafísica, Aristóteles
(apud FARIA, 1986, p. 73-74) tem uma explicação:
É manifesto que a ciência que buscamos adquirir é a das causas primeiras
(pois que dizemos que conhecemos cada coisa somente quando
acreditamos conhecer sua causa primeira). Ora, as causas se dizem em
quatro sentidos. Num sentido, por causa entendemos a substância
formal ou quididade (com efeito, a razão de ser de uma coisa se reduz
em última análise à noção desta coisa, e a razão de ser primeira é causa
e princípio); num outro sentido, ainda, a causa é a matéria ou
substrato; num terceiro sentido, o princípio de onde parte o
movimento; em um quarto, enfim, que é oposto ao terceiro, é a causa
final ou bem (pois o bem é o fim de toda geração e de todo movimento).
(Destacou-se).
27
O que se nota é que a causa do Ser em uma medida ou outra se confunde com sua
substância, conceito este de fundamental importância para compreender a teoria aristotélica.
Nesse contexto, para fins da definição de Ser em relação à sua substância, em trecho de
Metafísica, Aristóteles (apud FARIA, 1986, p. 75) traz o seguinte:
O Ser se toma em múltiplos sentidos, segundo as distinções que fizemos
anteriormente, no Livro das Múltiplas Acepções [livro V da Metafísica]:
num sentido, significa isto que a coisa é, a substância, e, em outro
sentido, significa uma qualidade, uma quantidade ou um dos outros
predicados deste tipo. Mas, entre todas estas acepções do Ser, é claro
que o Ser em sentido primeiro é o “isto que é a coisa”, noção que não
exprime nada além da própria substância. Com efeito, quando dizemos
de que qualidade é tal coisa determinada, dizemos que é boa ou má, mas
não que tem três côvados, ou que é um homem: quando, ao contrário,
exprimimos isto que ela é, não dizemos que é branca ou quente, nem que
tem três côvados, mas que é um homem ou um deus. As outras coisas só
são chamadas seres porque são ou quantidades do Ser propriamente
dito, ou qualidades, ou outra afecção deste ser, ou alguma outra
determinação deste gênero. Também se poderia perguntar se o
passear, o sentir-se bem, o estar sentado são ou não são seres; e da
mesma forma em qualquer outro caso análogo: pois nenhum destes
estados tem por si mesmo naturalmente uma existência própria, nem
pode ser separado da substância, mas se há aí algum ser, será antes
isto quem passeia que é um ser, isto que está sentado, isto que se sente
bem. E estas últimas coisas nos parecem muito mais seres, porque há
sob cada uma delas um sujeito real e determinado: este sujeito é a
Substância, é o indivíduo, que é certamente o que se manifesta em tal
categoria, pois o bem ou o [sentado] nunca é dito sem ele. É, portanto,
evidente que é por meio desta categoria que cada uma das outras
categorias existe. Por conseguinte, o Ser em sentido fundamental, não
tal modo do Ser, mas o Ser falando em sentido absoluto, não poderia
ser senão a Substância [...]. Em verdade, o objeto eterno de todas as
pesquisas, presentes e passadas, o problema sempre em suspenso: o que é
isto, o Ser?, consiste no mesmo que perguntar: o que é isto, a substância?
[...] É por isso que, para nós também, o objeto principal, primeiro, e por
assim dizer único, de nosso estudo deve ser a natureza do Ser tomado neste
sentido. (Destacou-se).
Acerca dessa substância, esclarece Faria (1986, p. 74-75):
Por diversas vezes em sua Metafísica, Aristóteles afirma que o Ser pode
ser dito em diferentes sentidos: é, portanto, um conceito análogo. O
primeiro desses sentidos, o mais fundamental, o que corresponde mais
de perto àquilo que o Ser é em si mesmo, é a substância (ousia). A
substância pode, por sua vez, ser simples (Deus) ou composta (os
demais seres). A ciência do Ser é, portanto, a ciência do Ser imóvel e
perfeito, substância absolutamente simples — Deus — e, ao mesmo
tempo, ciência dos entes compostos, os entes da natureza, que estão em
permanente movimento. Enquanto ciência do Ser, a Filosofia é uma
ciência da substância. A substância é o indivíduo uno em si mesmo e
28
separado dos demais. (Destacou-se).
Portanto, a filosofia cuida, em última análise, de estudar a substância, essa
composição primeira e última de todos os seres. Nessa altura, o que deve ser trazido ao
debate, pois, diz respeito a ser essa substância, simples ou composta, um particular ou um
universal, fazendo uma correspondência e contraposição do realismo aristotélico com o
realismo platônico explicado anteriormente.
Nesse contexto, deve-se explorar a concepção de universal em Aristóteles, sem,
como já mencionado, esgotar a complexidade e extensão que o tema cuidaria, eis que é
somente auxiliar na historicidade dos fundamentos que aqui são construídos. Com essa
finalidade, aponta-se que, em Metafísica, Aristóteles (2002, p. 345-349) trata do tema do
universal nos seguintes trechos extraídos diretamente do original vertido ao português:
Diz-se que substância tem significado (1) de substrato, (2) de essência, (3)
do conjunto de ambos e (4) de universal.
[...]
Ora, alguns consideram que também o universal é, em máximo grau, causa
e princípio de algumas coisas. Por isso devemos discutir também este
ponto.
(a) Na realidade, parece impossível que algumas das coisas predicadas no
universal sejam substâncias. Com efeito, a substância primeira de cada
indivíduo é própria de cada um e não pertence a outros; o universal,
ao contrário, é comum: de fato, diz-se universal aquilo que, por
natureza, pertence a uma multiplicidade das coisas.
[...]
(h) Ademais, chama-se substância o que não é referido a um substrato; o
universal, ao contrário, sempre se predica de um substrato.
[...]
d) E depois, é impossível e também absurdo que um ser determinado
ou uma substância, caso derive de alguma coisa, não derive de outra
substância e de outros seres determinados, mas de uma qualidade. Se
fosse assim, o que não é substância, mas pura qualidade, seria anterior
à substância e àquele ser determinado. Mas isso é impossível: as
afecções não podem ser anteriores à substância nem pela noção, nem
pelo tempo, nem pela geração: se o fossem, elas deveriam também ser
separáveis dela.
[...]
f) E, em geral, se o homem é substância e se são substâncias todas as
coisas que se entendem nesse sentido, segue-se que nenhuma das partes
compreendidas na noção delas pode ser substância de alguma coisa,
nem pode existir separada delas, em outra coisa; quero dizer o
seguinte: não pode haver um <gênero> animal além das espécies
animais particulares, e o mesmo vale para todas as partes contidas nas
definições.
(g) Dessas reflexões fica evidente que nada do que é universal é
substância e nada do que se predica em comum exprime algo
determinado, mas só exprime de que espécie é a coisa. Se não fosse
29
assim, além de muitas outras dificuldades, surgiria também a do
“terceiro homem”. (Destacou-se).
Nesses trechos de Metafísica, apresenta-se clara a crítica de Aristóteles a Platão no
que diz respeito à sua concepção tradicional de que os universais estariam contidos em um
reino separado do reino dos particulares.
Para Aristóteles, universal não é substância, mas uma qualidade/predicado. Para ele,
em crítica à Ideia de Platão, não há existência em reino separado do reino dos particulares,
ou melhor, onde se pode encontrar a substância no sentido mais amplo e aristotélico do
termo pode-se predicar, sendo que tal predicação é o próprio universal.
Assim é, eis que o universal em Aristóteles pertence a uma multiplicidade de coisas
e, se a um termo geral se refere, é porque não pode ser uma substância determinada. Nesse
piso, universal tem sempre algo de indeterminado na predicação que lhe faz possível, eis
que a generalização, por óbvio, foge ao particular para poder definir sua “pertencibilidade”
ao gênero.
O universal aristotélico é, pois, um gênero, mas que de modo nenhum está separado
dos particulares (substância), eis que não pode haver um gênero além das espécies
particulares, e o mesmo valendo para todas as partes contidas nas definições do gênero,
como apontou Aristóteles.
Quando se fala em homem como universal (todos os homens) é para exprimir tão
somente que fulano A ou B pertencem à espécie dos homens (todos os homens), não se
atribuindo, em absoluto, substância, a partir do universal homem, a fulano A ou B, pois não
há substância na generalização.
Ao se falar de fulano A ou B, há uma determinação, pois substâncias são
determinadas. Ao se dizer que fulano A é homem, atribui-se ao sujeito um predicado, mas
debaixo do véu do predicado há um sujeito real – a substância, a qual não está no universal
in actu.
Poderia estar, por assim dizer, em potência, pois que não se pode predicar sobre
alguma coisa que não se conhece, ainda que o conhecimento não seja físico. Nem se pode
dizer de um homem que é feito de plástico, eis que esse predicado não pode predicar um a
tal sujeito, pois que denotar um homem de plástico não implica denotar um ser que pertença
à classe dos homens, que são seres feitos de carne e osso – é um particular que não pertence
àquele universal.
Pode-se falar de uma estrela distante, mas somente na medida em que a conheça,
ainda que nunca se tenha estado lá, ainda que nunca se tenha tocado suas propriedades.
30
Alguma característica dessa estrela deve-se conhecer para chamá-la “estrela”, caso contrário,
nem ao menos se poderia falar sobre ela.
Plutão era chamado planeta e depois foi renegado à classe dos planetas anões. O que
houve com Plutão? Absolutamente nada! Houve que não se conheciam todas as
características de Plutão, de modo que ele foi denotado a pertencer à classe dos planetas, em
um momento, sendo que, posteriormente, foi renegado à classe dos planetas anões por não
reunir todas as características para ser denotado à classe dos planetas.
O que não se pode dizer é que não se conhecia Plutão absolutamente, motivo pelo
qual ele teria sido erroneamente classificado. Algumas características de Plutão eram
conhecidas, mas não todas. Se algumas eram conhecidas, dá-se direito a se falar de Plutão.
Agora, não se dá direito a se falar de algo cujas características não são, em absoluto,
conhecidas, mesmo que não se afaste a possibilidade desse algo existir, ser real.
Em Aristóteles, o que se verifica, pelo que aqui se interpreta, é que ele se distancia
do realismo ante rem que se pode verificar no Fédon de Platão, aproximando-se do realismo
in re do Mênon, eis que seus universais são, ao fim e ao cabo, em certa medida, universais
in re.
Faz-se correspondência com a alegoria das abelhas do Mênon. O “ser abelha”, em
relação às abelhas, é compartilhado por todas elas, de modo que se trata de uma característica
comum a todos os particulares que pertencem à classe das abelhas.
Porém, isso não quer dizer que o gênero abelha (o ser abelha que é compartilhado)
seja separado totalmente do particular (uma abelha de certo tamanho e cor). O universal in
re é um padrão comum das coisas que se pode falar, pois se conhece alguma característica
delas.
Como alertado por Aristóteles, no trecho já apresentado da Metafísica, atribuir
predicados a substâncias em relação às quais não há um padrão comum compartilhado no
universal é admitir o problema do terceiro homem e não pode haver um <gênero> animal
além das espécies animais particulares, e o mesmo vale para todas as partes contidas nas
definições.
Ora, se o universal (gênero) não há além dos particulares (espécies), isso implica
que não há uma separação entre universal e particular tão restrita como poderia
apregoar Platão em Fédon, eis que seria admitir que um terceiro homem há (algo como
um homem de plástico ou um Plutão que é ao mesmo tempo planeta e planeta anão).
31
Isso feriria de morte um dos princípios mais caros à filosofia aristotélica – o princípio
da não-contradição: “é impossível que o mesmo atributo pertença e não pertença ao mesmo
tempo ao mesmo sujeito, e na mesma relação” (FARIA, 1986, p. 73).
Bem, como se nota, o universal in re aristotélico é outro exemplo, ao lado do realismo
in re que se pode sacar do Mênon de Platão, da ligação entre universal e particular. No
domínio do direito, como se quer aqui defender, essa conexão é absolutamente necessária
sob pena de se conter no signo geral e potencial do legislador a gravação de “terceiros
homens” ou gêneros que não encontram correspondência com particulares do mundo.
Gravação de universais com tais características romperia a dinâmica necessária, a
qual se pretende ter como fundamentação desse trabalho no sentido de que deve haver uma
uma correlação “real” entre universais e particulares, a qual é a base do realismo que aqui
se escuda.
1.1.3 Realismo Escotista (Idade Média)
Para se compreender o que se chama aqui realismo escotista, é preciso estabelecer
antes a que escola filosófica e que contexto histórico Duns Scotus pertencia: a escolástica.
A escolástica é definida por Bunnin (2009, p. 622) como:
A filosofia dominante no mundo intelectual medieval. Começou no quinto
século com o influenciador comentário sobre os trabalhos lógicos de
Aristóteles por Boécio, e durou [até] o meio do século dezessete. O apogeu
da escolástica aconteceu do século onze até o século treze, quando as
universidades de Paris e Oxford foram fundadas e a filosofia ocidental
tradicional reproduzida ela mesma por meio da leitura e comentários sobre
o trabalho dos autores antigos principalmente Aristóteles, cujos trabalhos
eram traduzidos ao Latim nesse período. O mais festejado expoente da
filosofia escolástica, quem também produziu mais comentários sobre
Aristóteles, foi Thomas de Aquino. Outros proeminentes escolásticos
incluíam Abelardo, Buridan, Duns Scotus, William de Ockham e Suárez.
A maior característica da escolástica é tentar conciliar o conflito entre
a razão e a fé, tornando o pensamento Grego, especialmente da
doutrina de Aristóteles, consistente com a teologia Cristã, e por
empregar a filosofia para dar suporte à teologia. (Destacou-se).
Nesse piso, a preocupação dos escolásticos, entre eles Duns Scotus, era adaptar o
pensamento grego, principalmente de Aristóteles, à teologia cristã. Nesse contexto, diga-se
que a leitura de Duns Scotus para fins do presente trabalho se justifica, haja vista a
importância de seu pensamento no que diz respeito ao realismo peirceano, o qual é uma das
bases científicas firmes utilizadas para se alcançar as conclusões do presente trabalho.
32
O ponto alto do realismo escotista é o designado “princípio da individuação”, o qual
autoriza ressaltar diferenças específicas entre coisas, tornando-as individuais. Partindo do
pressuposto da existência do universal, surge a problemática acerca dos mecanismos ou
princípios a serem manejados para fins de se permitir a individualização das coisas. É a essa
problemática que a teoria da individuação de Scotus procura trazer luz.
A problemática do universal já foi introduzida anteriormente quando se falou do
realismo platônico. Lembre-se aqui que haveria um objeto não linguístico que é comum a
outros objetos. Se alguém diz que A é fraco e B é forte e é possível atribuir fraqueza e força
a outros indivíduos, isso implica que o atributo (predicado) que se confere a A e B é um
atribuível a outros sujeitos e que possui uma mesma “semanticidade”. Essa multiplicidade é
um universal não do atributo em si, mas do todo de objetos não linguísticos para os quais o
atributo pode ser predicado.
Isso lembra a ideia de Platão no sentido de um “algo” objetivo, multiforme, com
significação de “ideia objetiva”. É o mesmo que dizer que o universal não está na linguagem
em si, mas na objetividade multiforme do real, ao qual a linguagem como atributo pode ser
predicada. Algo próximo do significado semântico na linguística de Pottier, o qual será
explicado mais adiante neste estudo.
Ao se trazer a visão sobre os universais dentro do embate entre realistas e
nominalistas, o que se pode dizer é que a diferença fundamental é que um nominalista traria
que “força” e “fraqueza” são apenas termos da lógica, considerados sintaticamente em uma
sentença como predicado de um sujeito sem correspondência objetiva.
Nesse contexto, deve-se girar para dizer que, para os realistas, em verdade, “força” e
“fraqueza” são predicados de propriedades comuns numa objetividade multiforme. Essas
propriedades predicadas pela linguagem são as universais, mas não só pela linguagem o são.
O ponto de controvérsia aqui pode se erigir da referência à linguagem em câmbio à
referência às coisas em si. Explica-se: a “semanticidade”, por exemplo, nas palavras “para”
e “para” pode ser distinta conforme sua sintaxe – uma pode ser preposição e outra terceira
pessoa do singular do presente do indicativo.
Quando se foca somente na representação (aspecto linguístico-sintático), o que se
tem sob o olhar é uma predicação. Se, no entanto, há um giro analítico para se olhar a
propriedade naturalmente considerada, ou seja, lançam-se os olhos menos sobre a linguagem
e mais sobre a ontologia da coisa, o que se verifica é que propriedades podem ser comuns
na lei natural, diante de uma causação.
33
No entanto, segundo Bates (2010, p. 10), Scotus não chama tais propriedades comuns
na causação da lei natural de universais, mas sim de naturezas comuns. Misturando-se a cor
vermelha com a cor verde tem-se amarelo. Aqui o que há é uma causação proveniente de
uma relação entre propriedades de coisas.
Conforme traz Bates (2010, p. 10), Scotus chamou isso de geração unívoca. Nela
não há relação de predicados na sintaxe da linguagem, mas sim relação de propriedades na
natureza das coisas. Assim, vermelho com verde gerar amarelo é um tipo de causação de
geração unívoca. Pó cósmico gera estrelas que se volvem pó cósmico que gera mais estrelas
em uma geração unívoca. Há uma natureza comum nessa sucessão generativa.
Sobre o tema, Scotus (1973, p. 401) traz:
28 Ademais:
Mesmo se nenhum intelecto existisse, fogo ainda geraria fogo e destruiria
água. E haveria alguma real unidade de forma entre o gerador e o gerado,
de acordo com a qual unidade de geração unívoca ocorreria. Porque o
intelecto que considera um caso de geração não faz a geração unívoca, mas
a reconhece como unívoco. (Destacou-se).
No exemplo do fogo gerando fogo, o que se verifica, segundo Scotus, é que fogo-
gerador e fogo-gerado, ou criador e criatura, possuem algo em comum – uma “real unidade
de forma”. Isso é a natureza comum.
Além disso, Scotus traz que não é o intelecto que “cria” a geração unívoca das coisas
em sua natureza comum, reconhecendo somente sua ocorrência como tal. Aqui já se vê com
força uma visão realista de Scotus em comparação com uma visão nominalista, haja vista
que contempla a geração das coisas fora do intelecto.
É preciso lembrar que a discussão que Scotus trava tem por objetivo provar a
distinção pessoal nos anjos, o que ele decidiu fazer baseado na distinção individual nas
substâncias materiais. A pedra de toque da discussão gira em torno da causa que permite a
individuação em coisas – o princípio da individuação escotista. Na linha escolástica, Scotus
aplica o pensamento grego, com contornos próprios, à teologia cristã.
Um dos problemas que Scotus enfrenta para provar seu princípio da individuação diz
respeito à diferença do real em relação ao numérico, bem como em relação à oposição entre
coisas. Quando se trata de uma coisa, o que resta é saber o que de real existe nesse número
da coisa. Outro problema é saber a diferença entre quando se aponta para “essa” coisa e
quando se aponta para “aquela” coisa. O esseísmo (thisness) e qual o seu impacto em relação
à realidade é uma das perguntas a serem respondidas.
34
Sobre o tema, Scotus (1973, p. 400) deduz:
23 Além disso, em sexto:
Pois, se toda unidade real é numérica, então toda diversidade real é
numérica. Mas, o consequente é falso, pois toda diversidade numérica, na
medida em que é numérica, é igual, - e assim tudo seria igualmente
distinto; e, então, segue-se que o intelecto não poderia mais abstrair
algo comum de Sócrates e Platão, do que de Sócrates e da linha, e
qualquer universal seria uma pura ficção do intelecto. (Destacou-se).
Para resolver o problema, Scotus (1973, p. 401) se fundamenta em Aristóteles,
trazendo que, “porque uno e múltiplo, o mesmo e o diverso são opostos; ora, quantas vezes
se disser um dos opostos, tantas se dirá também o outro; portanto, a cada unidade
corresponde sua própria diversidade”.
Além disso, conclui que (SCOTUS, 1973, p. 401):
25 Prova-se em segundo, pois cada extremo de qualquer diversidade é em
si uno, e no modo pelo qual é uno em si, no mesmo modo parece ser diverso
do outro extremo, de modo que a unidade de um extremo parece ser
por si a razão da diversidade do outro extremo.
26 Confirma-se também de outro modo, pois, se só há nesta coisa a
unidade real numérica, qualquer unidade que estiver nesta coisa é, por
si, una em número; portanto, este e aquele, de acordo com toda a
entidade neles, são primeiro diversos, pois são diversos que não se
reúnem de nenhum modo em nada de "uno".
27 Confirma-se também, pelo fato de que a diversidade numérica é
este singular não ser aquele singular, suposta, no entanto, a entidade de
cada extremo. Ora, tal unidade cabe necessariamente ao outro extremo.
(Destacou-se).
O que quer parecer justificar Scotus é que uma espécie de “esseísmo” é que é a
própria razão de existência da oposição “daquela” outra coisa, o que implica a diversidade
em número entre coisas.
O singular dá razão ao plural e a oposição à posição, de modo que é na diferença,
inclusive em número, que se podem individualizar coisas, ainda que naturezas comuns se
possam atribuir entre elas. Coisas, para Scotus, tem substância material e é desta, também,
que se pode partir para a individuação.
Nesse contexto, segundo Bates (2010, p. 14), Scotus trata as substâncias materiais
das coisas como “todos mereológicos com partes próprias, uma da qual é a forma e a outra
da qual é a natureza comum”.
Um exemplo pode elucidar as coisas. Pense-se em um carro. Carros têm substâncias
materiais. Carros têm características parecidas, mas ao mesmo tempo diferentes. São feitos
35
de partes parecidas e ao mesmo tempo diferentes. Têm formas parecidas e ao mesmo tempo
diferentes.
Focando na forma, um carro de fórmula 1 tem uma formatação diferente em suas
linhas em comparação a um carro de passeio. A forma de uma coletividade de carros é uma
forma geral aplicável aos carros que os diferencia, por exemplo, das linhas que formam uma
moto. A forma substancial não é a forma coletiva dos carros que os diferencia da forma das
motos, mas a forma particular do carro de fórmula 1 que o diferencia de um carro de passeio,
por exemplo.
Nesse piso, nos termos do que expõe Bates (2010, p. 14), Scotus distingui uma forma
substancial de uma natureza comum. Forma substancial seria um constituinte – uma parte
mesma, de uma substância material, sendo que a essência da coisa seria a natureza comum.
Segundo Bates (2010, p. 61), no escotismo a forma da substância é diferente da sua
essência, sendo que é somente essa última a qual se pode referir como substância material,
lembrando-se que Scotus mesmo somente fala em natureza e não natureza substancial, sendo
forma substancial um termo usado por Bates.
Para Scotus, naturezas comuns são essências, o que se opõem a formas singulares.
Conforme aponta Bates (2010, p. 61), para ele há naturezas substanciais nas coisas que são
diferentes de formas substanciais. Naturezas substanciais são o que constitui as formas
substanciais, sendo que estas últimas são “a forma da parte” de uma substância material. Ao
contrário, uma natureza substancial é “a forma de um todo” de uma substância material.
Na sua teoria, Scotus enxerga as entidades do mundo material nem como universal
nem como particular. Segundo Bates (2010, p. 22), Scotus sustenta que as entidades são
comuns, é dizer, tem uma natureza comum e isso não é nem universal e nem particular.
Sobre a natureza comum, Bates (2010, p. 22) traz que:
Uma natureza comum é um ser real, uma entidade nas coisas às quais
ela pertence como uma parte própria. Scotus pensa que apenas sendo
indiferente – dela mesma nem universal nem particular, mas
potencialmente ambos – ela pode realizar a díspare tarefa alocada a
ela, ou seja, ser um poder ativo causal nos particulares, e um princípio
da compreensão humana, tarefas que ele argumenta nem um universal
nem um particular poderiam sozinhos realizar. (Destacou-se).
Como se verifica, a ideia de uma natureza comum em Scotus se confunde com a
“existência” material de entidades nas coisas como parte própria dessas coisas. Essa
36
entidade, que é materialmente própria à coisa e comum em coisas diferentes, para Scotus,
não é nem universal e nem particular, mas potencialmente tanto universal como particular.
Nesse contexto, Scotus (1973, p. 407) traz que:
38 Disto, fica clara a refutação do dito que "o intelecto [...] faz a
universalidade nas coisas", pelo fato de que pode ser dito de toda
"qüididade" [quod quid est] existente na imagem que é tal que não lhe
repugna estar em outro, e pelo fato de que desnuda a "qüididade" [quod
quid] existente na imagem, - pois, em qualquer lugar que esteja antes de
ter o seu objetivo no intelecto possível, seja na coisa seja na imagem, tenha
ser certo ou deduzido pela razão (e, assim, não por alguma luz, mas sempre
seja tal natureza por si à qual não repugna ser em outro), ainda não é tal ao
qual caiba em potência próxima ser dito do que quer que seja, mas só está
em potência próxima no intelecto possível.
Há, portanto, na coisa um "comum", que não é de si este, e, por
conseguinte, não lhe repugna de si o não-este. Mas, tal comum não é
universal em ato, pois falta aquela indiferença de acordo com a qual o
universal é, de uma maneira completa, universal, de acordo com a
qual, a saber, o mesmo, por alguma identidade, é predicável de
qualquer indivíduo, de tal modo que qualquer um seja ele. (Destacou-
se).
A ideia de Scotus acerca do “comum” nas coisas que não é nem universal e nem
particular é complexa. Ele parece fazer crer que a predicação às coisas possível desde o
universal é diferente da natureza comum das coisas2. Esta é mais densa que o universal,
implicando diferença nas coisas, pois é comum acerca de uma unidade real e não de várias
delas.
Além disso, para Scotus (1973, p. 408):
39 Em relação à segunda objeção - de Damasceno - digo que do modo pelo
qual na divindade o "comum" é realmente uno, deste modo o comum não
é realmente uno nas criaturas. Lá, com efeito, "comum" é singular e
individual, pois a própria natureza divina é de si esta, e deste modo
fica claro que nenhum universal é realmente uno nas criaturas; pois
sustentar isto, seria sustentar que alguma natureza criada não-
dividida é predicada de muitos indivíduos por uma predicação que diz
"isto é isto", assim como se diz que o Pai é Deus e o Filho é o mesmo
Deus. Nas criaturas, porém, há algum comum uno em unidade real,
menor que a unidade numérica, e este "comum" não é assim um
comum que seja predicável de muitos, ainda que seja assim um comum
que não lhe repugna3 ser em algo distinto daquilo no que é. (Destacou-
se).
2 “Coisa” nesse trabalho tem o uso de objeto físico. 3 Entede-se aqui que o que Scotus quer dizer com “não repugnar” é “ser compatível”.
37
Assim, a natureza comum é uma entidade da substância material das coisas, mas
menos densa que a unidade numérica do singular, mas mais densa do que um universal, pois
implica certa diferenciação nas coisas.
Explorando-se a substância material, ou seja, na perspectiva da matéria, há dois
conceitos importantes aplicáveis ao escotismo que precisam ser examinados: o conceito de
prime matter e de forma substancial.
Nesse contexto, Bates (2010, p. 46) traz que a prime matter é “uma coisa básica sem
reais características particulares como cor e peso, mas com a potencialidade de ter tais reais
características. [...] vai junto com a forma da substância material para fazer possível que a
substância como um todo venha a existir”.
Bates (2010, p. 46) traz que a prime matter “subjacente a uma forma de substância
pode existir sem aquela forma, e sem qualquer forma em absoluto”. Prime matter é um
substrato para a geração de substâncias, mas não é substância em si.
Dentro da substância material encontram-se prime matter de uma lado e forma
substancial de outro. A diferença está no que se compartilha. O exemplo dado por Bates
(2010, p. 46) é fecundo.
Adaptando-se um pouco o exemplo de Bates, pense-se que João e Maria têm corpo
e alma cada qual de um lado em uma divisão imaginária. Uma linha relacionada ao corpo de
João e Maria, sendo João e Maria humanos – uma substância material, desceria até a prime
matter compartilhada, ou seja, a materialidade do corpo de João e Maria.
Do outro lado da divisão imaginária (lado da alma), uma outra linha também
imaginária desceria até a essência compartilhada dentro da forma substancial, ou seja, sua
humanidade. Do lado da alma há forma substancial e no lado do corpo há prime matter.
A materialidade descende do corpo e a humanidade descende da alma. Da primeira
decorre e se compartilha a prime matter das substâncias materiais e da segunda decorre e se
compartilha a essência, dentro da forma substancial, das substâncias materiais. Os
compartilhamentos são diferentes e prime matter não se confunde com forma substancial.
Visto isso e seguindo sua linha de raciocínio acerca da natureza das substâncias
segundo Scotus, Bates (2010, p. 58) traz que isso têm sua própria unidade separada do
intelecto, de modo que não se confunde com o conceito de universais, o qual é produzido
pelo intelecto.
38
Nos termos de Bates (2010, p. 43), Scotus assevera que a experiência do
conhecimento de uma coisa ou de uma qualidade é uma noção mais geral do que o objeto
primeiro e não pode ser atribuída à faculdade dos sentidos:
Podemos ver esse homem ou aquele homem, mas não podemos ver ou
escutar o universal humano, não importa quão longe por quanto tempo
procuremos. Do mesmo modo, quando alguém vê uma superfície
vermelha, a vermelhidão da superfície não é um universal, porque ela
tem uma localização definida num lugar e a um tempo. O que quer
que seja que sentimos têm condições individuais materiais, existindo
em um lugar ou a um tempo, o qual não pode pertencer a um universal.
Mais uma vez, nenhuma faculdade de sentido pode carregar alguma coisa
fora do seu alcance.
[...]
cognição de universais de alta ordem, como o conceito de ser, está fora do
alcance de qualquer sentido. O que sentimos é sempre apenas esse e aquele
ser.
[...]
enquanto o estado de compreensão pode ser apenas realmente
universal, nenhuma parte material de um indivíduo pode ser
realmente universal. Se alguma parte material de um indivíduo pudesse
conhecer um universal ela teria a capacidade de processar o real universal.
Scotus presumi que nenhuma parte material tem essa potencialidade, já que
toda parte material deve ser individual ao invés de universal. Partes
materiais não podem evitar estarem localizadas num lugar definido e
a um tempo definido, e o que quer que seja que esteja localizado deve
ser individual. (Destacou-se).
Nesse contexto, o que se depreende é que universais não podem ser partes materiais
de coisas, haja vista que universais não estão em um lugar definido a um tempo definido e
somente coisas materiais individualizáveis podem assim estar.
Bates (2010, p. 44) traz, ainda, que: “O que se sustenta é que o objeto da cognição
intelectual humana deve ser uma entidade incorpórea. Como ‘toda outra forma é estendida’
em um ser humano, esse objeto imaterial ‘não pode ser nada diferente da alma intelectual”.
Portanto, o que se tem, segundo Scotus, é que o estado de compreensão é universal,
o que não se confunde com um estado material de coisas, porque estados materiais de coisas
não podem ser universais, sendo que o que permite esse conhecimento do mundo é uma
espécie de alma intelectual.
Bates (2010, p. 58) esclarece que o uso de “unidade” feito por Scotus é diferenciado
do sentido comum, eis que contempla uma universalidade e uma singularidade como
unidades. Para ele, a singularidade, no entanto, é uma unidade maior do que a universalidade.
Para entender isso, diga-se que se alguém pensa em uma unidade de uma coisa
qualquer que pode ter uma coletividade, essa singularidade é uma unidade. Volte-se ao
39
exemplo da abelha no Mênon de Platão. Uma abelha é um singular, ou um tipo de unidade
– uma singularidade. Porém, o universal “abelha” – a circunstância de ser abelha, não pode
ser uma singularidade – um tipo de unidade singular.
Como se disse, a circunstância de ser abelha é multilocal e multitemporal, v.g.: há a
abelha A que é amarela clara e grande e há a abelha B que é mais escura e pequena. Tanto
abelha A como abelha B compartilham a circunstância de ser abelha, mas a abelha A não se
estende à abelha B; são singularidades diferentes.
Pense-se que o todo maior não é o universal que se espalha pelas abelhas A e B, mas
sim a própria abelha A e a própria abelha B como singularidades, pois uma pequena parte
comum espalhada e dispersa é menor e menos densa que uma grande parte do todo que é a
abelha na sua singularidade.
É nessa linha que Scotus (1973, p. 402) explica que:
30 Assim também, [...] alguma unidade real está na coisa, sem nenhuma
operação do intelecto, menor que a unidade numérica ou que a
unidade própria do singular, "unidade" que é da natureza de acordo
consigo mesma, - e de acordo com esta "unidade própria" da natureza,
na medida em que é natureza, a natureza é indiferente à unidade da
singularidade; portanto, não é, de si, una, naquela unidade, a saber,
na unidade da singularidade. (Destacou-se).
Como se nota, para Scotus a unidade própria da natureza não é exatamente uma
unidade da coisa numericamente estabelecida, eis que se refere a algo menor em relação à
própria singularidade da coisa, tratando-se de “algo” precedente à coisa em si.
É por isso que Scotus (1973, p. 403) traz que esse “algo”:
32 [...] ainda que nunca seja realmente sem algum destes, de si não é algum
destes, mas é naturalmente anterior a todos estes, - e de acordo com a
prioridade natural é "aquilo que é" por si objeto do intelecto, e por si,
como tal, é considerado pelo metafísico e é expresso pela definição; e
as proposições "verdadeiras do primeiro modo" são verdadeiras em razão
da qüididade assim tomada, pois nada é dito "por si no primeiro modo"
acerca da qüididade a não ser o que esteja incluído nela essencialmente, na
medida em que ela é abstraída de todos estes, que são naturalmente
posteriores a ela. (Destacou-se).
Como se vê, no trecho acima, Scotus trata de um “algo” (como unidade da natureza)
que é precedente ao singular numa proporção numérica deste, de modo que, o que se pode
dizer, é que se refere a um “algo” a priori de certo modo que permite o intelecto conhecer
as coisas.
40
Scotus (1973, p. 404) fulmina da seguinte forma:
33 Com efeito, ainda que ela seja inteligida sob a universalidade como sob
o modo de a inteligir, a universalidade não é parte do seu conceito
primeiro, pois não é conceito do metafísico, mas do lógico, (com efeito,
o lógico considera as segundas intenções, aplicadas às primeiras de
acordo com ele próprio). Portanto, a primeira intelecção é "da
natureza", de maneira que não é co-inteligido nenhum modo, nem
aquele que é seu no intelecto nem aquele que é seu fora do intelecto;
ainda que a universalidade seja o modo de inteligir deste inteligido,
não é o modo inteligido! (Destacou-se).
Ainda sobre a diferença da universalidade e da singularidade, Scotus aponta para
uma primeira intelecção da “natureza das coisas” que não está nem dentro nem fora, mas
que é o modo de inteligir da universalidade, mas não o que este “modo de inteligir” é como
objeto.
Assim, a primeira intelecção que é possível é aquela possível pelo metafísico porque,
pelo que se interpreta aqui de Scotus, é da natureza das coisas e a priori. Já a segundo
intelecção que autoriza uma universalidade não é como é possível por conta do metafísico,
mas sim do lógico, eis que aplica a segunda intelecção à primeira intelecção numa operação.
Exsurge aqui clara uma associação com a primeiridade peirceana que será explicada
mais adiante, como essa qualidade da coisa que permite uma segunda intelecção, que é do
lógico e não do metafísico, e que autoriza, de um modo ou de outro, entrelaçar-se com uma
realidade.
Scotus (1973, p. 404-405) conclui da seguinte forma:
34 E assim como, de acordo com este ser, a natureza não é de si universal,
mas a universalidade advém a esta natureza segundo sua primeira razão,
segundo a qual é objeto, - assim também na coisa exterior, onde a
natureza está com a singularidade, esta natureza não é, de si,
determinada à singularidade, mas é naturalmente anterior à própria
razão que a restringe àquela singularidade, e, na medida em que é
naturalmente anterior àquilo que a restringe, não lhe repugna ser sem
aquilo que a restringe. E assim como o objeto no intelecto teve verdadeiro
ser inteligível de acordo com esta anterioridade dela e a universalidade,
assim também na coisa a natureza tem um verdadeiro ser real externo
à alma de acordo com aquela entidade, - e de acordo com aquela
entidade tem uma unidade que lhe é proporcional, que é indiferente à
singularidade, de tal modo que não repugna de si àquela unidade que seja
colocada com qualquer unidade de singularidade (logo, entendo deste
modo que "a natureza tenha uma unidade real menor que a unidade
numérica"); e ainda que não a tenha de si, como se fosse interna à razão
da natureza (pois "eqüinidade é somente eqüinidade", de acordo com
Avicena no livro V da Metafísica), aquela unidade é uma afecção própria
41
da natureza de acordo com sua primeira entidade, e, por conseguinte, nem
é por si "esta" intrinsecamente, nem de acordo com a entidade própria
necessariamente incluída na própria natureza de acordo com a primeira
entidade dela. (Destacou-se).
Bem, vale a pena um esclarecimento detalhado para fixar a compreensão. Scotus quer
significar que a unidade de uma natureza substancial (como a abelha A ou B), conforme
aponta Bates (2010, p. 58), é real e intermediária entre um universal e um ser singular, sendo
chamada no escotismo, também, de comunidade, de modo que “natureza comum se refere
apenas a naturezas substanciais com unidades intermediárias, uma unidade não tão
indiferente como aquela dos universais, não tão particular como aquela dos indivíduos
singulares”. Trata-se de uma via terceira entre o universal e o particular.
Scotus (1973, p. 405-406) traz isso de forma esclarecedora:
36 Além disso, Damasceno no cap.8: "É preciso saber que uma coisa é ser
considerado na coisa e outra na razão e no pensamento. Portanto, e em
particular, certamente em todas as criaturas, considera-se a divisão das
hipóteses na coisa (na coisa, com efeito, Pedro é considerado separado de
Paulo), - mas considera-se a comunidade e reunião, só no intelecto, pela
razão e pelo pensamento (com efeito, inteligimos no intelecto porque
Pedro e Paulo são de uma única natureza e possuem uma única
natureza comum)"; "Com efeito, estas hipóteses não são em si recíprocas,
mas cada uma é individualmente partida, isto é, separada segundo a coisa".
E depois: "De fato, na santa e supersubstancial Trindade ocorre o contrário:
com efeito, lá considera-se na coisa um único comum", "mas depois no
pensamento, o dividido". (Destacou-se).
Assim, para Scotus, no singular há uma separação que é da coisa em si e diferente de
coisa para coisa, mas somente no intelecto é que é possível inteligir a “comunidade”, a
“natureza comum” das coisas.
Nesse contexto, traga-se na linha de Bates (2010, p. 86) que as naturezas comuns no
escotismo deixam um problema de difícil solução em relação à individuação das coisas. O
problema aqui é de causação, eis que se erige da circunstância de que, baseado na natureza
comum, naturezas substanciais não são nem universais e nem singulares.
Se assim o é, se indivíduos têm uma natureza comum, mas essa natureza não pode
ser mensurada numericamente em termos de unidade, como se pode dizer que um indivíduo
é unitariamente diferente de outro, é dizer, possuem substâncias diferentes entre si?
Essa interrogação é difícil de contestar, porém, no escotismo é possível encontrar
uma resposta elucidadora. Um exemplo é sempre fecundo para clarificar as coisas, o qual é
adaptado de Bates (2010, p. 86). Pense-se que Einstein é um indivíduo e Copérnico também.
42
Pense-se que há uma natureza comum entre eles na linha da forma substancial, conforme
exemplo de João e Maria já mencionado acima, ou seja, o que lhes é comum é a
“humanidade”, a qual não é nem universal, nem particular e nem mesmo real.
Se Einstein fosse o mesmo em relação à sua natureza comum, ele não seria um
particular, pois natureza comum, como se disse, não pode ser particular, mas ele seria
comum – comunidade. Porém, mesmo comum, Einstein é um ser humano particular, eis que
Einstein não é o mesmo que Copérnico, inclusive numericamente distinto em relação a esse.
Então, o que se tem no caso é que, ao fim e ao cabo, não se pode dizer verdadeiramente
que Einstein é o mesmo em relação à sua natureza comum.
Bem, se Einstein é diferente de Copérnico, inclusive numericamente e, por tal
motivo, justifica-se que é numericamente um ser particular, qual é a causa da singularidade
de Einstein ou, em outras palavras, o que causa a individualidade de uma natureza
substâncial?
Ora, já se disse anteriormente que a unidade de uma natureza substancial é real e
intermediária entre um universal e um ser singular, sendo chamada no escotismo de
comunidade. Trata-se de uma via terceira entre o universal e o particular.
Portanto, a causa da singularidade proveniente da natureza comum, ou da
comunidade, é, em verdade, uma “unidade acidental de singularidade ou uma unidade
acidental de universalidade”.
Porém, deve-se, necessariamente, procurar a causa da singularidade, a qual adiciona
alguma coisa acima da natureza a que pertence. Que é essa coisa adicionada à natureza da
singularidade estabelecida pela comunidade? Que causa a natureza comum receber o
acidente da singularidade? Ou melhor: que causa a individuação em substâncias materiais?
Acerca do tema, Scotus (1973, p. 409-410) traz:
41 E pelo que foi dito, fica claro em relação ao argumento principal, pois
o Filósofo refutava aquela ficção que atribui a Platão, a saber, que "este
homem" existente por si - o qual é considerado como "idéia" - não
pode ser por si universal para todo homem, pois "toda substância
existente por si é própria àquilo da qual é", isto é: ou é por si mesma
"própria", ou "é tornada própria" por algo que a restringe,
restringente que tendo sido posto não pode estar em outro, ainda que
não lhe repugne de si estar em outro, - e esta explicação também é
verdadeira, falando-se da substância na medida em que é tomada como
natureza; e assim segue-se que a idéia não será substância de Sócrates,
pois nem sequer é natureza de Sócrates, - pois, não é por si própria,
nem apropriada a Sócrates, de tal modo que esteja somente nele, mas
também está em outro, de acordo com o mesmo [Platão]. Mas se se
toma a substância como substância primeira, então é verdade que
43
qualquer substância é, por si, própria àquilo do que é e, então, segue-
se muito mais que aquela idéia - que é posta como "substância
existente por si" - não pode ser substância de Sócrates ou de Platão
deste modo; ora o primeiro membro é suficiente a este propósito.
(Destacou-se).
Scotus (1973, p. 410) adiciona ao mencionado, ainda, o seguinte:
42 Para a confirmação da opinião, é claro que a comunidade e a
singularidade não estão para a natureza como o ser no intelecto e o ser
verdadeiro fora da alma, pois a comunidade cabe à natureza fora da
alma, e semelhantemente a singularidade, - e a comunidade cabe por
si à natureza, mas a singularidade cabe à natureza por algo que a
restringe na coisa; mas a universalidade não cabe à coisa por si. E
assim concedo que se deve procurar a causa da universalidade, mas não se
deve procurar outra causa da comunidade além da própria natureza; e
tendo sido colocada a comunidade na própria natureza de acordo com
sua própria entidade e unidade, é preciso necessariamente buscar a
causa da singularidade, que adiciona algo àquela natureza da qual é.
(Destacou-se).
Nesse contexto, volta-se, então, às perguntas: que causa a individuação em
substâncias materiais? Que restringe a natureza na coisa, permitindo a singularidade? Que é
isso que adiciona algo à natureza, autorizando a particularização de coisas?
Bem, como se viu acima, está-se falando da “humanidade” de Einstein e Copérnico,
isto é, está-se na linha descendente do lado da alma dos dois indivíduos, conforme exemplo
já detalhado de João e Maria, sendo que tal “humanidade” se relaciona com a forma
substancial dos dois seres individuais.
Assim, segundo Bates (2010, p. 87), a resposta às interrogações acima é que a causa,
o “algo” que se adiciona, aquilo de restringe, autorizando a individuação das coisas se dá
por uma entidade, uma primitiva haecceitas (ou thisness), o que se gravará aqui também por
presentidade em homenagem à segundidade peirceana que será estudada mais adiante. É ela
que restringe (aprisiona) a natureza comum ou comunidade na particularidade. É ela que
aponta para a coisa, que denota a coisa, que permite dizer “essa coisa”. É ela que aplica um
“esseísmo” à coisa para individualizá-la.
Nesse piso, deve-se retomar mais uma vez o exemplo de João e Maria, para, a partir
dele, traçar-se duas grandes linhagens: uma a partir da matéria das coisas e outra a partir da
forma das coisas.
Nessa dinâmica, será possível vislumbrar ao final da linhagem da matéria das coisas
a prime matter de que já se cuidou mais acima e no final da linhagem da forma a haecceitas
que se acabou de falar. Então, diante do processo de individuação, que circula por universal
44
e particular, a circulação se dá por essas duas linhagens. A ilustração abaixo fala por si só e
é essa a visualização explicativa que aqui se tem da correlação em Scotus entre universal e
particular:
Figura 1 – Correlação em Scotus de universal e particular
Nesse contexto, diga-se que Bates (2010, p. 61) traz que no escotismo um universal
somente pode existir no intelecto, conforme se representa na ilustração acima. “Não pode
existir nos singulares, e não pode existir sozinho, separado dos singulares e fora do intelecto.
Isso não quer dizer que não haja algo de universal no particular e algo do particular no
universal em termos de correspondência, eis que o que está nos particulares, para Scotus, é
o comum – a comunidade.
Pela ilustração acima, verifica-se ainda que na linhagem da forma, descendo desde a
indiferença do universal (quase sem densidade nenhuma), alcança-se a haecceitas, que é
justamente essa “entidade” que adiciona à natureza das coisas para individualizá-las.
A ideia de haecceitas encontra possíveis correspondências, pelo que aqui se
interpreta, no realismo peirceano, máxime no que toca às categorias ceno-pitagóricas de
Peirce, as quais serão estudadas mais adiante nesse trabalho.
Na outra linhagem, conforme ilustração acima, descendo pela matéria da coisa,
deságua-se na prime matter. Lembre-se que a prime matter no escotismo é uma coisa básica
sem reais características particulares como cor e peso, mas com a potencialidade de ter tais
reais características. [...] vai junto com a forma da substância material para fazer possível
Haecceitas Prime
matter
Universal
Naturezas
materiais Forma
Natureza
comum ou
Comunidade
Particular
Forma
substancial
Fonte: Elaborado pelo autor
45
que a substância como um todo venha a existir. Lembra muito a primeiridade peirceana, a
qual será estudada, como já se disse, mais à frente nesse trabalho.
Com a ideia de prime matter na mente, fica mais fácil entender o papel protagonizado
pela haecceitas. Se a prime matter escotista tem a potencialidade de ter características
particulares, há outra entidade que permite que essas características se individualizem.
A intepretação que aqui se expõe é que essa entidade é a haecceitas – ela permite que
uma potência de cor se torne hic et nunc presente – permite, pois, a presentidade de
potências em substâncias materiais. Seria possível usar a palavra “existência” aqui
também, haja vista que a haecceitas atribui à potência da prime matter escotista
“existência”.
Haecceitas ao cabo é uma entidade que serve para fins de individualização nas
coisas. Ela restringe o que há de comum nas coisas do mundo para sua singularidade ser
possível. Se assim o é, é porque já se parte de um princípio, qual seja, que coisas podem ser
individualizadas. Que, então, permite o acidente da singularidade? Bem, como já se disse,
um princípio de causação especial que encontra na haecceitas tal acidente à singularidade.
Aristóteles já teria resolvido há muito tempo o problema da causação no acidente da
singularidade com seu princípio fundamental de que: “é impossível que o mesmo atributo
pertença e não pertença ao mesmo tempo ao mesmo sujeito, e na mesma relação”.
Sua resolução do problema parece partir de universais no sentido de predicação
(formal) e propriedades (material). Se Jesus é humano, Jesus não pode ser não humano ao
mesmo tempo. Se isso se presume (ser não humano ao mesmo tempo que humano), então há
uma contradição, o que fere de morte o princípio fundamental aristotélico.
Para aplicar o exemplo acima ao escotismo, caso se adote que Jesus não humano
pode “existir” sem ferir o princípio básico da não-contradição aristotélico, o que se verifica
é, em certa medida, a aceitação de que se pode considerar um Jesus como mera potência de
ser humano – algo que não é humano, mas tem a potencialidade de ser.
Tal indagação parece improvável aos olhos comuns, pois seria o mesmo que dizer
que “César tem a potencialidade de atravessar o Rubicão” é o mesmo que “César atravessou
o Rubicão”. Nesse caso, a “potencialidade” seria o mesmo que a “existência”, eis que, do
contrário, ter-se-ia que admitir a “existência” de dois Césares ou, o que seria pior, de um
“real” e outro transcendental (algo como um Jesus dos céus).
Segundo Bates (2010, p. 96-97), no entanto, Scotus aceita a noção de algo meramente
potencial, esclarecendo que, em verdade, um indivíduo meramente potencial está
46
completamente individualizado. Scotus (apud BATES, 2010, p. 97) baseia sua resposta
numa hierarquia categorial. Para ele “o ser da existência não tem suas próprias diferenças
outras que não as diferenças do ser da essência”.
A hierarquia categorial de Scotus, segundo Bates (2010, p. 97), se baseia no modelo
da árvore de Porfírio, “exaustivamente mapeando a estrutura inteligível da realidade em
termos de gênero, espécies e individuais, sem se referir à atual existência”.
Porfírio, como traz Barnes (2003, p. 109), não propriamente tratava de uma árvore,
mas mais de uma cadeia. Porfírio utiliza o termo “substância” ( ) de Aristóteles na sua
versão de substância absoluta diferente de substância relacional, como na seguinte cadeia:
Substância------Corpo------Vivo Corpo------Animal------Racional Animal-----Homem-----
Sócrates e Platão e o resto.
Modernamente, conforme aponta Barnes (2003, p. 110), a árvore foi desenhada da
seguinte maneira:
Figura 2 – Árvore de Porfírio
Fonte: Barnes (2003, p. 110)
47
Fundamentado na árvore de Porfírio, Scotus (apud BATES, 2010, p. 98), sustenta
que, tendo em vista que a categoria hierárquica (gênero, espécie, indivíduos) permanece a
mesma, ainda que considerado o meramente potencial, “a ‘atualidade’ não individualiza seus
membros”.
“Atualidade” ou “existência”, pois, não são o mesmo que haecceitas, pois não
servem ao propósito de individuação de coisas. Nesse contexto, traz Bates (2010, p. 104)
que:
o que faz uma substância um individual é uma positiva, não-acidental
entidade que é simples, sem natureza dela mesma e a complexidade
intrínseca que ter uma natureza implica para aqueles indivíduos para a qual
ela pertence. [...] Scotus chama essas “entidades individuais”
escrevendo delas “…Existem certas entidades positivas que per si
determinam a natureza” Eu devo usar um termo mais familiar,
“haecceitas”, para Scotus “finalística específica diferença”. (Destacou-
se).
A divisão baseada na árvore de Porfírio (gênero, espécie, indivíduos) parece
solucionar, no escotismo, o problema da individuação entre singulares, convivendo com o
problema das potencialidades que são reais, principalmente, levando em consideração o
conceito já explicado de natureza comum que está impregnado na teoria escotista.
Um exemplo pode melhor elucidar a solução apontada. Pense-se que o homem A e
o homem B são diferentes substâncias singulares (espécies) de um gênero de substâncias C.
Como o homem A e o homem B são espécies de um gênero C, eles são diferentes espécies
A e B, mas têm, ao mesmo tempo, algo compartilhado (algo comum) por conta da
“pertencibilidade” ao gênero C. Lembrem-se: a circunstância de ser abelha independe de
“ser” abelha em A ou em B – tem uma comunidade, uma natureza comum. Essa comunidade
não é materialmente haecceitas, mas sim prime matter.
A diferença entre eles, no entanto, não está na natureza (comunidade) do homem A
e do B. Há algo mais primitivo que os diferencia, que restringe (aprisiona) a comunidade, a
qual se origina da prime matter, em um singular. Esse “algo” não é uma negação e não se
relaciona diretamente com “atualidade” ou “existência”.
Por não ser uma negação, decorre que esse “algo” é um “positivo”. Esse positivo é
uma dada “entidade” – “entidade positiva”, a qual determinará a natureza daquilo ao qual
ela pertence. Ora, essa “entidade positiva”, a qual determina a natureza de algo, restringindo
a natureza comum nesse algo e, ao mesmo tempo, pertence a esse algo, chama-se haecceitas
(ou, como se traduziu aqui, presentidade).
48
Com base na árvore de Porfírio, usando-se, ainda, o exemplo do homem A e B, numa
correlação entre haecceitas e prime matter, tem-se que a prime matter é a materialidade
desses homens A e B, sendo que sua humanidade é que é a haecceitas, conforme a seguinte
ilustração:
Figura 3 – Árvore de Porfírio em Scotus
Humano (substância material)
Corpo (corpóreo – matéria substancial) Alma (incorpóreo – forma substancial)
Ser mortal/Materialidade (prime matter) Imortalidade/Humanidade (haecceitas)
Noone (2003, p. 120) explica com propriedade o descrito na composição acima com
base na árvore de Porfírio:
Scotus compara o papel determinante do princípio de individuação, como
ele o concebe, com específicas diferenças de inter-relação com outros itens
na árvore de Porfírio: a diferença específica pode ser comparada com o
que está abaixo dela, o que está acima dela, e o que está adjacente a ela
na árvore de Porfírio. Se a diferença específica é vista com referência
com o que está abaixo dela, é dizer, a natureza específica, a natureza
específica determinada ou informada pela diferença específica é tal
que não resta mais aberta à multiplicidade no nível do específico; é
determinada a ser aquela espécie e não outra. Da mesma forma, a
diferença individual determina o indivíduo de tal modo que não resta
mais aberto a uma maior multiplicidade numérica, mas é determinado
a ser esse indivíduo e não outro; é dizer, não é instanciável. Se a
diferença específica é vista em referência ao o que está acima dela,
podemos dizer que ela contrasta o gênero à espécie, como ato relativo
à potência representada pelo gênero. Assim, também, podemos dizer
que a diferença individual funciona de tal modo com referência à natureza
específica, porém com uma importante e digna de nota qualificação. No
caso da diferença específica e do gênero uma determinação formal é
adicionada a uma formal determinação, mas no caso da diferença
individual uma forma não é adicionada a uma forma; ao invés disso, a
adição vem da realidade mesma da forma propriamente dita – a
entidade individual é a expressão última da forma da coisa – e o
Fonte: Elaborado pelo autor
49
composto que é o resultado não é constituído em ser quididativo, mas
em o que Scotus chama ser material ou ser contraído. Finalmente, se
compararmos a diferença específica com os itens adjacentes a elas na
árvore de Porfírio, é dizer, outras diferenças específicas, podemos
dizer que toda diferença específica última, enquanto que
simultaneamente dá aos itens na espécie uma certa característica
diferenciadora e constitui os itens nas espécies no ser que elas têm, é,
no entanto, diversa das outras diferenças. Consequentemente, quando
perguntamos o que é comum ao racional e irracional no que se refere
à divisão dos animais, a resposta apropriada, se desejamos evitar um
regresso ao infinito, é que compartilham nada, mas são simplesmente
diversos. Igualmente, as diferenças individuais são primariamente e
simplesmente diversas, embora os indivíduos constituídos por aquelas
diferenças sejam itens que compartilham a mesma natureza específica,
apenas tanto quanto os itens nas diferentes espécies compartilham no
gênero apesar do fato que eles são cada [um] constituídos nas suas espécies
respectivas por diferenças que são primariamente diversas. (Destacou-se).
A pergunta que resta, no entanto, e parece óbvia, é como se pode diferenciar,
conforme exemplo acima, prime matter4 e haecceitas. Quer parecer, conforme pontua Noone
(2003, p. 121), que a diferença é formal ou lógica.
Um lógico pode distinguir, mas não um metafísico, por assim dizer, ou seja,
formalmente pode-se trazer que prime matter é diferente de haecceitas, de modo que a
prime matter não estaria incluída na descrição formal de um indivíduo quanto à
haecceitas e haecceitas não estaria incluída na descrição formal de um indivíduo quanto
à prime matter.
É possível chamar Einstein mortal, mas não se pode dizer que Einstein é
“humanidade”, ainda que seja por meio da humanidade que Einstein possa ser chamado
mortal. A natureza de Einstein é una numericamente somente sob uma perspectiva
denotativa (esse Einstein).
Quando se diz que Einstein é mortal, essa “mortalidade” física (materialidade) é uma
natureza relacionada à prime matter. A humanidade de Einstein, no entanto, é haecceitas e
não contém formalmente na sua descrição a diferença individual de Einstein (Einstein-
mortalidade) e vice-versa.
Porém, Einstein, o qual pode ser considerado uno numericamente, sob uma
perspectiva meramente denotativa, contém uma Einstein-mortalidade (prime matter) e uma
humanidade (haecceitas).
4 Ressalta-se que “prime matter” não é um termo propriamente de Scotus, mas sim um termo usado por Bates.
Scotus utiliza-se de “matéria” simplesmente para falar da mesma coisa.
50
Como conclusão, faz todo sentido a aproximação do tema trazida por Noone (2003,
p. 122), o qual aponta o realismo escotista como moderado, tendo se baseado em articulações
suportadas por mínimas fundações ontológicas, o que se deve à circunstância de Scotus ter
caracterizado “seu princípio da individuação como formal, mas distinguindo dois tipos de
formas: forma quididativa capaz de múltiplas instancializações e forma individual, formas
únicas que funcionam como fontes de atualidade, mas não são comunicáveis”.
Malgrado a longa digressão necessária, nota-se que o tema do realismo escotista é
fundamento evidente para suportar o realismo peirceano que se especificará mais adiante e
que serve de base firme para a construção científica aqui posta.
No que diz respeito ao domínio jurídico, quer parecer claro, igualmente, que as
noções de prime matter e haecceitas com base no escotismo podem ser facilmente aplicadas.
O princípio da individuação escotista parece se assemelhar, como mecanismo, sobremaneira
à incidência, interpretação e aplicação de regras jurídicas gerais e abstratas (aqui chamadas
signos jurídicos gravadores potenciais e gerais) formativas de regras jurídicas individuais e
concretas (aqui chamados signos gravadores particulares ou singulares).
No direito, a prime matter se assemelharia aos eventos gravados (semeioticamente)
pela autoridade competente mediante a interpretação e aplicação dos signos gravadores
potenciais e gerais gravados pelo legislador como de possível ocorrência.
A haecceitas seria o que autorizaria a formação da singularidade ou particularidade
a partir do signo gravador potencial e geral. Esta entidade positiva, seria, no direito, a sua
própria positividade – a função cogente-prescritiva-impositiva-realizativa do direito, a qual
autorizaria sujeição pelos sujeitos de direito e individualização do signo gravador potencial
e geral (evento gravado de possível ocorrência) em signo gravador particular ou singular, o
qual grava o evento da summa realidade já ocorrido.
Haecceitas é que autoriza o juiz dizer que esse direito se aplica e se impõe a esse
sujeito de direito individualmente por conta de um signo gravador potencial e geral (regra
geral e abstrata). O signo gravador potencial é aquele usado pelo legislador para gravar a
comunidade da prime matter em relação ao evento da summa realidade em linguagem
jurídica e com efeitos de direito. Gravar é imprimir semeioticamente um evento potencial e
geral em particular ou singular.
É por isso que quando o legislador do signo gravador potencial e geral (regra geral
e abstrata) grava um evento da summa realidade passível de gerar efeitos de direito, em
51
verdade, ele o grava nos limites da linguagem potencial e geral para que tais efeitos possam
ser produzidos particularmente quando assim se permitir com base na experiência sensível.
Esse legislador, pois, grava o que há de comunitário acerca de um evento passível
de consequências de direito – acerca de sua prime matter. Essa comunidade da prime matter
gravada é um tipo de convenção, como se verificará mais adiante quando se detalhar o tema
específico.
O signo gravador potencial e geral do legislador, então, por meio da haecceitas, se
particulariza com base na experiência sensível que uma mente jurídica ou grupo delas
permite diante de uma investigação também jurídica, gravando em um signo gravador
particular ou singular um evento particularizado ou singularizado da summa realidade.
1.1.4 Realismo Kantiano (Idade Moderna)
A ideia desse tópico é aproximar a teoria kantiana a um realismo empírico. O estudo
se baseia no excelente trabalho de Paul Abela, em seu “Kant’s Empirical Realism”, o qual
tenta afastar o rigor do chamado “idealismo transcendental” de Kant no sentido de que
espaço e tempo seriam independentes da sensibilidade, para dar espaço à possibilidade de
uma interpretação de Kant em direção à permissibilidade de um realismo empírico.
Abela (2002, p. 15) traz que:
Idealismo transcendental é a teoria geral de Kant. A teoria geral estrutura
um vasto conteúdo, espalhando 20 anos de trabalho e todos os três Críticas.
Como uma grande mansão, ela inclui muitos quartos, contemplando o
tratamento Kantiano relacionado ao conhecimento, moralidade e
estética. O realismo empírico é um dos quartos nessa mansão. Esse
quarto contém a análise Kantiana das condições necessárias para o
conhecimento do mundo familiar dos objetos empíricos. (Destacou-se).
Para compreender o realismo empírico kantiano, é preciso, em primeiro lugar,
compreender a parte da teoria kantiana que trata do idealismo transcendental (sua teoria
geral) para, assim, fazer-se o contraponto. Nesse sentido, veja-se como se expressa Audi
(1999, p. 463):
Kant apresentou seu idealismo transcendental como preferível a todas as
alternativas explicações que ele conhecia sobre a possibilidade de
conhecimento matemático e o status metafísico de espaço e tempo.
Diferentemente do empirismo, ele permitia necessárias reivindicações no
seu domínio; diferentemente do racionalismo, libertava o desenvolvimento
desse conhecimento dos procedimentos da mera análise conceitual; e
diferentemente dos Newtonianos isso era feito sem dar a espaço e tempo
52
um status misterioso como algo absoluto ou predicado de Deus. Com
qualificações prósperas, a doutrina de Kant da identidade transcendental
de espaço e tempo pode ser compreendida como uma radicalização da ideia
moderna de qualidades primárias e secundárias. Como outros têm
sustentado que as qualidades da cor sensível e som, por exemplo,
podem ser intersubjetivamente válidas e objetivamente baseadas
enquanto existentes apenas como relativas em relação a nossa
sensibilidade e não atribuíveis a objetos nelas mesmas, então Kant
propôs que o mesmo deveria ser dito acerca dos atributos espaço-
temporais. A doutrina de Kant, no entanto, é diferente, eis que não é
uma hipótese empírica que deixa acessível a nós outros teóricos e não-
ideias atributos para explicar experiências particulares. É mais uma
teoria metafísica que enriquece as explicações empíricas com uma
estrutura a priori, mas dispensa qualquer explicação para aquela
estrutura propriamente dita outra que não a declaração de que essa
jaz na “constituição” da sensibilidade humana como tal.
[...]
Mesmo quando estruturadas por formas puras de espaço e tempo, as
representações sensíveis não rendem conhecimento até que sejam
compreendidas em conceitos e esses conceitos são combinados no
julgamento. De outra forma, somos deixados com meras impressões,
espalhadas numa não inteligível “multiplicidade” ou multiforme; nas
palavras de Kant, “pensamentos sem conteúdo são vazios, intuições
sem conceito são cegas”. Julgamentos requerem conceitos e intuições;
não é apenas quaisquer relações de conceitos, mas eles trazidos de
maneira agrupada de uma maneira particular, uma unidade
“objetiva”, de modo que um conceito é predicado de outro, por
exemplo, “todos os corpos são divisíveis” – e isso se aplica “a certas
aparências que se apresentam a nós,” por assim dizer, são intuitivas.
Porque qualquer julgamento envolve uma unidade de pensamento que
pode ser prefixada pela frase “Eu penso”, Kant fala de todas as
representações, na extensão de que elas podem ser julgadas por nós,
como sujeitas a uma necessária unidade de apercepção. (Destacou-se).
A tal unidade de apercepção kantiana, a qual, pelo que aqui se interpreta, refere-se a
essa estrutura a priori que dispensa demonstração empírica e jaz na constituição da
sensibilidade humana, não é nem conceitual nem intuitiva (no sentido de aparência). Isso se
deve à circunstância de que uma apercepção não pode ser conceitual, pois anterior ao
conceito de alguma coisa que se percebe, e não pode ser intuitiva na linha kantiana, eis que
uma aparência se percebe e uma apercepção é falta total de percepção.
É, pois, metafísica, algo como uma intuição antes da aparência para conhecimento
do universo, similar ao que jaz por traz do princípio metodológico da navalha de Ockham
em direção ao julgamento, mas uma formulação metafísica postular na linha do que baseou
a navalha de Ockham, pois que, se é só intuição, sem aparência ou qualquer nível de
percepção, é intuição do quê? De um conceito? Qual é, então, a aparência de um conceito?
Como se percebe um conceito a priori? Bem, não se percebem conceitos e não se pode ser
53
intuitivo acerca deles, então, estaria ele (conceito), conforme traz Kant, na constituição da
sensibilidade humana.
Seguindo-se o idealismo transcendental kantiano na linha explicitada, guardar-se-ia
pouco lugar para um realismo empírico. Porém, como defende Abela, esse realismo empírico
pode ser defendido na doutrina kantiana em direção à admissão de uma realidade exterior.
Segundo Abela (2002, p. 30), para que o realismo empírico kantiano seja possível, é
preciso combater o modelo epistêmico cartesiano, eis que tal modelo “efetivamente nos
distancia do imediato acesso aos objetos. O que experimentamos diretamente [segundo esse
modelo] são nossas determinações internas: ideias na mente, não objetos no mundo”.
Kant (apud ABELA, 2002, p. 30), acerca disso, traz:
Assim, eu não posso realmente perceber coisas externas, mas apenas
inferir sua existência da minha percepção interna, na medida em que
eu considero isso como o efeito de alguma coisa externa é a causa próxima.
Porém, agora a inferência de um dado efeito à sua causa determinada é
sempre incerta, já que o efeito pode ter nascido de mais de uma causa.
Nesse sentido, na relação de percepção a essa causa, sempre
permanece duvidoso se a causa é interna ou externa, de modo que quer
todas as ditas percepções externas são um não mero jogo do nosso
senso interno ou quer eles estejam relacionados a objetos externos
reais como sua causa. (Destacou-se).
Esse talvez seja um dos problemas mais fundamentais na disputa entre realismo e
nominalismo, é dizer como é possível articular a existência de objetos externos à mente se o
acesso a eles se dá por meio de conceitos (dizer que conceitos são mentais é tautológico)?
O problema pode estar na herança cartesiana do pensamento ocidental, a qual acaba
por conceber realidade como mediação entre ideia na mente e objeto externo, o que se
caracteriza pela dicotomia entre referido (na mente) referente (externo).
Abela (2002, p. 31) traz com propriedade que “o que começou em Descartes como
uma tentativa de chegar a um indubitável conhecimento do mundo externo acaba,
ironicamente, com a recusa da possibilidade de qualquer referência a uma realidade
independente”.
A questão que deve ser colocada em foco diz respeito ao formalismo que pode ser
atribuído ao idealismo transcendental kantiano na linha de que o conhecimento
transcendental é um conhecimento a priori em relação à estrutura da experiência e qual seu
papel para combater o ideal cartesiano que parece fundamentar o idealismo empírico.
54
Segundo Abela (2002, p. 46), a distinção entre realismo empírico e idealismo
empírico, baseado no pensamento kantiano, é da qual deve-se partir. A premissa que difere
é que no ideal cartesiano tem-se representações internas determinadas por objetos externos
putativos, sendo que em Kant o que se sustenta é que “a experiência interna em geral é
possível apenas por meio de uma experiência externa em geral”.
Para Abela (2002, p. 46), o idealismo empírico “deriva a existência de objetos do que
é dado primitivamente no conteúdo da percepção: vendo a subjetiva base de representação
[dado o conteúdo mental] como uma suficiente base para suportar inferências a objetos
correspondentes”.
O realismo empírico kantiano, no entanto, afasta-se de uma determinação a partir do
que é dado (a priori). Como aponta Abela (2002, p. 46), “ao invés de derivar a existência de
objetos, o realismo empírico demanda o imediato envolvimento de relações de referência
como uma condição para um conteúdo interno determinado”.
Kant (1998, p. 327), acerca do tema, traz:
Idealismo assumiu que a única experiência imediata é a experiência
interna, e que a partir disso coisas externas poderiam apenas ser inferidas,
mas, apenas de maneira incerta, como sempre que se inferem causas
determinadas de dados efeitos, já que a causa das representações que
talvez falsamente imputamos às coisas externas pode também jazer em nós.
Ainda assim, aqui está provado que a experiência externa é que é
realmente imediata, e que só por seu intermédio é possível, não a
consciência da nossa própria existência, mas a sua determinação no
tempo, isto é, a experiência interna. É claro, a representação Eu sou, a
qual expressa a consciência que pode acompanhar todo pensamento, é
aquela que imediatamente inclui a existência de um sujeito nela mesma,
mas ainda não inclui a sua cognição, de modo que tampouco é cognição
empírica, é dizer, experiência; pois, para tanto se requer uma intuição,
além do pensamento de algo existente, e aqui, intuição interna, com
referência à qual, ou seja, ao tempo, o sujeito tem de ser determinado;
para isso são exigidos absolutamente objetos exteriores; por
conseguinte, a experiência interna só é possível mediatamente, e
apenas através da experiência externa. (Destacou-se).
Do que se depreende das palavras de Kant, o que se tem é que somente a experiência
externa é que é realmente imediata, de modo que qualquer experiência interna, ou seja,
experiência por intermédio da mente, tomará lugar de maneira mediata em relação ao mundo
externo. Isso quer dizer que experimentar algo mentalmente, ou seja, um conceito que se
apresenta na mente, é um mecanismo que se faz com supedâneo em algo que está externo ao
55
conceito, o que implica a referência a um referente e, pois, o dual referido e referente, mas
com o referente sendo do mundo real.
O ponto de diferenciação, para que se enfatize, diz com a diferença do substrato dado,
em relação a qual, para o idealista empírico é a priori e para o realista empírico é algo que,
ao menos imediatamente, relaciona-se com a realidade externa e é apenas indiretamente
dependente de conteúdos mentais.
Conforme aponta Abela (2002, p. 47): “Kant contrasta esse modelo com a demanda
do realista empírico pela presença imediata de objetos e seus poderes como condição para
determinada representação centrada no sujeito”.
A questão que se coloca em relação ao idealismo empírico em contraste com o
realismo empírico refere-se ao papel das sensações como núcleo duro que suportará o
conhecimento humano acerca dos objetos do mundo e a participação do julgamento nesse
processo.
Pode-se rebater o idealismo empírico com base no exemplo trazido por Abela (2002,
p. 50). Nesse contexto, quando alguém observa um tomate vermelho em cima da mesa, não
há somente a ação do olho (sentido) sobre o tomate que implica sua existência para o sujeito,
mas, mais do que isso, há algo além do sentido que implica a observação do tomate vermelho
sobre a mesa. Trata-se do julgamento de que há um tomate vermelho sobre a mesa e que se
está vendo aquele tomate vermelho. Faz-se um juízo.
Quando uma criança de um ano de idade aponta para um balão inflável e diz “bola”
isso é uma coisa. Porém, é uma coisa totalmente diferente quando uma criança de três anos
que, presenciando a cena, diz “não é uma bola é um balão”. Para uma criança de um ano de
idade, o balão inflável tem forma de bola e, portanto, é uma bola. Para a criança de três anos
de idade, o julgamento é ampliativo, há mais conhecimento adquirido sobre o que é uma
bola, de modo que balão e bola são coisas diferentes. Esse julgamento está além do olho que
vê o balão inflável.
Dessa forma, vê-se que no julgamento se está além do sentido da visão, eis que a
própria percepção racional de que o tomate (objeto) está sobre a mesa vem junta, por assim
dizer, com a percepção de que se está vendo esse objeto. Se o objeto fosse tocado, haveria
uma percepção de que se está tocando o objeto e, essa percepção, não é somente sentido do
corpo, mas algo que permite que o próprio sentido seja percebido como sentido
racionalmente, algo como um “julgamento perceptivo ou empírico”.
56
O ponto de diferença com o idealismo empírico parece jazer na circunstância de que
não se trata apenas de um sentido (que é a causa), o qual permitirá que se agrupem conteúdos
mentais já presentes e que foram amontoados pelo hábito.
É mais do que isso. No “julgamento perceptivo” há, conforme pontua Abela (2002,
p. 51), um papel do julgamento que apresenta ao sujeito algo para pensar a respeito da coisa
que se “julga”. Afirmam-se que coisas são de um jeito ou de outro.
É mais do que uma presentidade da coisa, como se verifica na segundidade como
categoria ceno-pitagórica na teoria peirceana, como será visto mais adiante, eis que não
apenas implica “atualidade” à coisa que se “julga”, mais do que isso, o julgamento permite
dizer ser a coisa de um certo modo, para uma certa função, com determinadas características
diferenciadoras etc.
O que há aqui é uma afirmação acerca de uma coisa com orientação objetiva
por meio do pensamento – por meio de um julgamento perceptivo acerca da coisa que
se percebe mentalmente. Nos termos que pontua Kant (2001, B 142):
Quando, porém, atento com mais rigor na relação existente entre os
conhecimentos dados em cada juízo e a distingo, como pertencente ao
entendimento, da relação segundo as leis da imaginação reprodutiva (que
apenas possui validade subjetiva), encontro que um juízo mais não é do
que a maneira de trazer à unidade objetiva da apercepção
conhecimentos dados. A função que desempenha a cópula "é" I nos juízos
visa distinguir a unidade objetiva de representações dadas da unidade
subjetiva. Com efeito, a cópula indica a relação dessas representações
à apercepção originária e à sua unidade necessária, mesmo que o juízo
seja empírico e, portanto, contingente, como, por exemplo, o seguinte:
os corpos são pesados. Não quero com isto dizer que estas representações
pertençam, na intuição empírica, necessariamente umas às outras, mas
somente que pertencem umas às outras, na síntese das intuições, graças
à unidade necessária da apercepção, isto é, segundo princípios da
determinação objetiva de todas as representações, na medida em que
daí possa resultar um conhecimento, princípios esses que são todos
derivados do princípio da unidade transcendental da apercepção. Só
assim dessa relação surge um juízo, ou seja, uma relação
objetivamente válida, que se distingue suficientemente de uma relação
destas mesmas representações, na qual há validade apenas subjetiva,
como por exemplo a que é obtida pelas leis da associação. Em
conformidade com estas últimas diria apenas: quando seguro um corpo,
sinto uma pressão de peso, mas não que o próprio corpo seja pesado; o que
é o mesmo que dizer que ambas estas representações estão ligadas no
objeto, isto é, são indiferentes ao estado do sujeito, e não apenas juntas na
percepção (por muito repetida que possa ser). (Destacou-se).
57
Do que se extrai aqui do pensamento kantiano, verifica-se que não se trata o
julgamento de mera associação de conteúdos pré-estabelecidos na mente, abstraindo o
concreto (como pressuposto), como poderia atestar o idealista empírico.
O julgamento é perceptivo – um juízo objetivamente orientado, o qual deriva da coisa
objetivamente considerada. As representações de objetos “reais” são relações de
representações objetivamente orientadas na mente.
A relação objetivamente orientada é válida ou não na medida da sua orientação
objetiva. Quando se diz que o sol produz calor, há uma relação objetivamente orientada na
representação do sol na síntese das intuições, o que se verifica em relação à unidade
transcendental da apercepção, a qual é transcendental porque inesgotável, o que não implica
que a relação não seja mais do que uma relação de representações meramente mentais.
O calor do sol na pele do sujeito cognoscente que tem uma relação mental
objetivamente orientada não é uma relação de representações meramente mentais associadas
nos lindes da mente cognoscente. Há uma unidade de apercepção originária que permite a
relação na síntese da intuição com determinação objetiva.
A diferença de aproximações do tema entre o idealista empírico e o realista empírico,
reforce-se, jaz no dado pressuposto. Para o primeiro, há “determinações primitivas” e
“determinações derivadas”, sendo as primeiras relacionadas ao hábito proveniente das
experiências sensoriais (são subjetivas) e as segundas relacionadas à representação
produzida a partir das primeiras de maneira ficta (são também subjetivas), o que afasta o
objetivismo por completo.
A diferença de aproximação parece repousar no ponto de partida do conhecimento e,
para os idealistas empíricos, em uma diferenciação entre ideias, pensamentos e o que Hume
(1999, p. 96) chamou de impressões:
Aqui, portanto, podemos dividir todas as percepções da mente em duas
classes ou espécies, as quais são distintas pelos seus diferentes graus de
força e vivacidade. As menos fortes e vivas são comumente
denominadas PENSAMENTOS ou IDEIAS. As outras espécies querem
um nome na nossa língua, e em muitas outras; Eu suponho, porque não era
um requisito para nenhum propósito além do filosófico, classificá-las
debaixo de um termo geral ou denominação. Vamos, portanto, usar um
pouco de Liberdade, e chamá-las IMPRESSÕES; empregando essa
palavra no sentido de alguma coisa diferente do usual. Pelo termo
impressão, então, eu quero dizer todas nossas mais vivas percepções,
quando ouvimos, ou vemos, ou sentimos, ou amamos, ou odiamos, ou
desejamos, ou queremos. E impressões são distintas de ideias, as quais
são as menos vivas percepções, das quais somos conscientes, quando
58
refletimos sobre qualquer daquelas sensações ou movimentos acima
mencionados.
[...]
Porém, nosso pensamento parece possuir essa liberdade ilimitada, a
qual encontramos, diante de uma mais próxima verificação, que ele
está realmente confinado dentro dos estreitos limites, e que todo esse
poder criativo da mente vale nada mais do que a faculdade de compor,
transpor, aumentar, ou diminuir os materiais fornecidos a nós pelos
sentidos e experiência. Quando pensamos acerca de uma montanha
dourada, nós apenas juntamos duas ideias consistentes, ouro, e
montanha, com as quais estávamos anteriormente familiarizados. Um
cavalo virtuoso pode ser concebido; porque, do nosso próprio sentimento,
podemos conceber a virtude; e isso podemos unir à figura e forma de um
cavalo, o qual é um animal familiar para nós. Em resumo, todos os
materiais do pensamento são derivados ou do nosso sentimento
externo ou do nosso sentimento interno: A mistura e composição
destes pertence à mente e à vontade. Ou, para me expressar na
linguagem filosófica, todas nossas ideias ou mais frágeis percepções
são cópias de nossas impressões ou mais vivas percepções.
[...]
A ideia de Deus, como significando um ser infinitamente inteligente,
sábio e bom, nasce da reflexão sobre operações da nossa mente, e do
aumento, sem limite, daquelas qualidades de bondade e sabedoria.
Podemos continuar esse exame pela extensão que quisermos; onde
sempre encontraremos, que toda ideia que examinamos é uma cópia
de uma impressão similar. (Destacou-se).
Hume esclarece que as ideias e pensamentos são apenas uma derivação ou cópias das
impressões, as quais dizem respeito ao contato empírico do homem com as coisas do mundo,
de modo que a transcendência do pensamento não é senão uma ilusão, pois que a imaginação
não é nada além do que esticar dados já empiricamente conhecidos de uma forma ou de
outra.
A pedra de toque aqui, na linha de Hume, é que tanto determinações primitivas
(impressões) como derivadas (ideias e pensamentos) são criações mentais do sujeito. Há
somente um subjetivismo implícito e explícito nas coisas, de modo que a experiência é
somente uma relação mental sem correspondência física necessária, o que forma a realidade
somente por meio de uma pressuposição de conteúdos regulares na mente do sujeito
cognoscente.
Nesse contexto, diga-se que puras sensações (impressões) não são nada sem o
determinismo que o julgamento lhes aplica. São algo como mera potência e mera potência
sem determinação não implica conhecimento do objeto.
Segundo Abela (2002, p. 53), o que há no pensamento kantiano, diferentemente, é
uma prioridade do julgamento, sem o qual estados sensoriais crus não implicam
59
conhecimento da coisa, ou seja, não são objetivamente orientados, eis que não há
objetivismo sem um juízo sobre o objeto. No exemplo de Hume da montanha dourada,
conforme já transcrito, veja-se que não há efetivamente uma cópia das impressões, mas
um juízo referente a um uso linguístico no caso metafórico da coisa real “montanha” e
do predicado “dourada”.
As impressões primeiras quase apáticas não são ingrediente do conhecimento do
objeto, “representam apenas a maneira como objetos afetam os sujeitos cognoscentes”. Não
representam experiência, mas “são uma qualidade-quantidade de matéria de experiência em
potência.”
Pippin (1982, p. 33) traz com precisão esse enfoque do pensamento kantiano relativo
ao realismo empírico:
Como já vimos, o mais importante aspecto da descrição é a alegação de
Kant que, considerado como uma multiplicidade, sensações não podem em
nenhum sentido ser consideradas um modo de conhecimento, ou
representações determinadas em absoluto. Relação a um objeto é alguma
coisa que deve ser sempre estabelecida por meio da compreensão do
julgamento, e isso deve ser sempre estabelecido apenas porque nenhuma
relação imediata a objetos é contida nessa sensação. Ele está também
alegando, mais genericamente, consciência sensorial não pode ser
considerada uma consciência de nada complexo ou determinado em
absoluto. Uma multiplicidade é tão determinada apenas quando
“pensada” em um determinado modo, quer quando nós apenas
notamos os conteúdos subjetivos do sentido interno, quer quando
queremos alguma relação com o objeto externo. Isso, de qualquer
modo, parece ser a força da constante caracterização da sensação
como apenas a “maneira em relação à qual somos afetados pelos
objetos”, e da alegação de Kant que isso fornece a mera matéria da
experiência. (Destacou-se).
Em uma possível comparação com Scotus, poder-se-ia trazer que essa mera matéria
da experiência, se concebida metafisicamente, pode ser vista em cotejo com a prime matter,
algo que precede, mas que necessariamente se coloca em direção da substância material,
alçando-lhe aa status de objetivamente orientada. Se algo é objetivamente orientado, quer
parecer óbvio que tal premissa implica o reconhecimento de que há algo além da
representação – um percepto.
Conforme Abela (2002, p. 59) esclarece, a preocupação kantiana diz respeito à
segurança que se pode atribuir às representações diante “da multiplicidade da intuição ser
intrinsicamente indeterminada”, de modo que o direcionamento representacional deve
60
priorizar o julgamento, afastando uma conexão da crença com algo que seja alheio ao
julgamento como impressões (sensações puras).
Nessa linha, conforme aponta Abela (2002, p 59), a aproximação do tema feita por
Kant dever ser vislumbrada diante da aquisição de conhecimento como um processo que se
abre e se fecha, “o qual se movimenta de uma inicial determinação definida pela vontade a
maiores níveis de representação determinada”.
Conforme esclarece Bird (1962, p.57), esse movimento em Kant é horizontal:
Ele fala de maneira geral do que é dado aos sentidos como indeterminado
até que a compreensão é capaz de determinar, ou discriminar entre o que é
percebido. Similarmente, ele fala de “determinar” e “determinação” como
contribuição específica, a qual a compreensão torna conhecimento [...]. O
contraste entre objetos do sentido e compreensão é, portanto, melhor
expresso com termos tais quais indeterminado e determinado,
indiscriminado e discriminado, ou não descrito e descrito, objetos e
aparências. A distinção familiar entre o que é estritamente dado e o
que é inferido ou construído a partir desse material básico, não é
exatamente o que Kant tem em mente.
[...]
É, portanto, importante distinguir percepção de concepção, natural
consequentemente desenhar uma distinção específica entre a não
descrita ou indiscriminada multiplicidade da aparência e sua
descrição em termos de, ou discriminação dentro de, diferentes tipos
de objeto percebido. Distinguir o sentido de “aparência” desse jeito é
não permitir qualquer questionamento sobre a possibilidade de
especificação desse sentido por meio de descrições empíricas
ordinárias do que percebemos. Kant raramente usa o termo “fenômeno”,
mas fala, no entanto, das coisas que conhecemos e investigamos como
aparências. É inteiramente natural, desde que esse termo cubra
indiscriminadamente todas as coisas que dizemos que percebemos, e não
para se referir a alguma categoria favorecida dessas coisas das quais outras
coisas, tais quais objetos materiais, podem ser inferidos ou construídos. A
construção kantiana não é “vertical”, de um nível inferior a um nível
superior de descrições, mas “horizontal”, de uma multiplicidade
indiscriminada de sentido a itens discriminados dentro dela.
(Destacou-se).
As “impressões” de Hume, por assim dizer, em Kant, são equivalentes à aparência,
com a diferença de que em Kant tudo que se diz percebido é “aparência”. Ao distinguir a
aparência de sua descrição em termos de diferentes tipos de objetos percebidos, Kant não
enxerga aí a diferenciação clássica entre o que é dado e o que é inferido como em uma
visualização que vem de baixo para cima, do mundo natural para a mente representacional.
61
Sua visão é, por assim dizer, “plana”, eis que parte do modelo lateral do
indeterminado ao determinado – multiplicidade indiscriminada (aparência) à discriminação
conceitual por meio da experiência.
Como traz Abela (2002, p. 60), em um “julgamento empírico”, o objeto de
julgamento (a aparência) deve ser considerado como local para que predicados sejam
atribuídos por meio da experiência em relação ao objeto.
É bem complicado sustentar uma visão da representação kantiana como sendo
objetivamente orientada como quer Abela, haja vista que o processo de dedução
transcendental em Kant parece se afastar disso. Veja-se o seguinte trecho retirado de Kant
(2001, B 34):
Sejam quais forem o modo e os meios pelos quais um conhecimento se
possa referir a objetos, é pela intuição que se relaciona imediatamente com
estes e ela é o fim para o qual tende, como meio, todo o pensamento. Esta
intuição, porém, apenas se verifica na medida em que o objeto nos for
dado; o que, por sua vez, só é possível, [pelo menos para nós homens],
se o objeto afetar o espírito de certa maneira. A capacidade de receber
representações (receptividade), graças à maneira como somos afetados
pelos objetos, denomina-se sensibilidade. Por intermédio, pois, da
sensibilidade são-nos dados objetos e só ela nos fornece intuições; mas
é o entendimento que pensa esses objetos e é dele que provêm os
conceitos. Contudo, o pensamento tem sempre que referir-se,
finalmente, a intuições, quer diretamente (directe), quer por rodeios
(indirecte) [mediante certos caracteres] e, por conseguinte, no que
respeita a nós, por via da sensibilidade, porque de outro modo nenhum
objeto nos pode ser dado. O efeito de um objeto sobre a capacidade
representativa, na medida em que por ele somos afetados, é a sensação.
A intuição que se relaciona com o objeto, por meio de sensação, chama-
se empírica. O objeto indeterminado de uma intuição empírica chama-
se fenômeno. Dou o nome de matéria ao que no fenômeno corresponde
à sensação; ao que, porém, possibilita que o diverso do fenômeno possa
ser ordenado segundo determinadas relações dou o nome de forma do
fenômeno. Uma vez que aquilo, no qual as sensações unicamente se
podem ordenar e adquirir determinada forma, não pode, por sua vez,
ser sensação, segue-se que, se a matéria de todos os fenômenos nos é
dada somente a posteriori, a sua forma deve encontrar-se a priori no
espírito, pronta a aplicar-se a ela e, portanto, tem que poder ser
considerada independentemente de qualquer sensação. (Destacou-se).
É difícil ler esse trecho da teoria kantiana e ainda assim sustentar uma objetivação
na orientação das representações no modelo de aquisição de conhecimento kantiano, porém,
não há de se perder as esperanças.
Primeiro, é preciso vislumbrar como se apresenta o modelo, o que será facilitado com
o desenho abaixo:
62
Figura 4 – Diferenciação do caminho a priori e a posteriori em Kant
Fenômeno
Em primeiro lugar, a compreensão das palavras kantianas, pelo que aqui se interpreta,
vai em direção de que a multiplicidade do objeto em si, por ser inesgotável, só pode ser
indeterminável, é dizer, o objeto das sensações, as quais são o meio de contato (algo como
canal), são objetos indeterminados, os quais levam o nome de fenômenos.
Do fenômeno duas entidades podem ser abstraídas: a matéria e a forma. A matéria é
aquilo do fenômeno que a sensação toma contato. A capacidade de receber representações
de fenômenos se chama sensibilidade e o efeito que um objeto impacta em tal capacidade
denomina-se sensação. O efeito que a matéria impacta na sensibilidade ocorre
“aposterioristicamente”.
A outra entidade dos fenômenos é a forma. Bem, o que se entende por forma em
Kant, segundo o texto acima, é uma entidade que precede a matéria, eis que não possibilita
contato por meio da sensação e, se a sensação não pode travar contato com ela, o que se
deduz é que deve ser considerada aprioristicamente.
O pressuposto aqui é simples: se o fenômeno é objeto indeterminado, quer dizer que
“algo” permite uma determinação do pensamento. Se esse “algo” não é sensação e, só a
sensação é que é a posteriori, isso quer dizer que esse algo é a priori, o que Kant chamou de
forma.
Kant chama a intuição de empírica, eis que se trata de uma intuição de sensação ou
por sensação. Isso quer dizer, na interpretação que aqui se atribui às suas palavras, que, se a
intuição é necessariamente empírica, deve ser objetivamente orientada pelo que ele
chamou “matéria” (do fenômeno).
No modelo de indeterminação determinação kantiano há, no entanto, uma
entidade chave, a qual permite deduzir relações determinadas da indeterminação do
fenômeno (objeto indeterminado) – a forma. Bem, quer parecer óbvio que uma forma só
pode ser determinada, eis que se fosse indeterminada forma não teria.
Forma
(determinação)
Matéria
(Indeterminação) Sensação
Matéria
Conceito
Intuição
empírica
Pensamento Intuição
pura Sensibilidade
A PRIORI
A POSTERIORI
Fonte: Elaborado pelo autor
63
Se isso é assim, tal implica que a determinação da forma segue ao pensamento, por
via da intuição pura, permitindo ao sujeito cognoscente um conceito da multiplicidade
disforme, v.g.: trata-se de ferramenta utilizada para comer – um garfo. Se a forma é do
sujeito, então o pensamento é subjetivamente orientado por ela.
Talvez com esse raciocínio permita-se uma visão realista empírica em Kant sem, ao
mesmo tempo, violentar a dedução transcendental de sua teoria, haja vista que a separação
em matéria e forma acomoda uma orientação objetiva (por meio da intuição empírica) e
uma orientação puramente subjetiva (por meio da forma e intuição pura).
Trazendo isso para o escotismo, é credenciável dizer, nas devidas proporções, que há
uma similaridade entre prime matter (Scotus) e matéria (Kant), bem como com haecceitas
(Scotus) e forma (Kant).
Com isso, sendo a intuição objetivamente orientada (empiricamente pela
matéria do fenômeno), isso quer dizer que o pensamento e o conceito também o são,
ainda que indiretamente. Portanto, algum ingrediente objetivamente orientado há no
pensamento, de modo que determinação e indeterminação não são de todo diferentes
ao final.
Não haveria, pois, nessa percepção do realismo empírico que se pode atribuir a Kant,
um radicalismo do ponto de partida, podendo-se dizer que as sensações são objetivamente
orientadas e, se assim o são, é porque não se abstrai totalmente o objeto em si como algo
dado, mas sim, considera-se sua indeterminação na multiplicidade inesgotável das coisas em
si como fenômeno e isso não é algo dado ou a priori, mas sim a posteriori como o próprio
Kant traz.
Admitindo-se que há um dado a posteriori que a sensibilidade a partir do fenômeno
permite sensibilizar, isso quer dizer que a summa realidade (realidade absoluta externa) não
se presume pressuposta por completo, o que definitivamente parece, pelo que aqui se
interpreta, ser uma forma de realismo ainda que moderada.
Trata-se, assim, certamente, na visão kantiana, de um mundo de aparências, mas isso
não quer dizer que a intuição não possa ser empiricamente orientada por uma matéria do
fenômeno, a qual é, certamente, de uma forma ou de outra, partícipe da summa realidade.
Porém, como se adiantou no desenho anteriormente apresentado, Kant não atribui o
conhecimento somente a uma intuição empírica das coisas, a continuação da leitura de sua
estética transcendental dá conta de uma outra forma de intuição – a intuição pura (KANT,
2001, B 35):
64
Chamo puras (no sentido transcendental) todas as representações em
que nada se encontra que pertença à sensação. Por consequência, deverá
encontrar-se absolutamente a priori no espírito a forma pura das intuições
sensíveis em geral, na qual todo o diverso dos fenômenos se intui em
determinadas condições. Essa forma pura da sensibilidade chamar-se-á
também intuição pura. Assim, quando separo da representação de um
corpo o que o entendimento pensa dele, como seja substância, força,
divisibilidade, etc., e igualmente o que pertence à sensação, como seja
impenetrabilidade, dureza, cor, etc., algo me resta ainda dessa intuição
empírica: a extensão e a figura. Estas pertencem à intuição pura, que
se verifica a priori no espírito, mesmo independentemente de um
objeto real dos sentidos ou da sensação, como simples forma da
sensibilidade.
Designo por estética transcendental uma ciência de todos os princípios
da sensibilidade a priori. [...] Na estética transcendental, por
conseguinte, isolaremos primeiramente a sensibilidade, abstraindo de tudo
o que o entendimento pensa com os seus conceitos, para que apenas reste
a intuição empírica. Em segundo lugar, apartaremos ainda desta intuição
tudo o que pertence à sensação para restar somente a intuição pura e
simples, forma dos fenômenos, que é a única que a sensibilidade a
priori pode fornecer. Nesta investigação se apurará que há duas formas
puras da intuição sensível, como princípios do conhecimento a priori, a
saber, o espaço e o tempo, de cujo exame nós vamos agora ocupar.
(Destacou-se).
Do que aqui se extrai das palavras de Kant, o que se tem é que a sensibilidade –
capacidade representativa dos sujeitos cognoscentes, quando despida de qualquer
consideração referente à matéria, ou seja, quando estiver somente impregnada pela forma,
que é o diverso do fenômeno, permitirá um efeito no sujeito cognoscente diferente da
sensação, o qual gerará um distinto modo de intuição, que Kant designa “puro”.
Tal intuição é totalmente baseada na forma do fenômeno e também é uma forma de
sensibilidade, mas uma forma pura dessa capacidade de representação, a qual não implica o
efeito de sensação.
Essa intuição pura seria alheia a uma orientação objetiva, verificando-se, pois, de
maneira totalmente apriorística – algo no espírito do sujeito cognoscente. Porém, diga-se que
isso que resta – que é intuição pura, é certamente intuição de alguma coisa, pois seria
estranho ser intuição de nada. Se é intuição de alguma coisa, quer parecer que será necessária
uma nova abstração, a qual parece levar à tal da forma kantiana. Trata-se de algo realmente
similar à haecceitas.
O interessante aqui é que Kant divide a intuição em pura e empírica, o que implica
que presume haver pensamentos impregnados por uma e outros por outra: pensamentos
puros e outros empíricos.
65
Isso pode se aproximar sobremaneira da ideia de objeto em Peirce, quem considera
não somente o objeto “externo”, mas também objetos fictos, como sonhos e ficções. Nessa
linha, em uma tentativa de compatibilização, os externos teriam efeito na intuição empírica
e os fictos na intuição pura de Kant.
É bom lembrar que esses pensamentos puros serão desenvolvidos na devida extensão
na parte da teoria kantiana que trata da lógica transcendental, a qual permite pensamentos
puros, os quais levam a conceitos despidos de relação a objetos.
A pergunta que parece óbvia de ser feita aqui é a seguinte: se existe uma “entidade”
concebida completamente aprioristicamente, isso quer dizer que a summa realidade que é
somente captável pelas sensações nada contribui para tal entidade? Ou de outro modo: que
pensamento é esse que implica conceitos que vêm despidos de ingredientes da realidade
sensível?
Para o que aqui se defende, a “montanha dourada” de Hume responde a contestação
com tranquilidade. A “montanha dourada” em si é uma fantasia da mente – uma criação sem
correspondente direto na summa realidade. Porém, indiretamente, a mente conhece com
orientação objetiva o que é montanha e a qualidade da cor “dourada”. Dessa forma, mesmo
a montanha dourada é mediatamente objetivamente orientada.
Mesmo um conto de fadas é baseado em ingredientes da realidade sensível, até
Sócrates era um homem, pois, baseado no modelo do homem que é retirado da realidade
sensível. Que intuição pura de espaço e tempo fictos é essa, que é matéria para o pensamento
e que se associa com o nada para gerar algo de que podemos pensar?
Como conceber um percepto que seja puramente espiritual? Será realmente que o
determinismo significa abdicar do indeterminismo da multiplicidade das coisas em si? Qual
o papel, então, da experiência nesse processo do conhecimento? São perguntas no estilo
socrático que aqui se colocam e que serão respondidas ao longo deste trabalho, mas que já
dão conta de que a posição aqui adotada é de um realismo com visão holística.
Uma pista de uma saída pode estar em Kant mesmo, haja vista a diferenciação que
traz em relação a julgamento e associação. Segundo Abela (2002, p. 62), no julgamento
afirma-se algo objetivamente por meio da cópula “é”, como em “isso é um cachorro”.
Julgamentos, assim, são afirmativos, “eles declaram que um estado de coisas existe” e
“afirmam uma necessária relação entre representações mesmo no caso de julgamentos
empíricos”.
66
A cópula “é” designa a relação das representações com a apercepção original e sua
necessária unidade: “encontro que um juízo mais não é do que a maneira de trazer à unidade
objetiva da apercepção conhecimentos dados” (KANT, 2001, B 142).
Essa é exatamente a diferença entre esse aspecto do pensamento kantiano e o de
Hume, o qual não vislumbra essa característica do julgamento objetivamente orientado,
conforme aponta Abela (2002, p. 63).
Visto isso, um ponto que deve ser finalmente tratado é acerca do papel da verdade
no pensamento kantiano e sua participação na construção do conhecimento. Nesse contexto,
traga-se o que diz Kant (2001, A 58) sobre verdade:
A velha e famosa pergunta pela qual se supunha levar à parede os lógicos,
tentando forçá-los a enredar-se em lamentável dialeto ou a reconhecer a
sua ignorância e, por conseguinte, a vaidade de toda a sua arte, é esta: Que
é a verdade? A definição nominal do que seja a verdade, que consiste
na concordância do conhecimento com o seu objeto, admitimo-la e
pressupomo-la aqui; pretende-se, porém, saber qual seja o critério geral e
seguro da verdade de todo o conhecimento. (Destacou-se).
A ideia primeira de Kant a respeito de verdade parece ser uma ideia muita próxima
àquela referente à da crença por convenção. Se há concordância é porque há um acordo entre
partes e, se há acordo, é porque algo foi estabelecido acerca de algo. Esse “algo” é que impõe
problemas epistemológicos ao ser trabalhado, eis que pode ser objetivamente orientado ou
não. Se for, então tratar-se-á de um objeto mesmo na realidade sensível captado pela intuição
empírica da matéria do fenômeno.
Kant (2001, B 191) continua sobre o tema para trazer:
Embora os fenômenos não sejam coisas em si, como são, todavia, a única
coisa que nos é dada para conhecer, terei que indicar qual a ligação que
convém, no tempo, ao diverso nos próprios fenômenos, visto que a sua
representação é sempre sucessiva na apreensão. Assim, por exemplo, a
apreensão do diverso no fenômeno de uma casa, que está colocada diante
de mim, é sucessiva. Se, porém, perguntarmos se o diverso desta mesma
casa também é sucessivo em si, ninguém, decerto, dará resposta afirmativa.
Todavia, se elevar os meus conceitos de um objeto até à significação
transcendental, a casa já não é uma coisa em si mesma, mas apenas
um fenômeno, ou seja, uma representação, cujo objeto transcendental
é desconhecido; que entendo, pois, por esta interrogação: como pode
estar ligado o diverso no próprio fenômeno (que não é todavia uma
coisa em si)? Considera-se aqui, como representação, o que se
encontra na apreensão sucessiva, e o fenômeno que me é dado, não
sendo mais que o conjunto destas representações, é considerado como
67
objeto das mesmas, com o qual deverá concordar o meu conceito,
extraído das representações da apreensão. Logo se vê que, sendo a
verdade o acordo do conhecimento com o objeto, aqui apenas se
podem indagar as condições formais da verdade empírica e o
fenômeno, por oposição com as representações da apreensão, só pode
ser representado como objeto dessas representações, distinto de elas,
porque essa apreensão está submetida a uma regra que a distingue de
qualquer outra e impõe, necessariamente, um modo de ligação do
diverso. O que, no fenômeno, contém as condições desta regra
necessária da apreensão, é o objeto. (Destacou-se).
Das difíceis palavras de Kant, o que se pode extrair é que quanto mais se
“horizontaliza” ao nível transcendental mais se abstrai a ponto de se afastar da coisa em si –
do objeto. Uma casa pode ser, como matéria do fenômeno, considerada em si, mas, se
considerada como forma, ou seja, o diverso do fenômeno, não pode. O diverso, assim, é
considerado de modo sucessivo na representação que o intelecto capta. Algo parecido com
dizer que é considerado diante do “eixo sintagmático” para usar um termo de linguística, o
qual quer dizer que é considerado em “presença”, de maneira opositiva entre representações,
em uma linhagem horizontalizada.
Aqui o objeto da representação é o fenômeno dado, que é o conjunto das
representações possíveis. A percepção das representações aqui é sucessiva, ou seja, não
alcança a coisa em si, eis que está em um grau alto de transcendência.
A representação está de um lado, como em uma tríade, estando o fenômeno do outro
lado e o conceito acima (de maneira horizontal), o qual deve concordar com o fenômeno.
Salta aos olhos uma associação clara com signo, objeto e interpretante, com a diferença que
aqui o fenômeno não é objeto em si. Para aproximar à linguística, pode-se dizer que esse
conceito que concorda com o fenômeno está acima, no eixo paradigmático (ou em ausência,
verticalizando-se).
Como a verdade é acordo com o objeto e o objeto da representação aqui é abstrato,
o que se tem é que as condições dessa verdade empírica são condições formais, as quais
levam em consideração uma regra da percepção que permite condições no fenômeno para a
ligação do diverso na representação. Essas condições referem-se ao objeto.
Kant (2001, B 279) vai além, ao falar da verdade e aproximá-la da experiência:
Da necessidade da existência de objetos exteriores para a possibilidade de
uma consciência determinada de nós mesmos não se conclui que toda a
representação intuitiva das coisas exteriores implique a existência
dessas mesmas coisas, porquanto esta representação pode ser
simplesmente um efeito da imaginação (em sonhos ou também na
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loucura); e, mesmo nesse caso, realiza-se unicamente mediante a
reprodução de antigas percepções externas, que, conforme
mostramos, só são possíveis mercê da realidade dos objetos exteriores.
Aqui apenas se pretendeu provar que a experiência interna em geral
só é possível mediante a experiência externa em geral. Para averiguar
se esta ou aquela suposta experiência é ou não simples imaginação,
será preciso descobri-lo segundo as determinações particulares dessa
experiência e o seu acordo com os critérios de toda a experiência real].
(Destacou-se).
Nesse trecho, Kant claramente impõe uma dependência objetivamente orientada para
a representação, sendo que a solução kantiana, pelo que aqui se interpreta, parece estar na
experiência externa como reguladora, mediata ou imediatamente, da experiência interna.
Portanto, nessa linha, a própria verdade, ainda que condicionada ao formal e podendo ser
abstraída de fenômenos, não está despida de ingredientes da experiência sensível (externa),
de modo que a concordância é, mediatamente ou imediatamente, em relação ao objeto em
si, ou uma relação interna abstraída de algum objeto que já passou pelos sentidos.
Aqui é possível compatibilizar, como se verá mais adiante, a aparentemente
contraditória alegação peirceana de que os sonhos também são objetos reais, haja vista
que podem o ser na dimensão de que dependem para sua determinação de experiências
externas anteriores da percepção.
Como no exemplo da “montanha dourada” de Hume, ao imaginá-la, o que se tem é
que essa imaginação é real na extensão de que ouro e montanha são experiências externas
possíveis, de modo que, ao menos mediatamente, essa imaginação da “montanha dourada”
é real.
Como se verá na sequência, a experiência é que formará a crença da realidade. A
qual pode, por vezes, em determinado momento e espaço historicamente considerados, ser
alheia à realidade mesma daquele tempo e espaço, o que, no entanto, não quer dizer que não
tenha ingrediente de realidade externa, significando tão somente e, aqui jaz um avanço
significativo em relação a Kant, que tal crença é falível (falibilismo peirceano) e, portanto,
permanentemente “atualizável”.
Portanto, quer parecer possível a alegação de que Kant considerou um realismo
empírico na sua teoria com acepções que se direcionam a uma orientação objetiva das
representações, o que implica que considerou a “existência” da realidade externa, o que não
necessariamente contrasta com seu realismo transcendental, que é parte de outra fatia de sua
teoria, para explicar, principalmente, a forma dos fenômenos.
Abbagnano (1998, p. 834) parece concordar com essa conclusão ao trazer que:
69
o realismo fora retomado por Kant na primeira edição de Crítica da Razão
Pura para denotar uma linha de pensamento em relação à qual espaço e
tempo são independentes da nossa sensibilidade, chamado de “realismo
transcendental”, linha de pensamento essa oposta àquela defendida por
Kant. Por outro lado, Kant indicava uma doutrina sua que admitia
uma realidade exterior das coisas, o “realismo empírico”. (Destacou-
se).
Esse realismo empírico kantiano que é o que se quer aplicar ao fenômeno jurídico, o
qual, a exemplo do fenômeno na visão kantiana, tem também forma e matéria. O que se
defende é que é possível também no direito perceber as coisas do mundo, na consideração
de que implicam consequências de direito, por meio de uma intuição empírica.
Assim, na interpretação e aplicação do direito, a autoridade jurídica competente
poderia fazer uso de uma intuição empírica, o que afastaria juízos formados por dedução
lógica. Tal intuição empírica, fundamentada na matéria do fenômeno kantiano, seria, pois,
objetivamente orientada.
Isso concilia Kant com o realismo in re de Platão, com o universal in re de Aristóteles
e com a ideia de prime matter, a qual pode ser associada ao escotismo. Traz, para o direito,
não só uma visão considerada na perspectiva da autoridade competente para interpretar e
aplicar o signo jurídico gravador geral e potencial, mas também na perspectiva daquele
competente para gravá-lo em primeiro grau.
O gravador (legislador) do signo jurídico geral e potencial tampouco poderia se fazer
valer, nessa premissa, de uma intuição pura para gravação do mesmo, mas sim de uma
intuição empírica, o que quer significar que sua orientação tem de ser objetiva, afastando,
dessa forma, construções e reformas no edifício jurídico que sejam somente formalmente
levadas a efeito ou com inspiração meramente subjetiva.
Visto isso, diante de tantas aproximações que se fizeram anteriormente acerca do
realismo peirceano com o realismo empírico de Kant, com o realismo escotista, com o
realismo aristotélico e com o realismo platônico, traga-se na sequência do que se trata o
realismo peirceano propriamente dito.
1.1.5 Realismo Peirceano (Idade Contemporânea)
Para entender o realismo peirceano, é preciso, em primeiro lugar, traçar dois
paralelos importantes: o paralelo da teoria peirceana com a teoria escotista, o que incluirá,
por consequência, um paralelo com Aristóteles, eis que é a base de Scotus e, pois, com
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Platão, que é o fundamento, por sua vez, de Aristóteles. O segundo paralelo vem com a teoria
kantiana. Esse paralelo se deve à circunstância de Peirce ter estudado incessantemente a
Crítica da Razão Pura de Kant e de se poder descobrir em Kant um certo realismo empírico.
Nesse contexto, inicia-se por explicar resumidamente como funciona o pensamento
peirceano em relação à sua teoria dos signos. Conforme traz Burch (Stanford Encyclopedia
of Philosophy, s.p., 2014), “a insistência de Peirce na ubiquidade da mente no cosmos é a
importância atrelada ao que ele chamou de ‘semeiótica’, a teoria dos signos no mais geral
sentido”.
Importante inteligir que Burch (Stanford Encyclopedia of Philosophy, s.p., 2014)
aponta que o que Peirce chamou “semeiótica” é relevantemente diferente do que se tornou
a “semiótica” – a designação mais comum encontrada cientificamente para se referir à teoria
dos signos. Burch (Stanford Encyclopedia of Philosophy, s.p., 2014) alerta que a
“semiótica”, como se tem hoje, não se origina tanto de Peirce propriamente, mas de figuras
como Ferdinand de Saussure e Charles W. Morris.
Para Burch (Stanford Encyclopedia of Philosophy, s.p., 2014), essa confusão entre
“semeiótica” e “semiótica” deve ser evitada, haja vista que a teoria dos signos de Peirce
deriva, em verdade, do escotismo. A nomeação que se dá e a origem da teoria peirceana pode
ser vislumbrada em Peirce (CP 1.444):
Porém, além de ser lógico no sentido de demandar uma análise lógica,
nossa investigação também se refere a duas como uma concepção de
lógica. O termo “lógica” é empregado por mim de uma maneira não
científica em dois casos diferentes. No seu sentido mais restrito, é a
ciência das condições necessárias para o alcance da verdade. No seu
sentido mais amplo, é a ciência das leis necessárias do pensamento, ou,
ainda melhor (pensamento sempre tomando lugar por meio de signos),
é semeiótica geral, tratando não meramente da verdade, mas também
das condições gerais de signos serem signos (a qual Duns Scotus
chamou gramática especulativa), também das leis da evolução do
pensamento, as quais, já que coincidem com o estudo das condições
necessárias de transmissão do significado dos signos de uma mente a outra,
e de um estado da mente a outro, devem, por conta de se tirar proveito de
uma velha associação de termos, ser chamada retórica especulativa, mas a
qual eu me contento de chamar com inexatidão lógica objetiva. (Destacou-
se).
A teoria do signo peirceana, a semeiótica, é uma teoria lógica, mas não no sentido
restrito que se dá de lógica como “ciência das condições necessárias para o alcance da
verdade”, tratando-se de uma concepção de lógica mais ampla, a qual abarca as condições
71
gerais dos signos serem signo, o que, em última instância, significa uma teoria que estuda,
também, as condições para geração de signos (semiose).
A diferença de nomenclatura apontada por Burch é um tanto nebulosa em Peirce,
haja vista que no CP 8.377 ele traz que chamará sua lógica de semeiótica ou provavelmente
sem o “i” semeótica. Em outros trechos, ele utiliza somente semeótica sem o “i”, como no
CP 8.378. Porém, há trechos que, como no CP 2.227, em que Peirce usa o termo semiótica
[semiotic], proveniente de “sémeiötiké”, para o que atribui ser uma lógica no sentido geral
ou a formal doutrina dos signos, do que, pelo que aqui se entende, não dá para assegurar que
Peirce, realmente, não utilizava os termos semeiótica e semiótica como equivalentes ou, na
verdade, os diferenciava somente em relação à sua especificidade, sendo semiótica mais
estreito que semeiótica. Aqui se utilizará semeiótica diante da proposta de Burch, porém,
somente porque faz sentido diferençar a doutrina dos signos de Peirce daquela da linguística
geral.
Visto isso, diga-se, agora, que a teoria peirceana é uma teoria relacional do signo. A
relação representacional peirceana é de uma espécie especial, eis que nela a relação é triádica
diferentemente do que se pode encontrar na teoria semiótica (ou semiologia) saussuriana
quando contemplada na noção de significante e significado.
Uma explicação mais acurada da semeiótica, juntamente às partes que formam a
representação relacional peirceana na tríade, vislumbra-se em Peirce (CP 8.343):
Parece que um dos primeiros passos em direção a uma ciência semeiótica
[sémeiötiké], ou cenoscópica ciência dos signos, deve ser uma acurada
definição, ou análise lógica, dos conceitos da ciência. Eu defino Signo
como qualquer coisa que, de um lado é tanto determinada pelo Objeto
e, por outro lado, é também determinadora de uma ideia na mente da
pessoa, sendo que essa última determinação, a qual eu chamo de
Interpretante do signo, é, desse modo, mediatamente determinada pelo
Objeto. Um signo, portanto, tem uma relação triádica com seu Objeto
e com seu Interpretante. Porém, é necessário distinguir o Objeto
Imediato, ou Objeto como o Signo o representa, do Objeto Dinâmico,
ou realmente eficiente, mas não imediatamente presente no Objeto. É,
desse mesmo modo, requisito distinguir Interpretante Imediato, é
dizer, o Interpretante representado ou significado no Signo, do
Interpretante Dinâmico, ou efeito realmente produzido na mente pelo
Signo; e de ambos [distinguir] o Interpretante Normal, ou efeito que
seria produzido na mente pelo Signo depois de suficiente
desenvolvimento do pensamento. (Destacou-se).
A diferença que se pode atribuir, pois, entre semeiótica peirceana e a “semiótica”
saussuriana (semiologia ou linguística geral) vai no sentido de que naquela o que se
72
considera é uma tríade (objeto, signo, interpretante) e nesta uma díade (significante e
significado). A teoria saussuriana será explicada com mais vagar mais adiante neste trabalho.
Por ora, basta dizer que na semiologia saussuriana há, por assim dizer, uma
desconsideração do objeto na relação sígnica, haja vista que para se alcançar o significado,
o qual pode ser tomado como conceito (na mente), é necessário um significante, o qual pode
ser tomado como representação (podendo ser ela verbal, escrita, gestual etc. – uma palavra,
por exemplo, é um significante escrito). Ao se partir da representação (significante), o que
se verifica é que o conceito não é necessariamente objetivamente orientado, eis que há uma
desconsideração, por assim dizer, do objeto em si que já é representação.
É por isso que a semiologia saussuriana não pode ser vista, em uma visão restrita,
como realista, mas sim nominalista, pois não se considera a “existência” do substrato real
para fins do processo de geração de significado, partindo-se da representação.
Peirce, como se notou, tem uma aproximação do tema diferençada, eis que na sua
relação triádica considera o objeto dentro do processo de representação relacional. É por isso
que se chama sua teoria de realista, eis que acolhe o objeto na relação triádica.
A relação que Peirce contempla é de determinações multisetoriais mediatas e
imediatas, a depender do ponto de partida. As relações possíveis, partem de objeto com
objeto, objeto com signo, signo com objeto, signo com signo, signo com interpretante,
interpretante com signo, interpretante com objeto etc.
A ideia parece simples: o signo visto como representação de um objeto tem com esse
objeto uma relação imediata, ou seja, esse objeto para com o signo é um objeto imediato no
signo. O signo é determinado pelo objeto (relação determinada).
O signo, em relação ao interpretante, no entanto, possui uma relação determinadora,
porém, o objeto não é excluído da relação, eis que esta é triádica. Portanto, a relação do
interpretante com o objeto é mediada, ou seja, o objeto do interpretante é um objeto dinâmico
mediado pelo signo. É o exemplo do catavento e do vento. Para o interpretante o vento que
o catavento indica é objeto dinâmico.
Trazendo a analogia a Kant, talvez as coisas fiquem mais claras. Kant, como já se
colocou, diz que o efeito que a matéria causa na sensibilidade do sujeito cognoscente é
chamado de sensação. Lembre-se que a sensibilidade é a capacidade representativa do
sujeito. Em última instância, a matéria tem um efeito no sujeito, ao que Kant chama sensação
e é a partir desta que haverá a intuição empírica, dela o pensamento e o conceito.
73
Essa matéria (realidade externa) é o objeto dinâmico peirceano. Porém, existe outro
objeto, que não está no objeto dinâmico (ou matéria kantiana), mas que, ao mesmo tempo,
tem um efeito no sujeito cognoscente – o objeto imediato.
Lembre-se que Kant disse, como já apontado, que o diverso do fenômeno que é
inteligido pelo sujeito é a forma do fenômeno, sendo que este tem matéria e forma. Essa
forma é inteligida por meio de um modo diferente de intuição, a qual Kant chamou intuição
pura. Aqui jaz uma diferença, pois Kant traz que a relação da forma com o sujeito é apenas
formal, parte da lógica transcendental e não da sua estética transcendental. Portanto, nesse
sentido, não haveria uma mediação com o objeto dinâmico (ou matéria kantiana).
Em Peirce, no entanto, há sim essa mediação, eis que o equivalente à forma kantiana
– o objeto imediato, tem função de mediar o objeto dinâmico para com o interpretante. Frise-
se que o objeto (dinâmico e/ou imediato) é ponto de partida, sendo que o efeito (dinâmico
e/ou imediato) que provoca no sujeito cognoscente é que é justamente o interpretante.
Nesse contexto, outra aproximação possível com Kant: se o efeito que a matéria
causa no sujeito é sensação e essa sensação chega à intuição empírica, o efeito que a forma
causa no sujeito é mediado pela intuição pura. A diferença é que sensação se pode
considerar a posteriori e forma por meio da intuição pura se considera, segundo Kant,
apenas a priori.
Essa é uma diferença muito relevante entre os dois sistemas de representação
kantianos, em que pese, pelo que aqui se entende, que quando Kant diz que fenômeno é
matéria e forma, de algum modo, partindo-se do fenômeno e, dele se deve partir, alguma
consideração objetiva deva-se tomar. Com base nisso, uma parametrização com o objeto há
afinal e tudo que se quer dizer “apriorístico” é, ao fim, de algum modo, em alguma instância
da mente, somente uma atualização equivocada de um conceito sobre um objeto que
empiricamente se teve contato.
Falou-se acima, com base na transcrição de Peirce, em interpretante imediato e
dinâmico, porém, Peirce tratou também do interpretante normal. Para compreendê-lo haverá
de se fazer uma incursão por outra aproximação de sistemas, agora com o sistema escotista
de representação. Lembre-se que Scotus trabalhava com a divisão entre prime matter e
haecceitas, os quais, em ambos os casos, precediam a substância material. De uma forma
mais simplificada: em ambos os casos poder-se-ia considerá-los aprioristicamente.
A diferença, no entanto, não está somente na precedência de tais entidades em relação
à substância material, mas na circunstância de sua orientação. Viu-se que Scotus foi
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influenciado pela árvore de Porfírio, a qual não era bem árvore, como já se disse. Nesse piso,
se considerados os galhos da árvore, perceber-se-á que a prime matter está no galho da
esquerda (lado da natureza material ou matéria substancial), o qual está impregnado por uma
“orientação objetiva”.
Já a haecceitas é uma entidade positiva que permite o processo de individuação no
escotismo, a qual se encontra no lado direito da árvore de Porfírio (lado da forma
substancial), o qual está impregnado por uma orientação subjetiva (ou melhor, formal).
Porém, como se viu, Peirce traz também a ideia de interpretante normal, o qual pode
ser identificado como uma potência de efeito no sujeito. Não é nem interpretante imediato,
nem interpretante dinâmico.
O interpretante normal está, no escotismo, para com o que se chamou substância
formal (lado direito da árvore de Porfírio), que se assemelha à quididade aristotélica, algo
como a virtude essencial de alguma coisa. Trata-se de um interpretante que está em potência.
Em outras palavras, é uma terceira via que está entre o universal e o particular.
Porém, não há em Peirce um designado “objeto normal”. Bem, se há um interpretante
normal, o qual deve ser entendido como potencial efeito no sujeito, deve haver, por lógica,
um objeto normal, que não é nem objeto imediato e nem objeto dinâmico e que está em
potência para a potência do efeito do interpretante normal.
Não se encontrou em Peirce remissão a tal objeto, porém, este parece logicamente
abstraível de sua teoria. Aproximando-o de Scotus, o que se pode dizer é que ele estaria para
com o que no escotismo se chama natureza comum ou comunidade, algo como objetos
considerados somente em relação à sua potencialidade, os quais não são nem universal nem
singular.
75
O desenho das correspondências, separadas por cor, relacionado às entidades e seus
efeitos no sujeito, tidas por cada autor (Peirce, Scotus e Kant), restaria mais ou menos assim:
Figura 5 – Correlação Peirce, Scotus e Kant.
Vista acima a ilustração das correspondências que podem ser sacadas do pensamento
de Scotus e Kant para com o de Peirce, segue-se para especificar ainda mais essas
correspondências, tratando com vagar agora das similaridades entre prime matter e
haecceitas do escotismo com as categorias ceno-pitagóricas peirceanas da primeiridade,
segundidade e terceiridade.
1.1.5.1 Prime matter e Haecceitas no Escotismo Versus Primeiridade, Segundidade e
Terceiridade no Realismo Peirceano
Acerca dessas correspondências, Peirce (CP 1.405) assim se pronunciou:
A maioria dos sistemas filosóficos mantém certos fatos ou princípios
como últimos. Em verdade, qualquer fato é em um sentido último – é
dizer, na sua isolada e agressiva teimosia e realidade individual. O que
Scotus chama hæcceities das coisas, a presentidade [hereness] e
atualidade [nowness] delas, são realmente últimas. Por que isso que está
aqui está da forma como está; como, por exemplo, se por acaso acontecer
de ser um grão de areia, [como] isso chegou a ser tão pequeno e tão duro,
podemos nos perguntar; podemos, igualmente, perguntar como isso foi
carregado até aqui; mas a explicação nesse caso nos leva de volta ao fato
que isso estava certa vez em outro lugar, em relação ao qual coisas
similares poderiam ser esperadas de estar. Por que ISSO,
independentemente de suas características gerais, vem a ter qualquer
lugar definido no mundo, não é uma questão a ser perguntada; trata-
se simplesmente de um fato último. Há também uma outra classe de
fatos dos quais não é razoável se esperar uma explicação, é dizer, fatos
de indeterminação ou variedade. Por que um tipo definido de evento é
frequente e um outro raro, é uma questão a ser perguntada, mas uma
Objeto Dinâmico Interpretante Dinâmico
Objeto Imediato Interpretante Imediato
Objeto
Matéria-prima Haecceitas
Peirce normal
Matéria
Kant Scotus
Objeto Normal
Forma
Interpretante Normal Natureza Comum Substância Formal
--
-- --
S
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g
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o
D
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s
Fenômeno
I
n
t
u
i
ç
ã
o
Aparência
Fonte: Elaborado pelo autor
76
razão pela qual o fato geral que alguns tipos de eventos são comuns e
outros raros, isso seria injusto exigir. Se todos os nascimentos
acontecessem num mesmo dia da semana, ou se acontecessem sempre
mais aos domingos do que às segundas, isso seria um fato a ser
explicado, mas que eles [nascimentos] acontecem em proporções iguais
em todos os dias não requer nenhuma explicação particular. Se
pudéssemos encontrar todos os grãos de areia numa certa praia separados
eles em duas ou mais agudamente distintas classes, como esféricos e
cúbicos, haveria algo a ser explicado, mas que eles são de vários
tamanhos e formas, de característica não definível, pode apenas ser
referido à geral multiplicidade da natureza. Indeterminação, então, ou
pura primeiridade, e hæcceity, ou pura segundidade, são fatos que não
chamam por ou não são suscetíveis de explicação. Indeterminação nos
fornece nada para se perguntar a respeito; hæcceity é o coeficiente
último, o fato bruto que não será questionado. Porém, todo fato de uma
geral ou ordenada natureza chama por explicação; e a lógica nos proíbe
assumir em relação a qualquer fato dado aquele tipo que seja na sua própria
natureza absolutamente inexplicável. Isso é o que Kant chama princípio
regulador, é dizer, uma esperança intelectual. (Destacou-se).
O CP acima transcrito continua, mas pare-se por aqui para se explicar as agudas e
geniais palavras de Peirce até o final do trecho apresentado acima. Em primeiro lugar, Peirce
parece diferençar fato de evento e, isso será muito relevante quando mais a frente se cotejar
ambos no presente trabalho.
Do que se pode extrair da genialidade de seus dizeres, Peirce nos traz que fatos são
similares a princípios e que os sistemas filosóficos guardam lugar para tais fatos ou
princípios como últimos ou definitivos, no sentido de que se exauririam em si mesmos sem
necessidade de explicação ulterior.
Ele assemelha esses fatos ou princípios últimos à haecceitas escotista. Lembre-se
que haecceitas é aquela entidade de carga positiva que trabalha no processo de individuação
das coisas, restando localizada no lado direito dos galhos da árvore de Porfírio. É bom
enfatizar que Scotus esclarece que haecceitas não é nem universal nem particular.
A presença desses fatos ou princípios últimos, conforme se extrai de Peirce, não
necessita de explicação. Portanto é, como se diz, “algo dado”, a priori, ou seja, que qualquer
“isso”, a partir de suas características gerais, venha a estar de uma maneira definida no
mundo, é um fato ou princípio último.
Ao se seguir a linha escotista aqui, o que se poderia dizer é que esses fatos ou
princípios últimos são haecceitas. Algo como dizer que Aristóteles vivia na Grécia na época
antiga e que ele (Aristóteles) tinha humanidade. Essa humanidade não requer explicação – é
haecceitas ou um princípio ou fato último.
77
Porém, Peirce muda o tom na sequência para falar de uma outra classe de fatos – os
fatos de indeterminação ou variedade. Bem, se são outros fatos é porque não são os fatos ou
princípios últimos de que se estava falando antes.
Essa classe de fatos de indeterminação lembra o que Kant chama multiplicidade, o
que se confunde com o mundo de aparências percebido pela intuição empírica. Os fatos ou
princípios últimos de Peirce parecem estar conectados, em contraposição, com questões
relacionadas ao espaço, eis que é a definição no espaço que Peirce usa como comparação.
No entanto, no que toca aos fatos de indeterminação, o foco está no contraste com
problemas relacionados ao tempo das coisas. Peirce exemplifica com a frequência do
nascimento de bebês. É importante frisar que ele, ao falar de fatos de indeterminação,
contrasta-os com eventos definidos ou gerais. Fala de eventos frequentes e eventos raros:
bebês que nascem mais aos domingos e bebês que nascem a todo o tempo em qualquer dia.
Não se sabe se Peirce quis realmente diferenciar fato de evento, mas como aqui se
adota que não há sinônimos, como se explicará mais adiante, quer parecer que a
diferenciação de uso da linguagem no texto citado é proposital.
Desse modo, quer parecer que, na particularidade, poder-se-ia falar em eventos, v.g.:
nascimentos de bebês que acontecem sempre aos domingos, sendo que os eventos teriam
uma ligação mais direta com o tempo do que com o espaço (acontecem com mais frequência
ou mais raramente). Aqui parece ser possível crer que esses eventos (nascimento de bebês
aos domingos) são particulares. Não se sabe se Peirce quis, realmente, fazer essa
diferenciação, porém, quer parecer lógica essa conclusão com base no trecho transcrito
Peirce também diferencia esses particulares (eventos) dos fatos de indeterminação,
v.g.: grãos de areia têm vários tamanhos e formas. Aqui Peirce chama tal circunstância de
um fato geral (o fato geral de que...) e diz, como já se colocou acima, “que eles são de vários
tamanhos e formas, de característica não definível, pode apenas ser referido à geral
multiplicidade da natureza”.
Aqui parece, igualmente, haver uma diferença entre indeterminação – que é essa
geral multiplicidade da natureza, ou seja, o fato geral ou de indeterminação e o fato ou
princípio último. Isso parece se comprovar quando Peirce fala “indeterminação, então, ou
pura primeiridade, e haecceitas, ou pura segundidade, são fatos que não chamam por ou não
são suscetíveis de explicação”.
78
Bem, primeiridade e segundidade, segundo se interpreta das palavras de Peirce, são,
pois, fatos, sendo o segundo, pelo que aqui se entende, do tipo último (segundidade) e o
primeiro do tipo indeterminado (primeiridade).
Para fins do fato último, há uma reação em relação a como as coisas estão definidas
no mundo (espaço), conforme Peirce mesmo diz e já se transcreveu acima: “Por que ISSO,
independentemente de suas características gerais, vem a ter qualquer lugar definido no
mundo, não é uma questão a ser perguntada; trata-se simplesmente de um fato último”.
Para fins do fato de indeterminação, há uma ponderação em relação ao tempo com
que/em que as coisas acontecem. Peirce diz, conforme já se transcreveu acima: “mas que
eles [nascimentos] acontecem em proporções iguais em todos os dias não requer nenhuma
explicação particular”.
A diferença parece ser assemelhada ao que Kant chama de extensão e figura, como
já falado. Vai-se na linha do que, igualmente, traz Scotus, conforme já apresentado, no
sentido de que quanto menos particular menos unidade tem a coisa. O máximo de unidade
está no particular e quanto mais se distancia do particular mais disforme e múltiplo a coisa
é – um mundo de aparências.
Importante esclarecer que, o que se interpreta aqui é que esses fatos de
indeterminação (primeiridade) são, em verdade, eventos (como potências ou objetos
normais), de modo que o que haveria seriam eventos e fatos ou princípios últimos.
Um problema pode surgir quando Peirce fala “haecceitas é o coeficiente último, o
fato bruto que não será questionado”. Se algo não pode ser questionado, esse “algo” é a
priori, ou seja, um elemento dado, o que poderia confundir o realismo peirceano com a linha
dos idealistas empíricos, como no caso de Hume, de quem também já se falou.
Quer parecer que essa interpretação não condiz com a doutrina peirceana
vislumbrada holisticamente, eis que seu realismo, como aqui se interpreta, direciona os olhos
para a realidade externa como algo “existente”, como se demostrará, de modo que a melhor
interpretação para esse “fato bruto que não pode ser questionado” é que ele é a própria
realidade externa – a suma realidade..
Esse fato bruto é o fato ou princípio último – a haecceitas escotista. Trata-se de
segundidade como “existência” ainda que essa “existência” seja inesgotável pelo sujeito
cognoscente, como é toda realidade mesma na sua “essência” substancial (na sua
haecceitas).
79
Esse fato bruto difere do fato de indeterminação – que é primeiridade, eis que aqui
se aproxima mais da prime matter escotista, a qual resta no lado esquerdo da árvore de
Porfírio na linhagem da matéria substancial ou natureza material.
Porém, como se pode, então, distinguir prime matter de haecceitas? Bem, aqui pede-
se a ajuda de Noone, conforme já apontado, o qual traz que, no escotismo, a diferença diz
respeito ao ingrediente lógico, de modo que somente formalmente é que essa diferença
aparece.
O que Noone parece querer dizer é que a determinação lógica de um indivíduo no
processo de individuação escotista, quanto à prime matter, não tem a haecceitas na sua
descrição formal. O mesmo ocorre quanto à haecceitas.
Algo como que a descrição formal de Sócrates não pressupõe, quanto à prime matter,
sua humanidade, sendo que, quanto à haecceitas¸ outra descrição formal aparece, na qual
não se pressupõe a prime matter (materialidade).
Dessa explicação, segue-se que tanto prime matter quanto haecceitas têm na sua
determinação uma operação formal que somente o lógico permite diferenciá-las, de modo
que, em se tratando de operação formal, o reverso é verdadeiro, ou seja, na “naturalidade”
ou “existência” essa diferença não se apresenta clara.
A verdade mesma é que “atualidade” como um processo de atualização das coisas
em si somente se pressupõe diante de um ser cognoscente, eis que não é possível se
“atualizar” sobre alguma coisa sem que essa coisa possa ser inteligida.
O intelecto é que é o mecanismo “atualizador” das coisas e nele há ingrediente formal
– o mundo de aparências kantiano emerge. Portanto, primeiridade e segundidade na
“naturalidade” se confundem, como prime matter e haecceitas também.
Tomando essa linha como correta, logra-se afastar o ingrediente a priori. A
multiplicidade é disforme, inumerável, desvanecida, indeterminada... sendo que o princípio
regulador que permite sua intelecção é uma lógica em sentido amplo, ou melhor, a semeiótica
peirceana surgindo com força vigorosa para mediar o caos e produzir cosmos.
Volte-se um pouco ao escotismo para que essas ideias de prime matter e haecceitas
restem ainda mais claras para o leitor em seu cotejo com as ideias de primeiridade e
segundidade. Nesse contexto, diga-se que Cross (Stanford Encyclopedia of Philosophy, s.p.,
2014) traz que uma haecceitas, na linha escotista, “é uma não-qualitativa propriedade
responsável por individuação e identidade”.
80
Como pontua Cross (Stanford Encyclopedia of Philosophy, s.p., 2014), não se trata
de:
um particular puro no sentido de alguma coisa subjacente às
qualidades. É, no entanto, uma não-qualitativa propriedade de uma
substância ou coisa: é um ‘esseísmo’ [thisness] (uma haecceitas, do Latin
haec, significando ‘esse’ [this]), o que é diferente de ‘queísmo’
[whatness] (um quidditas, do latim quid, significando ‘que’ [what]).
Ademais, substâncias, no meio que metafísica defendida por Scotus, são
basicamente coleções de propriedades unidas firmemente, as quais são
todas qualitativas com exceção de uma; a propriedade não-qualitativa
é a haecceitas. Em contraste com explicações mais modernas do problema
da individuação, Scotus sustenta que a haecceitas explica mais do que
apenas a distinção de uma substância da outra. De acordo com Scotus, o
fato que substâncias individuais não podem ser instanciadas — são
indivisíveis ou incomunicáveis, como aponta Scotus, — também requer
explicação. Em resumo, haecceitas é supostamente o que explica
individualidade. (Destacou-se).
Como traz Cross (Stanford Encyclopedia of Philosophy, s.p., 2014), a melhor forma
de explicar uma haecceitas é pelos contrastes. Assim, diga-se que substâncias são
basicamente coleções de propriedades unidas firmemente, as quais são todas qualitativas
com exceção de uma; a propriedade não qualitativa da coisa é a haecceitas, sendo que a
circunstância que substâncias são indivisíveis ou incomunicáveis requer uma explicação, a
qual diz com a haecceitas que explica essa individualidade.
Haecceitas é o que explica esse ser diferente daquele, isso ser diferente daquilo, um
ser diferente de muitos e particular ser diferente de universal. Trata-se de um “esseísmo”,
de uma particularização, o que é distinto do porquê das coisas, de um “queísmo” das coisas,
da razão por trás delas. É diverso do quidditas. O quid da questão é o quê da questão e essa
razão não é haecceitas.
Usando o exemplo de Peirce: que grãos de areia estão separados por esféricos e
cúbicos, isso requer explicação, mas que são de diversos tamanhos e formas é algo que não
se pode explicar. O que explica que grãos de areia são esféricos ou cúbicos é a haecceitas,
eis que é o que permite ao princípio da individuação de Scotus operar.
Conforme aponta Cross (Stanford Encyclopedia of Philosophy, s.p. 2014), em seu
ordinatio, Scotus não utiliza o termo haecceitas, fazendo uso de diferença individual. Veja-
se a seguir, como se refere Scotus (apud SPADE, 1994, p. 76):
Eu explico o que eu entendo por individuação ou unidade numérica ou
singularidade: Certamente não a indeterminada unidade pela qual
81
qualquer coisa numa espécie é dita de ser uma em número. Diferente disso,
eu quero dizer unidade designada como um isso, de modo que apenas como
foi falado acima que um indivíduo é incompossível com ser dividido em
partes subjetivas e a razão dessa incompossibilidade é perguntada aí, de
modo que eu também digo aqui que um indivíduo é incompossível com
não ser um designado isso por essa singularidade e a causa é
perguntada não de singularidade em geral, mas dessa designada
singularidade em particular — é dizer, como isso é
indeterminavelmente isso. (Destacou-se).
A diferença surge do contrate entre diferença individual e diferença específica, como
se pode verificar em Scotus (apud SPADE, 1994, p. 101):
Tanto quanto uma unidade em comum resulta de alguma entidade em
comum, também uma unidade qualquer resulta per si de alguma entidade
ou outra. Portanto, unidade absoluta (como a unidade de um individual
[...] é dizer, uma unidade com a qual uma divisão em várias partes
subjetivas é incompatível), se é encontrada em seres (como toda teoria
assume), isso resulta per si de alguma entidade per si. Porém, isso não
resulta per si de uma entidade da natureza, porque essa tem uma certa
per si real unidade dela mesma, como foi provado [...]. Portanto, o
resultado é alguma outra entidade que a determina. E essa outra
entidade constitui alguma coisa per si una com a entidade da natureza,
porque o todo para o qual essa unidade pertence é perfeito em relação
a ele mesmo. (Destacou-se).
Aqui como se nota, Scotus trata do seu princípio da individuação, o qual se faz a
partir de uma entidade que não é a entidade da natureza per si, mas se constitui una com essa
para formar uma unidade individualizadamente perfeita. Essa entidade que permite o
individual é haecceitas.
É preciso, no entanto, diferenciar haecceitas de prime matter para que a compreensão
do tema seja completa. Conforme já se colocou acima, prime matter é “algo básico sem
características particulares como cor e peso, mas com a potencialidade de ter tais reais
características”. Trata-se de “um substrato para a geração de substâncias, mas não é
substância em si”.
Scotus explica, como já se referenciou acima, que “alguma unidade real está na coisa,
sem nenhuma operação do intelecto, menor que a unidade numérica ou que a unidade própria
do singular, ‘unidade’ que é da natureza de acordo consigo mesma”.
Essa “alguma unidade real” é naturalmente anterior, é “aquilo que é por si objeto do
intelecto, e por si, como tal, é considerado pelo metafísico e é expresso pela definição”. Essa
primeira intelecção do objeto “da natureza, de maneira que não é co-inteligido nenhum
82
modo, nem aquele que é seu no intelecto nem aquele que é seu fora do intelecto”, conforme
já se colocou, é prime matter – é primeiridade.
Outra maneira de ver o tema é dizendo que prime matter é o mesmo que o objeto
dinâmico de Peirce. Trata-se da matéria da coisa sem que tenha sofrido nenhuma
interferência do intelecto; é aquilo que o signo representa, mas que quando representado no
signo não é mais a matéria original ou prime matter, eis que como representação já é um
tipo de intelecção do original e não mais o original em si; na representação é objeto imediato.
Mais um trecho de Scotus (apud SPADE, 1994, p. 102) facilita as coisas:
No mesmo item que é uno em número há algum tipo de entidade da qual
resulta uma unidade menor do que a unidade numérica é. Tal unidade [é
dizer numérica] é real, e para o que tal unidade pertence é dela mesma
formalmente una por uma unidade numérica. Eu concebo, portanto, que
essa unidade real [é dizer, numérica] não pertence a qualquer coisa
existente em dois individuais, mas em um.
Aqui Scotus parece contrastar a haecceitas com o que ele chama de prime matter. O
ponto de partida de Scotus é que o particular é a maior unidade possível na particularidade
do individual. Tudo que do particular seja mais geral é densamente menos unitário que o
particular, tendendo à multiplicidade disforme da aparência na generalidade total.
Scotus (apud SPADE, 1994, 103) traz um exemplo que pode melhorar a
compreensão:
Cor em brancura é especificamente una, mas não é tão dela mesma ou per
si ou primariamente, mas apenas denominativamente. Porém, uma
diferença específica é primariamente una, porque é primariamente
incompatível com ser dividida em o que é variado em espécies. Brancura
é especificamente una per si, mas não primariamente, porque é
especificamente una por meio de alguma coisa intrínseca a ela (por
exemplo, por meio da diferença). Assim, eu concebo que o que quer
que seja que esteja na pedra é numericamente uno, ou primariamente
ou per si ou denominativamente. Primariamente, diga-se, como que por
meio do qual tal unidade pertence ao composto. Per si, a pedra
propriamente, da qual é primariamente una com essa unidade [que] é per
si parte. Apenas denominativamente, o que é potencial e é aperfeiçoado
pelo real [actual] e é desse modo por falar denominativamente
relacionado à sua realidade [actuality]. (Destacou-se).
A base de Scotus é o direcionamento ao aperfeiçoamento do princípio da
individuação. Para ele, pelo que aqui se interpreta, isso tem a ver com a diferença específica
que se pode atribuir daquela maneira que Noone explicou em relação à visualização da
árvore de Porfírio.
83
A unidade ou numerabilidade da coisa em si, para Scotus, segundo se interpreta, pode
ser contemplada diante de três tipos de diferenciações possíveis: a) primariamente; b) per si;
c) denominativamente.
Essa unidade, como no exemplo da pedra, verifica-se, primariamente,
contemplando-se a unidade como pertencente ao composto. Per si, a unidade é a pedra
propriamente considerada. Apenas, denominativamente, ou seja, por denominação,
definição, determinação, por denotação (o que implica dizer, de maneira formal) é que se
relaciona pedra à sua realidade.
Como asseverou Noone anteriormente, já referenciado no texto: “a entidade
individual é a expressão última da forma da coisa – e o composto que é o resultado não é
constituído em ser quididativo, mas em o que Scotus chama ser material ou ser contraído”.
A haecceitas é que permite a prime matter contrair para restar individual.
Essa divisão de contemplação da pedra em primária, per si e denotativa se
aproxima nessa ordem, pelo que aqui se interpreta, das categorias ceno-pitagóricas de
Peirce: primeiridade, segundidade e terceiridade.
Como se disse, ao se olhar a unidade específica da cor na brancura, essa é unidade
em uma contemplação denotativa, pois o que se olha é a unidade e esta é uma criação
formal, ou melhor, é a forma que lhe atribui especificidade, denotatividade. Aqui a
terceiridade.
Ao contrário, ao se olhar a diferença na brancura, por exemplo, com o escuro da cor,
o que se tem é que a unidade é primariamente contemplada – uma diferença específica, e
essa não pode ser separada em espécies particulares, eis que são diferentes da forma especial
denotativamente construída.
Como Kant disse anteriormente, é o diverso do fenômeno que pode ser formalizado.
Esse diverso aqui seria a especificidade do denotativo formal (terceiridade). A matéria do
fenômeno é qualidade do composto da brancura e, se assim o é, não pode estar na brancura
per si, mas tão somente por denotação. Essa é a prime matter, que aqui é compossível com
a primeiridade peirceana. Per si os elementos são elementos como são na “existência” – são
segundidade.
Após essa explicação longa, porém necessária, segue-se com o final do CP 1.405,
cuja primeira parte já foi transcrita e explicada acima:
O único imediato propósito de pensar é tornar coisas de uma maneira
inteligível; e pensar e ainda nesse ato mesmo de pensar uma coisa
84
ininteligível é uma estultificação de si mesmo. É como se um homem
carregando uma pistola para se defender de um inimigo fosse, por achar
que o inimigo muito temível, usar a pistola para estourar seus próprios
miolos para escapar de ser morto pelo inimigo. Desespero é insanidade.
Verdade, que haverá fatos que nunca serão explicados; mas que cada
fato dado é de uma quantidade, é algo que a experiência nunca nos
poderá dar fundamento para pensar; muito menos poderá [a
experiência] nos mostrar que qualquer fato é na sua natureza
ininteligível. Devemos, portanto, ser guiados pelo papel da esperança,
e consequentemente devemos rejeitar toda filosofia ou concepção geral
do universo, a qual nunca poderia nos levar à conclusão que qualquer
fato em geral dado é um fato último. Devemos almejar a explicação,
não de todas as coisas, mas de qualquer que seja coisa dada. Não há
nenhuma contradição aqui, não mais do que há em quando
sustentamos nossas próprias opiniões, ainda que estejamos prontos
para admitir que é provável que nem todas [elas] sejam verdadeiras;
ou não mais que quando dizemos que um tempo futuro qualquer em
algum momento terá passado, mesmo que nunca haja um tempo em
que todo o tempo é passado. (Destacou-se).
Como se nota, as categorias ceno-pitagóricas de Peirce (primeiridade, segundidade e
terceiridade), as quais, como já se disse, serão explicadas, na devida extensão, mais adiante,
foram fortemente influenciadas pela teoria escotista. Porém, para fins do presente trabalho,
a visão que se tem delas pode ser explicada como na alegoria posta na sequência.
Pense-se no vácuo como o útero que pare o homem. O nada impregna esse útero de
apatia, de afasia, sem tempo ou espaço. Ele tem o homem letárgico sem fenômeno na
multiplicidade do vazio disforme. Porém, a natureza é sábia e vácuo é só mais uma forma
de cosmos nas dualidades do continuum do imponderável universo... aí um buraco de tempo
e espaço permeia e permite uma qualidade de luz ao homem apático. O homem transborda-
se da placenta uterina do vácuo adentro no mundo de sensações e sentimentos devir.
Transbordar é escapar da apatia e se chocar contra o leviatã bíblico – um big bang! Agora o
homem está no espaço-tempo do cosmos e esse mesmo espaço-tempo já o golpeia a
consciência como tal e lhe permite inteligir acerca do que não é inteligência. É assim que
aqui se vislumbra primeiridade, segundidade e terceiridade.
Visto isso, trata-se, ainda, na sequência, das partes da semeiótica, mais relações que
podem ser vislumbradas com Kant, bem como ponderações iniciais sobre a compreensão de
realidade e verdade em Peirce.
85
1.1.5.2 Semeiótica e suas Divisões, Correspondências com Kant e Compreensão Inicial
de Realidade e Verdade
Como se viu, a semeiótica de Peirce é, em verdade, uma teoria lógica com uma
consideração do signo como centro duro. As divisões de sua lógica, bem como a influência
de Scotus, podem ser observadas em Peirce (CP 2.229):
Como consequência de todo representamen ser, assim, conectado com três
coisas, o fundamento [do signo], o objeto, e interpretante, a ciência
semiótica tem três ramos. O primeiro chamado por Scotus gramática
especulativa. Usaremos a terminologia gramática pura. Ela tem por
tarefa apurar o que deve ser verdadeiro do representamen usado por
toda a inteligência científica em direção de incorporar algum
significado. A segunda é a lógica propriamente dita. Ela é a ciência do
que é quase-necessariamente verdadeiro do representamina de qualquer
inteligência científica em direção a que eles [representamina] possam
manter a validade de qualquer dito objeto, é dizer, que possam ser
verdadeiros. Em outras palavras, a lógica propriamente dita é a ciência
formal das condições da verdade das representações. A terceira, em
imitação do modo kantiano de preservar associações velhas de palavras
para encontrar nomenclatura para novas concepções, eu chamo pura
retórica. Sua tarefa é apurar as leis pelas quais em toda inteligência
científica um signo dá vida a outro, e especialmente um pensamento
da sequência a outro. (Destacou-se).
Aqui resta claro que a semeiótica não é uma ciência que estuda a geração de signos
somente, mas também essa geração, o que fica a cargo da parte da semeiótica designada
“retórica pura”. A herança escotista está na parte da semeiótica (gramática pura) que estuda
o que deve ser verdadeiro do signo (representamen) usado pelos sujeitos cognoscentes para
incorporar significado.
Em relação a Kant, Burch (Stanford Encyclopedia of Philosophy, s.p., 2014) aponta
que Peirce foi um recorrente e intenso estudioso da Crítica da Razão Pura, sendo que trazia
que Kant era, em realidade, um pragmaticista confuso (CP 5.525). Porém traz no mesmo CP
que a compreensão kantiana de espaço e tempo e das doze categorias é um tipo de
“pragmaticismo no sentido geral”.
Como pondera Burch (Stanford Encyclopedia of Philosophy, s.p., 2014), as
considerações kantianas de um essencialismo a priori na linha euclidiana em relação à
natureza do espaço não são compossíveis com àquelas de Peirce.
Porém, como traz Peirce (apud BRUCH, Stanford Encyclopedia of Philosophy, s.p.,
2014), em carta de 1911 à Victoria Lady Welby: “Eu mostro apenas quão longe Kant estava
certo, mesmo quando muito confuso no formalismo. É perfeitamente verdadeiro que não
86
podemos nunca alcançar o conhecimento das coisas como elas são. Podemos apenas
conhecer seu aspecto humano. Porém, isso é tudo que o universo é para nós”.
Portanto, conforme esclarece Burch (Stanford Encyclopedia of Philosophy, s.p.,
2014), Peirce tardiamente parece perceber que o tipo especial de idealismo defendido por
Kant não era no todo oposto ao tipo de empirismo que Peirce, como um pragmaticista,
reconhecia.
Sabe-se também das fortes influências ao trabalho de Peirce desempenhadas pelas
doutrinas e Schelling e Hegel, mas, ainda que se quisesse, por falta de tempo e espaço no
presente trabalho, tal aspecto de seu realismo não será estudado.
Porém, no que diz respeito à uma compossibilidade com Kant, essa, pelo que aqui se
interpreta, com base no seu trabalho citado neste estudo e nas palavras de Abela já expostas,
parece muito clara, máxime, quando se contempla a parte da doutrina kantiana que trata do
realismo empírico, o que, como aqui se sustenta, pode ser compatibilizada com sua estética
e lógica transcendentais, ainda que mais aliadas, em determinados momentos, com um
idealismo rígido. Isso se justifica também nas palavras de Abbagnano já escritas
anteriormente no sentido de que Kant reconhecia a existência de uma realidade exterior.
Nesse contexto, esse ponto da realidade, que deve-se agora pisar, é fundamental no
realismo peirceano que aqui se utiliza como fundamento para o presente trabalho. Assim,
traga-se que a ideia de realidade em Peirce (CP 5.565) é a seguinte: “Realidade é aquele
modo de ser em virtude do qual a coisa real é como ela é, independentemente de como uma
mente ou grupo de mentes possa representá-la”.
Isso será devidamente detalhado no tópico que trata da realidade jurídica, mas aqui
alguns pontos serão adiantados. Se a realidade é independente de como se pensa dela, quer
dizer, de maneira bem simplista, que uma realidade exterior ao pensamento é considerada.
Aqui se utiliza a terminologia summa realidade (como esse “exterior” e “independente”) e
realidade semeiótica (como essa que é dependente). Realidade semeiótica abarca o
pensamento e não só a linguagem.
Veja que essa visão peirceana contrasta com a visão nominalista. A batalha entre
realismo e nominalismo será melhor explorada mais adiante neste trabalho. Para demonstrar
que a linha de raciocínio é diferençada, traga-se como pontua Flusser (2007, p. 201) sobre
realidade: “a língua, isto é, o conjunto dos sistemas de símbolos, é igual à totalidade daquilo
que é apreendido e compreendido, isto é, a realidade”.
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Flusser traz duas definições para realidade: a primeira já dada e “a segunda é a
definição da realidade como aquilo que pode ser apreendido e compreendido” (FLUSSER,
2007, p. 201). Em Flusser, pois, nada é real fora da língua, o que não é compossível com a
visão peirceana.
Assim, volte-se a Peirce para se trabalhar melhor sua visão de realidade, máxime no
que diz respeito ao papel da mente para fins e apreensão da realidade (externa). Sobre esse
ponto da realidade na mente, Peirce tem dizeres bem peculiares: “ Não existe como tal, isto
é, não existe a coisa que é, em si mesma, no sentido de não ser relativa à mente, embora
coisas que são relativas à mente sem dúvida existem à parte desta relação” (PEIRCE, CP
5.311).
Fala-se em “peculiar”, eis que tais dizeres poderiam levar o mais desavisado a pensar
que a visão peirceana de realidade não contrasta tanto com a visão de Flusser – dita
nominalista. Puro engano! Lembre-se, como já se disse, que Peirce vislumbra a semeiótica
em uma relação triádica do signo, objeto e interpretante.
O que se interpreta aqui, pois, a partir do CP 5.311, é que, vista do ponto de vista da
relação, com o intérprete, a realidade é “relacionalmente” ligada à mente, porém a mesma
circunstância que assevera que a relação com a realidade é mental, por considerar na relação
algo a ser representado que não é o signo que se liga à mente, é aquela que permite asseverar
que há algo externo à relação que é realidade.
Por isso que o que aqui se cunha na diferença summa realidade e realidade semeiótica
funciona como luva, eis que acomoda a visão de Flusser na ligação com a língua (realidade
semeiótica) e a visão peirceana de que “existe” algo fora da relação (summa realidade).
Um ponto que deve ser enfatizado é que, certamente, não se distancia aqui de uma
conclusão de que cientificamente o que se estuda é relação sígnica, seja na gramática pura,
seja na lógica propriamente dita e seja na retórica como ramos da semeiótica.
É o que se pode extrair de Peirce (CP 5.407):
Por outro lado, todos os seguidores da ciência estão animados por uma
esperança alegre que os processos de investigação, se levados o quão longe
necessário, nos darão uma certa solução para cada questão para a qual eles
se aplicam. Um homem pode investigar a velocidade da luz estuando os
trânsitos de Vênus e a aberração das estrelas; um outro pelas oposições de
Marte e os eclipses dos satélites de Júpiter; um terceiro pelo método de
Fizeau; um quarto por aquele de Foucault; um quinto pelos movimentos e
curvas Lissajoux; um sexto, um sétimo, um oitavo, e um nono, podem
seguir diferentes métodos de comparação de medidas de eletricidade
estatística e dinâmica. Eles podem, num primeiro momento, obter
diferentes resultados, mas, conforme cada um aperfeiçoe seu método e seus
88
processos, os resultados encontrados tenderão a se moer constantemente
juntos em direção a um centro destinado. Assim ocorre com toda a pesquisa
científica. Diferentes mentes podem partir das visões mais antagônicas,
mas o progresso da investigação carrega-os por uma força exterior a
eles a uma e mesma conclusão. Essa atividade do pensamento, a qual
somos carregados, não para aonde desejamos, mas para uma comum
e ordenada finalidade, é como a operação do destino. Nenhuma
modificação do ponto de vista tido, não seleção de outros fatos de
estudo, nenhuma inclinação natural da mente até mesmo, pode
permitir um homem escapar de uma predestinada opinião. Essa
grande esperança está incorporada na concepção de verdade e
realidade. A opinião, em relação à qual é destinada a ser
finalisticamente concordada por aqueles que investigam, é o que
significamos por verdade, e o objeto representado na opinião é o real.
Esse é o jeito que eu explicaria a realidade. (Destacou-se).
Nesse trecho, Peirce define realidade por contraste, ou seja, pelo contraste com a
verdade. A definição do conceito de verdade será explorada devidamente mais adiante neste
trabalho. Por agora, pode-se dizer que é a concordância que a experiência levada a efeito por
um grupo de mentes científicas tem de um objeto, sendo que o objeto mesmo dessa
concordância (verdade) é o que se chama realidade.
Bacha (2003, p. 36) traz que disso surge que “a) a realidade tem uma espécie de
independência com relação àquilo que está sendo pensado ou representado; b) a realidade
está essencialmente relacionada com o pensamento e as ideias; c) a ideia de realidade é a
resultante final da investigação”.
Peirce trabalha com a ideia de ego e não-ego, o primeiro sendo o ingrediente interno
da experiência e o segundo o ingrediente externo (a summa realidade). Peirce (CP 7.534)
traz que “embora em toda experiência direta de reação, algo interno, seja um membro do
par, ainda atribuímos reações a objetos fora de nós. Quando dizemos que uma coisa existe,
queremos dizer, na verdade, que reage contra outras coisas. Que estamos transferindo a isso
nossa experiência direta de reação”. Essa reação do choque é que é a experiência da categoria
da segundidade.
Peirce traz que a consciência da segundidade, que pode ser entendida como realidade,
é algo que não se pode devidamente intelectualizar, haja vista que “concebê-lo significa
generalizá-lo; e generalizá-lo é perder por completo o aqui e agora que é sua essência”.
(PEIRCE, CP 8.266).
Tratando do fenômeno em uma alusão próxima ao fenômeno kantiano, Peirce (CP
8.266) aponta que “eu simplesmente contemplo o fenômeno e digo que toda ideia de relação
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real, ou ligação, contém esse mesmo elemento de reação irracional. Todo verdadeiro caráter
de consciência é meramente a sensação do choque do não ego sobre nós”.
A realidade, que é o não-ego, é percebida no intelecto por uma reação que é irracional
em um primeiro momento no choque que o intelecto tem sobre o não ego. Essa é a ideia de
segundidade.
Um ponto de atenção em relação à realidade da segundidade no choque da potência
com o segundo diz respeito a perquirir se há realidade além do mundo externo – da summa
realidade. Peirce (CP 6.368) parece responder essa questão dizendo o seguinte, tratando da
possibilidade de contingentes futuros:
Um certo evento ou acontecerá ou não acontecerá. Não há nada na
existência que constitua a verdade do seu ser por acontecer, ou do seu
ser por não acontecer, a menos que certas circunstâncias para a qual
apenas uma lei ou uniformidade possa levar eficácia. Porém, aquela lei
ou uniformidade, os nominalistas dizem não ter um ser real; é apenas uma
representação mental. Se assim é, nem o ser por acontecer nem o ser por
não acontecer tem qualquer realidade no presente; e o máximo que
podemos dizer é que a disjunção é verdadeira, mas não nenhuma das
alternativas. Se, no entanto, admitimos que a lei tem um ser real, não
do modo de ser de um individual, mas até mais real, então o
consequente futuro necessário de um presente estado de coisas é real e
verdadeiro como [é] aquele estado presente de coisas propriamente
dito. (Destacou-se).
Aqui é para, realmente, prestar continência à genialidade de Peirce, eis que acomoda
seu realismo nas categorias ceno-pitagóricas com maestria e a tira colo absorve a teoria das
potencialidades aristotélicas como reais.
A pedra de toque está em admitir o pensamento como realidade e, por via de
consequência, a verdade como tal também, esta encarada como concordância de mentes
sobre um percepto. Esse continuum que a verdade permite por seu falibismo e atualização
permanente autoriza visualizar a potência do devir como real no nível da terceiridade.
A lei que se estabelece pela experiência e concordância na terceiridade é real, porque
o pensamento é real e tudo que dele advém. Portanto, um evento futuro é real e verdadeiro
no silogismo peirceano tanto quanto um evento presente.
Nesse piso, a realidade não está constrita à segundidade a não ser se visualizada como
summa realidade. O dualismo que aqui se propôs resolve a confusão de nomenclatura, eis
que realidade também é realidade da terceiridade, ou seja, realidade semeiótica, pois
90
pensamento é também um objeto da semeiótica, o que restará ainda mais claro mais adiante
neste trabalho quando se falar dos tipos de objeto considerados por Peirce.
Bem, se terceiridade é real, isso quer dizer que a concordância sobre uma experiência
também é considerada como pensamento na mente. Porém, concordâncias são feitas a partir
de pensamentos particulares, em relação aos quais se convenciona uma ubiquidade. Agora
pode esta visão holística contemplar um pensamento que não é um pensamento a partir de
um pensamento particular e nem pensamento em geral?
Peirce (CP 7.336) responde a isso da seguinte forma:
A questão é, “Se correspondendo aos nossos pensamentos e sensações,
e representado em algum sentido por eles, há realidades, as quais não
são apenas independentes do seu, do meu e do pensamento de qualquer
número de homens, mas, as quais são absolutamente independentes do
pensamento como um todo.” A opinião objetiva final é independente
dos pensamentos de quaisquer homens particulares, mas não é
independente do pensamento em geral. Isso quer dizer, se não houvesse
pensamento, não haveria opinião, e portanto, opinião final. (Destacou-se).
Bem, aqui Peirce atribui realidade não só ao pensamento particular de um homem,
mas também ao pensamento último – opinião final. A semiose (ou processo de geração de
signos) em direção à terceiridade implica opiniões que são finais – um interpretante final,
mas isso somente, pelo que aqui se interpreta “final” na medida de precariedade sua, sempre
potencial e atualizável dentro do falibilismo que impera no pensamento peirceano.
Essa opinião final é o que constitui a verdade da experiência sobre o objeto e ela é
real – realidade semeiótica, mas não independente. Se fosse independente seria a priori e
estar-se-ia a falar de idealismo e não realismo. Ora, se não é elemento dado, é porque é
dependente, no caso, não de um pensamento particular, mas do pensamento em geral – que
é a própria razão da concordância na sua “existência”.
Finalmente, deve-se concluir, como já dito, que o realismo peirceano trabalha com
duas concepções de realidade: a) summa realidade e b) realidade semeiótica. A primeira é a
realidade que a experiência sensível permite tocar e independente do toque. A segunda é
resultado de um processo de experiência cientificamente estabelecido em uma concordância
de mentes igualmente científicas e que estabelece uma sorte de opinião final, que no
pensamento também é real na medida da realidade do pensamento ele mesmo.
Importa trazer que no prisma da realidade semeiótica, há uma distinção por conta do
meio de manifestação do signo, é dizer, meio semeiótico físico e meio semeiótico psíquico,
91
verificando-se que a realidade semeiótica ela mesma também é dual: realidade físico-
semeiótica e realidade psíquico-semeiótica.
Diante de todo o mencionado, em relação ao reino do direito, o que se tem é que o
realismo peirceano suportará uma verificação do direito baseada na experiência – na
investigação científica como permissiva de uma convenção sobre a summa realidade, é dizer,
como formadora da realidade semeiótica, a qual aqui, se confunde com a realidade jurídica
como fatia sua.
Trata-se de uma aproximação que privilegia o objeto de análise; é objetivamente
orientada. Trabalha as noções mais caras ao direito dentro das categorias ceno-pitagóricas,
as quais assistem na percepção de temas como a prova no direito (investigação sobre os
eventos ocorridos), estudada dentro da categoria da segundidade, mas com aspectos
formativos provenientes da primeiridade.
Auxilia, igualmente, na percepção dos mecanismos de interpretação, incidência e
aplicação dos signos gravadores gerais e potenciais e de uma justiça convencionada dentro
da categoria da terceiridade. Além de trabalhar questões sobre coisa julgada, prescrição,
preclusão, decadência, irretroatividade, dentro de uma percepção de falibilidade e
atualização das convenções na terceiridade.
1.1.6 Merleau-Ponty e a Ideia de Entrelaçamento – o Quiasma entre Sujeito e Objeto
(Idade Contemporânea)
Pode parecer estranho colocar Merleau-Ponty dentro da parte deste texto que trata de
realismo, sabendo-se que sua “escola” filosófica se referia à fenomenologia e/ou
existencialismo, com forte influência de Martin Heidegger.
Porém, a estranheza é sem razão, eis que Merleau-Ponty transbordou com sua teoria
para influenciar a geração de pensadores franceses do pós-estruturalismo formada por
Michel Foucault, Gilles Deleuze e Jacques Derrida, conforme aponta Toadvine (Stanford
Encyclopedia of Philosophy, s.p., 2014), tendo sido estes aqueles que dariam lugar, de uma
forma ou de outra, ao que se chamará “realismo especulativo”, o qual será detalhado no
próximo tópico.
Merleau-Ponty, em seu A Natureza, trabalha com a ideia de estesiologia, o que quer
significar uma ciência que estuda as sensações físicas, mas em uma relação peculiar de
orientação, eis que a orientação em Merleau-Ponty, pelo que aqui se interpreta, refere-se ao
92
corpo humano como corpo estesiológico – não somente como centro de irradiação de
percepção, mas como parte do seu entorno, em uma ideia de entrelaçamento com a natureza.
Assim se pronuncia o Merleau-Ponty (1995, nota de rodapé “a”, p. 284):
Não pensar a estesiologia como um pensamento que desce num corpo. Isso
é renunciar à estesiologia. Não introduzir um ‘perceber’ sem ‘vínculos’
corporais. Nenhuma percepção sem movimentos prospectivos, e a
consciência de se mover não é pensamento de uma mudança de um lugar
objetivo, não nos movemos como uma coisa por redução de
afastamentos, e a percepção é apenas o outro pólo desse afastamento,
o afastamento mantido. É assim que o movimento do corpo +
movimento das imagens retinais fazem a percepção estável. (Destacou-
se).
O corpo estesiológico implica que a animação do corpo humano não deve ser
enxergada como que se uma consciência nele descesse, algo como uma reflexão pura. Ao
contrário, o que há é um tipo de simbiose – uma metamorfose de corpo e entorno.
Essa concepção é ampliativa da percepção, eis que a orientação é a partir do corpo,
não a partir da representação da consciência de uma percepção que paira por cima do
corpo. O vínculo corporal é necessário, imperando a ideia de inerência no sentido de
inseparabilidade, por natureza, entre sujeito e objeto na realidade, o que difere de imanência,
afastando, igualmente, a concepção de esquize. Por isso dizer que se trata de uma ontologia
indireta.
Essa ontologia indireta permitiria esse entrelaçamento, uma simbiose entre o corpo,
natureza, arte, ciência, linguagem, cultura etc. É nesse sentido que pontua Merleau-Ponty
(1995, p. 380):
Se eu sou capaz de sentir por um tipo de entrelaçamento de meu corpo
próprio e do sensível, eu sou capaz também de ver e de reconhecer outros
corpos e outros homens. O esquema do corpo próprio, pois eu me vejo,
é participável para todos os outros corpos que eu vejo, é um léxico da
corporeidade em geral, um sistema de equivalências entre o dentro e o
fora, que prescreve para um se aperfeiçoar no outro. (Destacou-se).
Assim, o entrelaçamento do corpo com o sensível autoriza o reconhecimento do que
aqui se chama coordenação entre os homens. O homem, ao se ver não vê tudo, porque não
vê os seus olhos, de modo que não vê tudo seu. Porém, o outro vê e participa, permitindo a
ampliação da visão do primeiro homem. Essa coordenação amplia a percepção de si mesmo
como em um léxico de corporeidade.
Sobre esse ponto, são precisas as palavras de Merleau-Ponty (2014, p. 15):
93
O enigma consiste em meu corpo ser ao mesmo tempo vidente e visível.
Ele, que olha todas as coisas, pode também se olhar, e reconhecer no
que vê então o “outro lado” de seu poder vidente. Ele se vê vidente, ele
se toca tocante, é visível e sensível para si mesmo. É um si não por
transparência, como o pensamento, que só pensa seja o que for
assimilando-o, constituindo-o, transformando-o em pensamento – mas um
si por confusão, por narcisismo, inerência daquele que vê ao que ele
vê, daquele que toca ao que ele toca, do senciente ao sentido – um si que é
tomado portanto entre coisas, que tem um face e um dorso, um passado e
um futuro...
[...] Visível e móvel, meu corpo conta-se entre as coisas, é uma delas, está
preso no tecido do mundo, e sua coesão é a de uma coisa. Mas, dado que
vê e se move, ele mantém as coisas em círculo ao seu redor, elas são um
anexo ou um prolongamento dele mesmo, estão incrustadas em sua
carne, fazem parte de sua definição plena, e o mundo é feito do estofo
mesmo do corpo. Essas inversões, essas antinomias são maneiras
diversas de dizer que a visão é tomada ou se faz do meio das coisas, lá
onde persiste, como a água-mãe no cristal, a indivisão do senciente e
do sentido.
[...] A animação do corpo não é a junção de suas partes umas às outras –
nem, aliás, a descida de um autômato de um espírito vindo de alhures,
o que suporia ainda que o próprio corpo é sem interior e sem “si”. Um
corpo humano está aí quando, entre vidente e visível, entre tocante e
tocado, entre um olho e o outro, entre a mão e a mão se produz uma
espécie de recruzamento, quando se acende a faísca do senciente-
sensível, quando se inflama o que não cessará de queimar, até que um
acidente do corpo desfaça o que nenhum acidente teria bastado para fazer...
(Destacou-se).
Ora, é o corpo, pois, que como que coordena as coisas, não de fora, mas sim
entrelaçado a elas como coisas que são um prolongamento seu. Deve ser vislumbrado como
vidente e visível. Aqui está o recruzamento, eis que o que o corpo vê pelo órgão da visão é
também, nessa medida, um olhar que resta impresso dele mesmo ali reconhecido.
A pedra de toque é que há um olhar do corpo no modo que considera o outro nesse
olhar, ou seja, não só a perspectiva interna do corpo, mas também a do seu entorno que se
entrelaça no olhar e isso não é fruto do pensamento pairando sobre o entorno, mas sim da
confusão do que é o corpo e do que resta impresso nele no entrelaçamento com a natureza,
de modo que há uma inerência do corpo que vê com o que se vê – há um cruzamento e
recruzamento contantes.
É, desse modo, que pondera Merleau-Ponty (1995, p. 280):
Não é o olho que vê. Tampouco é a alma. É o corpo como totalidade
aberta. Conseqüências para as coisas percebidas: correlações de um
sujeito carnal, réplicas de seu movimento e de seu sentir, intercaladas em
94
circuito interno, elas são feitas do mesmo material que ele: o sensível é
a carne do mundo, isto é, o sentido no exterior. (Destacou-se).
A ideia de entrelaçamento surge aqui relevante para permitir compreender que entre
corpo e natureza o que há é um quiasma, no sentido de coito entre um e outro, em uma
simbiose. Um autoriza a compreensão do outro. O processo é simbiótico.
Isso quebra a divisão clássica entre sujeito e objeto (não há esquize), eis que
entrelaçados. O que surge é uma noção de inerência do homem com o mundo, o que afeta,
igualmente, a linguagem do homem, pois que se trata de linguagem do homem como o
próprio nome diz. Há, novamente, uma ontologia indireta.
Nesse contexto, homem, natureza e linguagem se confundem, misturam-se,
entrelaçam-se. O comportamento, em uma ideia de hábito, refere-se a alguma coisa que se
perfaz em uma relação com o outro homem, com uma comunidade, em uma visualização de
coordenação como se mencionou.
Merleau-Ponty (1995, p. 196) da seguinte maneira se posiciona:
A aquisição de um comportamento é semelhante à aquisição de uma
linguagem cujo corpo seria a língua; assim como a linguagem só designa
em relação a outros signos, também o corpo só pode apontar um corpo
como anormal em relação à norma, como ruptura em relação à sua posição
de repouso. (Destacou-se).
Nessa visão, a separação entre sujeito e objeto, em verdade, não se apresenta precisa,
eis que há no objeto um ponto de tangência. Assim, pelo que aqui se interpreta, ao se olhar
um objeto qualquer, além da perspectiva do que se vê partindo do corpo (perspectiva
subjetiva), há uma outra perspectiva que é uma impressão, uma gravação (um olhar) do
objeto (perspectiva objetiva).
Porém, esse dualismo de perspectivas é mentiroso – ele engana o homem, eis que
resta impresso, gravado do objeto não está realmente no objeto separadamente do homem;
está no próprio olhar que é do homem em relação ao objeto. Ora, se essa espécie de gravação
é o olhar, o que há é uma inerência, eis que esse olhar também é do homem e olho e olhar
se confundem nesse entrelaçamento entre sujeito e objeto, de modo que há, pois, no olho do
homem esse olhar holístico; um prolongamento da natureza em tudo que o homem vê.
Ao se expandir isso para a linguagem do homem, esta também é uma espécie de
olhar e a língua é o corpo do homem. Considerando-se a linguagem como uma espécie
de olhar, o que se tem é que, da mesma forma, há uma inerência. Então, essa linguagem
95
do homem será um entrelaçamento com o objeto – haverá um prolongamento seu ali e
vice-versa.
Ora, se isso é correto, então se autoriza dizer que nessa linguagem, que é uma
conjugação de signos, há uma gravação do objeto, da própria realidade. Isso seria, pelo que
aqui se interpreta, um aspecto relevante da linguagem social, da linguagem cotidiana. É essa
espécie de simbiose – de mimetismo, que permite a comunicação entre os homens em
sociedade.
Bem, se o signo social é uma gravação do objeto, ou, ao menos, tem ou deveria ter
em si essa gravação – algo há como um mínimo objetal que a experiência entre os homens
permite gravar como decorrência do entrelaçamento, da inerência. Isso quer dizer que a
produção de signos na linguagem dos homens é uma produção por gravação, ou, assim, a
experiência tenderia a provar.
Disso, tem-se, pois, que na planície da linguagem cotidiana, os signos são signos de
gravação ou signos-gravadores em relação ao que é gravado do objeto (summa realidade).
Essas gravações se imprimem em um meio, o qual pode ser físico ou psíquico no panorama
semeiótico da realidade.
O signo-gravador no meio físico-semeiótico generaliza ao signo-gravador no meio
psíquico-semeiótico. Portanto, há um signo físico-gravador (v.g.: palavra escrita) e outro
signo psíquico-gravador (v.g.: conceito). Não confundir isso com o mundo físico que não
está no meio semeiótico, ou seja, com a summa realidade.
1.1.7 Giro Especulativo (Idade Contemporânea)
Principie-se por dizer o que se quer dizer por “giro especulativo”. Giro especulativo
é o nome dado ao movimento do “realismo especulativo” como contraponto ao já cansado
giro linguístico. “Especular” no sentido de estudar algo com atenção e minúcia, do ponto de
vista teórico, porém, um estudo que vai além do crítico, preocupando-se com o absoluto
além da linguagem e sem depender, necessariamente, do pensamento.
Bryant; Srnicek e Harman (2010, p. 2-3) posicionam-se nesse sentido, trazendo que
tem sido comum para a “filosofia continental” enfatizar o estudo sobre “o discurso, texto,
cultura, consciência, poder, ou ideia com o que constitui a realidade.”
96
Porém, para Bryant; Srnicek e Harman (2010, p. 2-3), essa posição que espelha “o
homem como centro e a realidade na filosofia aparece apenas como um correlato do
pensamento humano”.
Segundo trazem, fenomenologia, estruturalismo, pós-estruturalismo, desconstrução,
e pós-modernismo são todos exemplos da tendência antirrealista da filosofia continental.
Além disso, o que pontuam, é que o realismo antirrealista acabaria por limitar
demasiadamente as análises filosóficas dos tempos atuais, restringindo-as à linguagem.
Porém, para eles, em algum lugar no começo do século XX houve uma dispersão das
tendências filosóficas críticas ao antirrealismo por meio de um “esparramamento” de novos
baluartes por todo o planeta. Essas novas tendências são chamadas “giro especulativo”, o
qual também pode ser visto como uma forma de realismo ou materialismo.
Alguns dos nomes por detrás do giro especulativo são: Slavoj Žižek; Alain Badiou;
Bruno Latour; Ian Bogost, Levi Bryant; Graham Harman; Isabelle Stengers; François
Laruelle; Manuel DeLanda; Quentin Meillassoux; Ray Brassier; Nick Srnicek. Como
apontam, talvez a obra de Quentin Meillassoux (Après la finitude) seja, no que pode ser
chamado realismo especulativo, a mais influente do movimento.
Meillassoux (2008, p. 4) traz que:
intersubjetividade, o consenso de uma comunidade, suplanta a
adequação entre a representação de um sujeito solitário e uma coisa
individualmente como critério verdadeiro de objetividade, e de
objetividade científica mais particularmente. A verdade científica
não é mais o que se conforma com uma coisa dentro dela mesma
supostamente indiferente ao jeito em relação ao qual ela é dada ao
sujeito, mas, diferentemente, o que é suscetível de ser dado como
compartilhado por uma comunidade científica.
Adicionando a Meillassoux, um marco comum entre os autores do chamado “giro
especulativo”, conforme apontam Bryant; Srnicek e Harman (2010, p. 2-3), é rejeitar o foco
da filosofia da realidade como texto e “especular mais acerca da natureza da realidade
independentemente do pensamento e do homem num sentido mais geral”.
Segundo trazem Bryant; Srnicek e Harman (2010, p. 2-3), o giro especulativo se
baseia não na ideia de “especulação” como crença dogmática, não rejeitando os avanços
críticos das ciências, “mas reconhecendo suas inerentes limitações”. “A especulação
objetiva, nesse sentido, algo ‘além’ do giro crítico e linguístico, recuperando o sentido pré-
97
crítico de ‘especulação’ como concernente com o Absoluto, mas reconhecendo o inegável
progresso que é devido ao trabalho de crítica”.
Sua finalidade, busca abarcar, em conformidade com Bryant; Srnicek e Harman
(2010, p. 4-6), temas que a filosofia tem deixado à margem, como “a crise ecológica, o
avanço da neurociência, as fragmentadas interpretações da física, o progresso na quebra da
divisão entre homem e máquina”.
Conforme apontam os autores Bryant; Srnicek e Harman (2010), o giro especulativo
é contrário à redução da filosofia à análise textual ou à estrutura da consciência, trazendo
para o debate questões de interesse mais ontológico.
Portanto, esse que se chama giro especulativo tem na especulação a ferramenta para
descoberta das ontologias do mundo, não a partir do ponto de vista do homem como centro
observador do seu entorno, mas com o homem como partícipe do processo da realidade junto
com todo o resto ao seu redor, sendo o elemento subjetivo e o pensamento um final do
processo, mas não um meio em si.
Um exemplo desse posicionamento do giro especulativo vem do célebre Slavoj
Žižek, e pode ser visto no seu livro A Visão de Parallax (ŽIŽEK, 2006, p. 17):
A definição padrão de parallax é: o aparente deslocamento de um objeto (a
alteração de sua posição contra uma base), causada por uma mudança na
posição de observação que fornece uma nova linha de visão. A reviravolta
filosófica, é claro, é que a diferença observada não é simplesmente
“subjetiva”, devido ao fato que o mesmo objeto, que existe “lá fora” é
visto de duas posições diferentes, ou pontos de vista. É mais
propriamente que, como Hegel colocaria, sujeito e objeto são
inerentemente “mediados”, de modo que uma alteração “epistemológica”
no ponto de vista do sujeito sempre reflete uma alteração “ontológica” no
objeto ele mesmo. Ou – para colocar isso como Lacan diria – o olhar do
sujeito está sempre já gravado no objeto percebido propriamente dito,
no disfarce de seu “ponto cego”, aquilo o que está “no objeto mais do
que o objeto mesmo”, o ponto a partir do qual o objeto propriamente
dito retorna o olhar. “É claro, a figura está no meu olho, mas eu estou,
eu também estou na figura”. A primeira parte da declaração de Lacan
designa subjetivação, a dependência da realidade na sua subjetiva
constituição; enquanto que a segunda parte fornece um suplemento
materialista, regravando o sujeito dentro de sua própria imagem no
manto de uma mancha (o fragmento objetivado no seu olho).
Materialismo não é a direta afirmação da minha inclusão na realidade
objetiva (essa afirmação pressupõe que minha posição de enunciação seja
aquela de um observador externo que pode compreender o todo da
realidade); diferente disso, reside na reviravolta reflexiva por meio da
qual [“eu”] mesmo estou incluído na figura constituída de mim mesmo
– é esse breve circuito reflexivo, esse necessário redobramento de mim
mesmo, colocando-se ao mesmo tempo fora e dentro da figura, que
produz a testemunha da minha “existência material”. Materialismo
98
significa que a realidade que eu vejo nunca é “toda” – não porque uma
parte grande dela escapa de mim, mas porque contém uma mancha,
um ponto cego, que indica minha inclusão nela. (Destacou-se).
Essa perspectiva, se correta, altera a posição do homem como sujeito de
conhecimento do mundo – seu objeto de conhecimento, colocando-o como sujeito de
conhecimento de um objeto de conhecimento que inclui ele mesmo.
O entendimento de Žižek passa pela Livro 3 do Seminário de Lacan, especificamente
da parte do texto intitulada “A Esquize do Olho e do Olhar”. Essa parte do texto tem o
pensamento de Lacan especificamente influenciado pelas ideias de Merleau-Ponty (do qual
já se falou), máxime, no que toca ao entrelaçamento entre corpo e entorno.
Na sequência, trazer-se-á alguns trechos do texto de Lacan (1964, p. 74) para tentar
dar conta do seu entendimento sobre o tema, o qual, por sua vez, pelo que aqui se entende,
é a base da compreensão sobre realidade em Žižek:
No campo que nos oferece Maurice Merleau-Ponty, mais ou menos
polarizado aliás pelos fios de nossa experiência, o campo escópico, o
estatuto ontológico se apresenta por suas incidências mais factícias, senão
as mais caducas. Mas não é entre o visível e o invisível que, nós outros,
temos que passar. A esquize que nos interessa não é a distância que se
prende ao fato de haver formas impostas pelo mundo e para as quais
a intencionalidade da experiência fenomenológica nos dirige, donde os
limites que encontramos na experiência do visível. O olhar só se nos
apresenta na forma de uma estranha contingência, simbólica do que
encontramos no horizonte e como ponto de chegada de nossa experiência,
isto é, a falta constitutiva da angústia da castração.
O olho e o olhar, está é para nós a esquize na qual se manifesta a pulsão
ao nível do campo escópico.
[...]
Em nossa relação às coisas, tal como constituída pela via da visão e
ordenada nas figuras da representação, algo escorrega, passa, se
transmite, de piso para piso, para ser sempre nisso certo grau elidido
– é isso que se chama olhar. (Destacou-se).
Para Lacan, pelo que aqui se interpreta, há uma esquize entre olho e olhar. Para ele,
pois, o que se apresenta ao olho pela via da visão pode ser ordenado pelas representações,
mas há um “algo” que escapa no olho pela visão das coisas, um algo que resta escondido,
sendo esse o olhar. Para ele “olho” e “olhar” tem funções distintas, sendo que a função do
olhar é essa função de integrar aquilo que escapa ao olho, e isso é uma espécie de mancha
no olho do que se percebe da realidade.
Lacan compara isso ao mimetismo de certos animais que neles mesmos
corporalmente materializam partes exteriores do entorno. O que Lacan diz pode ser
99
exemplificado pelo bicho-folha que imita corporalmente uma folha para com ela se parecer
como se olho e olhar estivessem corporalmente no mesmo corpo – um entrelaçamento claro
da natureza com o corpo.
A esse respeito, Lacan (1964, p. 75) assim se posiciona:
Este exemplo distintivo, escolhido por mim – por sua localidade, por seu
factício, por seu caráter excepcional – é para nós apenas uma pequena
manifestação de uma função a ser isolada – a função, digamos o termo,
da mancha. Este exemplo é precioso por nos marcar a preexistência,
ao visto, de um dado-a-ver.
Não é preciso de modo algum nos reportarmos a não sei que suposição
da existência de um vidente universal. Se a função da mancha é
reconhecida em sua autonomia e identificada à do olhar, podemos
procurar sua inclinação, seu fio, seu traço, por todos os estágios da
constituição do mundo no campo escópico. Percebemos então que a
função da mancha e do olhar é ali ao mesmo tempo o que o comanda
mais secretamente e o que escapa sempre à apreensão dessa forma da
visão que se satisfaz consigo mesma imaginando-se como consciência.
(Destacou-se).
Pelo que aqui se interpreta, salta evidente a visão realista de Lacan, afastando-se de
um panorama metafísico para reconhecer, por meio da função de mancha, a própria
existência de um dado da visão que não se confunde com a própria visão, o que parece ser
compossível com o realismo peirceano nesse aspecto.
Ademais, quer parecer que para Lacan é justamente o reconhecimento desse olhar,
dessa mancha, diferente do olho, que permite estudar os traços e fragmentos da própria
summa realidade, de modo que, em verdade, seu esconderijo está no olho, mas o olhar é a
chave da porta para se alcançar os eventos do mundo, a realidade mesma, a qual inclui e
exclui o próprio observador, em um entrelaçamento que não tem que ver com consciência,
mas sim com inerência.
Lacan materializa bem essa diferença do olho e do olhar com outro exemplo,
distinguindo o que o olho vê do que o olho mostra, fazendo-o ao trazer a figuração do sujeito
em um sonho:
Reportem-se a um texto do sonho, qualquer que ele seja [...] – coloquem-
no em suas coordenadas, e vocês verão que o isso mostra vem antes. Tanto
vem antes, com as características nas quais ele se coordena – isto é, a
ausência de horizonte, o fechamento do que é contemplado no estado de
vigília e, também, o caráter de emergência, de contraste, de mancha, de
suas imagens, a intensificação de suas cores – que nossa posição no sonho
é, no fim das contas, a de sermos fundamentalmente aquele que não
vê. O sujeito não vê onde isso vai dar, ele segue, ele pode até mesmo se
100
destacar, dizer para si mesmo que é um sonho, mas não poderia em
nenhum caso se apreender dentro do sonho à maneira como, no cogito
cartesiano, ele se apreende como pensamento. Ele pode dizer – isso não
passa de um sonho. Mas não se apreende como quem se diz – Apesar de
tudo, sou consciência desse sonho.
Num sonho, ele é uma borboleta. O que quer dizer isso? Quer dizer
que ele vê a borboleta na sua realidade de olhar. O que são essas
figuras todas, esses desenhos todos, todas essas cores? – senão esse dar-
a-ver gratuito em que se marca para nós a primitividade da essência
do olhar (LACAN, 1964, p. 77, Destacou-se).
Essa aproximação de Lacan eclode genial e se adapta sobremaneira à primeiridade
peirceana. O dar-a-ver é como uma qualidade do modo de ser da coisa como ela é
independentemente de uma mente e grupo de mentes.
Como em um sonho, o sujeito não enxerga sua presença de sujeito como que
pairando sobre ela mesma. Afasta isso o cogito cartesiano “penso, logo existo” no sentido
de intuição metafísica, para trazer uma visualização não metafísica do pensamento, mas sim
ontológica indireta com a natureza mesma – uma inerência que está no olhar como ponto de
tangência para conhecer a própria realidade a partir da própria realidade, eis que está com o
corpo, com o sujeito, relaciona-se em uma relação simbiótica – em um acerto mimético. Há
animalidade no olhar da primeiridade. Há sujeito no olhar sob a perspectiva de uma
borboleta, um bicho-folha.
Da ideia do bicho-folha erige-se a perspectiva da gravação do objeto no sujeito por
meio dos processos que permitem a percepção. Isso se aplica à observação, para o caso de
alguém observar a natureza, mas também em relação à linguagem que, pelo que aqui se
entende, é um prolongamento do sujeito e, pois, ainda que mediatamente, também grava a
summa realidade.
Ora, se o signo se relaciona com um conceito na mente, é porque esse conceito, em
algum momento, foi um conceito de algo objetivo e, se assim ocorreu, é porque no conceito
alguma porção do objeto restou gravada. Trata-se de um prolongamento, de um
entrelaçamento, do conceito na coisa. Se o fundamento de todo signo é uma ideia, como
ensina Peirce, então há também uma espécie de gravação, ainda que indireta, da coisa no
signo; há uma forma de ontologia indireta.
Esse homem-objeto e objeto-homem, é uma mancha. Essa mancha é que coloca o
homem não na perspectiva do observador, mas também – ele mesmo, na perspectiva do
objeto observado, participando da realidade.
101
Kant, nos termos do que já se falou, fala algo parecido com aquilo que está “no objeto
mais do que o objeto mesmo”. A isso chama “diverso”, ou seja, o diverso do fenômeno, que
é o que a intuição pode captar para prover o pensamento e o julgamento.
Porém, quando fala da intuição pura, como já se trouxe acima, diz que o que se pode
separar do objeto, em relação à compreensão que se tem desse objeto e a sensação de que se
origina, é extensão é figura, as quais estão a priori no espírito humano. Kant fala isso dentro
de sua lógica transcendental.
Aqui a visão é empírica (ou materislista), de modo que, pelo que se interpreta, o que
quer dizer Žižek, com base em Lacan, é que o que se afigura aos olhos não está a priori,
mas no próprio olho – o homem ele mesmo objetivamente considerado como parte do objeto.
Não há confusão teórica, pelo que aqui se entende, ao se tomar o tema pela
perspectiva do objeto. Se o reflexo do homem está no objeto e ele no reflexo, o que se tem é
uma simbiose objetiva, mas isso não quer dizer que o homem seja o objeto somente, mas tão
só que, em uma das dimensões possíveis, ele é um objeto dele mesmo na summa realidade
– ele é objeto da realidade, não como humano (na sua humanidade – haecceitas), mas como
prime matter mesma das coisas para usar uma expressão associada ao escotismo e isso
simbioticamente falando. Trata-se da primeiridade peirceana que está no olhar do homem,
no prolongamento com o objeto, e que autoriza se alcançar os traços da realidade.
Essa visão, se trazida para o direito, como se fez aqui ao se falar de Merleau-Ponty,
gira um pouco a perspectiva das coisas, máxime, quando se verifica uma tendência clara na
dogmática nacional para uma pura abstração, a qual parte da linguagem, em uma
independência fictícia, para dar conta da razão do mundo para fins jurídicos.
Com a reviravolta do olhar que Merleau-Ponty, Lacan e Žižek permitem, o que se
tem é que a perspectiva começa a ser muito mais de commom law do que de direito romano,
eis que a prevalência do olhar traz o objeto como ele é para perto do estudo, o que aqui pode-
se tomar, para fins jurídicos, como o evento que gera consequência de direito.
Nesse piso, o direito seria multidimensional e menos formal, diferente de valor,
norma e fato, mas originário do evento mesmo, entendido como objeto. A orientação é, pois,
predominantemente objetiva como centralização da análise e isso não somente na dogmática,
mas também na edição de leis, bem como na interpretação e aplicação do direito.
Focando no objeto que implica consequências jurídicas, contorce-se a ideia de uma
necessária operação lógico dedutiva para aplicação das regras gerais, abrindo-se lugar a um
método mais próximo do que Peirce chamou “abdução”, o qual se preocupa com o objeto –
102
em investigar o objeto, para implicar consequências, em uma interpretação e aplicação de
atualização contínua.
Quer parecer que essa perspectiva se coaduna muito mais com o clamor das
sociedades de direito, em um mundo de guerras cibernéticas, revoluções de mídia social,
aquecimento global, avanços da neurociência e física quântica, integração da teoria da
relatividade pela teoria das cordas etc.
Foca na realidade do evento para implicar consequências de direito que se coadunem
com todas as nuanças sociais, autorizando os aplicadores a contornar o método cartesiano,
perseguindo a justiça no caso concreto e não no texto de lei, na linguagem pura, a qual
não se comunica senão contém em si a linguagem cotidiana – a linguagem que se aproxima
do objeto.
Autoriza, assim, uma teoria do direito que é estesiológica, objetivo-
multidimensional, a qual prioriza a investigação jurídica com vistas a encontrar o elemento
gravação do objeto da summa realidade nos signos linguísticos – a encontrar o quiasma, o
coito do fenômeno jurídico como fenômeno de entrelaçamento com os eventos da summa
realidade, em uma comunicação do jurídico que ultimamente se pode, também, chamar justa,
sendo para o direito, essa correlação com a summa realidade, a medida de justiça, o summum
bonum.
Como se vê, a divisão que se fez, foi para se falar, em primeiro lugar, das escolas do
realismo filosófico, o que dá suporte para agora se falar das escolas do realismo jurídico,
como se verificará na sequência.
1.2 Escolas Estadunidense e Escandinava do Realismo Jurídico
Antes de se adentrar no tema específico das escolas de realismo jurídico
mencionadas no título, inicie-se por uma introdução do que se tem por realismo jurídico com
apoio no realismo peirceano.
Nesse sentido, Peirce (CP 5.48) traz o seguinte
No que tange à dupla objeção do título, primeiro darei uma olhada no ramo
dele que descansa sobre a ideia de que a concepção de ação inclui a noção
de lei ou uniformidade, ou seja, que falar sobre uma reação
independente de qualquer coisa, a não ser dos dois objetos individuais
reagindo, é um absurdo. A isso eu deveria dizer que uma lei da
natureza abandonada a si própria seria bastante análogo a uma corte
sem um xerife. A corte nessa situação difícil poderá provavelmente
induzir algum cidadão para atuar como xerife; mas até que ela tenha
conseguido um funcionário que, diferente dela própria, não poderia
103
falar com autoridade, mas que poderia aplicar a força, a lei poderia
ser a perfeição da razão humana, mas permaneceria mero fogo de
artifício, brutum fulmen. (Destacou-se).
A visualização de Peirce de uma corte ou tribunal sem xerife – sem força, espelha
com acuidade o que se quer entender por realismo jurídico, eis que a força da lei
(terceiridade) não nasce da generalização formal convencionada em um grupo de mentes
jurídicas, ou mesmo dessa convenção materializada em códigos de leis, mas sim da
convenção que parte do pensamento dos homens acerca do mundo – pensamento esse que
move o universo à eternidade em uma expansão infinita, é dizer, um código de leis de nada
serve se não nascer do consenso dos homens e, portanto, poder ser por eles interpretado e
aplicado com força cogente.
Esse consenso dos homens, pelo que aqui se defende, não nasce a priori, ao contrário,
emerge da experiência sensível, erige-se, pois, de eventos que sucedem no mundo das coisas
e são tomados em um certo sentido.
É esse substrato que dá suporte às leis e é também esse substrato eventual (substrato
de um evento) que permite sua interpretação e aplicação. Surge, até mesmo, um pouco óbvia
a ideia de que para interpretar e aplicar uma lei qualquer é preciso que o que ela grave seja
algo que possa ser compossível com a experiência sensível que permitiu o consenso entre os
homens acerca desse algo, ainda que esse consenso se aperfeiçoe no nível do direito. Não
faria sentido o intérprete da lei aplicar uma lei que fosse marciana, eis que uma lei marciana
não se forma de um consenso da experiência sensível terrestre.
No sistema jurídico de aplicação de leis, como numa corte sem xerife, no entanto, é
preciso que haja movimento. Esse movimento vem do conflito e da necessidade de solução
de conflitos entre os homens. Para que haja movimento alguém tem de provocar esse
movimento contra um movimento contrário de alguém que tentará obstar esse movimento
(judicial). Esse movimento do direito para solução de conflitos, mas não só para essa
solução, encontra sustentáculo em eventos da vida cotidiana que fizeram exsurgir o conflito.
Portanto, é também nos eventos da vida cotidiana que o intérprete e aplicador do
direito encontra o subsídio para interpretar e aplicar as leis. É o intérprete e o aplicador que
impõe a força por meio do uso dos mecanismos cogentes que o sistema lhe põe à mão, mas
o faz, ou deveria fazer, com base nos eventos que lhe foram levados à apreciação por aqueles
que provocam o movimento do sistema judicial.
104
Desse modo, ao fim, é da experiência sensível que brota o substrato que permite ao
direito mover-se – é dos eventos que a sua força cogente (função cogente) borbulha para ter
eficácia. Ora, não é fora de linha, mesmo na experiência jurídica que brota do direito romano,
dizer que é nos eventos que o direito encontra sua medida.
Bem, viu-se que o chão do direito é a experiência sensível, porém, viu-se, também,
que quem interpreta e aplica o direito é uma autoridade designada pelo sistema para tal e é
quem tem a competência para dizer o que o direito é ou não é em relação aos eventos que a
experiência sensível traz para movimentar o sistema judicial.
Aí cabe uma pergunta: o fim e início do direito está no evento da experiência sensível
ou na interpretação e aplicação que é possível pela autoridade designada pelo sistema para
tal? Nessa pergunta, para o que aqui se defende, não há diferença entre sistema de direito
romano e sistema de “common law”.
Guerra Filho (2009, p. 121) encontra uma diferença de aproximação do tema em
relação aos dois sistemas jurídicos:
Embora não se possa afirmar, tendo em vista o caráter legislativo de
nosso sistema jurídico, que o direito é o que os tribunais dizem ser em
seus pronunciamentos, como fazem os propugnadores escandinavos e
anglo-saxônicos do realismo jurídico, é inegável o papel relevantíssimo
exercido pela jurisprudência reiterada em determinado sentido na
configuração, hic et nunc, do material jurídico positivo e
consubstanciada nas decisões judiciais. (Destacou-se).
Talvez o problema seja, em verdade, uma questão de enfoque. Ao se colocar foco na
eficácia das decisões judiciais, quer parecer que a interpretação final e aplicação do direito
emanada, por exemplo, no Brasil pela Suprema Corte, é exatamente o direito no Brasil e não
o que a lei diz. “Corte sem xerife é fogo de artifício”, como diz Peirce. Lei sem jurisprudência
também. Nessa aproximação, pelo que aqui se interpreta, o direito é justamente o que, no
Brasil, a Suprema Corte diz que é.
Porém, isso pode gerar um outro problema de eficácia, que é a eficácia “social”, a
qual, em absoluto, é somente uma questão da sociologia jurídica, mas questão de
interpretação e aplicação do próprio direito.
É justamente essa problemática de eficácia “social” que implica um outro enfoque
para o tema: ao se colocar foco no destinatário do comando legal, a função cogente (ou
impositiva) somente se perfaz, como o xerife impondo força na corte de Peirce, quando a
105
linguagem legislativa e a interpretação atribuída pela autoridade jurídica competente forem
compossíveis com a linguagem cotidiana.
Essa linguagem cotidiana é que permite a convenção social, a qual permite a
convenção jurídica. Se não há compossibilidade, há um problema de comunicação (um
ruído) e não existe vida em sociedade sem comunicação.
Porém, isso é um pouco mais profundo que somente comunicação. Isso tem de ver
com experiência, eis que a linguagem cotidiana é uma convenção que concorda com o que
a experiência sensível de um grupo de mentes experimentou no mundo e, mesmo que haja
uma “imaginação” da experiência sensível e ela implique convenção, isso pouco importará,
pois a terceiridade (a lei geral) é um continuum. Esse elemento do continuum será
devidamente explorado quando se falar em convenção mais adiante neste trabalho.
Ora, o que se quer dizer é que, ainda que a Suprema Corte brasileira diga o que é o
direito com força cogente ou impositiva, isso somente implicará uma decisão imperativa de
efeitos presentes, mas cuja eficácia em relação a eventos futuros será tão somente potencial.
Algo como contingentes futuros.
Isso se deve à circunstância que sustenta a vida em sociedade, ou seja, a possibilidade
de comunicação, de modo que se o que for dito pela Suprema Corte não encontrar supedâneo
na linguagem cotidiana, o que ocorrerá será que a decisão será um dia revista e modificada
para que seja compossível com a linguagem cotidiana e, mesmo que não seja modificada em
uma geração, haverá, como ideal (summum bonum) a possibilidade de modificação, para
aonde caminhará a Suprema Corte em uma próxima formação.
Disso decorre que, ao cabo, o direito mesmo tampouco é jurisprudência, mas sim
experiência sensível que autoriza a sustentação do sistema jurídico. Para usar o que Peirce
chama de verdade – que é justamente a concordância sobre a experiência sensível entre os
homens, o que se tem é que o direito é mesmo verdade sobre os eventos do mundo sensível
e, portanto, falível e atualizável no continuum de desenvolvimento das sociedades de direito.
No Brasil, o artigo 504, do Novo Código de Processo Civil, absorveu esse conceito
de maneira sublime ao prescrever que: “Não fazem coisa julgada: [...] II - a verdade dos
fatos, estabelecida como fundamento da sentença.
A natureza das coisas é implacável e nem lei nem jurisprudência podem prevalecer
sobre ela. Talvez em suspensão prevaleçam, mas consideradas como terceiridade e
continuum que serão sempre atualizáveis em direção à experiência sensível que emerge dos
eventos do mundo.
106
A verdade dos eventos que ocorrem no mundo sensível não transita em julgado, eis
que isso seria impossível, ao menos filosoficamente e, quer parecer que juridicamente agora
também com o dispositivo do Código de Processo Civil, o qual é, em verdade, regra
meramente pedagógica. Como se poderia atribuir efeitos definitivos àquilo que de definitivo
nada tem?
A concordância sobre os eventos do mundo sensível, ou essa verdade sobre as
ocorrências, resta somente em suspensão, algo como que um universal, eis que, no
continuum da terceiridade, tempo e espaço estão sempre forçando a atualização das coisas
nas definições de seus conceitos.
Os xerifes dos tribunais são xerifes com olhos mareados que concordam sobre coisas
que na sua inesgotabilidade são turvas no lamaçal da experiência sensível que os direciona
à cogência na função impositiva da lei.
Guardadas as devidas diferenças de supedâneo filosófico (nominalismo e realismo),
Vilanova (1977, p. xxii) diz que:
Por outro lado, a interpretação e aplicação jurisprudencial do direito são
complementos imprescindíveis para se ter o “direito com experiência” e,
como base nessa experiência, obter-se o vínculo husserliano entre
“juízo e experiência”, ou entre lógica e realidade. Sem isso corre-se o
risco de fazer lógica jurídica como admirável peripécia algorítima,
mas sem nenhuma repercussão na Ciência-do-Direito e sem maior
fecundidade para a prática do direito. (Destacou-se).
Portanto, o que se está dizendo é que direito é experiência e que essa experiência
jurídica com vistas à justiça deve ou deveria se apoiar nos eventos do mundo sensível
necessariamente.
Na sequência, com base no que foi explanado, trazer-se-á o pensamento que se pode
sacar de duas escolas do realismo jurídico: a escola do realismo estadunidense e a escola do
realismo escandinavo.
1.2.1 Realismo Jurídico Estadunidense
O sistema jurídico que, supostamente, coloca enfoque maior na experiência é o
sistema common law. Para que se possa seguir o estudo, faça-se agora uma apresentação do
contraste não absoluto existente entre o sistema de common law e o sistema de direito
romano.
107
A diferença fundamental pode ser apreendida de Martin (2006, p. 94) no sentido de
que o sistema common law é aquele baseado em regras de direito desenvolvidas pelos
tribunais em oposição àquelas criadas pelos estatutos de leis.
Quer parecer que, pelo que aqui se interpreta, o desnível está, realmente, no tipo de
linguagem que serve de fundação para o direito aplicável. Rottleuthner (2005) parece dar um
norte interessante para ressaltar a diferença no sentido de que ela se refere à diferença entre
normativismo e realismo.
Para Rottleuthner (2005, p. 7-8), normativistas concebem o direito, “como uma
entidade simbólica, linguisticamente representada com inerente normatividade de força
vinculadora”, o que se refere a uma posição, cuja “experiência é baseada em sentir-se
obrigado, ser obrigado por normas ‘válidas’”. A perspectiva que prevalece é de protagonistas
que se submetem à força imperativa das leis (função impositiva) e dos aplicadores do direito
– uma perspectiva subjetiva.
Rottleuthner (2005, p. 7-8) traz, no entanto, que os realistas se projetam mais
fortemente sobre o aspecto “objetivo, real, factual da ordem legal”. “Sujeitos se referem a
eventos externos ou circunstâncias existentes no tempo e no espaço, i.e., ‘fatos’”. Assim,
para os realistas “normas como tais não existem”.
Segundo Rottleuthner (2005, p. 7-8), é a acessibilidade do sujeito cognoscente via
padrões de comportamento externo a eventos que conta. “Conhecimento intrasubjetivo
(introspecção) deve ser substituído por proposições testáveis intersubjetivamente”. Em
resumo, o que se tem é que para os realistas “as normas podem ser reduzidas a fatos [“lei
como fato”]”. O realista olha para o direito como “uma predição de futuras ações de um
tribunal”.
Contra isso, Rottleuthner (2005, p. 7-8) pontua que o normativista diria que o “direito
existe independentemente de ser aplicado e ter eficácia”. Sua existência, para os
normativistas, estaria somente ligada à validade, o que não poderia reduzi-las a fatos, eis que
estes têm “existência” externa e diferente do direito.
Ao se voltar os olhos novamente à alegoria do tribunal sem xerife de Peirce, pode-
se, com base no mencionado, verificar-se que, em realidade, a terceiridade (que é a lei) não
existe independentemente do pensamento (geral). Portanto, se depende de alguma forma de
pensamento, ainda que não seja o particular, é como que depende de uma concordância sobre
pensamentos particulares. Essa concordância, que é verdade, se refere ultimamente a eventos
108
(fatos5) da experiência sensível e, se o estabelecimento é por meio da verdade, a
concordância é lógica (sentido amplo).
Os normativistas, então, batalhariam para dizer que direito é válido ou inválido e não
se submete aos operadores lógicos de verdadeiro ou falso, mas sim à lógica deôntica. Ainda
assim, entende-se aqui que o direito deve remeter aos eventos, o que restará mais claro
quando esse tema for estudado na parte que trata das proposições e das normas jurídicas mais
adiante.
Portanto, acreditando-se em um direito puro, cuja eficácia social é estudada pela
sociologia do direito e não tem relevância direta na construção do sistema jurídico, bem
como na sua interpretação e aplicação, a visão normativista prevalece, mas tornando o direito
relacionado aos eventos – não por método de aplicação ou retórica, mas sim por relação
empírica de investigação jurídico-científica, o direito talvez não se reduza ao evento, mas
dele não poderá se afastar indeterminadamente, sob pena de não servir a quem se destina.
Assim, a diferença entre common law e civil law é uma diferença de enfoque, mas
que na prática, para o que aqui se defende, só se justifica na teoria, eis que a investigação de
ocorrências que fazem surgir consequências de direito deve se submeter, de um modo ou de
outro, à experiência sensível, o mesmo se diga da construção do direito, ainda que baseada
em estatutos de leis, eis que estes também emergem de algum substrato, e não pode ser o
substrato do legislador outro senão o da linguagem cotidiana, sob pena de ineficácia
(incomunicabilidade jurídica).
Deve-se trazer agora que é difícil precisar se o que aqui se designa realismo jurídico
pode ser encarado como uma escola da teoria geral do direito (jurisprudence) ou da filosofia
do direito, conforme pontua Lundmark (2012, p. 95-96). Quer parecer ter ingredientes das
duas escolas, a depender do enfoque mais forte que se atribui ao estudo, quer de uma teoria
aplicada com o enfoque na jurisprudência (teoria geral do direito), quer em uma teoria pura
com enfoque nos conceitos jurídicos.
Dessa diferença potencial de escolas dentro do direito, talvez tenha surgido as duas
vertentes principais do realismo jurídico: a vertente escandinava e a vertente estadunidense.
A diferença principal diz respeito justamente ao enfoque que se dá.
No realismo estadunidense, o estudo se fundamenta na teoria da adjudicação, a qual
se preocupa, primariamente, com o que os juízes fazem quando decidem casos nos tribunais.
5 Entende-se que “fato” é uma nomenclatura incorreta, de modo que se procura evitá-lo, substituindo-a por
evento sempre que possível. Isso restará estudo e detalhado mais adiante no presente estudo.
109
Até 1881, quando Oliver Wendell Holmes publicou o seu célebre “Common Law”, vigeu na
teoria geral do direito estadunidense a concepção de que o processo de decisão dos
magistrados era dedutivo: a) categorização da situação eventual6; b) identificação e
interpretação da regra aplicável; c) aplicação do direito.
Com o seu “Common Law”, Holmes teria mudado de um enfoque lógico-dedutivo
para um enfoque que se chamará aqui mais abdutivo, ou seja, no sentido de que a adjudicação
propriamente dita do caso à intelecção do juiz ocorreria com maior força na categorização
da situação eventual e não propriamente na interpretação e aplicação da lei. A pedra de toque
diferencial diz com a circunstância de que o processo de decisão judicial passaria na mente
do juiz não por uma operação de lógica dedutiva, mas sim por uma operação subjetiva que
considera na perspectiva dos eventos aquela regra que permitirá um ótimo resultado para o
caso.
Essa diferença de foco permitiria decisões fundamentadas não somente na lógica
dedutiva, mas numa valoração dos eventos do ponto de vista do resultado esperado, de modo
que decisões poderiam ser produzidas com maior eficácia – eficácia “social”.
A mudança de paradigma em relação à lógica dedutiva em “Common Law” é notada
já nas suas primeiras palavras quando Holmes (1881, p. 1) traz o seguinte:
O objeto desse livro é apresentar uma visão geral da common law. Para
alcançar essa tarefa, outras ferramentas são necessárias além da lógica. É
alguma coisa para mostrar que a consistência de um Sistema requer um
resultado particular, mas isso não é tudo. A vida do direito não tem sido
lógica: ela tem sido experiência. As necessidades sentidas do tempo, a
moral prevalecente e teorias políticas, intuições de ordem pública,
explícitas ou inconscientes, até mesmo preconceitos que os juízes
compartilham com seus semelhantes, tem tido maior importância mais do
que o silogismo em determinar as regras pelas quais os homens deveriam
ser governados. O direito incorpora a história do desenvolvimento de uma
nação ao longo de séculos, e não pode ser manejado com se contesse
apenas os axiomas e corolários de um livro de matemática. De modo a
saber o que é, devemos conhecer o que tem sido, e o que tende a se tornar.
Devemos alternativamente consultar a história e as teorias de legislação
existentes. Porém, o mais difícil trabalho será entender a combinação de
dois produtos a todo o tempo. A substância da lei a qualquer dado tempo
quase sempre corresponde, no seu limite, ao que é então entendido por
ser conveniente; mas sua forma e mecanismo, e o grau para o qual é
capaz de desenvolver resultado desejados, depende muito do seu
passado. (Destacou-se).
6 Eventual ao invés de fática para seguir a linha de nomenclatura que se quer priorizar aqui em relação ao
evento, de modo que eventual é relativo a um evento.
110
Aqui se verifica que o contraste de Holmes diz com o papel da lógica na
operacionalização do direito no sentido que o enfoque não deve jazer sobre a lógica, mas
sim na experiência que se desenvolveu ao longo do tempo na vida do direito.
Sua visualização é, pois, histórica no sentido de que o que se pode esperar em direção
ao futuro é o que se pode compreender em relação ao passado. Holmes (1881, p. 2), em outro
trecho, clarifica que na dogmática o estudo deve se desenvolver com fundamento em
tendências, o que se estabelece voltando os olhos ao passado:
Eu devo usar a história do nosso direito tanto quanto seja necessário para
explicar uma concepção ou interpretar uma regra, mas não mais longo do
que isso. Em o fazendo, há dois erros igualmente a serem evitados tanto
pelo escritor como pelo leitor. Um é aquele de supor, porque uma ideia
parece muito familiar e natural a nós, que tem sempre sido assim.
Muitas coisas, em relação às quais não damos a devida importância
tiveram de ser conseguidas por meio de laboriosa luta ou raciocínio
em tempos passados. O outro é o oposto a perguntar muito sobre a
história. Começamos com o homem já adulto. Deve ser suposto que os
primeiros bárbaros, acerca de quem as práticas têm de ser consideradas,
tiveram um bom número dos mesmos sentimentos e paixões que nós
mesmos. A primeira matéria a ser discutida é a teoria geral da obrigação
civil e criminal. A common law mudou muito desde o início de nossa
série de relatórios, e a procura por uma teoria, a qual pode ser agora
dita por prevalecer tem muito que ver com um estudo de tendências.
(Destacou-se).
O que se vê é que a doutrina de Holmes foca na história, o que aqui pode ser também
entendido como eventos (passados) para prever tendências a serem estudas para o devir. Isso
quer dizer que, ao fim, não é só na jurisprudência que se encontra a experiência que
fundamenta o direito, mas, mais do que nela, no passado, e passado é história não só na
jurisprudência, sendo esse o método de Holmes para os estudos dogmáticos, como no caso
da teoria das obrigações.
Nesse contexto, acerca do realismo jurídico, Lundmark (2012, p. 95-96) traz que três
aspectos podem ser ditos em relação à maioria dos realistas jurídicos: a) eles são céticos em
relação às regras, enfatizando sua indeterminação inerente, o que implica que a sua
interpretação e aplicação leva em consideração aspectos inevitavelmente subjetivos; b) eles
enxergam a possibilidade de interpretação e aplicação do direito com interdisciplinaridade
com considerações sociológicas, políticas, econômicas, antropológicas, psicológicas, etc.,
de modo que o direito não pode ser contemplado como em um vácuo de autonomia; c)
como efeito do item anterior, os realistas jurídicos vislumbram a possibilidade de
aproximações empíricas do direito, o que permite, como no exemplo estadunidense, uma
111
ênfase nas “cortes de direito”, nas quais eles analisam a jurisprudência, de modo que possam
ter precisas predições sobre o que é o direito na prática; d) os realistas jurídicos são
instrumentalistas. Eles enxergam a prática do direito como um exercício político, e eles
apoiam majoritariamente aproximações progressivas em relação à interpretação dos códigos
de leis e jurisprudência em direção a permitir um melhor ajuste do direito às rápidas
mudanças sociais, o que permitiria uma facilitada absorção de argumentos relativos à justiça
e moral.
Nota-se que, diante dos aspectos de ênfase caros aos realistas jurídicos não haveria
permeabilidade para uma teoria pura do direito como no caso kelseniano. Como Kelsen
(2003, p. 1) diz no início da sua teoria pura do direito “Quando a si própria se designa ‘pura’
teoria do Direito, isto significa que ela propõe garantir um conhecimento apenas dirigido ao
Direito e excluir deste conhecimento tudo quanto não pertença ao seu objeto, [...] ela
pretende libertar a ciência jurídica de todos os elementos que lhe são estranhos”.
Difícil conceber uma aproximação possível da teoria kelseniana com o realismo
jurídico, ao menos o estadunidense, eis que lá o que se pretende libertar é a visão do direito
como vácuo autônomo. Talvez Kelsen quando quis libertar o direito tenha, em verdade,
proposto um aprisionamento da ordem jurídica a um restrito lógico-dedutivo modo de cortar
o fenômeno jurídico, o qual, por ser tão restrito, acaba por desprovê-lo do que lhe é mais
caro, é dizer, o eco que tem na sociedade de direito.
Essa aproximação empírica do realismo estadunidense, pelo que aqui se interpreta,
tem, também, foco na eficácia social do direito, o que não implica somente a sociologia, mas
também economia, psicologia, política etc. Isso porque a sociedade do direito não é uma
sociedade de vácuo autônomo, para usar o termo de Lundmark, mas sim uma comunidade
multidisciplinar na sua interdependência capilarizada.
Outro ponto que não é compossível com os realistas jurídicos da escola
estadunidense é o tema da eficácia social na teoria carvalhiana. Carvalho (2012, p. 94-95),
quando trata da eficácia das regras de direito, traz que são de três sortes: a) jurídica; b) técnica
e c) social. Para ele, as duas primeiras poderiam ser objeto da dogmática, mas não a última
que deveria ser estudada pela sociologia do direito.
Quer parecer que a aproximação do tema levada a efeito por Carvalho é kelseniana
em linha com sua Teoria Pura. A eficácia jurídica tem relação com o aspecto lógico-
dedutivo-deôntico da regra de direito – relação que se dá com a incidência da regra por conta
do fato jurídico. A técnica tem que ver com obstáculos de ordem sintática para permitir a
112
aplicação da regra. A social se relaciona com o eco que os mandamentos de lei têm na
sociedade de direito.
Quando Carvalho trata da propriedade de que é investido o fato jurídico para irradiar
efeitos de direito, no que respeita à eficácia jurídica da regra, espertamente, pelo que aqui se
interpreta, ele emprega fato jurídico considerando que já está vertido em linguagem jurídica,
é dizer, não é mais evento absoluto (evento do mundo físico), nomenclatura que se cunhará
nesse trabalho, a qual será explicada mais adiante.
A pergunta que cabe é, nesse sentido, se poderia esse fato jurídico, verter linguagem
que não é compossível com o evento absoluto (que ocorreu no mundo dos fenômenos)? Em
uma linha realista-jurídica, a resposta seria claramente negativa, eis que a conformidade com
os eventos é requisito para aplicação da lei, e isso quer dizer que a ênfase aqui é empírica e
não lógico-dedutiva. Não tem que ver com sintaxe, mas sim com semântica, o que, pelo que
aqui se defende, de uma forma ou de outra, abrange a pragmática.
Em relação à eficácia social, para um realista jurídico, ela é matéria, cuja
interdisciplinaridade com o direito é intencionalmente incentivada, eis que não se contempla
a lei como um vácuo autônomo, como parece ser a visão kelseniana seguida por Carvalho.
Ora, se a interdisciplinaridade é incentivada, disso resulta que a sociologia do direito não o
retira de sua pureza, eis que o foco não é a aplicação de uma regra válida, mas sim de uma
regra justa.
Voltando à escola estadunidense, Lundmark (2012) pontua que a prioridade é a
importância da jurisprudência como foco principal do direito, mencionando o exemplo do
célebre realista jurídico estadunidense Karl Llewellyn, o qual escreveu um livro resumindo
os mais importantes precedentes do Estado de Nova Iorque, de modo que o leitor pudesse
coletar os costumes sociais, econômicos e políticos prevalecentes que influenciavam o
desenvolvimento do direito naquela jurisdição.
Falando em Llewellyn (2008, p. 5-6), vejam-se suas palavras sobre o realismo:
o mais significante (eu não digo o único) aspecto das relações do direito
e sociedade jaz no campo do comportamento, e que palavras assumem
importância ou porque e na medida em que elas se referem [are] a
comportamento, ou porque e na medida em que elas
demonstrativamente refletem ou influenciam outro comportamento.
Essa afirmação não parece ter a necessidade de ser feita. Sua verdade é
absurdamente aparente. Diante disso, reverte, chateia, o todo da tradicional
aproximação ao direito. Isso torna a teoria aceita de ponta-cabeça. O foco
tradicional é em termos de palavras; ele se centraliza em palavras; tem
a maior dificuldade de ir além das palavras. Se nada for dito acerca
113
do comportamento, assume-se tacitamente que as palavras refletem o
comportamento, e se elas forem as palavras das regras de direito,
influenciam o comportamento [...] eficazmente e precisamente para
conformar completamente com aquelas palavras. Aqui jaz a chave
para a lama. As “regras” são editadas; no tipo-caso que elas são regras
“de obrigação”, regras prescritivas: as prescrições do legislador [writer], as
obrigações do legislador, individualmente proclamadas obrigações – a
regra verdadeira é que juízes devem dar julgamento em direção ao
requerente com base nesses fatos. A partir disso nós saltamos sem o
necessário aviso prévio em obrigações equivalentes como aceitas no
Sistema de direito em tela: obrigações prevalecentes – as autoridades
concordam que juízes deveriam julgar em direção ao requerente com base
nesses fatos. Aqui, mais uma vez sem aviso prévio e sem questionamentos,
assumimos que a prática dos juízes conforma com as obrigações aceitas
nos livros; que formulações verbais de obrigações descrevem precisamente
[como é] a prática; que eles [juízes] julgam com base nesses fatos. Um
problema dessa situação. No direito ou qualquer outro setor da vida.
Onde está a ideologia do homem acerca do que ele está fazendo, acerca
do que é boa prática – Onde está essa ideologia ou teria ela jamais sido
uma descrição adequada da sua prática? Essa é a primeira tácita
imputação da “factualidade” das regras prescritivas. (Destacou-se).
Como se nota, Llewellyn prega uma aplicação do direito baseada não nas palavras
da lei, eis que nesta está a ideologia do legislador, não levando em consideração a ideologia
do juiz, sendo que é essa ideologia que implicará, ao fim, a prescritividade das regras de
direito e sua imputação.
Tal visão se afasta claramente do normativismo kelseniano baseado em uma lógica
dedutiva na aplicação do direito sem levar em consideração a subjetividade do aplicador da
regra ao caso concreto.
Outro célebre realista jurídico estadunidense, Pound (1922, p. 99), acerca do papel
do direito na sociedade moderna, traz que:
Eu estou contente em pensar no direito como uma instituição social
para satisfazer vontades sociais – as reinvindicações e demandas
envoltas na existência da sociedade civilizada – o que se implementa,
como queremos, com o menor sacrifício, até o limite que tais vontades
possam ser satisfeitas ou tais reinvindicações postas em prática por uma
conduta ordenada por meio de uma sociedade politicamente organizada.
Para os propósitos presentes, eu estou contente em ver na história do
direito um registro de um reconhecimento contínuo e mais amplo da
satisfação das vontades e reivindicações e desejos por meio de controle
social; uma mais acolhedora e mais efetiva segurança dos interesses
sociais; uma contínua e mais eficiente eliminação do desperdício e
preclusão da fricção no prazer dos homens em relação aos bens da
existência – em resumo, uma engenharia social continuamente mais
eficaz. (Destacou-se).
114
Bem, como se verifica, a ideia de Pound sobre o direito diz com uma instituição
social que visa à satisfação das vontades sociais, o que demonstra uma direção do direito
estadunidense à interdisciplinaridade, principalmente com relação à sociologia, no sentido
dos efeitos e consequência que a aplicação da lei pode ocasionar nos sujeitos de direito.
A visão de Pound (1922, p. 102) afasta aquela relativa ao papel do juiz como
aplicador da lei em um ato mecânico de subsunção do caso concreto com a regra aplicável.
Em sua apreciação, Pound (1922, p. 118), ao falar da lei anglo-americana de
responsabilidade civil, parece querer absorver mais os padrões (standards) de direito no
papel do juiz como aplicador do direito, como no caso a) de um certo julgamento moral
sobre a conduta no sentido de ser justo e consensual, razoável, prudente e diligente; b)
desnecessidade de chamar por uma aplicação da regra exata, mas mais relativamente ao
senso comum e referente a uma intuição apurada em direção à experiência externa comum;
c) impossibilidade de uma formulação absoluta do direito, tanto pelo legislador como pelo
magistrado, eis que relativo ao tempo e lugar e circunstâncias, sendo aplicado com referência
a fatos do caso em questão. “Cada caso é único na sua extensão”.
Visto isso, o que se tem é uma visão baseada no realismo estadunidense que
privilegia não a lei como texto, mas sim a lei em relação ao evento que implica consequência
de direito. Essa diferença de foco, no realismo estadunidense, fez priorizar a análise da
jurisprudência, da qual se poderiam prever tendências de decisões futuras, eis que o
fundamento se originaria da análise de eventos que ocorrem no mundo e não simplesmente
da aplicação lógico-dedutiva de statutos de lei.
No realismo estadunidense, a visualização do direito que se tem é do direito como
experiência, como instituição social, cuja interdisciplinaridade é inevitável e, não só
inevitável como também desejável com vistas a fundamentar decisões mais justas.
Visto o realismo jurídico sob o enfoque da escola estadunidense, passa-se agora a
conhecer o pensamento da escola do realismo escandinavo.
1.2.2 Realismo Jurídico Escandinavo
Muito se falou dos realistas jurídicos estadunidenses, porém, como se disse, o
realismo jurídico se divide entre a escola estadunidense e a escola escandinava. Fale-se agora
um pouco da escola escandinava.
Bjarup (2005, p. 1-2) traz que o movimento jurisprudencial denominado como
realismo jurídico escandinavo teve por fundadores o filósofo sueco Axel Hägerström (1868–
115
1939) e o filósofo dinamarquês Alf Ross (1899–1979), os quais compartilhavam a visão de
que “é vital destruir as destorcidas influências da metafísica sobre o pensamento científico
em geral e pensamento jurídico em particular em direção a pavimentar o caminho da
importância do direito e ciência jurídica para a vida dos seres humanos dentro do Estado”.
Segundo Bjarup (2005, p. 1-2), “a filosofia de Hägerström dá suporte ao seu enfoque
jurisprudencial em termos de uma aproximação naturalista ao direito e conhecimento
jurídico”, o que influenciaria seus pupilos, os suecos A. V. Lundstedt (1882–1955) e Karl
Olivecrona (1897–1980).
Conforme pontua Bjarup (2005, p. 1-2), os realistas jurídicos escandinavos
enfatizam:
a relação da filosofia com a jurisprudência na sua análise conceitual
de conceitos jurídicos fundamentais, trazendo as questões de realidade e
conhecimento para o centro da atenção, para fins de estabelecer a fundação
segura para a compreensão científica do direito e conhecimento jurídico
com um enfoque naturalista na jurisprudência. (Destacou-se).
Para falar de Ross, Bulygin (1981, p. 75-89) traz que sua importância realmente
transbordou as fronteiras da Dinamarca, seu país natal, com a publicação de “Sobre o Direito
e a Justiça”, de 1958 (talvez sua obra de maior projeção), da qual se teria apossado H. L. A.
Hart em seu o “Conceito do Direito”, de 1960.
A visão de Ross sobre o direito e realidade do direito não se conseguirá explorar aqui
na sua completude, eis que o espaço de estudo é multifacetário e não caberia detalhamento
desse porte. Porém, como se fez anteriormente com os ícones do realismo jurídico
estadunidense, vai-se aqui trazer parte do pensamento de Ross por meio de recortes de sua
teoria.
Nesse contexto, quer-se aqui trazer um ponto de grande interesse que é a crítica
ferrenha de Ross a Kelsen no que respeita à concepção deste da “existência” de uma norma
hipotética fundamental que daria razão à origem do direito:
Ross (2007, p. 349-351), nesse piso, traz que a assunção kelseniana de que seria
possível um ponto de partida para o conhecimento jurídico desde uma norma fundamental
com índole pressuposta é de todo errada.
Segundo Ross (2007, p. 350-351), a suposição kelseniana é de que é possível seguir
com o sistema jurídico por meio da eliminação do sistema jurídico anterior, do que Ross
discorda com base em que não há diferença entre uma revolução para eliminação do sistema
116
jurídico anterior e o surgimento diário de um direito extrassistêmico, eis que ambos seriam
externos ao sistema jurídico, o que implica que ambos pressuporiam mudanças na norma
fundamental, de modo que o que suportaria a norma fundamental, tanto na revolução como
no surgimento diário, não é direito e, portanto, de saída já faz despencar a construção formal
de tal norma.
Para Ross (2007, p. 349-351), movimentos externos ao direito enquanto sistema
implicam uma mudança nas condições de “existência”, do que decorre que o sistema jurídico
terá de se adaptar. Ele compara o sistema a um organismo vivo que na sua permanente
mutação deve ser visualizado em relação à sua continuidade. Assim como o organismo, o
sistema de leis é um continuum e a ciência que o descreve somente pode descrevê-lo como
em uma foto, mas é justamente a continuidade que também impera no sistema de leis que
lhe atribui um elemento de transcendência, permitindo clicá-lo com uma foto.
Diante do que se entende aqui, para Ross (2007, p. 349-351), o direito não pode ser
somente direito escrito, o que seria equivalente à foto clicada do sistema, mas mais do que
isso, em razão de seu elemento de continuidade na sua permanente mutação por conta do seu
entorno, deve-se considerar no direito uma referência efetiva a algo de aplicação continuada,
de modo que, nessa dinâmica, o direito escrito é mais secundário que a continuidade da
pressuposição.
Ross (2007, p. 349-351) clarifica que o direito escrito somente expressa algum
significado na condição de que detrás das palavras jurídicas haja uma vontade social que se
presta a materializar em ações. “A vontade social nem sequer precisa se servir das palavras
ou da escritura, podendo se expressar diretamente por meio de ações e ser conhecida como
pressuposto de uma série de ações sociais dadas”.
Isso lembra no Brasil, a força dos movimentos sociais com base em mídia social que
eclodiram e fizeram cair uma presidente e tem feito cambiar continuamente os atos do
legislativo, judiciário e executivo.
A posição de Ross (2007, p. 349-351) vai na linha de que quanto mais alto é o nível
da abstração menor será sua relevância. Sua linha de raciocínio expressa um ponto de vista
que se parece ao que se viu em Pound acima, no sentido de que o direito é uma instituição
social. Níveis altos de abstração, pois, não permitem um desfecho jurídico fundamentado na
lei – direito escrito, mas sim “por meio da observação da vontade jurídica imediata de uma
determinada comunidade” é que deve o direito se fundamentar.
117
Ross (2007, p. 349-351) trabalha com a ideia de que o limite do conhecimento
jurídico está no limite imediato da vontade social, a partir da qual “se produz uma transição
quase imperceptível de uma vontade jurídica clara e consciente em direção a tendências mais
ou menos difusas, representações de como deveria ser o direito e meras aceitações
convencionais do fático”.
Assim, Ross (2007, p. 349-351) finaliza por dizer que “o direito encontra fundamento
na consciência jurídica ou na vontade jurídica, sendo que num plano mais abstrato, ele se
dissolve, passando a ser visível somente na forma de seus componentes sociológicos: o
fático-convencional, ou o desejado ou querido como direito”.
O que se entende aqui das palavras de Ross, é que abstração e realidade, para fins do
direito, são como o céu e a terra. Se alguém olha de um avião a grande altitude para a terra,
o que se vê é difuso, desajustado, disforme. Essa é a míope abstração absoluta, próxima do
que Kelsen chamou norma hipotética fundamental.
Quanto mais se aproxima o avião da terra, maior é seu contato com a determinação
do objeto, sendo que é a convenção que se alcança sobre o objeto, comportamentos, estados
e eventos, que Ross chama “o fático convencional”. A mudança de paradigma está na
circunstância de que Ross assevera ser o fático-convencional o dever-ser do direito, pois é
aqui que se permite aproximar o direito da vontade social, que é soberana.
Lembre-se que Scotus traz que a unidade mais densa está no particular. No direito,
não é diferente, eis que na lei geral o que se tem é rarefeito, devendo-se o intérprete e
aplicador se aproximar da densidade numérica do evento para dizer o direito aplicável.
Ross ao combater a norma hipotética fundamental de Kelsen o faz partindo do
pressuposto de que o ponto de partida de todo o direito não é a validade da regra de direito
no sistema, mas sua correlação com as mudanças extrassistêmicas que ocorrem. É nessa
evolução e correlação com o sistema jurídico que está o fundamento do direito, o que não se
confunde com uma operação lógico-dedutiva de juízo hipotético.
Bem, se o pressuposto de Ross está correto, e “a realidade jurídica consiste nessa
contínua correlação recíproca” entre intrassistema e extrassistema, não há se falar em norma
hipotético fundamental como ponto fixo de sustentabilidade do sistema de direito, eis que
ela (norma fundamental) teria de se correlacionar, e o fazendo, já não seria construída
logicamente.
É por isso que Ross (2007, p. 352) combate, igualmente, outro ponto de sustentação
primordial da teoria kelseniana – a diferença entre o mundo do ser e o mundo do dever-ser:
118
Não há então outra via que supor que o dever-ser não constitui uma
categoria independente, em absoluta contraposição ao ser. E nesse
sentido temos tentado determinar o dever-ser a modo de específica
formulação de um tipo de conhecimento, cujo objeto é a totalidade
concreto individual, entendida como realidade, fundamentando, assim,
a possibilidade do conhecimento jurídico. Em termos lógico-
transcendentais, a prova do acerto de nossa teoria reside em que só partindo
desta base cabe captar, ao mesmo tempo, a positividade do direito (isto é,
o caráter empírico do conhecimento jurídico-científico e a normatividade
do direito) e a diferença que, sem embargo, existe entre o conhecimento
científico-jurídico e o científico-natural. (Destacou-se).
Portanto, disso aqui se interpreta que, para Ross, a realidade é a totalidade
concreto-individual, sendo que é esse o objeto do conhecimento jurídico. Para compreender
o fundamento do direito, é preciso saber o que o conhecimento jurídico pode absorver e, seu
final e começo, terra e céu, é que são a totalidade concreto-individual que é a realidade.
Se há no direito uma correspondência permanente – um continuum de correlação
com essa totalidade, isso implica dizer que não haveria diferença entre mundo do dever-ser
e mundo do ser, pois se forem independentes não haverá a mencionada correlação e isso
seria incompossível com o sistema jurídico.
Essa diferença de pensamento parece estar em linha com a diferença entre o realismo
in re e o realismo ante rem dos quais se falou quando se tratou do realismo platônico.
Adotando-se o pensamento kelseniano como guia, estar-se-á aderindo ao pensamento
platônico no Fédon no sentido de que há independência entre universais e particulares.
Caso se apoie na visão de Ross, o que se terá é a linha de Platão no Mênon,
considerada possivelmente como um realismo in re (universal in re), da qual se saca não
haver essa independência entre universal e particular.
Finalmente, dentro do realismo escandinavo, quer-se falar agora de outro autor,
pupilo de Hägerström – Karl Olivecrona. Olivecrona (1968, p. 7) logo no início de seu
Linguagem Jurídica e Realidade trata da visualização da linguagem jurídica como de
sobrenível em relação à linguagem corrente ou cotidiana.
Para Olivecrona (1968, p. 7), os conceitos fundamentais da linguagem jurídica dizem
respeito aos direitos subjetivos e aos deveres dos sujeitos de direito. Porém, conforme
aponta, esses direitos e obrigações não pertencem ao mundo sensível, ao mundo dos eventos,
de modo que não se pode comprovar sua presença e “existência”.
Segundo Olivecrona (1968, p. 10), toma-se a linguagem jurídica como operativa de
efeitos e consequências e não se pergunta sobre a “existência” das instituições jurídicas e de
119
como elas atuam por meio do que chama de “fatos operativos”. Isso se dá na prática jurídica
e no cotidiano das gentes, mas filosoficamente a questão é debatida, pelo que existiriam dois
enfoques possíveis: metafísico e naturalista.
Em relação ao enfoque metafísico, Olivecrona (1968, p. 10) pontua que esses direitos
e obrigações, seus efeitos e consequências, operariam de maneira suprassensível. Para ele, o
conceito de direito subjetivo, por exemplo, é um conceito primário do qual a obrigação é
contrapartida.
No enfoque naturalista, no entanto, conforme esclarece Olivecrona (1968, p. 13), o
centro da atenção é o dever, de onde se parte juridicamente, e o qual é definido “em termos
de fatos empíricos estritos, de modo que o direito subjetivo é um simples reflexo do dever”.
Para Olivecrona (1968, p. 67), a linguagem jurídica pode ser vislumbrada por sua
aparência e, nesse caso, será uma linguagem que tem reflexo na realidade, porém “essa
realidade não é uma parte do mundo dos fatos conhecidos por meio dos sentidos, da memória
e da indução. É uma realidade de ordem superior. Porém, todo intento de apreender essa
realidade suprassensível conduz ao fracasso”.
Na sua interpretação de como a linguagem jurídica considera o ingrediente da
realidade, Olivecrona (1968, p. 67) traz que seu propósito primário não é, como se
pensa, refletir a realidade, mas sim plasmá-la. É por esse motivo que na linguagem
jurídica se utilizam funções da linguagem específicas, “com sentido emotivo, palavras que
incitam a ação e palavras com função técnica. A linguagem jurídica tem origem na
linguagem da magia. Essa é a chave da explicação histórica”.
Olivecrona (1968, p. 41) apresenta que as funções da linguagem jurídica envolvem
um elemento cunhado por Austin como “expressões realizativas”, as “quais não relatam
fatos, não descrevem nada, sendo seu propósito estabelecer uma nova relação jurídica”,
como no exemplo de quando um homem diz “sim” perante um juiz de paz em uma cerimônia
de casamento. O predicado “realizativas” vem da circunstância de que ao formulá-las ações
são “realizadas”.
Quando alguém que passou em um concurso presta um juramento para com o novo
cargo que está por assumir “realiza” uma ação – tem uma “expressão realizativa”, da qual
surgem direitos e obrigações. Conforme aponta Olivecrona (1968, p. 42), “elas têm um efeito
supostamente criador”.
Para Olivecrona (1968, p. 43), esse efeito criador que a linguagem jurídica tem sobre
os sujeitos de direito, operando direitos e obrigações, é algo na sociedade pressuposto e de
120
ordinária normalidade, mas ao se colocar para pensar sobre o padrão desse efeito, é possível
compará-lo ao efeito que tem a magia.
Conforme Olivecrona (1968, p. 43) pontua: “o sentido de todas as expressões
realizativas é, na verdade, mágico”, o que para ele encontra prova abundante na história do
direito ao longo dos tempos.
Segundo Bjarup (2005, p. 14), fazendo o contraponto entre Ross e Olivecrona, a
base deste último é a filosofia de Hägerström, implicando na sua falta de interesse em relação
à verificação científica das declarações
Nos termos de Bjarup (2005, p. 14), Olivecrona rejeita a ideia de que a tarefa da
ciência jurídica seja prever o que as cortes de direito farão, sendo que, no entanto, o que deve
se estabelecer é a ideia de que a ciência jurídica deve informar os sujeitos de direito acerca
do que o direito é, de modo que eles possam se comportar em conformidade
Por fim, Bjarup (2005, p. 14) traz que os realistas jurídicos escandinavos,
compartilham a ideia da importância da filosofia em relação à jurisprudência de modo a que
se possa compreender o direito e o conhecimento do direito.
Essa parece, igualmente, ser a pedra divisória entre os enfoques do realismo
estadunidense e o escandinavo. Quer-se dizer aqui que a aproximação ao direito empenhada
pelos realistas escandinavos, mormente por Ross no caso, condiz melhor com os
fundamentos do presente trabalho. De Olivecrona, a ideia que o direito plasma a realidade e
não a reflete é utilizada ao longo do trabalho, mas a percepção de funções mágicas do direito
não é absorvida na plenitude, eis que implicaria uma função metafísica que se distancia da
experiência sensível, o que não é exatemante o que se defende aqui, máxime com base no
realismo peirceano.
Para o que aqui se defende, não haveria magia pairando sobre os sujeitos do direito,
mas sim o outro, o segundo, a alteridade. O efeito, pois, está na noção mesma de comunidade,
e no limite próprio de um no outro. É esse outro que proporciona ao primeiro realidade, tanto
no encontro de ideias comuns que “concordam”, como na submissão à previsibilidade de um
acionamento de coordenação. Essa engrenagem social de coordenação que a convenção
permite é que é o “ingrediente mágico”, que de mágico nada tem, eis que é na experiência e
na concordância entre os homens, ou seja, empiricamente, que o direito é descoberto.
A lei do direito é como a lei que implica generalidade na terceiridade peirceana, mas
sozinha é um tribunal sem xerife – é brutum fulmem. É justamente na correlação necessária
num continuum com o outro (segundidade) é que jaz a chave da porta para o estado
121
democrático de direito e sua efetividade, eis que não é possível sacar uma foto de alguma
coisa que não está em presença (como numa mágica), e o retrato não é nada mais que uma
parte da realidade, fatia esta à qual se tem acesso e substrato do direito.
No que diz respeito ao realismo estadunidense, este salta como de suma importância
para a compreensão do fenômeno jurídico, mas parece curto em aplicação, eis que se foca
no protagonismo do juiz na interpretação e aplicação do direito. Porém, a ideia de direito
como instituição social e de direito como experiência são chão firme onde se fincam as vigas
do edifício dogmático que se tenta aqui construir. Além disso, a ideia de direito como evento
que ocorre no mundo sensível e a flexibilização de uma lei absoluta para permitir
interdisciplinaridade e acesso à justiça, também, são amplamente consideradas.
No entanto, o foco é na crença de que ao estudo filosófico da jurisprudência, deve-
se dar, igualmente, fundamental importância, o que leva a debates sobre os conceitos
fundamentais do direito.
Esse estudo autoriza uma compreensão apropriada e apurada da totalidade concreto-
individual que o direito se presta a gravar em uma correlação, a qual parece necessária entre
direito e realidade sensível para que seu continuum possa operar efeitos sociais eficazes, o
que não o separa de uma investigação jurídico-científica que pode ser levada a efeito com a
contribuição da dogmática, como se intenciona fazer aqui no presente caso.
É por esse motivo que, na sequência, estudar-se-ão conceitos tão caros ao direito
como o de realidade jurídica, convenção no âmbito do direito, verdade jurídica, proposição
e regras de direito, interpretação e aplicação do direito, o que se fará no palco do direito
nacional.
Reforce-se, para fins de método, que a linha majoritária que se segue aqui é, no
realismo filosófico, peirceana com correlação com Merleau-Ponty, e, no realismo jurídico,
a de Alf Ross (conceitos fundamentais de direito) e da escola estadunidense (questões
relativas à jurisprudência, intepretação e aplicação do direito).
Vista a questão sob o ângulo das escolas estadunidense e escandinava, passa-se
adiante a tratar de uma aplicação do conhecimento adquirido à peculiaridade do sistema
jurídico brasileiro, com exploração de precedentes jurisprudenciais como ponto de suporte
às conclusões alcançadas.
122
1.3 Realismo Jurídico no Sistema Jurídico Brasileiro
O que se quer chamar aqui realismo jurídico é uma visão do direito sob a perspectiva
de que não tem o legislador, tampouco o aplicador do direito, uma liberdade total para
legislar e aplicar, eis que deve haver uma correlação necessária do direito com a summa
realidade, preservando-se nos signos jurídicos um mínimo do que se encontra nos signos da
linguagem ordinária, sob pena de grave distorção na comunicação (no sentido de eficácia)
do fenômeno jurídico entre as gentes.
Esse realismo jurídico é, pois, aquela perspectiva que considera os signos da
linguagem cotidiana para fins de um legislar e de um interpretar e aplicar o direito, no sentido
de que os signos jurídicos não poderiam ser vazios de sentido em relação à referência à
realidade social, a qual encontra nos signos da linguagem social seu supedâneo de meio de
expressão na língua. Trata-se de um panorama do direito como instituição social que
encontra na vontade social seu meio e também o seu limite.
Isso se deve, pelo que se fundamenta aqui, à circunstância de que o direito, na
perspectiva do signo jurídico no meio de expressão escrito da língua, é um signo gravador
em relação ao signo da linguagem escrita social – signo gravado. Isso quer dizer que os
signos na linguagem do direito encontram fundamento nos signos da linguagem social.
Explique-se que os signos podem se articular em diferentes meios de expressão. Esse
meio de expressão pode ser a língua escrita, a língua falada, a língua dos gestos etc. Isso será
explicado no próximo tópico com mais profundidade.
Guarde-se, por enquanto, que os signos da linguagem do direito são fático-
convencionais, no termo cunhado por Ross, ou como aqui se defende, eventual-
convencionais (para diferenciar corretamente evento de fato), de modo que é nos signos da
linguagem das gentes que encontram sua fonte de sustentação para implicar consequências
jurídicas.
Não está o direito, pois, em um reino independente da summa realidade (como na
linha de uma realismo platônico ante rem), mas, ao contrário, intimamente ligado a ela no
meio e no limite da vontade social. A visão em que se apoia aqui é uma visão do direito
capilarizado, simbiótico com a summa realidade, em uma relação de inclusão e exclusão
permanente. Não há pureza, mas sim simbiose – uma correlação necessária com a textura da
realidade, com o tecido social, gravado pela linguagem cotidiana.
123
No direito positivo, essa correlação entre signos em diferentes linguagens aparece
claramente, por exemplo, no artigo 110 do Código Tributário Nacional:
A lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de
institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou
implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos
Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios,
para definir ou limitar competências tributárias. (Destacou-se).
O que implica a redação do artigo acima transcrito? Implica que o conteúdo e forma
dos signos da linguagem do direito privado não podem ser distorcidos pelo legislador
tributário com vistas a definir uma competência para imposição tributária ou limitá-la.
Disso decorrem duas conclusões: 1) os signos da linguagem do direito privado são
gravados em relação aos signos da linguagem do direito tributário que são, assim,
gravadores; 2) os signos da linguagem jurídica possuem um conteúdo e uma forma, ou seja,
têm substância e forma.
Para ficar mais clara a aplicação do artigo transcrito, veja-se a Súmula Vinculante 31
da Suprema Corte Brasileira: “É inconstitucional a incidência do imposto sobre serviços de
qualquer natureza - ISS sobre operações de locação de bens móveis”.
Para que todos estejam no mesmo contexto, até mesmo aqueles que não conhecem
com profundidade as discussões tributárias, diga-se que o Imposto Sobre Serviços (“ISS”)
é, como o nome aponta, um tributo incidente sobre a prestação de serviços.
Há uma lista anexa à Lei Complementar 116/2003 (hodiernamente aquela vigente
para fins da imposição do ISS), a qual traz os serviços passíveis de incidência do ISS. Muitos
foram os debates acalorados no contencioso tributário acerca da possibilidade de a locação
ser considerada um serviço passível de incidência do ISS.
A questão foi alçada ao patamar constitucional, eis que a Constituição Federal, no
seu artigo 153, inciso III, traz que o ISS incide sobre serviços de qualquer natureza. Assim,
para que haja a incidência do tributo, deve haver a presença de um serviço. Esse é o limite
da competência constitucional estabelecida para fins da imposição do ISS.
Bem, a discussão que levou à edição da Súmula Vinculante 31 gira, dessa forma,
sobre ser ou não a locação um serviço. Nesse sentido, existe um signo gravado, que é o signo
da linguagem do direito privado que não poderá ser distorcido para fins de caracterizar ou
não a locação como serviço.
124
Em resumo, baseando-se no signo que deve ser gravado do direito privado, a
Suprema Corte estabeleceu que a definição de serviços e locação de móveis deve ser aquela
do Código Civil Brasileiro, de modo que para que haja um serviço deve haver um esforço
humano direto, constituindo o serviço uma obrigação de fazer. Locação constitui uma
obrigação de dar, de modo que não poderia o Fisco municipal exigir o ISS sobre locação de
bens móveis.
Isso parece até um pouco óbvio, eis que não faz muito sentido cobrar ISS em um
contrato de locação de um móvel, eis que não existe serviço propriamente dito ali. Os signos
da própria linguagem ordinária já fariam chegar nessa conclusão, mas os embates tributários
diante do apetite do Fisco são muito frequentes, mesmo diante de obviedades.
Os precedentes representativos que deram origem à Súmula mencionada merecem
transcrição para reforçar o alegado:
Imposto sobre serviços (ISS) - Locação de veículo automotor -
Inadmissibilidade, em tal hipótese, da incidência desse tributo municipal -
Distinção necessária entre locação de bens móveis (obrigação de dar ou de
entregar) e prestação de serviços (obrigação de fazer) - Impossibilidade
de a legislação tributária municipal alterar a definição e o alcance de
conceitos de Direito Privado (CTN, art. 110) - Inconstitucionalidade do
item 79 da antiga lista de serviços anexa ao Decreto-Lei nº 406/68 -
Precedentes do Supremo Tribunal Federal - Recurso improvido. - Não se
revela tributável, mediante ISS, a locação de veículos automotores
(que consubstancia obrigação de dar ou de entregar), eis que esse
tributo municipal somente pode incidir sobre obrigações de fazer, a
cuja matriz conceitual não se ajusta a figura contratual da locação de bens
móveis. Precedentes (STF). Doutrina. (RE 446003 AgR, Relator Ministro
Celso de Mello, Segunda Turma, julgamento em 30.5.2006, DJ de
4.8.2006). (Destacou-se).
Na espécie, o imposto, conforme a própria nomenclatura, considerado o
figurino constitucional, pressupõe a prestação de serviços e não o contrato
de locação. Em face do texto da Carta Federal, não se tem como assentar a
incidência do tributo na espécie, porque falta o núcleo dessa incidência,
que são os serviços. Observem-se os institutos em vigor tal como se
contêm na legislação de regência. As definições de locação de serviços
e locação de móveis vêm-nos do Código Civil. Em síntese, há de
prevalecer a definição de cada instituto, e somente a prestação de
serviços, envolvido na via direta o esforço humano, é fato gerador do
tributo em comento. Prevalece a ordem natural das coisas cuja força
surge insuplantável; prevalecem as balizas constitucionais, a conferirem
segurança às relações Estado-contribuinte; prevalece, alfim, a organicidade
do próprio Direito, sem a qual tudo será possível no agasalho de interesses
do Estado, embora não enquadráveis como primários. (AI 623226 AgR,
Relator Ministro Marco Aurélio, Primeira Turma, julgamento em 1.2.2011,
DJe de 11.3.2011). (Destacou-se).
125
Veja-se, pois, que são os signos da linguagem do direito civil é que dizem o que é
locação de bem móvel, de modo que não pode, segundo o artigo 110 do Código Tributário
Nacional, o legislador tributário esticar a definição do conteúdo estabelecido no direito civil
com vistas a uma maior imposição tributária.
Importante destacar que no segundo julgado aparece “Prevalece a ordem natural das
coisas cuja força surge insuplantável”. Por que essa ordem natural deve prevalecer? Diante
da proposta que aqui se firma, deve prevalecer pelo motivo de que também são os signos da
linguagem do direito civil gravadores em relação aos signos de uma outra linguagem da qual
nenhuma outra pode se afastar completamente: trata-se dos signos da linguagem cotidiana.
Os signos, para haver comunicação, inclusive comunicação jurídica, articulam-se no
meio de expressão de uma língua. No Brasil, o meio de expressão é a língua portuguesa.
Uma certeza aparece inafastável: não há se falar em signo jurídico sem que esse se articule
no meio de expressão da língua portuguesa.
Isso leva a uma outra conclusão importante: se o meio de expressão é a língua
portuguesa, isso quer dizer que os signos da língua portuguesa é que são gravados para fins
dos signos de qualquer linguagem, inclusive da linguagem jurídica.
Assim, como se disse, os signos da linguagem do direito civil também se debruçam
sobre os signos da linguagem cotidiana para dizer o que é móvel, locação, serviço etc. Isso
não quer dizer que não se possa inovar em termos de signos jurídicos, eis que os institutos
jurídicos têm sentido próprio. Ao contrário, isso quer dizer apenas que um mínimo do signo
gravado, deve ser respeitado em nome da eficácia dos signos de direito.
Não poderão os signos da linguagem de direito civil, por exemplo, dizerem que um
prédio é um móvel. Isso não faz nenhum sentido do ponto de vista dos signos da linguagem
cotidiana. Há, pois, um mínimo de conteúdo do signo gravado que no signo gravador deve
manter-se para que se permita a comunicação do jurídico às gentes e não se faça o sistema
de direito positivo ruir.
Isso demonstra que a substância dos signos jurídicos é, de uma forma ou de outra, o
signo da linguagem cotidiana ainda que variações sejam permitidas. Substância tem a ver
com conteúdo do signo, seu fundamento. Signos também possuem uma forma, que é sua
expressão mesma na linguagem, por exemplo, visual, audível, gestual. Finalmente, tem-se a
função do signo na linguagem, no sentido gramatical, por exemplo, se se trata de substantivo,
verbo, pronome.
126
Isso implica que signos se referem a objetos (summa realidade) ou a outros signos
(realidade semeiótica); o conteúdo do signo tem uma forma e tem uma substância. Se o
conteúdo é um signo gravado pelo signo gravador, a forma e a substância serão a forma e a
substância do signo gravado minimamente. O conteúdo do signo gravado, se for o caso do
signo da linguagem cotidiana, está no nível da realidade do objeto, que também tem forma e
substância – diverso e matéria como diz Kant.
Para o signo gravador do direito, o objeto da gravação é um objeto imediato, para
se usar um termo de Peirce, gravado no nivel de linguagem mais baixo possível que é a
linguagem contidiana. Porém, não é nela que está o limite ideal de gravação, haja vista que
o chão – ou objeto dinâmico, estará no nível da summa realidade, de modo que se permite
asseverar que não deveria existir idealmente signo jurídico que em algum grau de
degeneralização não se referisse a um objeto da experiência sensível.
O tema da realidade permeia toda a discussão do fenômeno jurídico na perspectiva
semeiótica. É a realidade que, ao menos mediatamente, é objeto do direito. A objetividade
para a qual o direito deve se direcionar necessita, em alguma medida, de um elemento de
mediação para gravação no signo jurídico; esse elemento de mediação se chama verdade
jurídica. Na sequência vai-se explorar a realidade jurídica e a verdade jurídica.
127
PARTE 2 – REALIDADE E VERDADE JURÍDICAS
Com base na Parte 1 deste trabalho, na qual se apresentaram algumas escolas
filosóficas de fundamento para o realismo jurídico, bem como um panorama das escolas
estadunidense e escandinava do realismo jurídico, segue-se agora para esta Parte 2, na qual
os temas aprendidos serão aplicados para fundamentar uma visão da realidade jurídica ela
mesma, da verdade jurídica no domínio do direito, bem como outros temas de relevância
para a ciência jurídica e que são correlatos, tais quais, a convenção que se forma no âmbito
do direito (convenção jurídica), o tema das proposições em contraposição às normas
jurídicas, bem como o tema da interpretação e aplicação do direito.
2.1 Realidade Jurídica e Convenção no Direito
A realidade jurídica é uma realidade de sobreposição. Portanto, para a devida
compreensão do que se entende por realidade jurídica é preciso estudar o que é essa realidade
sobre a qual a realidade jurídica se sobrepõe, ou seja, estudar o que é essa realidade
extrajurídica.
Nesse contexto, diga-se que compreender o que é realidade extrajurídica depende da
posição filosófica que se adota para estudar o tema. Para fins das posições que foram aqui
examinadas, trabalha-se com a diferença entre realismo e nominalismo.
O realismo de que se fala aqui é o realismo peirceano. O nominalismo será utilizado
como ponto de diferenciação para justificar a postura do realismo peirceano sobre o tema da
realidade, de modo que não há uma preocupação com um tipo determinado de nominalismo,
ou, nominalismo desse ou daquele pensador.
Antes de se tratar da postura realista e da postura nominalista no que toca à realidade
extrajurídica, diga-se que o portal de acesso à realidade é um signo na concepção peirceana
de signo (tríade). Um dos meios de articulação de signos é pelo meio de expressão de uma
língua. Diga-se aqui que não se exclui como signo o pensamento. Faz-se um recorte somente
para fins de se analisar um tipo de expressão específica do signo nesse momento: o signo
escrito.
Bem, se o meio de expressão é uma língua e se o recorte eleito for o meio de
expressão escrito dessa língua (existem outros possíveis), o que se tem é que o acesso à
realidade é o acesso que se dá a partir de um signo escrito nessa perspectiva de análise.
128
Nesse contexto, originando-se no meio de expressão escrito de articulação de uma
língua, o homem trava contato com signos, os quais se referem a realidades. Isso implica
que, ao cabo, o portal de acesso é, também, um portal de acesso semeiótico: acesso por meio
de uma definição semeiótica de um conceito sobre uma realidade.
É aqui que jaz todo o problema relativo ao debate sobre realidade na perspectiva das
posturas realista e nominalista, é dizer, se o portal de acesso, no meio de expressão escrito,
diz com signos escritos, os quais correspondem a definições sobre conceitos sobre uma
realidade, seria essa definição “real” ou uma definição “nominal”?
Ferraz Jr. (1994, p. 36) responde a pergunta da seguinte maneira: “Se nos atemos ao
uso, toda e qualquer definição é nominal, isto é, definir um conceito é a mesma coisa que
descrever uma realidade, pois a descrição da realidade depende de como definimos o
conceito e não o contrário”.
Com acuidade, Ferraz Jr. se preocupa em dizer “se nos atemos ao uso”. Isso se deve
à circunstância de que é o uso dos signos sobre determinadas realidades que implicará a
definição do conceito dessas realidades.
De acordo com o uso, convencionou-se, por exemplo, que aquele objeto com quatro
pernas usado para sentar é representado pelo signo “cadeira”. No uso, pois, convencionou-
se que tal objeto não pode ser chamado “mesa”.
O que se extrai de Ferraz Jr. é, pois, que se esse uso leva a uma definição de um
conceito sobre uma realidade, isso quer dizer que toda definição de um conceito é nominal.
Se é nominal, isso quer dizer que o que se defini não é a coisa real, mas simplesmente um
conceito.
É por isso que Ferraz Jr. destaca a igualdade entre a definição de um conceito e a
descrição de uma realidade. Nesse passo, o conceito sobre uma realidade quando definido já
é nessa definição uma própria descrição dessa realidade.
Nessa linha, uma pergunta que cabe aqui vai no sentido de se saber se a definição
de um conceito sobre uma realidade “cria” ou é “condição de acesso” a essa realidade, ou,
ainda, a pergunta que vai no sentido de se saber se os signos “descobrem” realidades ou as
“constituem” para os usuários em uma comunidade de fala.
Antes de responder, esclareça-se que aquele que faz uso dos signos em uma língua
determinada é um usuário da língua, sendo que, conforme Bloomfield (1973, p. 29) aponta,
uma comunidade de fala é: “Um grupo de pessoas, o qual usa um mesmo sistema de sinais
de fala”.
129
Voltando à pergunta, diga-se que, a depender da resposta que se dê acerca do efeito
que os signos exercem sobre a realidade (“cria” ou “é condição”), adotar-se-á uma visão
realista ou uma visão nominalista sobre o tema. Isso se deve a um ponto especial que deve
ser ressaltado: admitir que o signo “cria” a realidade é o mesmo que admitir que não existe
realidade fora da articulação do signo no meio de expressão de uma língua.
Contrariamente, admitir que se trata de uma “condição de acesso” é o mesmo que
admitir que existe uma dualidade, é dizer, uma realidade do signo, a qual se chama aqui
realidade semeiótica e uma realidade fora do signo, a qual se chama aqui summa realidade.
Aqui já se toma uma posição sobre o embate entre a visão realista e a visão
nominalista: para o que se defende no presente trabalho, a realidade é multidimensional na
sua essência, mas para fins meramente pedagógico-dogmáticos, dizer-se-á aqui que é uma
dualidade, do que decorre ser admitido dizer que “existe” uma summa realidade e também
uma realidade semeiótica. Portanto, a realidade extrajurídica é uma summa realidade, e a
realidade jurídica é um tipo de realidade semeiótica ou jurídico-semeiótica.
Para se chegar a essa conclusão, a premissa aqui utilizada se fundamenta na ideia de
realidade defendida por Peirce. Sobre realidade, como já se disse, Peirce traz que a “é aquele
modo de ser em virtude do qual a coisa real é como ela é, independentemente de como uma
mente ou grupo de mentes possa representá-la”.
Interpretando-se os dizeres de Peirce, o que se extrai é que apontam para duas
conclusões fulminantes: a) “existe” uma realidade além do meio de expressão de uma língua;
b) uma mente ou grupo de mentes não “constrói” uma realidade por meio de uma
representação.
A aproximação de Peirce do tema não deixa dúvidas, o signo no meio de expressão
de uma língua não tem o condão de “criar” uma realidade, eis que a “coisa real” é
independentemente de como uma comunidade de fala convenciona sobre a ela.
Nesse contexto, aqui se trabalha o signo como portal de acesso ao real. Para o que
aqui se defende, há uma sutil diferença quando se fala na igualdade entre a definição de um
conceito e a descrição de uma realidade, conforme aponta Ferraz Jr.
Essa sutil diferença jaz na palavra “descrição”. Quando se fala em uso
convencionado em uma comunidade de fala, tal uso é uma memória dele próprio na mente
dos falantes dessa comunidade de fala.
O verbo descrever, como diz Wittgenstein (2009, p. 136-137), “zomba de nós”. Para
ele, descrições são “instrumentos para empregos especiais”, de modo que “pensar em
130
descrições como representações verbais de fatos” pode ser desorientador, como é inútil um
quadro pendurado na parede que “simplesmente reproduz o aspecto e a constituição de uma
coisa”.
Dê-se o exemplo de quando alguém diz que uma “cadeira se usa para sentar”. O que
se tem quando se pensa em uma cadeira é essa memória de uso (“usa-se para sentar”). Essa
memória de uso é equivalente a um conceito, mas não é exatamente a mesma coisa que a
descrição de uma realidade, eis que este (conceito) é inútil para realmente descrever uma
realidade.
Sob essa perspectiva, a definição de um conceito é mais uma gravação semeiótica
na expressão escrita de uma língua de uma memória de uso do que uma descrição de uma
realidade. Isso porque, para o que se aqui defende, uma realidade, porque inesgotável, nunca
poderia ser descrita, mas tão somente “descoberta” na extensão de uma gravação sua.
Assim, o besouro na caixa que é descrito por várias mentes, mas que não é acessado
por nenhuma delas, como exemplifica Wittgenstein (2009, p. 137-138), em verdade, é uma
memória de uso do besouro e isso quer dizer que é “algo”, será “algo” e foi “algo” em algum
momento para que se tornasse memória de uso, de modo que, mesmo que não esteja na caixa
para aquele grupo de mentes, isso não lhe descredencia de ser “algo” na sua realidade de
besouro.
Disso decorre que o signo do besouro, como memória de uso no meio de expressão
escrito de uma língua, certamente referencia “algo”, tem (esse algo) uma relação objetiva
com o signo. É a experiência a respeito do besouro que o credencia a ser “algo” para o signo.
Para se fixar bem essa premissa em relação à memória de uso, deve-se compreender
o que se tem por uso em uma comunidade de fala. O nome substantivo português uso vem
do nome substantivo latino usus, cuja entrada nos dicionários indica experiência, hábito e
costume.
Assim, de maneira simplista, poder-se-ia dizer que o uso é, pois, uma experiência de
algo que, reiterada, torna-se hábito e, porque hábito, “acostuma” sobre ele a mente ou mentes
dos membros de uma comunidade de fala, tornando-se uma memória de uso sobre uma
realidade.
A mente pode se acostumar a várias memórias de uso sobre as coisas, mas em uma
comunidade de fala, para que a comunicação seja possível, convencionar-se-á uma memória
como aquela aceita. As outras podem continuar na mente, mas não permitirão a
comunicação.
131
O fenômeno da convenção, o qual permite que memórias de uso sejam gravadas
como aceitas nas mentes dos membros de comunidades de fala, é de tal complexo que
demandaria um tanto expressivo de páginas para explicá-lo, o que não é o objetivo direto do
presente trabalho.
Porém, para não deixar o tema no ar, importa trazer que convenção, como já se deu
a entender anteriormente, diz com uma experiência reiterada, um hábito. Lewis (2002, p.
42), ainda que de maneira provisória, explica o seguinte sobre a convenção:
Esse é o fenômeno que eu chamo convenção. Nossa primeira, bruta,
definição é:
Uma regularidade R num comportamento de membros de uma população
P quando eles são agentes numa situação recorrente S é uma convenção se,
e apenas se, em qualquer instância de S entre os membros de P,
(1) todos se sujeitam a R;
(2) todos esperam que todos os demais se sujeitem a R;
(3) todos preferem se sujeitar a R sob a condição que os outros também o
façam, já que S é um problema de coordenação e a sujeição
uniforme a R é um apropriado equilíbrio em S.
[...]
Essa regularidade que tem gradualmente se desenvolvido em nosso
comportamento é uma convenção. (Destacou-se).
Veja-se que a uma convenção é, assim, um processo de coordenação de expectativas
entre membros de uma comunidade de fala, o qual, quando implica equilíbrio em termos da
uniformidade da sujeição a uma regularidade (de fala) resulta em um ajuste entre os falantes,
é dizer, resulta em uma convenção.
O resultado que é uma convenção é um produto de um processo muito mais complexo
entre os membros de uma comunidade de fala. Tal processo tem como pilar a coordenação
entre os homens dentro de uma comunidade de fala, de modo que a comunicação seja
possível. Trata-se de um problema de coordenação
É por isso que Bloomfield (1973, p. 27) traz que estudar a língua é “estudar a
coordenação de certos sons com certos significados”.
Croft (2011, p. 1) aponta que quando alguém fala, fala no sentido de se comunicar
em uma ação conjunta que é desempenhada pelos falantes, sendo que essa ação conjunta
assim o é, haja vista se referir à soma das ações conjuntas de falantes individualmente
considerados.
132
Para aperfeiçoar essa ação conjunta, faz-se necessário que cada falante considere “as
crenças, intenções, e ações de um modo que pode ser descrito como cooperativo” (CROFT,
2011, p. 1).
Cooperar é compartilhar atitudes individuais com vistas a que uma ação conjunta seja
levada a cabo. Comunicar-se é uma coordenação de expectativas, a qual considera a
particularidade do outro para que seja possível a ação conjunta. Se o processo é vitorioso,
isso quer dizer que há equilíbrio e, se há equilíbrio todos podem se sujeitar à regularidade
que se estabelece. Está-se, assim, diante de uma convenção.
Porém, Peirce, como já se viu, deixa claro que, independentemente dessa convenção,
a “coisa real é como ela é”. Portanto, para Peirce, claramente, pouco importa a convenção
no que toca à realidade “em si”, eis que essa é independente no seu “modo de ser” de
quaisquer processos desenvolvidos por membros de uma comunidade de fala.
No entanto, ele mesmo (Peirce) não se viu longe da importância da comunidade no
processo de intelecção da realidade. Peirce (CP 5.311) traz que:
O real, então, é aquilo no qual, mais cedo ou mais tarde, a informação e o
raciocínio resultarão finalmente, e que é, portanto, independente das
minhas e das suas fantasias. Assim, a verdadeira origem da concepção
de realidade mostra que esta concepção implica essencialmente a
noção de uma COMUNIDADE, sem limites definidos e capaz de um
aumento de conhecimento indefinido. (Destacou-se).
Segundo Bacha (2003, p. 36), a realidade das coisas está sujeita às seguintes
propriedades:
a) não depende do desejo ou opinião de indivíduos ou grupos de
indivíduos; b) será objeto de consenso entre as pessoas que têm suficiente
experiência e conduzem as investigações de forma correta; c) de fato, este
consenso não é limitado a uma comunidade particular, mas pode incluir
qualquer agente racional; d) o consenso resulta da ação da realidade
externa sobre nossos sentidos e nossas opiniões.
Se essa é a premissa, ou seja, que “existe” uma summa realidade, surge aqui uma
inquietação importante: qual é, então, o elemento de mediação que torna essa soma de
experiências de realidades uma memória de uso convencionada? Que consolida o processo
da experiência na coordenação de expectativas para que se encontre equilíbrio? A resposta
se fundamentará na dualidade trabalhada por Peirce entre verdade e realidade e será dada
no próximo tópico.
133
Antes é preciso trazer o tema para uma aplicação no que respeita ao fenômeno
jurídico. A esse respeito, diga-se que a realidade jurídica é, em si, já uma verdade, eis que a
realidade jurídica é um tipo de realidade semeiótica, ou seja, um tipo de realidade de
gravação sobre uma summa realidade que é a realidade gravada.
“Gravação” não quer dizer independência, mas ao contrário, que o que há é uma
simbiose. O elemento simbiótico é que prevalece no fenômeno jurídico na perspectiva
semeiótica. O dualismo entre summa realidade e realidade semeiótica é dogmático com fins
pedagógicos, como já se disse.
Qualquer realidade semeiótica, por ser gravadora é, em verdade simbiótica, eis que,
pelo que aqui se defende, não há independência absoluta entre o signo e o objeto. O mesmo
se aplica ao direito, de modo que a realidade jurídica, tipo de realidade semeiótica que é,
tampouco tem independência absoluta em relação à realidade gravada que é a summa
realidade. Ao contrário, pelo que aqui se interpreta, o que há é uma simbiose – um direito
que simbioticamente grava a realidade e, ao gravá-la se entrelaça a ela.
Pelo que aqui se entende, quando Peirce prega a realidade como modo de ser
independente de uma mente ou grupo de mentes, o que se tem é uma consideração ontológica
imediatista. É dizer, de maneira imediata, a realidade é independente ontologicamente
considerada. Porém, pela perspectiva do signo, não há independência, eis que a realidade
mesma, no signo como representação, está lá gravada, pois o que haveria, numa associação
a Merleau-Ponty, é um pronlongamento de um (signo) a outro (realidade externa). Ora, se
está gravada, é porque, na perspectiva do signo, não há independência absoluta, mas sim
simbiose.
Isso resta claro em Peirce, por exemplo, no CP 6.368, no qual se pode verificar que
considera também a realidade da terceiridade e não só da segundidade. Isso se deve à
circunstância, pelo que aqui se interpreta, de que Peirce considera o pensamento também
como algo real.
Quando se traz que a realidade jurídica é semeiótica, ou melhor, trata-se de uma
realidade jurídico-semeiótica, isso se faz no domínio da consideração da convenção pelos
membros da uma comunidade de fala jurídica.
A memória de uso jurídica que permite comunicação jurídica é convencionada pelos
falantes. A regularidade de comportamento que os falantes se sujeitam é fruto da força
prescritiva, impositiva, cogente e realizativa do direito, mas nada mais é que um efeito da
submissão à convenção jurídica que se estabelece.
134
Não há submissão somente porque o direito é prescritivo, impositivo, cogente e
realizativo, há sujeição ao jurídico, também, porque há uma expectativa de sujeição dos
demais falantes. O efeito da prescrição, imposição, cogência e realização é um efeito de
coordenação de expectativas individuais e não tanto um efeito de força como se costuma
esperar.
Quando a cooperação é bem-sucedida, há um equilíbrio na regularidade de
comportamentos, há, assim, uma convenção jurídica. No direito, há valores importantes para
permitir a convenção, os quais serão tratados nos próximos tópicos.
Antes, diga-se que essa convenção que permite a comunicação efetiva do fenômeno
jurídico, é uma convenção do “real”, da summa realidade. Isso quer dizer que a convenção
não está alheia à summa realidade e, pois, que a realidade jurídico-semeiótica tampouco está.
Desse modo, o direito, como já posto, é objetivo-simbiótico. Essa é a medida da semeiótica
no direito, é dizer, não separar o reino do direito do reino do real, eis que separação não há,
mas sim uma gravação existente na perspectiva do signo jurídico – da regra de direito.
Isso encontra apoio na crítica de Ross, já mencionada, a Kelsen, no sentido de que
não há separação entre mundo do ser e do dever ser, o que também pode se estender ao
pensamento nominalista em geral, bem como ao realismo ante rem platônico do Fédon e às
intuições puras de Kant.
Essa separação em reinos distintos como na lógica defendida pelos stoicos que ainda
impera em muitos segmentos do pensamento ocidental é equívoca quando levada,
igualmente, ao fenômeno jurídico, eis que neste tampouco, com base no realismo jurídico,
se pode falar em uma divisão, existindo, no entanto, um entrelaçamento entre o jurídico e a
summa realidade tão necessário, que quando não presente torna o direito imprestável.
Ressalte-se, no entanto, que o elemento que permite gravar essa ligação com a
summa realidade no signo jurídico é a convenção, a qual se estabelece por uma operação
lógica (no sentido peirceano) que se chama verdade jurídica, conforme se detalhará no
próximo tópico.
2.2 Verdade Jurídica
O problema da mediação do domínio da summa realidade ao domínio da realidade
semeiótica é resolvido por Peirce por meio de uma dualidade: realidade e verdade. É preciso
entender agora o que Peirce entende por verdade.
135
Sobre verdade, Peirce (CP 5.565) traz o seguinte:
Verdade é aquela concordância de uma declaração abstrata com o limite
ideal em direção ao qual uma interminável investigação tenderia a trazer
crença científica, a qual a concordância da declaração abstrata tem a
faculdade de possuir em virtude da confissão de sua imprecisão e
unilateralidade, sendo que essa confissão é um ingrediente essencial da
verdade.
As palavras de Peirce são de uma genialidade ímpar. Ao diferenciar verdade de
realidade, permite-se trabalhar no domínio da dualidade, o que dá sustentáculo à dualidade
mesma que aqui se utiliza para falar de uma summa realidade e uma realidade semeiótica.
Lembre-se, como já se disse, que tais dualidades são ingredientes dogmáticos com
índole pedagógica para se explicar o fenômeno, eis que nada de estáticas têm realmente. Ao
se dualizar, acaba-se por perder todo o dinamismo das múltiplas dimensões que o fenômeno
tem. Porém, não haveria ciência possível sem que se estabilizassem as dinâmicas ímpares
do que se tem por objeto. Como já disse Wittegenstein anteriormente, “a descrição zomba
de nós”. Então, que se entenda esse dualismo nessa porção científica, sem muita seriedade
ao se observar a summa realidade.
Nesse contexto, tem-se que o elemento de mediação que consolida o processo de
experiência na coordenação de expectativas com vistas a trazer equilíbrio a uma situação
reiterada chama-se verdade, sendo essa a última peça do quebra-cabeça da posição realista.
Nesse piso, verdade é uma conquista dos falantes de uma comunidade de fala muito
próxima do que Lewis chamou de convenção. Nesse sentido, diga-se que a interpretação que
aqui se faz das palavras de Peirce, vai no sentido de que, para ele, verdade é uma operação
lógica, mas da lógica peirceana. Para compreender suas palavras, é preciso separar os
elementos já mencionados no CP 5.565 para que sejam estudados isoladamente.
Desse modo, tem-se que: a) declaração abstrata se entende aqui por aquela que
decorre de um processo de observação abstrata (trata-se de uma gravação no meio escrito
da língua); b) limite ideal se entende aqui como a gravação possível de uma realidade. É a
própria realidade que se pode gravar; c) investigação se entende aqui como perquirição
científica na experiência sensível; d) crença científica se entende aqui como a memória de
uso decorrente de uma convenção estabelecida em uma comunidade de fala sobre uma
realidade, afastando-se do científico aquilo que é decorrente de ponderações intuitivas ou
relativas a uma omnisciência divina; e) concordância se entende aqui como a decorrência
mesma de se ter permitido alcançar crença científica pelo processo de investigação científica.
136
A verdade peirceana é, pois, decorrente de uma operação que permite concordância
entre uma declaração decorrente de um processo de observação abstrata e uma gravação
possível de uma realidade. Esse limite ideal (gravável) é a própria realidade possível, mas
que, por ser inesgotável, somente pode ser gravada e não descrita na sua indescritível
completude. É essa gravação que é inteligível.
Uma investigação científica, debaixo da postura realista, afasta operações intuitivas
e de omnisciência divina. Essa investigação, como esclarece Peirce, é sempre um continuum
de investigação e, por ser um continuum, resulta que a crença científica é sempre atualizável
e, pois, falível em vista de uma nova investigação que se possa levar a cabo, mas apoiada
em uma experiência sensível possível.
No continuum se preserva um pouco a dinamicidade da summa realidade, eis que a
verdade no dualismo é somente um veículo integrador a serviço do intelecto, eis que a
separação entre o observador e a summa realidade não há na visão simbiótica que aqui se
adota. Estão, observador e summa realidade, estão inclusiva e exclusivamente conectados,
sendo somente para fins científicos que se justifica a divisão. Quando da investigação
científica, assim, o cientista não deixa de se estender ao objeto e vice-versa. A realidade é
multidimensional, gravando o cientista somente uma fatia dela, de modo que ao fazê-lo,
grava ele mesmo na fatia.
Porém, no domínio da ciência, ao se trazer que a verdade é uma operação de
concordância em relação a um limite ideal, tal implica admitir que há um limite ideal para
concordar, o que, por si só, já faz concluir por uma operação simbiótica de inclusão e
exclusão mútua.
Ademais, diga-se que Peirce resolve com maestria, na sua concepção de verdade, o
problema do signo na expressão escrita de uma língua como único acesso possível ao real,
do que poderia se concluir que não haveria realidade fora da linguagem (postura
nominalista).
Isso se deve à circunstância de que Peirce aproxima o que se chamou aqui memória
de uso sobre uma realidade ao que ele chama de crença científica, que seria o mesmo que a
verdade da concordância.
Aproximando Peirce aos dizeres de Lewis sobre convenção, o que se tem é que, essa
concordância de uma declaração que se saca como produto de uma investigação pelo
processo de observação abstrata com um limite ideal, é muito próxima de uma sujeição das
137
mentes dos falantes a uma regularidade de comportamento em situações recorrentes, eis que
a concordância também é um processo de sujeição mental.
Sujeitar-se a uma regularidade de comportamento é muito próximo a concordar
uma declaração abstrata (gravação) com um limite ideal possível sobre uma realidade,
eis que nos dois casos o que se alcança é um ajuste entre membros de uma comunidade de
fala para fins da comunicação entre eles.
Essa verdade peirceana, tal qual a convenção de Lewis, se projeta sobre a summa
realidade com ares de conexão. Não há independência na perspectiva do signo. A
independência seria plausível se fosse possível uma perspectiva desde e só desde o objeto,
mas ao se considerar um panorama simbiótico, o que há é uma ligação.
Nesse contexto, em relação à definição do objeto, o que se tem é que, quando se logra
definir um conceito sobre uma realidade (do objeto), disso segue que se logrou alcançar uma
verdade, a qual, reforce-se, é sempre atualizável dentro da comunidade de fala, diante do
falibilismo do conceito que se define. Essa verdade, se vista no panorama de um mecanismo,
é como uma camera de filmagem que grava a dinamicidade da summa realidade. Nessa
gravação, na extensão do objeto que se grava está também o observador em um olhar que é
simbiótico.
É por isso que somente em uma perspectiva lógica (clássica) é que se pode dizer,
como diz Ferraz Jr., que uma definição é sempre nominal. É nominal logicamente, eis que
diz com a concordância de uma declaração resultante de um processo de observação abstrata
em relação a um limite ideal, o qual, pela inesgotabilidade da coisa real, é sempre uma
gravação possível que a mente pode abstrair.
Porém, se o panorama é a abdução de Peirce, que liga, no silogismo, o evento da
conclusão aos eventos verificáveis das premissas não por operador lógico-dedutivo, mas por
operador abdutivo (verificação na experiência sensível), a definição não é de todo nominal,
mas sim depende da “descrição” que a investigação na experiência sensível possibilita. Ora,
se depende da experiência sensível, é porque é simbiótica também, eis que o observador está
também na figura no olho que a observação permite gravar.
Aqui jaz a diferença fundamental entre o realismo que aqui se adota e o nominalismo.
Para o que aqui se defende, tanto summa realidade como realidade semeiótica são
“realidades”, incluindo-se na realidade semeiótica também o pensamento como elemento
“real”, mas que, por ser pensamento “de algo” justifica aí a “existência” desse “algo” e, à
medida que fosse possível tal perspectiva somente a partir do objeto, autoriza a dizer que
138
esse “algo” “existe” fora do pensamento. Nominalistas trabalham somente com verdades
(lógicas) no pensamento e realistas aceitam a possibilidade da perspectiva do objeto.
Sobre a posição nominalista, Forster (2011, p. 4) é claro, ao pontuar que, não se
admite debaixo dessa posição, existirem coisas na natureza fora do pensamento:
Nominalistas sustentam que a realidade compreende particulares
[individuals]. Eles negam haver leis operativas no mundo e que existam
tipos de coisas na natureza além do pensamento. Na sua visão, uma
teoria completa do mundo poderia ser dada por meio da enumeração dos
particulares e dos seus traços sem o uso das leis ou conceitos gerais, mesmo
se, como eles permitem, o conhecimento exaustivo do mundo na sua
particularidade esteja além da capacidade de mentes finitas. (Destacou-se).
O problema da posição nominalista, para o que se compreende neste trabalho, parece
repousar na circunstância de que, se o pensamento é a única coisa que “existe”, que dizer do
referente de signos como objeto real?
O ponto aqui de discórdia parece jazer na perspectiva do objeto “em si” como já
mencionado. Se a abstração é tamanha que não existe nada além do pensamento, isso quer
implicar que a experiência sensível é, em verdade, uma experiência de pensamentos. Se é
uma experiência de pensamentos, que dizer das sensações?
Mesmo Kant fala que o efeito que a matéria causa na sensibilidade do sujeito
cognoscente é chamado de sensação, sendo que por sensibilidade deve-se entender a
capacidade representativa do sujeito, o que, em último grau, quer significar que a matéria
tem um efeito no sujeito (sensação) e é desta que haverá a intuição empírica, dela o
pensamento e o conceito.
Bem, nesse circuito não parece haver lugar para uma posição nominalista, eis que a
sensação que é o efeito que se causa na capacidade representativa da mente é de “algo” que
alcança os sentidos e esse “algo” não pode ser pensamento.
Se o mundo é somente algo criado na mente como um conceito, esse conceito é
conceito de quê? De outro conceito, poder-se-ia responder, diante do que existiria um sem
fim de conceitos que nunca levariam, efetivamente, a uma experiência sensível. Algo como
a norma hipotético fundamental de Kelsen.
Nesse piso, então, a experiência que se tem seria somente uma experiência de
conceitos? Como se pode experimentar um conceito, pede-se aqui aos leitores que tentem?
Então, ao se colocar na boca um doce, esse doce é um conceito de um conceito de um doce?
Qual é, assim, o conceito primeiro desse doce?
139
Acerca do tema, o que Peirce (CP 5.384) parece ressaltar é que a “concepção de
verdade como algo comunitário”, ou algo convencional, somente se desenvolve
suficientemente quando, por meio da experiência de investigação científica acerca de coisas
que afetam os sentidos por meio de leis regulares, uma mente científica raciocina sobre como
as coisas realmente e verdadeiramente são, alcançando uma conclusão verdadeira, de modo
que a nova concepção envolvida nesse processo é uma concepção de realidade.
Isso implica que os conceitos são resultado de processos de experiência, os quais
permitem raciocinar sobre a verdade das coisas. As verdades últimas, que estão sempre em
suspenso, por que o processo é sempre falível, é que são verdade de uma realidade. Portanto,
realidade, ainda que independente na perspectiva do objeto, é, na perspectiva da terceiridade
(peirceana), um objeto de uma verdade alcançada após um processo de investigação
científica suficiente. Essa verdade é uma realidade semeiótica e seu objeto uma summa
realidade. Assim, essa visão, ao mesmo tempo, confirma que a verdade, que é a realidade
semeiótica, está ligada semeioticamente ao objeto como summa realidade.
Nesse contexto, quer-se, igualmente, trazer o ponto de vista de Putman (2008, p.
145), o qual esclarece que os sujeitos da linguagem estão com seus cérebros em uma vasilha
e que são enganados por um gênio maligno no que toca à “referencialidade” com os objetos
do mundo. Porém, em relação à verdade, Putman (2008, p. 145) pondera com acuidade:
A habilidade de se referir a coisas não é garantida pela própria natureza da
mente [...]; a referência às coisas requer interação, impregnada de
informação, com as coisas, e isso é suficiente para excluir a
possibilidade de que a verdade seja em todos os casos radicalmente
independente do que podemos verificar. A verdade não pode ser tão
radicalmente não-epistêmica. (Destacou-se).
Portanto, a independência da summa realidade é independência na perspectiva do
objeto, sendo que na perspectiva do signo, ou seja, no panorama semeiótico, há uma ligação
com o objeto que nos sentidos causa efeito, ligação esta que se confirma na verdade que é
alcançada com uma suficiente investigação científica, cujo objeto é a própria realidade
investigada.
Trazendo o tema para uma aplicação jurídica, o que se tem é que uma regra abstrata
é, em verdade, uma gravação abstrata jurídica que concorda com um limite ideal
(juridicamente considerado) para formar uma verdade (jurídica).
Aqui uma pausa para se chamar a atenção para a declaração abstrata do direito (aqui
entendida como gravação abstrata do direito). Ela também pode ser vista sob a perspectiva
140
de uma proposição, proposição jurídica (ciência do direito). Ao se trazer o tema para uma
aplicação jurídica, o que se tem é que a verdade jurídica é um elemento de mediação
permitido por meio de uma investigação igualmente jurídica.
No direito, esse elemento de mediação é uma espécie de mecanismo de
gravação/prolongamento/simbiose/metamorfose de uma linguagem ordinária (linguagem
dos signos ordinários) sobre uma realidade a uma linguagem jurídica (linguagem dos signos
jurídicos). O trânsito não é imediato, motivo pelo qual se fala em mediação, mediação a
partir de signos ordinários (da linguagem social). Os signos jurídicos expressos no meio de
expressão de uma língua, são, para fins científicos, de gravação em relação aos signos
cotidianos (da linguagem cotidiana, que é a linguagem social), os quais se verificam como
signos gravados.
A concordância da gravação no signo jurídico com o limite ideal mediatamente
(elemento de mediação) considerado para fins jurídicos é a verdade do direito. É também
convencionada na medida em que a concordância se permite pela crença que se alcança pela
investigação jurídica que se desempenha por intermédio de mentes também jurídicas.
A crença que se estabelece no direito pela interpretação das regras jurídicas é a
convenção jurídica – é o significado que se extrai e que se ajusta a respeito por meio da
experiência jurídica de aplicação e regularidade de aplicação das regras de direito. Essa
crença que se forma no direito leva em consideração valores específicos e importantes para
o fenômeno jurídico, como o valor justiça, por exemplo, valores estes que não são
necessariamente os mesmos que orientam as convenções não jurídicas. Isso será abordado
mais adiante com pormenores.
Frise-se que verdade aqui não é uma verdade especificamente lógica (clássica), mas
sim uma verdade na concepção peirceana – alcançada por meio do método abdutivo, o qual
encontra na experiência suficiente que a investigação científica permite a verdade das
premissas acerca de eventos do mundo num silogismo abdutivo.
A verdade alcançada pode ser diferençada ao se falar de direito e ciência do direito.
A crença que se alcança no direito é a norma jurídica propriamente dita no panorama de um
interpretante (terceiridade) de um signo jurídico com funções prescritiva, impositiva,
cogente e realizativa, cujo objeto são eventos que ocorrem na summa realidade. Essa norma
jurídica nada mais é que um signo jurídico na perspectiva do meio psíquico-semeiótico do
intérprete e aplicador do direito. A verdade que se chega na ciência do direito é uma
proposição científico-descritiva (terceiridade) a partir do signo científico com função
141
descritiva, cujo objeto é o signo jurídico propriamente dito, mas está também, como
proposição, no meio psíquico-semeiótico do cientista como intérprete não autêntico do
direito.
Isso será melhor explicado no próximo tópico.
2.3 Signo, Proposição e Norma
É difícil falar de proposição sem se falar um pouco de lógica (clássica). Ainda que
não seja o tema duro do presente trabalho, uma introdução à proposição dentro da lógica será
necessária, sob pena de não se permitir uma compreensão adequada do subtema que se cuida
presentemente. Que é proposição?
Copi (1981, p. 22) dá uma resposta simples e que parece ser suficiente:
Proposições são verdadeiras ou falsas e disso diferem das perguntas,
ordens e exclamações. Só as proposições podem ser afirmadas ou
negadas; uma pergunta pode ser respondida, uma ordem dada, e uma
exclamação proferida, mas nenhuma delas pode ser afirmada ou negada,
nem é possível julgá-las como verdadeiras ou falsas.
[...]
Costuma-se usar a palavra “proposição” para designar o significado
de uma sentença ou oração declarativa.
A diferença entre orações e proposições é evidenciada ao observar-se
que uma oração declarativa faz sempre parte de uma linguagem
determinada, a linguagem em que ela é enunciada, ao passo que as
proposições não são peculiares a nenhuma das linguagens em que
podem ser expressas.
[...]
Os termos “proposição” e “declaração” não são sinônimos, mas no
contexto da investigação lógica, são usados numa acepção quase idêntica.
(Destacou-se).
Guibourg; Ghigliani e Guarinoni (1984, p. 65) vão no mesmo sentido:
De duas palavras de classe que têm o mesmo significado dizemos que
nomeiam o mesmo conceito. Pois bem, de modo semelhante, duas orações
que descrevem o mesmo estado de coisas expressam a mesma proposição.
A proposição é, pois, o significado da oração uma vez abstraído das
palavras concretas com as que esse é indicado. (Destacou-se).
Bem, como se verifica, proposições não são a palavra escrita na linguagem, mas o
significado que essas palavras transmitem. Nesse passo, o que está no texto não é
propriamente a proposição, mas sim uma sequência de palavras.
142
Para fins do presente trabalho, vai se usar gravação para designar o que tanto o que
está escrito no pedaço de papel, que é dito pelo falante ou gesticulado por ele, como aquilo
que surge na sua mente por conta do contato com a summa realidade. A diferença de
perspectiva está no meio de gravação. Este pode ser físico-semeiótico (palavra escrita,
falada, gesto etc.) e pode ser psíquico-semeiótico (imaginação, pensamento, proposição,
norma jurídica). O signo, segundo Peirce, pode ser vislumbrado diante desses dois
panoramas.
Diga-se que essa dualidade entre o que está escrito e o conceito está por toda parte
quando se tem por objeto os signos no meio de expressão escrito de uma língua. Falar-se-á
disso com muito mais profundidade mais adiante, mas para que o tema não reste vazio,
importa trazer que a diferença principal está na circunstância de que conceitos, concepções,
ideias, significados estão na mente dos falantes, mas para serem transmitidos, precisam de
um modo de expressão.
Esse modo de expressão não é somente a palavra escrita, mas também a palavra
falada, os gestos etc. Quando se fala em uma gravação no meio de expressão escrito da
língua, esta gravação é um signo escrito ou uma sequência deles, sendo que gravações
gravam algo da summa realidade.
Uma proposição (que é uma gravação científica) é semelhante ao significado
científico ou um signo como pensamento ou conceito que surge na mente, ou seja, uma
gravação no meio psíquico-semeiótico do cientista. Visualizar a gravação como algo escrito
é somente visualizá-la como expressa em um dos tantos possíveis meios de expressão
disponíveis.
Visto o que se entende por proposição, deve-se agora tratar de alguns dos tipos de
proposição existentes dentro da lógica. O tema pode parecer de momento um pouco
deslocado, haja vista que a intenção aqui é tratar do cotejo entre proposição e norma jurídica,
mas se roga por paciência, eis que, feita a introdução teórica necessária, tudo restará mais
claro logo à frente.
Os tipos de proposições que se quer tratar agora são daquelas subespécies de
proposição categórica chamadas universais e particulares. Para compreendê-las, é preciso
compreender o que se tem por classe na lógica.
Copi (1981, p. 140) traz que “uma classe é uma coleção de todos os objetos que têm
uma característica específica em comum. As classes podem ser relacionadas entre si de
várias maneiras”.
143
Aqui jaz o papel das proposições, eis que são elas que afirmam ou negam as
diferentes relações entre as classes de objetos (COPI, 1981, p. 140). Dentro das formas
típicas afirmativas7 de proposições categóricas tem-se a universal.
Um exemplo ajuda a entendê-la: “Todos os políticos são mentirosos”. Há, no caso,
duas classes que se relacionam: a classe de todos os políticos e a classe de todos os
mentirosos. O que a proposição afirma, então? Ela afirma que os membros da classe “todos
os políticos” pertencem à classe “todos os mentirosos” (COPI, 1981, p. 140).
No exemplo, o que se verifica é que há um termo sujeito “políticos” e um termo
predicado “mentirosos”. O primeiro designa a classe “todos os políticos” e o segundo a
classe “todos os mentirosos” (COPI, 1981, p. 140). Essa é a proposição universal.
Disse-se que há uma outra espécie de proposição categórica afirmativa que é a das
proposições particulares. Qual a diferença entre elas? Um exemplo auxiliará a compreensão
novamente: “Alguns políticos são mentirosos”. O que se afirma nessa proposição?
Afirma-se que somente alguns membros da classe “todos os políticos” são também
membros da classe “todos os mentirosos”, ou seja, o que se declara é que nem todos os
políticos universalmente são mentirosos, mas sim alguns políticos em particular é que o são
(COPI, 1981, p. 141). Essa é a proposição particular.
Há também aquelas proposições (afirmativas) que são chamadas singulares e
aquelas que são gerais. Traga-se mais um exemplo para facilitar a compreensão: “Sócrates
é humano”. O que grava essa proposição?
Grava que um indivíduo singular tem uma propriedade específica. Grava-se que o
termo sujeito “Sócrates” tem uma propriedade que é o termo predicado “humano”. O termo
sujeito denota um indivíduo singular e o termo predicado designa a propriedade que se
atribui ao indivíduo (COPI, 1981, p. 282). Essa é a proposição singular.
Há, no entanto, também, proposições (afirmativas) que não são singulares. Outro
exemplo permitirá um entendimento mais apurado: “Tudo é mortal”. Essa é uma proposição
geral. O que se grava nessa proposição em contraposição à singular?
A diferença se faz clara pelo cotejo. Nas gerais (proposições) não há um termo
sujeito definido para atribuir o termo predicado. Não é João (termo sujeito) que é mortal
(termo predicado). “Tudo” é que é mortal (COPI, 1981, p. 282).
7 Há também as negativas, mas não se falará disso aqui.
144
Finalmente, quer-se falar de mais um tipo de proposição, da proposição hipotética
ou condicional. A proposição hipotética é apresentada por meio de gravações compostas e
não simples. Um exemplo, mais uma vez, facilitará a compreensão do tema: “Se o primeiro
nativo é um político, então o primeiro nativo mente”. Que se declara aqui?
A gravação, nesse caso, é uma composição de gravações, o que na lógica se chama
de antecedente e consequente. A gravação “o primeiro nativo é um político” é o antecedente
da declaração “o primeiro nativo mente”, a qual é o consequente. Gravam-se, pois, duas
proposições: a do antecedente e a do consequente (COPI, 1981, p. 215).
Porém, que afirma uma proposição hipotética? Afirma uma implicação, ou seja, que
o antecedente implica o consequente. Não se trata aqui de uma gravação afirmativa no
sentido de que o antecedente é verdadeiro, mas sim, de que se for, o consequente também o
será (COPI, 1981, p. 235).
Compreendidos alguns dos elementos da lógica das proposições, veja-se agora como
trata Peirce (CP 5.569) do tema:
Uma proposição é um signo que separadamente indica um objeto.
Assim, um retrato com o nome do original embaixo é uma proposição.
Isso afirma que se alguém olhar para isso pode formar uma ideia razoável
de como o original parecia. Um signo é apenas um signo in actu em
virtude de receber uma interpretação, é dizer, em virtude de
determinar outro signo do mesmo objeto. Isso é verdadeiro em relação
a julgamentos mentais como também em relação a signos externos. Dizer
que uma proposição é verdadeira é dizer que sua interpretação é
verdadeira. [...]. (Destacou-se).
A proposta de Peirce se enquadra dentro da sua lógica que é a “ciência das
necessárias e gerais leis dos signos” (CP 2.93). Para Peirce, pelo que se interpreta nessa
transcrição, proposição é uma espécie de signo. Peirce, é importante clarificar, considera
signos sob a perspectiva mental e sob a perspectiva externa.
Pelo que se extrai do mencionado, é possível, em Peirce, equivaler proposição e
signo, eis que, ainda que não expresso em um meio de expressão de uma língua, o signo
“existirá” (pensamento como realidade). Nessa linha, tal compreensão se coaduna com a
ideia de proposição alheia às palavras escritas concretamente.
Se uma proposição encontra, de um modo ou de outro, uma expressão em um medius,
então é porque, de alguma forma, algo da proposição é carregado no medius.
Agora, um ponto que deve ser ressaltado em relação aos dizeres de Peirce vai no
sentido de que proposições, na sua teoria, são fruto de uma interpretação. Bem, parece claro
145
que, se a proposição diz com significado, é porque proposição é resultado de um processo
mental.
Quando surgem conceitos na mente em relação a objetos, e proposições gravam
objetos, o que ocorre é que essas concepções da mente são decorrência do que se chamará
provisoriamente de “concordância”. Há, de alguma forma, uma concordância na mente entre
o que se indica e a concepção do que se indica, o que implica, uma proposição.
O ponto de inquietação acerca das proposições, o que também passa pela concepção
de realidade, diz respeito à possibilidade ou não de proposições poderem ser vazias de
gravação a objetos da summa realidade e de se saber se esses objetos podem ser objetos
fictícios ou devem ser objetos (referentes) que, de algum modo, passam pela experiência
sensível.
Ao analisar as proposições universais e hipotéticas, Peirce (1984, p. 174) procura
responder a pergunta “Uma representação pode significar qualquer coisa que é originalmente
na sua natureza própria não conhecível?”:
a proposição universal todos os ruminantes são biangulados fala de
um infinito de animais, e, não importa quantos ruminantes possam ter
sido examinados, a possibilidade deve necessariamente continuar no
sentido de que há outros, os quais não foram examinados. Assim, essa
universal [proposição] origina-se da própria natureza inesgotável, não
conhecível, e ainda isso certamente significa alguma coisa para que se
diga que todos os ruminantes são biangulados. No caso de uma
proposição hipotética, a mesma coisa é ainda mais manifesta; porque tal
proposição fala não meramente de um estado atual [actual] de coisas,
mas de todo possível estado de coisas, coisas essas que não são
conhecíveis na medida em que somente um estado das coisas pode
quando muito existir.
Por outro lado, já que o significado de um termo é a concepção que ele
transmite, e já que há razão abundante para acreditar que nossas
concepções derivam sua origem da experiência, no sentido que apenas
por abstração e combinações do que aprendemos dos julgamentos
relativos a fatos podemos obter uma concepção, não se pode considerar
que o significado de um termo deveria conter qualquer coisa
impossível na sua própria natureza (é dizer, independentemente da sua
não verificação na existência). (Destacou-se).
O que Peirce quer dizer? De forma geral que, tanto universais (proposições) como
hipotéticas (proposições), ainda que a própria natureza das coisas seja inesgotável, de um
modo ou de outro, significam alguma coisa.
146
Os componentes de uma proposição são seus termos. Termos também têm
significados. É aí que as palavras de Peirce têm um resultado fulminante. Para ele, nossas
concepções são originadas na experiência. Essa experiência é, também, um aprendizado.
Aprendizado do quê? De julgamentos relativos a eventos8. São, assim, esses
julgamentos relativos a eventos que, de alguma forma, permitem as concepções que são
transmitidas pelos termos e que, por via de consequência, as proposições carregam.
Esses eventos, no entanto, segundo Peirce, não podem ser impossíveis na própria
natureza. Isso tem como resultado que proposições não podem ser proposições de algo
impossível na experiência sensível. O significado não pode ser impossível na natureza.
Portanto, de certa forma, proposições são empíricas.
Nesse ponto, outra pergunta é fecunda: se não se permite uma proposição baseada
em uma experiência impossível, havendo tal proposição por hipótese, como poderia ela ser
considerada? Peirce (1984, p. 174) responde isso do seguinte modo:
a proposição ‘Se eu tivesse de escrever com tinta vermelha, eu deveria
fazer uma marca vermelha’, é a dedução de uma proposição, ‘quando quer
que seja que uma pessoa escreva com tinta vermelha essa pessoa fará uma
marca vermelha’. Assim, a hipotética [proposição] é somente um
particular tipo de universal [proposição]. Agora um signo
essencialmente significa algum objeto; mas se uma proposição
universal não pode encontrar nenhuma aplicação, real ou imaginária,
quer seja um caso debaixo dela ou mesmo como uma generalização da
sua contraditória [proposição], ela não tem objeto e não é um signo.
[...]” (Destacou-se).
O que se extrai das palavras de Peirce é que, se proposições são signos é porque
indicam alguma coisa. Dizer que um signo indica alguma coisa é parecido com dizer que
uma proposição deve ser aplicável. Aplicar uma proposição é equiparável a concordar a
gravação que a introduz com um limite ideal.
Se não há concordância, não há aplicação e, dessa forma, não se está diante de um
signo. Isso se deve à circunstância de que signos têm referentes. Peirce fala em aplicação
real ou imaginária da proposição, pois que considera que objetos podem ser reais (referentes
reais) ou fictícios (referentes fictícios). Isso será melhor detalhado mais adiante neste
trabalho.
8 Peirce fala em fatos, mas aqui se adapta para falar em eventos para condizer com a nomenclatura que aqui se
defende.
147
Por agora, basta dizer que proposições sem referentes não são signos e, se não são,
não podem estar articuladas no meio da expressão de uma língua. Ainda que fictícios, para
que se conheça objetos, é preciso que seus conceitos estejam articulados no meio de
expressão de uma língua, pois não se pode conhecer, no sentido de comunicação, objetos
que estão somente na mente dos falantes, ainda que se possa concebê-los como “reais”.
É difícil conceber uma aplicação meramente imaginária de uma proposição. Ela pode
ser meramente imaginária em termos de objeto na perspectiva da sua interpretação.
Imaginário no sentido de um conceito (que está na mente) que é objeto de um interpretante.
É o resultado da interpretação que se baseia em um conceito (na mente), mas de alguma
forma esse conceito é um conceito de alguma coisa que a experiência sensível pode
experimentar, como no exemplo da “montanha dourada” de Hume, o qual já foi explorado.
A premissa, nesse momento, é de que proposições no sentido de significados são
originadas de julgamentos relativos a eventos e esses eventos são de alguma forma
empiricamente possíveis. É por isso que uma proposição deve ser também de certa sorte
empírica.
Outro ponto que merece ser ressaltado acerca das palavras de Peirce é que
particulares (proposições) são meros tipos de universais (proposições). Isso tem um efeito
também muito relevante.
Lembram-se do que disse Forster acerca dos nominalistas?: “Nominalistas sustentam
que a realidade compreende particulares [individuals] [...] Na sua visão, uma teoria
completa do mundo poderia ser dada por meio da enumeração dos particulares e dos seus
traços sem o uso das leis ou conceitos gerais.”
Rebate-se isso facilmente na percepção peirceana, bastando dizer que, se
particulares são tipos de universais é porque de alguma maneira se submetem a tais
universais (classe) e, se assim o é, é porque leis ou conceitos gerais devem ser “usados”, o
que afastaria a plausibilidade da visão nominalista.
Afinal, que são essas coisas particulares e essas coisas universais que as proposições
apontam? Strawson (1950, p. 15) parece trazer esclarecimentos importantes sobre o tema:
Pensamos sobre o mundo como contendo coisas particulares, as quais são
independentes de nós mesmos; pensamos sobre a história do mundo como
feita de episódios particulares, em relação aos quais podemos ou não ter
feito parte; e pensamos acerca dessas coisas particulares e eventos como
incluídos nos tópicos do nosso discurso comum, como coisas, as quais
podemos falar uns com os outros. Essas são observações do jeito como
pensamos o mundo, sobre nosso esquema conceitual. Uma maneira mais
148
reconhecidamente filosófica, embora não mais clara, de expressar
essas observações é dizer que nossa ontologia compreende particulares
objetivos.
[...]. Por exemplo, no meu, como em muitos usos filosóficos,
ocorrências históricas, objetos materiais, pessoas e suas sombras são
todos particulares; enquanto que qualidades e propriedades, números
e espécies não são. (Destacou-se).
Nesse contexto, Strawson parece querer dizer que a diferença entre particulares e
universais está justamente na possibilidade de serem termos sujeitos em uma proposição
e/ou termos predicados numa proposição, ou ainda as duas coisas, termos sujeitos e termos
predicados. Isso resta ainda mais claro quando diz (STRAWSON, 1959, p. 137-138):
Já que qualquer coisa que seja pode ser de maneira identificadora referida,
ser um objeto de possível referência identificadora não distingui nenhuma
classe ou tipo de itens ou entidades uns dos outros. Sem dúvida há coisas
que são realmente referidas, e algumas que não são [...]. No entanto, ‘ser
um objeto de referência’ não marca uma distinção de interesse filosófico.
Não distingui um tipo de objeto do outro; mas isso distingui uma
maneira de aparecer no discurso de outra. Isso distingui de aparecer
como sujeito de aparecer como predicado. A doutrina tradicional que
temos que investigar é a doutrina que particulares podem aparecer no
discurso como sujeitos apenas, nunca como predicados; enquanto que
universais, ou não-particulares geralmente, aparecem como sujeitos
ou predicados. As doutrinas poderiam ser mais completamente expressas
da seguinte maneira: particulares, como John, e universais como
casamento, e o que podemos chamar universais-cum-particulares, como
estando casado com John, podem todos ser referidos, pelo uso de
expressões de referência; mas só universais, e universais-cum-particulares,
nunca particulares sozinhos podem ser predicados, por meio de expressões
predicativas. (Destacou-se).
Nessa visão, pois, uma diferença entre o termo “John” e o termo “casamento”, sendo
“John” um particular e “casamento” um universal, é justamente que a referência a
particulares é feita por expressões de referência em proposições na posição de sujeitos,
sendo que, para fins de universais, a referência pode ser feita com expressões de referência
em proposições na posição de predicados, ou seja, universais podem ser predicados e
particulares não.
Porém, há mais nessa diferença do que a simples distinção entre termo sujeito e termo
predicado na proposição. Como se disse anteriormente, um ingrediente relevantíssimo na
compreensão do mundo por meio de proposições é que indiquem algo que a experiência
sensível possa experimentar.
Disso decorre que a proposição é também empírica. Aqui jaz outra diferença
marcante entre particulares e universais: identificar um particular é referir-se a ele por meio
149
de uma proposição que possa ser empiricamente verdadeira. Isso resta claro quando
Strawson (1959, p. 183) traz que:
Resumimos tudo isso por dizer que para que uma referência
identificadora a um particular seja feita, deve haver alguma
proposição empiricamente verdadeira conhecida, em algum não muito
exato sentido da palavra, ao falante, para o efeito de que há somente um
particular, o qual responde a uma certa descrição. Mutatis mutandis, uma
condição similar deve ser satisfeita para o ouvinte, para que seja o caso
de haver algum particular, o qual o ouvinte toma por estar sendo
referido pelo falante. (A terceira condição que eu listo requer, não
exatamente que as descrições do falante e do ouvinte sejam idênticas, mas
que cada descrição seja aplicável – unicamente – a um e mesmo
particular). (Destacou-se).
Veja-se como há uma dialética clara entre Strawson e Peirce aqui. Falante e ouvinte
identificam um particular quando conhecem uma proposição empiricamente verdadeira que
aponta a esse particular.
Não é tanto um problema de descrição do particular, mas mais um problema de
aplicação da proposição. A proposição deve encontrar alguma aplicação, que também seja
real, para que seja vista como signo.
Fundamentalmente, o que se verifica, ainda, é que a diferença entre particulares e
universais tem algo que ver com o imediatismo da referência a eventos do mundo. Isso quer
dizer que as gravações que gravam por meio de seus termos particulares gravam de uma
maneira muito definida eventos do mundo e aquelas que gravam por meio de seus termos
universais gravam de uma maneira indefinida tais eventos do mundo.
Conforme aponta Scotus, como já demonstrado, no indivíduo a densidade da unidade
numérica é máxima. Quanto mais se dissipa do individual (particular) mais rarefeita é a
unidade, mais universal.
A pedra de toque aqui está relacionada com a verdade da proposição que grava um
particular e um universal. No primeiro caso, trata-se de uma verdade relativa a um evento
definido do mundo e no segundo caso a um evento indefinido do mundo. Peirce, como já se
viu, fala em fatos últimos (segundidade) e fatos de indeterminação (primeiridade).
Strawson (1959, p. 185) parece clarificar isso quando diz:
O tipo de verdade da proposição, a qual é universalmente requerida
para introdução de um termo particular é um tipo de proposição que
declara um muito definido fato acerca do mundo, alguma coisa que
poderia, como se fosse ser pertencente à história. Porém, o tipo de verdade
da proposição que pode em geral, ainda que não universalmente, ser
requerida para introdução de um universal ser possível é de um tipo
150
muito indefinido de proposição, o fato que declara é um muito
indefinido tipo de fato. Que alguma coisa, em algum lugar, em algum
tempo, é ou era vermelha, ou redondo, ou sábio, não é um fato que
poderia pertencer à história. (Destacou-se).
Veja-se que a questão da verdade é retomada. É ela que permitirá diferenciar
particulares e universais. Particulares requerem uma verdade acerca de um evento que deve
ser empiricamente experimentado para que seja identificado o particular. Diferentemente,
universais, para serem identificados, não requerem uma verdade acerca de eventos
empiricamente experimentáveis.
A tênue diferença é que no caso de universais esses eventos são semeióticos. Assim,
o significado que os termos da proposição gravam é um significado, na universal, que
pressupõe um conhecimento de uma linguagem (no sentido de signo) e não propriamente de
um evento empiricamente experimentado.
Veja-se como Strawson (1959, p. 185-186) trata o tema:
O contraste vital pode ser então sumarizado como a seguir. A introdução
identificadora tanto de um particular como de um universal no discurso
implica saber qual particular ou qual universal é significado, ou qual se
pretende introduzir, pela expressão introdutora. Saber qual particular é
significado implica saber, ou algumas vezes – no caso do ouvinte –
aprender, a partir da expressão introdutora usada, algum fato
empírico que é suficiente para identificar aquele particular,
diferentemente do fato que está o particular presentemente
introduzindo. Porém, saber qual universal é significado não da mesma
maneira implica saber qualquer fato empírico: isso meramente
implica conhecer a linguagem. (Destacou-se).
As palavras de Strawson tem um efeito impactante para o que aqui se estuda. O
significado que se extrai da comunicação entre falante e ouvinte, no que respeita a identificar
um universal, não pressupõe necessariamente o conhecimento de eventos empiricamente
considerados, bastando que se conhece sua linguagem.
Diferentemente, a identificação de um particular, para que a comunicação entre
falante e ouvinte seja possível, depende do conhecimento acerca de um evento que se possa
empiricamente experimentar e que seja suficiente para identificar o particular na relação de
comunicação.
A digressão foi longa, mas absolutamente necessária. Aplique-se agora o que se
aprendeu ao fenômeno jurídico. Um campo especial da lógica que pode ser usado, para fins
de análise do fenômeno jurídico, é a lógica deôntica.
151
Royakkers (1998, p. 1) traz que: “A lógica deôntica é um ramo da lógica filosófica
envolvendo um raciocínio sobre normas: obrigações, proibições e permissões. Tem raiz na
filosofia do direito”.
Acerca do tema, Bulygin e Alchourron (1991, p. 169-173) trazem o seguinte:
por exemplo, “é obrigatório cumprir as promessas” ou “proibido fumar”
podem ser usadas para ditar uma prescrição (uma ordem ou uma proibição)
e também para enunciar que há uma determinada proibição ou que algo é
obrigatório ou está permitido de acordo a uma norma ou conjunto de
normas dados. No primeiro caso, as orações deônticas expressam uma
norma; no segundo, uma proposição (descritiva) acerca das normas
que chamarei proposição normativa.
[...]
Em realidade, a diferença entre orações prescritivas e descritivas não
parece estar no seu sentido, senão no ato ilocutório realizado pelo
sujeito que usa a oração: a mesma proposição, por exemplo, a que é
expressa pela oração “juan tira o chapéu” pode ser usada em diferentes
ocasiões para fazer uma asserção (“Juan tira o chapéu”), para formular uma
pergunta (“Juan tira o chapeú?”) ou para ditar uma prescrição (“Juan tira o
chapéu!”). O significado ou sentido da oração é o mesmo em todos esses
exemplos, mas o que se faz ao emitir a oração é diferente. Por conseguinte,
somente no nível pragmático do uso da linguagem podemos distinguir
entre normas (prescrições), asserções (declaraçãos), perguntas
(interrogações) [...]. Não há diferença no nível semântico. Portanto, as
normas são o resultado de um certo uso, a saber, o uso prescritivo da
linguagem. (Destacou-se)
Os autores diferenciam normas de proposições normativas, no sentido de que as
primeiras têm força prescritiva explícita e as segundas uma força descritiva explícita. As
primeiras seriam as normas jurídicas que se sacam do direito positivo e as segundas
descrições sacadas pela ciência jurídica.
A força prescritiva das normas jurídicas seria de direcionamento direto e imperativo
aos seus destinatários e o caráter descritivo das proposições jurídicas seria de direcionamento
indireto no sentido de um devir, do modo como deveria ser a interpretação dos signos9
jurídicos.
A diferença entre caráter prescritivo e descritivo, segundo os autores mencionados,
estaria no uso da linguagem prescritiva ou descritiva. Os autores Bulygin e Alchourron
(1991, p. 174), mais adiante, porém, trazem que “recursos linguísticos ou não que se usam
para indicar o que se faz de uma oração determinada (ponto, signos de exclamação e
interrogação, certa modulação da voz, gestos característicos) não formam parte do
9 Usa-se “signo” para diferençar de “norma”. O primeiro significando o que está no texto e a segunda o que
está na mente (o significado), o qual também pode ser chamado de interpretante jurídico.
152
significado das palavras usadas”, de modo que “normas são entidades abstratas,
independente de todo uso linguístico”.
Aqui quer parecer estar em erro a intepretação dos autores mencionados, haja vista
que um signo, e normas também são signos, é entidade triádico-relacional composta, também
de objeto e interpretante. O signo encontra meios de expressão, sendo que o signo escrito
encontra o meio de expressão escrito em uma língua. Esse meio de expressão que também
envolve sua morfossintaxe é parte sua, de modo que o signo não é independente do uso
linguístico, tal qual a norma como signo que também é.
Quando se convenciona uma norma jurídica (o significado que se extrai de um texto
legal) essa é convencionada com componentes que são obviamente linguísticos ou
semeióticos (como os signos da linguagem cotidiana), de modo que essa convenção não é
de todo abstrata, eis que a convenção jurídica que se estipula, por ser espécie de signo, deve
se direcionar, de alguma forma, à summa realidade, ainda que isso seja um ideal a ser
alcançado. “Montanha dourada” tem “montanha” e tem “dourada” e ambos os signos
apontam para algo da summa realidade, ainda que juntos possam ser uma ficção.
Isso não retira a aplicabilidade da diferenciação entre norma jurídica e proposição
jurídica. A norma jurídica, realmente, é de tipo especial, eis que tem uma função especial de
prescrever condutas, impor consequências para violação da prescrição, ser cogente em
relação a esses efeitos, bem como realizativa para fins de determinados deveres e obrigações.
As proposições jurídicas (da ciência do direito), no entanto, têm função descritiva de todas
essas funções normativas relacionadas ao fenômeno jurídico.
Essa diferenciação é clara também pelo que traz Kelsen (2003, p. 84; 89):
Porém, o dever-ser da proposição jurídica não tem, como o dever-ser
da norma jurídica, um sentido prescritivo, mas um sentido descritivo.
Esta ambivalência da palavra “dever” [...] é esquecida quando se
identificam proposições normativas [...] com imperativos.
[...]
Particularmente, a proposição jurídica não é um imperativo: é um juízo, a
afirmação sobre um objeto dado ao conhecimento. (Destacou-se).
Assim, a proposição jurídica tem função diferenciada, a de descrever como essas
funções prescritivas, impositivas, cogentes e realizativas do direito deveriam ser
interpretadas. Nesse trabalho, por exemplo, o que se faz é ciência jurídica, de modo que a
função da linguagem operativa aqui é de descrição do fenômeno jurídico.
153
Porém, para descrever o fenômeno jurídico é preciso mais do que isso. É preciso
compreender a mecânica da norma jurídica. Acerca do tema, tragam-se, novamente, os
dizeres de Bulygin e Alchourron (1991, p. 175) agora no que toca às proposições normativas:
As proposições normativas que se expressam em geral mediante
orações elípticas que enunciam que um estado de coisas dado p tem
um status normativo (proibido, permitido ou obrigatório), conforme
uma ordem normativa não especificada. Isso significa que essa ordem
normativa contém uma norma que proíbe (permite ou ordena) p.
Porém, que significa dizer que uma norma forma parte de (ou pertence a)
um conjunto de normas? Como há diferentes classes de normas, há também
diferentes respostas a essa pergunta. Um caso especial, mas muito
interessante é o das normas jurídicas. As normas jurídicas têm existência
temporal: começam a existir em um certo momento e deixam de existir
num momento posterior. A existência temporal das normas pode ser
analisada em termos de pertinência a uma ordem jurídica dada. Uma ordem
jurídica é uma ordem dinâmica, é dizer, uma sequência temporal de
conjuntos cambiantes de normas. A cada momento temporal (no qual
alguma norma é introduzida na ordem ou eliminada dela) corresponde um
certo conjunto de normas. Uma norma pode ser membro de diferentes
conjuntos e, enquanto seja membro de algum conjunto, pertence a (ou
existe na) essa ordem.
[...]
A introdução de normas numa ordem jurídica e sua eliminação são
governadas por certos critérios que se atém à racionalidade dos atos
de promulgação e derrogação e que, num sentido amplo, podem ser
chamados lógicos. Por conseguinte, a lógica das proposições
normativas pode ser considerada como um cálculo de sistemas ou
ordens dinâmicas. (Destacou-se).
Assim, as proposições normativas que estão na ciência do direito são aquelas que se
utilizam da função descritiva da linguagem. Elas tratam, em um resumo cabível, de eventos
que implicam consequências normativas de acordo com signos jurídicos gravados em um
determinado sistema jurídico.
O direito é um sistema normativo que se utiliza da função prescritiva, impositiva,
cogente e realizativa da linguagem. Se é um sistema normativo, então permite proposições
normativas do tipo é proibido, permitido ou obrigatório com fundamento nos signos jurídicos
e nas normas jurídicas10 apreendidas do sistema de direito positivo.
São signos com funções diferentes, mas que como signos precisam de um meio para
se expressar e esse é o meio de expressão em uma articulação possível dentro de uma língua.
Isso parece ser uma verdade incontestável.
10 Normas jurídicas são equivalentes a interpretantes jurídicos para usar a nomenclatura de Peirce.
154
Porém, meio de expressão isoladamente considerado é vácuo autônomo, é brutem
fulmem, do que decorre que do meio de expressão deve-se sacar uma norma jurídica, no
caso do direito, ou uma proposição normativa, no caso da ciência do direito.
Um ponto de grande controvérsia diz respeito justamente ao operador verdade, o qual
permite a convenção tanto no direito como na ciência. Poder-se-ia dizer que as normas
jurídicas não se submeteriam à mesma verdade das proposições lógicas da ciência do direito.
Não se discute aqui que se as proposições científicas se submetem à lógica do verdadeiro ou
falso, e proposições da ciência do direito são proposições científicas.
Nesse contexto, vale trazer o seguinte sobre as proposições científicas (COPI, 1981,
p. 383):
A situação é muito diferente no âmbito da ciência. Desde que toda
explicação científica é considerada uma hipótese, somente quando há
provas dela, é que se torna digna de aceitação. Como hipótese, a
questão de sua verdade ou falsidade mantém-se em suspenso, e há uma
contínua busca para achar cada vez mais provas que permitam decidir
essa questão. O termo “prova”, tal como é aqui usado, refere-se, em
última instância à experiência; a prova sensível é o tribunal de última
instância para verificação das proposições científicas. Ao sustentar que
a experiência dos sentidos é o teste de verdade para todos os seus
pronunciamentos, a ciência é empírica. Por consequência, é da essência da
proposição científica que é capaz de ser provado o teste pela observação.
Algumas proposições podem ser diretamente testadas. [...] Proposições
gerais [...] não são diretamente verificáveis dessa maneira. Contudo,
podem ser verificadas ou testadas indiretamente. (Destacou-se).
Veja-se que as coisas se coadunam. Proposições científicas se submetem à prova pela
experiência sensível. Esse é “o tribunal de última instância para verificação das proposições
científicas”.
Se proposições da ciência do direito também são científicas, então também se
submetem à prova pela experiência sensível e isso quer dizer que se sujeitam à lógica do
verdadeiro e falso. Isso tem muito a ver com a circunstância de que uma ciência deve ser
empírica e, é justamente por isso que Strawson fala em proposições empíricas.
Na ciência jurídica, pois, suas proposições também devem ser empíricas e isso quer
dizer que devem, de alguma forma, identificar-se com eventos do mundo, eventos estes que
podem ser provados, ao fim e ao cabo, empiricamente por meio de investigação científica.
Na ciência do direito, encontram-se diversas proposições (gravações) do tipo
hipotética, as quais gravam como deveria ser a interpretação acerca dos signos de direito,
tais quais: “se alguém matar alguém, então pena de reclusão...”.
155
Como se asseverou com base em Copi anteriormente, essas (que são também tipos
de proposições científicas), estão logicamente submetidas a uma verdade. Se o antecedente
“matar alguém” é verdadeiro, então o consequente “pena de reclusão” também o é e vice-
versa.
Há na ciência do direito, igualmente, proposições universais do tipo “todos as
pessoas devem se submeter à lei”, o que decorre da norma que se saca do princípio da
legalidade, ou ainda, do tipo “todas as pessoas são iguais perante a lei”, o que decorre do
princípio da isonomia.
Existem também proposições de caráter singular, tais quais “João auferiu renda,
então deve pagar o imposto sobre a renda”, as quais podem ser decorrência de uma
proposição hipotética que seria algo como “se alguém auferir renda, então deve pagar o
imposto sobre a renda”, o que decorre da norma jurídica que se extrai da legislação do
imposto sobre a renda.
Se é possível dizer que a proposição científica é desse tipo, é possível dizer também
que a norma que se saca do direito positivo também é. Bem, se proposição é tal qual um
significado, de alguma forma, a norma que se saca do direito positivo permite esse
significado, pois é seu objeto de descrição.
Isso quer dizer que quando um cientista interpreta o signo posto no direito positivo,
descrevendo a norma jurídica que se extrai do tipo proibido, permitido e/ou obrigatória, o
conceito que lhe surge na mente é também uma espécie de significado.
Assim, se existe um significado jurídico que se saca do signo de direito positivo,
então de alguma forma ele também é equiparável à proposição que se saca na ciência do
direito. Ora, se ambos proposição e norma jurídica são espécies de signos, então, de alguma
forma, haveria uma equivalência entre o que a investigação do direito permite sacar como
verdade e o que a investigação científica (da ciência do direito) autoriza.
Assim, há no signo de direito um significado que se extrai, um significado jurídico,
e esse significado é um conceito que surge na mente. A diferença, como já se ressaltou, é a
função do signo jurídico e do signo científico.
O signo jurídico tem função prescritiva de uma conduta, impositiva de uma
consequência, cogente de sujeição aos signos postos no sistema e realizativa de direitos e
obrigações. Isso difere da função do signo científico, a qual é descritiva de um fenômeno.
Então, o significado jurídico que se grava do signo de direito posto é permitido,
proibido e/ou obrigatório, sendo que o significado que se grava na ciência do direito é a
156
descrição de que o significado jurídico deveria ser daquela forma. No primeiro caso, aquele
que grava a norma jurídica é o aplicador e intérprete legal autorizado pelo direito para tal e,
no segundo caso, aquele que grava é o cientista do direito.
A diferença de função está na cogência – no efeito de sujeição a uma regularidade
imposta que exsurge no membro de uma comunidade de fala que se inclui em um estado
democrático de direito em comparação com o efeito que exsurge da leitura da ciência do
direito, o qual é informativo-descritivo.
Bem, se o signo jurídico é também um tipo de convenção (jurídica), é porque, de
alguma forma, aceitou-se essa regularidade para permitir a cogência ou sujeição ao signo
de direito posto. De novo, volta-se ao problema do uso, um problema de índole pragmática.
Assim, o uso que se estabeleceu para os membros de uma comunidade de fala que se sujeita
ao estado democrático de direito é de que a regularidade nas situações recorrentes é a de se
submeter ao proibido, permitido e/ou obrigado que se saca do signo de direito posto.
Como se convencionou essa regularidade, por conta também da função impositiva
dos signos jurídicos, impositiva de consequências jurídicas, o significado que surge na mente
é da sujeição ao signo jurídico.
Portanto, parece evidente que essa norma que se saca do direito posto não pode ser
de todo abstrata, eis que, na visão que aqui se defende, convenções o são em relação a usos
e usos são usos de membros de uma comunidade de fala. Ainda que no direito haja uma certa
“violência impositiva”, a qual auxilia no processo de sujeição, pois implica consequências
danosas aos sujeitos de direito, a sujeição à cogência do direito não é efeito da “violência
impositiva”, mas sim da coordenação comunitária que convencionou sujeição a essa
regularidade cogente. Esse é o uso, em outras palavras, que se deu aos signos de direito na
sociedade de direito.
Se há essa atenção ao uso, então resta claro que a norma jurídica que se grava do
direito positivo é também, de certa forma, empírica, tal qual o é a proposição científica. Isso
resta muito claro quando se vislumbra a questão das provas no processo judicial.
Se a norma jurídica singular é do tipo “João matou Maria, então deve ser a pena de
privação de liberdade”, é porque seu significado se sustenta por um embate com eventos,
que comprovem que João matou Maria.
O próprio signo hipotético do legislador do tipo “se alguém matar alguém, então
crime de homicídio” também não é de todo desvinculado de eventos, eis que para o legislador
157
escolher essa hipótese para render efeitos de direito, o fez porque essas ocorrências, de
alguma forma, são relevantes para a comunidade de fala que o legislador representa.
Se são relevantes, é porque alguma convenção social nesse sentido se firmou e, foi
com base nessa convenção social que, de alguma forma, fundamentou-se o legislador para
editar o signo jurídico hipotético.
Assim, também o signo jurídico editado pelo legislador é de uma forma indireta
empírica, pois do que serviria estipular uma consequência jurídica para uma conduta que na
convenção social, ou melhor, na linguagem cotidiana (dos signos cotidianos), não implica
nenhuma obrigação, proibição ou permissão dos membros de uma comunidade de fala?
Haveria um problema de eficácia – um ruído na comunicação jurídica.
Um ponto que não restou esclarecido é o da submissão ou não do signo de direito
positivo à lógica do verdadeira ou falso. Já se disse que a proposição normativa da ciência
do direito, que é descritiva, pode se submeter a tal lógica, mas o que dizer da norma jurídica
que se saca do direito positivo?
Bem, quer parecer que o efeito para fins da linguagem do direito desde um ponto de
vista intranormativo é diferente de uma lógica do verdadeiro ou falso, eis que, para o direito,
signos jurídicos pertencem ou não ao sistema de direito positivo, ou seja, são válidos ou
inválidos. Essa é a posição tradicional baseada em Kelsen.
Porém, o problema normativo, como se disse, também é um problema de sujeição,
ou seja, sujeição à regularidade de uma situação recorrente, o que fundamenta a convenção
jurídica. Se assim o é, é porque, de uma maneira ou de outra, não se preocupa somente com
validade e/ou invalidade do signo jurídico no sistema de direito. Há uma questão de
legitimidade, de cometimento, de eficácia. Não quer parecer, ressalte-se, que isso seja
extrajurídico, no sentido de que a preocupação deveria ser da sociologia do direito, por
exemplo.
Como já se trouxe com base em Ross, “o direito encontra fundamento na consciência
jurídica ou na vontade jurídica, sendo que num plano mais abstrato, ele se dissolve, passando
a ser visível somente na forma de seus componentes sociológicos: o fático-convencional, ou
o desejado ou querido como direito”
Como trouxe Ross em tópico anterior, a questão não é de validade ou invalidade de
um signo jurídico no sistema de direito, mas sim de se saber se existe correlação do signo
com o fático-convencional.
158
Isso justifica asseverar que a convenção social está para o direito como meio e fim e
seu descompasso com ela implica antijuridicidade. Como traz Pound, já mencionado, o
direito é uma instituição social, encontrando sua medida na vontade social.
O direito é mais um direito dos eventos do mundo e não tanto somente dos signos de
direito positivo; é nos eventos que deve encontrar a correlação necessária para impor
consequências e também a correlação necessária para edificar o signo jurídico no sistema de
direito.
Assim, ao se aplicar o realismo jurídico no panorama estadunidense e escandinavo,
apoiando-se, igualmente, no realismo peirceano, o que se tem é que se deve um respeito à
convenção jurídica, a qual, ao fim, deve respeito à convenção social espécie do gênero que
é.
Nesse contexto, se no realismo peirceano o método é abdutivo, há uma lógica de
verdadeiro ou falso, mas esta é daquelas que a verdade da conclusão se submete aos eventos
das premissas, desde que uma investigação possa comprovar seu valor científico.
A questão, pois, reduz-se, também, a uma interpretação dos eventos que a
investigação científica permite apurar. No direito a investigação é jurídica, mas a
juridicidade não lhe retira a necessidade, pelo que aqui se defende, de se apurar a verdade
em relação aos eventos do mundo gravados como passíveis de projetar consequências
jurídicas.
Tratar-se-á, na sequência, do tema da interpretação e aplicação no domínio do direito.
2.4 Interpretação e Aplicação no Domínio do Direito
Viu-se antes que uma proposição é uma espécie de signo linguístico, que signos
linguísticos têm significados, que esses significados são o conceito o qual gravam, que esses
conceitos se originam da experiência por meio de julgamentos relativos a eventos e que
conceitos não podem se referir a coisas impossíveis na experiência sensível.
Verificou-se, igualmente, que proposições (ou gravações científicas) têm de
encontrar aplicação na summa realidade. Se o conceito que o signo grava é um conceito
sobre uma coisa impossível na experiência sensível, o resultado é que não se estará diante
de um signo per si.
O signo, pois, grava um objeto e disso decorre que “existe” uma summa realidade e
uma realidade semeiótica (referente ao signo mesmo). Viu-se, também, que há um elemento
159
de mediação entre o objeto e o signo: trata-se da verdade. Peirce, como já transcrito, traz que
signos para serem verdadeiros dependem de interpretações verdadeiras.
Essa interpretação é um novo signo de um signo acerca de um objeto (no meio
psíquico-semeiótico). Esse novo signo é chamado por Peirce de interpretante do primeiro
signo. Aqui há uma relação triádica, eis que se tem objeto, signo e interpretante.
O real não é somente o real sensível que é representado pelo signo, mas o real do
próprio signo e também o real da sua interpretação. Assim, diz-se de uma summa realidade
e de uma realidade semeiótica, a qual é a realidade do signo mesmo, mas também é a
realidade do interpretante (o conceito na mente).
Na sua fenomenologia, Peirce analisa os fenômenos a partir de três modos de ser
distintos, conforme aponta Ibri (1992, p. 19), dividindo-os em categorias: primeiridade,
segundidade e terceiridade.
Peirce chama tais categorias de categorias ceno-pitagóricas (CP 2.87) por conta de
sua relação com números (1, 2 e 3). Acerca de cada uma dessas categorias Peirce (CP 2.89)
assim se pronuncia:
Originalidade é ser tal qual ser é, independentemente de qualquer outra
coisa.
[...]
Obsistência (sugerindo prevenir, objeto, obstinado, obstáculo, insistência,
resistência etc.) é aquela em que segundidade difere da primeiridade; ou, é
aquele elemento, o qual tomado em conexão com Orginalidade, faz uma
coisa tal qual outra compelir-se a ser.
[...]
Transuasão (sugerindo tradução, transação, transfusão, transcendental etc.)
é mediação, ou a modificação da primeiridade e segundidade pela
terceiridade, tomada fora da segundidade e da primeiridade; ou, é ser em
se criando obsistência.
Na categoria da primeiridade predomina a ideia de originalidade (origem), a qual em
relação à segundidade se apresenta como uma qualidade, que é alguma coisa tal qual é, e é
tão livre da Obsistência por não ser nem mesmo idêntico a si próprio ou individual (CP.
2.91). Trata-se de algo como o sentimento sobre uma cor, por exemplo, o vermelho.
Na categoria da segundidade predomina a ideia de Obsistência. O prefixo “ob-” aqui
dá uma ideia de “contra”. Obsistência vai no sentido de uma existência contra algo (há
resistência). Aqui já surge uma primeira consciência do objeto, de algo outro em relação ao
primeiro algo. Aqui estão os objetos no sentido de uma primeira descoberta sobre eles por
160
conta de uma resistência. É já uma sensação de um obstáculo, algo como alguém andando
na rua e tropeçando em uma pedra e constatando: “há algo aqui”.
Na categoria da terceiridade predomina a ideia de Transuasão. O prefixo “trans-” dá
a ideia de “além de”. Aqui há uma consciência de experimentação de “coisas existentes” no
tempo, o que gera uma noção de regularidade por conta da observação. Está aqui o elemento
de mediação. É aqui em que ocorre a gravação do anterior em posterior, da ideia de outro
em uma gravação dessa ideia com sentido de regularidade. Aqui o obstáculo ganha uma
“gravação” por uma consciência que faz “atribuições”, como se aquele que tropeçou na
pedra agora a “interpretasse”: “trata-se de um topázio de cor azul, o qual pode ser utilizado
para fazer pedras preciosas, sendo encontrado na Rússia, Brasil, Japão...”.
Para consolidar as ideias aqui trazidas acerca da triáde peirceana objeto, signo e
intrepretante e sobre as categorias ceno-pitagóricas da primeiridade, segundidade e
terceiridade, traga-se o seguinte quadro representativo:
Figura 6 – Tríade peirceana com suas categorias ceno-pitagóricas
Antes de se aplicar o estudado para fins de interpretação e aplicação do direito, diga-
se que a realidade mesma de que se falou antes está na segundidade. Peirce (CP 1.325) é
claro a esse respeito:
(TERCEIRIDADE)
INTERPRETANTE
(SEGUNDIDADE)
SIGNO OU
REPRESENTAMEN
(PRIMEIRIDADE)
OBJETO*
Fonte: Elaborado pelo autor com base no CP 2.228 e CP 2.89.
*Objeto na primeiridade no sentido de um sentimento sobre ele.
Na segundidade haveria a primeira sensação sobre o objeto.
161
Na ideia de realidade, segundidade é predominante; porque o real é
aquilo que insiste por sobre forçar seu caminho ao reconhecimento
como alguma coisa outra do que a criação da mente. (Lembre-se que
antes da palavra Francesa, second, ter sido adotada na nossa língua, other
era meramente um número ordinal correspondente a dois [two]) O real é
ativo; nós o reconhecemos por chamá-lo atual [actual]. (Essa palavra
é devida ao uso de {energia}, ação, para significar existência, em
oposição a um estado meramente germinal). (Destacou-se).
Veja-se que a ideia peirceana de segundidade encontra equivalente na ideia de
realidade, na extensão do que se pode entender por segundidade no sentido de tempo
presente (atual). A categoria da segundidade, em relação à qual a característica marcante é a
alteridade, reconhece o outro como existente e, tal reação na mente (cognição), é o palco no
qual a realidade se revela outra a essa mente.
Peirce chama o real em inglês de actual. A tradução mais comum de actual em inglês
ao português é real, mas pode-se traduzir também como atual no sentido de presente. A
realidade é aquela outra coisa, cuja presentidade a mente conhece, ainda que de maneira
rudimentar.
A alteridade da segundidade mostra-se como solução, dentro do realismo peirceano,
para o problema da dualidade entre realidades (interna e externa). Se a segundidade anuncia
à mente o outro, para que a mente conheça, ainda que de maneira irregular, sua presença (no
sentido de estar presente) ou existência (no sentido de uma ação contra algo germinal), isso
significa que, conhecer uma presença ou existência de um outro (alteridade), é o mesmo que
conhecer uma presença ou existência outra à mente, ou seja, que nela não se encontra.
Ademais, ao se conhecer uma presença outra à mente, mas sendo ainda o
reconhecimento da mente, isso implica que na mente esse outro cambiou; cambiou-se na
mente o primeiro, que é multiplicidade disforme. Há, assim, na multiplicidade disforme um
limite ideal considerado.
Essa ideia, é dizer, essa concepção do outro (alteridade) na mente é outra realidade,
uma realidade semeiótica, a qual é abrangente, incluindo o pensamento como forma de
signo.
Assim, se segundidade já é linguagem em sentido amplo (signo) e na realidade
predomina a categoria da segundidade, é porque aqui, de uma forma ou de outra, já há uma
concepção primeira e, pois, uma realidade semeiótica.
Portanto, pelo que aqui se interpreta de Peirce, dizer que a realidade está na
segundidade, é dizer que está já na forma de uma ideia (signo), ou seja, uma espécie de
162
linguagem em sentido amplo, ainda que em potência para se tornar verdade na terceiridade
do interpretante. Peirce diz que na segundidade predomina a ideia de realidade e não a
realidade ela mesma, a qual por ser multiplicidade disforme, não poderia ali estar.
Seguindo-se, foi dito anteriormente que na terceiridade predomina o elemento
mediação no sentido que se media uma modificação da primeiridade e da segundidade para
alguma outra coisa. Há uma gravação. Essa mediação se deve à experiência, uma
experiência que permite a observação de uma regularidade.
A operação aqui para “gravar” essa regularidade da experiência em signo é uma
operação que se articula pelo operador verdade. Como se disse: é a verdade que concorda
uma declaração abstrata com um limite ideal que uma investigação tende a trazer uma
sempre falível crença científica.
Há verdade, pois, quando essa concordância é possível. A verdade, desse modo, está
na categoria ceno-pitagórica da terceiridade. É ela que permite um signo mais avançado
(interpretante) do que o signo anterior na segundidade. O ciclo que usa o operador verdade
para permitir a semiose (geração de signos) é interminável, eis que novos signos de signos
vão surgindo ad infinitum no processo.
Acerca disso Peirce (CP 2.92) assim se pronuncia:
Um Signo é qualquer coisa a qual é relacionada com uma Segunda coisa,
seu Objeto, no que diz respeito a uma Qualidade, de modo a trazer uma
Terceira coisa, seu Interpretante, em relação ao mesmo Objeto, e que
dessa forma trará um Quarto em relação àquele Objeto na mesma forma,
ad infinitum. (Destacou-se).
Nesse sentido, o que se tem é um objeto no sentido de qualidade (primeiridade), para
o qual se relaciona um signo primeiro atual (segundidade) e, a partir desse, uma série infinita
de novos signos (interpretantes) surgem, os quais se relacionam ao mesmo objeto mediados
pelo primeiro signo.
Foque-se agora no interpretante do primeiro signo para retomar o tema da
interpretação. Esse interpretante é (se verifica) na medida em que o operador verdade permite
uma concordância com um limite ideal (objeto) que uma investigação tenderia a trazer
crença científica.
Assim, para que se obtenha crença científica ou convenção, é preciso que a
interpretação seja verdadeira. Trazendo-se tudo que se disse para o direito, o que se tem é
que, no direito, autoridades jurídicas aplicam regras (signos) jurídicos previstos no direito
163
positivo. Essa aplicação passa necessariamente por um processo de interpretação dos signos,
o qual descobrirá a norma jurídica aplicável.
Aqui surge a ideia de norma jurídica como resultado do processo de interpretação, o
qual permite a aplicação jurídica. A norma jurídica é o interpretante, resultado do processo
de interpretação que é, ao mesmo tempo um processo de aplicação do direito, pois que
quando a autoridade jurídica aplica, ela aplica por conta do que interpreta. Talvez a diferença
entre aplicação e interpretação no direito esteja no tempo da operação no sentido de que se
interpreta para aplicar e não o contrário.
O que importa aqui, no entanto, é que, como se disse, uma interpretação tem de ser
verdadeira para se alçar à terceiridade, de modo que, se a norma jurídica é interpretante
(terceiridade), a norma jurídica também deve, de alguma forma, estar relacionada a uma
verdade sobre eventos que implicam consequências de direito.
Essa norma jurídica é também uma crença jurídica que se ajusta (uma convenção
jurídica) decorrente de uma investigação jurídica sobre eventos do mundo. Como diz Ross,
o direito é “fático-convencional”. Aqui uma diferença marcante do fenômeno jurídico. No
direito, prescrevem-se regularidades de comportamentos aceitas.
Diante da existência jurídica dessa prescrição de comportamento, a investigação
jurídica apura a ocorrência de irregularidades em relação aos comportamentos prescritos
para impor consequências de direito. Irregularidade constatada e consequência são fruto de
interpretação e aplicação e perfazem um ajuste jurídico que é a norma jurídica.
Logo, a autoridade jurídica competente (legislador) para introduzir signos jurídicos
elege eventos que, importantes para o direito, implicarão consequências jurídicas.
As regras (signos) jurídicas permitem uma interpretação e uma aplicação por parte
de uma autoridade jurídica competente (a exemplo do juiz). Essa autoridade, por sua vez,
dependerá de um relato dos eventos (ou gravação desses eventos) por parte de outra
autoridade jurídica (delegado, por exemplo).
O encadeamento de gravações acerca de eventos previstos como passíveis de
consequências jurídicas se apresenta tal qual uma triáde na concepção peirceana, em relação
à qual há um evento (objeto), uma gravação semeiótica primeira da ocorrência (signo) e a
consideração do elemento de mediação verdade para permitir uma interpretação verdadeira
e, assim, aplicar-se o direito, é dizer, impor-se as consequências jurídicas previstas.
Em conclusão do que se disse, para o direito: a) a primeiridade tem um sentido de
qualidade de objeto próxima do evento do mundo, passível de consequências jurídicas,
164
conforme previsto na regra (signo) jurídica editada pelo legislador; b) a segundidade é a
primeira reação por uma consciência acerca desse evento, aqui já como signo desse evento
no sentido de uma gravação primeira. Aqui “há” a realidade pelo choque – pela reação com
a multiplicidade disforme do objeto em si (a primeiridade). Como signo na segundidade,
trata-se já de realidade semeiótica; c) a terceiridade surge como ideia de verdade jurídica
(como elemento de mediação sempre falível e dependente da experiência sensível reiterada),
a qual se confunde com o processo de interpretação jurídica e aplicação do direito com base
em eventos apurados pela teoria das provas.
Na primeiridade, o evento passível de gerar efeitos de direito é só uma qualidade,
uma potencialidade. Na segundidade, há o choque primeiro, por exemplo, de uma autoridade
investigativa com um evento (ocorrido), mas sem que haja ainda uma interpretação e
aplicação das cominações devidas. Na terceiridade é que a interpretação e aplicação
aparecem mediando-se a cominação devida em relação ao evento ocorrido por conta da
convenção que se forma com base na verdade.
Vista a questão sob a ótica das categorias ceno-pitagóricas e se considerando que o
direito também é um conglomerado de signos jurídicos, segue-se à Parte 3 deste trabalho
para um estudo com foco nos signos jurídicos.
165
PARTE 3 – SIGNOS JURÍDICOS
Em uma língua, contam-se histórias e somente falantes da língua é que podem contar
histórias. Para se contar histórias é preciso capacidade de linguagem, de modo que não
podem existir na língua falantes com afasia.
Os falantes da língua fazem uso dos mecanismos da linguagem para se comunicar.
Se há comunicação entre os membros de uma comunidade de fala, é porque os falantes dessa
comunidade conhecem as regras estruturais que regem a língua que falam. Do contrário, não
haveria comunicação e, sem comunicação, a vida em sociedade é impossível.
Ao se falar de linguagem aqui, o entendimento que se tem, nesse trabalho, é de algo
mais ampliativo do que a linguagem escrita, falada e/ou gestual de uma língua. Quer parecer
evidente que uma língua não é pensamento. Acerca disso, acredita-se que nenhum linguista
se oporia. Porém, se língua não é pensamento, poderia a linguagem abarcá-lo como
fenômeno?
Ao se adotar que linguagem é o que serve para comunicar, haveria um problema para
incluir o pensamento aí, pois que pensamento per si não é meio de comunicação. Falta-lhe
um canal; esse canal é um modo escrito, oral e/ou gestual de uma língua. Isso parece ser uma
verificação estrita de linguagem, pois que há quem fale da linguagem dos sonhos também, a
qual, por óbvio, não tem em si um modo de expressão na língua.
Para se evitar discórdias, aqui se adota o termo cunhado por Peirce: signo. Signo,
assim, é mais ampliativo que linguagem, abarcando em si o pensamento e com ele os sonhos,
a imaginação, a loucura, etc., estes últimos uma forma de pensamento que também são.
Peirce (CP 5.421) deixa claro que o signo abarca o pensamento quando diz que:
uma pessoa não é absolutamente um individual. Seus pensamentos são o
que ela está ‘dizendo para ela mesma’, isto é, está dizendo para aquele
outro ser nela mesma [self] que acaba de vir à vida no fluxo do tempo.
Quando alguém raciocina, é aquele ser crítico que alguém está tentando
persuadir; e todo pensamento é um signo, e é mormente da natureza de
linguagem. (Destacou-se).
Como se nota, Peirce pondera acerca de dois pontos: a) quando alguém pensa essa
consciência do pensamento “meio que paira” sobre a própria pessoa que pensa como se fosse
uma pessoa diferente dela mesma. Ao se ter consciência do pensamento, isso quer dizer que
esta consciência mesma é “algo” que não é pensamento, mas além do próprio pensamento;
b) todo pensamento é um signo e signos têm natureza de linguagem.
166
Peirce magnificamente amplia os horizontes para incluir o pensamento na linguagem.
Então, não seria um problema, nos termos de Peirce, dizer, como aqui se diz, “signos da
linguagem cotidiana” ou “signos da linguagem do direito”. Trata-se de expressão
redundante, é verdade, pois que se signo tem natureza de linguagem, basta dizer “signo
jurídico” e signo “cotidiano”, por exemplo. Porém, com o perdão do pleonasmo, em alguns
trechos desse trabalho tais expressões serão utilizadas para reforçar a classe a qual o signo
pertence.
Se Peirce está correto, ao se falar na linguagem do direito, esta inclui, igualmente, o
pensamento jurídico e não somente as gravações escritas, faladas e gestuais. Entretanto, ao
se usar língua, esta, por ser mais estrita, não abarcaria o pensamento, pois que língua é um
modo de expressão da linguagem. Dessa forma, para fins de distinção, tem-se utilizado a
nomenclatura “signo no meio de expressão escrito, falado e/ou gestual da língua”. Portanto,
o que se tem por objeto desse tópico é tratar dos fenômenos semeióticos como fenômenos
de linguagem. Isso dentro de uma interpretação de linguagem na linha peirceana.
Feitas essas ponderações de método e nomenclatura, é importante trazer que não é
somente a semeiótica (peirceana) que estuda fenômenos de linguagem. A semiologia
saussuriana, a linguística pottieriana, o estruturalismo jakobsoniano, entre outras escolas,
também o fazem.
A linguagem, é importante dizer, é limitadora do conhecimento humano se entendida
como único meio para alcançá-lo em uma orientação subjetiva ao invés de uma orientação
objetivamente considerada como procura pregar a escola do realismo.
Entrentanto, não é possível negar que é a linguagem que torna possível a
comunicação, eis que não há comunicação do absoluto por si só, eis que comunicação se faz
comunitariamente. Em sociedade, a ferramenta da linguagem é primordial para a vida seguir
e isso não desmerece o papel relevantíssimo que uma análise do objeto em si e por si mesmo
pode desencadear.
No âmbito do direito, isso salta aos olhos, ao se notar que o direito é formado,
também, de um conglomerado de estatutos e códigos de leis – linguagem no meio de
expressão escrito de uma língua natural.
Porém, o direito não é somente esse conglomerado de papeis, mas, mais do que isso,
o próprio pensamento jurídico de uma sociedade de direito, bem como as convenções
formadas no seio dessa sociedade que não são só papel, mas no papel podem estar gravadas.
167
Para tratar da linguagem no meio de expressão de uma língua, há diferentes teorias
aplicáveis. O que se tentará fazer aqui é aproximá-las da semeiótica (peirceana) para prover
uma aplicação conjunta.
O presente estudo trabalha com um dualismo, o qual se utiliza para fins meramente
dogmático-pedagógicos entre o signo gravador (ou linguagem de gravação/gravadora) e o
signo gravado (ou linguagem gravada). Tal se deve a uma alusão a linguagem e
metalinguagem como se vê na teoria linguística em um sentido simples de expressar que a
geração de signos (semiose) ocorre por meio de uma espécie de gravação semeiótica,
encontrando chão firme na summa realidade.
Reforce-se que essa visão é uma visão dogmático-pedagógica, eis que já se
apresentou que essa verticalização do movimento semeiótico erige-se como demasiado
apertada acerca do que o fenômeno realmente é. O panorama que aqui se defende é de uma
visualização simbiótica da linguagem, inclusive jurídica, porém, para fins didáticos, essa
forma de divisão (signo gravador e signo gravado) no aperto da dogmática parece útil.
É do que se cuida na sequência.
3.1 Signos Gravadores e Signos Gravados (Teoria Semeiótico↔estesiológica de
Gravação): Papel da Semeiótica como Ferramenta de Compreensão do Fenômeno
Jurídico
Quando se joga um jogo qualquer, por exemplo o xadrez, há regras sobre a estrutura
do jogo que devem ser conhecidas para que os jogadores participem corretamente do jogo.
“Um peão move uma casa para frente, mas nunca para trás” é uma regra desse tipo.
Desprezando essa regra, alguém pode até jogar um jogo, mas esse jogo não poderá ser
chamado xadrez.
Quem tratou da alegoria do jogo como “jogo de linguagem” foi Wittgenstein (2009,
p. 18-19), o qual traz que jogo de linguagem refere-se ao uso da linguagem por meio do qual
crianças aprendem sua língua materna, como também “os processos de denominação de
objetos” e de repetição da palavra pronunciada, como o uso que se faz em brincadeiras de
roda, e, por fim, também à “totalidade formada pela linguagem e pelas atividades com as
quais ela vem entrelaçada”.
É esse último sentido que se utiliza aqui para designar “jogo de linguagem”, ou seja,
a totalidade formada pela linguagem e pelas atividades com as quais ela vem entrelaçada.
Seguindo-se com o raciocínio do jogo de xadrez, diga-se que há uma diferença, no entanto,
168
entre as regras estruturais do xadrez e as regras de uma língua. Para estabelecer as regras do
jogo de xadrez é preciso conhecer as regras do jogo de uma língua, sem as quais nenhuma
regra de jogo pode ser estabelecida nessa língua.
Não se trata de algo apriorístico, mas sim de uma conclusão irremediável que parte
da forma de comunicação estabelecida entre os homens. Quem quiser estudar uma
linguagem, cujo meio de expressão se faz pelo mecanismo de uma língua, precisará conhecer
as regras dessa língua, da mesma maneira que falar bem uma língua implica o conhecimento
das regras estruturais dessa língua.
Isso vale para o estudo de qualquer fenômeno linguístico, objeto das ciências que o
estudam, como a filosofia, a semeiótica, a semiologia, a linguística, a gramática, a sociologia
etc. Como diz Vendler (1967), não existem filósofos mudos, do que decorre que estudar uma
linguagem, cujo meio de expressão se faz pelo mecanismo de uma língua, depende do
conhecimento das regras fundamentais dessa língua.
Logo, já se vê a utilidade do estudo que ora se propõe para fins do fenômeno jurídico,
eis que o direito é também um conglomerado de signos (uma linguagem na visão peirceana),
de modo que assim o sendo, para ser compreendido em toda sua extensão, deverá aquele que
o estudar, estudá-lo também sob a perspectiva da língua em que o direito se articula, ou seja,
da língua portuguesa.
Diga-se que aqui se entende que estudar a língua do direito não lhe retira
objetividade, desde que a visão a ser aplicada seja a visão realista. Não se trata de uma
contradição, eis que, se o pressuposto é que signos implicam uma convenção, o que se tem
é que essa convenção tende ao social e o social tende ao objeto de percepção. Portanto, nesse
panorama, o estudo continua sendo objetivamente orientado.
Nesse contexto, diga-se, ainda, que signos podem ser signos gravadores e signos
gravados. Na perspectiva da língua, signos encontram um meio de expressão, o qual pode
ser falado, escrito, gestual etc.
Veja-se que o fim e o começo do processo de geração de signos (semiose) finca-se
no chão do objeto (dinâmico). Esse é o limite ideal que uma investigação levada a efeito por
uma mente científica tende a trazer uma crença falível e atualizável. A investigação científica
estabiliza o processo da linguagem, tendendo-o a um objeto verificável e convencionável.
Como se disse, linguagem, em um primeiro entendimento, pode ser vista como um
conjunto de signos. Se os signos se articulam pelo meio de expressão de uma língua, o que
169
se tem é que esse signo é linguístico (não de linguagem, mas sim de língua). Signos, como
concepção geral, gravam alguma faceta de alguma coisa ou alguém.
O estudo dos signos é objeto da semeiótica. Ao se falar semeiótica quer-se dizer a
ciência peirceana que estuda os signos. Para Peirce, como já se colocou, a semeiótica é
dividida em três: a) gramática pura que apura o que deve ser verdadeiro do signo em
direção a incorporar algum significado; b) lógica como ciência do que é quase-
necessariamente verdadeiro dos signos para manter a validade de qualquer dito objeto, é
dizer, que possam ser verdadeiros; c) pura retórica, cuja tarefa é apurar as leis pelas quais
um signo dá vida a outro, e especialmente um pensamento dá sequência a outro. Comentários
sobre a origem do termo “semeiótica” e o uso que Peirce dá a ele já foram postos em tópicos
anteriores, para os quais se remete.
Segundo Peirce (CP 2.227), a doutrina dos signos [...] é uma doutrina quasi
necessaria ou formal no sentido de que a observação dos caracteres dos signos leva a
afirmações eminentemente falíveis acerca do que devem ser os caracteres dos signos usados.
Para Peirce (CP 2.227), o processo de observação dos caracteres dos signos é
chamado abstração e o operador do processo tem de possuir uma inteligência científica, ou
seja, que aprenda com a experiência. Uma inteligência científica, para Peirce, exclui
pensamentos intuitivos, de omnisciência divina, os quais suplantariam a razão.
Assim, Peirce (CP 2.227) traz que se trata o processo observacional (observação
abstrata) daquele tipo das ciências positivas, mas que aponta para o que deve ser acerca do
mundo real e não para aquilo que é. Uma aproximação com o direito parece aqui óbvia, eis
que o direito também é positivo no sentido de que aponta para um dever-ser.
O processo de observação abstrata leva a conclusões sobre o que deveria ser
verdadeiro. É, mais uma vez, um processo falível (falibilismo peirceano), formal no sentido
lógico e quasi necessario, eis que conclui apenas por uma contingência, ou seja, acerca do
que deve ser o referente do signo.
Como já se colocou acima, “o signo refere a alguém alguma coisa, criando na mente
dessa pessoa um signo equivalente, ou talvez mais desenvolvido. Esse signo é o interpretante
do primeiro signo” (PEIRCE, CP 2.228).
Essa “alguma coisa” que o signo indica é o objeto do signo. A referência (referido)
ao objeto se dá em relação a algumas das suas características. Não é possível, por observação
abstrata, extrair todo o substrato do real (da coisa real).
170
Agora é preciso responder: Que é o objeto e qual é a sua relação com a realidade?
Peirce (CP 8.12) responde essa pergunta:
Objetos são divididos em ficções, sonhos, etc., por um lado, e realidade
por outro. A primeira [divisão] é daqueles, os quais existem apenas na
medida em que você e eu ou algum homem imagina-os; a última
[divisão] é daqueles, os quais têm uma existência independentemente
da sua mente ou da minha ou daquela de qualquer grupo de pessoas.
O real é aquilo, o qual não é o que quer que seja que nós possamos pensar
dele, mas não é afetado pelo que nós pensamos dele. A questão, portanto,
é se homem, cavalo, e outros nomes de classes naturais correspondem a
alguma coisa, a qual todo homem, ou todos os cavalos, realmente têm em
comum, independentemente de nosso pensamento, ou se essas classes são
constituídas simplesmente por uma semelhança na maneira em que nossas
mentes são afetadas por objetos individuais, os quais têm em si mesmos
nenhuma semelhança ou relação qualquer que seja. Agora que isso é uma
questão real, em relação à qual diferentes mentes responderão
naturalmente de maneiras opostas, torna-se claro quando pensamos que
existem dois separados pontos de vista, desde os quais a realidade, como
já definida, pode ser considerada. Onde está o real, a coisa
independentemente de como pensamos nela, para ser encontrada? Deve
haver tal coisa, porque encontramos opiniões limitadoras; há alguma coisa,
portanto, a qual influencia nossos pensamentos, e não é criada por eles.
Temos, é verdade, nada imediatamente presente a nós além dos
pensamentos. Esses pensamentos, no entanto, foram causados por
sensações, e aquelas sensações são limitadas por algo fora da mente.
Essa coisa fora da mente, a qual diretamente influencia nossa
sensação, e por meio da sensação nosso pensamento, porque está fora
da mente, é independente de como pensamos nela, e é, em resumo, real.
(Destacou-se).
É importante esclarecer que Peirce concorda, em certa medida, com os nominalistas,
no que respeita à circunstância de que o portal de entrada à percepção da realidade é o
pensamento, uma concepção de algo real. Porém, diverge no sentido de que essa concepção
não tem o condão de assemelhar os objetos reais entre si, pois dizer que são objetos “é apenas
dizer que um termo mental ou pensamento-signo posiciona-se indiferentemente para um ou
o outro objeto sensível causado por duas realidades externas” (PEIRCE, CP 8.12).
O resultado do processo de observação abstrata é uma ideia do real. Essa ideia,
segundo Peirce (CP 2.228), é o fundamento do signo. A ideia que fundamenta o signo tem
de ser comum. É, nesse sentido, uma das ideias possíveis dentro do depositório de ideias
comuns das gentes.
Se uma ideia na concepção peirceana é o fundamento do signo, isso quer dizer
que esse signo é, em verdade, o veículo (aquilo que carrega) uma ideia (sobre um objeto,
uma summa realidade). Essa é uma visualização que se justifica somente na medida de ser
171
didática, eis que, em verdade, na visão que aqui se tem, a dinamicidade da realidade é
simbiótica com o signo e o intérprete do signo. Semeiótica estuda todo o fenômeno dos
signos, incluindo sua gramática (gramática pura), sua lógica (validade e invalidade) e o
processo de geração – semiose (pura retórica). Por que isso é importante para o direito?
É importante porque o direito é, também, um aglomerado de signos – signos
jurídicos. Os signos jurídicos podem ser estudados em relação: a) ao significado que
incorporam (gramática pura); b) sua verdade (validade) ou falsidade (invalidade) para com
um objeto (lógica); c) o processo de geração de signos e as leis que lhe dão razão (pura
retórica).
Signos na linguagem do direito são signos gravadores em relação aos signos da
linguagem cotidiana, os quais, no caso, são signos gravados. Para que se tenha um signo
jurídico é preciso a gravação de um signo social (da linguagem social) em signo jurídico (da
linguagem jurídica).
Isso não quer dizer, no entanto, que o signo social (ou cotidiano, da linguagem
cotidiana) esteja localizado em um reino independente daquele no qual está o signo jurídico,
como se este fosse separado daquele. Essas divisões são didáticas. A linguagem é simbiótica.
Gravar uma linguagem na outra não é inventar uma nova linguagem. Trata-se de um
prolongamento e, ainda que assim não seja na prática, por defeito, por exemplo, no processo
de gravação, a tendência para aonde naturalmente se deve seguir é de que uma nova
gravação tomará lugar para corrigir aquilo que ficou impresso de maneira equivocada na
anterior.
Em relação ao processo de gravação da realidade mesma, o que se operacionaliza é
parecido com o que, por exemplo, Olivecrona chamou “plasmar” uma realidade, utilizando-
se aqui o verbo “gravar” no lugar de “plasmar”, no entanto. Por que é assim? É assim porque
“plasmar” vem do verbo latino plasmo, o qual significa dar forma, moldar.
O nome substantivo (neutro) latino é plasma, com uso de algo formado, moldado,
imagem, figura, criatura. Porém, “gravar” parece mais apropriado ao fenômeno que se quer
aqui nomear, eis que indica “estampar” ou “imprimir” e o resultado do processo é uma
“gravação”, uma “estampa”, uma “impressão” (TORRINHA, 1942, p. 621).
Então, essa “gravação” (nome substantivo), que é o resultado do verbo “gravar” uma
realidade é parte mesma dessa realidade gravada no signo – uma parte da realidade está
como que “impressa” no signo.
172
Não se trata assim de uma “tradução” exatamente de uma realidade na linguagem,
pois “gravar” não implica um movimento de mudança propriamente dito como ocorre numa
na “tradução”, a qual, é, em verdade, somente uma versão de uma realidade.
A visualização, ao contrário, é de como se houvesse um entrelaçamento, um
prolongamento de um no outro, uma simbiose, uma metamorfose. A gravação “estampa”
parte da realidade no que é o resultado do processo.
Podem haver elementos subjetivos “impressos” na gravação, os quais implicarão que
o signo-gravador terá uma impressão não perfeita da realidade. Porém, isso acaba sendo
inevitável no falibilismo dos signos e sua correção se operacionalizará no tempo e espaço
em alguma atualização futura, eis que o processo de gravação está sempre em suspenso de
se finalizar, pois que um continuum.
Nesse contexto, da maneira que se analisa aqui o fenômeno, o que se tem é que nos
processos semeióticos há uma espécie de gravação de signos em relação a signos até se
alcançar uma gravação da realidade ela mesma.
Por isso se dizer que se tem um signo-gravador, um signo-gravado e também um
interpretante-gravação na tríade peirceana. O signo-gravador será o resultado do processo
semeiótico de gravação e equivalente ao objeto imediato peirceana.
O signo-gravado é seu palco de trabalho, seu objeto semeiótico, equivalente,
também, ao objeto imediato peirceano. O interpretante-gravação que é o equivalente ao
interpretante da tríade peirceana, visto aqui na perspectiva paradigmática, do conceito-
gravação que surge na mente do intérprete-gravador.
Assim, no direito o que há são signos-gravadores de outras linguagens do próprio
direito, por exemplo, signos de direito tributário gravam signos de direito civil na linha de
aplicação do artigo 110 do Código Tributário Nacional, mas que ao final, inevitavelmente,
pelo que aqui se defende, acabaram por gravar um signo da linguagem cotidiana. Os signos
debaixo no processo semeiótico de gravação são chamados signos-gravados.
Os signos-gravados da linguagem ordinária pelo direito também são signos-
gravadores, mas aqui a gravação pode ser de outras linguagens ordinárias, mas acabará
encontrando piso na summa realidade, a qual é a planície de toda e qualquer gravação em
último grau.
Disso decorre que de forma mediata o signo-gravador do direito também grava
semeioticamentea summa realidade. Todo esse processo semeiótico de gravação da summa
173
realidade somente é possível por conta de um expediente que não é propriamente semeiótico,
mas sim, como aqui se chama, “estesiológico”.
Essa estesiologia é aquela explicada na linha de Merleau-Ponty, o qual trabalha com
a ideia de entrelaçamento do corpo com a realidade e que, tomada por base por Lacan,
autoriza, na interpretação que aqui se faz, dizer que linguagens são uma espécie de “olhar”
do mundo, mas que nesse olhar que reflete no olho do observador está ele próprio refletido
na realidade como prolongamento dela mesma.
Assim, numa espécie de estesiologia jurídica que prestigia as sensações físicas do
legislador, das autoridades aplicadores do direito, mas também do cientistas jurídicos, o que
se tem é que a produção de signos jurídicos, sua interpretação e aplicação não estão alheias
à summa realidade, mas, ao contrário, operacionalizam-se como um prolongamento de ida e
volta à realidade, numa espécie de entrelaçamento com ela mesma.
É por isso que, no direito também, não há tampouco somente o aspecto semeiótico,
mas também o estesiológico, do que decorre dizer que a teoria que explica tal fenômeno
deve ser nomeada teoria semeiótico↔estesiológica de gravação jurídica.
Vistos os papeis da semeiótica de Peirce e estesiologia de Merleau-Ponty em relação
ao fenômeno jurídico, passa-se na sequência a tratar da aplicação da semiologia saussuriana
também como possível ferramenta de compreensão do direito na sua percepção como signo.
3.2 Significado e Significante dos Signos Jurídicos: Papel da Semiologia como
Ferramenta para Compreensão do Direito
Foi dito que uma linguagem tem um meio de expressão que usa o mecanismo de uma
língua (para se expressar), mas não se diferenciou língua de linguagem, o que parece
essencial para o estudo de qualquer linguagem – para o estudo dos signos como linguagem.
Língua e linguagem são distintas, do que decorre ser importante estabelecer uma
diferenciação. Sobre o tema são pertinentes as palavras de Saussure (1969, p. 17):
Mas o que é a língua? Para nós, ela não se confunde com a linguagem; é
somente uma parte determinada, essencial dela, indubitavelmente. É, ao
mesmo tempo, um produto social da faculdade de linguagem e um
conjunto de convenções necessárias, adotadas pelo corpo social para
permitir o exercício dessa faculdade nos indivíduos. Tomada em seu
todo, a linguagem é multiforme e heteróclita; o cavaleiro de diferentes
domínios, ao mesmo tempo física, fisiológica e psíquica, ela pertence
além disso ao domínio individual e ao domínio social; não se deixa
classificar em nenhuma categoria de fatos humanos, pois não se sabe como
inferir sua unidade.
174
A língua, ao contrário, é um todo por si e um princípio de classificação.
Desde que lhe demos o primeiro lugar entre os fatos da linguagem,
introduzimos uma ordem natural num conjunto que não se presta a
nenhuma outra classificação. (Destacou-se).
A língua é, assim, um produto social da faculdade de linguagem e um conjunto das
convenções necessárias. Disso se pode dizer que todos têm uma faculdade de linguagem, a
qual precisa encontrar um modo de expressão.
A articulação da faculdade de linguagem, assim, pode encontrar um meio para sua
expressão em uma língua, mas não somente numa língua falada e escrita, mas também de
sinais, por exemplo. Fala-se, assim, em língua dos sinais, uma língua gestual para pessoas
com deficiência de fala, as quais articulam tais gestos através do meio de expressão de uma
língua de sinais.
Os meios de expressão são múltiplos. Uma língua pode ser falada e escrita, mas
também gestual, como se disse, de modo que isso implica que signos podem ser, igualmente,
falados, escritos e gestuais, mas ainda assim linguísticos, desde que o meio de expressão seja
uma língua falada, escrita ou gestual.
Saussure (1969, p. 18) traz, igualmente, que a língua é um sistema de signos distintos
correspondentes a ideias distintas. Para ele a faculdade linguística está como que por cima
da faculdade fisiológica dos órgãos físico-corporais que permitem a fala e a audição. Assim,
trata-se de um fenômeno psíquico, seguido de um processo fisiológico ou vice-versa, o que
dependerá do meio de expressão.
Em relação ao aspecto psíquico, explica Saussure (1969, p. 19) que no cérebro de um
falante estão conceitos associados a representações ou imagens acústicas, as quais são os
meios de expressão possíveis desses conceitos.
Em relação ao aspecto fisiológico, explica Saussure (1969, p. 19) que, do surgimento
no cérebro da imagem acústica, que é proveniente, por sua vez, de uma associação decorrente
de um conceito que surge no cérebro (processo psíquico), passa-se a um impulso do mesmo
cérebro aos órgãos de fonação, que se propagam da boca de um indivíduo ao ouvido de
outro.
No ouvido do outro indivíduo, a imagem acústica é transmitida desde o ouvido ao
cérebro (processo fisiológico), sendo que no cérebro faz-se uma associação (processo
psíquico) dessa imagem acústica com um conceito. Produziu-se comunicação.
Saussure (1969, p. 66-67) explica o caráter também psicológico da imagem acústica
quando fala em “impressão psicológica do som” (no sentido de efeito sobre os sentidos).
175
Essa imagem acústica Saussure chamou também significante e aos conceitos ou
ideias representáveis significado, conforme abaixo:
Figura 8 – Significado e Significante em Saussure
Fonte: Adaptado de SAUSSURE, Ferdinand de. Course in linguistics
[tradução livre]. New York: Philosophical library, 1969, 66-67.
Assim, a unidade linguística elíptica biplânica saussuriana une um conceito e sua
representação (imagem acústica) ou vice-versa em uma mesma entidade linguística: o signo.
O produto social que permite a faculdade de linguagem é a língua – o meio de expressão por
excelência de uma linguagem.
Falar, pois, é um processo psíquico seguido de outro fisiológico. Escutar é um
processo fisiológico seguido de um psíquico. Isso quando o meio de expressão é oral ou
audível. Ler, cujo meio de expressão é escrito ou visível, segue o mesmo mecanismo do
escutar, ou seja, a imagem acústica (uma palavra) é captada pelo órgão visual, que a leva ao
cérebro, permitindo a associação com um conceito ou ideia.
Veja aqui a conexão com o direito. Quando um cientista jurídico descreve
semeioticamenteo direito positivo e, dos signos descritivos resultantes sacam-se proposições
(normativas), o que se tem é uma interpretação científico-descritiva dos signos de direito
positivo. Isso implica que ele lê o texto jurídico, captando uma imagem acústica do texto.
Essa imagem acústica do texto é um tipo de signo – signo jurídico escrito (a palavra do
texto). Esse signo jurídico, quando o cientista o lê, é captado por seu órgão visual em um
processo fisiológico.
Tal signo jurídico escrito (imagem acústica), captado pelo órgão de visão do cientista,
é associado no cérebro a um conceito ou ideia em um processo psíquico, o qual é chamado
de interpretação (jurídica), ou seja, essa associação do signo jurídico escrito que se lê com
um conceito no cérebro.
Na mente do cientista jurídico essa associação, que é também uma interpretação, é
do tipo descritiva do direito positivo. Kelsen (2003) apresenta que essa interpretação do
cientista jurídico e qualquer outra que não seja levada a efeito pela autoridade competente
ou
176
para fazê-lo é chamada de interpretação não-autêntica, sendo a única autêntica aquela da
autoridade competente.
Essa interpretação não-autêntica que leva o conceito ao cérebro do cientista, começa
fisiológica (leitura do texto de lei) e termina psíquica (conceito no cérebro), de modo que o
cientista a materializa descritivamente em um texto científico – um conglomerado de signos
científicos.
O conceito que resulta no cérebro do cientista jurídico é uma proposição normativa
acerca da norma jurídica, assim entendida aquela que se saca da interpretação dos textos de
lei pelo intérprete autêntico.
Na perspectiva do aplicador do direito (autoridade competente), que exerce a
interpretação do direito positivo, há um fenômeno equivalente, que passa do processo
fisiológico da leitura do texto de lei (órgão visual captando o signo jurídico do texto no meio
fisíco-semeiótico) a um processo psíquico (interpretação autêntica), o que faz surgir na
mente do aplicador do direito (meio psíquico-semeiótico) a norma jurídica aplicável.
Disso segue outro processo, que é a aplicação da norma jurídica gravada do texto de
lei pela autoridade competente, o que se faz pela imposição (consequente) de consequências
jurídicas em conformidade com a norma jurídica gravada e com supedâneo no evento do
mundo gravado juridicamente na narrativado direito (antecedente). A materialização do
processo se dá em um novo texto de direito positivo do tipo particular com efeitos objetivos
(concretos). Nesse caso, está-se diante de uma interpretação do tipo prescritiva, seguida de
uma aplicação do tipo impositiva.
Há uma diferença para os aplicadores do direito, a qual ficará mais clara quando se
falar mais adiante do fato jurídico, eis que o aplicador do direito, além de interpretar, também
aplica a previsão do legislador a uma ocorrência verificada concretamente – um evento. Ele
reconhece a função prescritiva dos signos jurídicos ao interpretá-los como passíveis de uma
consequência de direito e também reconhece a função impositiva, impondo as consequências
respectivas previstas no sistema.
Isso implica um processo psíquico diferençado, em relação ao qual se tem uma
associação de uma imagem acústica (texto de lei) a um conceito, o que se chama
interpretação autêntica, mas também uma aplicação desse interpretante (jurídico) – que é a
norma jurídica, a um particular com efeitos concretos.
O processo psíquico, nesse caso, é mais complexo, pois que tanto interpretação como
aplicação envolvem mais de um signo jurídico. Trata-se do signo jurídico (imagem acústica)
177
do texto de lei, do qual consta a previsão de uma possível ocorrência passível de gerar
consequências de direito.
Porém, trata-se, também, do signo jurídico da gravação acerca da ocorrência
concreta que chega ao aplicador do direito. Fazendo essa intepretação jurídica, há uma
associação da imagem acústica do signo-gravador do evento (processo fisiológico, eis que
se lê o signo-gravador) com um conceito (que é o interpretante-gravação): algo como “a
morte de Maria por José” (uma ideia). Nesse caso, começa-se com um processo fisiológico
(leitura do signo-gravador), chegando-se a um processo psíquico (o interpretante-gravação
ou ideia que surge na mente).
A partir dessa ideia da qual se parte, inicia-se um processo psicológico de partida,
que associa essa ideia (a morte de José por Maria) com uma imagem acústica (signo jurídico-
linguístico) que é o texto de lei (art. 121 do Código Penal – Crime de Homicídio).
Quando o aplicador do direito assim o faz, ele terá interpretado o signo-gravador do
evento (a morte de Maria por José) na narrativa jurídica segundo a previsão de uma lei
(Código Penal, por exemplo). Essa interpretação, no entanto, ainda está na sua mente – ainda
é conceito.
O processo fisiológico resultante da interpretação e aplicação do direito se dá por
meio da conjunção de vários sentidos: o aplicador do direito articula a imagem acústica (art.
121 do Código Penal – Crime de Homicídio) em um meio de expressão escrito (ele lê o
artigo e escreve a aplicação do direito), como a sentença judicial (meio de expressão escrito
da linguagem do direito), por exemplo.
Essa sentença judicial é o ponto de partida para todo um novo mundo de processos
fisiológicos e psíquicos, que levarão a uma interpretação e aplicação por outro aplicador do
direito, por exemplo, o juiz de execuções, interpretação do precedente por um cientista do
direito ou por outro juiz como base para outro caso etc. Esse processo de geração de signos
(a semiose) é estudado na semeiótica na parte da pura retórica.
O ponto fulcral para entender esse mecanismo de interpretação e aplicação do direito
é a compreensão de que a associação de um conceito a uma imagem acústica ou de uma
imagem acústica a um conceito requer um meio de expressão.
No caso do falante, esse meio de expressão serve para operacionalizar (audivelmente
ou visivelmente) a imagem acústica (lembre-se que a imagem acústica é a impressão
psicológica de um som), por exemplo, o som emitido quando se fala, uma palavra escrita em
um papel, um gesto etc.
178
No caso do ouvinte ou do leitor, esse meio de expressão serve para recepcionar a
imagem acústica empiricamente, por exemplo, quando se escuta uma palavra, quando se lê
uma palavra no papel, quando se vê um gesto etc.
Sem conceito não há comunicação. Sem imagem acústica não há comunicação. Sem
signo (a união dos dois), pois, não há comunicação. Aqui jaz o papel fundamental da língua,
pois, como traz Saussure (1969, p. 22), é na “porção determinada do circuito em que uma
imagem auditiva vem a associar-se a um conceito que se localiza a língua”.
A língua, pois, “constitui um sistema de signos onde, de essencial, só existe a união
do sentido e da imagem acústica, e onde as duas partes do signo são igualmente
psíquicas” (SAUSSURE, 1969, p. 23) – o processo é psíquico.
O que se interpreta de Saussure, e que às vezes pode levar a certa confusão, é que
imagem acústica pode ser tanto psíquica (impressão psicológica de um som) como também
um produto de uma articulação já em um meio de expressão, ou seja, uma palavra falada,
escrita ou um gesto. Nesse último caso, o meio de expressão e a imagem acústica se
confundiriam.
Para Saussure, diga-se que signos linguísticos são: “as associações, ratificadas pelo
consentimento coletivo e cujo conjunto constitui a língua, são realidades que têm sua sede
no cérebro” (SAUSSURE, 1969, p. 23, Destacou-se).
Como se vê, há uma diferença entre a opção triádica de Peirce e a opção diádica de
Saussure, que desconsiderou o objeto ou referente. Aqui jaz uma distinção de aproximação
do tema entre Saussure em Peirce, a qual pode parecer indissociável do ponto de vista de
método.
Saussure, pelo que se interpreta, considera o signo a realidade. Se assim o é, ele se
aproxima da posição nominalista e não da posição realista para se aproximar do tema da
realidade. Isso quer dizer que Saussure não consideraria o objeto na sua opção de
visualização do signo que é diádica (significado e significante).
Peirce, contrariamente, pelo que se interpreta, enfatiza na sua tríade (objeto, signo e
interpretante) o aspecto relacional, considerando expressamente o objeto nessa relação.
Peirce focaliza na sua representação triádica o processo de geração de signos (a semiose).
Isso quer dizer que Peirce considera a summa realidade como parte da relação, ainda
que no signo ela não esteja diretamente (é seu objeto dinâmico), eis que inalcançável por
qualquer que seja o meio de expressão. Sua posição é realista, ou seja, a realidade “existe”
independentemente da linguagem.
179
A desconsideração por Saussure do objeto não alimenta o presente estudo, eis que
incompatível com o realismo que é a base firme de sustentação do edifício científico que
aqui se constrói. Desse modo, a semiologia saussuriana é utilizada, como já se disse, como
contraponto e, mais do que isso, para explicar o fenômeno linguístico na perspectiva do
direito.
Não há prejuízo de método utilizar a semiologia na porção do estudo que se refere à
linguagem do direito, eis que os aspectos analisados dizem respeito ao mecanismo dos signos
para permitir comunicação entre falante e ouvinte e entre autoridade competente e sujeito de
direito.
Siga-se, pois, com o estudo baseado em Saussure. Diga-se, agora, que a associação
entre conceito e imagem acústica, ou entre significado e significante, e vice-versa, serve a
um propósito do signo, que é permitir que a imagem acústica seja transmitida de uma pessoa
falante a uma pessoa ouvinte – propósito de comunicação.
É por isso que se disse acima que o signo é um veículo que carrega algo. Tal qual o
DNA que carrega o código genético, o signo carrega o código linguístico. Assim, chamou-
o, igualmente, de signo linguístico, ou seja, aquele que encapsula esse código, carregando-o
consigo de um falante a um ouvinte, visualização esta dogmático-pedagógica do fenômeno.
Homens articulam signos linguísticos em uma língua para servir um propósito
fundamental na sociedade: o de possibilitar que as pessoas se comuniquem. O
funcionamento da sociedade depende, assim, da comunicação.
Nesse contexto, é importante dizer que comunicação só se faz quando todos os
elementos pertinentes estão presentes. Imagem acústica sem conceito e vice-versa não
permite comunicação entre as pessoas.
É possível surgir a associação de conceito e imagem acústica na mente de um homem
e disso não decorrer a necessidade de um ouvinte para captar a imagem acústica, mas
comunicação não há nesse processo associativo isolado que se mantém na mente, de modo
que a transmissão da imagem acústica é que proporciona, entre outros elementos, a fluidez
da realidade do cérebro de um falante à realidade do cérebro de um ouvinte. A língua entra
justamente na poção do circuito em que se conjuga a associação. É ela que permite essa
articulação, a qual se opera em um meio de expressão falado, escrito, gestual etc.
“É essa possibilidade de fixar as coisas relativas à língua que faz com que um
dicionário e uma gramática possam representá-la fielmente, sendo ela [língua] o depósito
das imagens acústicas, e a escrita a forma tangível dessas imagens” (SAUSSURE, 1969, p.
180
23). Veja-se que, como se disse, é possível visualizar a imagem acústica tanto na mente
como no papel, a forma tangível dessa imagem acústica.
A língua, para Saussure, é uma instituição social, e a ciência que estuda a vida dos
signos no seio da vida social é a semiologia, ensinando em que constituem os signos e as leis
que os regem, sendo guardado à linguística o papel de definir o que faz da língua um sistema
especial no conjunto dos fatos semiológicos (SAUSSURE, 1969, p. 24).
A semiologia, no aspecto de ciência que estuda a vida dos signos no seio da vida
social, ensinando em que constituem os signos e as leis que os regem, é similar à ciência do
direito, eis que nessa também se está preocupado com a vida dos signos jurídicos dentro de
uma comunidade de fala (aspecto pragmático). Além disso, na ciência do direito, igualmente,
interpretam-se os signos jurídicos – para saber em que constituem (aspecto semântico) e, por
conseguinte, as leis que os regem em termos de posicionamento e hierarquia dentro do
sistema (aspecto sintático).
É importante trazer que essa divisão em sintaxe, semântica e pragmática dentro da
semiótica foi dada por Morris (1985, p. 31-32) no seu “Fundamentos da Teoria dos Signos”.
Ela, com adaptações, permeia o presente estudo e aqui se associa às ideias postas acima na
semiologia de Saussure para um estudo dessa estirpe sobre o fenômeno jurídico.
Nesse contexto, ao se estudar o fenômeno jurídico, deve-se levar em consideração
esses três aspectos: sintático (que diz respeito ao signo em relação a outros signos),
semântico (que diz respeito ao signo em relação ao objeto) e pragmático (que diz respeito ao
signo em relação aos falantes e ouvintes).
Os temas se entrelaçam (semiologia e direito) aqui. O aspecto sintático do signo
jurídico é fundamental para proporcionar um entendimento sobre sua relação com outros
signos dentro do sistema de signos do direito – as leis que os regem e seu posicionamento
no sistema. Surgirão aqui questões de validade, vigência e eficácia.
O aspecto semântico é importante para permitir uma compreensão sobre a relação
dos signos jurídicos com seus objetos. Objeto aqui no sentido de summa realidade, de uma
ocorrência prevista pelo legislador para gerar consequências de direito. Surgirão aqui
questões relativas à interpretação, no sentido de qual é o significado que se apreende dos
signos jurídicos, bem como questões de aplicação do direito, da teoria das provas etc.
O aspecto pragmático é relevante, eis que autoriza uma visão adequada sobre a
relação dos signos jurídicos com os falantes e ouvintes em uma comunidade de fala. Surgirão
181
aqui questões relativas à eficácia social do direito, ao atendimento do ideal de justiça,
segurança jurídica entre outros.
A semiologia saussuriana associada ao realismo peirceano é, assim, ingrediente
importante para escorreita compreensão do fenômeno jurídico.
Visto isso, quer-se, na sequência, trabalhar, considerando-se ainda o signo biplânico
saussuriano (significante e significado), aspectos preciosos relativos ao significado em uma
visão baseada em Pottier que vai além da saussuriana.
Na sequência, para que se compreenda o significado do signo mais detalhadamente,
explorar-se-á a ideia de conteúdo do signo, sendo esse conteúdo forma e substância.
3.3 Substância e Forma dos Signos Jurídicos
Para Pottier (1975, p. 7), um signo linguístico possui um significante, que é o
conjunto de meios de expressão e um significado, o qual é, por sua vez, constituído de uma
forma e de uma substância. O conteúdo do signo, que é diferente dos seus meios de expressão
(significante), é constituído de forma e substância.
Pottier (1967, p. 45) traz que, na perspectiva do significado, a forma do conteúdo do
signo é uma estrutura sintática e a substância do conteúdo é uma estrutura semântica. Assim,
o signo é uma substância moldada em uma forma e expressa por um significante.
Disso se pode dizer que, além do significante (meios de expressão do signo), na
perspectiva do conteúdo do signo, há um significado sintático e um significado semântico.
Pottier (1975, p. 8) ajuda a entender isso tudo usando o exemplo da palavra “óculos”.
Na perspectiva do meio de expressão escrito da língua, “óculos” é um significante.
Na perspectiva do conteúdo desse significante, há: a) o significado sintático, isto é, “óculos”
é um substantivo e; b) o significado semântico, isto é, “óculos” é um objeto usado para
auxiliar o órgão de visão a enxergar coisas.
Dualidades como significado sintático e semântico, como já se disse, servem ao
propósito dogmático-pedagógico de permitir a compreensão ainda que o fenômeno mesmo
seja multidimensional nas suas características primeiras e simbiótico no senso geral.
Essa divisão de forma e substância já foi explorada de diversos modos aqui: em
Platão, Aristóteles, Scotus e Kant. Para tomar Kant como exemplo, seu fenômeno é forma é
matéria. Forma na linha da intuição pura e matéria na linha da intuição empírica.
Na linha da proposta de Kant, aproximando-a de Pottier, o que se tem é que a
substância de Pottier, tal qual a matéria de Kant, diz com o objeto na sua ontologia. Já a
182
forma de Pottier, tal qual a forma de Kant, diz com a perspectiva não ontológica, ou seja, o
que é diverso do objeto, mas permite individualizá-lo, autorizando o conhecimento. A forma
do conteúdo do significante (o significado sintático do signo) é para Pottier (1967, p. 46) sua
função – a função sintática do significante no discurso. Por exemplo, “óculos” tem função
de substantivo.
A inovação de Pottier em relação a Saussure é justamente esse dual que permite
estudar duas perspectivas de conteúdo (significado) do signo linguístico: a sintática e a
semântica, sendo que ambas constituem o significado dos signos linguísticos11.
A ilustração abaixo ajuda a visualizar o signo segundo Pottier:
Figura 9 – Signo pottieriano.
Dessa ilustração, é possível concluir que todo signo tem um significado e um
significante e, no que diz respeito ao significado, que esse é sintático e semântico. Desse
modo, o significado do signo somente pode ser visualizado nessa dual perspectiva (sintática
e semântica). Não há se falar em signo sem conteúdo – sem significado, do que decorre dizer
que não há se falar em signo sem se considerar seu conteúdo sintático e semântico. Portanto,
qualquer intérprete de signos linguísticos deverá levar em consideração, se quiser entender
seu conteúdo, o aspecto sintático e semântico.
Essa divisão em forma e substância auxilia, também, na compreensão de uma
premissa que se estabeleceu aqui de que, em relação aos signos linguísticos, não há de se
falar em sinônimos. Isso quer dizer que o conteúdo do signo, que é forma e substância, é
11 Ao se usar “linguístico” enfatiza-se o aspecto do signo na perspectiva de uma língua em que pese o signo
poder ser pensamento também. O usa aqui é indiscriminado, de modo que signo e signo linguístico poderão
ser equivalentes a depender do centro de discussão no presente texto.
Fonte: Adaptado pelo Autor de Pottier, Bernard. Presentación de la
Lingüística. Madrid: Romania, 1967, p. 45.
183
diferente a depender do significante que se toma para análise. Significantes diferentes
implicam significados diferentes. Os exemplos deixarão isso muito mais claro.
Ao se analisar a palavra anda e andava, vê-se que há um elemento linguístico
distintivo -va. O elemento linguístico -va diferencia andava de anda, apontando para uma
função sintática diferençada, qual seja, pretérito imperfeito do indicativo (ele andava) em
contraste com o presente do indicativo (ele anda), de modo que -va é uma partícula
linguística que diferencia anda de andava, no que respeita ao significado sintático dessas
palavras.
Na linguística, essas partículas diferenciadoras mínimas são chamadas “morfemas”,
mas não serão os morfemas estudados nesse trabalho, eis que isso demandaria um tanto de
páginas e não acrescentaria tanto a um estudo que deve ser focado no direito.
Assim, a partícula diferenciadora -va atribui um significado sintático ao se unir com
anda, é dizer, o significado sintático pretérito imperfeito do indicativo (ele andava). A
diferença entre anda e andava é uma diferença de forma (acréscimo da partícula -va). Isto é
o mesmo que dizer que anda funciona de uma certa forma e andava de outra.
A diferença aqui se apresenta na forma do signo e em “presença”, ou seja, no eixo
sintagmático (SAUSSURE, 1969, p. 143). No qual há uma relação de oposição visível entre
partículas linguísticas no texto, de modo que se fala que a diferença está “em presença”.
Veja-se agora um exemplo sobre significado semântico dos signos quando diante de
significantes iguais. Ao se dizer: eu olho e o olho, a partícula linguística olho tem idêntica
forma linguística nos dois casos apresentados. Logo, não há uma diferença de forma. O que
se altera, portanto de eu olho para o olho é o aspecto semântico.
Quando alguém diz [eu] olho e [o] olho, há uma diferença de substância, uma
diferença semântica. Veja-se que, em relação a essa diferença, não se está “em presença”
(não é possível enxergá-la no texto). A diferença se verifica no eixo paradigmático (está “em
ausência”). Saussure (1969, p. 143) fala em relação associativa, querendo significar a mesma
coisa. “Associativa” no sentido de que o que permite a diferenciação são “associações” que
não estão no texto, mas sim na mente do falante, isto é, “em ausência”.
Assim, em [eu] olho o significado semântico é algo como uma ação visual do sentido
do homem. Em [o] olho o significado semântico é algo como órgão físico componente
biológico dos homens. A diferença está na substância do signo (diante de significantes iguais
“olho”), portanto, no significado semântico do signo. Palavras homônimas, pois, iguais
184
quanto ao significante, foram distinguidas em razão do significado semântico. Não
“existem” sinônimos para o que aqui se defende.
Portanto, signos linguísticos carregam dentro de si um conteúdo, como o conteúdo
de uma caixa. Esse conteúdo tem substância e forma. O signo linguístico propriamente dito
na sua visualização no texto, é dizer, a palavra escrita, é um significante, meio de expressão
que permite articular uma linguagem em uma língua.
Entretanto, sob a perspectiva do seu significado, o signo linguístico “encapsula” um
significado sintático (por exemplo: presente do indicativo) e um significado semântico (por
exemplo: órgão físico componente biológico dos homens). Esse dualismo, como já se disse
reiteradamente, só é utilizado com o fim meramente científico-pedagógico de explicar
didaticamente os fenômenos estudados. Isso não significa que no mundo das coisas e,
também em relação à linguagem em certa medida, possa-se claramente identificar esse
dualismo, máxime quando pensado que a realidade é simbiótica.
No direito, a aplicação dessa diferença marcante do significado dos signos é de uma
utilidade ímpar, pois tem o condão de solucionar diversos problemas possíveis de
interpretação e aplicação do direito.
Veja-se um exemplo: quando um juiz valora uma prova em um processo judicial, ele,
em realidade, valora um signo-gravador na narrativa judicial. Logo, o juiz está valorando
signos linguísticos de um tipo especial, ou seja, signos jurídicos – signos jurídicos de
gravação, eis que a linguagem é jurídica. Suponha-se, então, que ele deve valorar o signo-
gravador de um evento como: a morte de Maria por José.
Nesse exemplo, o juiz deverá se perguntar qual é a substância dessa gravação para
poder aplicar o direito. Ele interpreta o signo-gravador (interpretação autêntica) na narrativa
judicial. Bem, no que diz respeito à substância e é aqui que o tema toca, também, a questão
da diferença entre fato e evento, o que se tem é que essa sequência de signos-gravadores na
narrativa judicial indica que houve um evento na summa realidade em que Maria foi morta
por José – o evento a morte de Maria por José.
Esse evento é a substância do signo-gravador, seu significado semântico. No direito,
também, esse significado semântico, na perspectiva da interpretação e seu resultado na
mente, não está “em presença”, mas sim “em ausência”, eis que é extraído mentalmente do
signo-gravador na narrativa jurídica. No signo-gravador per si, não está o evento a morte
de Maria por José, ali o que está, para usar um termo de Peirce, é o objeto imediato do signo,
sendo o evento mesmo, na summa realidade, seu objeto dinâmico. O conceito de que se trata
185
do evento a morte de Maria por José aparece na mente do intérprete, “em ausência” em
relação ao signo-gravador na narrativa jurídica.
No direito, o significado semântico é ainda mais complexo porque ele advém,
também, de uma interpretação autêntica, de uma gravação de ocorrência de um evento que
está em um signo jurídico materializado numa lei – substrato legal posto no sistema pelo
legislador, que é a autoridade gravadora de eventos com repercussão jurídica autorizada pelo
sistemade direito.
Dessa forma, a interpretação somente do signo-gravador do evento não resolve o
problema, é preciso aplicar o direito, o que se faz pela associação da interpretação que se
tem do signo-gravador do evento com a interpretação que se tem de outros signos jurídicos
postos no sistema que trazem a previsão da ocorrência de eventos que se encaixam com
aquele evento do signo-gravador e que são passíveis de implicar consequências de direito.
No caso em questão, o significado semântico sob a ótica dos signos jurídicos escritos
na lei, associados àqueles do signo-gravador, seria o seguinte: a morte de Maria por José é
o tipo penal do homicídio e isso implica uma consequência de privação de liberdade a José.
Apreender o significado semântico de um signo-gravador, portanto, é gravar a norma
jurídica aplicável ao evento que é a substância desse signo-gravador. Veja-se que essas
associações semânticas se fazem “em ausência” na mente do intérprete autêntico. São
associações no eixo paradigmático.
Esse significado semântico, tal qual um conceito que se associa a uma imagem
acústica na mente do juiz, formando a norma jurídica aplicável, é, então, articulado no meio
de expressão escrito (significante) de uma sentença judicial, a qual impõe a consequência
jurídica determinada no sistema de direito positivo.
Veja-se agora que o significado sintático, no caso do exemplo da morte de Maria
por José, importa também, mas sua importância é diferente daquele relativa ao significado
semântico que faz surgir a norma jurídica aplicável.
No caso do significado sintático, a preocupação dirá respeito à validade do signo-
gravador em relação a outros signos no sistema de direito positivo, a questões de
competência e hierarquia das autoridades envolvidas, a vícios de forma relativos ao processo
semeitótico de gravação jurídica a partir das pessoas responsáveis etc. Quer-se saber se o
signo-gravador é válido no sistema, se a pessoa que gravou é competente, se a forma de
gravação não possui vícios etc.
186
Outro exemplo pode ser útil, agora tratando do significante do signo na perspectiva
do signo-gravador. Suponha-se que a transferência da propriedade de um imóvel se tenha
pactuado verbalmente entre um vendedor e um comprador. Suponha-se que o comprador
pagou o preço, recebeu as chaves e se imitiu na posse do imóvel. Suponha-se que o vendedor
venda o mesmo imóvel a outro comprador, porém agora mediante uma escritura pública
definitiva de compra e venda do imóvel devidamente registrada no cartório de registro
imobiliário competente.
Nesse caso, o que se tem é um problema de meio de expressão do signo-gravador do
evento aquisição de propriedade de um imóvel. O signo oral sem registro no cartório
competente implicou algo diferente da transferência de propriedade de um imóvel ao
comprador. O signo gravado na escritura pública definitiva de compra e venda registrada no
cartório respectivo implicou, esse sim para o direito, a transferência da propriedade do
imóvel.
Qual a diferença entre um signo e outro? A diferença está no meio de expressão. No
primeiro caso, o significante oral não funciona para significar a transferência de uma
propriedade imóvel. No segundo caso, o significante escrito funciona para significar a
transferência de uma propriedade.
Agora, com base no exemplo do significante, traga-se que, como se disse, o
significado sintático é aquele que dá conta da forma de funcionamento do signo. Meios de
expressão funcionam de uma certa forma – o significante funciona de uma certa forma.
No direito, a forma de funcionamento dos signos tem grande relevância para
solucionar questões de competência, capacidade civil e penal, aspectos relacionados à
validade e eficácia entre outros. Porém, diga-se na sequência, em termos sintáticos, quais
são as formas admitidas de funcionamento dos signos – quais são suas funções.
Segundo Barboza (1807), palavras [signos] podem ter duas funções essenciais: 1)
função nominativa e 2) função conjuntiva ou combinatória. A função nominativa pode ser
um substantivo ou um adjetivo. A função conjuntiva ou combinatória pode ser um verbo
(quando a função combinatória implicar uma relação de identidade), uma preposição
(quando implicar uma relação de determinação) e uma conjunção (quando implicar uma
relação de nexo). A análise aqui é sintática12 (função sintática da linguagem, dos signos).
12 Entende-se que função sintática abarca função morfológica, pois a sintaxe abrange a morfologia.
187
Apanhe-se novamente o exemplo da escritura de compra e venda para explorar as
diferenças de função já apontadas: na escritura de compra e venda há a seguinte sequência
de palavras: transferência propriedade. Esses significantes que estão na escritura de compra
e venda funcionam no texto de uma certa forma. Qual sua função? Função nominativa de
nomes substantivos – nomeiam o objeto. Transferência e propriedade são nomes
substantivos e como tais funcionam no texto.
Veja-se mais um exemplo. Suponha-se que na escritura haja a seguinte sequência de
significantes escritos: eu vendedor transferirei a propriedade se houver o pagamento.
Atenha-se somente a transferirei (verbo, função conjuntiva ou combinatória, implicando
relação de identidade) e compare isso com outra sequência de significantes escritos: eu
vendedor transfiro a propriedade. Atenha-se aqui a transfiro (verbo, função conjuntiva ou
combinatória, implicando relação de identidade).
Comparando os dois significantes escritos, o que se tem é que ambos exercem função
verbal (relação de identidade), mas qual é a diferença em termos de significado sintático?
No primeiro caso, trata-se de futuro do indicativo (esse é o significado sintático). A função
verbal é de identidade futura com o objeto. Isso ocorrerá no futuro. No segundo caso, trata-
se do presente do indicativo (esse é o significado sintático). A função verbal é de identidade
presente, ou seja, implica efeitos presentes de identidade com o objeto.
O que quer dizer isso para o direito? Isso quer dizer que o significado sintático da
sequência de signos linguísticos na escritura de compra e venda implicou consequências
completamente diferentes, a depender da função da linguagem e, pois, do significado
sintático que se saca.
No primeiro caso, há ainda uma condição jurídica futura para que o negócio se
aperfeiçoe; há de se pagar o preço. No segundo caso, não há nenhuma condição jurídica para
o negócio, de modo que o resultado é a transferência da propriedade ao comprador
(implicação presente de identidade com o objeto).
Há hic et nunc, nesse caso, eficácia para a transferência da propriedade, eis que
nenhum entrave de condição futura a se perfazer ainda existe para a consumação do direito.
Não há vícios, as partes são capazes, a forma é a prescrita em lei e o objeto a ser transferido
é lícito, ou seja, as condições sintáticas foram preenchidas.
O significado sintático diz com as funções sintáticas da linguagem no texto da
escritura; ele resulta que na mente do intérprete há uma função nominativa (propriedade) e
combinatória de identidade no presente do indicativo (transfiro) com o objeto no exemplo
188
dado. Em outras palavras, os significantes da escritura significaram sintaticamente que se
deu uma transferência válida e eficaz de propriedade no presente.
Um negócio que acontece sob condição e um negócio que se aperfeiçoa de pronto
implicam consequências jurídicas completamente diferentes. Em um caso a propriedade foi
transferida e no outro não.
Quando isso se coaduna na mente do intérprete, o que se tem é o significado jurídico
decorrente do significante escrito da escritura pública. Esse significado jurídico é a norma
jurídica e nele há um componente do significado que é semântico e um componente sintático.
Diante do significado semântico e sintático, aqui se enxerga que a norma jurídica
resultante da interpretação dos significantes postos na escritura de compra e venda seria a
seguinte: Se há transferência de propriedade TP de uma imóvel objeto lícito I de um sujeito
capaz S’ a um sujeito capaz S” por meio da forma prescrita em lei da escritura pública F,
então deve ser S’’ o proprietário P de I. Ou, alguma coisa como:
TP&I&S’&S”&F=S”&P&I.
E e T implicam o espaço e tempo do negócio (aspecto temporal). TP implica o nome
do evento que ocorreu – a transferência de propriedade (aspecto semântico), o que implica
inexistência de condição futura. I é o objeto do negócio, que é objeto lícito (aspecto material).
S’ e S’’ são as partes capazes do negócio (aspecto pessoal). F é a forma prescrita em lei para
o negócio ser eficaz (aspecto sintático). P implica a circuntância de ser proprietário, ou seja,
é o evento resultate do evento TP (aspecto semântico). Essa é a norma jurídica do evento
transferência de propriedade de S’ a S’’ e do evento resultante ser proprietário de I como
aqui se enxerga.
Essa norma jurídica é significado semântico e sintático. Somente com a consideração
da sintaxe e da semântica (engloba pragmática) é que se tem a norma jurídica completa na
mente do intérprete. Não basta o evento da transferência ter ocorrido e ser graado, é preciso
que seja válido e eficaz; seja levado a efeito por pessoa capaz, na forma prescrita e que tenha
objeto lícito, além de que não se possam demonstrar vícios de consentimento.
Levam-se em consideração as funções sintáticas (função nominativa, combinatória e
conjuntiva) da linguagem jurídica (significado sintático), bem como o conceito que se
associa no cérebro ao significante escrito (escritura) que é captado pelos órgãos de sentido –
a ideia que surge, o evento operativo ocorrido e inteligido, a substância da gravação jurídica
(significado semântico). Portanto, é o significado semântico e sintático decorrentes de um
189
significante que permitem o sentido total do signo jurídico, que é o conceito jurídico, o qual
é a norma jurídica na mente do intérprete (meio psíquico-semeiótico).
Os exemplos podem se seguir infinitamente para se demonstrar a utilidade dos
conceitos de significado semântico e sintático para fins do direito, mas deve-se dar
seguimento ao estudo, de modo que agora quer-se chamar a atenção para um outro ponto
importante que aqui é defendido e agora se reforça.
Esse ponto é de que não existem sinônimos. Signos linguísticos diferentes importam
significados diferentes. Bloomfield (1933, p. 145) posiciona-se exatamente nessa linha:
Nossa assunção fundamental implica que cada forma linguística tem
um constante e específico significado. Se formas são foneticamente
diferentes, supomos que seus significados sejam também diferentes –
por exemplo, que cada um do conjunto de formas como rápido, ligeiro,
célere, veloz, diferem uns dos outros em alguma constante e
convencional característica de significado. Supomos, em resumo, que
não existem realmente sinônimos. Por outro lado, nossa assunção implica
também que se formas são semanticamente diferentes (é dizer, diferentes
em relação ao significado linguístico), elas não são a mesma coisa, mesmo
se parecerem em relação à forma fonética. [...]
Diferentes formas linguísticas, as quais têm a mesma forma fonética (e
diferem, portanto, apenas em relação ao significado) são conhecidas como
homônimos. Já que não podemos com certeza definir significados, não
podemos sempre decidir se uma forma fonética, em seus vários usos, tem
sempre o mesmo significado ou representa um conjunto de homônimos.
(Destacou-se).
Ao se dizer alto, grande e gigante, a diferença de forma (significante) entre esses
signos linguísticos implica diferenças fonéticas entre eles. Se assim o é, é porque também
são diferentes em relação ao significado. No caso de alto, grande e gigante, a diferença está
no significado semântico – não se grava “em presença” das palavras no texto. Isso implica
que eles não significam semanticamente a mesma coisa. Uma pessoa alta não significa o
mesmo que uma pessoa gigante. Os significados semânticos são, pois, distintos. Em relação
ao significado sintático, no entanto, são todos adjetivos.
Veja-se outro exemplo. Ao se dizer para (verbo) e para (preposição), esse signo
linguístico tem igualdade de forma no significante (homônimo), mas seu significado
sintático é diferente; pode ser preposição (isso é “para” você) e pode ser verbo na terceira
pessoa do presente do indicativo (ele para o carro).
Trazendo isso para a problemática de evento e fato, isso quer dizer que evento e fato
não podem ter o mesmo significado, eis que possuem formas (significantes) diferentes como
190
no caso de alto, grande e gigante. Isso será estudado com profundidade na Parte 4 deste
trabalho.
Na sequência quer-se ainda percorrer o direito positivo para se demonstrar a força
prescritiva, impositiva, cogente e realizativa dos signos linguísticos dentro do direito.
3.4 Signos Jurídicos, Regras Estruturais da Língua e Função Prescritiva, Impositiva,
Cogente e Realizativa no Plano do Direito
A Constituição Federal de 1988 (“CF/88”) traz, em seu artigo 13, que a língua
portuguesa é o idioma oficial da República Federativa do Brasil. Bem, disso decorre uma
conclusão inicial inafastável: falar juridicamente é falar juridicamente na língua portuguesa.
Se somente se pode falar juridicamente no Brasil na língua portuguesa, isso implica
que a gravação em signos na linguagem jurídica deve respeitar as regras estruturais da língua
portuguesa. Não há comunicação jurídica possível sem que a articulação da linguagem
jurídica se realize no meio de expressão da língua portuguesa.
Compreender as regras estruturais da língua portuguesa é tão importante para o
direito que foi o próprio direito que introduziu no ordenamento jurídico, por meio do Decreto
Legislativo 54/95, o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, assinado em Lisboa, em
1990.
O Código Civil Brasileiro estabelece, no seu artigo 224, que “Os documentos
redigidos em língua estrangeira serão traduzidos para o português para ter efeitos legais no
País”. A Lei dos Registros Públicos, em seu artigo 148, vai na mesma linha para dizer que:
“Os títulos, documentos e papéis escritos em língua estrangeira [...] Para produzirem efeitos
legais no País e para valerem contra terceiros, deverão, entretanto, ser vertidos em vernáculo
e registrada a tradução”.
Desse modo, tanto é que a linguagem jurídica necessariamente se articula na língua
portuguesa que os documentos jurídicos somente produzirão efeitos de direito se seus
significantes estiverem nessa língua.
Estar o significante na língua portuguesa implica que esses significantes se
submeteram às regras estruturais da língua portuguesa. Lembre-se, como se trouxe
anteriormente, signos não são somente significantes (meio de expressão, palavra escrita),
mas também significado, sendo que esse último é significado semântico e significado
sintático.
191
Essa estrutura aparece em qualquer signo que se articula no meio de expressão de
uma língua. Aparece nos signos da língua portuguesa e, necessariamente, nos signos
jurídicos.
A Lei Complementar 95/98, a qual trata das regras de elaboração, redação, alteração
e consolidação de leis, traz:
Art. 11. As disposições normativas serão redigidas com clareza, precisão e
ordem lógica, observadas, para esse propósito, as seguintes normas:
I - para a obtenção de clareza:
a) usar as palavras e as expressões em seu sentido comum, salvo
quando a norma versar sobre assunto técnico, hipótese em que se
empregará a nomenclatura própria da área em que se esteja
legislando;
b) usar frases curtas e concisas;
c) construir as orações na ordem direta, evitando preciosismo, neologismo
e adjetivações dispensáveis;
d) buscar a uniformidade do tempo verbal em todo o texto das normas
legais, dando preferência ao tempo presente ou ao futuro simples do
presente;
e) usar os recursos de pontuação de forma judiciosa, evitando os abusos
de caráter estilístico;
O artigo 11 aqui apresentado traz que as disposições normativas usarão palavras em
seu sentido comum. Que é sentido comum no Brasil? É o sentido convencionado pelas gentes
que falam português no Brasil, é dizer, o sentido comum convencionado pela língua
portuguesa. Ross diz, como já posto acima, que o direito é fático-convencional (ou, como
aqui se defende, mais apropriadamente, eventual-convencional) , de modo que a convenção
das gentes sobre o sentido dos signos é certamente parte integradora da linguagem jurídica,
sob pena de não ser possível a comunicação.
O artigo 11 traz, igualmente, que quando o assunto for técnico a norma utilizará a
nomenclatura técnica. Que é uma nomenclatura técnica? É aquela usada por uma ciência
específica. Na medicina usam-se termos técnicos da medicina, que podem variar em relação
ao sentido comum. Na contabilidade utilizam-se termos técnicos que podem variar em
relação ao sentido comum.
Qual o limite dessa variação? Já se falou exaustivamente que a linguagem técnica de
uma ciência é uma linguagem de gravação ou linguagem gravadora e que a linguagem
gravada é, ao menos no meio de expressão escrito (significante escrito), a linguagem
cotidiana que se articula em uma língua.
Se assim o é, é porque toda linguagem técnica de uma ciência necessariamente tem
um mínimo da linguagem gravada que é a linguagem cotidiana articulada em uma língua.
192
Como poderia, por exemplo, fazer-se ciência médica no Brasil, se os escritos não fossem na
língua portuguesa?
Quer parecer inafastável essa premissa: falar13 em qualquer ciência é falar na língua
que permite essa fala. Não existem cientistas que não se expressam; não há comunicação na
afasia. Se não há expressão, não há comunicação e não é possível fazer ciência sem se
comunicar.
Voltando à Lei Complementar 95/98 e ao artigo acima transcrito, diga-se, ainda, que
ele traz palavras como frase, oração, adjetivações, tempo verbal, recursos de pontuação. Que
são esses elementos? São elementos da sintaxe ou morfossintaxe da língua portuguesa,
elementos que dizem respeito ao significado sintático dos signos linguísticos.
Isso confirma, igualmente, que as disposições da lei são redigidas submetendo-se às
regras de estrutura da língua portuguesa. Redigir uma disposição de lei é o mesmo que
escrever em português ou, ainda, usar para redigir tal disposição signos linguísticos
estabelecidos segundo as regras e limites da língua portuguesa.
É por isso que estudar qualquer composição de signos linguísticos, como é o caso do
direito positivo, é estudá-la de acordo com as regras estruturais que permitem sua
articulação, ou seja, as regras estruturais de uma língua.
Desse modo, toda comunicação que se faz de signos linguísticos é estudada, em
algum grau, “pela criação de hierarquias, sistemas hierárquicos que disciplinam a
combinatória dos símbolos conforme gêneros e espécies de compatibilidade e
incompatibilidade, ou seja, conforme uma sintaxe” (FERRAZ JR., 2015, p. 231).
Continua a Lei Complementar 95/98, em seu artigo 11:
II - para a obtenção de precisão:
a) articular a linguagem, técnica ou comum, de modo a ensejar perfeita
compreensão do objetivo da lei e a permitir que seu texto evidencie com
clareza o conteúdo e o alcance que o legislador pretende dar à norma;
b) expressar a idéia, quando repetida no texto, por meio das mesmas
palavras, evitando o emprego de sinonímia com propósito meramente
estilístico;
c) evitar o emprego de expressão ou palavra que confira duplo sentido ao
texto;
d) escolher termos que tenham o mesmo sentido e significado na maior
parte do território nacional, evitando o uso de expressões locais ou
regionais;
e) usar apenas siglas consagradas pelo uso, observado o princípio de que
a primeira referência no texto seja acompanhada de explicitação de seu
significado;” (Destacou-se).
13 Falar no sentido geral de se expressar.
193
A leitura de tal artigo traz que a redação de disposições legais deve articular a
linguagem técnica ou comum, de modo a que os objetivos da lei, conteúdo e alcance
pretendidos pelo legislador, sejam compreendidos pelos sujeitos de direito.
Veja-se que a legislação confirma o que aqui se defende: linguagens são articuladas
pelo legislador (sejam elas técnicas ou não). São articuladas com vistas à comunicação. Que
comunicação? Do conteúdo e alcance da disposição legal. De que modo? De modo que sejam
compreendidas pelos sujeitos de direito.
A articulação de linguagens se faz naquela porção do circuito que permite a
associação entre imagem acústica e conceito ou vice-versa na qual está a língua, nos dizeres
de Saussure, conforme já se apontou. É, assim, na língua que essa articulação é possível.
O inciso II do artigo 11 aqui transcrito traz ainda que essa articulação tem uma função
de comunicação do conteúdo e alcance da disposição normativa. Já se disse que todo signo
linguístico e, disposições normativas são também signos linguísticos, tem um conteúdo e
que esse conteúdo é substância e forma.
Qualquer comunicação, assim, quer comunicar um conteúdo. A comunicação
jurídica não é diferente. Há, nessa visão, uma substância e uma forma que se comunicam
pelas disposições legais. O meio de expressão pode ser, por exemplo, a palavra escrita do
texto (significante). O significado é semântico (substância) e sintático (forma).
Assim, a comunicação jurídica terá por fim comunicar um significado semântico
(substância) e um significado sintático (forma). Nesse sentido, há um significado jurídico-
semântico e um significado jurídico-sintático que se quer gravar, eis que todo signo jurídico
tem um conteúdo a ser transmitido.
Qual é o alcance que o legislador pretende dar ao signo jurídico? O alcance é aquele
que a interpretação permitir, cujo fim está na norma jurídica que se grava dos significantes
escritos do direito positivo. Essa norma jurídica é o significado jurídico-semântico e jurídico-
sintático dos significantes jurídicos.
Impregnados no significado, há também os valores que o legislador quer transmitir,
como o valor justiça. Todo significado se produz a partir de um significante e vice-versa. No
direito, como os signos jurídicos estão no texto jurídico, o que se tem é um processo que
começa fisiológico: alguém lê texto, usam-se os olhos para tal, ou seja, imagens acústicas
(significantes) que estão no texto são captadas pelo órgão de visão.
Depois há uma associação de significante jurídico com conceito em um processo
psíquico. Nessa associação, que é justamente a porção do circuito na qual está a língua, se
194
dá com um conceito que é o significado jurídico. Como dito, por ser significado pode ser
sintático e semântico, ou jurídico-sintático e jurídico-semântico.
O aplicador do direito ou aquele que interpreta o direito, ao se permitir esse processo
de associação de um significante jurídico a um significado jurídico (conceito), implica que
o que se tem é a produção da norma jurídica. É essa norma jurídica um produto de um
processo fisiológico (ler) e de um processo psíquico (associação de imagem acústica com
conceito).
Quando a autoridade competente interpreta e aplica o direito, ela é orientada por
algumas ideias. O ideal mais caro ao direito é o ideal de justiça. É por esse motivo que a
norma jurídica é também uma crença de justiça, pois que quando se forma é orientada por
esse ideal necessário, verdadeiro norte de todo o direito.
Ademais, deve-se trazer que essa norma jurídica gravada pelo aplicador do direito,
intérprete autêntico do direito, tem um limite. Que limite é esse? Além de ser orientada pelo
ideal de justiça, o limite está na convenção jurídica sobre esse ideal. Esse, igualmente, é o
alcance que busca o legislador, o objetivo de todo e qualquer direito, é dizer, uma convenção.
A convenção é o meio e o fim do direito. A convenção mais cara ao direito é a convenção-
justiça.
Quando um aplicador do direito interpreta e aplica ele também convenciona.
Convenciona o quê? Uma justiça entre as partes no processo. Justiça aqui como ideal
inalcançável, uma mera ilusão, mas necessariamente uma orientação do fenômeno jurídico.
Esse alcance é limitado pela convenção, que leva em consideração muitos outros
ingredientes jurídicos, como as limitações temporais no direito, garantias como direito
adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada, princípios como o da irretroatividade,
anterioridade etc.
Uma coisa é certa, no entanto, onde houver interpretação de signos jurídicos, haverá
um significante jurídico (meio de expressão) e um significado jurídico, sendo que esse
último será jurídico-semântico e jurídico-sintático. Além disso, a articulação (gravação), a
qual pode ser lida aqui como uma forma de interpretação e que permite a associação de
significante e significado ou vice-versa, opera-se na porção do circuito no qual a língua está.
É ela que permite a articulação.
Disso decorre inafastável que signos jurídicos são uma espécie de signos linguísticos,
de modo que, para serem articulados, submeter-se-ão às regras estruturais da língua, que no
Brasil é a língua portuguesa.
195
Desse modo, há um outro limite, o que também pode ser chamado de “mínimo
existencial do direito”, que é o limite do mundo sensível, limite ideal de qualquer signo
linguístico. Se “existe” um limite ideal e, parece óbvio que ele “existe”, porque um signo se
grava algo que é experimentado, é porque qualquer linguagem desse algo deve guardar
alguma relação com ele, sendo que essa relação, pelo que aqui se defende, é empírica ou, ao
menos, em algum tempo, empiricamente foi possível por algum sujeito em uma comunidade
de fala.
É aí justamente que aparece o papel essencial da verdade, a qual permite essa
concordância de uma gravação abstrata (ou declaração abastrata como traz Peirce) com um
limite ideal, como já amplamente ressaltado nesse texto. Essa verdade, pelo que aqui se
defende, é ingrediente essencial de qualquer signo jurídico, sob pena de se dizer que mesa é
cadeira e cadeira é mesa, tornando a comunicação inviável no trato humano.
Desse modo, alguma porção de real “há” no signo linguístico e aqui “há” quer dizer
“pode ser gravado”. Como se vem ressaltando, o signo é elemento simbiótico. Além disso,
como já se falou, não existe signo sem objeto, ainda que se considere a “existência” de uma
realidade semeiótica, de modo que um mínimo do real de alguma forma é gravado pelo
signo. A exemplo de um índice da tricotomia peirceana, que como uma foto “grava” somente
uma parte de um cenário paradisíaco, mas que, à evidência, não é todo o cenário, o signo
aparece como uma máquina fotográfica do objeto.
Bem, se o signo linguístico grava uma porção do real e é necessária uma
concordância (verdade), ainda que mínima dessa gravação em relação ao limite ideal, a qual
(concordância) se busca por meio de uma investigação tendente a trazer crença sobre essa
gravação, crença esta sempre atualizável na dinâmica do léxico (inconsciente coletivo de
memórias de uso) das gentes, isso quer dizer que algum toque no mundo sensível é
necessário e, se não ocorrer, ao menos a tendência é que o signo linguístico seja atualizado.
Não é possível dizer que mesa é cadeira e, ainda que se diga, a tendência é que a investigação
atualize essa crença.
Portanto, se signos jurídicos também são signos linguísticos (linguagem gravadora
e linguagem gravada), isso implica que o significado (semântico e sintático) também será
articulado por meio de uma associação que, de alguma forma, tende a uma crença que se
refira a uma gravação de alguma porção do real (da summa realidade).
Parênteses para se explicar o que se quer dizer com léxico, pois o uso é diferente do
que se está habituado. Finch (2000, p. 102) assevera que “léxicos não estão abertos a uma
196
visão direta dos linguistas – não podemos abrir nossas mentes para eles olharem dentro.
Portanto, linguistas têm de trabalhar de trás para frente a partir de amostras do uso corrente
da língua e deduzir dessas amostras do que consiste o léxico dos falantes nativos”. Portanto,
o léxico é esse inconsciente coletivo das gentes – o depositório de memórias de uso das
coisas do mundo.
Dito isso e se trazendo o tema agora para a aplicação ao fenômeno jurídico, tem-se
que, no direito, haverá, também, um mínimo de summa realidade, sob pena de a tendência
ser a atualização da crença que se forma. Crença aqui é o mesmo que norma jurídica na
perspectiva do léxico jurídico.
Nesse contexto, partindo do pressuposto que parece aqui inafastável de que qualquer
articulação jurídica deve necessariamente se fazer na língua portuguesa e que no direito
articulações têm funções prescritivas de condutas, impositivas de consequências jurídicas,
cogentes de seus efeitos e realizativas para o surgimento de direitos e obrigações, parece
certo concluir que a língua, para o direito, é um meio de expressão que tem, igualmente, uma
função prescritiva, impositiva, cogente e realizativa.
A função prescritiva da linguagem jurídica salta como óbvia para qualquer jurista,
eis que é a propriedade da linguagem jurídica de determinar condutas a serem seguidas
pelos sujeitos de direito.
A função impositiva, igualmente, aparece como evidente, eis que consiste no
predicado da linguagem do direito de forçar consequências jurídicas, previstas no sistema
de direito, em razão do não seguimento pelos sujeitos de direito das determinações de
condutas postas no sistema.
A função cogente é uma função de validade e eficácia da linguagem jurídica no
sentido de validar e aperfeiçoar as previsões no sistema em direção potencial aos sujeitos
de direito.
Por fim, a função realizativa, com base em Austin, como já mencionado, dá razão ao
surgimento de direitos e obrigações por conta de uma ação que se toma. É uma função da
linguagem jurídica que tem como efeito realizar uma ação e fazer surgir direitos e
obrigações.
Essa função da linguagem jurídica, como traz Olivecrona, o que já foi mencionado,
não implica na gravação de eventos do mundo, eis que não descreve nada. Seu propósito é
estabelecer uma nova relação jurídica; são “realizativas”, o que vem da circunstância de que
ao formulá-las ações são “realizadas, como no exemplo de quando um homem diz “sim”
197
perante um juiz de paz em uma cerimônia de casamento, aparecendo daí todas as obrigações
e direitos decorrentes desse evento, como já se mencionou acima.
Todas essas funções somente são possíveis porque se fazem na porção do circuito da
mente que está a língua; são funções de linguagem e aparecem atreladas à submissão dos
sujeitos de qualquer linguagem às regras estruturais das línguas, de onde surge a importância
ímpar da sintaxe gramatical para entender os fenômenos, no que se inclui o fenômeno
jurídico.
Na sequência demonstrar-se-á, também, a importância da sintaxe gramatical, aqui
englobando o significado sintático de todo signo linguístico, e o texto jurídico é composto
deles, para fins da interpretação dos signos jurídicos.
3.5 Papel da Sintaxe Gramatical para Fins da Interpretação das Regras de Direito
Principie-se pelo exemplo em que o legislador grave o seguinte: “auferir cro tributo
estado-isco”. Que quer significar juridicamente os significantes trazidos? Bem, “auferir” é
um verbo, “cro” é uma partícula não distinguível, pois não tem um significado mínimo,
“estado” é um nome substantivo e “-isco” é outra partícula que não tem significado mínimo,
eis que é não distinguível.
Diga-se, então, que o legislador grave o seguinte: “auferir lucro implica o pagamento
de tributo ao estado-fisco.” Aqui há um significado sintático completo da sequência de
significantes escritos, eis que o uso competente da língua portuguesa foi aplicado com
correção. Disso uma conclusão fulminante: Não há efetividade do direito sem o uso
competente da língua portuguesa, de modo que o significado jurídico (sintático ou
semântico) depende, em alguma medida, do significado convencionado dentro da língua
portuguesa pelos seus falantes, tanto em relação à forma linguística (significado sintático),
como em relação à substância linguística (significado semântico).
Poder-se-ia obstar o que foi dito com base na própria Lei Complementar 95/98, em
relação ao seu artigo 18, o qual traz: “Eventual inexatidão formal de norma elaborada
mediante processo legislativo regular não constitui escusa válida para o seu
descumprimento”, além do que a Lei de Introdução ao Código Civil, em seu artigo 3º, dispõe
que: “Ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que não a conhece”.
Bem, em relação ao tema, primeiro é necessário compreender a extensão do
significado de “inexatidão formal”. Que inexatidão formal é essa? Seria o legislador escrever
“ser proprietário imóvel no territorio urbao” uma inexatidão formal? Ou seria escrever “presr
198
servios no municio de...” uma inexatidão formal? Há um limite para se permitir a escusa
diante de uma inexatidão formal ou em relação a qualquer inexatidão formal não cabe
escusa?
A resposta parece muito simples, inexatidão formal que não escusaria alguém de
cumprir a lei é aquela que permite, de algum modo, dentro da língua portuguesa, levar a um
interpretante que se fundamente em uma ideia possível dentro da experiência sensível do
falante da língua portuguesa no Brasil. Já se disse acima que a ordem natural das coisas é
implacável.
Assim, “ser proprietário imóvel no territorio urbao” permite identificar o evento
gerador da obrigação de pagar o IPTU, mas “presr servios no municio de...” não permite, a
não ser com muita clarividência, identificar o evento gerador da obrigação de pagar o ISS.
Portanto, os efeitos jurídicos dos textos legais, decorrem, em algum grau, do uso
competente da língua portuguesa nos próprios textos legais e, pois, de uma relação possível
com a experiência sensível dos falantes dessa língua no Brasil.
Aqui um desafio: quer-se ver alguém gravar juridicamente no Brasil com efeitos
jurídicos senão na língua portuguesa? Assim, fácil notar a importância do estudo da
semeiótica (no sentido de estudo amplo dos signos, abarcando gramática pura, lógica e pura
retórica), semiologia (estuda a vida dos signos no seio da vida social, em que eles constituem,
bem como as leis que os regem), da linguística (estuda a língua enquanto sistema especial
no conjunto de sistemas de linguagem) e, englobada, de alguma forma nas anteriores, a
gramática (estuda, entre outras coisas, os aspectos sintáticos dos signos linguísticos na
sequência deles em um texto) para fins da compreensão adequada do fenômeno jurídico, o
qual, ao cabo, é também linguagem.
Em resumo, exsurge inevitável, para conhecer com ares de amplitude o fenômeno,
levar em consideração no estudo que se desempenhe, como traz Morris já citado, aspectos
sintáticos, semânticos e pragmáticos.
É por isso que se diz, como já se disse, que a língua tem no direito, igualmente, uma
função prescritiva de comportamentos desejáveis, impositiva de consequências jurídicas aos
infratores, cogente de validade e eficácia e realizativa de ação para surgir direitos e
obrigações. Os aspectos sintáticos, semânticos e pragmáticos estão impregnados nas funções
da linguagem jurídica e é na língua, mas não só nela, também na vontade das gentes, que o
substrato deste estudo se encontra.
Veja-se o seguinte julgado que confirma esse entendimento:
199
APELAÇÃO CRIMINAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO – TRÁFICO DE
DROGAS – MANTIDA DESCLASSIFICAÇÃO DE POSSE DO
ENTORPECENTE PARA USO – IN DUBIO PRO REO –
IRRELEVÂNCIA DA CONFISSÃO EXTRAJUDICIAL DE INDÍGENA
QUE NÃO FALA A LÍNGUA PORTUGUESA E NÃO FOI ASSISTIDO
POR INTÉRPRETE – POSSÍVEIS TESTEMUNHAS NÃO
ARROLADAS PARA OITIVA JUDICIAL – AUSÊNCIA DE
PETRECHOS NA RESIDÊNCIA DO ACUSADO – RECURSO NÃO
PROVIDO. O decreto de condenação impõe, como imperativo ético-legal,
a plena convicção e não meros indícios. Deve ser mantida a
desclassificação da imputação do crime de tráfico de drogas para posse
para uso se as possíveis testemunhas da venda, líderes da aldeia indígena,
nem sequer foram arroladas para serem ouvidas em juízo e não havia
petrechos na residência do réu que indicassem o comércio ilícito. É
irrelevante e não admitida nem mesmo como indícios, a confissão
extrajudicial redigida em língua portuguesa sem assistência de
intérprete ao réu indígena que não entende referido idioma. Recurso
não provido. (TJ-MS - Apelação APL 00011610220148120016 MS
0001161-02.2014.8.12.0016, Data de publicação: 29/03/2016). (Destacou-
se).
Não se admite em direito, mesmo em língua portuguesa, confissão de pessoa que não
é falante da língua portuguesa, ou seja, que não entende referido idioma. Pois bem. Se não
há efeitos jurídicos para documento no vernáculo, produzido a partir dos dizeres de alguém
que não é falante da língua portuguesa, eis que não entende essa língua, como no caso do
índio acima, é porque o uso competente da língua portuguesa é fundamento primeiro e
irremediável para produção de efeitos jurídicos.
Aqui não se está a falar que, por não conhecer o idioma, se possa praticar crimes.
Não há de se confundir a ocorrência com a gravação. O que se quer dizer é que a gravação
será viciada se não for produzida mediante uma gravação da linguagem por pessoa que não
fala o português. Assim, é o caso do intérprete, que faz o medius entre a linguagem do falante
de outra língua para a linguagem dos falantes do português. Não é o juiz de direito também
um intérprete que faz a gravação?
Não se pode escusar o conhecimento da lei por se falar outra língua. Não é isso. O
que se escusa é a prova acerca de uma ocorrência, acerca de um evento, eis que um signo-
gravador em língua estrangeira não tem efeitos para o direito. Por que não tem efeitos? Pela
simples circunstância de que essa linguagem não pode ser articulada por uma mente que fale
somente português e isso quebra o contínuo da comunicação. Se não há comunicação
jurídica possível, não é possível se interpretar e aplicar o direito.
200
A língua tem, assim, a função prescritiva, impositiva, cogente e realizativa já
destacadas. Sem ela a comunicação jurídica não se perfaz e as funções da linguagem jurídica
não podem se estabelecer.
Na próxima parte desse trabalho, tratar-se-á do tema específico do fato jurídico, o
qual, obviamente, entrelaça-se com tudo que já foi dito até agora, mas nas linhas vindouras,
o que se provará é que há uma diferença entre evento e fato que deve ser destacada para que
se conheça verdadeiramente o fenômeno jurídico.
201
PARTE 4 – EVENTO VERSUS FATO NO PALCO DO DIREITO
Para começar o estudo é preciso que se leve a cabo uma primeira desconstrução.
Quando se fala em fato jurídico, o que se tem, em resumo, é um evento da summa realidade,
o qual, gravado juridicamente, é desencadeador de efeitos jurídicos, ou seja, de efeitos que
sua ocorrência extrajurídica gravada implicará intrajuridicamente.
Diga-se, de início, que se entende que a expressão fato jurídico é uma expressão
equívoca, eis que o significado de fato atribuído para fins jurídicos não corresponde, ao
menos linguisticamente, ao que se deveria atribuir pelo uso competente da língua.
Desse modo, o estudo desenvolvido nas linhas seguintes, parte de como a legislação,
jurisprudência e a dogmática têm tratado fato e fato jurídico, sem que isso implique em uma
concordância com o uso dessa terminologia, tanto é assim que, ao final, far-se-á uma crítica
a tal nomenclatura.
Diante disso, traga-se ainda, que o que se pretende lograr neste capítulo é, pois, um
estudo acerca: a) do modo como lei e jurisprudência têm tratado fato e fato jurídico; b) da
maneira como a dogmática jurídica relaciona-se com o tema; c) das diferenças potenciais
entre fato jurídico, fato e evento; d) da aplicação dessa diferenciação no que diz respeito à
linguagem das provas; e) do que se compreende como a correta terminologia que deveria ser
utilizada tanto na legislação e jurisprudência, como na dogmática jurídica.
4.1 Fato Jurídico na Lei e Jurisprudência
No direito civil, o Código Civil Brasileiro traz dispositivo que fala do fato jurídico:
TÍTULO V
Da Prova
Art. 212. Salvo o negócio a que se impõe forma especial, o fato jurídico
pode ser provado mediante:
I - confissão;
II - documento;
III - testemunha;
IV - presunção;
V - perícia. (Destacou-se).
202
No direito penal, o Código Penal Brasileiro fala de fato juridicamente relevante:
Falsidade ideológica
Art. 299 - Omitir, em documento público ou particular, declaração que dele
devia constar, ou nele inserir ou fazer inserir declaração falsa ou diversa
da que devia ser escrita, com o fim de prejudicar direito, criar obrigação
ou alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante:
Pena - reclusão, de um a cinco anos, e multa, se o documento é público, e
reclusão de um a três anos, e multa, se o documento é particular.
Parágrafo único - Se o agente é funcionário público, e comete o crime
prevalecendo-se do cargo, ou se a falsificação ou alteração é de
assentamento de registro civil, aumenta-se a pena de sexta parte.
(Destacou-se).
No direito constitucional, a Constituição Federal de 1988 (“CF/88”) fala de fatos
pura e simplesmente, como nos seguintes trechos:
Seção VII
DAS COMISSÕES
Art. 58. O Congresso Nacional e suas Casas terão comissões permanentes
e temporárias, constituídas na forma e com as atribuições previstas no
respectivo regimento ou no ato de que resultar sua criação.
[...]
§ 3º As comissões parlamentares de inquérito, que terão poderes de
investigação próprios das autoridades judiciais, além de outros previstos
nos regimentos das respectivas Casas, serão criadas pela Câmara dos
Deputados e pelo Senado Federal, em conjunto ou separadamente,
mediante requerimento de um terço de seus membros, para a apuração
de fato determinado e por prazo certo, sendo suas conclusões, se for o
caso, encaminhadas ao Ministério Público, para que promova a
responsabilidade civil ou criminal dos infratores. (Destacou-se).
Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar:
[...]
§ 2º As causas intentadas contra a União poderão ser aforadas na seção
judiciária em que for domiciliado o autor, naquela onde houver ocorrido
o ato ou fato que deu origem à demanda ou onde esteja situada a coisa,
ou, ainda, no Distrito Federal. (Destacou-se).
No processo civil, o Código de Processo Civil Brasileiro traz os seguintes trechos
que tratam do fato ele mesmo:
Da Responsabilidade das Partes por Dano Processual
[...]
Art. 80. Considera-se litigante de má-fé aquele que:
I - deduzir pretensão ou defesa contra texto expresso de lei ou fato
incontroverso;
II - alterar a verdade dos fatos; [...]. (Destacou-se).
203
Do Perito
Art. 156. O juiz será assistido por perito quando a prova do fato
depender de conhecimento técnico ou científico. (Destacou-se).
Dos Requisitos da Petição Inicial
Art. 319. A petição inicial indicará:
[...]
III - o fato e os fundamentos jurídicos do pedido; [...]. (Destacou-se).
No direito tributário, o Código Tributário Nacional traz a expressão “fato gerador”:
Art. 4º A natureza jurídica específica do tributo é determinada pelo
fato gerador da respectiva obrigação, sendo irrelevantes para qualificá-
la:
I - a denominação e demais características formais adotadas pela lei;
II - a destinação legal do produto da sua arrecadação. (Destacou-se).
Dos trechos de direito positivo acima transcritos, algumas conclusões podem ser
alcançadas. A primeira delas diz respeito à circunstância de que fato é uma realidade plural
sob a perspectiva da linguagem.
Quando se diz “apurar fato determinado”, “fato que deu origem à demanda”, “fato
juridicamente relevante", o que se tem é uma realidade plural, eis que, se há que se “apurar
um fato” ou se há “um fato que dá origem” a algo jurídico, é porque esse fato de que se fala
não é jurídico, mas sim algo que implica efeitos de direito, mas que está fora do direito
propriamente dito. Trata-se de algo na summa realidade.
Uma segunda conclusão é de que, quando se fala em “alterar a verdade dos fatos” ou
“alterar a verdade de fato juridicamente relevante”, o que se está a fazer é submeter esse fato
extrajurídico a um juízo de veracidade.
Se assim o é, o que se tem é que ao fato, de uma forma ou de outra, uma verdade
deve ser reconhecida, pois de que valeria o tipo penal do crime de falsidade ideológica se
não houvesse a ocorrência de uma “alteração da verdade acerca de um fato juridicamente
relevante” ou ainda, quando estaria presente a litigância de má-fé, “se não se alterasse a
verdade dos fatos?”.
Aqui uma pausa para uma pergunta: que verdade é essa que, se alterada, gera efeitos
jurídicos como no caso do crime de falsidade ideológica e no caso da litigância de má-fé?
Só pode ser, dentro do que aqui se defende, uma verdade sobre uma summa realidade, do
que decorre que alterar uma verdade é o mesmo que falsear sobre uma summa realidade.
Sobre o tema, vejam-se os seguintes julgados:
204
PENAL. APELAÇÃO. CRIME DE FALSIDADE IDEOLÓGICA (CP,
ART. 299). AUSÊNCIA DO ELEMENTO SUBJETIVO ESPECÍFICO
DO TIPO. INTENÇÃO DE ALTERAR A VERDADE DE FATO
JURIDICAMENTE RELEVANTE AFASTADA PELO CONJUNTO
PROBATÓRIO. AUSÊNCIA TAMBÉM DO DOLO GENÉRICO,
CONSISTENTE NA VONTADE DE FAZER DECLARAÇÃO FALSA.
HIPÓTESE, OUTROSSIM, EM QUE TAL DECLARAÇÃO NÃO
TINHA NOCIVIDADE EFETIVA OU POTENCIAL CONTRA
TERCEIROS, NEM CRIAVA OBRIGAÇÃO OU ALTERAVA A
VERDADE SOBRE FATO JURIDICAMENTE RELEVANTE.
ABSOLVIÇÃO QUE SE IMPÕE. SENTENÇA REFORMADA.
RECURSO PROVIDO. 1. "Não se configura o crime de falsidade
ideológica, portanto, quando se trata de falsidade sobre fato
juridicamente irrelevante, inócuo, que não contém nocividade efetiva
ou potencial. Inexistindo, em tese, a possibilidade de ofensa a direito
alheio, não se configura o crime." (MIRABETE, Julio Fabbrini. Código
Penal Interpretado. 4 ed., São Paulo: Editora Atlas, 2003, p. 1935) 2. "... o
crime previsto no art. 299 do Código Penal exige o dolo específico
consistente na vontade de prejudicar direito, criar obrigação ou alterar a
verdade sobre fato juridicamente relevante. Deste modo, o falso ideológico
que deixe de acarretar qualquer das três situações mencionadas deve ser
considerado penalmente indiferente." (TJPR - Apelação Criminal 549166-
1, Acórdão 24279, 2ª Câmara Criminal, Rel. Des. Lidio José Rotoli de
Macedo, julg. 30.03.2009). (Destacou-se).
RECURSO ELEITORAL. PROPAGANDA ELEITORAL IRREGULAR.
POSTES DE ILUMINAÇÃO PÚBLICA. NÃO CONFIGURAÇÃO.
PROPRIEDADE PRIVADA. ELETRIFICAÇÃO RURAL.
CONDENAÇÃO EM LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ. VERDADE DOS
FATOS ALTERADA. RECURSO CONHECIDO E NÃO PROVIDO. A
documentação inicialmente acostada pelas partes tornou desnecessária a
produção de outros elementos probatórios. Não há que se falar em
cerceamento do direito de defesa ou em inobservância do devido processo
legal. Preliminar afastada. O ângulo em que foram tiradas as fotografias
poderia levar o magistrado de piso a julgar procedente a representação
eleitoral por propaganda irregular. E tal fato só não aconteceu uma vez
que um servidor dirigiu-se ao local e constatou que, de fato, a placa de
propaganda encontrava-se afixada em um poste de eletrificação rural,
no interior de uma propriedade privada e não pertencente à rede
pública de iluminação. A intenção de induzir a erro o magistrado
sentenciante, com a alteração da verdade dos fatos e o objetivo de
prejudicar os candidatos adversários impõem a manutenção da
condenação em litigância de má-fé. Recurso conhecido e improvido.
(TRE-ES - RECURSO ELEITORAL RE 32534 ES, Data de publicação:
07/11/2012). (Destacou-se).
Em relação ao julgado de direito penal, referente ao crime de falsidade ideológica, o
que se verifica é que, somente se configura tal crime, quando estiver presente uma alteração
da verdade sobre fato nocivo a outrem ou capaz de afetar direito alheio. Para o direito penal,
pois, somente será fato passível de gerar efeitos jurídicos aquele que puder causar prejuízo
205
a outrem (a direito subjetivo). É a verdade sobre esse fato que deve ser alterada para que o
tipo penal se realize.
No caso de direito eleitoral, a alteração da verdade sobre suposto fato de propaganda
eleitoral irregular é que implicou litigância de má-fé, eis que comprovou o servidor,
dirigindo-se ao local do fato, que o fato não era o fato narrado pelo litigante na ação
promovida, de modo que este alterou verdade sobre fato, alteração de verdade sobre fato esta
que implica efeitos jurídicos (litigância de má-fé).
Os julgados demonstram que o fato é, como se disse, uma dualidade, eis que sua
apuração demanda a verificação de uma summa realidade (como no caso do servidor
dirigindo-se à propriedade para comprovar a não ocorrência da propaganda eleitoral
irregular), a qual se diferencia daquela gravada juridicamente para irradiar efeitos de direito.
Dentro do realismo, que aqui se defende, esse fato juridicamente relevante/que
implica efeitos jurídicos é aquele que se submete a uma verdade, a qual “é aquela
concordância de uma declaração abstrata com o limite ideal em direção ao qual uma
interminável investigação tenderia a trazer uma sempre falível crença científica” (CP 5.565).
Compreendendo novamente o que Peirce quer transmitir, o que se tem, diante da
interpretação que aqui se faz, é que: a) declaração abstrata, para coadunar com a
nomenclatura aqui utilizada, é uma gravação (Peirce diz representação) de uma porção da
summa realidade, ou seja, uma sequência de signos que grava uma porção da summa
realidade; b) limite ideal é a própria summa realidade com a qual a declaração abstrata quer
concordar na gravação, eis que o limite de uma ideia (que é o fundamento do signo) é a
própria summa realidade; c) investigação é o mecanismo baseado na experiência, em relação
ao qual se pretende apreender esse limite ideal. Quanto mais se experimenta uma summa
realidade (limite ideal), mais fidedigna é a gravação de alguma porção do limite ideal. É por
isso que a investigação é interminável, eis que sempre haverá uma faceta do real a ser
percebida; d) crença científica é objetivo buscado (algo como um ideal) pelo interminável
mecanismo de investigação. Quanto mais se experimenta o real (limite ideal), maior a
tendência de se alcançar a crença científica sobre o real. A crença científica é sempre falível,
pois que a summa realidade é gravada em uma sua porção em um processo de gravação ad
infinitum; e) verdade é justamente é o operador lógico (peirceano) que permite a gravação
com o limite ideal. A verdade é, pois, esse ponto de tangência que toca e, tocando, se
entrelaça, com o limite ideal (summa realidade).
206
O que deve ser ressaltado é que, para Peirce, a investigação que permite a
concordância entre declaração abstrata (ou, como aqui se defende, gravação abstrata) e
limite ideal, deve ser científica, pois que a crença que se alcança também é científica.
Investigação científica é aquela que pode ser levada a efeito por uma mente científica,
capaz de uma inteligência científica. Essa mente científica, reforce-se, segundo Peirce (CP
2.227), é uma mente que aprende com a experiência, o que exclui “pensamentos intuitivos,
de omnisciência divina, os quais suplantariam a razão”.
Trazendo tudo isso para o direito, o que se tem é que declaração abstrata é a
declaração do legislador (aqui chamada de gravação ou signo-gravador jurídico), ou seja,
aquela que se entrelaça com a summa realidade eleita pelo legislador como passível de
produzir efeitos de direito.
Limite ideal é, justamente, o limite da ideia que é fundamento do signo jurídico ou
sequência deles, ou seja, a própria summa realidade que o legislador grava como passível de
gerar efeitos jurídicos.
Investigação é a investigação da ocorrência ou não do evento da summa realidade
por autoridades jurídicas (aqui chamada de “investigação jurídica”). Ela é diferente da
investigação científica, eis que o grupo de mentes de perquirição da summa realidade
prevista na gravação jurídica não é um grupo de mentes científicas, mas sim um grupo de
mentes jurídicas. Está próximo com o que o promotor de justiça pode fazer e o delegado de
polícia faz no direito penal. Quando uma autoridade competente interpreta o direito ela
também, em certa medida, está apurando a ocorrência de um evento que implica efeitos de
direito.
Crença é o que se quer alcançar com a investigação jurídica, o que se obtém por
meio de uma gravação. Portanto, para o direito, é crença jurídica e não científica, eis que o
grupo de mentes que a perquiri, como se disse, é jurídico e não científico. É por isso que
essa crença, para o direito, leva em consideração outros valores, os quais são diferentes dos
valores do cientista. Toda mente jurídica também deveria ser científica, no sentido de se
neutralizar de pensamentos intuitivos ou relacionados à omnisciência divina, porém, a mente
jurídica é mais que científica, ela é algo como científico-jurídica, eis que se preocupa,
principalmente, com um ideal muito caro ao direito, que é o ideal de justiça. Essa crença
jurídica é, em realidade, a norma jurídica que se atinge por meio da investigação jurídica e
interpretação do direito.
207
Em resumo, essa crença jurídica que se busca sobre uma ocorrência na summa
realidade passível de efeitos jurídicos, é uma crença de justiça sobre essa ocorrência.
Lembrem-se, porém, que, a exemplo da crença científica, a crença de justiça é também
sempre falível, pois que inalcançável é a ocorrência na summa realidade.
Verdade é verdade jurídica, ou seja, o operador lógico (lógica peirceana) que
permite o entrelaçamento da gravação jurídica (do legislador) com alguma porção da summa
realidade em uma ontologia indireta que é possível a partir da investigação sempre falível
jurídica sobre o limite ideal.
No direito, essa gravação que se faz possível por conta do operador lógico (lógica
peirceana) está próxima do que a dogmática jurídica chama de “aplicação” do direito, é dizer,
o que a autoridade jurídica faz quando “aplica” o signo-gravador jurídico a algum evento
ocorrido na summa realidade passível de gerar efeitos de direito, conforme gravação em
outro signo-gravador do legislador.
Aqui “aplicação” seria algo muito próximo de interpretação, eis que, para aplicar,
deve-se interpretar. É a atividade do juiz de direito, mas também do fiscal fazendário quando
lança um tributo.
Assim, existiria uma gravação (crença) jurídica que se forma por conta da
interpretação jurídica (esta equivalente a uma forma de investigação sobre a ocorrência de
um evento passível de efeitos jurídicos), sendo esta gravação jurídica a própria norma
jurídica gravada na porção no interpretante na tríade peirceana. A gravação jurídica deve
ser visualizada na sua dupla porção de signo-gravador e interpretante-gravação-jurídico.
Além disso, essa crença jurídica ou norma jurídica gravada da interpretação seria
aplicada, o que equivale a uma nova gravação, permitida pelo operador lógico (lógica
peirceana), que é a verdade jurídica.
Diante disso, uma conclusão fulminante: no direito o que prevalece não é a justiça,
mas sim a verdade jurídica da gravação, a qual se refere à aplicação do direito. Esse ideal
de justiça do direito é, tal qual a crença científica (uma espécie de gravação científica), para
aonde tende a investigação jurídica, mas não o resultado que se obtém da aplicação do direito
(gravação jurídica do legislador entrelaçando-se com o limite ideal jurídico gravado pela
investigação jurídica). Incidência jurídica é espécie de entrelaçamento, quiasma, coito.
Por que é assim? É assim porque a justiça, como qualquer ideal, é inalcançável e, se
assim o é, é porque não pode ser perfeitamente gravada num signo de direito. É o mesmo
208
que dizer que não é possível uma doutrina perfeita, como traz Peirce (CP 5.566), eis que o
summum bonum não pode ser inteiramente descrito.
Logo, o que se tem, também juridicamente, é uma concordância (no sentido de
aplicação), ou seja, o que se alcança é uma verdade, a qual, por assim o ser, é absolutamente
falível. A questão então é também interpretativa, partindo do pressuposto que para aplicar
deve-se interpretar? Aqui se defende justamente esse ponto de vista.
Se a problemática, pois, é também a interpretação do direito, uma pergunta que cabe
aqui é quem tem a última palavra em termos de interpretação? Bem, no sistema brasileiro
uma resposta apressada poderia dizer que a última palavra é do Supremo Tribunal Federal,
eis que das suas decisões não se pode recorrer a nenhuma outra corte no país.
Parece ser acertado dizer que o interpretante final (opinião final como diz Peirce) é
da Suprema Corte realmente, ou seja, a verdade que prevalece no sistema jurídico brasileiro
seria a verdade (aplicada) da Suprema Corte; é essa concordância da qual não se pode mais
recorrer para se alcançar outra concordância.
Porém, leis não são elaboradas pelo legislativo, que é formado por representantes
eleitos pelo povo brasileiro? Bem, se assim o é, é porque há também um limite para a verdade
alcançada pelo Supremo Tribunal Federal.
Esse é o princípio da legalidade, diante do qual não é possível uma aplicação do
direito que não seja baseada no direito. É dizer, a Suprema Corte não pode decidir alheia à
lei ou, ao menos assim deveria ser.
Nesse contexto, se a lei é o limite da verdade da Suprema Corte, isso quer dizer que,
de uma forma ou de outra, esse limite encontra outro limite, eis que, como já se disse, não é
possível ao legislador gravar juridicamente eventos que irradiarão consequências jurídicas
sem que esses eventos sejam eventos que também possam, de alguma forma, ser gravados
na linguagem cotidiana.
A crença jurídica como ideal para a qual tende a investigação jurídica não pode fugir
a uma experiência sensível de uma summa realidade que possa, por sua vez, ser gravada na
linguagem cotidiana. Se pode ser gravada, é porque concorda com um limite ideal. Qual
limite ideal? Aquele que a investigação na experiência tenderia a trazer crença.
É por isso que o que se repete aqui a todo o tempo é que a orientação deve ser
objetiva, ou seja, deve-se dirigir para aonde os signos levam na concordância com o limite
ideal. Isso equivale a dizer que o realismo in re platônico, o realismo aristotélico, o realismo
escotista, o realismo empírico kantiano e, principalmente, o realismo peirceano, também
209
numa correlação com Merleau-Ponty, inequivocamente, em algum grau, devem suportar os
estudos jurídicos, a interpretação e a aplicação do direito.
Em outras palavras, a interpretação da Suprema Corte depende, de alguma forma, de
uma interpretação que se baseia em algo convencionado na linguagem das gentes e articulada
nela também. Depende, em última instância, do léxico, desse inconsciente coletivo (memória
de uso das gentes) sobre a summa realidade. É, pois, objetivamente orientada. Como já se
colocou que que disse Ross, o direito é fático-convencional ou como pondera Pound, é um
instituto social.
Por onde quer que se vá, retornar-se-á a esse ponto, o ponto de toque necessário com
o mundo sensível que pode ser gravado na convenção das gentes. Poder-se-ia dizer, no
entanto, que, por vezes, a Suprema Corte interpreta e aplica o direito, mas a verdade jurídica
que emerge não é compossível com a summa realidade, não concordando com a convenção
das gentes sobre ela e, pois, com a linguagem cotidiana, o que envolve os ideais buscados
pelos membros de uma comunidade de fala.
Esse caso é, realmente, de possível ocorrência, e pior, ocorre o tempo todo. Ainda
assim, pelo que aqui se defende, não rui a proposta desse trabalho. Não rui por um motivo
muito simples: a investigação jurídica, a qual permitirá, em última instância, uma aplicação,
a qual decorre de uma interpretação, é também de certa forma interminável e a crença
jurídica que se alcança sempre falível.
Isso não quer dizer que o processo judicial não termina, ou que não existem
limitações temporais no direito (prescrição, decadência, preclusão etc.). Isso quer dizer que
o grupo de mentes jurídicas poderá algum dia mudar de ideia e, fatalmente essa mudança
terá por base uma investigação “mais” verdadeira dos limites ideais consagrados pelo direito
como passíveis de consequências também de direito.
A verdade da Suprema Corte também é uma verdade sempre falível e temporária,
algo como se o jogo do direito estivesse sempre com o cronômetro correndo mesmo quando
se tem a ilusão (e é ilusão mesmo!) de que o processo judicial acabou.
O cronometro continua correndo até que um novo grupo de mentes jurídicas mude
de ideia e, que dessa forma, esse novo interpretante se sobreponha ao anterior, ou para seguir
a nomenclatura desse trabalho, que seja possível uma nova gravação no signo jurídico. A
Suprema Corte também faz isso com alguma frequência. Essa ideia do justo coaduna com a
ideia do jogo que acaba, mas que o cronômetro continua correndo. O ideal de justiça tem
sempre seu cronômetro correndo.
210
Aqui resta claro que o tema da investigação sobre eventos do mundo é primordial na
dinâmica do fenômeno jurídico. Volte-se a ele para dizer que é a linguagem jurídica sobre
esses eventos é que fara o ideal de justiça ser alcançado ainda que de maneira falível.
Isso se deve à circunstância de que a linguagem jurídica é de gravação, o que implica
dizer que gravar juridicamente é gravar juridicamente dentro de uma língua, de modo que
há para o direito uma linguagem gravada (extrajurídica), ou seja, a linguagem ordinária que
se articula por meio da expressão de uma língua.
Tanto é a linguagem jurídica de gravação que o Código de Processo Civil, conforme
transcrito anteriormente, fala que o juiz será assistido por perito quando a prova do evento
[fato] depender de conhecimento técnico ou científico. Por que isso? Porque existe uma
linguagem técnica gravada (extrajurídica) sobre a qual a linguagem do direito deverá se
“debruçar” para apreender, na extensão necessária, o evento relevante para fins jurídicos.
Nesse contexto, suponha-se que um perito contábil tenha de verificar, em um caso
concreto, se na prática uma determinada empresa omitiu receitas, gerando, dessa forma, a
obrigação de pagar tributo não declarado ao Estado-fisco.
Se o perito gravar contabilmente (linguagem contábil) que no caso houve omissão
de receitas, o juiz acatará o laudo pericial ou assim deveria fazer, o que gerará efeitos
jurídicos específicos, quais sejam, a obrigação de pagar tributo sobre a receita não declarada
e a aplicação das penalidades decorrentes da infração apurada.
É verdade que o juiz pode não aceitar o laudo pericial e não está juridicamente
adstrito a ele, mas os peritos soem ser peritos do juízo, como se diz na práxis jurídica, de
modo que, se ao próprio juiz cabe a admissão da prova pericial e a convocação de um perito
do juízo, é porque a “linguagem técnica” da perícia será fundamento relevante para o juiz
descobrir a verdade sobre a omissão de receitas, conforme exemplo trazido.
Não faz muito sentido o contrário, ou seja, o juiz admitir a prova pericial, convocar
o perito do juízo, e não apreciar o laudo pericial para formação de sua convicção sobre a
omissão de receitas no caso, eis que essa “linguagem técnica” o juiz não possui, motivo pelo
qual, para descobrir a omissão de receitas, precisa de uma linguagem diferente da linguagem
jurídica, ou seja, precisa da linguagem contábil do perito.
Nesse caso, aceitando o juiz o laudo pericial sobre a omissão de receitas, o que está
a fazer é gravar dentro do direito uma linguagem técnica sobre um evento, linguagem esta
que, uma vez gravada, se torna jurídica (signo jurídico gravador). Há a gravação da
linguagem técnica na linguagem jurídica, mas a descoberta do evento passou pela linguagem
211
técnica do perito, pois que o juiz precisou dessa linguagem técnica para descobrir o evento
da omissão de receitas.
A verdade sobre o evento da omissão de receitas no caso narrado foi, então, ao fim,
descoberta por um profissional que a gravou ao juiz, pelo laudo pericial, uma gravação
técnica sobre um evento juridicamente relevante.
O juiz, por sua vez, admitindo a prova no processo, gravou essa linguagem técnica
juridicamente, implicando efeitos de direito às partes no processo (obrigação de pagar tributo
e penalidades pelo contribuinte inadimplente).
Ao se pensar na mesma questão com um olhar de common law, levando em
consideração o que Holmes chama de lei como fato e Ross chama de direito fático-
convencional (aqui se chama eventual-convencional para diferenciar evento de fato), o que
se tem é que a convicção do juiz deve estar atrelada à summa realidade – ao evento que
ocorre.
Não há opção, o juiz deve perquirir nos eventos acerca da irradiação dos efeitos de
direito, de modo que o foco que se dá é na jurisprudência, eis que ali já estão convicções
sobre eventos alcançadas pelo juiz, o que é o mesmo que dizer que a convenção jurídica já
“existe” e não depende tanto da lei em si, mas sim da apuração da ocorrência de eventos, os
quais, se já formaram convicção-convencional-jurídica, devem ser seguidos, sem uma
consideração restrita à lei.
É por esse motivo que Pound traz que o direito é uma instituição social, como já se
falou mais de uma vez. Se é social é porque é na linguagem social que o direito encontra seu
meio e seu fim. É, também, por isso que no realismo estadunidense e também no escandinavo
se defende que o papel do juiz não é lógico-dedutivo, mas objetivamente orientado no
sentido de apurar a ocorrência de eventos do mundo sensível, os quais são convencionados
pela experiência das gentes na linguagem ordinária.
A interpretação do juiz deve ser uma interpretação-investigação de eventos concretos
e não uma que seja lógico-dedutiva. A aplicação da lógica dedutiva ao direito sem chão no
evento ocorrido no mundo, previsto como passível de efeitos de direito, é letárgica ou até
mesmo uma forma de esquizofrenia. Esta forma patológica tem abatido como enxame as
cortes nacionais.
É por isso que a autoridade competente deve gravar a verdade jurídica, eis que é essa
também uma espécie de convenção. Não uma convenção que se forma pelo método dedutivo
da lógica clássica, mas sim um ajuste que se opera pelo método abdutivo da lógica peircena
212
aplicada ao direito no sentido de que a investigação no mundo sensível (de eventos)
permanente é que concorda o evento da conclusão com aqueles das premissas no silogismo
do direito.
Com isso é possível responder à seguinte pergunta: que verdade é essa, então, que
faz descobrir uma summa realidade intrajuridicamente? Como já se disse extensamente aqui,
é a verdade jurídica que se alcança pela aplicação do direito, a qual concorda a declaração
do legislador de uma ocorrência passível de gerar efeitos jurídicos com a gravação dessa
ocorrência que foi possível por meio de uma investigação que tende ao justo.
Porém, diga-se que essa concordância não é de nenhuma maneira arbitrária, ou seja,
a aplicação do direito não é arbitrariamente construída no sentido de ser alheia à summa
realidade. O julgado a seguir confirma esse entendimento, falando, inclusive, da perícia
contábil como meio de linguagem suporte a permitir a aplicação do direito por um juiz de
direito:
AGRAVO DE INSTRUMENTO - EMBARGOS DE TERCEIRO -
PERÍCIA CONTÁBIL - ESCLARECIMENTO DOS FATOS - BUSCA
DA VERDADE REAL.
O magistrado deve valer-se de todos os meios legais disponíveis para a
busca da verdade real, ou seja, o deferimento da prova pericial virá
acrescentar novas informações indicando um quadro probatório mais
amplo e instruído, formando um juízo de certeza e possibilitando um
julgamento mais justo e adequado na hipótese em questão.
NEGARAM PROVIMENTO.
(Processo:100240584656670021,MG1.0024.05.846566-
7/002(1),Relator(a):HELOISA
COMBAT,Julgamento:10/08/2006,Publicação:11/10/2006). (Destacou-
se).
Vê-se, assim, que a linguagem técnica que o perito possui, e que falta ao juiz, como
no caso de omissão de receitas já narrado, complementa a linguagem jurídica em busca de
uma verdade, a verdade real. Que seria essa verdade real que o magistrado deve buscar?
O que aqui se defende é que a verdade real é a verdade jurídica, ou seja, aquela que
se alcança pela aplicação do direito. Se é alcançada pela aplicação do direito, é porque
decorre de uma valoração sobre uma summa realidade.
Há momentos, inclusive, que a linguagem técnica é a única que deve prevalecer, sem
que, ao menos, possa o juiz raciocinar sobre ela, eis que a linguagem técnica prevalece desde
que respaldada pela legalidade. Veja o seguinte julgado:
TRIBUTÁRIO. PRODUTO IMPORTADO. SABÃO ANTIACNE.
CLASSIFICAÇÃO PERANTE À ANVISA COMO COSMÉTICO.
213
AUTORIDADE ADUANEIRA QUE ENTENDE SER
MEDICAMENTO. IMPOSSIBILIDADE. ATRIBUIÇÃO DA
AUTORIDADE SANITÁRIA (ANVISA) NA CLASSIFICAÇÃO DO
PRODUTO. RECURSO ESPECIAL PROVIDO.
1. Incumbe à ANVISA regulamentar, controlar e fiscalizar os produtos e
serviços que envolvam à saúde pública (art. 8o. da Lei 9.782/99).
2.Não pertence às atribuições fiscais e aduaneiras, alterar a
classificação de um produto, inclusive porque os seus agentes não
dispõem do conhecimento técnico-científico exigido para esse mister.
3.Produto classificado pela ANVISA como cosmético. Atribuição
privativa da Autoridade Sanitária, que refoge à competência da Autoridade
Aduaneira.
4.Recurso Especial do contribuinte provido para restabelecer a sentença de
fls. 974/975. (RECURSO ESPECIAL Nº 1.555.004 – SC, RELATOR
MINISTRO NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, publicado em
25/2/2016). (Destacou-se).
Decorre do caso apresentado, que não pode um órgão governamental (como a
autoridade aduaneira) gravar em linguagem jurídico-tributária uma summa realidade, em
relação à qual não tem conhecimento técnico para conhecer, o que implicou a prevalência
da linguagem técnica de outro órgão governamental (ANVISA) para gravar a realidade
relativa ao sabão antiacne, denotando-o dentro de uma classe de produtos, eis que esse órgão
é que tem a linguagem técnica necessária para dizer sobre essa realidade.
Nesse contexto, um ponto importante: a valoração da summa realidade não é somente
decorrente da linguagem das provas sobre a ocorrência de um evento passível de
consequências jurídicas. A summa realidade já foi, de alguma forma, gravada pelo próprio
legislador que gravou sua ocorrência em um signo jurídico. Logo, aplicar o direito é, pois,
sob qualquer perspectiva, uma forma direta ou indireta de gravar eventos do mundo.
Visto isso, diga-se agora que o Código de Processo Civil fala de fatos incontroversos.
Que seriam esses fatos incontroversos se a verdade jurídica é um ajuste juridicamente
estabelecido? Que seria esse fato incontroverso se, para a proposta deste estudo, a verdade
juridicamente convencionada é de alguma forma sempre atualizável?
Bem, partindo-se do fundamento que aqui se adota, o qual se filia ao realismo
peirceano, não é possível se falar em fato incontroverso, pois que o evento [fato] que fará
irromper efeitos jurídicos é sempre algo ajustado nos limites do direito e, pois, submetido à
teoria das provas, de modo que dependente de uma investigação jurídica para trazer crença
jurídica (tornar-se verdadeiro juridicamente). A teoria das provas não será tratada nesse
tópico, mas sim em um tópico mais adiante.
214
Portanto, partindo-se do princípio que qualquer investigação, seja ela científica ou
jurídica, sobre uma summa realidade, é uma investigação falível (falibilismo peirceano), o
que se tem é que o evento gravado, ainda que provado, está sempre em um signo-gravador
falível, haja vista que uma nova investigação poderia tender a trazer nova crença sobre esse
evento do mundo, alterando sua verdade.
É importante clarificar que a investigação científica não é exatamente igual à
investigação jurídica. Isso ocorre porque na investigação científica o grupo de mentes que a
desempenha é um grupo de mentes científica, sendo que na investigação jurídica o grupo de
mentes é jurídico, conforme se atentou anteriormente.
Isso implica em uma diferença de finalidade, eis que a finalidade da mente científica
é de gravação descritiva, ou seja, melhor gravar descritivamente a summa realidade, ou
melhor, as facetas dessa realidade que possam ser gravadas no processo de gravação
abstrata. Essa é uma finalidade preponderante.
Aqui não se é ingênuo para olvidar a ideia de que em qualquer gravação há outros
aspectos que são levados em consideração: aspectos culturais da comunidade de fala para a
qual a gravação se presta a servir, uma certa conveniência da gravação para permitir a
comunicação entre as pessoas dessa comunidade de fala, aspectos muitas vezes tão
subjetivos que nem ao menos é possível separá-los para compreensão.
Porém, uma coisa é certa, diante de uma investigação científica há uma finalidade
preponderante, a finalidade preponderante de se afastar aspectos intuitivos, de omnisciência
divina, os quais suplantam a razão, para se concentrar na melhor gravação do objeto que se
puder fazer e, principalmente, que a experimentação puder provar correta, ou melhor,
verdadeira. Trata-se de um summum bonum como diria Peirce. Não é necessário que esse
summum bonum seja alcançado, mas ele deve estar presente e ser preponderante no ideal do
cientista.
A diferença para o direito é justamente a finalidade. Não se acredita que a finalidade
do direito seja preponderantemente a de dirimir conflitos entre as gentes como uma primeira
ponderação poderia levar a crer. Isso quer parecer um ideal muito raso para o direito
malgrado ele também ser um dos aspectos considerados.
Acima já se falou: o direito busca pela investigação jurídica algo que tenda a uma
crença de justiça. Isso não quer dizer que a justiça possa ser alcançada na sua inteireza
exatamente igual ao que se diz sobre o summum bonum na investigação científica, o qual
215
tampouco o pode ser. Isso significa que a justiça é o ideal primeiro do direito e que quem o
aplica está ou deveria estar sempre buscando essa finalidade.
Isso não quer dizer que se faça justiça todos os dias nos casos concretos do direito,
mas sim que os seus aplicadores têm ou deveriam ter, de alguma forma, sempre esse norte
em mente, eis que a crença da justiça para a qual a investigação jurídica tende é ajustada por
uma mente de juristas e não de cientistas.
Isso é uma diferença muito relevante, pois que explica, por exemplo, as limitações
temporais no direito (preclusão, prescrição e decadência) e a relação do direito com o
passado consumado (irretroatividade, coisa julgada, ato jurídico perfeito, direito adquirido),
elementos que não são necessariamente justos quando considerados para fins das soluções
produzidas no direito, mas que são “convenientes” para que o direito continue a servir à
comunidade de fala e, porque não dizer, para almejar o justo. As questões relacionas às
limitações temporais e o relacionamento do direito com o passado consumado serão tratadas
na parte 5 desse trabalho.
Acredita-se aqui numa premissa fundamental: tal qual a investigação científica, ainda
que as finalidades sejam diferentes, a investigação jurídica também deságua em resultados
que são atualizáveis.
Isso quer dizer que, mesmo que haja uma decisão transitada em julgado, a qual em
algum momento teve por objeto a gravação dessa ocorrência de eventos, há sempre uma
tendência de que essa gravação sobre os eventos seja atualizada.
Por exemplo: se a Suprema Corte entende (Recurso Extraordinário 564.413) que a
imunidade das receitas de exportação prevista na CF/88 (§ 2º ao art. 149) para as
Contribuições Sociais não se aplica para a Contribuição Social Sobre o Lucro Líquido, uma
vez que a base de cálculo dessa é o lucro e não a receita, isso está sempre “em suspenso” e
pode a qualquer tempo ser atualizado.
Assim, em algum momento, talvez com uma nova composição de ministros, isso
poderá ser revisto (os eventos poderão ser revistos), analisando-se que contabilmente, por
exemplo, se há uma desoneração do “mais” que é a receita de exportação, por óbvio, que há
uma desoneração do “menos” que é o lucro decorrente dessa receita de exportação. Seria,
por sinal, absolutamente esquizofrênico não enxergar isso!
Nesse caso, o desfecho poderia parecer óbvio pela simples verificação da linguagem
contábil, ou seja, se a receita está desonerada, é evidente que o lucro também estará. Não há
dúvida aqui. Porém, a Suprema Corte não entendeu assim. Entendeu de maneira rasa que o
216
legislador constitucional quis atribuir a imunidade à receita e não ao lucro, de modo que não
se estenderia a imunidade à Contribuição Social Sobre o Lucro Líquido.
Que houve nesse caso? Já se falou que a problemática se resume muitas vezes à
interpretação de eventos como elemento anterior à aplicação do direito. Aquela composição
da Suprema Corte, naquele espaço e tempo históricos, gravou a ocorrência de eventos de
forma a não atribuir a imunidade à Contribuição Social Sobre o Lucro Líquido.
Foi para essa crença de justiça que tendeu a investigação jurídica à época. Trata-se
de um ajuste. Esse ajuste poderá ser reajustado em algum espaço e tempo históricos
diferentes da Suprema Corte, de modo que a conclusão é fulminante: a gravação de eventos
no direito é atualizável, de modo que a crença de justiça é falível, pois que há sempre uma
tendência de que, em algum espaço e tempo históricos, essa crença possa ser reajustada para
melhor reportar a summa realidade, realizando-se, assim, o ideal de justiça para o qual o
direito deve se direcionar.
A investigação jurídica é, pois, um continuum, o qual se direciona a buscar uma
crença de justiça, a qual, por ser falível, pode ser atualizada. A possibilidade de atualização
de uma decisão jurídica que gravou eventos é justamente o que traz certeza e segurança ao
direito e não o contrário como poderia parecer.
O Superior Tribunal de Justiça (“STJ”) e a próprio Suprema Corte têm com alguma
frequência mudado de posicionamento sobre questões, cuja decisão já havia transitado em
julgado. Foi assim no que diz respeito ao caso do crédito-prêmio (Recurso Extraordinário
561.485) do Imposto Sobre Produtos Industrializados (“IPI”), no caso da não incidência do
IPI no mercado interno sobre produto importado para revenda (Embargos de Divergência no
Recurso Especial 1.411.749/PR e Embargos de Divergência no Recurso Especial
1.403.532/SC), e pode ser assim no caso da exclusão do ICMS da base de cálculo do PIS e
da COFINS (Recurso Extraordinário 240785/MG e Recurso Extraordinário 574706/PR).
Para que reste claro que a crença que se estabelece juridicamente é atualizável, pois
que há um continnum de investigação dos eventos, veja-se, por pertinente aos casos
mencionados, como o STJ em 2014 tinha um entendimento sobre o caso da incidência do
IPI na revenda do produto importado e, em 2015, mudou sua crença sobre o mesmo caso.
Para aqueles que não estão familiarizados com as discussões tributárias, basta dizer
que o IPI incide sobre a industrialização de produtos, mas fictamente incide também sobre a
importação de produtos. A discussão gira em torno da possibilidade ou não de incidir duas
217
vezes: na importação do produto e na revenda do mesmo produto no mercado interno sem
que haja qualquer industrialização.
O STJ consolidou a jurisprudência para dizer o seguinte:
EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA EM RESP Nº 1.411.749 – PR
TRIBUTÁRIO. EMPRESA COMERCIAL IMPORTADORA. FATO
GERADOR DO IPI OCORRENTE NO ATO DO DESEMBARAÇO
ADUANEIRO. INADMISSIBILIDADE DE NOVA EXIGÊNCIA DO
MESMO IMPOSTO NA VENDA DO PRODUTO IMPORTADO AO
CONSUMIDOR FINAL NÃO CONTRIBUINTE DESSA EXAÇÃO.
ORIENTAÇÃO JURISPRUDENCIAL CONSOLIDADA. NÃO
OCORRÊNCIA DE MUDANÇA NORMATIVA OU DE DECISÃO DO
STF EM SEDE CONCENTRADA. PROIBIÇÃO DE RETROCESSO EM
MATÉRIA TRIBUTÁRIA, INCLUSIVE NA VIA JUDICIAL,
SALVANTE INOVAÇÃO LEGISLATIVA OU PRONUNCIAMENTO
VINCULANTE DA SUPREMA CORTE. AFASTAMENTO DA
SURPRESA. REGRA DE GARANTIA. PREVALÊNCIA DO
ENTENDIMENTO DA 1a. TURMA DO STJ, NO JULGAMENTO DO
RESP 841.269/BA, DA RELATORIA DO MINISTRO FRANCISCO
FALCÃO (DJe 14.12.2006).
EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA ACOLHIDOS. (Destacou-se).
Menos de um ano depois, o STJ mudou seu entendimento, conforme a seguinte
ementa:
EMENTA EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA EM RECURSO
ESPECIAL. DIREITO TRIBUTÁRIO. IMPOSTO SOBRE PRODUTOS
INDUSTRIALIZADOS - IPI. FATO GERADOR. INCIDÊNCIA
SOBRE OS IMPORTADORES NA REVENDA DE PRODUTOS DE
PROCEDÊNCIA ESTRANGEIRA. FATO GERADOR
AUTORIZADO PELO ART. 46, II, C/C 51, PARÁGRAFO ÚNICO
DO CTN. SUJEIÇÃO PASSIVA AUTORIZADA PELO ART. 51, II,
DO CTN, C/C ART. 4º, I, DA LEI N. 4.502/64. PREVISÃO NOS
ARTS. 9, I E 35, II, DO RIPI/2010 (DECRETO N. 7.212/2010).
[...]
2. Não há qualquer ilegalidade na incidência do IPI na saída dos
produtos de procedência estrangeira do estabelecimento do
importador, já que equiparado a industrial pelo art. 4º, I, da Lei n.
4.502/64, com a permissão dada pelo art. 51, II, do CTN. (Destacou-se).
Não resta dúvida, pois, que a crença jurídica é atualizável, eis que em 2014 o STJ
entendeu que o IPI não podia incidir na revenda do produto importado, pois isso
caracterizaria um bis in idem e, no ano seguinte, sem que se alterasse qualquer previsão legal
ou realidade dos eventos do mundo e, mantendo a mesma composição do tribunal, mudou
de ideia, dizendo justamente o contrário, ou seja, de que não haveria qualquer ilegalidade
nessa incidência.
218
Sem que se adentre nos pormenores tributários das decisões, pois não cabe aqui esse
exame, o que se deve repisar é que claramente a crença de justiça do direito é temporária. O
cronometro jurídico continua correndo e é possível se ajustar nova crença, ressalte-se, sobre
os mesmos eventos do mundo.
Que houve, então? Uma nova gravação dos eventos. Parece difícil visualizar isso,
mas não é. Basta um olhar atento. Já se disse que a interpretação jurídica de uma forma
mediata ou imediata acaba por gravar a ocorrência de eventos, eis que eventos são gravados
tanto pelo legislador, para prever o signo jurídico aplicável, como pela autoridade aplicadora
do direito, a qual interpretará a ocorrência de eventos.
Por que isso ocorre? Porque há, de uma forma ou de outra, um direito subjetivo
envolvido, mesmo em ações diretas de inconstitucionalidade e, quando há um direito
subjetivo envolvido e, um aplicador do direito é chamado para gravar algo em relação a esse
direito subjetivo, é porque esse algo soe se referir a um evento ou situação relativa a esse
evento que está sendo contraposta de alguma forma. Se é assim, é porque, também, de uma
forma ou de outra, o aplicador do direito gravará na sua interpretação a ocorrência de
eventos, podendo ter uma crença sobre eles e depois, com um olhar mais atento, mudar sua
crença.
No caso do IPI, uma empresa importadora alegava que seu direito subjetivo estava
sendo violado, pois que a revenda do produto importado não podia sofrer nova incidência
do IPI que já havia incidido na importação. Isso é uma questão sobre ocorrência de eventos,
eis que é preciso verificar, por exemplo, se há uma industrialização do produto importado
ou não, o que poderia justificar a tributação ou o afastamento da incidência.
O STJ, analisando, de forma direta ou indireta, essa questão sobre eventos,
estabeleceu uma crença de que, não havendo industrialização, entre outras coisas, não
poderia haver nova incidência do IPI. No ano seguinte, analisando a mesma questão sobre
eventos, o mesmo STJ mudou de ideia, estabelecendo uma crença atualizada de que a lei
autorizaria a incidência do IPI sobre eventos diferentes, quais sejam: a importação e também
a revenda. O STJ gravou, de forma direta ou indireta, a ocorrência de eventos. Isso quer dizer
o quê? Quer dizer que a crença anterior era falível e, portanto, atualizável. Não parece
haver dúvidas sobre isso.
219
É justamente por isso que a ocorrência de eventos [fatos] incontroversos, conforme
designação do Código de Processo Civil, não “existe”, pois que se a gravação de eventos14,
como ocorreu no caso do IPI na revenda do produto importado, pode ser atualizada de um
ano para o outro pelo STJ, isso quer dizer que a ocorrência de eventos [fatos] incontroversos
não é possível.
Viu-se aqui alguns trechos da legislação de regência, nos quais se faz referência a
fatos jurídicos e/ou a fatos eles mesmos na nomenclatura utilizada pelo legislador, a qual
aqui se discorda, motivo pelo qual, quando possível, foi substituída por evento. Nas linhas
vindouras, trar-se-á o posicionamento de alguns dogmáticos do direito sobre o tema do fato
jurídico.
4.2 Fato Jurídico na Dogmática Jurídica
Em primeiro lugar, antes de se adentrar na ciência do direito que trata do tema do
fato[evento] jurídico15, importa trazer, como já se disse, que a ciência jurídica ela mesma é
uma linguagem gravadora sobre a linguagem jurídica (linguagem gravada nesse caso).
Esclareça-se que, dizer linguagem gravadora e linguagem gravada não é o mesmo que dizer
linguagem objeto e metalinguagem, eis que o processo de gravação implica prolongamento
e não construção ou criação de uma nova linguagem desvinculada da anterior.
Visto isso, diga-se que há vários cientistas jurídicos que tratam do tema do
fato[evento] jurídico, como é chamado na teoria geral do direito e filosofia do direito, ainda
que aqui se discorde dessa nomenclatura, eis que se prefere evento jurídico mesmo quando
referente àquilo que está na linguagem do direito. Porém, utilizar-se-á o nome como posto
na ciência do direito, falando-se de evento, quando possível, para fins da ocorrência no
mundo sensível.
Reale (2001, p.187-188) traz o seguinte sobre fato[evento] e fato[evento] jurídico:
Devemos entender, pois, que o Direito se origina do fato, porque, sem
que haja um acontecimento ou evento, não há base para que se
estabeleça um vínculo de significação jurídica. Isto, porém, não implica
a redução do Direito ao fato, tampouco em pensar que o fato seja mero fato
14 Para o que aqui se defende a nomenclatura “fato” para fins do direito é equívoca, de modo que se tenta ao
longo de todo o texto substitui-la por “evento”. No entanto, quando a referência é a um dizer da lei mesma,
mantem-se a nomenclatura como está na lei para não se alterar o que o legislador disse, mas na sequência já se
retorna à nomenclatura que se entende correta. 15 Aqui vai se deixar a nomenclatura “fato jurídico”, eis que é como a doutrina chama, colocando-se evento
quando se referir ao mundo sensível, nesse caso, evitando-se, a nomenclatura fato.
220
bruto, pois os fatos, dos quais se origina o Direito, são fatos humanos ou
fatos naturais objeto de valorações humanas.
Quando falamos, todavia, em fato jurídico, não nos referimos ao fato
como algo anterior ou exterior ao Direito, e de que o Direito se origine,
mas sim a um fato juridicamente qualificado, um evento ao qual as
normas jurídicas já atribuíram determinadas consequências,
configurando-o e tipificando-o objetivamente. Nada mais errôneo, por
conseguinte, do que confundir fato com fato jurídico.
[...]
O fato, por conseguinte, pode ser visto como elemento de mediação entre
os dois elementos que compõem a regra de direito: entre a previsão
que há nesta de um fato-tipo, e o efeito que ela atribui à ocorrência ou
não do fato genericamente previsto.
[...]
Outra distinção fundamental é a que se faz entre o fato em sentido
estrito, como acontecimento natural não volitivo, e ato, como fato
resultante da volição humana (comportamento). (Destacou-se).
Diante da genialidade de suas palavras, bastaria que se parasse por aqui, mas
desenvolve-se o tema a partir daqui para explicar o fato[evento] jurídico a partir da doutrina
de Reale e de outros teóricos do direito.
Em primeiro lugar, Reale deixa claro um ponto já trazido nas linhas pretéritas,
fato[evento] é uma dualidade, é dizer, há gravação de uma linguagem a partir de outra
linguagem, que pode ser médica, jurídica, sociológica, etc., do que decorre poder se falar em
fato[evento] médico, jurídico, sociológico etc., mas há também uma summa realidade
gravada.
Reale estabelece ainda que o direito se origina do fato[evento]16, falando que há a
necessidade de um acontecimento ou evento previsto no direito para que sejam gerados
efeitos jurídicos. Assim, para Reale, o fato[evento] que gera efeitos de direito se relaciona
com um acontecimento ou evento, cuja gravação em signo jurídico poderá fazer irromper
efeitos de direito.
Há, pois, um evento exterior ao direito, pois quando se fala em fato[evento] jurídico
é porque o evento exterior já se tornou interior (intrajuridicidade), pois já foi gravado na
linguagem do direito. Reale deixa claro que não se deve confundir fato[evento] com
fato[evento] jurídico.
Assim, segundo Reale, há no direito uma previsão de um fato[evento]-tipo, cuja
ocorrência objetiva gerará efeitos de direito. Há, pois, um signo geral ou potencial, o qual
16 Coloca-se em colchetes para apresentar como deveria a nomenclatura pelo que aqui se defende ser utilizada.
221
grava que determinadas ocorrências implicarão, se gravadas na linguagem do direito, efeitos
igualmente de direito.
Construindo sua clássica teoria tridimensional, Reale (2000, 5 ed., p. 8) traz que:
“Segundo a concepção tridimensional, o Direito é síntese ou integração de ser e de dever ser,
é fato e é norma, pois é o fato integrado na norma exigida pelo valor a realizar”.
Explicando com mais detalhes a teoria, Reale (2000, 19 ed., p. 540) pontua o
seguinte:
Eis aí, portanto, através de um estudo sumário da experiência das
estimativas históricas, como os significados da palavra Direito se
delinearam segundo três elementos fundamentais: — o elemento valor,
como intuição primordial; o elemento norma, como medida de
concreção do valioso no plano da conduta social; e, finalmente, o
elemento fato, como condição da conduta, base empírica da ligação
intersubjetiva, coincidindo a análise histórica com a da realidade
jurídica fenomenologicamente observada. Encontraremos sempre estes
três elementos, onde quer que se encontre a experiência jurídica: — fato,
valor e norma. Donde podemos concluir, dizendo que a palavra Direito
pode ser apreciada, por abstração, em tríplice sentido, segundo três
perspectivas dominantes:
1) o Direito como valor do justo, estudado pela Filosofia do Direito na
parte denominada Deontologia Jurídica, ou, no plano empírico e
pragmático, pela Política do Direito;
2) o Direito como norma ordenadora da conduta, objeto da Ciência do
Direito ou Jurisprudência; e da Filosofia do Direito no plano
epistemológico;
3) o Direito como fato social e histórico, objeto da História, da Sociologia
e da Etnologia do Direito; e da Filosofia do Direito, na parte da
Culturologia Jurídica. (Destacou-se).
Na concepção tridimensional do direito, Reale unifica os três elementos que ele
considera preponderantes no fenômeno jurídico e, no que diz respeito ao fato[evento], traz
que esse se integra à norma jurídica, de modo que direito também é fato[evento]. O
fato[evento] é, assim, condição da conduta, coincidindo a análise histórica com a realidade
jurídica observada.
Reale une ao jurídico, igualmente, o valor justiça, de modo que a norma jurídica deve
estar impregnada pelo valor do justo. O fato [fato] que implica a geração de efeitos de direito,
tem de gerar, na concepção de Reale, segundo se interpreta aqui, efeitos jurídicos que sejam
justos. Esse é o efeito jurídico desejado em decorrência da condição da conduta que é o
fato[evento].
Portanto, a regra que grava um fato[evento]-tipo, cujo gatilho é um fato[evento]-
bruto, deve gravar um fato[evento]-tipo passível de proporcionar efeitos jurídicos que se
222
direcionem (como ideal) a implicar justiça diante da convenção jurídica (crença jurídica) que
se estabelece sobre a ocorrência dos fatos[eventos]-brutos.
Como se disse anteriormente, se para o direito penal, em relação ao crime de
falsidade ideológica, o que importa é que o fato[evento], para ser juridicamente relevante,
seja capaz de gerar efeitos nocivos a direitos subjetivos, na concepção de Reale, segundo se
interpreta aqui, esses efeitos nocivos têm de ser analisados como juridicamente relevantes
diante de uma perspectiva que considere o valor justiça como resultante inegável em que se
direciona a aplicação do direito.
Assim, os meios de provas têm de ser utilizados para gravar fatos[eventos] que se
direcionem a implicar consequências justamente convencionadas (no sentido de impostas)
no âmbito jurídico, de modo que, ao fim, o fato[evento] também deve ser de alguma forma
justo, assim como a norma que grava o fato[evento] também deve se direcionar ao justo.
Se o fato[evento] integra norma, isso implica que ambos devem ser orientados pelo
valor justiça para que a teoria tridimensional de Reale seja aplicada. Porém, se justiça como
valor é um ideal inalcançável, a interpretação que faria mais sentido da teoria tridimensional
de Reale é de que os valores que são caros ao direito, tal qual o valor justiça, são, em
realidade, uma direção a seguir, como que uma bússola que aponta para um norte, mas não
estão na norma propriamente dita, como tampouco estão no direito, mas são a trave por sobre
a qual o direito caminha e se equilibra.
Telles Jr. (2011, p. 283) navega em águas parecidas às de Reale, conforme se verifica
a seguir:
Todo evento que determina nascimento, aquisição, exercício, modificação,
transmissão e extinção de Direito Subjetivo é o que se chama FATO
JURÍDICO.
[...]
O fato jurídico pode ser definido, com simplicidade, nos seguintes
termos: EVENTO QUE TEM EFEITO JURÍDICO.
Os fatos jurídicos se dividem em:
1) fatos jurídicos da natureza; e
2) fatos jurídicos da vontade.
Os fatos jurídicos da natureza são os fatos cujos efeitos jurídicos
dependem diretamente de eventos do mundo físico.
[...]
Os fatos jurídicos da vontade são os fatos cujos efeitos jurídicos
dependem diretamente da vontade humana. (Destacou-se).
Para Telles Jr. o fato[evento] jurídico é um evento que tem efeito jurídico e pode ser
da natureza no sentido de que não necessita da ação do homem para ocorrer ou da vontade
223
no sentido de que necessita da vontade do homem para ocorrer (como é o caso dos atos
jurídicos, os quais estão, em alguma medida, compreendidos pelos fatos[eventos] jurídicos).
De qualquer forma, importa dizer que, dependendo ou não da vontade do homem
para ocorrer, um evento que implica efeitos jurídicos deve ter alguém para gravá-lo, sob
pena de não se conhecer da sua ocorrência, de modo que, ao fim, uma articulação do homem
será necessária para gravar um determinado evento, seja ele natural ou de vontade.
Monteiro (2016, p. 231), por sua vez, diferenciando fato[evento] jurídico de ato
jurídico assim se pronuncia:
Do exposto se dá conta da diferenciação conceitual entre fato jurídico
e ato jurídico. Em sentido amplo, o primeiro compreende o segundo,
aquele é o gênero, de que este é a espécie. Em sentido restrito, porém,
fato jurídico é acontecimento natural, independente da vontade
interna, enquanto ato jurídico é acontecimento voluntário, fruto da
inteligência e da vontade, querido e desejado pelo interessado. Há,
destarte, entre as duas noções, uma oposição técnica fundamental: aos
fatos, acontecimentos casuais, contrapõem-se os atos, acontecimentos
voluntários. Quanto aos atos ilícitos, posto sejam ações humanas, incluem-
se entre os primeiros, entre os fatos, já que seus efeitos jurídicos são
involuntários. (Destacou-se).
Monteiro traz que fatos[eventos] jurídicos são acontecimentos naturais. Aqui parece
haver um equívoco em Monteiro, eis que fato[evento] é uma dualidade. O fato[evento]
jurídico, considerando-se por hipótese ser possível falar em fato[evento] jurídico, pois, não
pode ser um acontecimento natural, pois que sua linguagem é diferente da linguagem do
acontecimento natural. Acontecimento natural é o evento e não o fato. O fato[evento]
jurídico, como se disse, é uma linguagem gravadora, seu referente é um acontecimento
natural – o evento. Há, portanto, uma dicotomia necessária, o que talvez não tenha sido
notado por Monteiro.
Monteiro (2016, p. 231), no entanto, reforça a ideia de que o acontecimento
voluntário com efeitos jurídicos é referente de um ato jurídico, mas que, como gravação
geral, acaba sendo compreendido no gênero fato[evento] jurídico, do qual o ato jurídico seria
uma espécie. Não se trabalhará aqui com a diferença entre fato[evento] jurídico e ato
jurídico, partindo-se do pressuposto de que o fato[evento] jurídico engloba o ato jurídico.
Miranda (2012, Tomo I, p. 59) posiciona-se no seguinte sentido sobre o tema:
Quando se fala de fatos alude-se a algo que ocorreu, ou ocorre, ou vai
ocorrer. O mundo mesmo em que vemos acontecerem os fatos, é a soma
de todos os fatos que ocorreram e o campo em que os fatos futuros se vão
224
dar. Por isso mesmo, só se vê o fato como novum no mundo. Temos,
porém, no trato do direito, de discernir o mundo jurídico e o que, no
mundo, não é mundo jurídico. (Destacou-se).
Miranda na sua genialidade parece ter previsto a “existência” das potencialidades na
linha dos contingentes futuros de Aristóteles, dos quais fala Peirce, como já mencionado.
Além disso, a ideia de fato[evento] futuro também pode se coadunar com a ideia de prime
matter no escotismo, ou seja, com a ideia daquela entidade positiva que não é nem universal
e nem particular e que tem a potencialidade de junto com substância material levar pela
haecceitas ao processo de individuação, restando, pois, em suspensão como mera
potencialidade de ter características reais.
Ross (1963, p. 209-2011) trata o tema do fato[evento] jurídico sob a perspectiva do
que chama fatos[eventos] operativos:
toda aplicação do direito tem como fundamento fatos condicionantes
cuja existência o juiz considera provada. O conteúdo das normas
jurídicas aplicadas determina quais são os fatos relevantes para a decisão.
Os fatos relevantes para a decisão são denominados fatos operativos.
[...]
os fatos operativos podem ser especificamente relevantes (‘criadores’), ou
meramente condicionantes.
[...]
O direito pode fazer com que quase todas as circunstâncias
imagináveis sejam fatos operativos, sempre que possam ser descritas
em termos da linguagem cotidiana.
[...]
Um fato criador específico deve ser definido como aquele que por regra
geral, isto é, ao menos que existam fundamentos especiais de exclusão,
produz um efeito jurídico específico.
[...]
Alguns fatos operativos são descritos como condições (estado de
coisas), que incluem qualidades de pessoas ou de coisas, enquanto que
outros são descritos como acontecimentos, é dizer, como câmbios em
uma condição existente.
[...]
Dentro dos fatos operativos que consistem em acontecimentos, é
importante distinguir entre sucessos e atos, posto que só os últimos
suscitam problemas relativos à capacidade mental, mens rea, culpa e outras
circunstâncias psicológicas que condicionam a consequência jurídica.
(Destacou-se).
Para Ross, os fatos[eventos] funcionam como operadores de efeitos jurídicos. Se o
fato[evento] for criador, criará efeitos jurídicos, a não ser que haja um fundamento de
exclusão.
225
Em Ross, os fatos[eventos] operativos podem ser descritos como condições ou
acontecimentos, sendo que condições podem ser reduzidas a acontecimentos, como no caso
da condição de ter uma certa idade ser reduzida ao fato[evento] de ter nascido há certo
tempo.
Ross submete a linguagem jurídica à “linguagem cotidiana”, o que se interpreta aqui,
como a linguagem ordinária/social articulada em uma língua. Assim, as condições e
acontecimentos gravados para gerar efeitos de direito são aquelas que podem ser gravados
em uma linguagem cotidiana/social articulada numa língua, o que justifica reforçar que a
linguagem jurídica é de gravação sobre uma linguagem ordinária/cotidiana/social articulada
em uma língua que é uma linguagem gravada.
A aplicação do direito em uma decisão judicial, para Ross, pressupõe que a
“existência” de fatos[eventos] seja considerada provada pelo juiz. Isso é muito relevante, eis
que se o fato[evento] deve ser considerado provado para o juiz decidir, isso implica que sem
fato[evento] não há decisão judicial.
ARAUJO (2005, p. 55) diferencia eventos e fatos, trazendo que eventos são “uma
porção do contínuo espaço-temporal, ou acontecimentos gerais observáveis; fenômenos”,
sendo que fatos “não são entidades ‘reais’, mas são articulações linguísticas acerca da
realidade”. Com muita acuidade Araujo distinguiu fato de evento, o que servirá de suporte
firme dos dizeres postos nesse trabalho.
A teoria jurídica consultada, por qualquer ângulo que se olhe, aponta para a
necessidade da verificação de fatos[eventos] para que se irrompam as consequências
jurídicas gravadas em signos jurídicos postos no sistema.
Os autores e obras mencionados trabalham, também, com a ideia de que o
fato[evento] é um acontecimento natural isolado ou cuja presença do homem é verificada.
Isso aponta para o que se pode chamar, também, realidade objetal (acontecimentos naturais)
e realidade antropomórfica (acontecimentos nos quais participa o homem com sua vontade
mediando). Em ambos os casos (realidade objetal e antropomórfica), se trata da summa
realidade, sendo que o resultado da intervenção do homem gravado em signos é que se
chama aqui realidade semeiótica.
Outro ponto que deve ser ressaltado sobre a doutrina consultada, é que Reale, Telles
Jr. e Araujo trabalham expressamente com a diferença entre fato e evento, tema que será
enfrentado mais adiante neste trabalho.
226
Neste momento, um ponto que precisa ser melhor estudado diz respeito à gravação
dos fatos[eventos], eis que, como dito, o juiz deve considerar, na linha do que traz Ross, que
fatos[eventos] foram provados (gravados) para que promulgue sua decisão. Tratar-se-á, na
sequência, da gravação dos fatos[eventos] dentro da linguagem do direito.
4.3 Processos de Gravação Judicial
Um ponto que merece ser ressaltado diz respeito à circunstância de que o que se
conhece judicialmente acerca da ocorrência de eventos diz com a gravação sobre eles.
Isso quer dizer que, ao cabo, o ponto de partida jurídico acerca de um evento é uma
gravação no signo de direito, o qual se encontra no texto de lei produzido pelo legislador a
partir de eventos do mundo sensível.
Quando um advogado leva ao conhecimento de um juiz um evento, diga-se, acerca
da separação de um casal e, pleiteia que seja reconhecida essa separação, o que ocorre é que
esse advogado está levando ao juiz uma espécie de gravação, ou ao menos assim deveria
estar procedendo, acerca de um acontecimento da vida do casal que culminou na separação.
Na sua petição, o advogado requer o reconhecimento judicial da ocorrência desse evento
(separação), diante do que efeitos jurídicos serão irradiados para o casal e terceiros.
Assim, a gravação levada pelo advogado ao juiz é uma gravação de uma ocorrência
social fora do direito, sobre uma ruptura emocional, que culminou na separação, levando a
que o casal procurasse um advogado. Esse advogado será responsável por levar a gravação
de um evento a um juiz, o qual poderá reconhecer juridicamente, diante de uma outra
gravação (judicial) que o casal está de direito separado.
Um ponto de atenção é que a gravação do advogado levada ao juiz é uma gravação
de uma outra gravação, eis que o que faz o advogado no caso é, juridicamente, acomodar a
gravação da linguagem cotidiana levada pelo casal ao advogado nos moldes aceitos pelo
direito para fins de um processo de gravação jurídica. O direito também prevê como
processos de gravação devem ser levados a efeito juridicamente (condições da ação,
pressupostos de admissibilidade etc.).
Volte-se ao exemplo. O casal ele mesmo leva ao advogado por meio de signos-
gravadores sociais falados (normalmente) um acontecimento de sua vida (a separação por
conta de uma, diga-se, ruptura emocional). O casal imprime nos significantes orais por ele
fisiologicamente emitidos pelo órgão de fonação o evento da sua separação ou de uma
coleção de eventos que culminou nessa separação.
227
O advogado acomoda essa impressão numa estampa juridicamente aceita, levando
ao juiz competente uma espécie de gravação jurídica do signo da linguagem cotidiana trazio
a ele pelo casal. O juiz competente, então, pode reconhecer por meio de uma nova gravação
o evento da separação do casal, para, assim, fazer irromper os efeitos previstos no direito,
dentre eles: a partilha dos bens, a guarda dos filhos menores, a possibilidade de poderem
contrair matrimônio com efeitos civis novamente etc. Esses são os efeitos provocados por
conta do processo de gravação jurídico de um evento ocorrido.
O juiz de direito, recebendo a gravação do advogado e seu pedido pelo
reconhecimento do divórcio do casal, grava que, diante daquela gravação e do pleito e diante
da opinião favorável do Ministério Público, o casal está legalmente divorciado (grava o
divórcio do casal que tal evento desencadeará consequências jurídicas). Ao fazê-lo o juiz
valorou uma gravação de um advogado sobre uma gravação de um casal na linguagem
cotidiana de um evento ou conjunto de eventos ocorridos na summa realidade.
O juiz grava, entre outras coisas, que diante da ocorrência de eventos, deve ser uma
partilha de bens entre o casal de um apartamento para uma parte, uma casa para a outra, etc.,
e o faz diante da prova (ou gravação) nos autos posta pelo advogado de que existe um
certificado de uma propriedade compartilhada entre as partes (que também é uma espécie de
gravação), ou seja, diante da ocorrência de outro evento (o que inclui, pelo que aqui se
entende, um estado de coisas ou pessoas) de que as partes são proprietárias de um
apartamento e uma casa.
O juiz, assim, aprecia a ocorrência de eventos gravados pelo advogado: o evento em
que se comprou um apartamento e se registrou o contrato respectivo no cartório de registro
de imóveis e o mesmo em relação à casa. Valora, igualmente, que o certificado de casamento
do casal comprova que o mesmo se casou no regime de comunhão parcial de bens, ou seja,
o evento de que o casal optou por esse regime de bens no casamento (o ato é compreendido
no evento [fato] como já se viu).
Supondo que o casal tenha filhos menores e as partes tenham pleiteado uma guarda
compartilhada dos menores, concordando com isso o Ministério Público, o que ocorre, ainda,
é que o juiz grava que diante do evento de que os menores nasceram e foram registrados sob
a paternidade de um e maternidade de outro, conforme certificado de nascimento, deve ser
que a guarda seja compartilhada entre eles.
O que faz o juiz, então, sobre a separação do casal e sobre a partilha e guarda dos
filhos? O juiz valora a ocorrência de eventos e grava juridicamente os mesmos, o que implica
228
um efeito realizativo (na linha de Austin) do direito, implicando o surgimento de direitos e
deveres respectivos, isso com base na experiência acerca de eventos e que foram gravados
nos termos requeridos pela linguagem jurídica.
Suponha-se, no entanto, para apimentar o estudo, que o registro de nascimento
apresentado pelos pais seja forjado e que, mediante uma denúncia anônima ao Ministério
Público, a gravação sobre a ocorrência do evento da falsidade do registro chegue ao juiz
competente da causa.
Diante disso, suponha-se que o juiz grave que, diante dos novos eventos, deve ser a
anulação da guarda compartilhada e, mais do que isso, deve ser que os menores sejam
enviados à assistência social e que se inicie um processo de adoção para que futuros pais
adotivos se manifestem sobre a intenção pela adoção dos menores.
Que será da gravação anterior do juiz que gravou a guarda compartilhada e valorou
a prova da paternidade e maternidade dos pais dos menores? Será que essa gravação gravou
uma ocorrência de um evento falso e, portanto, é também falsa?
Taruffo (s.d., p. 134), em que pese tratar do tema sob o ponto de vista de uma
narrativa judicial, ajuda a responder essas perguntas com propriedade:
Em realidade, os fatos do caso podem ser identificados como tais e ser
separados das dimensões jurídicas do caso. Por certo que quando se fala
de fatos em sua existência material e empírica: as narrações só podem
se referir a “declaraçãos acerca de fatos”. Um declaração acerca de
um fato, é qualquer declaração em que se descreve que um evento
ocorreu “de tal e qual maneira” no mundo real (o que, por suposto, se
assume existente e não meramente imaginado ou sonhado). Na medida
que descreve algo que se assevera haver ocorrido no domínio da
realidade, esse declaração é aponfântico, isto é: pode ser verdadeiro ou
falso.
[...]
De fato, os acontecimentos que são relevantes na administração da justiça
são tranches de vie, é dizer, eventos ou conjuntos de efeitos que têm de ver
com a vida das gentes. Isso significa que normalmente eles podem ser
determinados em um nível macro: inclusive quando resultem envoltas a
microfísica ou genética, o objetivo final é sempre provar “um fato da
vida das gentes”. Normalmente, eles podem ser determinados com
suficiente especificidade por referência a uma situação jurídica dos
sujeitos envolvidos. (Destacou-se).
Com base nos dizeres de Taruffo, tem-se, pois, que a gravação do juiz no caso da
paternidade e maternidade dos pais divorciados sobre a guarda compartilhada é falsa, sob a
perspectiva da lógica do verdadeiro ou falso. É falsa, pois que gravou eventos cuja
ocorrência no mundo real não correspondem.
229
Uma gravação jurídica é uma gravação sobre a ocorrência de um evento da vida das
gentes que o juiz quer provar, como diz Taruffo, gentes essas abarcadas também pela
gravação. É por isso que qualquer palavra ou sequência delas, como numa gravação
semeiótica, é um signo, no sentido de que a gravação grava uma situação relativa à vida dos
sujeitos.
Aqui uma conclusão fulminante: o evento relevante juridicamente é todo evento da
vida das gentes que possa resultar efeitos jurídicos, é dizer, é toda ocorrência de evento que
esteja gravado em um signo jurídico como passível de irradiar resultados juridicamente
relevantes.
Taruffo (s.d., p. 136) adota essa linha:
O padrão para avaliar a relevância é duplo: um fato é juridicamente
relevante (na gíria jurídica norte-americana “material”) quando
corresponde a um suposto de fato definido por uma norma jurídica que se
considera possivelmente aplicável ao caso. As regras definem “tipos de
fatos” (“Fac-types”) e os fatos concretos são relevantes (como “fac-
tolken”) quando correspondem a esses tipos. Então, os fatos
juridicamente relevantes são definidos como tais por referência a uma
norma que é vislumbrada como padrão para tomar a decisão final:
esses fatos são os facta probanda básicos, isto é, o objeto principal de
prova, e por tanto o conteúdo das asserções fáticas mais importantes.
(Destacou-se).
Com fundamento em Taruffo, o que se tem é, pois, que o legislador grava, entre os
eventos da vida das gentes, aqueles relevantes juridicamente para irradiar efeitos também
jurídicos, gravando-os em um signo geral de possível ocorrência. Trata-se de um signo de
um evento da vida das gentes de potencial ocorrência e relevante juridicamente.
A pedra de toque aqui é que, diante do que aqui se defende, a gravação do legislador,
para fins dessa regra padrão sobre um evento da vida das gentes de possível ocorrência e
relevante juridicamente, deve ter uma relação, ainda que mediata, com a experiência sensível
(realismo peirceano).
O que se nega aqui é que possa o legislador gravar eventos da vida das gentes que
não possam ser gravados na linguagem cotidiana (para usar a nomenclatura de Ross). Nesse
sentido, o processo de gravação legislativa não é de todo livre, eis que o evento passível de
gerar consequências jurídicas, gravável pelo legislador, é um daqueles da vida das gentes e
que, nesse piso, pode ser gravado na linguagem das gentes, a qual, repita-se, deve se articular
pelo meio de expressão de uma língua.
230
Veja-se que o uso do verbo gravar aqui resolve boa parte dos problemas em relação
à necessidade de se tocar a realidade sensível no processo de gravação do expediente
legislativo. Isso porque gravar, como numa câmera de filmagem, não pode implicar numa
criação do evento, eis que a câmera que filma (grava) o evento é como que um
prolongamento desse evento, num processo que se chama aqui simbiótico.
O percurso jurídico, pois, não escapa da fulminante verdade de que a experiência e,
dessa forma, a linguagem social, estabelecem-se como uma linguagem gravada que a
linguagem gravadora do direito deve considerar para que seja possível gravar
juridicamente.
Isso deve ser atribuído ao legislador que grava os fatos[eventos]-tipo, conforme
nomenclatura de Reale, passíveis de efeitos jurídicos e também ao juiz que interpreta e aplica
a gravação jurídica padrão presente no sistema, de modo que, esse último, tampouco pode
gravar a ocorrência de eventos que não digam respeito àqueles da vida das gentes e, pois,
que possam ser gravados da linguagem cotidiana das gentes, a qual somente se articula
(grava) por meio de uma língua operacional entre os membros de uma comunidade de fala.
Nota-se aqui a importância de um elemento que ainda não foi estudado com
profundidade: a prova judicial. Como disse Ross (1963, p. 209-210), “toda aplicação do
direito tem como fundamento fatos[eventos] condicionantes, cuja existência o juiz considera
provada”.
Isso implica que o fato relevante juridicamente é aquele que pode ser provado e
considerado, assim, como fundamento para uma decisão judicial. As consequências jurídicas
decorrentes da ocorrência de um evento no mundo real previstas em um signo jurídico, são
deflagradas quando a ocorrência desse evento pode ser provada quando da aplicação do
direito.
Isso é uma conclusão fundamental e que implica que prova e eventos que se provam
andam juntos para que a aplicação do direito se opere implicando consequências
juridicamente estabelecidas.
O ponto que merece aclaramento aqui é que, pelo que aqui se defende, prova é
espécie do gênero gravação, de modo que provar é, de uma formaou de outra, uma espécie
de gravação de um evento dentro do processo judicial. É por isso que se fala aqui de processo
de gravação judicial.
O tema da prova e da linguagem das provas restará em suspenso para ser tratado mais
adiante em toda sua extensão.
231
Conclua-se, por agora, que o processo de gravação judicial é um que grava num
signo jurídico a ocorrência de um evento ocorrido na experiência sensível e que, gravado
nos limites do direito, por uma autoridade jurídica competente, faz irromper consequências
de direito às partes também envolvidas na gravação.
Vem se utilizando ao longo desse texto as palavras evento e fato, por vezes, como
equivalentes. É o momento de enfrentar o tema para dizer que há uma diferença fundamental
entre evento e fato que deve ser corretamente compreendida para fins dos resultados jurídicos
que essa diferença implica.
Aqui se repisa uma premissa fundamental do presente trabalho: a de que em termos
linguísticos não existem sinônimos (conforme já se fundamentou nos dizeres de
Bloomfield), de modo que as palavras evento e fato não podem apresentar significados
iguais.
Sobre a diferença entre evento e fato na linguagem jurídica é do que se cuida na
sequência.
4.4 Diferença entre Evento e Fato na Linguagem Jurídica
A ideia que tem prevalecido na doutrina é de que o fato jurídico é uma realidade
revelada para dentro da linguagem do direito que implicará, via de regra, consequências
juridicamente determinadas.
Que revela o fato jurídico? O fato jurídico revela uma realidade exterior ao direito,
uma extra realidade, uma summa realidade. Aqui se parte de que “existe” uma realidade
independentemente da linguagem (inclusive da linguagem jurídica), o que não se confunde
com a verdade sobre essa realidade, como já se estabeleceu.
No direito, referentes ou relações entre referentes levam a ideias de dever-ser
jurídico, as quais são fundamento de signos jurídicos, os quais formam as leis jurídicas,
produtos linguísticos de ideias, que são resultantes de um processo de observação abstrata
exercido pelo legislador (um processo de gravação jurídica da summa realidade).
Quando o legislador edita leis, está gravando eventos da summa realidade na
realidade semeiótica do direito. A camada jurídica é uma camada semeiótica (com funções
prescritiva, impositiva, cogente e realizativa) de gravação sobre uma camada linguística
gravada, que é a linguagem ordinária operacionalizada dentro de uma língua.
A camada semeiótica da ciência do direito é, por sua vez, uma camada com função
descritiva acerca da camada semeiótico-jurídica, a qual, como já dito, é uma camada de
232
gravação da linguagem das gentes articulada em uma língua em um contínuo possível
semeiótico sem fim de camadas.
O fim não existe nesse processo semeiótico de gravação. Trata-se de um continuum.
Porém há um início, o qual corresponde à summa realidade, que pode ser objetal e/ou
antropomórfica. A diferença é a participação do homem na realidade. O movimento dos
planetas é uma realidade objetal e a guerra entre nações é uma realidade antropomórfica
porque tem a participação do homem.
O princípio do percurso semeiótico, como se disse, toca de alguma forma o mundo
sensível, sob pena de não se caracterizar o resultado em um signo linguístico; não há signo
sem objeto. Se não há signo linguístico, pois inexistente a aproximação com a experiência
sensível, não há se falar em uma realidade semeiótica possível, nem da linguagem das gentes
nem na linguagem jurídica.
Como tratado, o que não pode ser afastado é que, gravar em qualquer nível
linguístico que se deseje, implica gravar dentro de uma língua que permite a articulação
dessa gravação. Gravar juridicamente implica, assim, gravar juridicamente na língua
portuguesa.
Que é gravar juridicamente? Gravar juridicamente é gravar juridicamente um
evento do mundo sensível passível de gerar efeitos jurídicos. Esse evento está numa realidade
subjacente gravada. No direito, grava-se um evento da summa realidade (objetal ou
antropomórfica) que possa implicar consequências jurídicas.
Portanto, o legislador, que é quem grava eventos nas regras do jogo jurídico e
também suas consequências, grava eventos da summa realidade ou relações entre eles, para
que tenham efeitos jurídicos também determinados juridicamente.
Essa é, assim, uma regra-padrão que implicará consequências jurídicas ou, como se
disse anteriormente, uma regra geral e abstrata que gravará um evento que, quando ocorrido,
irradiará efeitos de direito.
Desse modo, quando o legislador grava juridicamente que o evento de se fumar em
ambiente privado é proibido, sob pena de consequências jurídicas, isso implica que se esse
evento da summa realidade for verificado e gravado juridicamente como ocorrido no mundo
sensível, essa gravação desencadeará implicações também jurídicas.
A problemática aqui que parece causar confusão na mente dos cientistas jurídicos diz
respeito à dualidade: se o legialador grava um evento da vida das gentes como passível de
233
propagar consequências jurídicas, então qual é o nome que se dá para o signo-gravador na
linguagem jurídica do evento que, gravado pelo legislador, ocorre no mundo sensível?
É aqui que existe o ponto de conexão com o tema da diferença entre evento e fato.
Parte da dogmática tem designado tratar-se de uma dualidade, separando o evento do mundo
sensível daquele da gravação, para chamar esse último de fato jurídico.
Dito isso, diga-se, ainda, que quem grava juridicamente um evento que ocorreu, no
entanto, não é o legislador (esse grava um evento de possível ocorrência que propagará
efeitos jurídicos – trata-se de uma gravação de um evento em potência).
Quem grava juridicamente o evento ocorrido é outra pessoa a quem o direito atribui
competência para tal. Trata-se da autoridade jurídica competente para gravar a ocorrência
de eventos que são passíveis de consequências jurídicas.
Em outras palavras: trata-se da autoridade jurídica competente para gravar a
“existência” de situações, processos, circunstâncias, eventos, etc., que o legislador já gravara
como de potencial ocorrência para geração de consequências de direito.
Como se viu, parte da doutrina traz que o fato jurídico atesta a ocorrência de um
evento, um acontecimento natural exterior ao direito. O juiz (uma das autoridades
competentes para gravar a ocorrência de eventos), quando grava juridicamente o faz a partir
de eventos que ocorreram e que foram gravados em um processo judicial.
Lembre-se: qualquer gravação de uma ocorrência ou “existência” é sempre uma
gravação semeiótica, pois não há gravação possíveis fora de um contexto semeiótico, o que
implica que gravar é o mesmo que usar um signo. Se a gravação é jurídica, esse signo é
também jurídico – um signo jurídico.
A unidade semeiótico-jurídica ou conjunto de unidades semeiótico-jurídicas que
gravam a ocorrência de um evento passível de consequências jurídicas é, como se disse,
chamada, por parte da dogmática, de fato jurídico. É verdade, parte dos cientistas jurídicos,
como se viu, não faz a diferenciação entre evento e fato, mas parece ser maciça a doutrina a
qual vislumbra que no domínio do direito a nomenclatura usada para se referir a um
acontecimento no mundo sensível é fato jurídico.
Ainda que se entenda que o uso de fato jurídico é equívoco ou, ao menos,
desnecessário diante do uso competente da linguagem, como se esclarecerá mais adiante, a
parte da doutrina que não confunde fato com evento, acaba separando-os para trazer que o
fato é revelador do evento que e o fato jurídico é o fato revelador na linguagem do direito.
234
Nessa linha, Ferraz Jr. (2015, p. 232) traz o exemplo da travessia do Rubicão por
César no sentido de “a travessia do Rubicão por César” ser um evento e “César atravessou o
Rubicão” ser um fato”.
Para Ferraz Jr. (2015, p. 232), quando se diz que “é um fato que César atravessou o
Rubicão” se confere realidade ao evento. Para ele (2015, p. 232), essa realidade: “é função
da verdade, isto é, do uso competente da língua”.
Importante ressaltar que a realidade para Ferraz Jr. (2015, p. 225) “não é um dado,
mas uma articulação linguística mais ou menos uniforme num contexto existencial”. Ele é,
assim, nominalista. Carvalho (2000, p. 351), seguindo essa orientação, traz que: “Fato não
é pois algo concreto, sensível, mas um elemento linguístico capaz de organizar uma situação
existencial como realidade”.
Tomazini de Carvalho (2010, p. 522) adota a mesma linha:
Chamamos evento o acontecimento do mundo fenomênico despido de
qualquer formação linguística. O fato, por sua vez, é o relato do evento.
Constitui-se num declaração denotativo de uma situação delimitada no
tempo e no espaço. E, por fato jurídico entende-se o relato do evento em
linguagem jurídica. Declaração, também denotativo de uma situação
competente, que ocupa posição de antecedente de uma norma individual e
concreta. A diferença entre evento e fato repousa no dado linguístico e,
entre fato e fato jurídico, na competência da linguagem. Evento é uma
situação de ordem natural, pertencente ao mundo da experiência, fato
é articulação linguística desta situação de ordem natural, e fato
jurídico é a sua articulação em linguagem jurídica. (Destacou-se).
De Santi (2004, p. 62) trata da perspectiva da autoridade jurídica que fala
juridicamente sobre a summa realidade:
o ato de aplicação para entrar no direito há que se revestir de linguagem.
Quer dizer, para ultrapassar o portal que separa o mundo do ser e o mundo
do dever-ser, é preciso transubstanciar o ato de aplicação na linguagem do
direito. O ato de aplicação é o evento, que é traduzido por uma
articulação linguística, o fato: o evento retido do passado é o
significado; o fato representado, o significante. (Destacou-se).
Como se verifica, a posição dos cientistas jurídicos já posta diz que o fato é uma
articulação linguística que traduz o evento em linguagem. Se essa tradução, segundo essa
doutrina consultada, se dá na linguagem do direito, ocorre a partir do uso competente da
língua na linguagem ordinária com vistas ao uso competente da língua na linguagem jurídica.
Se assim o é, há fato jurídico, conferindo-se realidade ao evento.
235
Tal doutrina peca, no entanto, como aqui se entende, entre outras coisas, nesse ponto
específico de que o fato jurídico conferiria realidade ao evento. De que realidade se está
falando? Se a matriz dogmática for Ferraz Jr., isso implica que essa realidade é uma realidade
puramente linguística, ou melhor, uma realidade nominal (postura nominalista).
Portanto, o que dizem os autores citados é que, considerando esse fundamento, não
há uma summa realidade, mas tão somente aquela realidade semeiótica do fato que traduz o
evento. De certa forma, ao se adotar essa linha de raciocínio, fato e evento são a mesma
coisa, pois que o que está a revelar o fato se é ele a única realidade “existente”?
Nesse caso, o fato absorveria o evento como única realidade possível, pois o que se
define são conceitos e não a summa realidade, do que decorre ser toda a definição nominal,
como traz Ferraz Jr., nos termos já mencionados.
A gravação da summa realidade em realidade semeiótica não implica, no entanto,
como aqui se defende, uma exclusão da summa realidade (postura realista). É, nesse sentido,
que pontua Peirce quando traz que a realidade é o modo de ser da coisa real, a qual é como
é, independentemente de crença científica sobre ela.
Essa realidade peirceana é diferente da verdade, a qual, ao fim, confunde-se com
crença científica ainda que falível e atualizável a todo o tempo e em todo o espaço. Para
Peirce (CP 5.565), a verdade da declaração “Cesar atravessou o Rubicão” consiste na
circunstância de que “quanto mais forçarmos nossos estudos arqueológicos ou outros, mais
fortemente essa conclusão se fortalecerá em nossas mentes para sempre – ou assim ocorreria,
se o estudo persistisse para sempre”.
Verdade para Peirce diz com uma investigação que tende a trazer crença científica,
ou melhor, com uma concordância entre uma declaração abstrata (aqui se defende que se
trata de uma gravação) e um limite ideal, em direção ao qual uma investigação interminável
tenderia a produzir crença científica, a qual é sempre falível.
Nesses termos, uma declaração (gravação) suportada pelas melhores evidências em
um espaço-tempo determinado é verdadeira, ainda que essa crença científica formada seja
sempre atualizável por ser falível. Questões sobre preclusão, prescrição, decadência, etc., as
quais poderiam bater de frente com essa possível atualização, serão tratadas devidamente na
Parte 5 deste trabalho.
Peirce (CP 5.565) explica que a coisa real difere da verdade da declaração (gravação)
“Cesar atravessou o Rubicão” no sentido de que:
236
um metafísico idealista pode assegurar que em tal proposição também
repousa a completa realidade por detrás da proposição; porque se os
homens podem por algum tempo persuadir-se a acreditar que Cesar não
atravessou o Rubicão, e podem forcar-se a prover essa crença universal
para um número de gerações, ainda assim uma investigação final – se isso
persistisse – poderia trazer de volta uma crença em contrário. Entretanto,
em mantendo esse preceito, o idealista necessariamente extrairia a
distinção entre verdade e realidade.
O que se pode interpretar, pois, é que Peirce considera verdade o que os nominalistas
chamam realidade, afastando frontalmente uma confusão entre verdade (no sentido de
realidade semeiótica) e summa realidade, a qual deve ser considerada na perspectiva exterior.
De forma simples, Peirce considera a presença do objeto na relação semeiótica, de
modo que sem um toque na experiência sensível não há signo e, dessa forma, linguagem. Se
há possibilidade de mudança de uma verdade, é porque uma nova gravação possível de um
referente se apresenta e essa é a prova mesma de que esse referente é real.
Portanto, realidades semeióticas diferem da summa realidade ao menos na
diferenciação dogmático-pedagógica que aqui se traz para que seja possível didaticamente
explicar o fenômeno. Essa posição encontra suporte no realismo peirceano, pois que a
própria consideração de que existe um referente (real) já é suficiente para atestar a
“existência” de uma dualidade e, se essa premissa é considerada, uma realidade subjacente
poderia ser considerada na relação.
Importante trazer que considerar a “existência” de uma realidade subjacente não
implica distanciar-se de uma teoria que credite à convenção social o uso linguístico aplicável
a uma certa realidade. Ao contrário, implica assegurar que o signo linguístico, inclusive
jurídico, grava uma summa realidade ou relações nela presentes que são atualizáveis diante
de uma nova convenção social.
Aqui se volta à questão do portal de acesso para a summa realidade. Que portal é
esse? Como se disse, trata-se do signo como ponto de contato com a summa realidade
(intersecção), com o referente, eis que um signo é sempre sobre algo.
Porém, que medida dá o signo dessa summa realidade? Trata-se de uma medida
“real” ou de uma medida fictícia? É fácil responder essa pergunta com as premissas já
estabelecidas nesse trabalho. A medida que o signo dá do real, dentro de um realismo
peirceano coadunado com um realismo especulativo é uma medida simbiótica.
Há um grau de inclusão e exclusão permanente na relação do sujeito com o objeto,
sendo esse grau mesmo a razão que confirma a “existência” do sujeito no objeto e vice-versa.
237
Nesse piso, em uma visão que se pode chamar aqui também materialista, o que se tem é que
é mais o sujeito que é uma extensão do objeto que o contrário, de modo que a observação
permite tão só vislumbrar a simbiose, eis que o sujeito é também o reflexo no olhar do objeto
que se capta com o órgão visual.
É o que aqui quer se chamar teoria objetivo-multidimensional. Uma teoria de
gravação semeiótico↔estesiológica de signos que simbioticamente se relacionam com o
objeto. Essa simbiose permite considerar o mundo no homem e não o homem no mundo.
Trata-se de uma mudança radical de perspectiva.
Então, a ideia de trânsito em mundos é inócua diante dessa perspectiva, eis que, como
traz Žižek, nos termos já tratados, a realidade é a mancha na figura da realidade no olho do
homem, a qual inclui o próprio homem na figura. Essa mancha é que permite a simbiose
entre realidade e homem. Ela é a própria realidade simbiótica, o que afasta, inclusive, a
alegação muito comum de que a realidade seria inesgotável, eis que, se é um prolongamento
do homem e vice-versa, esgota-se, ao menos em alguma medida, no homem.
Quando se diz que o signo deve tocar o real de alguma forma para que se esteja diante
de um signo, isso quer implicar que esse contato é “simbiótico”. Não há uma separação
efetiva, o que há é uma separação racional, mas somente na medida em que o método
cartesiano impregna a cultura ocidental, por conta da herança principalmente da lógica dos
estoicos.
Isso parece óbvio ao se olhar a questão sob a perspectiva da convenção em uma
comunidade de fala. Onde está na convenção que existe uma separação entre reinos: reino
lógico e reino natural. Essa separação não “existe”, é fruto do caráter cartesiano do
pensamento ocidental, mas, em absoluto, reflete como as coisas são.
A convenção social sobre o mundo, ao contrário, ajusta uma crença, uma visão sobre
as coisas e, se o ajuste é de uma visão, é porque a mancha no olho está na visão que se ajusta
e, dessa forma, a convenção também é simbiótica.
Isso não prejudica a investigação científica, a diferença é que o método é diferente.
Não se trata de um método lógico-dedutivo para observar a summa realidade, mas sim de
um método abdutivo, como quer Peirce.
Nesse, o que se term é um direcionamento ao absoluto da summa realidade para
gravá-la, porém, sempre em um continuum de atualização “em suspenso”, eis que a mancha
no olho depende do tempo e do espaço do olhar e esse tempo e espaço são diferentes a cada
pulsar de vida na dinâmica das gentes. Ora, se o olhar muda, muda a mancha, o que quer
238
dizer que o continuum é daqueles multidimensionais. É, assim, a investigação que permitirá
um novo olhar, uma nova mancha, uma nova simbiose.
É por isso que Peirce é enfático ao dizer que somente um signo dinâmico é que
pode distinguir a realidade da ficção, sendo ingrediente essencial do signo justamente
essa dinamicidade, que é a prova do falibilismo de qualquer convenção que queira ajustar
algo do absoluto – do summum rerum.
Vejam-se as palavras de Peirce (CP 2.337) acerca do tema:
O mundo real não pode ser distinguido de um mundo ficção por nenhuma
descrição. Muito se discutiu se Hamlet era louco ou não. Isso
exemplifica a necessidade de se indicar que o mundo real é significado,
se ele for significado. Agora, a realidade é completamente dinâmica,
não qualitativa. Ela consiste em vigorosidade. Nada além de um signo
dinâmico pode distingui-la da ficção. É verdade que nenhuma língua
(até onde eu sei) tem uma forma particular de fala para mostrar que
o mundo real é do que se fala [dele]. Porém, isso não é necessário, já que
tons e aparências são suficientes para mostrar quando o falante está a sério.
Esses tons e aparências atuam dinamicamente sobre o ouvinte, e fazem
com que ele se atente às realidades. Eles são, pois, os índices do mundo
real. Assim, não resta nenhuma classe de asserção, a qual não envolva
índices a não ser que sejam análises lógicas e proposições idênticas. Porém,
as primeiras serão mal interpretadas e as últimas falsas, a não ser que sejam
interpretadas como se referindo ao mundo dos termos e conceitos; e esse
mundo, como um mundo fictício, requer um índice para o distinguir. É,
portanto, um fato, como a teoria pronunciou, que um índice, ao menos,
deve formar parte de toda a asserção. (Destacou-se).
As palavras de Peirce são de uma profundidade ímpar, e parecem muito complicadas
de entender, mas não é bem assim. O que se tem, pelo que aqui se interpreta, é que a
separação entre ficção e a realidade, entre a loucura, a psicopatia, esquizofrenia ou qualquer
distúrbio que reflita na noção de realidade é muito tênue e somente pode ser tomada no plano
da perspectiva do dinamismo semeiótico.
Assim, é somente com o reconhecimento do falibilismo inerente a todo signo que se
permite a noção de realidade se ajustar na mente e, ainda assim, essa noção será sempre uma
noção relativa, porque mesmo a simbiose do homem na figura do que se afigura ao homem,
é uma dinâmica que cambia a cada olhar.
Desse modo, é só o panorama do continuum que apazigua a mente para colocar o
olhar como em um filme da realidade, cuja duração é a duração de quanto durar o olhar. Se
isso é correto, é porque a mancha também é um continuum de dinamismo e, diante do
continuum de dinamismo, o embaralhamento de sujeito com a realidade exsurge como
inerente no processo.
239
O continuum de dinamismo surge, assim, para a mente, também, como um
reconhecimento na consciência de uma experiência. A dinamicidade das realidades que se
afiguram ao homem forma a ideia e percepção de continuum na mente, mas essa ideia e
percepção só é possível na medida em que é uma ideia convencional.
Ora, se é convencional, é porque é fruto de uma regularidade e essa regularidade
aparente autoriza a vida em sociedade, eis que implica ser possível a comunicação. Se a
dinamicidade mudasse a percepção a cada olhar como, em verdade, ocorre, isso
desautorizaria a vida em sociedade, eis que a comunicação seria dinâmica e convenção é,
nos termos de Lewis, como já se trouxe, sujeição a uma regularidade.
É esse sentimento de regularidade que a experiência “engana” na mente que torna a
comunicação possível. Trata-se de um hábito inteligente. Essa comunicação se faz por
signos, os quais advêm de camadas de percepção. São as tricotomias peirceanas.
Sobre o tema, esclarece Peirce (CP 2.435):
Um julgamento é um ato de consciência em que se reconhece uma
crença, e uma crença é um hábito inteligente sobre o qual devemos
atuar quando a ocasião se apresentar. De que natureza é esse
reconhecimento? Ele deve estar muito próximo da ação. Os músculos
podem se contrair e podemos nos controlar apenas por considerar que a
ocasião apropriada ainda não surgiu. Porém, em geral, virtualmente
resolvemos sobre uma certa ocasião para atuar como se certas
circunstâncias imaginadas fossem percebidas. Esse ato, o qual
equivale a resolver, é um ato peculiar da vontade em que causamos a
imagem, ou ícone, ser associado, num modo peculiarmente extenuante,
com um objeto representado para nós por um índice. O ato mesmo é
representado na proposição por um símbolo, e a consciência disso
perfaz a função de um símbolo no julgamento. Suponha, por exemplo,
que eu detecte uma pessoa com quem eu tenha que lidar segundo um
ato de desonestidade. Eu tenho na mente alguma coisa como uma
“fotografia composta” de todas as pessoas que eu já conheci e
interpreto a partir disso aquelas que tiveram aquela característica, e
no instante que eu faço a descoberta relativa àquela pessoa, a qual eu
distingo de outras por certas indicações, sobre aquele índice, naquele
momento em diante aparece o rótulo MALANDRO, para permanecer
indefinitivamente. (Destacou-se).
Colha-se o exemplo do extrato acima. Verifique-se que essa primeira imagem que
surge na mente como que um diagrama, o qual apresenta similaridade com o objeto, em uma
relação de mera razão, é um ícone: uma totalidade de pessoas que se conhecem.
Anote-se que a segunda gravação, que já apresenta uma relação física de conexão
direta com o objeto, distinguindo-o de um grupo de outros objetos, eis que força a atenção
240
para o objeto especificamente, é um índice: aquela pessoa específica que possui a
característica de ser desonesta.
Finalmente, pontue-se que, avançando-se na gravação, tem-se uma associação de
ideias ou uma conexão habitual do signo com o objeto. Trata-se do nome geral do objeto:
MALANDRO.
Par melhor compreender o tema, verificar CP 1.369 e seguintes e CP 2.92. Peirce
(CP 1.372) traz ainda que uma proposição é uma descrição geral porque “pretende estar
numa relação real com o fato, para ser realmente determinada por ele, de modo que somente
pode ser formada pela conjunção de um nome e um índice”.
Para se entender as tricotomias peirceanas, é preciso visualizar o signo como a
matrioska (boneca russa) que encapsula as demais por debaixo daquela que se sobrepõe, de
modo que ícone compõe índice que compõe símbolo.
Peirce também trabalha com a ideia de “degeneralização”, no sentido de que o
símbolo é a generalização máxima, podendo ser “degeneralizado” para índice e ícone, sendo
que esse último não degeneraliza.
Sobre o tema, veja-se como se posiciona Peirce (CP 2.92):
Signos têm dois graus de degeneralização. Um Signo degeneralizado num
grau menor, é um Signo Obsistente, ou índice, o qual é um Signo cuja
significância do seu Objeto é devida a ele ter uma relação genuína com
aquele Objeto, sem relação com o Interpretante. Assim, um exemplo,
é [...] uma batida na porta como indicativo de um visitante. Um signo
degeneralizado num grau ainda maior é um Signo Original, ou Ícone, o
qual é um signo cuja virtude significante é devida simplesmente à sua
Qualidade. Assim, por exemplo, são as imaginações de como eu atuaria
sob certas circunstâncias, mostrando-me como outro homem
provavelmente atuaria. [...]
Um Signo Genuíno é uma Signo Transuacional, ou símbolo, que é um
signo, o qual deve sua virtude significante à característica, a qual pode
apenas ser percebida com a ajuda de seu interpretante. Qualquer
articulação de fala é um exemplo. (Destacou-se).
O que se tem, pois, é que à exemplo das categorias ceno-pitagóricas tratadas
anteriormente no presente texto, essa divisão triádica das tricotomias também exsurge
importante ao estudo da diferença entre evento e fato na linguagem jurídica.
Nesse contexto, sob a perspectiva do signo em relação ao seu objeto de referência, o
evento como o objeto propriamente dito do signo, ou seja, como evento da summa realidade
e não evento da realidade semeiótica, ou como se chamará aqui como evento-absoluto e não
evento-semeiótico, entra na tricotomia apenas mediatamente.
241
O evento-signo ou evento-semeiótico, no seu aspecto de qualidade primeiramente
apreendida, como um diagrama de similaridade, em uma relação de mera razão com o objeto,
pode ser essa primeira imagem na mente do legislador para elaborar a regra que grave um
evento passível de consequências jurídicas. Pode ser, também, essa qualidade primeira de
similaridade apreendida por aquele que gravará juridicamente eventos ocorridos que foram
gravados pelo legislador como passíveis de efeitos de direito. Algo como a imaginação de
que alguma coisa deve ser passível de consequências jurídicas. Aqui predomina a ideia de
origem (signo original). Esse evento é um ícone jurídico.
O evento-signo ou evento-semeiótico, em uma relação de conexão física, direta e
genuína com o evento-objeto ou evento-absoluto, distinguindo-o de outros, pode ser, por
exemplo, uma foto do corpo esfaqueado em um caso de homicídio, servindo como prova no
processo-crime para a aplicação do direito pela autoridade competente – onde há
predominância da ideia de obsistência, resistência, obstáculo – é um índice jurídico.
Finalmente, o evento-signo ou evento-semeiótico em uma relação de gravação do
objeto com base em uma conexão devida ao hábito, dependendo de uma interpretação, pode
ser, por exemplo, uma sentença judicial que aplica uma gravação legal, na qual predomina
a ideia transuasão e transcendência é um símbolo.
Lembre-se que qualquer aplicação do direito necessariamente é uma generalização,
a qual “encapsula” no sentido de gravar, a partir do símbolo jurídico, um índice jurídico e
um ícone jurídico.
O evento pode ser ícone, índice ou símbolo. Ícone se pensar nessa ideia de qualidade
de um evento que nessa própria ideia, ainda original, apresenta-se (potencialidade). Poderá
ser índice, caso se entenda que uma foto do corpo esfaqueado é um evento-semeiótico
daquele acontecimento do mundo que é o “esfaqueamento daquele corpo”.
Poderá ser símbolo se se pensar no evento como gravação em linguagem competente
de um acontecimento ocorrido e gravado pelo legislador como passível de consequências
jurídicas. Aqui tem que ver com interpretação e aplicação do direito – norma jurídica.
A conclusão que se apresenta nesse tópico é que, diante do realismo peirceano, não
há de se falar em realidades “sinônimas” para fins do que os signos evento e fato podem
gravar, eis que, ou evento e fato têm o mesmo objeto possível, ou gravam uma summa
realidade diferente. Como são signos linguísticos diferentes, pelo que aqui se defende, tem
de gravar uma summa realidade diferente.
242
Do contrário seria o mesmo que dizer que o signo linguístico “mesa” pode gravar a
mesma summa realidade do signo linguístico “cadeira”. Assim, “mesa” e “cadeira”
significariam a mesma coisa. Isso tonaria a comunicação entre as gentes no mínimo muito
difícil, pois pessoas começariam a comer “à cadeira” ao invés de se sentarem “à mesa” para
comer.
Nessa linha de argumentação, é que se pontua que o que a doutrina chama fato
jurídico tampouco pode ser uma terminologia sinônima à do evento passível de
consequências juridicamente determinadas. Disso decorre que aquilo que se prova
juridicamente é, em verdade, um evento gravado nos limites do direito, e aqui evento é tanto
summa realidade como realidade semeiótica, do que decorre que o termo fato jurídico é
equívoco ou ao menos despiciendo no uso competente da língua.
A diferença fundamental entre signos jurídicos e signos linguísticos deve ser
explicada para compreensão completa do tema, eis que há uma diferença de “efeitos” entre
a linguagem ordinária e a linguagem jurídica.
A diferença fundamental é que os signos jurídicos têm funções prescritivas,
impositivas, cogentes e realizativas. A linguagem ordinária tem função de gravação
descritiva da summa realidade, função essa que predomina, porém, há também diversas
outras funções que podem ser sacadas: função moral, ética, religiosa, política, psicológica
etc. Todas essas funções da linguagem ordinária, no entanto, não têm força impositiva, o que
exsurge como grande diferencial.
No direito, são os acontecimentos naturais que, previstos em signos jurídicos como
de possível ocorrência, irradiarão, quando gravada sua ocorrência, ou seja, a ocorrência de
um evento, efeitos juridicamente relevantes.
Não há se falar em um fato jurídico que confere realidade ao evento (acontecimento
natural). O evento, quer na summa realidade, quer na realidade semeiótica já é uma realidade
em si mesmo.
Ao se adotar a teoria realista, cuja perspectiva é objetivamente orientada, resta ainda
mais claro que inexiste um mecanismo de conferência de realidade no fato. Em primeiro
lugar, pelo motivo de que, ao se dizer que o fato jurídico confere realidade ao evento, já se
está admitindo que há um evento para que uma realidade seja conferida. Ora, nesse próprio
dizer, já se pressupõe a “existência” do evento e, se ele “existe”, é porque é real. Se é
real, então não há que se conferir realidade a algo que já é real.
243
Em segundo lugar, na linha mesma do realismo, pelo que aqui se interpreta e defende,
não há de se falar em conferência de realidade ao evento porque a realidade mesma é
simbiótica, simbiótica desde o plano do signo, simbiótica desde o plano da realidade e
simbiótica desde o plano do sujeito. A consideração, como já se disse, é inclusiva e
exclusiva, do que decorre que nos signos “há”, em alguma medida, alguma extensão do real,
sob pena de não gravar a uma realidade.
Isso pode soar muito estranho, mas pense no conceito, que é a ideia na mente –
processo psicológico como diz Saussure. De onde vem o conceito? De um processo
fisiológico. Ao se tomar esse processo fisiológico como o processo de observação, o que se
tem é que é o olhar do observador que toma a figura de algo para si. Se desse processo
fisiológico é que exsurge o processo psicológico, então é do olhar do observador que nasce
o conceito na mente.
Bem, ao se dizer que a figura no olho contém o próprio sujeito na figura, isto é, o que
se afigura no olho é também uma medida do homem no objeto, isso quer dizer que o conceito
que exsurge da figura no olho do homem é um conceito simbiótico do objeto e do sujeito.
Ora, se isso é verdadeiro, o evento que se observa é uma extensão, também, em uma
certa medida, do sujeito-observador, de modo que o conceito que aparece na mente é
simbiótico. Aqui já há confusão da realidade semeiótica do pensamento com a da summa
realidade. Ademais, se o observador usar um meio de expressão para figurar o conceito –
um significante escrito de um signo; esse significante terá um conteúdo.
A substância desse conteúdo também de algum modo será simbiótica, eis que o
conceito o é. Lembre-se que Kant, genialmente, como já dito, fala em extensão e figura, o
que agora faz todo o sentido, porém, o faz dentro da sua intuição pura, a qual se verifica a
priori. A diferença é que aqui a verificação é simbiótica. Não exatamente a priori e
tampouco a posteriori – uma terceira via.
Assim, o evento da summa realidade e o evento da realidade semeiótica – agora no
meio de expressão escrito, são realidades simbióticas, de modo que não é compossível com
isso dizer que o fato confere realidade ao evento. Não é possível conferir realidade, eis que
a realidade não pode ser conferida a nada e/ou ninguém (a não ser diante de poderes mágicos
suprassensíveis); ela é quando muito gravada e, no caso aqui, já é uma realidade por ser
simbiótica.
Dito isso, diga-se, finalmente, que, filosoficamente, o equívoco da utilização de
evento e fato na maneira que faz a dogmática aparece de maneira clara, diante da análise da
244
diferenciação entre objeto, evento e fato. A importância do tema para o direito está na
circunstância de que o juiz grava, para aplicar o direito, acontecimentos, os quais tomam
lugar no mundo. Diante disso, é preciso responder se esses acontecimentos são eventos ou
são fatos. Para responder isso, é preciso formular outra pergunta: eventos, fatos e/ou objetos
tomam lugar no mundo?
É do que se cuida.
4.5 Fato Jurídico sob a Perspectiva da Diferença entre Objetos, Eventos e Fatos
Para se saber se eventos e fatos, também em comparação com objetos, estão no
mundo, é preciso, em primeiro lugar, trabalhar a diferença ou potencial diferença entre eles.
A diferenciação entre evento e fato é algo contestado na filosofia. Austin (1979, p.
104) traz a seguinte ponderação:
Fenômenos, eventos, situações, estados das coisas são comumente
supostos de estar genuinamente dentro do mundo, e até mesmo Strawson
admite isso. Ainda ciente de tudo isso, podemos dizer que eles são fatos.
O colapso dos Alemães é um evento e é um fato – foi um evento e foi
um fato. Strawson, no entanto, parece supor que qualquer coisa da
qual se possa falar ‘... é um fato’ não é, automaticamente, alguma coisa
dentro do mundo. (Destacou-se).
Diante dessa ponderação de Austin, Vendler (1967, p. 122) busca uma resposta para
a pergunta: O que está no mundo? Resposta que permitiria identificar se há somente objetos
no mundo, ou também eventos, ações, processos, e até mesmo fatos.
Quanto ao pano de fundo que dá sustentáculo à concepção de Vendler sobre objetos,
esse não deixa, de modo explícito, uma clarificação sobre o tema, mas dá indícios de que
sua concepção diz respeito ao aspecto linguístico utilizado para falar de objetos.
Ele diz: “Quanto ao conceito de um objeto, eu mais uma vez sigo o procedimento de
perguntar quais tipos de adjetivos e verbos estão disponíveis para falar sobre objetos”
(VENDLER, 1967, p. 143).
Vendler usa uma concepção linguística para falar de ocorrências do mundo por meio
de uma operação de “nominalização” (ou substantivação) acerca dessas ocorrências no
245
mundo. Trata-se de uma transformação de uma ocorrência no que ele chama de um nominal
perfeito e/ou um nominal imperfeito.
Em uma explicação bem simples (VENDLER, 1969), a diferença entre nominal
perfeito e nominal imperfeito diz respeito à presença viva ou não do verbo utilizado no
contêiner linguístico que acomoda a ocorrência do mundo. Parece complicado, mas não é.
Um exemplo é fecundo: Em “Cesar atravessou o Rubicão”, utiliza-se um verbo: no
caso o verbo “atravessar”. Para saber se é o caso de um nominal perfeito ou de um nominal
imperfeito, é preciso “substantivar” (ou “nominalizar”) e se perguntar se em tal processo de
substantivação (ou “nominalização”) o verbo “atravessar” continua ou não vivo no produto
desse processo.
Chama-se o produto desse processo “contêiner linguístico” ou signo linguístico. É
nesse contêiner linguístico que se acomoda o resultado do processo de substantivação acerca
do evento ocorrido no mundo sensível.
Essa é a linha de teorização de Vendler. Importa trazer que, para fins do presente
trabalho, o que se tem, em verdade, é que esse contêiner de gravação é uma medida muito
rasa para teorizar o fenômeno que se analisa, haja vista que não permitiria acomodar a
dinamicidade dos eventos do mundo sensível.
Assim, como base na teoria que aqui se propõe – teoria semeiótico↔estesiológica,
esse tal contêiner mencionado por Vendler é mais uma gravação do evento da summa
realidade, de modo que o que se acomada nessa espécie de gravação é alguma porção do
evento mesmo num processo de entrelaçamento do signo de gravação com o evento absoluto
(da summa realidade).
Porém, aqui não se contesta que essas gravações, ou como traz Vendler, contêiners,
podem trazer eventos de maneiras diferentes. Como a gravação é também semeiótica, isso
quer dizer que o é, também, o signo que gravará o evento da summa realidade. Vejam-se
alguns tipos de gravações possíveis no signo do evento da summa realidade: a) “A travessia
do Rubicão por Cesar”; b) “O atravessar do Rubicão por Cesar”; c) “Cesar tendo atravessado
o Rubicão”; d) “Cesar tendo sido capaz de atravessar o Rubicão”.
A diferença nas gravações ou nos contêiners, para usar a terminologia de Vendler,
repousa num aspecto semeiótico específico. No exemplo “a)” o verbo “atravessar” não se
246
encontra mais vivo no contêiner linguístico, ele como que morre no processo de
substantivação, tornando-se um nome substantivo17 “legítimo”.
Assim, “travessia” é um signo linguístico totalmente transformado em nome
substantivo, eis que os “resquícios” do verbo “atravessar” como que desapareceram no
processo de substantivação, de modo que o contêiner linguístico, que é o resultado do
processo, é um nominal perfeito.
Nos exemplos acima “b)”, “c)” e “d)” o verbo “atravessar” continua ativo e vivo no
contêiner linguístico, de modo que se está diante de um nominal imperfeito, pois que o
processo de substantivação como que foi defeituoso, guardando “resquícios” do verbo
“atravessar” em “o atravessar”, “tendo atravessado” e “tendo sido capaz de atravessar”.
Veja-se que não há no produto um substantivo “legítimo” como “travessia”. Ao se falar de
gravação, o que houve foi que no meio semeiótico da gravação houve um processo perfeito
de impressão do evento (nominal perfeito) ou imperfeito para estampá-lo (nominal
imperfeito).
O ponto que importa dessa explicação e que deve ser ressaltado é que, para Vendler
(1969, p. 138), o resultado desse mecanismo acerca de eventos, processos e ações implica
numa gravação ou contêiner que é normalmente equivalente a um nominal perfeito.
Visto isso, volte-se à pergunta que traz Vendler sobre os verbos e adjetivos que
podem ser usados na gravação ou contêiner acerca dos objetos do mundo, para demonstrar
que a partir da resposta que se tenha é possível diferenciar evento e fato.
Vendler (1969, p. 141) explica o tema da seguinte forma: “São os eventos, processos
e ações e não fatos e resultados que ocorrem, tomam lugar, são vistos, ouvidos, seguidos e
observados; eles podem ser graduais, violentos, prolongados”.
Então, segundo a proposta de Vendler, ao se lançar a pergunta sobre determinado
dado concreto no sentido de ter ele ocorrido, tomado lugar, ser visto, ouvido, ser gradual,
violento etc. pode-se diferenciar, pela resposta que se obtém, tratar-se de evento ou de fato.
Nessa linha, de maneira simples, não se pode dizer que uma “pedra ocorre, toma
lugar, é gradual etc.”, mas se pode dizer que um “evento ocorreu, tomou lugar, foi gradual
etc.” Fazendo a pergunta se “pedra ocorre, toma lugar, é gradual?”, pode-se diferenciar um
objeto de um evento.
17 Nomes podem ser substantivos ou adjetivos. Por isso se diz nome substantivo ou nome adjetivo.
247
A mesma coisa se aplica ao fato. Ao se formular a pergunta “o fato ocorreu, tomou
lugar, é gradual?”, percebe-se que a resposta negativa diferencia fato de evento, pois “fato
não ocorre, não toma lugar, não é gradual.”
Mas por que é que há essa diferença entre fato, evento e objeto? Isso se deve à sua
relação com as coordenadas de espaço e tempo. É por isso que se deve responder a pergunta
“fatos, eventos e objetos estão no mundo?” A depender da relação que esses têm com as
coordenadas de espaço e tempo, ter-se-á uma resposta negativa ou positiva e isso faz toda a
diferença do ponto de vista filosófico.
Nessa linha, viu-se que os referentes são coisas reais que “existem”
independentemente de uma crença sobre eles. Objetos são coisas reais, nessa aproximação,
eis que “existem” independentemente de uma mente ou de um grupo de mentes, ou seja,
independentemente de uma crença sobre eles.
Nesse contexto, aproxime-se nesse momento dos objetos para tratar de responder à
pergunta: “Os objetos estão no mundo?” Objetos têm propriedades, eles têm tamanhos e
formas, podem ser tocados e olhados de diversos ângulos e distâncias. Eles podem ser
manuseados, mudam de lugar, viram, rolam, caem, levantam.
Objetos podem conter outros objetos. Tudo isso é possível em relação aos objetos
porque eles estão no mundo, estão no espaço desse mundo. A relação dos objetos com o
espaço é direta: eles existem em uma determinada coordenada de espaço.
O uso competente da língua nos permite dizer que uma pedra está em um local
determinado. Se assim o é, é porque essa pedra está no mundo. Pedra é um objeto que
“existe” independentemente de uma crença sobre ela.
Porém, ter uma relação direta como espaço não implica que objetos tenham uma
relação direta com o tempo. Daí a pergunta: Objetos têm tempo em si mesmos? Dizer que
uma pedra durou por um x número de anos parece ser algo despropositado no uso competente
da língua em que pese a pedra possuir uma certa “existência” por conta do desgaste físico.
Uma alternativa seria dizer que há o tempo da pedra, mas não o tempo na pedra, eis
que sua relação com a coordenada de tempo é apenas indireta. Portanto, objetos estão no
mundo e têm uma relação direta com o espaço e uma relação indireta com o tempo.
Quanto aos eventos, ações ou processos, cabe aqui a mesma pergunta: Estão eles no
mundo? Em primeiro lugar, diga-se que a relação dos eventos, ações, ou processos com o
tempo, diversamente dos objetos, é direta: Vejam-se alguns exemplos na forma de nominais
248
perfeitos: a) O impeachment da ex-presidente Dilma Roussef foi lento, rápido, gradual,
prolongado; b) O impeachment da ex-presidente Dilma Roussef foi antes, depois, durante...
Tem-se, assim, que, se eles (eventos, ações etc.) ocorrem com graduações de medidas
de tempo, é porque eles são também temporais. Diz-se, pois, do tempo “do” evento e do
tempo “no” evento, da ação, do processo etc. Eles têm, de certa forma e modo, uma
mensuração de tempo em si mesmos.
Porém, estariam eles no espaço? Segundo Vendler (1967, p. 125), somente de
maneira indireta, eis que uma localização deles não pode ser encontrada no espaço
precisamente e diretamente.
Pense-se em alguma coisa como: “O impeachment da ex-presidente Dilma Roussef
foi localizado na cidade de Brasília”. Isso até que faz sentido. Porém, o que esperar de “O
impeachment da ex-presidente Dilma Roussef ocorreu por um espaço de x metros
quadrados”. Isso não faz sentido diante do uso competente da língua.
É até possível uma estimativa de localização e tamanho em relação a eventos, mas
apenas de forma conjectural, o que confirmaria sua relação apenas indireta com o espaço.
Isso é diferente de um objeto, por exemplo: “A montanha tem x metros de altura e se localiza
nos Himalaias”. A relação com espaço é direta para o objeto.
O que se tem é que o “modo de ser” de objetos em relação à coordenada de espaço é
diferente do “modo de ser” de eventos, ações e processos em relação a mesma coordenada.
Ao se perguntar, como recomenda Vendler, acerca dos verbos e adjetivos que podem
ser utilizados para fins de objetos e eventos, outras diferenças surgem. É possível dizer que
eventos, processos e ações ocorrem, são causados, resultados, etc., mas não que pedras o
são, por exemplo. Eventos podem, ainda, ser violentos, demorados, tediosos. Aos objetos
não se pode conferir tais adjetivos.
Finalmente, e os fatos? Estão no tempo e/ou espaço? Segundo Vendler (1967, p. 144),
não estão nem no tempo tampouco no espaço. Não podem se mexer, dividir ou esticar
como os objetos e eles não ocorrem, tomam lugar, são vistos e/ou ouvidos como os eventos,
ações e processos.
Portanto, não existiria um tempo “do” fato nem tampouco um tempo “no” fato, ao
menos do ponto de vista da summa realidade, eis que eles não se submetem às coordenadas
de espaço e tempo do mundo sensível pela simples circunstância de não estarem nele.
Eles não “existem”.
249
O tempo que existe nas coisas reais é o tempo delas mesmo se gravadas
semeioticamente por fatos (no sentido de meio semeiótico para gravar a realidade), mas não
relativo aos fatos, eis que não há tempo naquilo que não “existe” diante das coordenadas de
espaço e tempo da summa realidade.
Pense-se em: “o fato musical tomou lugar dentro da sala de concertos às 19 horas do
dia 24 de julho de 1999.” Fica estranho. Porém, “o evento musical tomou lugar na sala de
concertos às 19 horas do dia 24 de julho de 1999” faz todo o sentido.
Fato não toma lugar porque não está em um espaço. Fato não tem tempo em si e de
si mesmo. Evento, contrariamente, ocorre em um espaço e em um tempo. Ocorre no mundo,
em um espaço no mundo, no tempo do mundo.
Portanto, a diferença entre evento e fato seria a de que o último não se submete às
coordenadas de espaço tempo da experiência sensível, como ocorre com o primeiro, de modo
que não se encontra no mundo sensível (summa realidade).
Retorna-se ao questionamento “Que está no mundo? ”. Para responder, Vendler
(1967), compara o mundo a um objeto (ou melhor à ideia do mundo como limitadora de uma
totalidade de objetos). Os objetos seriam partes do mundo como órgãos são partes de um
organismo.
Porém, segundo Vendler (1967), esse mundo não é só objeto, eis que se pode dizer
do começo e fim do mundo, de um acontecimento que acontece, mas do mundo que, mesmo
assim, segue girando. Daí dizer que o mundo é também um processo e, se é um processo, é
porque acomoda outros processos dentro dele.
Portanto, se o mundo é um objeto-processo que acomoda dentro de si objetos e
processos, isso reforça a ideia de que processos, ações e eventos ocorrem no mundo de uma
forma ou de outra, ou seja, são partícipes na summa realidade, cuja soma repousa na ideia
totalizadora dessas realidades na figura do mundo. Dessa forma, eventos estão no mundo e
fatos não. Ross, como já visto, chama essa ideia totalizadora de totalidade concreto-
individual, que seria a própria realidade.
Que são fatos afinal? Segundo Vendler (1967, p. 145), fatos são “sobre alguma
coisa”, referem-se a alguma coisa, falam de alguma coisa. Fatos são “do que se fala”. O
ponto de questionamento é se saber se fatos podem gravar eventos se já há linguisticamente
um signo próprio para tal, ou seja, o próprio signo “evento” linguisticamente considerado.
No que diz respeito ao direito, a conclusão é que, por não se submeterem às
coordenadas de espaço e tempo, fatos não estão no mundo sensível e, se não estão no
250
mundo, não podem ser o objeto de uma gravação jurídica, de modo que o fato jurídico
não pode se gravar um fato bruto ou concreto, por exemplo, eis que fatos não são brutos
nem concretos, pois não estão no mundo.
Quando o juiz fundamenta sua decisão no fato de que José matou Maria, esse
acontecimento não pode ser um fato, porque acontecimentos tomam lugar no mundo nas
coordenadas de espaço e tempo e fatos não estão no mundo.
A digressão foi longa, mas absolutamente necessária para firmar a ideia aos leitores
da diferença entre fato e evento, nos termos de Vendler. Um ponto que deve ser ressaltado é
que a teoria semeiótico↔estesiológica que aqui se defende permite combater até mesmo a
ideia de Vendler de que o fato é aquilo de que se fala.
Isso se deve à circunstância de que no meio semeiótico o processo é de gravação e,
gravar faz parte de uma processo de entrelaçamento com a coisa que é semeiótico (meio
semeiótico), mas também é estesiológico.
Isso quer dizer que, ao se trazer que o fato é do que se fala, deve-se perguntar de que
modo isso de que se se fala por conta do fato se entrelaça com ele. Ao fazê-lo, o resultado
será de que o prolongamento do signo fato não poderá ser de qualquer coisa de que se fale
como parece querer concluir Vendler, haja vista que signos não podem ser
“esquizofrênicos”, devendo discernir na sua gravação a sua realidade própria, a qual não
pode ser multiforme.
Portanto, a pergunta que deve ser respondida é: Qual a realidade gravada no signo
fato? Resposta será dada quando se estudar mais adiante nesse trabalho fato e evento dentro
de sua etimologia.
Visto isso, diga-se que os leitores devem, no entanto, estar se perguntando como
aplicar isso que se viu até agora sobre o fato e fato jurídico mais profundamente no âmbito
do direito. É disso que se trata na sequência.
4.6 Evento, Fato Jurídico, Crença Jurídica e Provas
Como se viu, há uma parte da dogmática jurídica que atribui diferença a evento e
fato. Essa parte da dogmática assim o faz para justificar um ponto de vista sobre a realidade
jurídica ser independente da summa realidade.
Assim se pronuncia Carvalho (1998, p. 98), sobre o tema:
O discurso prescritivo do Direito posto indica, fato por fato, os
instrumentos credenciados para constituí-los, de tal sorte que os
251
acontecimentos do mundo social que não puderem ser relatados com tais
ferramentas de linguagem não ingressam nos domínios do jurídico, por
mais evidentes que sejam.
Segundo essa linha de pensamento, a construção jurídica seria, pois, alheia à
experiência sensível, de modo que, para fins do direito, somente aqueles acontecimentos do
mundo sensível que entrarem no mundo jurídico, por meio das ferramentas jurídicas
competentes, é que podem ser levados em consideração nas decisões jurídicas.
Catão (2010, p. 192) pondera que, entre outros resultados dessa linha de
argumentação, estaria o de que as gravações jurídicas referentes às provas no processo não
se submeteriam à lógica do verdadeiro ou falso, de modo que os fatos [eventos] não
precisariam ser verdadeiros, mas tão somente provados, de modo a servir de base para uma
decisão jurídica.
Catão (2010, p. 192) assim se pronuncia sobre o tema:
Essa postura acredita que provar não significa demonstrar a veracidade
de um fato em juízo, mas sim fixar formalmente um conjunto de fatos que
servirá de pressuposto para uma decisão jurídica resultado de um processo
judicial.
[...]
É uma forma abordagem que está amparada na postura kelseniana, já
analisada anteriormente, e que defende a diferença entre fato e evento.
Para essa tese, como já vimos, o fato, em Direito, é somente aquele
descrito pela linguagem jurídica competente, que é a linguagem
processual, ou a linguagem das provas.
[...]
É por isso que uma proposição do tipo p está provado não pode ser
considerada sinônimo de p é verdadeiro e, assim, não pode ter valor de
verdade. Destarte, como já vimos, mesmo que seja analisada fora do
processo, seu valor de verdade não importa. O que importa para o
Direito é que seja admitida como fundamento de uma decisão concreta
no âmbito processual. (Destacou-se).
Parece difícil defender-se contra esse argumento, o qual se chama aqui nominalista,
porém, não é bem assim. Em primeiro lugar, é preciso repisar que o fato jurídico não confere
realidade ao evento passível de consequências de direito, eis que o que a doutrina chama de
fato jurídico não pode ter poderes mágicos a ponto de conferir realidade a algo do mundo
sensível que, à obviedade, já é real.
O verbo conferir aí é muito mal utilizado. Conferir é outorgar, conceder. Como é
possível um meio semeiótico, como é o caso do fato jurídico, outorgar ou conceder
realidade a uma ocorrência do mundo sensível? Somente se esse fato jurídico tiver poderes
252
sobrenaturais que lhe permitam transferir de si uma realidade que não possui a uma
realidade concreta do mundo das coisas. À obviedade que a palavra fato não tem esse poder.
Aliás, nenhuma palavra tem esse poder divino, eis que palavras não conferem nada a
ninguém ou a alguma coisa, quando muito, descobrem alguma coisa e, pelo que aqui se
entende, em alguma medida, essa descoberta grava no meio semeiótico uma parte da coisa.
Há uma espécie de simbiose. É por isso que, como se disse, o melhor verbo para expressar
o que ocorre não é plasmar, como apregou Olivecrona, pois que plamar diz com moldar e
não é isso que ocorre, mas sim gravar, pois gravar diz com deixar uma parte impressa na
outra. Trata-se da mesma parte não de uma molde dela – o que há é uma gravação.
Como já se disse, o “modo de ser” da coisa real é independente de como uma mente
ou grupo de mentes pensa sobre essa coisa real. A summa realidade é o modo de ser da coisa
real, como ela, é independentemente de uma crença sobre ela. Nesse piso, tal qual a
linguagem ordinária não constrói a summa realidade, a linguagem jurídica tampouco o faz.
Entretanto, uma visão construtivista do direito, ou mesmo, como se chama aqui nominalista,
não pensa assim.
Mas então qual é o efeito daquilo que se chama “fato jurídico” como signo jurídico
em sua concretude? A resposta parece ser simples: o efeito é, para aqueles que acreditam ser
possível apontar a diferença entre fato e evento, como aqui se defende, de uma gravação
(uma espécie de descoberta que se imprime) da summa realidade.
Um exemplo na jurisprudência pode clarear as ideias. Primeiro uma introdução. Já
se viu que o ISS é um tributo que incide sobre a prestação de serviços. Foi dito também, que
é a Lei Complementar 116/2003 que lista os serviços que podem ser tributados pelo ISS.
Muito se discutiu no Judiciário se esse tributo poderia incidir sobre um contrato de leasing
(arrendamento mercantil), que é uma espécie de empréstimo de uma coisa móvel contra uma
prestação financeira.
Essa discussão foi alçada à Suprema Corte Brasileira, tendo sido produzido o
seguinte julgado:
RECURSO EXTRAORDINÁRIO. DIREITO TRIBUTÁRIO. ISS.
ARRENDAMENTO MERCANTIL. OPERAÇÃO DE LEASING
FINANCEIRO. ARTIGO 156, III, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. O
arrendamento mercantil compreende três modalidades, [i] o leasing
operacional, [ii] o leasing financeiro e [iii] o chamado lease-back. No
primeiro caso há locação, nos outros dois, serviço. A lei complementar
não define o que é serviço, apenas o declara, para os fins do inciso III
do artigo 156 da Constituição. Não o inventa, simplesmente descobre
o que é serviço para os efeitos do inciso III do artigo 156 da
253
Constituição. No arrendamento mercantil (leasing financeiro), contrato
autônomo que não é misto, o núcleo é o financiamento, não uma prestação
de dar. E financiamento é serviço, sobre o qual o ISS pode incidir,
resultando irrelevante a existência de uma compra nas hipóteses do leasing
financeiro e do lease-back. Recurso extraordinário a que se dá provimento.
(RE 547245 / SC - SANTA CATARINA Relator(a): Min. EROS GRAU
Julgamento: 02/12/2009 Órgão Julgador: Tribunal Pleno Publicação 05-
03-2010). (Destacou-se).
Por conta do princípio da supremacia da Carta Magna, os termos técnicos (do direito
privado) lá empregados não podem ser distorcidos ou esticados, essa é justamente a dicção
do artigo 110 do Código Tributário Nacional, o qual já foi devidamente transcrito e
comentado.
Como decidiu a Suprema Corte no caso da possibilidade ou impossibilidade de
incidência do ISS sobre o arrendamento mercantil? Isolando a parte que interessa para o
presente texto, decidiu que o que é serviço, independentemente de estar na lista da Lei
Complementar, não é criado ou constituído pela Lei Complementar, essa apenas declara
o que é serviço nos termos da Constituição Federal, ela simplesmente descobre (no sentido
de gravar) o que é serviço.
Poder-se-ia dizer que a submissão da Lei Complementar é com a Constituição
Federal, de modo que, de alguma forma esta (Constituição) constituiria ou contruiria o que
é realidade para o direito e não a descobriria. Fácil rebater esse entendimento, com base no
realismo, eis que, como se disse, signos gravam com objetos, de modo que, para signo ser,
deve haver um mínimo do objeto gravado no signo, pois o que há é um entrelaçamento.
Logo, também na constituição as palavras não são vazias, tem um significado
específico, técnico ou não, é dizer, o limite ideal de cada palavra no texto constitucional, não
pode extrapolar o mínimo que a experiência na summa realidade permite. A ordem natural
das coisas é implacável.
São, dessa forma, também descobridoras de alguma summa realidade, ou faceta
dessa que o legislador, que é o representante eleito pelas gentes, descobriu dessa realidade,
restando ela gravada no signo jurídico no direito positivo.
Não se olvide que as gravações jurídicas, sejam elas do legislador, na forma de uma
gravação geral e potencial, sejam elas na forma de gravação individuais ou singulares do
aplicador do direito, são, de uma forma ou de outra, um ajuste que se faz no domínio do
direito, o qual depende do ajuste social sobre uma summa realidade, eis que a linguagem do
254
direito é gravadora da linguagem social, que é por ela gravada. Há uma gravação na
linguagem do direito de alguma porção da linguagem social.
Aqui o ponto de esclarecimento necessário: o ajuste jurídico, que é uma forma de
ajuste semeiótico, respeita, no realismo, um mínimo da porção possível da summa realidade
que a experiência permite gravar. A investigação jurídica ou científica servirá para fins de
atualização para o caso de a gravação ser deficiente.
Logo, não haveria uma violência do signo aqui como quer fazer crer Ferraz Jr. (2003,
p. 278) quando pontua que haveria uma “violência simbólica enquanto manifestação do
arbítrio social”. Trata-se de um ajuste, mas enquanto buscar uma crença jurídica de justiça,
em relação à linguagem jurídica, e uma crença científica, em relação à linguagem científica,
não haverá uma violência arbitrária, ainda que essa crença seja falível e atualizável.
Ao se admitir a inter-relação entre linguagens (no sentido de gravação), o que se tem
é ser possível que o processo de gravação jurídica, de alguma forma, possa se submeter à
lógica do verdadeiro ou falso, eis que, conforme atesta Peirce, o que já foi referenciado acima
“a verdade é a concordância de uma declaração abstrata com um limite ideal que uma
investigação científica interminável traria uma sempre falível crença científica”.
O ponto de tangência aqui é que essa lógica da qual se fala não é a lógica clássica
dos estoicos separada num reino independente, mas sim a lógica peirceana que admite uma
verdade fundada na abdução e que, por tal motivo, autoriza uma conclusão que é baseada
em premissas verificáveis pela experiência de eventos no mundo sensível.
Se o processo de gravação é deficiente, então, a verdade abdutiva permitiria a
atualização com uma nova gravação. Uma gravação deficiente seria aquela que não permite
mais, em algum espaço e tempo históricos, o ajuste entre as gentes e, pois, a comunicação
em sociedade fluir.
Peirce fala de ciência, de investigação científica, a qual é desempenhada por uma
mente científica. Mente científica, para lembrar, é aquela que afasta a intuição, uma
omnisciência divina, que suplantariam a razão.
Como se disse amplamente anteriormente, o ideal para o qual tende a crença
científica é que é diferente do ideal para o qual tende a crença jurídica. O primeiro se
preocupa com um summum bonum que diz respeito a um ótimo que a investigação científica
pode proporcionar pela experimentação em um continuum de falibilidade e atualização para
fins da gravação do fenômeno.
255
O segundo se preocupa com outro ideal que é o ideal de justiça. Esse é o summum
bonum do direito. Porém, o que se defende aqui, e que parece claro das linhas pretéritas, é
que é possível coadunar a investigação científica com a investigação jurídica no que diz
respeito ao elemento verdade uma vez que se admita que a verdade de que se fala é a verdade
abdutiva de Peirce.
O que se entende é que, repise-se, a verdade é catalisadora tanto do summum bonum
da ciência como do summum bonum do direito. Talvez por enfoques diferentes, mas não quer
parecer correto afirmar que se possa buscar o ideal de justiça, o qual é inalcançável, por isso
se chama aqui de ideal, por meio de investigações de eventos que não possam ser
confirmados por uma verdade sobre eles. O processo de gravação seria defeituoso e,
fatalmente, não levaria a uma convenção.
Aqui não se trata de verdade, como se disse, no sentido da lógica clássica, mas sim
verdade no sentido de concordância de uma gravação geral e potencial com um limite ideal
que somente um continuum de investigação pode trazer crença, o que se alcança pelo
empenho do método abdutivo peirceano.
Pelo que aqui se defende, a investigação jurídica deve buscar o ideal de justiça, bem
como a interpretação e aplicação do direito deve, igualmente, buscar esse ideal. Isso é longe
de se ser ingênuo. Ao contrário, quer parecer óbvio que, uma valoração jurídica de eventos
ocorridos e gravados pelo legislador como passíveis de desencadear consequências de
direito, que não possa ser de alguma forma gravada em linguagem cotidiana e, portanto, ser
verdadeira na crença cotidiana, não pode ser considerada como uma investigação jurídica
que busca justiça.
Assim, se Reale diz que direito também é valor, não seria possível conceber um
direito que não seja verdadeiro nesse enfoque de investigação e, portanto, que persiga nas
suas entranhas o valor de justiça a todo tempo, mesmo que justiça não se possa fazer a todo
o tempo, eis que um ideal.
Nesse enfoque, o que se chama “fato jurídico” pela doutrina é um processo
semeiótico-jurídico de gravação da ocorrência de um evento na experiência sensível, cujas
consequências implicadas, por serem relevantes ao direito, foram gravadas de maneira geral
e potencial no signo jurídico.
O legislador, assim, grava um evento de potencial ocorrência, mas que não deixa de
ser real porque eventos futuros também são reais e seus efeitos são juridicamente relevantes.
A autoridade competente, como no caso do juiz de direito, grava individualmente ou
256
singularmente a ocorrência, agora não mais futura ou potencial, do evento juridicamente
relevante. Disso decorrem os efeitos (efeito impositivo da gravação jurídica), os quais eram
de potencial ocorrência na gravação geral e potencial do legislador e na gravação, por
exemplo, do juiz de direito, são individuais ou singulares e concretamente verificados no
mundo sensível. Como diz Ross, nos termos já mencionados, a realidade é uma totalidade
concreto individual.
A diferença dessa aproximação do tema é que, tanto o legislador quanto o juiz se
referem a eventos que não são juridicamente construídos ou criados, mas sim gravados, de
modo que o efeito não poderia ser constitutivo.
Nessa visão, o legislador quando grava eventos de possível ocorrência, o faz se
utilizando do uso competente da língua. É na porção do circuito em que está a língua que
isso é possível. Desse modo, quando fala em renda, lucro, receita, etc., articula esses signos
necessariamente em uma operação de gravação da linguagem jurídica que parte de uma
linguagem ordinária, tudo se operacionalizando pelo meio de expressão da língua
portuguesa.
Se assim o é, ainda que com diferenças, como é o caso de dizer no direito tributário,
por exemplo, que lucro tributável é aquele que se concebe tecnicamente a partir da
linguagem contábil, mas modificado por adições e exclusões, o que chama o legislador
tributário de lucro real, o legislador o faz tocando (gravando) de algum modo a summa
realidade, de modo que existe um mínimo de linguagem ordinária que tem de ser mantido
nas gravações jurídicas. No caso do exemplo, o mínimo refere-se a um lucro contábil (da
linguagem contábil) com algumas variações que são juridicamente relevantes.
Diante dessa postura, há uma submissão irremediável do direito ao que se
convenciona na linguagem ordinária para fins dos usos competentes das palavras (ou do que
se chamou acima signos linguísticos, porque palavras também são signos).
Não é possível esticar em demasiado os usos para atender a juízos de conveniência e
oportunidade do direito, a não ser que algum valor juridicamente relevante seja justificado
para tal e, mesmo assim, algum mínimo de linguagem ordinária tem de ser mantido, eis que,
se não há esse mínimo, de gravação não se pode falar e, se de gravação não se pode falar, é
porque não se trata de um signo linguístico.
Diga-se, pois, que o que se convencionou no léxico das gentes, que está na mente das
pessoas, não pode ser afastado, sob pena de se criar uma realidade semeiótica do direito sem
eficácia sobre aqueles a quem é direcionada.
257
Desse modo, um signo jurídico que não se conforme com esse processo, implicando,
pois, uma aplicação do direito que estique despropositadamente a realidade, resultará em
discordância da linguagem jurídica com a linguagem das gentes, o que fará o sistema ruir
pela quebra na busca do ideal de justiça que tal atitude implica.
Ainda que não se possa alegar a ignorância da lei, tal não justifica ao legislador dizer
que mesa é cadeira e vice-versa. Poder-se-ia dizer, no entanto, que há decisões nesse sentido,
as quais criam realidades alheias à summa realidade. Porém, se assim o é, a solução da
problemática se revela muito simples: essas decisões são antijurídicas, pois direito é
linguagem gravadora, e a linguagem ordinária (cotidiana) é a linguagem gravada, a qual se
articula no Brasil na língua portuguesa.
Nenhum aplicador do direito pode fugir disso e mesmo que o faça, a investigação
jurídica tenderá a trazer um dia uma nova crença jurídica que reerguerá a justiça ao seu
patamar, evitando a ruina do sistema. Frise-se: trata-se de um ideal – de um continuum; essa
é uma tendência que o ideal de justiça deve gerar na investigação jurídica, a qual leva à
aplicação do direito.
Nessa visão, não seria possível sustentar, pois, que as provas no processo são
meramente uma articulação retórica, no sentido de serem apenas fundamento para justificar
a aplicação de regras jurídicas em uma decisão judicial.
Isso ocorre porque não se pode olvidar que a gravação na linguagem do direito,
dentro da postura realista que aqui se adota, depende, de alguma forma, da experiência
sensível (justamente porque de uma gravação se trata), não se fazendo crença jurídica, sem
que exista uma crença social anterior.
Está-se aqui a falar de prova, mas da definição de prova ainda não se cuidou. Traga-
se, por pertinente, tal definição nas palavras de Miranda (2012, p. 523):
Dizer-se que prova é o ato judicial, ou processual, pelo qual o juiz se faz
certo a respeito do fato incontroverso ou do assento duvidoso que os
litigantes trazem a juízo [...] é processualizar-se, gritantemente, a prova. A
adução, introdução ou apresentação da prova tanto pode ser em juízo como
fora dêle. [...] Pensar-se em prova judicial quando se fala de prova é apenas
devido à importância espetacular do litígio, nas relações jurídicas entre os
homens. As provas destinam-se a convencer da verdade; tal o fim.
Aludem a alguma declaração de fato (tema probatório), que se há de
provar. Não só têm por fim convencerem juízos, nem só se referem a
declaraçãos de fato que se fizeram perante juízes. A adução ou
apresentação da prova compreende sua proposição (indicação da prova
com que se provará o que se afirmou) e a produção (=execução da prova),
Meio de prova é o meio pelo qual se prova. Quando o juiz, ou alguém,
258
perante quem se prova julga provado o fato, em verdade enunciou, a
seu turno, o mesmo que o interessado enunciara (=com-venceu-se).
(Destacou-se).
Miranda (2012, p. 523), de maneira fulminante, afasta o elemento meramente retórico
que alguns podem querer defender em relação às provas no processo. “Destinam-se a
convencer da verdade”, diz ele, de modo que, pelo o que aqui se defende, são espécies de
gravações que se submetam à lógica do verdadeiro ou falso dentro do método abdutivo na
lógica peirceana.
Desse modo, a prova processual, a qual traz ao processo judicial a ocorrência de um
evento, permitindo, assim, uma decisão judicial, deve se submeter a uma verdade sobre a
ocorrência desse evento.
Gravar um evento “falso”, ainda que sirva apenas de retórica, é fazer injustiça, pois
a própria crença do justo é algo que passa pela crença social do justo. Ao se gravar um
evento “falso”, a gravação é antijurídica, devendo ser revista e considerada dessa forma.
A verdade sobre a ocorrência de eventos passíveis de resultados jurídicos é também
e, isso não se nega, uma convenção. Nesse caso, uma convenção jurídica (crença jurídica),
mas essa crença se submete de alguma forma à realidade sensível.
Não é possível dizer no processo judicial que um elefante é amarelo, por exemplo.
Essa crença não concorda com o limite ideal que a investigação acerca de um elefante tende
a trazer em termos de crença ainda que falível. Não se trata, pois, de uma gravação em si
mesma, pois que não há nela o necessário entrelaçamento com a realidade sensível.
Veja-se que, mesmo que se tirasse uma foto de um elefante pintado de amarelo e se
persuadisse por tal prova a convencer uma autoridade jurídica de que elefantes são amarelos,
uma investigação mais apurada, em algum momento, tenderia a trazer crença jurídica de que
elefantes não são amarelos – tenderia a desaguar em uma nova gravação sobre a summa
realidade do elefante.
Veja-se que isso não implica que o direito não tenha um fim, que existam regras de
prescrição, decadência, de preclusão, ou garantias ao direito adquirido, ato jurídico perfeito
e coisa julgada, ou, ainda, princípios como o da irretroatividade e anterioridade. A relação
do direito com o tempo e o passado será abordada na Parte 5 deste trabalho.
Para não deixar de se enfrentar o tema nesse momento, diga-se apenas, que, ao se
defender a possibilidade de uma investigação interminável também no direito, a exemplo do
que ocorre na ciência, o que se defende é que universais (gravações universais) podem
259
sempre ser atualizados, eis que dependem da linguagem cotidiana para que a gravação
ocorra.
No exemplo do elefante, isso é válido, eis que se um juiz, aplicando o direito, por um
equívoco, gravar, por exemplo, que todos os elefantes são amarelos, por conta de uma prova
“falsa” apresentada no processo judicial e, essa decisão passar em julgado definitivamente,
escoando-se ainda o prazo para apresentação de ação rescisória, mesmo assim, em algum
momento, essa gravação da realidade do elefante seria atualizada por outro aplicador do
direito, o qual gravaria uma correta porção dessa realidade.
É verdade que para aquela parte no processo essa gravação “falsa” permaneceu, mas
isso não quer dizer que, por isso, ela tenha se tornado menos “falsa”. No caso dessa parte no
processo foi feita injustiça, mas como se disse acima, fazer ou não justiça no caso concreto,
não é o que determina a crença jurídica. O que determina a crença jurídica é a perseguição a
um ideal. Que ideal? O ideal de justiça.
Ele não precisa ser alcançado a todo o tempo, eis que um ideal, o que não se pode
admitir é que no direito ele não seja buscado ainda que como um summum bonum. Isso
resolve facilmente a questão de uma pretensa incompatibilidade entre a investigação
científica e a jurídica no que diz respeito a tenderem ao infinito, ajustando crenças
atualizáveis porque sempre falíveis.
Repise-se, para que reste claro, que a investigação jurídica que tende a trazer crença
jurídica sobre determinado limite ideal é sim interminável. Interminável porque um
continuum. Infinita porque o direito é bem cultural e evolui com as crenças das gentes. A
investigação está, em relação ao seu fim, sempre “em suspenso”.
Ainda que o a Suprema Corte grave que todos os elefantes são amarelos, uma
investigação jurídica tenderia a trazer crença jurídica para estabelecer que elefantes não são
amarelos. Talvez em um momento e espaço históricos diferentes. Porém, essa evolução do
direito, seguindo o social, não pode ser negada, eis que a crença jurídica é sim absolutamente
atualizável e falível.
Talvez não para a parte daquele processo, no qual se fez injustiça. Porém, a gravação
falsa, inclusive para aquela parte do processo, que gravou que todos os elefantes são
amarelos, continuará no sistema jurídico, mas será uma gravação antijurídica porque
inverídica e, se inverídica, não tendeu a uma crença de justiça.
Além disso, ainda que no sistema jurídico para aquela parte no processo ela continue,
eis que já surtiu seus efeitos, quando houver uma nova gravação que trouxer nova crença
260
acerca dos elefantes e gravar que eles não são amarelos, essa gravação particular, ainda que
já tenha surtido seus efeitos, na parte de gravação universal do tipo todos os elefantes são
amarelos será extirpada do sistema, não podendo valer como precedente para outras
decisões, o que justifica dizer que o que se implicou foi que um efeito injusto se fez, mas
que a investigação sobre a realidade descobriu a injustiça e atualizou a gravação na parte de
sua universal.
Nesse contexto, diga-se que ainda que a crença pareça terminantemente justa agora
no sentido de que elefantes não são amarelos aos olhos do direito, mesmo assim, a
investigação continuará sendo interminável, eis que o relógio do jogo jurídico continua a
correr no que diz respeito às universais na gravação, podendo-se, um dia atualizar-se a
universal para gravar que elefantes agora são vermelhos, por exemplo, o que poderá ser
novamente corrigido, e corrigido e... (em um continuum).
Além disso, sob outra perspectiva, pode-se dizer, igualmente, que mesmo no caso
daquela parte em que a gravação pareceu injusta, em verdade, não se tratou de injustiça
nenhuma, eis que os interesses em jogo que implicam a garantia da coisa julgada não se
direcionam somente àquela parte no processo individualmente, mas a toda a sociedade, de
modo que garantir os efeitos da coisa julgada, é também perseguir o ideal de justiça, eis que
justiça como convenção não é de um, mas de uma comunidade inteira.
Esses pontos restam ainda mais claros quando são analisadas as decisões das Cortes
mais altas do Judiciário nacional, as quais são vacilantes, mudando de ideias de um ano para
o outro sobre temas que pareciam já consolidados, como exemplos transcritos acima acerca
de decisões do Superior Tribunal de Justiça.
Não faz sentido voltar aos exemplos, pelo que se roga que se verifiquem os mesmos
mais acima no texto. De qualquer forma, o que se pode dizer é que novas composições dos
tribunais posteriores podem agregar novas mentes jurídicas à sua composição e, dessa forma,
trazer nova crença jurídica sobre temas, ainda que a crença jurídica anterior fosse diferente,
de modo a corrigir eventuais gravações deficientes.
É por isso que se trata de uma questão de verdade, eis que uma nova concordância
entre gravação geral e potencial e o limite ideal prevalecerá diante da investigação jurídica
que se desempenhou. Não é preciso que se mude o grupo de mentes para se mudar a crença,
deixe-se claro, um mesmo grupo de mentes pode mudar de ideia também, como ocorre a
todo o momento no Superior Tribunal de Justiça.
261
Além disso, ainda que se diga, por exemplo, em questões de constitucionalidade,
julgadas na Suprema Corte, que essa poderá modular os efeitos da decisão, de modo que se
aplique somente para a frente, permitindo que direitos subjetivos sejam violados para trás,
mesmo nesse caso, não implica isso que a investigação seja pontual e não dinâmica como
aqui se defende.
É dinâmica porque a universal na gravação pode ser atualizada a qualquer tempo.
Quando a Suprema Corte muda de ideia sobre um tema tributário, por exemplo, a
inconstitucionalidade ou constitucionalidade da inclusão do ICMS na base de cálculo do PIS
e da COFINS (Ação Declaratória de Constitucionalidade - ADC 18 e Recurso Extraordinário
574706), e modula os efeitos da decisão para valerem somente prospectivamente, isso não
retira o caráter dinâmico da investigação jurídica. Ao contrário, isso prova cabalmente que
a investigação é interminável e que o relógio do jogo jurídico, ao menos quanto à universal
da gravação, continuou correndo.
No caso do ICMS, a universal, que pode ser atualizada por uma investigação
dinâmica, é algo do tipo: “Todos os tributos não são receita tributável”. Se o ICMS é tributo,
logo não pode ser a receita tributável pelo PIS e pela COFINS.
Essa universal “todos os tributos não são receita tributável” busca supedâneo na
linguagem contábil, a qual, nesse caso, seria uma linguagem gravada pela linguagem de
gravação do direito. A investigação interminável permitirá trazer crença jurídica de que
tributo não é receita, de modo que o ICMS não pode estar na base de cálculo do PIS e da
COFINS.
A possibilidade dessa atualização é um continuum, ainda que alguma parte tenha sido
vencida (alguém é con-vencido) e, mesmo que a modulação de efeitos se opere
prospectivamente, o que não é uma regra, deixe-se claro, mas uma faculdade dos ministros
da Suprema Corte, os quais podem aplicar o direito aos casos passados, o que se tem é que
a justiça no caso concreto deverá ser mais uma justiça na generalidade do tecido social.
Assim, os interesses em jogo e eventuais direitos subjetivos tolhidos não implicam
quebra na perseguição do ideal de justiça. Ao contrário, se há modulação de efeitos para
frente, isso implica que, em determinado caso, a Suprema Corte entendeu que os efeitos aos
cofres públicos poderiam ser mais nocivos à sociedade brasileira do que a preservação dos
direitos subjetivos daqueles que poderiam pleitear em juízo a recuperação de valores pagos
a título de PIS e COFINS a maior nos últimos cinco anos.
262
Isso demonstra uma tendência a uma crença de justiça, a um ajuste justo aos
interesses da sociedade e não o contrário. É por isso que esse ideal de justiça é sempre
inalcançável, pois que ajustável no caso concreto, mas como summum bonum, deve sempre
orientar as decisões judiciais.
A prova judicial, repita-se, não é mera retórica, mas sim um elemento do processo
judicial que se submete à verdade jurídica, a qual está relacionada com uma verdade que
atinge em alguma instância a experiência sensível.
Portanto, dizer que algo está provado submete essa prova à verdade sobre o que se
prova, ou seja, sobre a verdade de uma summa realidade. Nessa visão, prova é, de maneira
simples, uma espécie de gravação sobre a ocorrência de um evento passível de efeitos
jurídicos, para o qual, naquela coordenada de espaço e tempo, uma autoridade jurídica
competente entendeu verdadeira (juízo de verdade falível). A falibilidade dessa verdade
traz, diferentemente do que se pode pensar e, como já se colocou, segurança jurídica e certeza
de um direito justo e não o contrário.
A linguagem jurídica, como já se disse à saciedade, é uma linguagem de gravação
de diversas outras linguagens possíveis (social, médica, contábil etc.). Todas elas, no
entanto, necessariamente se articulam pelo meio de expressão de uma língua (no Brasil pela
língua portuguesa). O mesmo se diga da linguagem das provas jurídicas como espécie de
linguagem jurídica gravadora.
Para fixar as ideias aqui defendidas em relação às provas, deve-se articulá-las com a
ideia também aqui defendida acerca da diferença entre evento e fato, aplicando-se as
premissas do tópico anterior a casos do direito.
Nesse contexto, trabalhe-se com o exemplo do crime de homicídio. O legislador
gravou que aquele que mata alguém incorre nas consequências aplicáveis a tal crime.
Assim, diga-se que no mundo sensível José enfiou uma faca no coração de Maria,
levando Maria a óbito. Isso implica que José matou Maria. Ao se gravar tal evento tem-se
um nominal perfeito: a morte de Maria por José (similar à travessia do Rubicão por Cesar).
A morte de Maria por José é um evento ou é um fato? Bem, para responder essa
pergunta, como se viu, Vendler pede para se perguntar acerca de quais verbos e adjetivos
falam do acontecimento que se analisa. Pergunte-se então: a morte ocorreu, tomou lugar,
pode ser vista, observada, foi gradual, violenta, prolongada? Se alguém faz essas perguntas,
as respostas serão positivas.
263
Então, a morte de Maria por José é um evento e não um fato, eis que não se pode
dizer que o fato da morte de Maria por José ocorreu, tomou lugar, foi gradual, prolongado
etc. Isso pode ser dito, no entanto, em relação ao evento da morte de Maria por José.
Outra pergunta cabe aqui. Viu-se que para estar no mundo um acontecimento precisa
se submeter às coordenadas de espaço e tempo. Se há tal submissão, diz-se que esse
acontecimento está no mundo.
Veja-se então que é possível no uso competente da língua dizer que o evento morte
de Maria por José ocorreu às 19:37 do dia 23.6.2016 na cidade de São Paulo, bairro de
Pinheiros, no edifício Eldorado. O evento, pois, se submete às coordenadas de espaço e
tempo, tendo em vista que o evento ocorre no mundo e no tempo no mundo.
Porém, veja-se se é possível dizer o seguinte: o fato morte de Maria por José ocorreu
às 19:37 do dia 23.6.2016 na cidade de São Paulo, bairro de Pinheiros, no edifício Eldorado.
Não parece correto dizer isso. Por quê? Porque fatos não ocorrem em um espaço e não tem
tempo em si mesmos, eis que não se submetem às coordenadas de espaço e tempo.
Restou claro que a morte de Maria por José é um evento, é um nominal perfeito que
grava tal evento e não se trata de um fato. Bem, agora como esse evento é gravado na
linguagem jurídica?
É da seguinte maneira que se enxerga essa gravação. À autoridade jurídica chegará
uma gravação de uma outra autoridade jurídica competente para gravar um evento com
repercussão criminal, como é o caso do evento-morte. Quando essa gravação é feita e levada
à autoridade jurídica, ela também é levada na forma de um nominal perfeito do tipo “a morte
de Maria por José”.
Há outras circunstâncias do evento-morte que interessam ao direito penal, como os
motivos que levaram ao evento-morte pela parte de José, mas essas circunstâncias podem,
igualmente, ser gravadas dentro do nominal perfeito. Diga-se que Maria não queria se
reconciliar com José após a separação conjugal, sendo essa uma circunstância relevante para
o direito penal.
A autoridade jurídica competente receberá a gravação de um evento mais ou menos
dessa forma:
O Ministério Público Estadual, por meio de seu representante que esta
subscreve, no uso de suas atribuições legais, nos termos do art. 41 do CPP,
com base no inquérito policial de número em epígrafe (anexo), vem,
respeitosamente, perante Vossa Excelência, oferecer DENÚNCIA em face
de José pela infração penal a seguir descrita:
264
Consta do incluso inquérito policial que no dia 23.6.2016, às 19:37, na
cidade de São Paulo, bairro de Pinheiros, no edifício Eldorado, José
munido de uma faca, desferiu golpe fatal contra Maria, produzindo-
lhe os ferimentos descritos no laudo de necropsia às fls. nº, os quais
foram as causas efetivas de sua morte.
Apurou-se, ainda, que o motivo da morte se referiu à negativa de
Maria de se reconciliar com José após uma separação conjugal.
Isto posto, denuncio José como incurso no artigo 121, “caput”, do Código
Penal, e requer esta Promotoria de Justiça seja recebida a presente denúncia
e processado o Declaração, observando o procedimento especial previsto
na legislação processual penal para os crimes dolosos contra a vida e a eles
conexos, requerendo, ainda, seja citado e notificado para responder os
termos da presente e acompanhá-la até decisão interlocutória de pronúncia
para, ao final, ser julgado pelo Egrégio Tribunal do Júri Popular desta
comarca, com sua final condenação, bem como sejam intimadas e ouvidas
as testemunhas abaixo arroladas. (Destacou-se).
A gravação jurídica-concreta da autoridade criminal competente direcionada ao juiz
competente grava com detalhes o evento. Essa é a gravação judicial do evento, ou seja, de
que ocorreu uma morte: a morte de Maria por José e que essa morte ocorreu por motivo torpe
(negativa da reconciliação). Se fosse possível atribuir um título à gravação, esse título seria:
a morte de Maria por José por motivo torpe. Esse título é o nominal perfeito que grava o
evento-morte por motivo torpe.
Esse é o evento que chega à autoridade jurídica competente para dizer sobre as
consequências jurídicas para José decorrentes da gravação que recebeu, ou seja, a gravação
que grava juridicamente a ocorrência do evento-morte de Maria.
Analisando a gravação jurídica que recebeu, a autoridade jurídica competente assim
se pronuncia:
Vistos etc.
Adoto como relatório as fls. 242/244 dos autos.
Submetido(a) a julgamento perante o TRIBUNAL DO JURI o pronunciado
José, já devidamente qualificado nos autos, o douto Conselho de Sentença,
rejeitou a tese apresentada pela defesa de NEGATIVA DE AUTORIA
POR 05 SIM e 02 NÃO no 1º quesito.
O Júri ainda reconheceu a qualificadora da prática do crime por motivo
torpe, por 05 SIM e 02 NÃO, no terceiro quesito.
Como se vê, o JURI reconheceu a responsabilidade criminal do
pronunciado acima declinado, pela morte da vítima Maria, pelo crime de
homicídio qualificado previsto no artigo 121, §2º, inc. II DO CÓDIGO
PENAL BRASILEIRO, que prevê a PENA DE 12 A 30 ANOS DE
RECLUSÃO.
[...]
Isto posto, CONDENO José a pena base de 12 anos de reclusão, fixo a pena
base em definitiva e concreta em 12 anos de RECLUSÃO, com fulcro no
art. 121,§ 2, INC. II do CPB.
265
[...]. (Destacou-se).
Veja-se que o resultado de todo o processo é um nominal perfeito: A MORTE DA
VÍTIMA MARIA. Fala-se de um evento. Portanto, o que se verifica é que tanto a autoridade
jurídica que denuncia (Ministério Público Estadual), como a autoridade jurídica que julga
(juiz presidente do tribunal do júri), gravam eventos. A autoridade jurídica que denuncia
grava um evento conforme gravação que lhe foi levada pela pela autoridade jurídica
inquisidora (delegado de polícia).
Há uma autoridade que grava mais próximo do evento, é a autoridade jurídica que é
responsável pelo inquérito policial (o delegado de polícia), mas essa tampouco viu ou
presenciou o evento-morte, mas pode ter ouvido de alguma testemunha ocular que
presenciou o ocorrido. Supõe-se, para o presente caso, para ficar mais claro, que havia uma
testemunha ocular e que esta presenciou José matando Maria.
Essa testemunha é como uma testemunha que tivesse presenciado Cesar atravessando
o Rubicão. Ela presenciou o evento mesmo, o acontecimento natural. Ainda assim, o que se
tem acesso é à gravação.
O ponto salutar em todos os casos (testemunha, policial, delegado de polícia,
promotor público e juiz) é que o fundamento é sempre uma gravação, mas não uma gravação
qualquer, mas uma que grava a ocorrência de um evento (nominal perfeito – a morte de
Maria por José), que para o direito implica consequências também de direito.
No final desse processo, o que se quer é que com base em um acontecimento se
implique consequências jurídicas a José, como é o caso da reclusão de José por imposição
do sistema de direito positivo que traz essa consequência para a ocorrência do evento-morte.
Quer-se, pois, investigar, apurar o que ocorreu na summa realidade, (neste caso de
natureza antropomórfica por se tratar de um evento, no qual houve a participação do homem,
o que é diferente daquelas realidades objetais, nas quais, o que há é somente um objeto), para
que se possa definir a repercussão jurídica dessa ocorrência.
Portanto, no exemplo trazido, o juiz, ao final do processo, não atribui consequências
jurídicas baseado em um fato, mas sim em um evento que lhe foi levado por meio de uma
espécie de gravação com base em um ciclo de outras gravações anteriores, que partem de
um chão único: o evento no mundo sensível.
Não se baseia o julgamento do juiz que impõe consequências privativas da liberdade
de José em um fato, mas sim em um evento. Há um evento absoluto e um evento linguístico,
266
da mesma maneira que há uma summa realidade e uma realidade semeiótica. O evento
semeiótico grava o evento absoluto na linguagem jurídica. Não há se falar, pois, em fato
jurídico.
Isso se deve à fulminante consequência de que a palavra fato é equívoca e ambígua,
eis que grava no seu signo linguístico algo que não é um fato, mas um evento, ao menos para
o que se convencionou em relação ao uso de tal palavra na linguagem jurídica. Isso porque,
como se comprovou, fatos não ocorrem, eis que não estão no mundo, pois não se submetem
às coordenadas de espaço e tempo do mundo sensível.
Toda palavra é também uma espécie de gravação da summa realidade. Lembre-se
que a palavra é uma realidade semeiótica do objeto dinâmico, da summa realidade. Isso quer
dizer que a própria palavra evento é uma realidade semeiótica.
Realidade semeiótica de quê? Não há outra resposta senão dizer que é uma realidade
semeiótica que implica nela uma gravação do próprio evento (summa realidade ou
acontecimento natural ocorrido no mundo sensível, do tipo daquele que a testemunha ocular
presencia). Então, por que falar em fato jurídico diante da possibilidade de uso da expressão
evento jurídico?
O próximo tópico será dedicado à crítica da expressão fato jurídico, que, para fins do
presente trabalho, parece equívoca e ambígua no uso que se convencionou na linguagem
jurídica.
4.7 Crítica à Expressão Fato Jurídico
Guerra Filho (2009, p. 116) traz que:
é imperativo que o labor científico culmine com o estabelecimento de
definições precisas, informadas por dados fornecidos pela experiência,
e significativas dentro de um sistema coerente em que se inserem para que
seja atendido o pré-requisito da comunicação intersubjetiva unívoca e
rigorosa dos resultados alcançados. (Destacou-se).
Ataliba (1973, p. 51) criticou a expressão “fato gerador” amplamente utilizada em
direito tributário, inclusive em toda extensão da própria lei tributária, no sentido de que
deveria ser utilizada a expressão “hipótese tributária” para tratar da gravação abstrata de
possível ocorrência presente na lei e “fato imponível” no que diz respeito à gravação
concreta e individual emitia por uma autoridade competente.
267
A crítica à mesma expressão “fato gerador” ganhou eco em Carvalho (2000, p. 242),
o qual, acerca do tema, traz que o que importa é que a expressão que consta da gravação
geral e abastrata deve:
significar, sempre, a descrição normativa de um evento que,
concretizado no nível das realidades materiais e relatado no
antecedente de norma individual e concreta, fará irromper o vínculo
abstrato que o legislador estipulou na consequência.
[...]
A respeito do fato que realmente sucede no quadro do relacionamento
social, dentro das específicas condições de espaço e tempo, que
podemos captar por meio de nossos órgãos sensoriais, e até dele
participar fisicamente, preferimos denominar fato jurídico tributário.
Fato jurídico porque tem o condão de irradiar efeitos de direito. E
tributário pela simples razão de que sua eficácia está diretamente ligada à
instituição do tributo. (Destacou-se).
No contexto da possibilidade de se criticar uma terminologia equívoca, uma primeira
ponderação que é válida aqui vai no sentido de que é não só possível, mas também
recomendável criticar expressões equívocas usadas pelo legislador e também pela própria
dogmática jurídica.
Foi exatamente o que fez Ataliba e Carvalho, conforme os dizeres anteriores. Uma
segunda ponderação que surge dos dizeres agora específicos de Carvalho, é que parece haver
uma confusão entre evento e fato na sua dogmática.
O autor diz expressamente, conforme transcrição apresentada, de um “evento que
concretizado no nível das realidades materiais fará irromper consequências jurídicas” e
depois fala “do fato que realmente sucede no quadro do relacionamento social, dentro das
condições específicas de espaço e tempo, que podemos captar por meio de nossos órgãos
sensoriais, e até dele participar fisicamente” e, completa por dizer que é “fato jurídico porque
tem o condão de irradiar efeitos de direito”.
Ou o autor utiliza evento e fato como expressões sinônimas ou há um erro
concernente ao uso, pois não seria possível dizer, como se transcreveu acima, que “o evento
está no nível das realidades materiais e fará irromper consequências jurídicas” e dizer, ao
mesmo tempo, do “fato que realmente sucede no quadro do relacionamento social, dentro
das condições específicas de espaço e tempo”.
Isso não faz sentido do ponto de vista linguístico, ainda mais se considerado que
Carvalho (2000, p. 351) trabalha com a diferenciação entre evento e fato. Nesse sentido,
como se pode ter nas coordenadas de espaço e tempo um fato que “realmente sucede” e do
268
qual se pode, inclusive, “participar fisicamente”, se na gravação abstrata de possível
ocorrência se fala em evento?
Como se viu, o problema está na circunstância de que o fato não “ocorre”, pois não
se submete às coordenadas de espaço e tempo, não está no espaço e não tem tempo em si,
de modo que o fato não está no mundo.
Assim, como poderia o legislador gravar um fato de possível ocorrência? Nesse
sentido, Carvalho e Ataliba estão corretos, eis que na gravação abstrata do legislador não
pode haver um fato. O que há, então?
Bem, a resposta parece muito clara e simples: há a gravação de um evento de possível
ocorrência. O sentido aqui é de que o legislador pode gravar um evento da summa realidade
potencialmente, trazendo que sua ocorrência fará irradiar consequências jurídicas.
Obviamente que o evento não está na gravação geral, como tampouco está na
gravação concreta. O que há é uma gravação de uma porção sua em ambas. Em uma, uma
porção de ocorrência futura e na outra, uma porção ocorrida. O evento é uma ocorrência,
ou melhor, uma circunstância ocorrente de espaço e tempo que é extrajurídica: está na
summa realidade.
A pedra de toque aqui, para não parecer que haja uma contradição, porque não há, é
que, no signo jurídico individual e concreto ou conjunto deles (por exemplo, a sentença do
juiz) o evento aparece gravado em uma relação de maior determinação por conta de um
processo de individuação, na linha escotista, que o permitiu ser gravado. Aqui ele, diga-se,
é mais particular, numérico e denso.
Diferentemente, no signo jurídico geral ou conjunto deles (por exemplo, uma lei que
determina o pagamento de tributo no caso de haver renda) o evento aparece gravado de um
modo mais indeterminado – mais potencial, rarefeito. Lembrem-se, como já se viu, que,
segundo Bates e já referenciado acima, a prime matter escotista é “uma coisa básica sem
reais características particulares como cor e peso, mas com a potencialidade de ter tais reais
características. [...] vai junto com a forma da substância material para fazer possível que a
substância como um todo venha a existir”.
Além disso, na linha do que traz Bates, como já se ponderou, Scotus aceitava a noção
de algo meramente potencial, esclarecendo que, em verdade, um indivíduo meramente
potencial está completamente individualizado.
Fundamentado nessa premissa, resta firmemente sustentada a teoria da gravação aqui
proposta, inclusive para fins jurídicos no que respeita aos signos jurídicos gerais, eis que a
269
potencialidade do que ali está gravado não retira do processo de gravação seu materialismo,
do que decorre possível gravar uma summa realidade potencialmente no signo jurídico.
Portanto, esse evento que o signo jurídico geral grava é equivalente à prime matter
escotista e, igualmente, ao que Scotus chama de natureza comum ou comunidade. O
processo de individuação, o que é o mesmo que dizer no direito, incidência jurídica, opera-
se por uma outra entidade, que Scotus chama haecceitas.
Haecceitas (ou thisness), como já se viu, é a entidade de carga positiva que restringe
(para o que aqui se defende, isso quer dizer que grava) a natureza comum ou comunidade
na particularidade. É ela que determina a natureza de algo, que permite dizer “essa coisa”
acerca de algo. É ela que aplica um “esseísmo” na coisa para individualizá-la. Ela restringe
(grava) a natureza de algo e, ao mesmo tempo, pertence a esse algo. No direito, dela decorre
o signo individualizado do evento, no qual o evento se restringe – no qual o evento é gravado
com determinação, individualizando-se o antes potencial.
Assim, no direito, fato jurídico não pode gravar um evento passível de consequências
jurídicas no signo geral, porque lhe falta justamente o elemento natureza comum ou
comunidade da prime matter escotista, freiando-se o processo de individuação pela
haecceitas, o que é equivalente a dizer que o processo de gravação não se pode
operacionalizar por falta de relação do signo com a natureza que se pretende individualizar
(gravar).
Isso se coaduna com o que diz Peirce, como já trazido, no sentido de que signos que
não se referem a objetos não são signos. Assim, no caso do fato jurídico, por inexistência de
uma relação com a natureza do evento, o operador da gravação não grava – o signo jurídico
geral não incide em direção à particularização do evento ocorrido.
O que se deve inquirir aqui é: então, qual é a summa realidade de possível gravação
do signo linguístico fato? A resposta é clara quando se analisa a etimologia das palavras
evento e fato. É do que se cuida agora.
Para usar a terminologia de Pottier, lembre-se que se disse que o significado
semântico diz com o uso convencionado sobre determinada palavra nas mentes das gentes.
O léxico é como um inconsciente coletivo que inclui um ajuste entre as gentes sobre o uso
aceito ou usos aceitos de uma palavra. É uma crença sobre o uso ou usos de uma palavra que
se convencionou aceitar diante de uma determinada coordenada de espaço e tempo. O
significado sintático, por sua vez, na linha do que traz Pottier, é o que se refere à forma de
funcionamento do significante.
270
Em relação ao significado sintático de evento e fato, não há muita dificuldade. São
nomes substantivos. O ponto de relevância em relação a eles é que são nomes substantivos
derivados.
Substantivos podem ser derivados e primitivos. Assim, se diz que âncora é
substantivo primitivo e ancorar é um verbo derivado. Assim, se diz que acontecer é um verbo
primitivo e acontecimento um substantivo derivado.
Em resumo, substantivos podem ser “deverbais”, ou seja, são derivados de verbos.
Esse é o caso de evento e fato. Se são derivados, isso quer dizer que estudar sua origem
(derivação) pode desvendar o segredo de suas diferenças em termos de significado.
Estudar a origem e a evolução histórica dos usos de palavras é algo que cabe à
etimologia. Comece-se pelo estudo etimológico do nome substantivo fato.
A palavra portuguesa fato tem equivalência de uso com a palavra latina factum
(VIEIRA, terceiro volume, 1873, p. 554; FIGUEIREDO, 1913, p. 849; CUNHA, 2007, p.
351).
A palavra latina factum encontra equivalente derivativo no verbo latino făcĭo
(infinitivo presente făcěre) (LEWIS; SHORT, 1879, p. 718; OXFORD, 1968, p. 668;
GAFFIOT, 1934, p. 647; GEORGES, 1898, p. 1042).
Diga-se que os verbos em latim aparecem nos dicionários na primeira pessoa do
singular do presente ativo do indicativo (MORELAND; FLEISCHER, 1990, p. 23) e não
como acontece em português que aparecem no infinitivo.
A origem da palavra latina făcĭo não é absolutamente clara. Oxford Latin Dictionary
(1968, p. 668) traz e Lewis e Short (1879, p. 716) traz e . Em ambos
os casos provenientes do grego.
Em Oxford Latin Dictionary (1968, p. 668), há menção ao sânscrito दधाति (dádhāti).
Em Monier-williams (1899, p. 473), encontra-se ददाति (dádāti). Em termos de equivalência
de uso, os dois têm entradas similares no sânscrito.
.
271
Em resumo, em termos etimológicos, tem-se o seguinte em relação à palavra
portuguesa fato:
Figura 10 – Etimologia da palavra fato.
Fonte: Elaborado pelo autor.
O que deve ser guardado aqui é que fato vem de factum, o qual vem de făcĭo. Făcĭo,
por sua vez, tem equivalente de uso no verbo português em fazer (SARAIVA, 1993, p. 469;
TORRINHA, 1942, p. 323; AZEVEDO, 1957, p. 78; VIEIRA, 1873, p. 604; NASCENTES,
1955, p. 757; FIGUEIREDO, 1913, p. 864). Portanto, fato é um substantivo derivado do
verbo fazer (seu verbo primitivo em português).
Estude-se agora a etimologia da palavra portuguesa evento.
A palavra portuguesa evento tem origem na palavra latina ēventŭs (CUNHA, 2007,
p. 339; ECHEGARAY, 1888, p. 300; FIGUEIREDO, 1913, p. 832; LISBOA 2001, p. 1620;
KLEIN 2003, p. 262; SILVA, 1890, p. 301; VIEIRA, 1873, p. 481).
A palavra latina ēventŭs vem do verbo latino ēvĕnĭo (GAFFIOT, 934, p. 610; LEWIS;
SHORT, 1879, p. 667; OXFORD Latin Dictionary, 1968, p. 625).
Em relação ao verbo ēvěnĭo, revela-se que esse se forma da junção ex18-+venio, ou
seja, prefixo latino ex- adicionado ao verbo latino venio. Isso é confirmado em Oxford Latin
Dictionary (1968, p. 625).
O verbo venio, por seu turno, encontra equivalência no verbo grego βαίνω (baínō) e
no verbo sânscrito गम् (gam, gamati gáchatti,), no verbo gótico quiman ou qiman e do Alto-
alemão antigo queman (Lewis; Short, 1879, p. 1969; OXFORD, 1968, p. 2029). Aqui
encontram-se os equivalentes ao étimo da palavra portuguesa evento.
18 A consoante “x” cai no processo de formação de ēvěnĭo.
272
Em resumo, a palavra portuguesa evento tem a seguinte etimologia:
Figura 11 – Etimologia da palavra evento.
Étimos Estrutura verbal Estrutura nominal
गम् [g a m] (s â n s c rito ) <
Βαίνω [b a ínō] (gre go) <
Venio (la tim) <
ex+venio (la t im) < ēventŭs(latim) < evento (p o rtu g u ê s )
< derivação etimológica
Fonte: Elaborado pelo autor.
O que é muito simples em relação ao nome substantivo fato é extremamente
complexo em relação ao nome substantivo evento. Isso ocorre porque o verbo primitivo, o
qual dá origem ao substantivo derivado evento, não existe em português. Não há em
português o verbo evir, o qual seria a correspondência mais óbvia do verbo latino ēvěnĭo em
português.
Isso cria um problema de semântica, pois que evento é um substantivo derivado e,
para se conhecer seu significado semântico, preciso é conhecer o significado semântico do
verbo primitivo. Veja-se que outras línguas mantiveram os verbos primitivos do verbo latino
ēvěnĭo.
É o caso do italiano. Em italiano antigo, na perspectiva do verbo latino ēvěnĭo
(infinitivo ēvěnĭre), conforme se verifica em Pianzola (1979, p. 35), encontra-se o verbo
italiano evenire em forma linguística idêntica à do infinitivo latino ēvěnĭre.
É também o caso do espanhol. Em espanhol antigo, na perspectiva do verbo latino
ēvěnĭo (infinitivo ēvěnĭre), conforme consta de Echegaray (1888, p. 300), encontra-se o
verbo espanhol evenir em forma linguística idêntica à do infinitivo latino ēvěnĭre. Evenir
quer dizer suceder, acontecer (ECHEGARAY, 1888, p. 300).
Note-se que, tomando em comparação o verbo espanhol evenir, faz todo o sentido
dizer que a equivalência lógica em português para o verbo latino ēvěnĭo seria o verbo evir
(ex-+vir). Ressalte-se que não existe na língua portuguesa tal verbo.
Desse modo, só é possível encontrar uma equivalente de forma indireta. O verbo mais
próximo de ēvěnĭo que se conseguiu encontrar em português foi o verbo avir, conforme
consta de Figueiredo (1913, p. 229), Vieira (1871, p. 680) e Silva (1890, p. 96), o qual quer
dizer acontecer, suceder, dar-se, efetuar-se.
273
Porém, etimologicamente, avir não vem de ēvěnĭo, mas sim de outro verbo latino
adveniō, o qual gera o verbo em português advir, o qual, por sua vez, é verbo primitivo do
nome substantivo advento, mas não de evento.
O verbo primitivo faz toda a diferença em termos de se conhecer o significado de
substantivos derivados. No caso de avir, que é o verbo mais próximo de ēvěnĭo que se
encontrou em português, esse se forma da conjunção de ad19+vir e não da conjunção do
prefixo ex+vir.
Consoante se extrai de Oxford Latin Dictionary (1968, p. 629-630), a presença do
prefixo “ex-” antes do verbo, altera sua dimensão semântica, atribuindo-lhe os usos “fora”
ou “distante”, “ao longo de”, “completamente”, “realização”, “cima” e “força de privação”.
O prefixo “ad” dá conta de “movimento a ou contra”, “em direção a”, “colocar sobre
ou contra” (OXFORD LATIN DICTIONARY, 1968, p. 629-630).
A partícula “ad” dá essa noção de mudança de estado, de superveniência. Ambas as
raízes “ex” e “ad” apontam um sentimento de movimento espacial. A primeira “ex” dá um
senso de localização geométrica-espacial e a segunda um senso de direção cinética.
Bem, por que isso tudo é importante? Porque se quer justificar aqui que evento e fato
são diferentes não só pela circunstância filosófica explicada de estarem ou não no mundo,
mas também pela circunstância linguística de que as palavras evento e fato gravam
realidades diferentes que não são compossíveis entre si.
Isso se deve a uma premissa muito importante que aqui se adota e que já foi
apresentada de que não existem sinônimos, mas somente homônimos, no sentido de que
palavras ou signos linguísticos não gravam significados equivales em suas formas.
Assim, se a palavra é diferente em forma (entenda-se por forma a diferença no meio
de expressão escrito e oral, ou seja, na palavra escrita e na palavra falada, ou melhor, no som
e na ortografia), é porque é também diferente em substância (entenda-se por substância
significado) e, se assim o é, é porque não há uma possibilidade de uso equivalente.
Isso resta muito claro quando se estuda o significado semântico de evento e fato.
Repise-se: significado semântico é aquele que consta do inconsciente das gentes acerca do
uso ou usos possíveis de uma palavra (o dicionário é um aglomerado falível e sempre
atualizável dessa convenção das gentes sobre o uso de uma palavra).
19 A consoante “d” cai no processo de formação de “avir”.
274
Em relação ao significado semântico, de uma maneira muito simples, o que se pode
dizer em relação a evento e fato, é que evento grava a ação do verbo ēvĕnio (não há
equivalente de uso direto em português), que quer dizer, segundo Azevedo (1957, p. 72),
Gaffiot (1934, p. 609), Garnier (1993, p. 440), Georges (1808, p. 961), Lewis e Short (1879,
p. 666), Oxford Latin Dictionary (1968, p. 625) e Torrinha (1942, p. 301), em resumo,
acontecer, suceder, ocasionar-se, sobrevir.
Já fato grava a ação do verbo fazer, cujo equivalente em uso latino é făcĭo, que quer
dizer, segundo Oxford Latin Dictionary (1968, p. 668), Lewis e Short (1879, p. 716), Gaffiot
(1934, p. 647) e Torrinha (1942, p. 323), em resumo, representar, delinear, retratar. Há
também um uso de fazer no sentido de causar, ocasionar, determinar, mas numa ação
diferente do verbo fazer como em “fazer desgosto a alguém” (VIEIRA, Tomo III, 1871, p.
680).
Somente saber o significado semântico ainda não resolve o problema, pois que quer
dizer a ação desses verbos para diferenciar evento e fato no domínio linguístico?
Pois bem. Fazendo um resumo muito grande, pois o tema demandaria muitas páginas,
o que predomina na ação do verbo latino ēvĕnio, para fins do que se quer aplicar nesse
trabalho, diz com uma circunstância de acontecer e o que predomina na ação do verbo latino
făcĭo, para fins do que se quer aplicar nesse trabalho, diz com uma circunstância de
representar (algo).
Frise-se que o que se faz aqui para fins do significado semântico dos verbos que dão
origem a evento e fato, de modo a se permitir diferenciação, é uma eleição do autor do
presente trabalho. Nos dicionários há diversos outros usos possíveis, o que poderia desaguar
ações verbais diferentes das que foram escolhidas anteriormente.
Trata-se do recorte que, para fins desse trabalho, melhor parece permitir a
diferenciação que se quer demonstrar. Por se tratar de uma eleição, leva toda uma
subjetividade do autor, de modo que não é de todo objetiva como se poderia recomendar em
uma análise científica. Porém, que análise científica é pura o suficiente para excluir qualquer
subjetividade?
Há diversos outros pontos que poderiam ser tratados aqui, como a circunstância de
que em latim há casos (ablativo, nominativo, genitivo etc.), o que muda o uso correspondente
de substantivos, alterando-o, assim, no domínio semântico. Porém, isso não será estudado
aqui, por não competir diretamente ao presente estudo e porque demandaria mais um tanto
de páginas que não implicariam explicações tão mais esclarecedoras.
275
Para fins do direito, o que se conclui, para fundamentar linguisticamente a
crítica à expressão fato jurídico, é que não faz sentido utilizar a palavra fato para gravar
um evento, eis que fato leva em si a ação do verbo fazer (făcĭo em latim) e não do verbo
ēvĕnio (não há correspondente verbal em português).
Fato grava no signo a ação de um verbo cujo significado semântico, ou seja, cujo
uso convencionado pela crença das gentes, diz com uma circunstância de revelar (algo),
sendo que a ação do verbo ēvĕnio (verbo primitivo de evento) diz com uma circunstância de
acontecer (no sentido de ēvĕnio, que em português seria algo como “evir”) e é essa ação que
o signo evento grava dentro dos limites do estudo que aqui se realizou.
Desse modo, já existe na língua portuguesa uma palavra que grava uma circunstância
de acontecer no seu signo, é a palavra evento, de modo que se torna despicienda (navalha de
Ockham) a utilização da palavra fato para se referir a um acontecimento natural que é o
próprio evento.
Seria algo parecido com utilizar a palavra relato para gravar a ação do verbo
produzir no signo, quando se sabe que já há um substantivo (que é um signo linguístico)
que grava a ação desse verbo, ou seja, o substantivo produto. O substantivo relato grava
a ação do verbo relatar e não do verbo produzir.
Gravar a ação do verbo primitivo errado em nomes derivados implica alterar
artificialmente o significado das palavras, o que se faz alheio ao uso competente da língua,
podendo gerar distorções graves na comunicação entre as gentes.
Aonde quer que se vá, percebe-se que o uso de fato jurídico é equívoco, ou ao menos
despiciendo, haja vista que há um signo linguístico na língua portuguesa que grava
corretamente uma circunstância de ocorrer (no sentido de ēvĕnio, que em português seria
algo como “evir”), como é o caso da palavra evento.
O signo linguístico da língua portuguesa chamado evento grava uma porção,
pois, de uma circunstância ocorrente de espaço e tempo que é o próprio evento
absoluto, esse na perspectiva da summa realidade, no tempo e no espaço dessa
realidade.
Quando se lê em uma gravação linguística “a morte de Maria por José”, essa
sequência de signos linguísticos é, na sua totalidade, um evento semeiótico. No âmbito do
direito, um evento jurídico-semeiótico em detrimento de fato jurídico.
Na perspectiva da testemunha ocular que presencia a morte de Maria por José, o que
se presencia é um evento também, mas um evento absoluto até que ele seja gravado pela
276
testemunha ocular em um evento semeiótico e depois juridicamente em um evento jurídico-
semeiótico.
Na perspectiva do acontecimento natural ocorrente, o que se tem, pois, é o evento
absoluto que se pode presenciar. Na perspectiva da gravação, o que se tem, diferentemente,
é um evento semeiótico, ou seja, o que se grava é uma circunstância ocorrida de espaço e
tempo. Quando há a gravação passa-se de circunstância ocorrente para circunstância
ocorrida, grava-se o evento absoluto no evento semeiótico.
Assim, o que se diz é que a testemunha presenciou uma circunstância ocorrente de
espaço e tempo (José matando Maria às 19:37 do dia 23.6.2016 na cidade de São Paulo,
bairro de Pinheiros, no edifício Eldorado) e a gravou no signo que transmite à autoridade
jurídica (passa-se a ser circunstância ocorrida).
À mão se tem o signo linguístico evento que grava o evento absoluto, de modo que
não faz o menor sentido fazer uso da expressão fato jurídico, eis que este signo grava, por
lógica linguística, uma circunstância de um revelar em um dos usos possíveis do verbo fazer
em português.
Se Ataliba e Carvalho podem criticar o uso equívoco da expressão fato gerador, a
crítica à expressão fato jurídico está igualmente autorizada, para dizer que é equívoca tanto
quanto o é a expressão fato gerador. Veja-se que em ambos os casos a crítica decorre da
circunstância de que o uso não condiz com a linguagem ordinária.
No caso do fato gerador, pelo motivo de não poder um fato estar previsto em uma
regra abstrata, pois lá somente poderia estar uma gravação de um acontecimento de possível
ocorrência (potencial), sendo que fatos já seriam uma gravação de um acontecimento, de
modo que já não são de possível ocorrência quando chamados fatos.
No caso do fato jurídico, pelo motivo de que já há na linguagem ordinária um signo
mais credenciado para gravar uma circunstância ocorrente de espaço tempo, como é o caso
da palavra evento e não da palavra fato, a qual deveria ser usada para falar de ações ocorridas
do verbo fazer e não relativas à ação contida no nome evento, cuja matriz verbal é outra
completamente diferente (verbo latino ēvĕnio).
Para finalizar, repita-se o que diz Ross, conforme já transcrito, no sentido de que “O
direito pode fazer com que quase todas as circunstâncias imagináveis sejam fatos operativos,
sempre que possam ser descritas em termos da linguagem cotidiana”.
277
O uso competente da língua não levaria a confundir fato com evento, de modo que
essa não é a gravação correta sob a perspectiva da linguagem cotidiana, o que implica no
equívoco uso da expressão fato jurídico na linguagem do direito.
Nesse prisma, o que há é um evento absoluto (que está no mundo das coisas –
externo) e um evento semeiótico (que deve ser visto na perspectiva de signo linguístico).
Disso decorre, igualmente, que, no palco do direito, pode-se falar em: a) evento jurídico (que
seria o que a dogmática chama fato jurídico), o qual é o evento absoluto gravado no signo
jurídico num dualismo que se justifica somente dogmática e pedagogicamente e; b) evento
absoluto, que é o fenômeno na summa realidade, o qual é o objeto gravável no signo jurídico.
Usando a terminologia de Peirce, evento absoluto é objeto dinâmico e evento
semeiótico é objeto imediato. No direito, o primeiro é aquele evento da summa realidade
gravável ou cuja ocorrência potencial é gravada num signo geral jurídico – um evento
absoluto juridicizável. O segundo é o evento na perspectiva semeiótica já gravado no signo
jurídico particularizado – um evento juridicizado.
278
PARTE 5 - DIREITO, TEMPO E PASSADO
Um dos problemas em se falar que as gravações jurídicas dependem da experiência
sensível, de acordo com o realismo peirceano que aqui se defende, refere-se à questão da
limitação temporal no direito.
A problemática jaz na pretensa perpetuidade de uma investigação científica em
comparação com uma investigação jurídica. Fundamentou-se que, o que aqui se chama
evento semeiótico, que é aquela porção do mundo sensível como que gravada pelo legislador
no meio de expressão jurídico competente (que é a legislação) como passível de
consequências jurídicas, poderia ser revisitado numa investigação interminável, de modo a
atualizar a crença jurídica formada, eis que essa também seria sempre atualizável e infalível.
Deu-se como exemplo que o STF e STJ mudam frequentemente de “opinião” sobre
eventos absolutos passíveis de consequências jurídicas, reformando entendimentos sobre
como deve ser a interpretação correta e, por via de consequência, a aplicação das gravações
jurídicas universais, as quais gravam estes eventos absolutos juridicizáveis.
Frise-se, novamente, que o evento quando gravado pelo legislador, à obviedade, que
não é mais absoluto, eis que toda gravação jurídica é linguística, de modo que se articula no
meio de expressão de uma língua, gravando uma porção do evento absoluto no signo jurídico
que é seu meio e fim.
O produto da gravação é um evento semeiótico acerca de um evento absoluto de
possível ocorrência – um evento absoluto juridicizável. Já aquele evento gravado pelo juiz
já não é mais juridicizável, mas sim um evento semeiótico acerca de um evento absoluto
ocorrido – não mais potencial. A haecceitas, para usar a linguagem de Scotus, já operou,
particularizando o evento absoluto juridicizável num signo-gravado semeiótico-jurídico.
Não se quer aqui chamar o evento semeiótico acerca do evento absoluto de possível
ocorrência de hipótese, eis que, na linha do que prega Peirce, proposição geral seria uma
proposição universal, de modo que não hipotética propriamente, uma vez que esta é somente
um particular da universal. Se é um particular não pode ser universal.
Se a proposição é universal, não faria sentido se falar em hipótese, mas sim em
universal, ou seja, essas gravações do legislador seriam do tipo universal acerca de eventos
absolutos de possível ocorrência passíveis de consequências jurídicas, ou algo como se quer
chamar doravante “universal” simplesmente, no sentido de que a gravação geral do
279
legislador é uma gravação de “universais” ou simplesmente uma gravação-universal, eis
que a proposição também é universal e não hipotética propriamente dita.
Quando se lê a gravação jurídica “todos são iguais perante a lei”, o que se saca, no
âmbito da ciência do direito, é uma proposição universal. Porém, não se nega aqui que
“existam” no direito positivo proposições hipotéticas do tipo “se fulano auferir renda, então
deve ser o imposto sobre a renda”. O que se quer dizer é que essa hipotética é somente uma
particular de uma universal e não tanto geral como se pode pensar.
A conclusão aqui é, pois, de que no direito há gravações-universais e gravações-
particulares. A primeira grava um evento absoluto juridicizável e a segunda um evento um
evento juridicizado semeioticamente no signo jurídico decorrente do processo de gravação-
particularizado.
Feito esse esclarecimento de nomenclatura, importa retornar à difícil questão acerca
da limitação temporal no direito, o que se faz no próximo tópico.
5.1 Limitação Temporal e Direitos Subjetivos
Falou-se, anteriormente, que, por exemplo, no crime de falsidade ideológica, o que é
relevante ao direito, é falsear a verdade acerca de eventos [fatos] absolutos que afetem
direitos subjetivos.
Bem, se esse é o núcleo duro de proteção da lei para fins da ocorrência desse evento
absoluto, o que se tem é que direitos subjetivos existem é devem ser preservados. Não se vai
falar de direitos subjetivos, eis que não é o tema desse trabalho e demandaria uma grande
extensão de caracteres para se alcançar um objetivo que não seria, ao menos diretamente,
aplicável o que se quer justificar aqui.
Diga-se somente que, se direitos subjetivos são afetados, seu titular poderá pleitear
uma reparação, além do que uma das finalidades do direito é tutelar esses direitos para que
não sejam maculados. Como visão geral, guarde-se que direitos subjetivos podem ser
exercidos pelos seus titulares.
O direito tem muitas formas de limitações temporais. Não se entrará na explicação e
enumeração de todas elas (fala-se em prescrição, decadência, preclusão etc.). O direito tem
limitações que, ainda que não sejam temporais, são igualmente obstáculos para o exercício
de direitos subjetivos (é o caso da coisa julgada, do ato jurídico perfeito, direito adquirido,
da regra da irretroatividade, da anterioridade).
280
Trata-se de formas juridicamente previstas para brecar o exercício de direitos
subjetivos. Isso se deve a uma visão que está entranhada no direito de que este serve a uma
finalidade, que parece ser única, de dirimir conflitos e, de alguma forma com isso, permitir
a vida em sociedade.
Não quer parecer que seja essa a finalidade primordial do direito, ainda que um dos
objetivos importantes do mecanismo jurídico. Que busca o direito, então?
Bem, uma resposta única seria descuidada, mas o que se pode dizer é que o direito
busca o justo e Justiça é algo que se faz no caso concreto e de maneira convencionada. Agora,
de quem é o interesse no caso concreto; seria um direito da minoria, da comunidade “como
maioria”, de quem é esse direito que o direito tutela?
Novamente, não existe uma resposta única. No entanto, decidir por uma resposta é
sempre uma decisão baseada em uma escolha. Por aonde quer que se vá, em uma visão
antropomórfica, há uma ação volitiva. O legislador mesmo, quando edita a lei, nela grava
não um direito objetivo, mas a sua própria subjetividade no signo jurídico e essa
subjetividade deve gravar uma outra subjetividade, a subjetividade de uma comunidade à
qual o legislador serve como representante.
Há uma ação volitiva, como se disse. Aqui neste trabalho, a ação, por assim dizer, é
também volitiva no sentido de que as ponderações são estabelecidas por meio de escolhas
do gravador dos signos postos no papel de maneira científica. Essas escolhas per si carregam
consigo a subjetividade desse gravador de signos científicos.
No presente trabalho de filosofia do direito, há também escolhas que permitem que
o caminho seja seguido em direção a uma compreensão (aqui no sentido de possibilitar
conhecimento). Trata-se, em certa medida, também de um estudo dogmático.
Entende-se aqui dogmática como ciência descritiva e dogmática jurídica como
ciência descritiva (gravação descritiva) do fenômeno jurídico, dentro de uma teoria jurídica
sobre esse fenômeno. Vale dizer, em relação à teoria jurídica, que são válidas as palavras de
Mach (1986, p. 186):
Nossas teorias são abstrações, as quais, enquanto que colocam no lugar
em relevo o que é importante em certos casos determinados,
negligencia quase necessariamente, ou até mesmo disfarça, o que é
importante nos outros casos. A lei de refração olha os raios de luz como
linhas retas homogêneas, e isso é suficiente para a compreensão do aspecto
geométrico da matéria. Porém, as proposições relacionas à refração
nunca nos guiarão para o fato de que raios de luz são periódicos, que
eles interferem. Ao contrário, o favorito e familiar concepção de um raio
281
como uma não diferenciada linha reta torna muito mais difícil que essa
descoberta ocorra.
As instâncias em que a similaridade entre um fato e uma concepção
teorética se estendem além do que nós postulamos, são raras. No entanto,
quando isso acontece, a concepção teórica pode nos levar a novos fatos,
um caso de refração cônica, polarização circular, e as ondas elétrica
de Hertz fornecem exemplos que militam contra aqueles adiantados.
(Destacou-se).
Isso implica que novas teorias forçam novas leis, o que se baseia não na teoria
propriamente dita no sentido de proposição, mas sim nos eventos (eventos ao invés de fatos)
que proporcionaram mudar essas proposições.
Nesse piso, não deveria haver uma discrepância entre o direito (a exemplo da lei da
refração no exemplo de Mach) com a teoria do direito (a exemplo das proposições
relacionadas à refração), pois que a experimentação (a exemplo dos exemplos de Hertz)
tratará de dar notícia acerca de facetas diferentes dos eventos que darão azo à formação de
uma teoria.
Portanto, o que há, na ciência jurídica (tipo de ciência que é), é uma predominância
informativa ou descritiva necessária e fortemente impactante, que deve possibilitar-se a
partir da melhor observação da summa realidade, orientando novos observadores sobre o
fenômeno, sempre de maneira atualizável e falível.
Dessa forma, no direito, quando as leis jurídicas são elaboradas, devem levar em
consideração aspectos da summa realidade que, graváveis aos olhos do legislador,
implicarão consequências de direito. As facetas da summa realidade gravadas podem,
algumas vezes, tanto no signo jurídico universal, como no signo jurídico particular/singular,
ter passado por um processo deficiente de gravação ou, até mesmo, de aplicação, implicando
que a gravação foi deficitária e levando a que haja uma necessidade de atualização.
Nesse contexto, qualquer gravação de uma summa realidade ou evento absoluto
dela, que por ser o que é, é inexaurível, grava uma porção do objeto gravado (objeto
dinâmico), deixando de lado tantas outras que esse objeto possui, mas isso não quer dizer
que não possa sempre o processo se atualizar para que novas porções sejam gravadas.
Nesse piso, admitindo-se que, tanto no direito, como na ciência do direito, haja uma
investigação para verificação da ocorrência de eventos no mundo sensível, o que se tem é
que não há somente uma função de dirimir conflitos no sistema de direito, mas também de
buscar a verdade, uma verdade que possa implicar justiça, eis que o direito deve tender ao
justo por premissa essencial. A verdade que se quer buscar como proposta desse trabalho,
282
tanto no direito como na ciência do direito, é uma verdade abdutiva porque submetida ao
método abdutivo apregoado por Peirce.
Porém, diga-se que ainda não se tratou especificamente da problemática do tempo
no direito, nem tampouco das situações específicas de garantias jurídicas que obstaculizam
ultimar-se consequências, preservando, de certa forma, o passado consolidado de percalços
vindouros do novo.
Enfrenta-se, em primeiro lugar, a questão temporal. O tempo é um ingrediente
psicológico. Mach (apud MEER; KRUGER e STRAUCH, 2006, p. 74) traz que: “tempo é
uma abstração na qual chegamos por meio das mudanças das coisas”.
Acerca do tempo psicológico, Block (1990, p. 30) considera os aspectos sucessão
temporal, duração temporal e perspectiva temporal, ponderando o seguinte:
Experiências de sucessão, ou a codificação primária psicológica da ordem
das relações entre eventos, envolve características do processamento de
informações dinâmicas: No processo de perceber e codificar um evento,
uma pessoa lembra de eventos relacionados, os quais precederam,
antecipando futuros eventos, ou as duas coisas. [...] A experiência de
duração do que está passando pode diferir daquela em retrospectiva.
Duração experimentada depende de variáveis como o montante de
atenção dedicada à informação temporal., enquanto que a duração
lembrada envolve mudanças contextuais codificadas na memória. [...]
Fenômenos de perspectiva temporal envolvem experimentos e
concepções concernentes ao passado, ao presente, e ao futuro. A
perspectiva temporal difere entre indivíduos, e frequentemente muda
radicalmente quando a pessoa experimenta estados de consciência
alterados [...].
[...] quatro tipos de fatores que influenciam o tempo psicológico:
características do experimentador do tempo, os conteúdos de período
de tempo, as atividades da pessoa durante o período de tempo, e os
comportamentos relacionados ao tempo da pessoa. (Destacou-se).
Como se vê, uma das características que implicam na percepção do tempo é a
sucessão de eventos, algo relacionado a diversos fatores desses eventos, como a relação entre
eles, periodicidade, regularidade.
Outra característica diz respeito ao aspecto duração temporal. Isso tem de ver com o
mecanismo da atenção que se dedica à experimentação do tempo, bem como com alguma
memória de duração já codificada na mente acerca de eventos que duram no tempo.
Ademais, há o aspecto da perspectiva temporal que se relaciona com as perspectivas
de passado, presente e futuro. Finalmente, os fatores que impactam na percepção do tempo
referem-se às características pessoais do experimentador do tempo, aos conteúdos de tempo
283
envolvidos, às atividades praticadas pelo experimentador do tempo, bem como aos
comportamentos do experimentador em relação ao tempo.
Um aspecto de relevante menção, no que se refere à percepção do tempo, é o que se
chama memória semântica, pois relaciona-se diretamente com o uso da linguagem de uma
língua. A esse respeito, Tulving (1972, p. 386) traz o seguinte:
A memória semântica é a memória necessária para o uso da
linguagem20. É um glossário mental, conhecimento organizado que
uma pessoa possui sobre palavras e outros símbolos verbais, seu
significado e referentes, sobre relações entre eles, e sobre regras,
fórmulas, e algoritmos para manipulação desses símbolos, conceitos e
relações. A memória semântica não registra propriedades perceptíveis
da entrada de dados, mas mais os referentes cognitivos de sinais
introduzidos. (Destacou-se).
A memória semântica de Tulvin equipara-se, de alguma forma, ao que se chamou
anteriormente de léxico das gentes, ou melhor, aquele inconsciente coletivo das gentes que
guarda uma memória de uso dos signos linguísticos. Ele é essencial para que se possa
articular signos no meio de expressão de uma língua e, principalmente, para que o fenômeno
da comunicação entre as pessoas seja bem-sucedido.
A percepção do tempo é essencial para se compreender o motivo pelo qual existem
limitações temporais impostas pelo sistema de direito positivo, eis que as características do
experimentador se relacionam com as características de um experimentador social.
Se o experimentador é social, isso quer dizer que a percepção do tempo, ainda que
um tempo psicológico, é também impregnada de um ingrediente social decorrente da
percepção do tempo mental predominante em uma comunidade de fala.
Isso parece um pouco difícil de se compreender sem que se possa aplicar a teoria dos
elementos temporais referentes à memória temporal acima explanada, mas se roga por um
pouco mais de paciência, pois que isso restará claro mais adiante.
Antes disso, traga-se uma parábola do jogo de tênis, o que se faz com influência da
teoria dos jogos de Wittegenstein, mas não nos limites nominalistas que ela propõe para os
jogos de linguagem.
A partir do jogo de tênis, Wittgenstein (2009, p. 53), conceitua o que é jogo,
restritivamente, “como a soma lógica dos conceitos parciais correspondentes”, mas esclarece
que limitações conceituais são traçadas com uma “finalidade especial” de determinar um
20 Language em inglês pode referir-se a uso relacionado com linguagem ou língua.
284
limite, mesmo que ele não exista. Pelo que aqui se interpreta, as regras do jogo seriam os
“limites formais” de qualquer jogo que se jogue, incluindo o jogo da linguagem.
Nesse contexto, diga-se que no jogo de tênis prevalecem regras que permitem que
os tenistas possam jogar o jogo e, se seguirem as regras e forem os melhores, que vençam o
jogo. O objetivo do tenista é sempre vencer o jogo e não continuar jogando como é no jogo
da vida.
O jogo de tênis não tem um tempo máximo para terminar, mas é um jogo que sempre
termina quando um jogador atinge o número de pontos (número de “sets” de “games) totais
necessários, de acordo com as regras do tênis, para ganhar o jogo.
O tênis tem, no entanto, regras de tempo em que um “saque” pode ser levado a efeito,
em que tenistas podem levar para descansar entre “games”, para trocar de “quadra”, para
chegar ao evento de tênis etc.
Tem uma regra, em específico, que também permite o que se chama “desafio” (do
inglês “challenge”), a qual implica que um jogador, quando não estiver satisfeito com a
aplicação das regras de tênis pelo juiz do jogo, possa desafiá-lo e, com a ajuda de gravações
da jogada, que são mostradas no telão da “arena” de tênis, para todos os espectadores, se o
tenista estiver correto em relação à sua insatisfação, o juiz do jogo é obrigado a reformar a
aplicação da regra, uma vez que a prova da gravação apontou dessa forma, dando razão ao
tenista que fez uso do “desafio”.
Em outras palavras, no que diz respeito à ferramenta do “desafio” no tênis, o que se
tem é que a o juiz do jogo interpretou um evento ocorrido no jogo de uma maneira
equivocada, aplicando a regra do tênis também de maneira equivocada, o que implicou na
perda de um ponto por um dos tenistas.
Sentindo-se injustiçado, esse tenista “desafiou” a aplicação da regra pelo juiz do jogo
que o prejudicou, baseando-se para tal na gravação (prova visual) projetada no telão da
“arena” a todos os espectadores. Essa prova visual demonstra como o evento realmente
ocorreu e, sendo a ocorrência favorável ao tenista que “desafiou” o juiz, deverá o juiz
reformar sua decisão de aplicação da regra do tênis dando ganho de causa ao tenista
“desafiante”.
O número de “desafios” por “set” no jogo de tênis é limitado a três desafios
incorretos, é dizer, se o tenista desafia por três vezes seguidas e se prova visualmente que o
desafio não tinha fundamento, ele perde a chance de continuar desafiando naquele set até
285
começar um novo “set”. Se os desafios se provam corretos a partir das gravações, o tenista
pode continuar desafiando o juiz do jogo.
Esse sistema é justo para o tenista? Depende dos interesses envolvidos. A regra do
“desafio” quer parecer querer proteger o direito subjetivo do tenista de não se ver prejudicado
por uma decisão equivocada do juiz que não se baseou corretamente no evento ocorrido no
jogo. Por assim dizer, a decisão do juiz não foi verdadeira e isso se prova pela gravação com
o “desafio”.
No entanto, a regra prevê também que se o tenista errar no seu “desafio” por três
vezes, isso, de certa forma, demonstraria que o juiz vem atuando de acordo com a verdade
dos eventos ocorridos no jogo, de modo que não faria sentido que os desafios se
perpetuassem, pois que também há outros interesses que devem ser levados em conta, outros
direitos subjetivos.
O tenista que desafiou e o juiz não são os únicos partícipes do jogo de tênis. Há o
tenista adversário, a qual não quer ter o jogo parado a todo o tempo com “desafios”
incorretos, pois isso prejudica a dinâmica do jogo e a ele próprio que também quer se sagrar
vitorioso, pois, afinal, a premiação em dinheiro é expressiva.
Há os espectadores que pagaram para ali estar, muitas vezes somas relevantes de
dinheiro, e querem ser entretidos ao presenciar (eles são testemunhas oculares do evento de
tênis e também partícipes de certa forma) a disputa entre os tenistas.
Há a agremiação de tênis que oferece a premiação e é o órgão responsável por
estipular as regras do jogo, inclusive a regra do “desafio”. Há os patrocinadores que
permitem que a agremiação tenha recursos para prover as premiações e organizar os
campeonatos de tênis.
Há os telespectadores que por vezes também pagaram para assistir (pay-per-view) o
jogo de tênis na sua casa e a rede de televisão que comprou os direitos de televisionar o
evento de tênis e pagou para agremiação de tênis por isso.
Notem que há uma pluralidade de interesses envolvidos e direitos subjetivos a serem
preservados que foram mencionados e tantos outros que não o foram. Um jogo de tênis é
equivalente ao jogo do direito, o juiz do jogo de tênis é equivalente ao juiz de direito, os
jogadores a autor e réu, os espectadores à comunidade, as regras de tênis à legislação, a
aplicação e interpretação do juiz de tênis à interpretação e aplicação do juiz de direito, as
pessoas que trabalham na partida, aos funcionários da Justiça etc.
286
Porém, há a regra do “desafio”, para a qual se requer um foco especial de atenção
para se perguntar novamente: ela é justa diante dos eventos ocorridos no jogo de tênis? Não
é exatamente isso o que um juiz de direito deveria se perguntar em cada decisão que emite?
Não é assim como um juiz de direito deveria valorar as provas que são espécies de gravações
que recebe, para interpretar e aplicar a regra de direito? Sua decisão não deve ser sempre
justa ou tendente à justiça para privilegiar o que realmente ocorreu e não prejudicar direitos
subjetivos?
São perguntas difíceis de responder, mas talvez seja mais fácil responder
simplesmente que se parte do pressuposto que todo juiz de direito está de boa-fé, buscando
apreciar os eventos ocorridos à luz das provas, diante de uma operação que possa valorá-las
como verdadeiras e que a sua consciência, ao final desse processo, deveria tender a lhe
permitir, ao menos, sentir que buscou a justiça, ainda que não a tenha “feito” no caso
concreto. O juiz de direito atuará, se assim for, como o juiz do jogo de tênis.
Porém, sabe-se que não é bem assim que as coisas se dão. Muitas vezes no trabalho
do juiz não se tem uma gravação exata à mão do evento ocorrido, muitas vezes prova alguma
há, muitas vezes há lacunas na aplicação da regra jurídica, muitas vezes os funcionários da
Justiça não desempenham suas funções adequadamente, muitas vezes os interesses das
agremiações (aqui comparáveis aos tribunais superiores e ao poder legislativo) são diversos
daqueles em relação à busca da justiça e, por conta disso, não tem como o juiz aplicar a regra
ou o precedente de maneira justa, pois que justiça na regra ou no precedente não há. São
muitas as variáveis, muitas vezes, ou melhor, na maioria das vezes, completamente fora do
controle do juiz de direito.
Para uma coisa, porém, deverá servir o direito e as regras jurídicas; deverão servir
para tutelar direitos subjetivos das partes no jogo do direito (como dos jogadores de tênis) e
não só delas individualmente, mas também da sociedade como um todo para quem o direito
deve servir necessariamente.
É por isso que no jogo de tênis não se pode esperar infinitamente um jogador trocar
de lado da quadra, efetuar o “saque”, ou até mesmo começar o processo que é um jogo de
tênis como um todo.
A parábola com o tênis serve para dizer que no direito, de uma certa forma, tem-se
uma repetição. Há regras de preclusão (como o tempo para o jogador de tênis efetuar o
“saque”), regras de prescrição e decadência para que a ação seja iniciada e o direito subjetivo
287
preservado (como o tempo que o jogador pode levar para começar o processo que é o jogo
de tênis).
Há, também, regras que não permitem que situações já concretizadas no passado
sejam modificadas, como o direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada
(equivalentes à regra de que depois de três desafios incorretos o tenista não pode mais
desafiar). O próprio recurso contra uma decisão judicial é um exemplo de “desafio”, como
o que ocorre no jogo de tênis.
Há uma regra21 no jogo de tênis que diz o seguinte:
Todo jogo efetivamente terminado independentemente de ter sido
realizado de acordo com os itens descritos no regulamento será
considerado válido.
É de responsabilidade dos tenistas o conhecimento das regras e nenhum
jogador poderá alegar seu desconhecimento para solicitar
cancelamento de qualquer partida efetivamente realizada. (Destacou-
se).
Para o tênis, o jogo terminado de acordo com as regras estipuladas, é considerado
válido e os jogadores não podem alegar desconhecimento das regras como fundamento para
cancelar o jogo que foi terminado.
Não se trata de uma regra equivalente à da coisa julgada e daquela, nos termos da
Lei de Introdução ao Código Civil, que a ninguém é dado escusar-se de conhecer a lei? O
jogo do direito ainda permite um mecanismo que o jogo de tênis não permite, que é o da
ação rescisória.
O Código de Processo Civil de 2015 prevê:
Art. 966 A decisão de mérito, transitada em julgado, pode ser rescindida
quando:
I – se verificar que foi proferida por força de prevaricação, concussão ou
corrupção do juiz;
II – for proferida por juiz impedido ou por juízo absolutamente
incompetente;
III – resultar de dolo ou coação da parte vencedora em detrimento da parte
vencida ou, ainda, de simulação ou colusão entre as partes, a fim de fraudar
a lei;
IV – ofender a coisa julgada;
V – violar manifestamente norma jurídica;
VI – for fundada em prova cuja falsidade tenha sido apurada em
processo criminal ou venha a ser demonstrada na própria ação
rescisória;
21 http://www.tenispaulista.com.br/site/index.php?cat_id=228. Acesso em 29 de julho de 2016 às 08:18.
288
VII – obtiver o autor, posteriormente ao trânsito em julgado, prova
nova cuja existência ignorava ou de que não pôde fazer uso, capaz, por
si só, de lhe assegurar pronunciamento favorável;
VIII – for fundada em erro de fato verificável do exame dos autos.
§ 1º Há erro de fato quando a decisão rescindenda admitir fato
inexistente ou quando considerar inexistente fato efetivamente
ocorrido, sendo indispensável, em ambos os casos, que o fato não
represente ponto controvertido sobre o qual o juiz deveria ter se
pronunciado.
[...]
§ 4º Os atos de disposição de direitos, praticados pelas partes ou por
outros participantes do processo e homologados pelo juízo, bem como
os atos homologatórios praticados no curso da execução, estão sujeitos
à anulação, nos termos da lei. (Destacou-se).
Veja-se que no direito, mesmo com o jogo “terminado”, é possível “cancelar” esse
jogo se presentes os eventos mencionados na regra da ação rescisória. O primeiro evento ou
série deles que, se ocorrido, dá azo à ação rescisória diz com situação do próprio juiz de
direito (prevaricação, concussão, corrupção, juiz impedido ou incompetente) que tomou a
decisão que se finalizou no processo judicial.
O segundo evento diz com a situação das partes no jogo jurídico, por meio de atitudes
que podem viciar o convencimento (dolo, coação, simulação e colusão) em relação aos
eventos ocorridos e que levaram à imposição de consequências jurídicas em um jogo
processual já finalizado.
O terceiro evento diz respeito à violação de uma regra posta no sistema de direito
positivo. Nesse caso, trata-se de um conflito de regras, por se assim dizer, eis que a própria
decisão é também uma forma de regra jurídica (gravação jurídica), de modo que, se existente
o conflito entre essas regras, poderá ser aplicada a regra que permite a ação rescisória.
O quarto evento, que se ocorrido, possibilitará a ação rescisória, é o de a decisão que
terminou o jogo jurídico ter conteúdo mesmo de outra decisão que terminou o jogo jurídico
em que os jogadores e o conteúdo do jogo eram os mesmos.
Os demais permissivos da ação rescisória referem-se a relações diretas com eventos
ocorridos e à possibilidade de poderem em algum momento ser gravados no signo jurídico.
É o caso de eventos que em determinado momento não puderam ser gravados, daqueles que
foram somente conhecidos posteriormente e, além disso, de eventos que foram reconhecidos
pelo juiz, mas não ocorreram ou daqueles que ocorreram, mas não foram reconhecidos.
Por aonde quer que se vá, a possibilidade de ação rescisória dirá respeito a algum
evento. Eventos que podem se referir a uma situação do juiz, situação das partes, ou eventos
289
que deveriam ter sido levados em consideração e que por algum motivo não o foram, mas
agora podem.
Esses eventos são tão importantes para o direito que o próprio sistema grava que sua
verificação permitirá a revisão de jogos jurídicos já finalizados. Isso quer dizer que, de uma
forma ou de outra, a verdade acerca de eventos22 deve prevalecer em detrimento da própria
segurança jurídica em direção da manutenção de jogos jurídicos já terminados, de forma que,
ao cabo, possa se ter uma aplicação do direito tendente ao justo.
Não é o caso de se dissertar aqui sobre justiça, pois isso demandaria um tanto
interminável de páginas, mas diga-se, por oportuno, que a concepção de justiça que aqui se
defende vai na linha de uma justiça convencionada, ou seja, de uma justiça que pode ser
obtida por conta de uma investigação jurídica que tendeu a trazer uma verdadeira crença
jurídica a um grupo de mentes também jurídicas. É o resultado de um ótimo, mas ao mesmo
tempo falível, processo de gravação de eventos do mundo sensível no palco do direito.
Essa verdade jurídica que se busca para fazer justiça também jurídica deve ser
perquirida pelos mecanismos que o direito traz à mão dos jogadores do jogo jurídico para
que a verdade seja convencionada. A verdade também é convencionada, pois que verdade é
uma concordância que tem que ver com regularidade, hábito e também, para fins jurídicos,
com a prevalência de interesses coletivos em relação a interesses individuais, entre outras
coisas.
Em resumo, o direito também tem um mecanismo de “desafio” tal qual aquele do
tênis para que sejam os eventos revisitados e a decisão do juiz do jogo seja reformulada. A
diferença é que no direito isso é possível até mesmo quando o jogo já terminou, o que não
acontece no tênis.
Aqui um ponto de atenção. Quando se fala que o jogo do direito já terminou, será
que isso é correto para fins da ação rescisória? A concepção que parece mais acertada é que,
se é possível mudar o jogo, é porque o jogo, de uma maneira ou de outra, ainda não terminou,
como um livro que ainda pode sofrer atualização em uma edição posterior em que o autor
da muda de opinião sobre algo no livro como verdadeiro.
Logo, a ação rescisória não se possibilita para jogos jurídicos terminados, como pode
parecer. Ao contrário, seu cabimento revela que o jogo jurídico pretensamente terminado,
22 Lembre-se que evento ocorrido é uma tautologia, eis que o signo jurídico evento (a palavra evento) já
acomoda dentro de si um evento acabado, ocorrido, eis que a palavra é uma realidade semeiótica sobre
realidades autênticas.
290
mas ainda sujeito à ação rescisória, continua latente, algo como um cronômetro que continua
a rodar quando já se pensou ter terminado um evento desportivo.
Essa analogia do relógio que continua a rodar, marcando o tempo de um evento
desportivo sem que se tenha conhecimento é peculiar, pois o tempo acaba pregando peças
nas pessoas. Ele como que brinca com elas, iludindo-as sobre o começo, meio e fim das
coisas. É que o tempo, como se disse, é psicológico e por sê-lo depende de como uma mente
ou grupo de mentes pensa sobre ele. Qual é o fim do evento desportivo se o relógio que
marca o tempo do evento continua a rodar?
A resposta parece repousar sobre a ideia de tempo também como uma convenção,
porém, uma convenção sem um objeto absoluto, eis que o objeto do tempo é fictício ou
imaginário, somente referindo-se ao real de maneira mediata. É por isso que se trata também
de uma abstração que se alcança por conta de mudanças nas coisas.
É por isso que o tempo como noção aparece à mente não como objeto absoluto, mas
mediatamente em razão de sensações que se apresentam como a de sucessão temporal,
duração temporal e perspectiva temporal. Esses ingredientes alimentam a mente para que se
estabeleça uma crença sobre o tempo.
Em relação ao tempo, há ainda uma particularidade que não pode ser afastada, eis
que ainda que exista uma convenção social sobre o tempo, ele é uma experiência completa
e totalmente individual, cada um sentirá variações de tempo que são únicas no próprio tempo
de cada indivíduo.
A convenção sobre o tempo serve, nesse contexto, para criar uma sensação de
regularidade nas gentes e possibilitar, como já se disse antes, a comunicação entre as pessoas
em uma comunidade de fala. Essa crença coletiva cria uma ilusão de que os sentimentos e
sensações são iguais e regulares, como que um hábito, mas, em verdade, não o são.
Depende-se, no entanto, dessa crença na regularidade para que se permita viver em
sociedade, principalmente, em uma visão do homem como ser social que é. Assim, essa ideia
da convenção acaba prevalecendo, deixando-se claro que não é na realidade íntima o que,
verdadeiramente, estabelece-se.
Porém, o que importa a realidade íntima se o que se perpetua é uma verdade do outro
sobre a alguém? É que até mesmo o ser, em alguma medida, é uma ideia coletiva desse ser,
de modo que o homem enquanto ser social é, em verdade, a crença social desse homem.
291
Isso tudo para dizer que, também no direito, o tempo é uma convenção, uma
convenção jurídica, do que decorre dizer que também existe um tempo jurídico e limitações
jurídicas de tempo que implicam consequências também juridicamente estabelecidas.
Quais são os mecanismos que finalizam o jogo jurídico? Qual é a perspectiva
temporal no direito acerca do passado e do futuro dos direitos tutelados? Essas entre outras
perguntas, é o que se quer responder na sequência.
5.2 O Fim do Jogo Jurídico (Prescrição, Decadência e Preclusão)
Voltando à questão do jogo de tênis, falou-se que o tenista tem um tempo para iniciar
tal jogo, sob pena de não mais ter o direito a jogar aquele jogo. Uma analogia às regras de
preclusão, decadência e prescrição surgem facilmente à mente dos juristas.
No direito, também é preciso começar o jogo dentro de um certo limite de tempo,
sob pena de se perder o direito de se jogar esse jogo jurídico. No direito penal, por exemplo,
vai se encontrar limites de tempo diferentes para se jogar jogos acerca de crimes diferentes.
O crime de homicídio prescreve, por exemplo, em vinte anos, conforme artigo 109
do Código Penal Brasileiro. A pergunta que cabe aqui é por que e como se consegue chegar
a um parâmetro matemático para a limitação temporal no direito? Qual o critério?
O artigo 109 do Código Penal Brasileiro adota um parâmetro específico:
Art. 109. A prescrição, antes de transitar em julgado a sentença final, salvo
o disposto no § 1o do art. 110 deste Código, regula-se pelo máximo da
pena privativa de liberdade cominada ao crime, verificando-se:
(Redação dada pela Lei nº 12.234, de 2010).
I - em vinte anos, se o máximo da pena é superior a doze;
II - em dezesseis anos, se o máximo da pena é superior a oito anos e não
excede a doze;
III - em doze anos, se o máximo da pena é superior a quatro anos e não
excede a oito;
IV - em oito anos, se o máximo da pena é superior a dois anos e não excede
a quatro;
V - em quatro anos, se o máximo da pena é igual a um ano ou, sendo
superior, não excede a dois;
VI - em 3 (três) anos, se o máximo da pena é inferior a 1 (um) ano.
(Redação dada pela Lei nº 12.234, de 2010).
Prescrição das penas restritivas de direito
Parágrafo único - Aplicam-se às penas restritivas de direito os mesmos
prazos previstos para as privativas de liberdade. (Destacou-se).
Veja-se que no direito penal a limitação temporal chamada prescrição se parametriza
em relação à pena privativa de liberdade prevista pelo legislador. No caso do homicídio, a
prescrição é de vinte anos, porque a pena prevista é maior de doze anos. No direito penal há
292
uma diferença entre prescrição antes do trânsito em julgado da ação penal e depois do
trânsito em julgado. No primeiro caso, a prescrição se parametriza pela pena prevista e no
segundo pela pena imposta pelo juiz de direito. Nesse último caso, a previsão se encontra no
artigo 110 do Código Penal Brasileiro.
O critério do direito penal é peculiar como se disse, eis que se baseia no parâmetro
da pena prevista pelo legislador ou da pena imposta pelo juiz criminal. Parece um critério
muito razoável de tempo, eis que em um caso a convenção do legislador que gravou o evento
do homicídio como passível de consequências jurídicas, impondo como consequência
mesma a privação de liberdade do autor de tal evento, é que é o parâmetro para a própria
limitação temporal da ação penal. No outro caso, o parâmetro é tempo de condenação
criminal imposta pelo juiz criminal.
Vinte anos de limitação temporal enquanto que a pena imponível é de até trinta anos,
por exemplo, no homicídio qualificado, conforme artigo 121, parágrafo segundo, do Código
Penal Brasileiro, parece razoável e proporcional. Se é razoável e proporcional, é porque
implica justiça aos espectadores do jogo jurídico (a sociedade brasileira).
Uma prescrição proporcional à pena prevista ou imposta parece ser um critério que
traz justiça aos olhos dos espectadores do jogo jurídico. Lembre-se que a prescrição
enquanto regra jurídica é também uma convenção jurídica e, por sê-lo, é sempre atualizável
se a investigação jurídica levar a uma nova crença jurídica acerca da justiça que essa
convenção implica.
O art. 115 do Código Penal Brasileiro traz ainda causas que reduzem o prazo
prescricional como no caso de o autor ser menor de 21 anos na data da prática criminosa ou,
na data da sentença maior de 70 anos.
É outro parâmetro que parece razoável, proporcional e justo, eis que privilegia aquele
que ainda tem muito a viver e que talvez, naquele espectro temporal do crime cometido,
tivesse uma consciência de seus atos reduzida, ao mesmo tempo que protege aquele que, já
mais velho, não tem muito a viver.
Veja que a regra jurídica fala em 21 anos ao tempo do crime, ou seja, leva em
consideração a condição do autor à época do crime em razão do seu estado de consciência
talvez não tão amplamente desenvolvido. Leva ainda em consideração, para o autor mais
velho, outro critério, o de que ao tempo da sentença já seja maior de setenta anos, ou seja,
não tenha nem ao menos tempo suficiente ao cumprimento completo de uma sentença.
293
Sobre o tema, são preciosas as palavras de Hungria (1978, p. 414):
Um sentimento de justiça social e de benignidade parece ter ditado aos
governantes de então esse ato legislativo, que vem encontrar, agora,
consagração definitiva no Código.
[...]
Argumentava o legislador de 1933 que o abrandamento de punição dos
menores deve corresponder, logicamente, um encurtamento dos lapsos de
prescrição da ação e da pena. Corolário do tratamento especial que as
legislações penais, em regra, recomendam e adotam para os
delinquentes jovens, a uns dispensando, a outros, minorando a pena, e
sempre em razão do seu insuficiente desenvolvimento mental e moral [...].
Tal justificativa subsiste, para o preceito do Código de 40. É incontestável
a conveniência de facilitar ao egresso da sociedade, culpado de um crime
em que atuaram contingências peculiares da idade curta, o mais breve
reingresso na coletividade social, para o trabalho lícito e prestante, a que o
habilitam, mais do que nunca, as suas energias moças.
Os mesmos motivos de ordem fisiológica e psicológica procedem em
relação ao delinquente idoso. Por isso, o Código iguala a idade, como já
os havia equiparado, atribuindo-lhes valore de atenuante (art. 48 n. I). A
norma geral se harmoniza, portanto, com as conclusões da ciência,
consoantes em assemelhar, do ponto de vista da imputabilidade e da
responsabilidade penal, a criança e o ancião. Dessa atenuação decorre,
como consectário natural, a diminuição do tempo da prescrição. (Destacou-
se).
No direito penal, pois, prevaleceu, para o legislador na gravação do signo jurídico,
um sentimento de justiça que levou em consideração noções científicas de idade do menor e
do ancião para se estabelecer que, um deveria ser reintegrado à sociedade mais rapidamente,
pois sua consciência “criminal” à época do evento era reduzida e facilmente influenciável e,
o outro, além da idade avançada para cumprir a pena, assemelhava-se do ponto de vista
mental, ao menor em relação à sua consciência “delituosa”.
Também para o direito penal, como já trouxe Block, a sensação do tempo leva em
consideração características do experimentador do tempo, os conteúdos de período de tempo,
as atividades da pessoa durante o período de tempo, e os comportamentos relacionados ao
tempo da pessoa.
Veja-se que se levou, no direito penal, em consideração, a menoridade e longevidade
do autor do evento-crime (características do experimentador), a graduação temporal da
privação de liberdade imposta e consequente prazo para perquirir penalmente as
consequências do evento-crime ocorrido (conteúdos de tempo), a circunstância de poder o
menor se reinserir na sociedade para trabalhar e produzir para a sociedade (atividades no
294
tempo), bem como a prática criminosa propriamente dita do evento-crime “matar alguém”
(nominal perfeito “a morte de alguém”), aqui relacionada aos comportamentos no tempo.
A direção a quem essas graduações de tempo se eleva, é a própria sociedade
(espectadores do jogo do direito), que são levados em consideração, necessariamente, pelo
legislador ao tempo da gravação da regra jurídica, eis que é esse legislador o representante
das gentes no poder legislativo, conforme também gravado no próprio direito positivo.
Isso equivale a dizer que à época da gravação do signo jurídico pelo legislador
“vigia” na sociedade uma crença de que o tempo justo para um crime de homicídio seria de
até trinta anos e que o tempo para perquirir penalmente as consequências desse crime seria
regido proporcionalmente ao tempo da gravação legal do legislador ou da aplicação da
mesma pelo juiz no caso concreto.
Equivale a dizer, também, que era essa a convenção que se podia sacar da memória
semântica (conforme apontou Tulving anteriormente) das gentes à época da edição da lei
respectiva que traz a cominações penais.
Ressalte-se, novamente, crenças e convenções se atualizam, eis que falíveis.
Atualizam-se na evolução das gentes e no ritmo do que a investigação científica tem a
tendência de trazer nova crença e nova convenção.
Um exemplo interessante sobre o tema vem da common law. No direito
estadunidense, muito se tem discutido acerca da aplicação do que lá se chamam “statute of
limitations” especificamente aos crimes envolvendo abuso sexual infantil. Diga-se que os
“statutes of limitation” são, basicamente, regras relativas às limitações temporais para que
se possa ajuizar uma ação.
A pergunta que no direito estadunidense se faz é como contornar os “statute of
limitations”, levando em consideração o que se designou chamar memória recuperada
(“recovered memory”) relacionada a um abuso sexual infantil ocorrido há muitos anos e, em
relação ao qual, se aplicada na literalidade dos “statute of limitations”, não poderia mais se
acusar criminalmente um pretenso autor de prática criminosa contra crianças.
A ideia que ganhou força nas cortes estadunidenses é de que essa memória
recuperada por uma terapia aplicada por profissionais psicólogos ou psiquiatras, poderia,
ainda que muitos anos após prática criminosa, muitas vezes até quarenta anos depois, ter
força de prova no processo judicial, funcionando como uma exceção aos “statute of
limitations”.
295
Carro e Hatala (1996, p. 1240) tratam do tema da seguinte maneira:
atos de mais de uma década de abuso sexual infantil tem sido trazido à vida
nas cortes por toda a nação. Algumas das vítimas têm claras, vivas
memórias dos abusos sexuais, mas ficaram em silêncio por anos, nunca
reportando os abusos (Litigantes do Tipo I). Outras, por meio de
moderna psicologia e por conta de divulgações, têm tornado a coisa
contenciosa baseados em supostas memórias “reprimidas” do abuso
sexual, não memórias “atuais”, vivas (Litigantes do Tipo II). Esses
litigantes alegam ter seletivamente esquecido dos supostos eventos
associados com o trauma, lembrando acerca dos mesmos somente anos
ou décadas mais tarde. Nesses casos do Tipo II, a memória suprimida
do abuso usualmente enfraquece-se do seu sono profundo dentro da
mente da pessoa por conta do trabalho de um profissional
hipoteticamente treinado na “recuperação” dessas memórias.
Alternativamente a vítima pode ter a memória reavivada por conta de um
evento reminiscente do trauma, que faz a pessoa lembrar do abuso.
(Destacou-se).
Como se vê, nos casos apresentados, há dois tipos de litigantes: aquele que tem uma
memória viva do abuso, mas não o reportou a alguém antes por conta de diversas
circunstâncias específicas e aquele que não tem essa memória viva dos eventos associados
ao trauma (memória reprimida), mas tem essa memória recuperada por profissionais
psicólogos ou psiquiatras treinados para esse fim.
Os casos de memórias recuperadas têm sido ao longo dos anos levados às cortes
estadunidenses com fervorosos debates acerca da validade da prova da memória recuperada
e da possibilidade de se afastarem os “statute of limitations” nesses casos.
Em relação ao tema, assim pontuam Carro e Hatala (1996, p. 1246):
Quando uma pessoa possuindo memórias de um abuso sexual decide
ajuizar uma ação, “psico-ciência” e o direito colidem. O resultado é
análogo a colocar um pino quadrado num buraco redondo. O direito
é compelido a acomodar alegações de mais de uma década que
indubitavelmente teriam sido eliminadas pelos “statute of limitations”
anteriormente. Enquanto isso, as comunidades de psicólogos e psiquiatras
devem trazer sua própria ciência inexata ao tribunal para explicar o debate
sobre memórias recuperadas para um júri culturalmente sensível. Mais
problemático ainda é que em casos de pessoas sem memórias atuais e
vivas, nenhum mecanismo judicial, psiquiátrico ou psicológico existe para
distinguir alegações falsas de abuso sexual infantil daquelas que são
verdadeiras.
Alguns doutrinadores e cortes têm sugerido que, algum tipo de prova
corroborativa do abuso, é necessária para se ajuizar a ação baseada na
teoria da memória reprimida quando os tradicionais “statute of limitations”
tenham expirado. Litigantes da teoria das memórias reprimidas alegam
que requerer prova do ato, o qual pode ter ocorrido até vinte anos
antes, é desarrazoado, e a maioria das cortes concordam com isso. [...]
296
No entanto, diferentemente das psico-cientificamente questionáveis
memórias recuperadas, evidências científicas existem demonstrando
que falsas memórias podem ser criadas. (Destacou-se).
Veja-se que a memória pode pregar peças e o fluxo do tempo e a vivacidade dos
eventos nas mentes das gentes é que soe trazer segurança e higidez às alegações postas diante
de uma corte ou tribunal.
Memórias recuperadas ou não, são memórias e, em relação a elas, também a sensação
do tempo é que implica ingrediente imprescindível para a correspondência dessas memórias
aos eventos ocorridos.
Um evento-abuso sexual infantil ocorrido há mais de quarenta anos e, recuperado, a
partir de uma memória supostamente reprimida, por mecanismos psicológicos ou
psiquiátricos, pode não trazer na balança do fenômeno jurídico o melhor equilíbrio para os
interesses em jogo.
Ainda que seja repugnante o crime de abuso sexual infantil, o tempo ainda joga cartas
importantes para manutenção das evidências que podem ser trazidas à corte para substanciar
uma decisão judicial. Lembre-se que evidência vem do latim evidentĭa e tem equivalente de
uso com visibilidade, possibilidade de ver (MACHADO, 1977b, p. 507). Algo evidente é,
pois, algo visível, aparente, claro.
Tornar claro ao direito, nesse contexto, é trazer ao julgamento eventos que tenham
visibilidade e não estejam, de alguma forma, encobertos pela neblina dos efeitos tortuosos
de um tempo muito longo, uma vez que um dos elementos importantes, em relação ao tempo,
é a perspectiva temporal: passado, presente, futuro. Se o passado é muito passado, o tempo
acaba pregando peças na memória das pessoas, tornando a claridade dos eventos turva e
lamacenta.
Se a sucessão temporal, outra característica essencial para se perceber o tempo, faz
com que os eventos sucedidos se tornem apenas uma memória daquele passado distante, a
qual não pode ser recuperada com exatidão, pois que os resquícios dos eventos que a
formaram já pereceram e o que resta é somente esse algo fugaz de uma memória incerta
(algo como uma foto amarelada em que a imagem se perdeu pelo perecimento da foto), isso
quer dizer que essa memória para o direito é inútil, pois não permite uma lógica abdutiva de
verdadeiro ou falso sobre ela ou, se permitir, implicará, na maioria das vezes em uma
memória falsa como ocorre em muitos casos de memória recuperada por psicólogos e
psiquiatras em relação a crimes de abuso sexual infantil.
297
Quer parecer que esses são os elementos que levam, no direito, a que existam
previsões de limitações temporais para o próprio exercício de direitos, pela razão de que a
memória dos eventos, ou não pode ser recuperada, ou, se recuperada, é por demais
amarelada, o que implica, para o direito, uma medida de tempo que, pela passagem
excessiva do mesmo, não pode mais ser devidamente graduada na memória já desvanecida
sobre os eventos ocorridos.
Acerca do tema, são precisas as palavras de Lowenthal, Pastuszenski e Greenwald
(1980, p. 1015; 1020):
As limitações temporais se assentam em três amplas, sobrepostas
justificações: institucional, de remediar e de promover.
A. Institucional
Três razões institucionais justificam colocar-se barreiras temporais sobre
direitos de ação. Primeiro, as limitações protegem as expectativas dos
litigantes e promovem a estabilidade do direito à propriedade.
[...]
Conveniência é também um longa e reconhecida justificativa
institucional para limitar ações. Os tribunais atualmente sobrecarregados
demandam procedimentos para reduzir os pesados níveis de litígios. Em
mantendo ações caducas fora das cortes, os “statute of limitations” aliviam
as cortes dos ônus de processar ações já caducas quando o requerente
dormiu em relação aos seus direitos.
Limitações também preservam a credibilidade do sistema judicial por
barrar ações que, pelo tempo decorrido, permitiram que provas se
perdessem, memorias desvanecessem, e testemunhas desaparecessem.
B. Remediação
[...] Limitações temporais também servem a única função de remediação
no sentido de notificar o potencial réu da duração da sua exposição ao
contencioso judicial. Quando uma demanda se torna exequível, ele pode
saber que é suscetível de ser acionado por um especifico período de tempo
especificado nos “statute of limitaitons”. Uma vez a par da extensão do
período de limitação, ele pode preservar os fatos necessários para sua
defesa até que se caduque e evitar uma surpresa injusta a partir de uma
crença de que sua exposição ao contencioso judicial estava acabada.
C. Promoção
As barreiras de tempo servem para contrabalançar interesses de promoção
(no sentido de andamento do processo). Por um lado, elas incentivam
partes no processo a iniciar o processo judicial rapidamente; por
outro, elas permitem tempo suficiente para que defendam seus
direitos. (Destacou-se).
Os autores apontam para algumas justificativas das quais decorreria a necessidade de
limitação temporal no direito, sendo a primeira delas uma justificativa institucional, a qual
vai desde proteger a expectativa dos litigantes e a estabilidade do direito, até uma
conveniência em razão do sobrecarregamento dos tribunais.
298
Importa trazer sobre o último item (conveniência) que, quando algo é conveniente, é
porque está em bom acordo com, conforme, vem do latim conveniente (MACHADO, 1977b,
p. 222), ou seja, também a conveniência dos tribunais em suavizar o abarrotamento de
processos nas varas é um acordo, uma convenção sobre que alguns processos devem ser
barrados em razão do tempo e para permitir que o sistema não se sobrecarregue.
A segunda das justificativas diz com o elemento de remediar, o qual permite que uma
parte adversa preserve as provas sobre os eventos absolutos, de modo a que possa se defender
no futuro de potenciais demandas. Se a possibilidade de acionamento judicial fosse ad
infinitum, as provas deveriam ser mantidas ad infinitum, o que parece ser de pouca aplicação
prática diante da corrosão que o tempo implica a qualquer coisa real, incluindo aí também a
própria memória da coisa real.
Isso geraria uma instabilidade no sistema, eis que provas perecem com o tempo, o
que implicaria na impossibilidade de alguém se defender em uma possibilidade de
acionamento ad infinitum.
Veja que a palavra “remédio” de onde surge remediar, também tem como um dos
seus usos possíveis “preservativo” no sentido de preservar de consequências (MACHADO,
1977c, Vol 5, p. 73; DICIONÁRIO DA LÍNGUA PORTUGUESA CONTEMPORÂNEA,
2001, p. 3179). Quer parecer ser essa, também, uma das funções das limitações temporais
no direito no sentido de preservar as provas para que não haja consequências adversas.
Por último, existe a justificativa de promover. Promover o quê? Um contrabalanço
para que as partes no processo o iniciem, haja vista que há um tempo limite para tal e,
também, para que haja uma defesa de direitos demandados.
Pode-se aprender muito sobre as limitações temporais no direito com a dogmática
estadunidense e, com as funções de interesse por trás das “statute of limitations”, tais quais
a institucional (estabilidade e conveniência), remediação e promoção.
No direito brasileiro, acerca do tema da limitação temporal, mais precisamente,
tratando do tema da prescrição, são geniais (dizer que são geniais é uma tautologia) as
palavras de Miranda (2012, p. 662):
prescrição é a exceção, que alguém tem, contra o que não exerceu, durante
certo tempo, que alguma regra jurídica fixa, a sua pretensão ou ação. Serve
à segurança e à paz públicas, para limite temporal à eficácia das
pretensões e das ações. A perda ou destruição das provas exporia os
que desde muito se sentem seguros, em paz, e confiantes no mundo
jurídico, a verem levantarem-se — contra o seu direito, ou contra o
que têm por seu direito — pretensões ou ações ignoradas ou tidas por
299
ilevantáveis. O fundamento da prescrição é proteger o que não é devedor
e pode não mais ter prova da inexistência da dívida; e não proteger o que
era devedor e confiou na inexistência da dívida, tal como juridicamente ela
aparecia.
[...]
A proteção, que se contém nas regras jurídicas sobre prescrição,
corresponde à experiência humana de ser pouco provável a existência
de direitos, ou ainda existirem direitos, que longo tempo não foram
invocados. Não é esse, porém, o seu fundamento.
Os prazos prescricionais servem à paz social e à segurança jurídica.
Não destroem o direito, que é; não cancelam, não apagam as pretensões;
apenas, encobrindo a eficácia da pretensão, atendem à conveniência de
que não perdure por demasiado tempo a exigibilidade ou a
acionabilidade. Qual seja essa duração, tolerada, da eficácia
pretensional, ou simplesmente acional, cada momento da civilização o
determina. Os prazos do Código Comercial correspondem a concepção da
vida já ultrapassada; porém o mesmo já se pode dizer de alguns prazos do
Código Civil. A vida corre célere, — mais ainda na era da máquina.
(Destacou-se).
A genialidade de Miranda está na sua percepção de que direito é, igualmente, produto
de um ajuste jurídico, é crença jurídica, de modo que as gravações do legislador, inclusive
para fins de limitações temporais, como é o caso da prescrição, baseiam-se no tempo como
ingrediente social, ou seja, no tempo como limite de ação na percepção do que é socialmente
ajustável.
É por isso que Miranda traz que a prescrição serve à segurança e paz públicas, o que
se relaciona à possibilidade de perda e destruição de provas com o passar do tempo, expondo
os que se acomodaram com a passagem do tempo e que, por tal motivo, não se organizaram
à manutenção das provas de seus direitos, a acionamentos jurídicos inesperados.
Miranda traz, expressamente, que a prescrição se fundamenta na experiência humana
a qual apresenta que determinada passagem de tempo já é suficiente para fazer desvanecer
na memória a existência de direitos que não foram até então invocados.
Atende a prescrição, também, a uma conveniência, como já se disse, lembrando-se
que “ser conveniente” também é uma forma de ajuste. Trata-se de uma conveniência acerca
de que, a perduração demasiada de uma exigibilidade jurídica baseada em direito subjetivo,
cause esquecimento, perda de memória sobre eventos e de direitos decorrentes ou referentes
a eles.
Nesse contexto é que Miranda fulmina dizendo que essa tolerância em relação ao
tempo é aquela que a civilização determina, é dizer, o limite temporal que se acomoda no
direito para fazer barrar uma ação de alguém com direito subjetivo é aquele que as
300
coordenadas de espaço e tempo permitirem trazer crença social, a qual deve estar na
gravação do legislador, representante das gentes que é, numa tolerância temporal
socialmente aceita e possível na linguagem cotidiana.
Porém, esses limites temporais importam exceções. No direito estadunidense, por
exemplo, os “statute of limitations”, no caso de abuso sexual infantil, têm sido driblados nas
cortes pela aplicação da “regra da exceção da descoberta”. Tipicamente, no direito
estadunidense, a limitação temporal para se demandar judicialmente por conta de um evento
de abuso sexual infantil é de um a três anos a depender do estado.
Carro e Hatala (1996, p. 1246) atentam para o seguinte no que diz respeito à exceção
em relação aos “statute of limitations”:
Apenas quando princípios de equidade ou circunstâncias excepcionais
existem é que se faz que considerações fundamentais de justeza
requeiram que uma exceção possa ser feita aos “statute of limitations”.
Problemas, no entanto, surgem quando uma lesão a direito não ocorra
imediatamente, ou não seja aparente à época da conduta tortuosa, deixando
demandantes sem culpa ignorantes das causas para suas ações até depois
da expiração dos “statute of limitations”. Ao invés de barrar os
demandantes, as cortes combatem uma potencial injustiça aplicando
a regra da descoberta. (Destacou-se).
Quanto ao tema, no Brasil, o Código de Defesa do Consumidor já há tempos permite
que os prazos para demandar judicialmente, em relação a um defeito do produto, sejam
principiados somente quando esse defeito, que era oculto, for revelado ao consumidor (artigo
26, parágrafo terceiro do Código de Defesa do Consumidor).
A própria possibilidade de ação rescisória, como já visto, no caso de se descobrir um
evento absoluto ocorrido somente posteriormente ao trânsito em julgado da decisão judicial
ou daquele que já descoberto não se pode dar notícia à época apropriada da ação em curso,
é também uma espécie de “regra de exceção da descoberta”.
O direito civil já tratava do tema, igualmente, no que diz respeito aos vícios
redibitórios, hoje previstos no artigo 445 do Código Civil Brasileiro, permitindo que o prazo
para se obter redibição ou abatimento do preço seja contado a partir da descoberta do vício
que antes era à parte oculto.
Atente-se para o parágrafo segundo do artigo mencionado do Código Civil Brasileiro
que tem a seguinte redação: “Tratando-se de venda de animais, os prazos de garantia por
vícios ocultos serão os estabelecidos em lei especial, ou, na falta desta, pelos usos locais,
301
aplicando-se o disposto no parágrafo antecedente se não houver regras disciplinando a
matéria.” (Destacou-se).
Veja-se que a regra de direito civil permite, inclusive, o estabelecimento de prazos
para que se demande acerca do vício redibitório, no caso específico da compra e venda de
animais, com base nos usos locais. Na prática, sabe-se que se acaba aplicando a regra de
prescrição para bens móveis adquiridos com vício de quinze dias (ver TJ-SC - Apelação
Cível: AC 52248 SC 2002.005224-8) ou equiparando-se os demandantes a consumidores e
aplicando a regra do Código de Defesa do Consumidor (TJ-SP - Agravo de Instrumento: AI
20265423620148260000 SP 2026542-36.2014.8.26.0000).
No entanto, percebe-se que no próprio direito o tempo também pode ser uma
memória de uso, uma crença estabelecida na comunidade e, se assim não é, as vezes por uma
interpretação conveniente de juízes, eis que animais são semoventes e não móveis, ao menos
o tempo é uma crença jurídica, como também o é as limitações de tempo impostas na
legislação.
No entanto, tem de ter alguma coisa da linguagem cotidiana nessas crenças jurídicas,
eis que o direito, de uma forma ou outra, serve também à comunidade e, como já se disse,
os signos jurídicos universais e os particulares/singulares são, ao fim, uma gravação de uma
porção da summa realidade.
Visto isso, na sequência traga-se uma análise sobre o fim do jogo jurídico sob a
perspectiva da irretroatividade e anterioridade da lei.
5.3 O Fim do Jogo Jurídico (Irretroatividade e Anterioridade)
Outra regra que limita temporalmente efeitos jurídicos, mas agora em relação à
aplicação da lei, é a regra da irretroatividade e da anterioridade. No direito tributário,
verificam-se tais regras no artigo 150, inciso terceiro da CF/88.
Tais regras de limitação temporal têm a função de: a) preservar o contribuinte da
surpresa pela cobrança de um novo tributo (princípio da anterioridade), permitindo, ainda,
que esse contribuinte se prepare financeiramente e em relação às obrigações acessórias
(declarações fiscais sobre os eventos geradores de consequências tributárias) para a nova
tributação, bem como; b) garantir que eventos passados não se submetam à irradiação dos
efeitos da regra de tributação nova, eis que já consumados no tempo.
É mais uma vez o tempo imprimindo no direito suas consequências fulminantes. Para
o direito, no entanto, esse tempo se relaciona com direitos subjetivos, como já se disse, no
302
sentido de que as regras de limitação temporal jurídicas se preocupam com tutelas, no caso
dos contribuintes, com uma tutela que lhes é muito cara, relativa à preservação de eventos já
consumados de consequências tributárias no tempo presente (algo como preservar o passado
em relação a leis novas que somente agora estão gravando novos eventos passíveis de
consequências tributárias). Aqui a regra da irretroatividade.
Outra tutela protegida no caso dos contribuintes é aquela referente à organização de
suas finanças e à estrutura de custo para se adequar a uma nova tributação. Aqui é uma
proteção de ordem econômica, preocupando-se o direito com as consequências que novas
imposições tributárias teriam para a higidez financeira dos contribuintes, do que decorre que,
em alguns casos, uma medida de tempo deve separar a arrecadação tributária da nova
imposição tributária.
Veja-se que essas regras de limitação temporal comportam, igualmente, exceções,
tais como a possibilidade, no direito tributário, de que efeitos de leis tributárias novas sejam
aproveitados por contribuintes em relação a eventos já consumados quando tratarem da
diminuição da imposição de multas (artigo 106, inciso “c”, do Código Tributário Nacional).
Nesse contexto, a conclusão que se chega do falado até aqui é que o tempo jurídico
é um tempo também abstrato, o qual é medido em razão da mudança das coisas, graduado
pela sucessão de eventos, duração dos mesmos e pela perspectiva que se tem em relação ao
passado, presente e futuro dos eventos.
A diferença é que o tempo jurídico é um tempo estabelecido como que por uma
sensação jurídica de tempo, a qual não leva em consideração somente aspectos da memória
semântica das gentes, mas também aspectos da memória semântica das gentes do direito,
diante da qual interesses do jogo do direito são necessariamente considerados.
Essa memória semântica das gentes do direito tem, pois, função não só de graduar o
tempo juridicamente de acordo com as crenças jurídicas, mas também de trazer estabilidade
ao sistema de direito, equilíbrio no seu processamento, regularidade nos seus julgamentos,
previsibilidade às partes e conveniência aos aplicadores do sistema de que ele possa se mover
para frente e em um tempo razoável e proporcional.
As limitações temporais no direito do tipo prescrição, decadência e preclusão são
daquelas que visam proteger o que se chama direito subjetivo das partes contra o perecimento
e manutenção de evidências sobre eventos ocorridos.
As regras que permitem a ação rescisória e protegem consumidores de vícios ocultos
ou redibitórios também podem ser citadas como maneiras de driblar os efeitos do tempo
303
sobre os eventos absolutos, inclusive nos casos em que o jogo jurídico já estiver terminado
(especificamente para fins de ação rescisória).
Para o direito, o tempo razoável e proporcional é o tempo que uma prova sobre um
evento ocorrido possa ser preservada de modo a que um acionamento judicial seja possível,
mas, mais importante talvez, que uma defesa contra esse acionamento possa se estabelecer
com provas de eventos que eventualmente possam desacreditar a prova da outra parte.
Esse mecanismo de proteção a direitos subjetivos no direito é regulado pelo
legislador e os interesses em jogo são aqueles do tempo em que a regra de limitação foi
estipulada. Isso quer dizer que a ideia de investigação interminável por conta de crenças
sempre falíveis e, por isso, atualizáveis, não se desfaz no direito.
O que é hoje uma regra de limitação temporal que protege direitos subjetivos pode
não ser amanhã. Os “statute of limitations” estadunidenses, em razão de sua flexibilização
frente a casos de abuso sexual infantil, são um exemplo de evolução do direito, permitindo
que, presentes certos requisitos, possa-se driblar a regra de limitação temporal, permitindo-
se que demandantes litiguem em casos tais.
Por quê? Porque isso atende melhor aos interesses da comunidade e porque, para esse
caso específico, a crença sobre o tempo aplicável pode ser flexibilizada na memória, haja
vista que o bem tutelado (proteção às crianças de abuso sexual) é maior que uma limitação
temporal, de modo que até mesmo memórias são permitidas como fundamentação a direitos
subjetivos. Lembrem-se que na linha de Ross o direito é fático-convencional (ou, como aqui
se defende, eventual-convencional) e a realidade uma totalidade concreta individual.
Um ponto de contato necessário é, no entanto, em relação ao direito, aquele que diz
respeito à memória das gentes no que tange a eventos absolutos e às provas que possam ser
produzidas sobre eles para suportar uma demanda judicial ou uma defesa contrária.
O tempo sobre os eventos absolutos é implacável e o perecimento das provas implica,
muitas vezes, obstáculo à consagração de direitos, ainda que hajam outros meios que
permitam memórias de eventos, quando desprovidos de provas sobre eles.
Isso ocorre porque é preciso lembrar que na balança da justiça há dois lados, dois
direitos subjetivos: um do autor e outro do réu. No caso do abuso sexual infantil, o que se
viu no direito estadunidense, por exemplo, foi que muitas acusações estavam se baseando
nas chamadas memórias recuperadas sem provas físicas dos eventos absolutos, o que levou,
em alguns casos, à condenação de inocentes, eis que tais memórias se apresentaram falsas.
304
Aqui mais um problema em relação ao tempo jurídico. Um problema que diz respeito
à flexibilização das limitações temporais em nome de um bem tutelado maior (proteção às
crianças contra abusadores).
O ponto que deve ser tocado, no entanto, diz respeito a outra proteção muito cara ao
direito e a todos da comunidade: a proteção de um julgamento justo e no devido processo
legal (“due process of law”) que esse fim almeja.
Nos casos de abuso sexual infantil no direito estadunidense, o que se verificou foi
que, em alguns casos, ainda que se conseguisse uma memória recuperada em relação a um
pretenso evento de abuso sexual infantil, o tempo era implacável para colocar em “xeque”
essa memória artificialmente recuperada diante do operador “verdade” no caso concreto.
Isso quer dizer que, ainda que a memória recuperada pudesse tender à ocorrência de
um evento de abuso sexual infantil, diante da impossibilidade de uma investigação jurídica
poder trazer concordância da memória recuperada com o limite ideal, em razão da falta de
provas e da fragilidade do procedimento de recuperação da memória e devido, ainda, à alta
plausibilidade de se tratar de uma memória criada, isso implica que o operador “verdade”
não pode se verificar e, como consequência, que não se possa trazer crença jurídica ao
suposto evento de abuso sexual infantil.
Qualquer memória, seja na vida das gentes, seja na vida do direito, submete-se à
lógica do verdadeiro ao falso, não na linha do método lógico-dedutivo, mas sim em
conformidade com o método abdutivo peirceano, de modo que de alguma forma deve-se
tocar a realidade sensível, o que torna a investigação e a existência das provas do evento
absoluto essenciais. Se a prova pode perecer, deve-se coadunar o direito a um limite temporal
condizente a esse perecimento, para que, dessa forma, uma investigação ainda seja possível.
Para o que aqui se defende, o limite do direito é o limite do tempo que uma
investigação jurídica é possível, mas, como se disse, tempo também é um ajuste, no caso do
direito um ajuste jurídico, do que decorre que as limitações temporais, sob esse viés,
preservam direitos subjetivos e não o contrário.
O direito se fecha nessa ideia de summa realidade, investigação sobre essa realidade
e verdade no sentido de convenção do que foi possível investigar. Aí o tempo do direito ao
lado do tempo das gentes como catalisador da investigação e, pois, da verdade estabelecida.
Serve esse tempo jurídico às gentes, pois que o direito é bem cultural, é criatura de criador.
Volte-se à diferenciação entre verdade e realidade, para se deixar claro que a
limitação temporal que se estabelece para permitir uma investigação jurídica não apaga o
305
evento absoluto, ainda que na memória das gentes ele já não possa ser encontrado e sobre
ele crença não seja mais possível se estabelecer.
Isso é assim porque, se a crença é no sentido de que o tempo do direito em um caso
concreto se exauriu porque a memória sobre os eventos ocorridos já se apresenta encoberta,
não podendo um acesso natural ao evento absoluto ocorrer, isso não implica que ele não
tenha ocorrido, mas tão somente que, para o jogo jurídico, sua ocorrência não pode ser
gravada com vistas a um julgamento justo.
Se a crença não pode ser verdadeira, uma vez que a investigação não permite tocar o
mundo sensível para gravar o evento absoluto ou um olhar que seja sobre ele, o que se tem
é que não se pode estabelecer uma crença.
É a ideia de signo sem objeto de Peirce. Aqui, se o evento absoluto se perdeu na
memória, perdeu-se também o objeto do signo, eis que a ideia que é fundamento do signo
nem ao menos pode se estabelecer na mente, pois que inacessível o objeto.
Porém, dizer que o signo não tem objeto, não é o mesmo que dizer que o objeto não
“existe”, pois que a realidade é “o modo de ser da coisa como ela é independentemente de
uma mente ou grupo de mentes”.
Isso quer dizer simplesmente que uma mente ou grupo de mentes, de alguma forma,
não consegue gravar esse objeto no signo, de modo que seu acesso resta obstaculizado. É
algo parecido com o que acontece com as limitações temporais no direito, as quais não
permitem que as mentes jurídicas alcancem os eventos absolutos ocorridos, em razão da
impossibilidade de gravá-los no signo jurídico, eis que uma investigação não pode
estabelecer uma verdade. No caso do direito, é mais uma presunção do limite de tempo
possível à uma investigação desse tipo.
É que no direito ingredientes institucionais, de remediação e de promoção estão
impressos nas limitações temporais estabelecidas juridicamente em direção ao próprio
direito e a tutelar os direitos subjetivos das gentes.
Onde quer que se observe o fenômeno jurídico, o que se encontrará é um organismo
vivo, em permanente atualização e que, necessariamente, projeta-se sobre os interesses das
gentes que o sistema quer tutelar, pois o direito deve ser justo no tempo, no espaço social e
na mente dos indivíduos.
306
6 CONCLUSÃO
Como em um barco que navega ao norte, com guia nas estrelas, esse trabalho
navegou pelas águas do evento e evento jurídico e do fato e fato jurídico com fundamento
forte no realismo peirceano capilarizado por introspecções em Platão, Aristóteles, Scotus,
Kant, Merleau-Ponty, Lacan e Žižek, para falar das “escolas filosóficas”, bem como, no
âmbito jurídico, em Holmes, Pound e Llewellyn – no palco da escola realista estadunidense,
e em Ross e Olivecrona, no altar da escola realista escandinava.
A semiologia saussuriana foi ferramenta de contraponto com o que aqui se chamou
semeiótica (peirceana), a qual se aplicou para fazer prevalecer uma visão realista em
contraste com a do nominalismo, tendo-se digladiado com temas centrais como a questão
dos universais e particulares, proposições, verdade e realidade.
A construção dogmática teve influência relevante da linguística de Pottier, máxime,
no que respeita à diferença entre significado sintático e significado semântico, tendo-se
usado, igualmente, noções de Jakobson. No que toca aos universais e particulares, viu-se
em Strawson um contraponto importante para fazer prevalecer a visão peirceana sobre
realidade.
Relativamente ao tema do evento e fato, a incursão foi profunda na origem das
palavras, englobando noções problemáticas de etimologia, aportando em portos de
nacionalidades diferentes, o que passou pelo grego, sânscrito e latim, fazendo-se cotejos
entre espanhol, italiano, francês e inglês para desembarcar no fundamento etimológico das
diferenças entre evento e fato na língua portuguesa.
A base firme solidificada pela filosofia, semeiótica, semiologia e linguística permitiu
uma navegação menos turbulenta pelas águas dos fenômenos jurídicos. Fez-se emergir um
dualismo entre summa realidade e realidade semeiótica e, igualmente, entre evento absoluto
e evento semeiótico, o qual autorizou reflexões importantes sobre o enquadramento da
realidade jurídica como fatia da realidade semeiótica e de sua relação com a realidade externa
ou summa realidade.
Dentro da realidade semeiótica, adicionaram-se duas visualizações: uma do meio
físico (palavra escrita, falada, gesto) e outra no meio psíquico (pensamento, conceito, norma
jurídica). Isso para trazer que na realidade do signo este pode ser apreendido no espectro
físico-semeiótico da palavra escrita no texto, por exemplo, e no espectro psíquico-semeiótico
307
do conceito, por exemplo, que surge na mente do intérprete, o qual também é signo na
percepção peirceana de signo.
Esses dualismos foram utilizados somente diante da perspectiva de que servem a um
propósito meramente dogmático-pedagógico, haja vista que na multiplicidade do mundo
sensível não podem ser verificados.
Nesse contexto, observou-se o fenômeno jurídico a partir do que se chamou signo
jurídico para trazer a noção de que os textos de lei, em verdade, nem “revelam”, nem
“plasmam”, nem “refletem”, mas sim gravam uma porção da summa realidade a partir da
gravação encontrada na linguagem cotidiana.
Disso se propôs o dual signo gravador (como é o caso do signo jurídico) e signo
gravado (como é o caso da linguagem cotidiana), sendo que o processo de gravação encontra
seu fim e meio na summa realidade.
Isso se justificou na ideia de entrelaçamento que se destacou da teoria de Merleau-
Ponty, com confluências em Lacan e Žižek. Essa ideia exsurgiu para visualizar o homem
como prolongamento do objeto e vice-versa na diferença entre olho e olhar, no sentido de
que esse olhar é justamente a intersecção desse prolongamento, o quiasma, o coito que há
no que se observa e o observador.
Disso decorreu dizer que resta no observador, como numa simbiose, uma porção da
summa realidade. Há, pois, uma espécie de gravação. Daí, também, isso se estender ao signo,
cujo fundamento é uma ideia do homem, no sentido de que ali, igualmente, aparece algo
impresso, algo gravado.
Nesse contexto, no signo jurídico, em uma ontologia indireta, também, pois, haveria
uma porção mínima do real, sem a qual a comunicação jurídica não seria possível e, portanto,
a sobrevivência do direito em sociedade como fenômeno social que é.
Dessa visualização, colocou-se que o signo jurídico é uma espécie desse designado
signo gravador e que o signo da linguagem cotidiana uma espécie desse designado signo
gravado. Em um, uma linguagem gravadora e, em outro, uma linguagem gravada, que
encontram meio e fim no entrelaçamento com o objeto da summa realidade.
Isso se coaduna com o método abdutivo que se elegeu, eis que foi chão firme nesse
estudo a noção de que realidade é também aquilo que é semeiótico, de modo que se fez
possível, no método abdutivo, investigar cientificamente a partir de signos, sem prejuízos
de método e resultado, tendo-se, ainda assim, uma orientação objetiva do que se estudou.
308
A ideia, no estudo, foi edificar a crença científica em direção de que, o direito, nas
múltiplas perspectivas mencionadas, é organismo “vivo” que necessariamente tem de se
correlacionar com a summa realidade, a qual, no entanto, não deve ser refletida no direito,
devendo o direito, em verdade, gravá-la.
A ideia por detrás disso foi atribuir ao direito, na perspectiva de texto, não uma
predicação de “vácuo autônomo”, mas sim de um organismo que necessariamente tem de se
correlacionar com a summa realidade – como, pelo que aqui se defende, a linguagem
cotidiana faz, donde surgiu a conclusão de que o que “há” no processo é, em verdade, nem
tanto uma tradução, mas sim uma gravação.
Essa ideia de correlação enfrentou o problema do tribunal sem xerife trazido por
Peirce no sentido de que é necessário um movimento para que o direito como signo não seja
simplesmente brutum fulmem.
Diante disso, a verdade jurídica foi tematizada para lhe atribuir protagonismo no
processo social do qual o direito faz parte para se erigir. Deu-se a ela possibilidade jurídica,
afastando-se pensamentos de que os operadores lógicos (lógica peirceana) não poderiam ser
ferramentas na verdade jurídica. Isso se fez com base em Ross e suas críticas à postura
kelseniana, do que resultou uma visualização do direito como instituição social ou, como
traz Llewellyn, instrumento dessa socialização.
A isso se uniu, igualmente, a utilização de uma lógica não propriamente clássica, mas
sim da lógica na teoria peircena, cujo método não é o da dedução, mas sim da abdução, do
que se permite que os eventos das premissas, em relação ao da conclusão, no silogismo
abdutivo, sejam investigados por meio do que a experiência sensível autoriza e diante da
circunstância de que o resultado da investigação – a crença que se alcança, é sempre falível
e atualizável.
Pela utilização da verdade, outro tema relevante foi explorado – o tema da convenção
jurídica, a qual, com base na filosofia de Lewis, foi vista como o suporte da crença dos
sujeitos de direito gravada no signo jurídico pelos escritores jurídicos representantes de tais
sujeitos na sociedade de direito.
Esclareceu-se que as letras das leis não são meramente um espelho das
particularidades do seu escritor, ou de poucos, mas a gravação – como extensão – da crença
que se extrai do inconsciente coletivo dos membros de uma comunidade de fala, de modo
que o que está gravado nos estatutos de lei deveria ser nada mais do que uma concordância
309
da sociedade sobre as normas jurídicas que a partir deles se gravam no meio psíquico-
semeiótico dos intérpretes do direito.
Fundamentou-se esse ponto de vista na simples possibilidade ou impossibilidade de
comunicação jurídica, a qual não pode ser operacionalizada sem o substrato da linguagem
cotidiana, a qual é a concordância da sociedade sobre a summa realidade; é a própria
gravação da realidade nos signos sociais dessa linguagem.
Desse modo, baseado em Lewis, viu-se que o que se tem é, em verdade, uma
coordenação de sujeitos, os quais na previsibilidade de resultados esperados por conta da
experiência objetiva, sujeitam-se à convenção e, pois, também à convenção jurídica,
afastando-se, igualmente, a ideia dogmática de que a eficácia social no direito seria diferente
de eficácia jurídica e, assim, somente passível de ser objeto da sociologia do direito.
Baseado em Ross, colocou-se que o dualismo ser e dever-ser não produz resultado
fecundo ao direito, eis que ao se divisar um do outro o que se cria é uma divisão do direito
com a própria sociedade de direito, quebrando o continuum que deve prevalecer na
terceiridade das normas de direito gravadas, cuja atualização encontra na summa realidade
águas necessárias para sua navegação.
Com a ideia de continuum, peleou-se com problemáticas centrais da ciência jurídica,
como a questão da aplicação de regras (signos jurídicos) injustas e a permanência no sistema
de decisões desenquadradas em relação aos limites da justiça.
Nesse contexto, fez-se uso da ideia do summum bonum para justificar a
“desimportância” da disputa dogmática, eis que o bem maior a ser perseguido no direito é a
justiça, de modo que as regras (signos jurídicos) injustas, que implicaram decisões injustas,
ou mesmo as decisões injustas que emergiram de eventos incorretamente juridicizados, estão
como em suspensão – como em um universal, o qual, ao fim e ao cabo, deverá ser atualizado
para gravar a summa realidade e a evolução da sociedade.
Tudo isso, porque os signos jurídicos, ao menos os que podem ser visualizados como
gerais e/ou universais, os quais fundamentam aqueles que são singulares e/ou particulares,
fazem parte do continuum do qual se falou, que, no seu falibilismo, está sempre pronto a se
atualizar, do que decorre que, signos no sistema de direito que não equivalem a gravações
de porções que de alguma forma encontrem seu fim na summa realidade, serão, em um
determinado espaço e tempo, atualizados, ou, ao menos, é para essa atualização que tende a
investigação na experiência sensível como fim jurídico que deveria ser perseguida para se
alcançar a justiça conveniada.
310
Com influência forte dos realistas jurídicos estadunidenses e escandinavos,
culminou-se por se vislumbrar que o direito é, mais do que tudo, evento, evento jurídico na
extensão de signo jurídico no sistema de direito, o qual se erige do evento absoluto.
É, pois, uma fatia do espaço-tempo da realidade – uma circunstância ocorrente
espaço-temporal das gentes e da vida das gentes, a partir da qual todo o resto se edifica. O
evento da lei grava o evento da linguagem cotidiana e o evento da linguagem cotidiana grava
o evento absoluto. O que se tem é uma ontologia indireta como traz Merleau-Ponty.
Criticou-se a nomenclatura fato jurídico, clarificando-se, que linguisticamente não
há conformidade com a utilização de tal expressão no uso que se faz, eis que desprovida de
etimologia para o que se quer gravar com seu uso.
Isso se justificou com fundamento de que verbo formador do signo fato é o verbo
fazer e de que o signo evento se origina, por ausência na língua portuguesa, do verbo latino
ēvěnĭo, de modo que a gravação que exsurge do signo fato e do signo evento não pode provir
de mesmo conteúdo substancial, do que decorre um uso equívoco, devendo prevalecer, tanto
na perspectiva da summa realidade, como na da realidade semeiótica, o uso do signo evento
quando se quiser significar uma circunstância ocorrente de espaço-tempo (signo jurídico
universal) ou circunstância ocorrida de espaço-tempo (signo jurídico particular), isto é,
quando se quiser falar de um evento mesmo potencialmente ou concretamente.
Essa conclusão também se fundamentou na linha bloomfieldiana de que não existem
sinônimos, de modo que, se os significantes são diferentes, os significados também
apresentam substâncias diferentes.
Finalmente, explorou-se no direito a ideia de significado semântico e significado
sintático, demonstrando-se, com base em Pottier, o que se fez esticando-se a representação
em díade levada a efeito por Saussure (significante e significado), que no significado do
signo há outra díade – a do significado semântico e do significado sintático.
Utilizou-se o exemplo da palavra olho para demonstrar que esse signo grava dois
significados: a) órgão do corpo humano que serve para permitir o sentido da visão
(significado semântico) e b) primeira pessoa do presente do indicativo “eu olho” (significado
sintático).
Trouxe-se tal dualismo do significado ao direito para provar que a aplicação traria
resultados fecundos, permitindo uma interpretação dos signos jurídicos no palco de sua
sintaxe e semântica, o que suportaria uma interpretação mais apurada, assistindo a desvendar
311
problemáticas relacionadas à validade, eficácia, competência e capacidade de agentes,
hierarquia normativa, entre outros temas.
Desse modo, como num barco que termina seu percurso no porto de destino, mas que
está sempre pronto para novas viagens, pontuou-se que o direito deve ser abraçado como um
fenômeno social diante de uma interdisciplinaridade, o que permitirá a sua efetividade, seu
fundamento coerente e firme, viabilizando interpretações e aplicações dos signos de direito
com mira no summum bonum do direito, que seu continuum persegue ou deveria perseguir
incessantemente, é dizer, tendo por alvo os braços da justiça, não como ideal inalcançável,
mas sim como terceiridade, como opinião objetiva final, como convenção das gentes, como
verdade jurídica, a qual, por o ser é sempre falível e atualizável.
Diga-se, finalmente, que, neste trabalho, coloca-se uma proposta, uma proposta de
uma visualização dinâmica do direito, não limitada ao parâmetro da linguagem, mas que não
deixa de utilizar a linguagem como mecanismo de comunicação. Trata-se de uma proposta
para que o fenômeno jurídico seja percebido como um instrumento multifuncional a serviço
das gentes, cuja orientação é objetivamente verificada.
A presente proposta é de uma teoria que se chama aqui “teoria objetivo-
multidimensional do direito” ou “teoria semeiótico↔estesiológica do direito”, em uma visão
do mecanismo jurídico como organismo atualizável no ritmo das gentes, no seu espaço e
tempo e, cuja existência de uma gravação de uma porção da summa realidade, exsurge
necessária para que a comunicação jurídica sobreviva na sociedade de direito, este visto
como fenômeno social que é.
Essa teoria é “semeiótica”, pois considera o signo jurídico e é “estesiológica” porque
contempla esse signo na sua faceta de um entrelaçamento com o objeto, como resultado de
o fundamento do signo ser uma ideia mimética que surge no e pelo corpo, o qual é um
prolongamento à summa realidade.
Essa proposta teórica se coloca para girar o espaço-tempo em direção ao objeto, à
summa realidade. Essa visão nova contorce a perspectiva para partir do objeto como centro
de especulação da ciência jurídica, o que se justifica pela sua multidimensionalidade, a qual
também inclui o homem. Nessa visão, não poderia, pois, o homem ser o centro de conversão
do direito – a intersecção, mas sim um prolongamento do seu entrelaçamento com a
realidade.
Se ele é parte da própria realidade que percebe, isso não quer dizer que a realidade
seja uma extensão sua, mas sim que ele é uma extensão da realidade, um grau, uma medida
312
sua. Ao se girar o centro ao objeto, o que se privilegia é o realismo – ele se torna então a
intersecção, distanciando-se de uma centralização na linguagem e desaguando no objetivo-
multidimensional da realidade, no summa rerum, para conhecê-lo e, conhecendo-o, conhecer
a si mesmo nele integrado.
A teoria objetivo-multidimensional ou semeiótico↔estesiológica do direito é uma
teoria de espelhos porosos, espelhos esponjosos, os quais se encontram localizados no
centro, gravando na sua superfície seu entorno e nele o homem. O direito, assim, não é
somente linguagem, mas sim a própria realidade nele gravada, não algo construído somente
pela linguagem, ao contrário, uma medida simbiótica da própria summa realidade.
Ao se colocar no centro as lentes porosas de uma espécie de câmera de gravação,
direito não é norma, fato e valor, mas sim evento gravado da summa realidade. Nasce no
evento e no evento se atualiza com vistas ao continuum da imortalidade.
O que se vê é uma simbiose: lente porosa da câmera que grava, homem, entorno e
direito se confundem, não há separação evidenciável, há uma espécie de mancha na estampa
do direito; estão como que inclusos e exclusos ao mesmo tempo. Há uma espécie de
mimetismo no direito, o qual é mimético como o bicho-folha. O olhar é também direito.
O verbo “afigurar” aplica-se perfeitamente para explicar o fenômeno. Se algo se
afigura aos olhos é porque traz aos olhos uma figura – uma figura de algo. Pelo que aqui se
verifica, essa figura é inclusiva e exclusiva ao mesmo tempo no espaço-tempo da afiguração.
Ela inclui e exclui ao mesmo tempo na figura o homem para quem algo se afigura.
Ao fazê-lo, ao fim, inclui o homem na perspectiva da figura, o que significa que o
que se afigura ao homem é o próprio homem na figura do que vê. Nesse sentido, não é o algo
da figura isoladamente que se estende ao homem, mas sim o homem que estendido na figura
se estende a ele mesmo no olhar: um entrelaçamento.
Se isso está correto, o que se tem é que o homem, em verdade, não vê a figura de
algo, mas sim a sua própria perspectiva e extensão na figura do que vê. Não há o homem, a
lente porosa da câmera e o algo gravado nela, mas sim uma simbiose, que os inclui e exclui
constantemente.
Não se trata de uma esquize. A pulsão da primeiridade peirceana está no direito numa
espécie de animalidade dos homens que fazem o direito e nele gravam o entrelaçamento
com a summa realidade.
Esse mecanismo de inclusão e exclusão é que autoriza a percepção, mas não a partir
do homem – não há um antropomorfismo, mas sim uma percepção objetivamente orientada.
313
A simbiose é com o objetivo-multidimensional – com a realidade mesma. Não é altura,
comprimento e largura; é multifacetária. Não é só lente porosa da câmera, homem e “algo”.
São estes três mais todas as potencialidades dimensionais de variações possíveis da simbiose
com o absoluto.
O que se propõe se faz com base em Merleau-Ponty, Lacan e Žižek e na linhagem de
pensamento ou direcionamento para o qual se parece guiar o realismo especulativo. Isso
porque na sociedade moderna não é mais possível um reducionismo para explicar a realidade
a partir do homem e da linguagem; deve-se conhecer o objetivo-multidimensional da
realidade, deve-se conceber o olhar e não só o olho.
Como reduzir na era do aquecimento global, das guerras cibernéticas, das revoluções
de mídia social, do além-fronteiras da internet, dos avanços da neurociência e da física
quântica, da unificação da teoria da relatividade por meio da teoria das cordas, da descoberta
dos confins do universo e da teoria do “big bang”, da psicologia moderna, antropologia,
economia, política etc.?
Ao se reduzir isso ao estanque da positividade linguística sem possibilidade de uma
capilarização contínua, em uma comunicação simbiótica interdisciplinar, o que se verificará
será o “vácuo autônomo” e brutem fulmem.
O direito, a exemplo da realidade, é, nessa visão, simbiótico e multidimensional –
objetivo-multidimensional, pois a perspectiva é objetiva e não antropomórfica. Portanto,
direito seria também, em alguma medida, grau e extensão, uma gravação da summa
realidade, incluindo todas as dimensões de possibilidades inerentes, pois seria o direito que
se estenderia à summa realidade e vice-versa. Há, pois, uma inerência do homem do direito
com a summa realidade.
O olhar dos homens do direito, na conjugação com o elemento inerência, grava o
entorno com seus contrastes sociais, políticos, sociológicos, antropológicos, econômicos,
etc., incluindo aí, simbioticamente, o próprio homem do direito, parte integrante da realidade
gravada.
Nesse olhar, o direito não está em um reino independente ou puro, mas é integrante
mesmo da realidade que grava, ainda que com funções específicas de direito; é
entrelaçamento em todas as dimensões possíveis, potencialidades, dinamicidades; é a
loucura da sociedade, sua violência, as guerras, a perversão, a maldade, mas também o amor,
a paz, a ternura, o carinho e a justiça; é torto, mas também é direito; é, pois, um olhar entre
tantos numa metamorfose de coito com o real.
314
Portanto, para o que aqui se defende, deve prevalecer uma perspectiva
semeiótico↔estesiológica, diante da qual o direito é uma espécie de signo gravador de um
signo social gravado, o que implica que é, igualmente, ao menos mediatamente, numa
ontologia indireta, um/uma entrelaçamento, prolongamento, quiasma, coito, simbiose,
mimetismo da/com a summa realidade, o que se faz num continuum de gravação, a qual se
atualiza por meio de uma investigação objetivo-multidimensional falível na experiência do
mundo sensível, sendo isso tudo a medida necessária para que a comunicação do direito se
perfaça eficiente socialmente, bem como o grau que autoriza a sobrevivência do direito entre
as gentes e, como consequência, a perseguição do ideal de uma justiça convencionada.
315
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