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7/26/2019 Direito e Sade Mental
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DIREITO E S DE ME NT L
L W AND MENT L HE LTH
Dyr ceu guiar Dias Cint r a
Junior
RESUMO
O texto t rata
da
assistncia
aos
portadores
de
t ranstornos mentais.
Traa breve histrico
da
legislao sobre
o
assunto, relata
os
avanos obti
dos pela cham ada luta antimanicomial no Brasil, analisaas novidades intro
duzidas pelaLei n. 10.216,de
6 -4-2001,
quedef ine um novo modelo assis-
tencia l
em
sade men tal,
e, por
f im, preconiza mudanas
na
legislao civil,
penale t rabalhista para adequ-las ao novo modeloe aos
Principios para
a
proteo depessoas acometidas de transtorno mental epara amelhoria da
assistncia sade mental daONU.
Abst rac t
The paper
is
about
the
assistence
to the
mental ly
ill.
Traces
a
brief
historyof the legislat ion about the issue, relatesthe improvement of the mo-
vement against
the
insane asylum model, analyses
the
news int roduced
by
the Law n. 10.216, of
6 -4-2001,
that def ines a new assistencia l model in
mental health,
and, in the end,
comm ends publ ic ly changes
in the
civil, cr imi
nalandlabour legislat ion inordertoadequate themto the newmode land the
Principles for theprotection ofpersons with men tal il lness and the improve
ment of mental health careof ONU.
Palavras chave
Sade mental , Estabelecimento psiquitr ico, Internao, Reforma psi
quit r ica. Legis lao sobre portadores
de
t ranstornos mentais.
K ey w o rds
Mental health, Psychiatric hospital, Psychiatric reform, Legislat ion about
mental ly ill.
*)
Juiz
no 2
9
T r ibuna l
de
A lada C iv il
do
Estado
de So
Pau lo . Membro
da
Assoc iao Juizes para
a Democracia. Membr odo Inst i tuto Brasi lei rodeCinc ias C r iminais .
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1. INTRODUO: A HISTORIA DA EXCLUSO
As origens mais remotas da legislao sobre a loucura esto, certa
mente, vinculadas idia de segregao, ou, mais precisamente, de autori
zao legal para que o Estado isolasse o portador de distrbio mental.
At a Revoluo France sa, no havia ainda a conc eituao do louco
enquanto doente mental. com a psiquiatria, no f inal do sculo
XVIII,
que a
loucura ganha statusde doe na, em decorrncia, sobretudo, de ter ela se torna
do um problema social nas cidades da Europa, cada vez mais populosas.
A prtica do isolamento pode ser notada na poca do Renascimento.
Havia, na Europa renascent ista, o costum e de se conf inar os loucos
num navio que vagava de porto em porto, sem dest ino. Note-se o sent ido
simbl ico disso: os insanos embarcavam numa viagem inf indvel, sem
pon
to de chegada; o ex l io r i tual ; eram prisioneiros de sua prpria part ida.
( 1 )
A nau dos loucos no encerrava s perturbado s mentais, est claro.
Nela havia lugar para os bba dos, os deva ssos , os desordeiros, os que in
terpretavam mal as escri turas , os blasfemadores. A loucura era abordada a
part ir de um exclusivo sentido moral.
Assim tambm foram os hospitais gerais cr iados na Frana por ordem
do rei a part ir de 1656, com a fundao por decreto do Hospital Geral de
Paris , com o objet ivo de aprisionar no apenas a loucura, mas todos os
pobres da cidade. Por isso, no dizer de Foucault, o hospital geral no tem
carter mdico, seno de uma estrutura semijurdica, um a espc ie de enti
dade administrat iva que, ao lado dos poderes j const i tudos, e alm dos
tr ibun ais, decide, julga e executa , dir igida por diretores nom eado s p ara toda
a vida: um poder estabelecido pelo rei entre a polcia e a just ia.
( 2 )
Muitos ant igos leprosarios na Idade Mdia foram reat ivados, nessa
poc a, pelo clero e por mand o
real,
com o objet ivo de ordenar a misria que
grassava pela Europa. Em mui tos desses hospi ta is gerais, casos mais ex
t remos de al ienao mental eram t ratados com conf inamento em jaulas,
re legando homens condio de anima is, como de scr i to em diversas obras
l i terr ias. A explorao da mo-de-obra em ta is inst i tu ies era fato co
m u m .
(1) Joo Fraize-Perei ra, O que loucura, So Paulo, Bras i l iense, 1986, p. 5 1 .
(2) Com o revela Foucaul t , sabido que o sculo XVII cr iou vastas casas de internm ento; no
mui to sabido que mais de um habi tante em cada cem da c idade de Par is v iu-se fechado numa
delas, por alguns meses;. bem sabido que o poder absoluto fez uso das cartas regias e de medi
das de pr iso arbi trr ias; menos sabido qual a conscincia jurdica que poderia animar essas
prt icas (His tr ia da Loucu ra,apudJoo Frayse-Perei ra, ob. c i t. , p. 62) . Sob re isso, ta m b m , vide
Hl io Lauar , Pensando a In ternao, em Le i Car lo em debate , 1995, p . 49 .
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A Revo luo Francesa procurou dar um carter cient fico que le iso
lamento, dentro do espr i to do novo regime, desenvolvendo inst i tutos jurdi
cos inspirados nos valores burgues es que se instalavam , sobre tudo com base
na Declarao dos Direi tos do Homem e do Cidado, que estabelece a as
sistncia pbl ica como uma dvida sagrada.
O internamento ganhou valor teraput ico e virou o asi lo de Phi l ippe
Pinei, mdico f rancs. Este construa em torno dos portadores de transtorno
mental um crculo invisvel de julgamentos morais: a observao para cr iar
um rigoroso controle tico.
Entendia necessrios ao tratamento: 1) o isolamento para romper com
o foco permanente de inf luncias incontroladas que a vida social ; 2) o
estabelecimento da ordem asi lar; 3) uma relao de autoridade entre o m
dico e seus auxil iares e o doente. Sob estes trs princpios foi institudo o
manicmio-hospi ta lar para t ratamento mental .
( 3 )
No mesmo perodo, na Inglaterra, Tuke dir igia experincia semelhan
te ,
calcada numa comunidade re l ig iosa, para submeter o internado a um
contro le s imul taneamente socia l e moral .
( 4 )
2. MODEL O EXISTENTE
De f ins do sculo passado a este sculo, signi f icat ivas descobertas
foram fei tas a inf lurem no tratamento psiquitr ico: a psicanl ise de Freud e
a psicofarmacoterapia.
Mas ,
apesar d isso, os estabelecimentos de internao pouco muda
ram. A t ica da excluso social do enfermo mental ainda vigora. Tal exclu
so impl ica: 1) a excluso jurdica (pela interdio); 2) a excluso nos as
suntos do crculo famil iar (os segredos, os pactos de dependncia, a vergo
nha,
a construo permanente de fracassos); 3) a excluso no trabalho (a
apo sentad oria por doen a incapac itante, a noo de em prego de favor ); 4)
a excluso no processo educacional (o est igma das classes especiais ou do
apontamento pelos colegas da si tuao de hipossuf icincia); 5) a excluso
teraput ica (hospitais psiquitr icos).
Os manicmios cont inuam sendo a ponta mais aguda do processo de
excluso. So uma est rutura de completo desrespei to aos di re i tos funda
mentais da pessoa humana.
(3) Ana M ar ia Fernand es Pi tta e Suel i Gandol f i Dal lar i , A c idadania dos doe ntes m entais no s is tema
de sade do Bras i l , em Sade em debate, n. 36, 1992, p. 19.
(4) Joo Frayse-Pereira, ob. c i t . , pp. 83/86.
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Os objet ivos centrais do asi lo pinel iano cont inuam vivos, no Brasi l , por
fora do velhssimo Decreto n. 24.559/34, que tratava da questo no mbito
nacional at a edio da recente Lei n. 10.216/2001.
O modelo que temos, reproduzindo conceitos legais at h pouco vi
gen tes, procura marcar bem a di ferena entre norm al e ano rma l . A prt i
ca decorrente de sua apl icao no destoa m uito da nau referida no incio do
trabalho: a internao const i tui , para o enfermo mental , quase sempre, uma
porta de entrada, nunca de sada.
Para que se tenha uma idia do modelo sustentado pelo referido de
creto,
basta que se constate quantas vezes aparece em seu texto a palavra
estab elecim ento psiqu itrico . Por ele, a profi laxia me nta l, [...] ass istnc ia
e proteo [ ...] dos psicpa tas que objet ivo enun ciado no prem bulo
parece ter um s nom e: estabelecimen to ps iquitr ico .
{5 )
Especial istas que preconizam uma nova t ica sobre a doena mental
tm denunciado, a par do isolamento f sico dos internados, o uso abusivo
dos ps ico t rp icos e a a tuao exc lus iva na doena em det r imento de ou
t ras d imenses do ser humano, que o portador de t ranstorno mental no
as perde.
No so poucos os casos de pessoas que, internadas por sofrerem de
doenas como epi lepsia, enxaque ca, podem ter enlouquecido mes mo no
hospcio.
H dados aval iat ivos reveladores de que apenas aproxima dam ente 12 %
dos internados deveriam permanecer nas inst i tuies.
3. LUTA ANTIMANICOMIAL NO B RASIL
A aniqui lao do indivduo portador de problemas mentais em seus
mais elementares direi tos de cidadania gerou o quest ionamento do modelo
tradicional, em nvel tcnico, luz da experincia cient f ica contempornea,
e deu origem a movimento pela reforma da legislao psiquitr ica.
O objet ivo respeitar os direi tos humanos do doente mental , subme
tendo-o a um novo complexo de intervenes, em que a preocupa o co m a
pessoa humana dele a central.
(5) Segundo o Decreto n. 24.559/34, do governo prov isr io de Getl io Vargas, dentre outras
co i
sas , Sem pre que, por qua lquer mo t i vo , fo r i nconven iente a conserva o do ps i cpata em dom i
c l io, ser o me smo rem ovido para estab elec ime nto ps iquitr ico (ar t igo 9
Q
) . De le cons ta tamb m
que ,
O ps icpata ou o indiv duo susp ei to de atentar contra a prpr ia v ida ou a de outrem , que
per turbar a ordem ou ofender a moral pbl ica, dever ser recolhido a estabelec imento ps iquitr i
co (art igo 10).
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Depois de demorada tramitao legislat iva, foi f inalmente aprovado o
projeto do Deputado Paulo Delgado, surgido na esteira da luta ant imanico-
mial com o propsito de reformar signi f icat ivamente a assistncia psiquitr i
ca, em nivel nacional.
Infel izmente, a internao involuntria no foi abol ida, podendo ocor
rer mesmo sem ordem judicial . Mas a nova lei t raz avanos na l inha al terna
t iva internao hospitalar.
Antes, em diversos Estados, o assunto j havia avanado signi f icat i
vamente .
Em So Paulo, os pr incp ios bsicos da reforma psiquit r ica esto
no ar t igo 33 do Cdigo de Sade do Estado (Lei Complementar Const i
tuio Paul ista). H, no caput do referido art igo, a diretr iz de superao
gradat iva do procedimento de internao hospi ta lar , no tocante sade
mental . Out ras inovaes re lacionadas com o ple i to por reformas ant ima-
nicomiais esto nos incisos I I I (a previso de t ratamento em ambiente me
nos rest r it ivo pos svel e o cons ent imen to inform ado), IV (a internao com o
lt imo recurso teraput ico) e VI (a vigi lncia dos direi tos indisponveis do
indivduo assist ido de forma ar t iculada com a autor idade sani tr ia e o Mi
nistrio Pbl ico).
Em Minas Gerais, a Lei n. 11.802/95, cham ada Lei Ca rlo , tam b m
tratou adequ adam ente a promoo da sade do portador de sof r imen to men
tal,
incorporando disposit ivos do direi to internacional
Princpios pa ra a pro
teo de pessoa s acom etidas de transtorno men tal e para a melhoria da
assistncia sade m ental, da ONU, de 1991) e recomendaes do Relat
rio final da 2
Conferncia Nacional de Sade Mental, real izada em 1994.
A le i m ine i ra , dent re out ras inovaes
{ 6 )
: 1) d nfase ao direito ao
tratamento para reinsero social (art igo 1
9
) , cons iderando, quando poss
vel , a vontade do paciente (art igo 4
9
, IV)
( 7 )
; 2) bane o modelo cent rado na
excluso, inclusive no ensino (art igo 16), e resgata, como fator auxi l iar do
t ratamento, a re insero na fam l ia, no t rabalho e na comunidade
( 8 )
; 3) pre
v servios de sade mental subst i tut ivos dos hospi ta is psiquit r icos, a
serem gradat ivamente ext intos (ar t igo 21); 4) v incula os poderes pbl icos
estadual e munic ipais implementao de um novo sistema, a l ternat ivo
aos hospi ta is psiquit r icos ambulatr ios, servios de emergncia psi -
(6) Toda s tam bm co nstantes do projeto paul is ta Projeto de Lei n. 366 , em tram i tao desd e
1992.
(7) Trata-se,aqu i , de i ncorporao do 11
8
dos Princpios pa ra a proteo de pessoas acometidas
de transtorno mental e para a melhoria da assistncia sade mental, da O N U, de
1 9 9 1 ,
que prev
o consent imento informado e a formas de supr i - lo em casos excepcionais .
(8) O di re i to v ida e ao trabalho e m com unida de, sem pre que p ossve l , destacado no Pr incpio n.
3 do refer ido instrumento internac ional . O Pr incpio n. 7 fa la, a inda, do papel de comunidade e da
cul tura no t ratamento.
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quit r ica em pronto-socorros gerais e cent ros de referncia, le i tos em hos
pi tais gerais, servios de hospital-dia e hospital-noi te, centros de refern
cia em sade mental , cent ros de convenincia, lares e penses protegidas
(art igos 2
9
e 3
9
) ; 5 ) bane proced imentos desumanos como a camisa-de-
fora, cela-forte e outros (art igo 5
9
) e regulamenta minuciosamente as pr
t icas teraput icas psiquitr icas biolgicas (art igo 4
9
, pargrafo nico), nas
quais se incluem a eletroconvu lsoterapia, o choque cardiazlico e o choque
insulnico, t idos como de apl icao abusiva, at a q u i
( 9 )
; 6) probe as psicoci-
rurgias e quaisquer procedimentos que impl iquem efei tos orgnicos i rrever
sveis a t tulo de tratamento da enfermidade mental
( 1 0 )
(art igo 6
9
); 7) prev a
internao como lt imo recurso (art igo 9
9
) , vinculando-a existncia de lau
do mdico especial izado com diagnst ico, autorizao da faml ia ou pacien
te e previso de tempo de tratamento (art igo 10); 8) prev a separao dos
portadores de sndrome de dependncia a lcol ica em le i to de c l n ica mdi
ca,
em hospitais gerais ou pronto-socorros gerais (art igo 9
9
, 2
9
) e a inter
veno necessria do Ministrio Pbl ico e da autoridade sanitr ia local (ar
t igos 12 e 13).
4. LEI N. 10.216/2001
A lei de mbito nacional recentemente aprovada probe a internao
em inst ituies com c aracterst icas a si lares , ou seja, aque las desp rovidas
de servios mdicos, psicolgicos, ocupacionais, de assistncia social , de
lazer e outros ( 2
9
do art igo 4
9
) , e que no assegurem ao paciente os direi
tos bsicos do sistema.
Tais direi tos bsicos da pessoa enferma so: I - ter acesso ao melhor
tratamento do sistema de sade, consentneo s suas necessidades; I I - ser
tratada com humanidade e respeito e no interesse exclusivo de benef iciar
sua sade, visando a alcanar a sua recuperao pela insero na faml ia,
no trabalho e na comunidade; I I I - ser protegida contra qualquer forma de
abuso e explorao; IV - ter garant ia de sigi lo nas informaes prestadas; V
- ter direi to presena mdica, em qualquer tempo, para esclarecer a neces
sidade ou no de sua hospital izao involuntria; VI - ter l ivre acesso aos
meios de comunicao disponveis; VI I - receber o maior nmero de infor
maes a respeito de sua doena e de seu tratamento; VI I I - ser t ratada em
ambiente teraput ico pelos meios menos invasivos possveis; IX - ser t rata
da, preferencialmente, em servios comunitr ios de sade mental (pargra
fo nico do art igo 2
9
) .
(9) A forma de preservar o respei to dignidade da pessoa acom et ida de t ranstorno men tal est n o
Pr incpio n. 11 daquele documento.
(10) A l imitao radical da psicocirurgia est no i tem 14 do Princpio n. 11 do documento.
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Prev a lei , tambm, a necessidade de autorizao mdica para qual
quer t ipo de internao e a not i f icao compulsria ao Ministrio Pbl ico, no
prazo de 72 horas, nos casos em que o internamento se d contra a vontade
do paciente.
DESAFIOS PARA IMPLEMENTA O DO NOVO MODELO
H necessidade de desenvolver pol t icas pbl icas tendentes perfei ta
apl icao da nova lei .
Um dos primeiros problemas com que deparamos diz respeito s inter
naes j existentes.
O assunto est a demandar uma ampla veri f icao pelo Ministrio da
Sade e outros rgos, aos quais a Lei n. 10.216/2001 atr ibui funes, no
sent ido de adequar as internaes em curso nova legislao, veri f icando
sua necessidade e implementando os controles previstos.
No se po de es quece r que o sent ido da lei o dedesconstruo de um
sistema.
Depois, preciso cuidar para que as desinternaes sejam efet iva
mente assist idas, evi tando o abandono de pessoas que necessitam de trata
mento em outro ambiente. Como tem sido assinalado pelo deputado Paulo
Delgado, autor do projeto, as vagas de hospital psiquitr ico devem ser blo
queadas apenas mediante a cr iao de vagas correspondentes no servio
aberto (centros de ateno psicossocial , ncleos, penses protegidas, lares
abrigados, o hospital-dia, o hospital-noi te, ala psiquitr ica de hospital geral ,
emergncia psiquitr ica, servio psiquitr ico no posto de sade da peri fe
ria).
Outra questo importante a de ordem cultural . A apl icao efet iva da
le i exige uma mudana de mental idade. preciso empenhar esforos no
sent ido de demonstrar as vantagens de um maior contado do doente mental
com a sociedade. preciso superar preconceitos de uma populao que se
acostumou a pensar no doente mental como uma est ranha simbiose de um
ser perigoso e incapaz.
A faml ia deve ser objeto de ateno especial . Sabe-se que o abando
no do doente mental pelos famil iares se deve, em grande parte, carncia
de recursos e ao peso que aquele signi f ica. Os hospitais para doentes
men
tais nada mais foram, sempre, que depsitos de seres humanos, onde as
faml ias isolavam os doentes que lhe pareciam inconvenientes e perigosos.
Mas, se o Estado sempre pde pagar grandes somas de dinheiro aos hospi
tais,
por que no poderia canal izar parte desses recursos, de forma controla
da, para que as faml ias atendam seus doentes?
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Os transtomos mentais so responsveis pelo terceiro maior gasto anual
com internao no Sistema nico de Sade (SUS), correspondendo atual
mente a R$ 450 mi lhes. Cerca de 95% de ta l quant ia ia para o modelo
manicomial , remunerando internaes que signi f icavam isolamento e perda
do contato social pelo paciente.
O novo regime, que investe na recuperao social , deslocando o cen
t ro da assistncia do hospital para a pessoa, exige o redimensionamento na
apl icao de tais recursos.
6. MUDANA S LEGISLA TIVAS NECESSRIAS
Uma questo que convm abordar alm da mais especf ica legisla
o sobre estabelecimentos psiquitr icos , a das conseqncias do dis
trbio mental na si tuao jurdica dos envolvidos, sob os enfoques das legis
laes civil, penal e t rabalhista.
Considerando o modelo adotado pela Lei n. 10 .216 /2001, preciso
promover mudanas em vrios pontos da legislao.
Segundo o Cdigo
Civi l ,
dentre os absolutamente incapazes de exer
cer os atos da vida civi l esto os loucos de todo o gnero , express o esta
que tem merecido cr t icas.
A declarao da incapacidade corresponde chamada interdio.
O que preciso entender, contudo, que tal interdio visa a proteger
o doente mental e no destruir seus direi tos, como ocorre com freqncia.
O Decreto n. 24.559/34 j modif icara parcialmente a discipl ina, pos
sibi l i tando ao juiz a l imitao da interdio a determinados atos, incluindo o
portador do distrbio como relat ivamente incapaz conforme o nvel de com
promet imento de sua psique. De qualquer forma, a legislao ainda deixa a
desejar no que se refere cidadania do doente mental . preciso adequ-la
ao que prev a nova lei sobre a assistncia aos doentes mentais e os
Prin
cpios para a proteo de pessoa s acom etidas de transtorno men tal e para
a melhoria da assistncia sade men tal 6aO NU : a sa t is fao de nece ss i
dades compat veis com a v ida e d ignidade e o perfe i to acompanhamento
jurdico do interdi tado, impondo-lhe restr ies mnimas adequadas ao seu
caso.
A lei penal se ressente de inadequaes mais graves ainda.
Os portadores de problemas mentais podem ser t idos como: (1) inim-
putveis ou (2) semi-responsveis.
Os inimputveis no respondem jur id icamente porque no tm capa
cidade para sofrer juzo de censurabi l idade. So isentos de pena. Os
semi-
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responsveis, por sua vez, so imputve is, ou seja, respo ndem pelo fato.
Mas sofrem diminuio na pena (de um a dois teros) por terem sua capaci
dade de discernimento diminuda.
Quais as conseqncias, para o agente, nas duas hipteses?
A reforma penal de 1984 adotou o sistema chamado
vicariante
ouuni-
trio (em oposio ao sistema do duplo binario anterior). Apl ica-se a pena ou
medida de segurana. Um caminho exclui o outro.
No caso de inimputvel, a soluo sempre a apl icao de medida de
segurana, que pode ser: 1) internao em hospital de custdia e t ratamen
to; ou 2)
tratamento ambulatorial
(art igo 96 do Cdigo Penal).
No caso do semi-responsvel, o juiz pode optar entre: 1) diminuir a
pena (art igo 26, pargrafo nico, do Cdigo Penal); ou 2) substitu-la por
uma daquelas duas medidas de segurana,
se o condenado necessi tar de
especial tratamento curativo (art igo 98 do Cdigo Penal).
Ocorre que a inimputabi l idade acaba tendo, em razo da lei , um trata
mento muito mais penal que teraput ico. Se os estabelecimentos psiquitr i
cos j so ruins, calcule-se como so os manicmios judicir ios.
H mais. Segundo a lei , se o fato for apenado com recluso, a medida
de segurana ser sempre de internao. Ora, e se ela for desnecessria?
Nesse ponto, a legislao penal no levou em conta o ser humano,
mas o fato de que ele prat icou (mais grave ou menos grave), o que choca
com as exigncias de internao como l t imo recurso.
H tempos a jur isprudncia dos t r ibunais paul istas vem admit indo o
tratamento ambulatorial , por exceo, no caso de indicao de suf icincia
deste no laudo que af i rma a insanidade mental , abrandando, portanto, o
r igor e a inadequao da
l e i .
( 1 1 )
Outro problema reside no tempo da internao ou do tratamento am
bulatorial . A lei fala em tempo indeterm inado e prazo mnimo de trs anos
(art igo 97, 1
g
).
12 )
Mas, dentro da prpria dogmtica penal, parte da doutr i
na vem denunciando tal sistema como violador dos princpios const i tucio
nais da legal idade e da igualdade. De fato, no pode haver submisso de
pessoa a constrangimento que a internao no deixa de ser , alm da
pena mxima prevista para o del i to.
( 1 3 )
(11) Julgados do Tr ibunal de A lada Cr iminal , 93/181 e 98/203; Revis ta dos Tr ibunais 634/272.
(12) Esta prev iso ass im como a or igem da me dida de segurana te m por base o concei to de
temibilidade
ou
periculosidade
do del inqen te com problem as mentais , no sent ido de uma cer ta
pervers idade constante e at iva dele, formulado por Garofalo, penal is ta i ta l iano do f inal do sculo
XIX, que projetou para o Di rei to Penal concepes antropolgicas e soc iolgicas do pos i t iv ismo.
(13) Luiz F lv io Gome s, Med idas de seguran a e seus limi tes , em
Revista Brasileira de Cincias
Criminais, 2, 1993, p. 64.
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A inadequao no para a : a disposio se choca com a nova legisla
o brasi leira, como j se chocava, antes, com os Princpios para a proteo
de pessoa s acom etidas de transtorno m ental e para a me lhoria da assistn
cia sade
mentcd
da ONU.
A Lei n. 10.216/2001 prev o direi to de acesso ao melhor t ratamento,
consentneo com as suas necessidades (art igo 2
9
, pargrafo nico, I), que
pode no ser a internao. A recuperao pela insero na faml ia o obje
t ivo preconizado (art igo 2
9
, pargrafo nico, I I ) , os meios de tratamento de
vem ser os menos invasivos (art igo 2
g
, pargrafo nico, VIII) e a internao
t ida como lt imo recurso (art igo 4
9
, caput).
A lei se preocupou, ainda, em evi tar ou superar a dependncia inst i tu
cional,
que deve ser objeto de polt ica especf ica de alta planejada e reabil i
tao psicossocial assist ida (art igo 5
9
) .
Por outro lado, o item 6 do Princpio n. 17 do documento da ONU diz
que Se, a qualquer m om ento, o prof issional de sad e men tal respon svel
pelo caso est iver convencido de que aquelas condies para a reteno de
uma pessoa como paciente involuntrio no so mais apl icveis, este deve
r determinar a al ia dessa pessoa da condio de paciente involuntrio .
Tais pr incp ios se apl icam tambm a pessoa cumprindo sentenas de
priso por cr imes [ . . . ] e nas quais tenha sido determinada a presena de
transtorn o me ntal (i tem 1 do Princpio n. 20).
Por f im, de se destacar a inexistncia de legislao trabalhista ver
sando sobre a questo do doente mental .
Sabe-se que o t rabalho um fator importante no tratamento dos dis
trbios mentais. O reconhecimento da apt ido que o doente tenha para um
determinado t rabalho d- lhe autoconf iana. Mas a perspect iva de autono
mia f inanceira mnima, que deveria corresponder apt ido, pode f icar preju
dicada pela fal ta de legislao especf ica, que no torna possvel a real iza
o de contratos de trabalho com ele.
CONCLUSO
Como se v, h muita coisa ainda a ser fei ta para o aprimoramento da
legislao sobre sade mental .
A Lei n. 1 0.216/2001 foi o com eo . claro que um a lei no faz m ilagres .
O process o de desinstitucionalizao deve se apoiar em cond ies esp ecf i
cas de capacitao profissional e material. E deve ter o apoio da sociedade.
Mas tambm no se pode falar que a lei no muda a realidade, pois,
hoje,
o direi to tem tambm um sent ido promocional e no apenas declarat ive
7/26/2019 Direito e Sade Mental
11/11
O desenvolvimento de pol t icas pbl icas tendentes apl icao da Lei
n. 10.216/2001 pode ser cobrado inclusive por meio de ao para tutela de
interesse colet ivo.
A implementao adequada do novo modelo provocar mudanas ins
t i tucionais e sociais. E deve servir de parmetro para modif icaes legislat i
vas quanto ao
status
do doente mental no mbito do Direi to Civi l , do Direito
Penal e do Direi to do Trabalho.
O assunto interessa a todos. Af inal , como dizia o grande escri tor espa
nhol
Miguel de Unamuno:
Cada um tem seu mtodo, com o cada um tem
sua loucura; apenas est imamos cordato aquele cuja loucura coincide com a
da maioria .
8. BIBLIOGRAFIA
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