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O PROFESSOR PDE E OS DESAFIOSDA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSE
Versão Online ISBN 978-85-8015-037-7Cadernos PDE
2007
VOLU
ME I
Uma Música Afro-Brasileira: o Samba1
Da repressão a malandragem à símbolo da identidade
nacional
Joana D’Arc A. Ferreira2
José Roberto de Vasconcelos Galdino3
Resumo
Este artigo visa analisar a contribuição africana para a cultura
brasileira, especialmente no que diz respeito à música e a dança,
vistas como movimentos de resistência e esperança e que ao longo
da história brasileira foram duramente reprimidas pelas elites
dominantes, como por exemplo, o batuque. Esta repressão pode ser
vista nos Códigos de Postura da maioria dos municípios brasileiros.
Ele analisa especialmente uma dessas manifestações culturais mais
importantes que é o samba, que passou de um período de repressão
– quando era associado à malandragem, à pessoas desqualificadas –
para outro período posterior, onde transformou-se e foi identificado
como símbolo de identidade – quando foi associado ao trabalho- no
Governo de Getúlio Vargas na década de 1930 e 1940 com seus
objetivos de alcançar a unidade nacional e exaltar a idéia da
mestiçagem e da democracia racial como elementos fundadores da
identidade brasileira
Palavras-chave: batuque, samba, identidade nacional,
democracia racial.
1 - Este artigo é o trabalho final referente ao Programa de Desenvolvimento Educacional promovido pela Secretaria de Estado da Educação do Paraná-turma 2007.2 - Professora da Rede Estadual de Ensino do Paraná com formação em Pedagogia pela Universidade Estadual de Ponta Grossa.3 - Professor do curso de História da Universidade Estadual de Ponta Grossa e orientador do Programa de Desenvolvimento Educacional – PDE/2007.
1
ABSTRACT
This article aims to analyze the African contribution to Brazilian
culture, especially in relation to music and dancing, seen as a
movement of resistance and hope that the course of Brazilian history
were harshly repressed by the dominant elites, like the Wonder Dog.
This repression pose be seen in the Codes of posture of most
municipalities. He looks especially of those most important cultural
events that is the samba, which went through a period of repression –
when he was associated with malandragem, persons disqualified – for
another period later, where he transformed himself and was identified
as a symbol of national identity – when it was associated with the
work – in the government of Getúlio Vargas in the 1930s and 1940s
with its objectives of achieving national unity and exalt the idea of
racial miscegenation and democracy as the cornerstones of Brazilian
identity.
Key words: Batuque, samba, national identity,
racial democracy.
INTRODUÇÃO
O objetivo deste artigo é possibilitar uma reflexão a respeito da
contribuição africana para a cultura brasileira, possibilitando um novo
olhar para um continente ao qual temos voltado às costas e que de
certa forma faz parte da vida de todos nós. Sabemos que diversos
povos negros africanos foram trazidos ao Brasil na condição de
escravos por cerca de quatro séculos. Aproximadamente quatro
milhões de africanos aqui desembarcaram principalmente dos grupos
2
etno-lingüísticos bantos e sudaneses. Os bantos pertenciam a vários
grupos da África centro meridional especialmente Congo e Angola e
os sudaneses da África Ocidental principalmente das regiões da
Nigéria e Benin. Segundo Ari Araújo:
Genericamente podemos falar em três grandes grupos na
África: culturas sudanesas (Iorubás,Gêges,Fanti-
Ashanti);culturas islamizadas (Haussas, Tapas, Mandingas,
Fulahs) e culturas banto(Angola, Moçambique, Congo).
(ARAÚJO, 1978, p.40).
Sendo separado de suas famílias, de suas terras, o negro
escravizado se transformou em mercadoria podendo ser vendido,
comprado e revendido. Ele foi “coisificado”, desumanizado, explorado
como mão-de-obra a serviço das elites senhoriais portuguesas e
brasileiras. A corte portuguesa visava à mistura de diferentes etnias
africanas, a fim de impedir a concentração de negros de uma mesma
origem em um só local. Essa era uma das formas de tentar impedir
suas revoltas.
O continente africano não era um todo desorganizado, sem
cultura, sem conhecimento e sem tradição, e sua contribuição para a
construção da história brasileira é imensurável. O africano foi
essencial para a formação do Brasil no que diz respeito à língua,
tecnologias, artes, religião, filosofia, música e dança.
A expressão “música afro-brasileira” nos remete a um
continente, a África, que possui mais de dois mil povos, cada um com
suas particularidades lingüísticas, culturais e organizacionais. Neste
continente por muito tempo seus habitantes foram caçados e trazidos
na condição de escravos para o Brasil. Separados de suas famílias, de
seu povo, afastados de seus lugares de origem adaptaram-se a uma
nova língua, novos territórios, novos costumes, novos estilos de vida.
Pretendemos ainda possibilitar uma reflexão da música negra,
primeiro na África e depois no Brasil, onde passou por momentos de
repressão e perseguição até chegar à condição de música nacional,
3
nas décadas de 1930 a 1940, quando o samba foi apropriado pelo
Governo de Getúlio Vargas com a finalidade de torná-lo símbolo
nacional.
ÁFRICA – BRASIL: CORPO E MOVIMENTO
A música e a dança nas culturas africanas são dois
elementos inseparáveis, ou seja, o som está diretamente ligado ao
movimento do corpo. Outro aspecto também importante é a forma
responsorial1.
O movimento das várias partes do corpo distingue o
africano dos outros povos. Geralmente o músico não produz apenas
sons, mas move cabeça, pernas, ombros, etc. Enquanto os
participantes batem palmas, outro dança no centro da roda, até o
momento que escolhe outra pessoa para substituí-lo. Dança e música
são essenciais na vida diária e variam muito de região, porém, a
maioria tem algumas características comuns de serem dançadas em
filas e rodas. O ritmo e a força das danças são também encontrados
nas religiões, como, por exemplo, o Candomblé.
A música e a religião são um universal: de um jeito ou de
outro aparece em todos os lugares onde tem ligação
estreita tanto com o tempo quanto com a memória. A
música cumpre importante papel que possibilita aos homens
transmitirem seu patrimônio de um lugar para outro.
(BITTENCOURT, 2002, p.09).
A história das comunidades é transmitida oralmente de geração
a geração, pelo griot, que para os africanos é o representante da
história viva que é contada, reinventada e preservada através do
canto. Genealogias, provérbios e lendas também são expressos
através da música que também é veículo para preservação e difusão
de conhecimentos. O musicólogo ugandense Solomon Mbabi-Katana,
diz em seu artigo “Uma música para acompanhar a vida” que os
4
músicos ocidentais herdaram uma longa tradição musical escrita,
separando a música de seu contexto, já a música africana:
(...) apresenta uma série de associações sociais e culturais, e
não pode ser abstraída de seu contexto. É difícil dissociar o
impacto do som musical dos efeitos que essas associações
produzem na emoção (...) certa vez mostrei a um grupo de
pastores que vivem junto aos lagos da região ocidental de
Uganda uma gravação de cantos e recitativos épicos de seu
povo, que se referiam à vida de um de seus heróis
legendários. Só dois ouvintes se emocionaram às lágrimas;
os demais permaneceram indiferentes, porque a música
estava sendo tocada fora de seu contexto ritual.(MBABI-
KATANA, 1977, p.27).
Na cultura africana, a música está vinculada ao cotidiano, do
trabalho, da religião e do entretenimento. Para o africano a música
não é um luxo, mas, um modo de vida, presente do nascimento à
morte, do plantio à colheita. Atividade rotineira como caça, pesca,
preparação de alimentos são invariavelmente realizadas ao som de
músicas. Já no Brasil, a música dava força ao árduo trabalho escravo,
como uma forma de suportar tanto sofrimento e opressão. Segundo
Tinhorão (1975, p.149) “para rimar as passadas quando carregavam
fardos ou cestos pesados na cabeça os negros costumavam cantar,
como se uma força fosse estimulada pelo choro”. O contingente de
negros trazidos para o Brasil, procurou manter sua cultura viva,
muitas vezes reelaborando-as e deixando suas marcas na formação
da cultura brasileira.
A relação entre senhores e escravos era dominada por conflitos
e tensões e havia uma série de normas para limitar as ações dos
escravos. Porém, quando esses senhores descobriram o talento dos
negros para a música começaram a usá-los para demonstrarem
status e poder. Com o passar do tempo também foram usados como
mais uma fonte de renda para seus senhores que tanto cobravam
para as apresentações, bem como, vendiam os músicos como
5
mercadorias. Quanto melhor era a banda maior era o prestígio de seu
dono. Os serviços das bandas eram oferecidos às igrejas, às
procissões, casamentos, aniversários, entre outros eventos.
As Irmandades Negras também foram importantes elementos
da cultura afro-brasileira e surgiram nos meados do século XVII. Duas
Irmandades foram especialmente importantes: a Ordem de Nossa
Senhora do Rosário dos Pretos e a Ordem de São Benedito. Foi uma
maneira usada pelos negros para participarem da vida colonial
portuguesa, porém havia igrejas separadas e também os dias
designados para as suas celebrações. Os negros podiam desfilar e
aparecer em público como se fossem civilizados, porque eram
católicos, mas ao mesmo tempo usavam tambores e vestimentas
africanas. Na verdade, para o negros era uma celebração em que
podiam de alguma forma manter viva a cultura africana. Um desses
exemplos é a celebração das embaixadas reais, onde as Irmandades
desfilavam pelas ruas com rei, rainha, vassalos, ministros e
geralmente à frente um grupo de dança que anunciava a chegada do
rei e da rainha.
Outro destaque dos negros foi a 'música de barbeiros’, que
existiu a partir do século XVIII desempenhada por escravos obrigados
por seus senhores a aprenderem novos ofícios. A profissão de
barbeiros deixava tempo para a aprendizagem de outros trabalhos e
era uma profissão com prestígio. Nas horas vagas esses
profissionais dedicavam-se a atividade musical e à aprendizagem de
novos instrumentos. Este movimento destacou-se principalmente no
Rio de Janeiro e Bahia. Seu repertório musical era alegre e com o
tempo passaram a ser contratados para tocarem em festas religiosas.
Inúmeras formas de música negra foram criadas no Brasil no
século XIX entre elas o lundu, o maxixe, o frevo, o jongo, o choro e o
samba de roda. Cada uma apresenta suas particularidades, mas,
juntas formam o grande e incontestável leque da contribuição negra
para a música e para a dança brasileira, sendo que adiante
6
abordaremos um dos gêneros musicais mais conhecidos desta
contribuição: o samba2.
Outro aspecto importante que evidencia a presença africana em
nossa música é o uso dos instrumentos de percussão como
atabaques, cuíca, maracas, agogô, berimbau. No princípio eram
instrumentos improvisados e simples, com os quais nossos
antepassados mais distantes começaram a homenagear deuses e os
mortos. De acordo com Pan e Teles (2000, p.1) “a percussão
brasileira se formou por variados elementos da cultura africana e
constitui hoje um leque bastante significativo da cultura brasileira”. O
instrumento percussivo atabaque era usado pelos povos africanos no
Brasil e mesmo sob fortes pressões conseguiam manter essa
tradição. Este instrumento tinha várias funções, entre elas, avisar
para chegada de chuvas, visitantes, inimigos. Em nossa cultura o
atabaque foi importante para o surgimento dos blocos afro, escolas
de samba, blocos carnavalescos, e também fundamental em outras
expressões culturais, especialmente nos cultos religiosos como
Candomblé, Tambor de Mina, Umbanda, etc.
REPRESSÃO À MÚSICA NEGRA
No início do século XIX, toda dança dos negros era vista
preconceituosamente. Os batuques eram umas dessas danças que
incluíam práticas religiosas, mas também podiam referir-se apenas à
música e dança e segundo Antonio de Morais Silva denominada como:
batuques de negros acompanhados de feitiçaria. (...) dansa
com sapateados e palmas, ao som de cantigas só de tambor
quando é de negros, ou também de viola ou pandeiro quando
entre gente maes aceada. (SILVA, apud SANTOS, 1997 p.17).
7
Os batuques, cantos, danças e tambores até os meados de
1814 eram considerados insignificantes a partir de então foram
interditados pela elite dominante que associava tais manifestações à
insurreições ocorridas. Muitos códigos de postura foram criados em
todo país proibindo-os, além da realização de uma forte repressão
policial a esses batuques. O batuque, dança de roda praticada pelos
escravos, ao som dos instrumentos de percussão passa a ser proibido
pela legislação e geralmente era considerado como um incentivador
dos movimentos de revolta. Tinhorão (1975, p.129) constata que
neste período “os batuques nome aplicado sempre no sentido
genérico a todos os ritmos produzidos por negros à base de
percussão, começaram a preocupar os dirigentes da colônia.” As
práticas culturais negras além de uma distração, uma espécie de
alívio de um dia penoso de trabalho árduo foram também uma
questão de identidade, e de resistência, muitas vezes encaradas pela
sociedade como um desafio e desrespeito à cultura dominante, vistas
como arruaças e bagunça e uma oportunidade de organização de
revoltas dos negros.
As manifestações negras, mais especificamente a música e a
dança no Brasil foram aviltantemente reprimidas e sufocadas. Elas
eram vistas como, lascivas, jocosas e atentatórias à moral, à religião
católica e principalmente à segurança pública. A elite denominava de
‘batuque’ toda e qualquer manifestação de dança e música negra,
sendo que ao que se sabe essa dança já aparecia no Congo e Angola
com distinções. No Congo, por exemplo:
Se formava um círculo composto de dansadores e dos
expectadores, fazendo parte dele também os músicos com
seus instrumentos. A diversão começava quando fossem para
o centro do círculo que consistia num bambolear sereno do
corpo, acompanhado de um pequeno movimento dos pés, da
cabeça e dos braços, e os seus movimentos se aceleravam à
medida que a música se tornava mais viva e mais
arrebatada, fazendo com que houvesse um prodigiosos
saracotear de quadris, chegando a parecer impossível poder-
8
se executar sem que fiquem deslocados os que a ele se
entregam. (SANTOS, 1997, p.17-18).
Segundo Freire (2004, p.515), em Salvador, no ano de 1844, a
Câmara Municipal define posturas as quais proibiam ”batuques,
danças e ajuntamentos de escravos em qualquer lugar e qualquer
hora”.
A realidade paranaense frente aos batuques ou danças de
negros não foi diferente do resto do país, no século XIX foram criados
em vários municípios do estado maneiras legais de proibir tais
manifestações. Em Curitiba no ano de 1829, os vereadores se
mostraram indignados e determinaram em Código de Postura do
Município a proibição e perseguição acirrada aos batuques.
Tendo sido sem proveito todas as providências policiais até
agora dadas, para se extirparem os batuques, que sem
mais razão que a corrupção dos costumes, se têm
arraigado neste Povo, e que dão azo à perpetração de
muitos delitos que resultam da promiscuidade ambos
os sexos da classe imoral de escravos, e libertos, que
não fazem tais ajuntamentos senão para dar pasto à
devassidão e à desordem da crápula, com ofensa
manifesta da moral pública, e tranqüilidade dos Povos
por isso provém=artigo primeiro=Que nenhum indivíduo
deste Município faça nem consinta fazer-se em sua
Casa dentro desta Vila, suas Freguesias, Capelas e
seus subúrbios, ajuntamento para batuques sem
prévia licença por escrito do respectivo Juiz de Paz (...).
(PEREIRA, 1996, p.162 grifo nosso)).
Geralmente os batuques eram encarados como divertimentos
estrondosos, arruaças e uma oportunidade de organização de
revoltas dos negros, além de serem considerados imorais e obscenos,
comprometendo a boa convivência e o sossego das ’pessoas de bem’.
Os batuques incomodaram a elite e os grupos dirigentes durante todo
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o século XIX havendo constantes proibições legais atualizadas a fim
de combatê-los.
Assim como os batuques, os sambas eram qualificados como
“refúgio da peior gente” (Silva, apud Santos 1997, p.22), sendo
relacionados a quem aderia à malandragem, pessoas indecentes e
imorais, fanfarrões e trapaceiros, que deveriam ser afastadas das
pessoas de bem.
Inicialmente os sambistas se reuniam na região portuária do
Rio de Janeiro, conhecido como a ‘Pequena África’, nesta região
viviam migrantes vindos da Bahia, na maioria negros, que
trabalhavam no porto. Este espaço era reduto das tias baianas, entre
elas Tia Ciata. Em sua casa se reunia três universos musicais
diferentes: música sagrada, tocada e cantada nos rituais de
candomblé; encontro instrumental com flauta, violões e cavaquinho,
o chorinho e ainda a roda de samba. Neste contexto viveram músicos
como Donga, Pixinguinha, João da Baiana, entre outros.
A ‘Pequena África’ foi destruída no início do século passado
dando espaço à urbanização. As pessoas que ali viviam ficaram
desalojadas, indo então para o subúrbio e para os morros, onde o
samba continuou acontecendo. O que ainda dificultava o acesso e
principalmente a perseguição da polícia, pois os freqüentadores das
rodas de samba eram tidos como marginais ou desocupados e
sofriam fortes represálias policiais.
O termo malandro ou malandragem foi uma característica que
bem diferenciou os sambistas dos dez primeiros anos do século
passado e a geração seguinte dos anos vinte. Os sambistas da
primeira geração tinham formação técnica e faziam composições
elaboradas sempre retratando em suas músicas motivos regionais em
letras ingênuas. Nesta fase o samba tinha um ritmo amaxixado, como
é o caso samba ‘Pelo Telefone’.
Já a geração de sambistas surgido nos anos vinte do
século passado os quais compunha músicas baseadas na
intuição, sem aprimoramento técnico e de forma mais
10
rudimentar. As composições musicais se referiam a suas vidas
de periferia, favelados e marginalizados. Eram envolvidos com a
boemia, com a orgia e com a ”malandragem”.
Foram os sambistas do Estácio, juntamente com os da
Cidade Nova, Saúde, Morro da Favela, Gamboa, Catumbi,
etc., espaços onde a aglomeração de ex-escravos e seus
descendentes era abundante, que passaram a ostentar a
designação de “malandros” e a usá-la como símbolo de um
novo jeito de compor e cantar o samba, com mais ginga e
flexibilidade, usando para isso a síncope (...) este samba
veiculando histórias sobre a malandragem e possuindo uma
cadência próxima da ginga do andar do “malandro”, transita
na fronteira entre dois mundos: a cidade e o morro. (CUNHA,
2004, p.3).
Foi a partir da década de vinte que o samba se tornou sinônimo
da malandragem. Uns dos grandes nomes desse período foram
Ismael Silva e Wilson Batista, que se dedicavam ao samba
desenvolvendo temáticas da malandragem e ao jogo de cartas. Era
característica dessa geração uma linguagem debochada e um figurino
bem próprio, o indispensável chapéu e o terno branco na verdade
uma chacota com a maneira burguesa de se vestir.
O malandro é, portanto, um personagem dissimulado que se
utiliza de ‘máscaras’ para viver numa sociedade adversa,
contra a qual não adianta medir forças em confronto direto. O
fato de o malandro andar sempre muito alinhado, de terno
branco impecável aparentemente poderia aproximá-lo dos
padrões burgueses, ou das camadas médias urbanas, no
entanto, isto se torna inviável ao exibir sua imagem pelas
principais avenidas da capital federal arrastando tamancos
com sua ginga malemolente e peculiar. (CUNHA, 2004, p.6).
As camadas populares, principalmente afro-descendentes que
encontravam dificuldades em relação ao trabalho, moradia, estudo e
em tantos outros aspectos necessários para a sobrevivência, viam na
figura do malandro cantada nos sambas um exemplo de esperteza,
11
coragem e audácia. Era aquele que conseguia o desafio de transitar
entre o morro e o asfalto. Portanto o sucesso das músicas com
temáticas da malandragem incomodava a elite.
DA REPRESSÃO À SÍMBOLO NACIONAL
Até os anos 30 do século passado, o samba era considerado
coisa de malandro e a polícia encarregava-se de baixar duras
represálias.
Como o samba conquistou o país? Para podermos responder a
essa questão é necessário termos como pano de fundo a situação
política de Getúlio Vargas. Em sua administração Vargas procurou
projetar-se como um grande líder nacional e ao mesmo tempo visava
enaltecer o trabalho e ainda, segundo Vianna (2002, p.73) visava
“integração étnica, nome oficial para a miscigenação”.
Essa transformação da cultura popular em símbolo nacional, ou
o ‘ nacionalismo’, foi bem presente no Governo de Vargas a partir de
1930, quando buscava unir a população em torno da idéia de uma
identidade única. Por essa razão foram trazidos da cultura popular
elementos que pudessem reforçar o sentimento de brasilidade e ao
mesmo tempo enfraquecer os regionalismos, o que culminou com a
Constituição de 1937.
A busca de valorização do trabalhador levou o governo ao uso
da área cultural para concretizar seus interesses, fazendo com que
elementos da cultura popular como o carnaval, o futebol e o samba
passassem a ganhar status de cultura nacional. Manipulando esses
elementos populares, o Estado os transformou em nacionais,
símbolos da brasilidade, mito que lhe permitia interferir em tudo,
inclusive na cultura, com promessas de um mundo grandioso e
melhor para todos.
No campo da música, o governo Vargas, com vistas a valorizar
o trabalho, fez dura censura à malandragem, pois necessitava de
uma nova visão do homem brasileiro. Era de interesse do Estado
romper com a imagem de um povo indolente e preguiçoso
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principalmente no caso do mestiço, pois este modelo não combinava
com as exigências do capitalismo. A música que cultuasse a
malandragem precisava ser banida. O dialeto da malandragem era
visto como um atentado a língua e as pressões. O Estado tinha total
controle da música popular e sobre toda manifestação a ela
relacionada. Segundo o jornalista Sérgio Cabral :
“(...) as brechas contra o DIP só iriam surgir com a entrada do
Brasil na guerra, quando, a pretexto de espinafrar os
nazistas, os compositores arranjavam um jeito de exaltar a
democracia. Mas outros compositores preferiram exaltar o
próprio Getúlio.” (CABRAL, apud PARANHOS, p.5).
As críticas a malandragem e a seus adeptos tinham como
objetivo enquadrar a música brasileira com o ideal do Estado Novo.
Um dos músicos de destaque na malandragem foi Wilson
Batista, que compunha músicas de duplo sentido, apelando para as
gírias. Isto gerava inconformismo para a elite e inclusive renderam-
lhe passagens pela polícia e muita rixas com Noel Rosa o bom moço
da música popular brasileira, que procurava falar do malandro de
forma mais amena e mesmo caracterizada.
Tudo que conspirasse contra o ideal patriótico ficava sob a
mira da polícia, os sambistas foram especialmente perseguidos. As
músicas passaram por adaptações impostas. Um dos exemplos foi a
música 'O Bonde de São Januário' de Wilson Batista e Ataulfo Alves
que tinha como letra original: ‘o bonde de São Januário leva mais um
otário’ e segundo Braick e Mota a 'pedido' do governo recebeu esta
modificação :
Quem trabalha é que tem razão/Eu digo e não tenho medo
de errar/O Bonde de São Januário/Leva mais um
operário/Antigamente eu não tinha juízo/Mas resolvi
garantir meu futuro/Vejam vocês/Sou feliz, vivo muito bem/A
boemia não dá camisa a ninguém/É, digo bem. ( BRAICK e
MOTA, 2006, p.138 grifo nosso).
13
A era Vargas foi marcada pela radicalização ideológica,
concentração no poder do executivo e exercício do poder através de
decretos e leis. Era um governo arbitrário e sua ação se fazia sentir
em todas as atividades. Criou vários mecanismos de controle entre
eles o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) que perseguia
a tudo o que não exaltasse o trabalho e o trabalhador. Na verdade,
reprimia a tudo que não se adaptasse ao novo regime, além de
supervisionar os meios de comunicação. Criou a Agência Nacional que
divulgava os feitos do presidente e seus discursos através dos jornais.
Ao mesmo tempo reprimia, censurava e apoiava a cultura, desde que
atendesse aos ideais getulistas. A movimentação política a partir de
1930 se mostrou unificadora e homogeneizadora.
O samba foi elevado a símbolo nacional expressando-se como
um dos elementos da cultura popular brasileira, tendo o rádio como
seu principal veículo de divulgação. Segundo Vianna (2002, p.11):
“Foi só nos anos 30 que o samba carioca começou a colonizar o
carnaval brasileiro transformando-se em símbolo de nacionalidade. E
outros ritmos no Brasil passaram a ser considerados regionais”. O
Governo apoiava e financiava as escolas de samba, mas os sambas
de enredo, por exemplo, passavam pelo crivo do Departamento de
Imprensa e Propaganda.
O controle das principais instituições carnavalescas fazia
parte de uma estratégia geral de ingerência sobre as
manifestações culturais do país: o rádio vai ser um desses
instrumentos de controle e censura, por um lado, e de
expressão do samba por outro. ( TRAMONTE apud GIOVANA
PAPINI, 2004, p.39).
Até esse período os sambas de enredo falavam da natureza e
da história do próprio samba, a partir daí passaram a tratar de
personagens, heróis e fatos históricos, visualizando a história a partir
de um ponto de vista da classe dominante. Neste contexto alguns
14
compositores para atender a proposta do governo maquiavam as
letras de suas músicas e as revestiam de duplo sentido. Foi também
quando surgiu o samba exaltação, com letra ufanista e com
orquestramento que mostrava as belezas do Brasil. Uma das músicas
ícones desse momento foi a “Aquarela do Brasil” de Ary Barroso.
Pode-se dizer que o samba passou por um “branqueamento”,
distanciando-se da cultura negra, vindo de encontro a outras etnias,
pois estava em voga a miscigenação ou o mito da três raças, muito
proclamada por Gilberto Freire, na obra “Casa Grande e Senzala”.
Segundo Ortiz (2003, p.43) esse movimento “não somente encobre os
conflitos raciais como possibilita a todos se reconhecerem como
nacionais”. Sendo o samba promovido a um dos símbolos nacionais
ele distanciou-se da sua especificidade de origem tornando-se
nacional. Esse mecanismo visava encobrir os conflitos raciais e
difundir o mito da democracia racial, mas na verdade mascarava a
realidade vigente.
O mito das três raças torna-se então plausível e pode se
atualizar como ritual. A ideologia da mestiçagem, que estava
aprisionada nas ambigüidades das teorias racistas, ao ser
reelaborada pode difundir-se socialmente e se tornar senso
comum, ritualmente celebrado nas relações do cotidiano, ou
nos grandes eventos como o carnaval e o futebol. O que era
mestiço torna-se nacional. (ORTIZ, 2003, p.41).
Essa ideologia associada ao uso de elementos populares como o
samba, por exemplo, tem amplo apelo no imaginário nacional. Assim
o Estado brasileiro tornou-se protetor da identidade nacional.
O Estado aparece, assim, como guardião da memória
nacional e da mesma forma que defende o território nacional
contra possíveis invasões estrangeiras preserva a memória
contra a descaracterização das importações ou das
distorções dos pensamentos autóctones desviantes. Cultura
brasileira significa neste sentido “segurança e defesa” dos
15
bens que integram o patrimônio histórico. (ORTIZ, 2003,
p.100)
Assim sendo a música negra antes reprimida e perseguida
enquanto manifestação das classes pobres, no Governo de Vargas, foi
apropriada pelo Estado e transformada em expressão da cultura
nacional.
CONCLUSÃO
A sociedade brasileira conhece a história do negro no Brasil de
maneira muito superficial e simplista e até mesmo os duros anos de
escravidão são vistos como uma coisa amena e naturalizada.
Buscando a europeização de nossa cultura demos as costas a outras
culturas que estiveram presente em toda a trajetória da formação do
Brasil como nação, como por exemplo, as culturas da matriz africana.
Quando se fala em cultura negra, muito se remete somente ao
samba, feijoada, desprestigiando ou desconhecendo um leque
cultural muito mais amplo. O mito da democracia racial, ou seja, a
presumida convivência harmoniosa entre as três raças, defendida por
muitos intelectuais, levou a sociedade brasileira a apagar de sua
memória a contribuição do africano para a construção de nossa
história e ainda procurou mascarar o racismo presente, aumentando
a eficiência dos mecanismos de dominação. Ao mesmo tempo o
sonho de uma nação branca, presente ainda hoje, revela a dificuldade
que tem o branco em aceitar o negro enquanto pessoa competente,
inteligente e confiável.
Negar a contribuição africana é negar nossa história. Neste
trabalho, devido a sua delimitação abordamos a música e dança, mas
outros aspectos poderiam amplamente ser trabalhados como: a
literatura, a filosofia, a tecnologia, as artes, as religiões entre tantos
outros temas.
16
A repressão ao negro esteve presente em todos os aspectos,
porém, no que se refere a música e a dança houve um extraordinário
movimento nacional de repúdio por parte da elite, tanto no período
colonial como pós-colonial, devido ao caráter de inferioridade que lhe
fôra atribuído. Essa repressão tinha vários caminhos, a polícia, a
igreja católica e a determinação de leis que justificavam represálias.
No entanto nos vemos frente a uma negação que posteriormente
passou a ser incorporada pela elite a fim de atender as suas
necessidades. Foi o que ocorreu no governo de Vargas, em relação ao
samba, que levou o Estado a apropriar-se dessa manifestação cultural
para usá-la como um elemento de uma identidade nacional.
Essa nacionalização do samba teve como principal cenário o Rio
de Janeiro, que no período de 1930 era a capital do Brasil e o centro
construtor e irradiador da cultura e da unidade nacional brasileira. Na
busca de símbolos nacionais a elite escolheu itens que pertenciam
aos dominados. A escolha de elementos da cultura popular ocultou a
situação de dominação racial e também tornou muito mais difícil
denunciá-la e combatê-la. Segundo Da Matta (1983, p.32) “criar
símbolos a partir da classe dominada impede a luta aberta ou o
conflito pela percepção nua e crua de mecanismos de exploração
social e política”. A transformação do samba em símbolo nacional não
aconteceu aleatoriamente, mas atendendo aos interesses
governamentais, na verdade uma arbitrariedade com vistas a
mascarar o autoritarismo presente.
Este estudo não possui caráter definitivo, mas buscou trazer à
tona uma a reflexão quanto a contribuição negra para com a cultura
brasileira e talvez proporcionar uma sensibilização quanto a aceitação
do outro tal como ele é e não como gostaríamos que fosse. A vasta
diversidade cultural brasileira deve permear as discussões e estudos
trazendo ao debate a pretensa europeização e a representação do
diferente como exótico, que manipulam e silenciam outras
manifestações culturais, especialmente a negra.
17
É bem pertinente neste contexto a afirmação de Petronilha B.
Gonçalves Silva:
“deve haver o resgate das africanidades brasileiras. Ao dizer
africanidades brasileiras estamos nos referindo às raízes da
cultura brasileira que têm origem africana. Dizendo de outra
forma estamos nos referindo ao modo de ser, de viver, de
organizar suas lutas, próprio dos negros brasileiros, e de outro
lado, às marcas da cultura africana que independentemente
da origem étnica de cada brasileiro fazem parte do seu dia-a-
dia(...)estudar africanidades brasileiras significa estudar o jeito
de ver a vida, o mundo, o trabalho, de conviver, de lutar por
sua dignidade, própria dos descendentes africanos(...)significa
conhecer e compreender os produtos dos trabalhos e da
criatividade dos africanos e de seus descendentes no Brasil e
de situar tais produções na construção da sociedade
brasileira.”( SILVA, 1999 p.386).
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NOTAS EXPLICATIVAS:
1-forma responsorial – é uma característica bem comum da cultura africana, ou
seja, a frase do solista é respondida pelo coro. Por exemplo, no Jongo de Cunha, o
solo diz: “o tatu tá velho” e o coro responde, mas sabe negar carreiro. Existe poesia
e melodia entre as partes do solo e do coro. O solista tem liberdade em sua
evolução, já o coro tem a mesma constância do ponto de vista musical e poético.
2-Samba – é originário da forma angolana semba do grupo etnolingüístico banto
que apresenta como elemento coreográfico a umbigada. Entre os quiocos de Angola
vem do verbo cabriolar e segundo Guimarães (1978, p.7), para os bacongos e
congueses o vocábulo designa uma espécie de dança em que um bate contra o
peito do outro.
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