CYAN MAGENTA AMARELO PRETO TABIDÉIAS 1 Idéias · deixou de ser um esnobe para vi-rar um durão....

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CYAN MAGENTA AMARELO PRETO TAB IDÉIAS 1

Idéias1

JORNAL DO BRASIL

SÁBADO23 DE JUNHO DE 2007ideias@jb.com.br

&Livros

Siga as pistas do

romance policial

Alvaro Costa e Silva

Até os inocentes sabem que oromance policial – gênero li-terário mais consumido no

mundo – sofreu uma revolução naprimeira metade do século 20:saiu dos gabinetes e passou a sujara mão nas ruas. Mudaram a lingua-gem e, sobretudo, o detetive, quedeixou de ser um esnobe para vi-rar um durão. Hoje parece não ha-ver lugar nem para um tipo nempara o outro. Na produção atual,cabem todos os comportamentosimagináveis, até os mais comezi-nhos. Se você tem algo a escon-der, cuidado: um detetive, ou umcara que tem outra profissão masfaz uns bicos como detetive, podeestar a seu lado no metrô, sem dara menor pinta de cultivar orquí-deas ou usar gabardine.

Entre 1880 e 1930, impe-rou o romance policialclássico, produzido pe-

los ingleses. Veneno era a manei-ra predileta de matar. Foi o tempodos detetives figuraças, os quais,com raras exceções, não levanta-vam da poltrona para resolver oscrimes. Estes ocorriam numa be-la casa de campo, de preferênciana biblioteca, e o culpado era ocara que tinha cara de mordomo.Ou era alguém que, ao pular equebrar a janela, deixara na gra-ma pegadas do tamanho das deum mamute.

Dessa época, os melhores de-tetives são Sherlock Holmes(criação imortal de Conan Doyleque venceu a enquete de melhordetetive de todos os tempos pro-movida pelo Idéias), Ellery Queen(Frederic Dannay e Manfred B.Lee), Nero Wolfe (Rex Stout), dr.Gideon Fell (John Dickson Carr),Hercule Poirot e miss Jane Marple(ambos de Agatha Christie), PhiloVance (S. S. Van Dine), lord PeterWinsey (Dorothy Sayers), padreBrow (G. K. Chesterton), cujashistórias ainda podem ser lidascom prazer – mais pela atmos-fera que pela trama. Em tem-po: Maigret, do genial Sime-non, é um caso à parte.

Quando apareceu, em 1930, noromance O falcão maltês, Sam Spa-de marcou a diferença. Não que oescritor Dashiell Hammett, seuinventor, tenha revolucionado ogênero com ele. Antes, em finsdos anos 20, Hammett já haviacriado um outro detetive durãoque leva o nome da agência ondetrabalha, Continental Op (ou Op,para os íntimos) – este, sim, o pri-meiro detetive hard-boiled. MasSam Spade, com seu jeito cínico eamoral, tornou-se inesquecível,principalmente depois de encar-nado nas telas por Humphrey Bo-gart. Com a entrada em cena dePhilip Marlowe, que protagonizouO sono eterno, de 1939, e outrosseis romances escritos por Ray-mond Chandler (um discípulo quesuperou o mestre Dashiell Ham-mett), a literatura policial mudoude vez. Para melhor.

Não se está falando, claro, dascentenas de imitadores (o melhorfoi Lew Archer, de Ross Macdo-nald; o pior, Mike Hammer, de Mi-ckey Spillane) que surgiram norastro. Geograficamente, tro-cou-se Londres e as pradarias in-glesas pela costa oeste norte-ame-ricana. Sam Spade trabalha em SãoFrancisco; Philip Marlowe, emLos Angeles. As duas cidades, tãoindispensáveis aos romances co-mo ruivas, só foram desbancadasanos mais tarde, quando ElmoreLeonard pôs Detroit no mapa.Atualmente, a cidade do crime éBoston, onde mora a dupla de de-tetives Patrick Kenzie e AngelaGennaro, com que Dennis Lehane– um dos escritores convidados àFlip de julho – faz uma homena-gem a Nick e Nora Charles, um so-fisticado casal criado por – adivi-nha quem? – Dashiell Hammettem seu último livro.

Na primeira cena de O homemmagro, de 1934, Nick está encos-tado ao balcão de um speakeasy, co-mo eram chamadas as espeluncasclandestinas que vendiam bebidadurante a Lei Seca. MatthewScudder, o melhor detetive ematividade hoje, até entraria numlugar desses, se estivesseatrás de uma pista, mas jamaisprovaria o uísque falsificado.Scudder é alcoólatra.

Eis aí uma mudança e tanto.Como seus criadores, Spade eMarlowe bebiam à vera e, se con-tinuassem na mesma batida, cer-tamente teriam problemas de al-coolismo fora dos livros, como ti-veram Hammett e Chandler. Oescritor Lawrence Block, que jápublicou 16 romances com Mat-thew Scudder, alguns deles já tra-duzidos no Brasil, evita tocar noassunto, mas o fato é que o perso-nagem parou de beber quando oautor parou. Entraram ambos nosAlcoólicos Anônimos.

Scudder largou o Departamen-to de Polícia de Nova York devidoao alcoolismo. Trabalha como frilae namora uma garota de progra-ma. Vai levando com as sessões doAA, das quais não se afasta nem seestiver enredado no caso maisbrutal: “Os que assistiam à reu-nião estavam limpos e sóbrios, outentando. Os do lado de fora, narua, estavam com o pé na beira domundo e escorregando”.

Gênero literário mais

consumido no mundo

sofre revoluções e

pequenas mudanças de

comportamento – mas

segue matando

Conheça a nova safra do romance noir, com heróis de carne e osso PÁGS. 4 E 5

Melhores detetives de todos os tempos na opinião de 20 experts PÁG. 8

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LITERATURA NOIR � Para escapar ao esgotamento e continuar entretendo os le

Novos detetivesse comportamcomo mortaisAlvaro Costa e Silva

Nick Charles é um ex-detetiveque abandonou a profissão para ca-sar-se com Nora. A tranqüilidade docasal, que vive num luxuoso hotelde Nova York, tendo como compa-nhia a cachorrinha Asta, uma sch -nauzer legítima, é abalada com umamorte misteriosa, a qual repõe Nickem contato com malandros, donosde boate, gigolôs, advogados deso-nestos e outros elementos do sub-mundo do crime. O plot deixa claroque O homem magro, o último ro-mance escrito por Dashiell Ham-mett, só existe porque o equilíbriofoi quebrado. Nick, Nora e Asta que-riam mais é ficar na deles, tomandochampanhe.

Quem também aparece casadoem Poodle Springs – obra que Ray-mond Chandler, ao morrer em1959, deixou inacabada, com apenasquatro capítulos; em 1989, a históriafoi completada pelo escritor RobertB. Parker – é Philip Marlowe. A pre-miada é uma grã-fina, Linda Loring,que o detetive levara para a cama noseu penúltimo livro, O longo adeus –a primeira vez que ele fazia isso numromance! Enfim amarrado, Mar-lowe não precisa mais dos famosos25 dólares, mais despesas, que co-brava por dia, e resolve abandonar aprofissão. Até que... Em PoodleSprings foi o inesperado, de novo,que denota a ação.

Donde os mais apressados pode-riam concluir que o romance poli-cial, ao entrar na década de 60 do sé-culo passado, estava prestes a virarpresunto. Neca. Estava, mais umavez, mudando de rumos. Antes, anão ser pelas excentricidades dosdetetives ingleses e pelas pequenaspistas que Spade e Marlowe deixa-vam nos becos – o primeiro não an-dava armado, o segundo usava umSmith & Wesson – pouco ou nada sesabia da vida particular dos investi-gadores. É por aí – como já vimos nocaso do alcoólatra Mattew Scudder– que os novos autores vão seguir.Daqui para frente, a trama de misté-rio valerá tanto quanto a dor-de-co-tovelo que porventura o herói esti-ver curtindo.

Um dos primeiros a adotar o ex-pediente bisbilhoteiro foi Ed Mc-Bain, o pseudônimo mais conhecidodo escritor Salvatore Lombino ouEvan Hunter, morto em 2005, e quetambém atendia por Ezra Hannon,Curt Cannon e Richard Marster –bastava chamar. Só a série que sepassa no 87º distrito policial de umacidade imaginária (misto de NovaYork, Los Angeles, Chicago e Mia-mi), assinada por McBain a partir de1956, rendeu mais de 50 romances –no Brasil, saíram Viúvas, Beijo, Me -trópole do medo, Grana, grana, gra-na, A última dança, entre outros.Neles, os policiais não se fiam emsuperpoderes, são homens simplesque combatem o crime, e têm de en-

frentar os dramas familiares de todaa gente. Os tiras que mais vezesaparecem nas histórias são o íta-lo-americano Steve Carella, o negroArtie Brown, o judeuMeyer-Meyer, o inglês Bert Kling.Recentemente publicado na Cole-ção Negra, da Record, a coletâneaMulheres perigosas abre com umconto de Ed McBain, “Improvisa-ção”, que é uma obra-prima.

Clássico modernoComo Evan Hunter, Elmore Leo-nard, nascido em Nova Orleans em1925, é um novo clássico do roman-ce policial. Queridinho do cineastaQuentin Tarantino, que fez o filmeJackie Brown a partir do romancePonche de rum, escreveu tambémcentenas de roteiros para o cinema.Seus personagens são anti-heróis ecriminosos que esbanjam simpatia.Sua linguagem é o fino, rápida e ras-teira. De Leonard, a Rocco publicoualguns excelentes títulos, como Ma -ximum Bob, Pronto, Cárcere priva-do, Nada a perder, e alguns de seusfaroestes escritos no início da car-reira, Valdez vem aí, Hombre, Qua -renta chibatas menos uma.

Safra atualO policial vai muito bem, obrigado.Além de Lawrence Block, autor dasérie com Mattew Scudder, e Den-nis Lehane, de quem Clint Eastwo-od adaptou para as telas o romanceSobre meninos e lobos, uma nova tur-ma mantém sempre a bala na agu-lha. O principal é James Ellroy, queescreveu, a partir da década de 80,os mais estranhos livros do gênero:Los Angeles: cidade proibida, Dálianegra, Jazz branco, O grande deserto,Tablóide americano, Seis mil em es-pécie, todos publicados pela Record.Seu estilo lembra o corte de uma na-valha Solinger: verbos são comidos,frases somam quatro palavras.

Outra fera é Michael Connely,que abandonou a carreira de repór-ter para dedicar-se à literatura, co-mo muita gente. Mas, como poucos,obteve sucesso com os livros estre-lados pelo detetive HieronymousBosch. Não menos fascinante é o vi-lão que se auto-intitula o Poeta, e vaideixando versos a cada cena de cri-me. No Brasil, Connely é editadopela Record: Cidade dos ossos, Maisescuro que a noite, O vôo dos anjos,Luz perdida.

O escocês Ian Rankin é umabela surpresa que só recente-mente chegou ao país, com a tra-dução pela Companhia das Letrasde Questão de sangue, que partede um problema dos mais atuais:tiroteio dentro de uma escola. É adeixa para que políticos inescru-pulosos e jornalistas em busca defama a qualquer preço roubem omacabro espetáculo. O fio condu-tor é o detetive John Rebus, quevirou série na BBC. O cara, imagi-ne só, é fã do Sepultura.

Os gaysNos policiais de Lev Raphael,quem investiga é um professorunivesitário, especialista em Edi-th Wharton. Até aí nada demais,pois são muitos os detetives ama-dores ou por acaso. Psicanalistas,livreiros e jornalistas há aos mon-tes. O mais desconcertante é queNick Hoffman é assumidamentegay. De outros a gente pode atédesconfiar, mas deste temos cer-teza. Em meio à investigação, Ni-ck troca figurinhas à mesa com seucompanheiro, outro professor deletras, entre uma pasta puttanescae um penne com majerona e toma-te. O bofe cozinha divinamente.

Gay também, só que do sexo fe-minino, é Lucy, a sobrinha-ajudanteda patologista forense e legista KayScarpetta, criada pela escritora Pa-trícia D. Cornwell, cujos livros sãopublicados pela Companhia das Le-tras. Há quem goste.

Depois de EcoÀ publicação de O nome da rosa,em 1980, seguiu-se a praga do sus-pense erudito e histórico. Que, noauge da devastação, gerou os códi-gos que estão por aí. Umberto Ecodevolveu-nos o prazer de ler histó-rias, não é o culpado. Pena queseus muitos imitadores não lhe te-nham a metade do talento. C. J.Sanson escapa à pecha, com o ro-mance Dissolução, no qual apre-senta o advogado Mattew Shardla-

ke, conhecido como “o corcundamais esperto da Inglaterra”. Aação se passa quase toda num co-vento – onde mais? – durante o in-verno de 1537, quando os inglesesse dividiam entre os fiéis à IgrejaCatólica e os leais ao rei HenriqueVIII e à recém-instituída IgrejaAnglicana. Do autor, com o mes-mo personagem, acaba de sair Fo -go negro, que fica alguns furos abai-xo do primeiro.

Essa moda pós-Eco deu tam-bém numa enxurrada de romancesem que personagens célebres sãoos detetives. Guilio Leoni esco-lheu Dante Alighieri e seus livros,publicados pela Planeta, são inte-ressantes. Mas fuja dos que esca-lam Edgar Allan Poe, numa home-nagem de trampolim àquele quemuitos têm como inventor do gê-nero policial. Por fim, um livro detítulo horrível editado pela Sumade Letras, A árvore dos janízaros,de Jason Goodwin, traz como ce-nário o Império Otomano em 1836e, por incrível que pareça, um de-tetive eunuco. Contra todas as ex-pectativas, é bom.

Os esquerdasNum pequeno ensaio sobre o ro-mance policial, o escritor argentinoRicardo Piglia afirma que “o únicoenigma que os romances da sérienoire propõem – e nunca resolvem –é o das relações capitalistas: o dinhei-ro que legisla a moral e apóia a lei é a

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eitores com crimes, gênero se humaniza e cria subdivisões � Maigret,romancepolicial epsicológico

única “razão” destes relatos onde tu-do se paga”. Muito cabeça? Que tal afrase – “O que é roubar um bancocomparado com fundá-lo?” – de Bre-cht? É com tal abordagem que o ca-talão Manuel Vázquez Montalbánconstruiu a série de livros com PepeCarvalho, de muito sucesso na Euro-pa e na América Latina. A Compa-nhia das Letras já publicou cinco ro-mances com Carvalho. O mais re-cente deles é Milênio, catatau demais de 600 páginas, em que o dete-tive, na companhia de seu fiel cozi-nheiro Biscuter, dá a volta ao mundo,metendo o malho, sempre que podeou não pode, na globalização.

Morto em 2003, Montalbán fezescola. Seu melhor seguidor é o ita-liano Andrea Camilleri, um artesãode mão cheia cujo personagem prin-cipal chama-se Montalbano (maisexplícito, impossível). O cubanoLeonardo Padura Fuentes é damesma turma. Na contramão deles,outro cubano, o dissidente José La-tour, que estragou a trama de Ca -maradas em Miami com os cansati-vos ataques anticastristas.

Prata da casaQuando nossos detetives se chama-vam Pereira ou Barbosa, os leitorestorciam o nariz, achando-os poucoconfiáveis. A exceção era o velhoLeite, o delegado que Luiz LopesCoelho criou para três livros de con-tos: A morte no envelope, O homemque matava quadros e A idéia de ma-

tar Belina. Com o delegado Espino-sa, dá-se o inverso: cremos tanto napersonagem de Luiz Alfredo Gar-cía-Roza que juramos, de pés juntos,que o vimos, na quarta passada, mas-tigando um quibe no árabe da GaleriaMenescal. Tony Belloto, ReginaldoPrandi, Joaquim Nogueira, FlávioMoreira da Costa, Aldir Blanc e Fer-nando Pessoa Ferreira (um nome ase prestar atenção com urgência)também não nos envergonham. Ah,claro: Mandrake é o máximo.

Black is beautifulAlguém já disse que ele fez peloHarlem o que Raymond Chandlerfez por Los Angeles. Chester Hi-mes, que, antes de em sua terranatal, despertou interesse nos ca-fés da margem esquerda do Sena,em Paris, nos anos 50, onde por ládavam as caras Sartre e BorisVian, é o criador de Jones Coveiroe Ed Caixão. São dois tiras escola-dos, que se viram entre assassi-nos, pregadores religiosos, belasprostitutas negras, falsificadoresde dinheiro, jogadores e trapacei-ros, fauna invisível que circunda agrande nação americana branca epoderosa que termina na 96thStreet, exatamente onde começa oHarlem. Himes tornou-se escritorenquanto cumpria pena por rouboà mão armada. A L&PM tem repu-blicado seus livros em novas tra-duções: O Harlem é escuro e A mal-dição do dinheiro.

O principal seguidor de Ches-ter Himes, no que se pode chamarde literatura policial negra, é Wal-ter Mosley. Só que, ao contrário deseu antecessor, Mosley bota seupersonagem para agir em Los An-geles. Easy Rawlins, um operárionegro nascido no Texas, volta daSegunda Guerra e vai para a cidadese virar fazendo favores à margemda lei. Acaba tornando-se detetiveparticular. Easy é violento, melan-cólico e sensual (no cinema, foi in-terpretado por Denzel Washing-ton). Há três livros com ele na Co-leção Negra: Uma morte em verme-lho, Uma volta com o cachorro eSempre em desvantagem. Em2005, a Landscape lançou Quemmatou Nola Payne, que o escri-tor George Pelecanos conside-rou a obra-prima de Mosley.

Repórter, produtor de cinema etelevisão, Pelecanos dedica-se, des-de 1992, a escrever livros policiaisque se passam em Washington, on-de é grande o número de negros po-bres. Dois de seus romances foramtraduzidos pela Companhia das Le-tras: Preto no branco e Revolução di-fícil. No primeiro, um negro é balea-do e morto pela polícia no momentoem que está de arma apontada paraum branco. Em meio à confusão, oautor dos disparos não ouviu o outrose identificar como policial. Teriahavido preconceito? Para o detetiveparticular Derek Strange, contrata-do para investigar o caso, não restadúvida de que alguém morreu sim-plesmente pelo fato de ser negro.Em Revolução difícil, publicado nosEUA em 2004, vamos encontrar omesmo Derek Strange com 21 anose trabalhando como policial emWashington, às vésperas do assassi-nato de Martin Luther King, em1968, que desencadeou uma revoltaentre a população negra da cidade.Bom paca.

As damasMulher sempre foi chegada numcrime. Há dois tipos: as que prefe-rem veneno e as que vão de tesou-ra. Se a distinta for britânica en-tão... A tradição nas ilhas, que jáderam Agatha Christie e a dameNgaio Marsh, mantém-se em altacom P. D. James e Ruth Rendell,criadoras, respectivamente, deAdan Dalgliesh e Reginald Wex-ford. São romances caudalosos,para ler num sábado chuvoso,trancado em casa, esquecendo-seda vida lá fora. Réquiem para a te-xana Patricia Highsmith, mortaem 1995, a rainha do policial psi-cológico. Fala quem entende doriscado, Graham Greene, para umfinal tipo quarta-capa: “Uma es-critora que criou um mundo – ummundo claustrofóbico e irracionalno qual sempre adentramos comuma sensação de perigo”.

Rodrigo Camarão

Jules Maigret bem que podia seraquele tio corpulento e carrancudo,aposentado, torcedor do América,que leva a mulher para o almoço dedomingo com a família. Mas a cria-ção mundialmente famosa de Sime-non preferiria enfileirar seus ca-chimbos, pedir dois sanduíches euma garrafa de cerveja na BresserieDalphine, ao lado da sede da PolíciaJudiciária parisiense. Antes de co-meçar mais um daqueles longos in-terrogatórios, nos quais invariavel-mente o criminoso capitula, Maigretlembra-se de telefonar para a mu-lher e avisar que não vai jantar emcasa. Quando, finalmente retorna,madrugada alta, desabotoa o sobre-tudo entre o segundo e o terceiroandares, pega as chaves do aparta-mento da Boulevard Richard-Le-noir e dá boa-noite a Louise.

Os detetives que descendemdos pais do romance policial moder-no – Auguste Dupin, Sherlock Hol-mes, Hercule Poirot – são mais ve-rossímeis, mais humanos. Vivem.Há momentos, durante uma inves-tigação, que Maigret não sabe o quefazer. Perdido, torna-se trombudo,emburrado e calado. O estado de es-pírito já é conhecido dos colegas detrabalho do Quai des Orfèvres. Sa-bem que é melhor não mexer comMaigret quando o chefe está assim.

No final tudo se acerta, mas não éexatamente essa a importância deSimenon no romance policial mo-derno. Quem matou fulano-de-talnão é o primordial, embora semprehaja crimes a desvendar – e Maigreto faz muito bem, antes com persis-tência que com raciocínio lógico ededutivo. Maigret é um policial quegosta de apontar uma lupa para a vi-da das vítimas, imiscuir-se no seucotidiano, saber do que gostavam defazer, de comer, onde passeavam outrabalhavam. O leitor é envolvido,assim como Maigret, numa nova at-mosfera. O ambiente é personagemà parte. O nome do assassino surgedaí, quase naturalmente.

Os romances de Simenon sãotão psicológicos quanto policiais.Aliás, é raro encontrar nas 76 nove-las e contos em que Maigret aparececenas em que o comissário tenha sa-cado sua arma.

Por isso mesmo, os livros de Si-menon não respeitam as regras bá-sicas criadas por G. K. Chestertonem Como escrever uma história dedetetive. O assassino não costumaser um personagem central. Muitasvezes, aparece de forma discreta eganha importância gradualmente, éencontrado por Maigret e c’est finis.

O comissário não usava bigodespontudos ou costeletas. Maigret erauma figura gigantesca, de grande os-satura, impossível de passar desper-cebida. Barbeava-se todas as ma-nhãs e ia ao cinema semanalmente.Às vezes, encontrava uma foto suano jornal. Não passava muitas infor-mações aos jornalistas que o procu-ravam, mas já recorreu a anúnciosde jornal para atrair criminosos queprocurava – a estratégia foi inaugu-rada por Auguste Dupin, em 1841.Assim, o detetive de Edgar AllanPoe, que lia pensamentos do interlo-cutor, encontrou o assassino da RuaMorgue: um orangotango.

Simenon leu muito Conan Doylee criou o antípoda de Sherlock Hol-mes. Um homem como Maigret, ca-paz de mobilizar metade dos poli-ciais de Paris, montar grande cercopara prender um único homem,convenhamos, é elementar demaispara qualquer Sherlock.

RENATO DALCIN/ARTE JB

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ENQUETE � Para 20 apreciadores da literatura policial, Sherlock Holmes continua imbatível

Elementar, meucaro Watson!

Quem votou em quem

Vivian Rangel

Matthew Scudder é devassadopelo álcool, abandonado pelas mu-lheres e tem o charme de um perso-nagem autobiográfico. Espinosa écarioca e dotado de uma ética queconfirma seu nome de filósofo. MissMarple é uma velhinha tão docequanto inteligente, que dissolvemistérios sem perder a hora do chá.Nero Wolfe e Pepe Carvalho nãodispensam uma bela criação culiná-ria entre uma pista e outra. SamSpade faz sexo mas não gosta demulheres, e Maigret investe naabordagem psicológica. Modernosou peculiares, nenhum dos deteti-ves foi capaz de desbancar SherlockHolmes, o erudito inglês – rei dosdisfarces e especialista em violino eboxe. Criado no século 19 por Ar-thur Connan Doyle, é o maior dete-tive de todos os tempos segundoenquete realizada pelo Idéias.

A eleição foi decidida por 20 es-critores, cineastas e editores, al-guns acostumados a trabalhar comos mistérios literários, outros ape-nas fãs do gênero. O resultado –quase elementar, para lembrar a fra-se famosa que o personagem jamaisdisse – confirma a definição de G.K.Chersterton: Holmes é tão fami-liar quanto Shakespeare.

A cada um dos votantes foi pedi-da uma lista com cinco nomes. Paraa eleição, o primeiro da lista recebia5 pontos, o segundo 4 e assim su-cessivamente. Na soma, SherlockHolmes abocanhou 43 pontos. Re-sultado mais do que merecido para oescritor Flávio Moreira da Costa:

– Holmes é o pai de mais da me-tade dos autores do gênero (por suavez, filho de Inspetor Dupin, de Ed-gar Allan Poe) – define o escritor.–Ele encarna a fórmula do detetiveracional e intelectualizado que ageem dobradinha com um auxiliar,neste caso o Dr. Watson.

Sinônimo de detetive particularpara o editor Edmundo Barreiros, oinvestigador é o maior de todos,dentro de suas controvérsias.

– Ele é tão carismático e ino-vador, que mesmo misógino ecocainômano é sucesso até en-tre crianças.

Sherlock Holmes está presentenas listas de 12 dos entrevistados. Éuma “ícone da racionalidade”, para oescritor Luiz Garcia-Roza, ou o maisengraçado, de acordo com FlávioCarneiro. Houve até quem tentasseevitar o cânone sherlockiano, masnão resistiu.

– Cheguei a pensar em não men-cioná-lo para fugir do lugar-comum– confessa o escritor Eduardo Gol-denberg. – Mas como fazê-lo dianteda absurda forma que tomou o per-

sonagem, destinatário de milharesde cartas enviadas por aflitos embusca de soluções não encontradaspelas polícias de todo o mundo?

Maior detetive americano – naopinião do sociólogo Muniz Sodré –Philip Marlowe, personagem deRaymond Chandler, abocanhou umsegundo lugar mais que honroso.Segundo o escritor Rafael Cardoso,ele não é não apenas o primeiro dalista, mas o único.

– É um personagem e tanto,principalmente por ser um alter-egodo Chandler – opina. – Tem a falaafiada de um dos grandes escritoresdo século 20 e um espírito rebeldesem causa, à la Marlon Brando.

Sam Spade, de Dashiel Hammet,é o primeiro para Ivan Lessa, talvezpelo mérito de ter desafiado o perfilclássico de Holmes, racional e en-furnado em escritórios. Em terceirolugar na enquete, Spade ficou à fren-te de Jules Maigret, o preferido doescritor Reginaldo Prandi:

– Maigret é um autor econômi-co, centrado na ação e muito simpá-tico – define. – Gosto dele porqueele faz com que a descoberta do cri-me dependa mais da situação que oenvolve que da investigação em si.

Nero Wolfe, gorducho semeadorde orquídeas, levou o quinto lugarna lista, apenas dois pontos à frentede Mandrake, criação de RubemFonseca, que por pouco não empla-cou uma representação brasileira nalista dos cinco maiores investigado-

res. Se não ficou entre os universais,foi o brasileiro mais votado.

Para Flávio Carneiro, AugusteDupin seria o primeiro da lista se se-fosse levar em conta apenas a im-portância do seu papel na criação dogênero. Mas o favorito é mesmoMandrake:

– Gosto de detetives que consi-gam temperar cinco ingredientes:perspicácia, intuição, experiência ehumor. Mandrake é mais interes-sante porque imagina mais – opinaCarneiro.

O personagem de Fonseca ficaem terceiro nas escolhas ver-de-amarelas de Aldir Blanc, fã do pe-culiar doutor Leite, de Luiz LopesCoelho. A lista de Paulo Caruso écuriosa: inclui o inspetor Closeau dePeter Sellers e Tintin, o jornalistamagrinho de Hergé. Claudia Mattosaté tentou defender as mulheres –tão escassas ao protagonizar histó-rias de crimes – elegendo a legistaKay Scarpetta, de Patricia Cornwell.E entre padres (Brown, de Chester-ton), psicanalistas (Michel Durand,de Jean-Pierre Gattegno) e beber-rões (Matthew Scudder, deLawrence Block) não faltou nemmesmo um ladrão. Arsène Lupin foicitado por ser uma divertida inver-são da figura detetivesca. Feliz ogrande Holmes que em 1910 seaposentou para criar abelhas.

Kemelman)4- Matthew Scudder5- Inspetor Adamsberg (FredVar gas)Tony BellottoEscritor1- Philip Marlowe2- Continental Op3 - Sherlock Holmes4- Archie Goodwin5- Lew ArcherAldir BlancEscritor1- Doutor Leite (do Luiz LopesCoelho)2- Espinosa3- Mandrake4- O tira Venício (JoaquimNogueira)5- O delegado Epifânio (Nani)Paulo CarusoChar gista1- Ed Mort2 - Inspetor Clouseau3 - Corto Maltese4 - Sam Spade5 - TintinClaudia MattosEscritora1- Kay Scarpetta2- Hercule Poirot3- Jules Maigret4- Porto Brandão (José Prata)5- Duca Lamberti (GeorgioScerbanenco)Fausto WolffEscritor1 - Nero Wolfe2 - Jules Maigret3- Lew Archer4- Philo Vance5- Miss MarpleCesar LanducciEditor1- Salvo Montalbano2- Lincoln Rhyme ( JefferyDeaver)3- Hieronymous Bosch4- Sherlock Holmes5- Hercule PoirotRubem Mauro MachadoEscritor1- Jules Maigret2- Philip Marlowe3- Sam Spade4- Sherlock Holmes5- Hercule Poirot e Jane MarpleEduardo GoldenbergEscritor1- Nero Wolfe2- Espinosa3- Sherlock HolmesFlávio TambelliniCineasta1- Detetive Guedes (RubemFonseca)2- MandrakeRafael CardosoEscritor1- Philip Marlowe

Marcos Palmeira e Giane Albertoni em cena da minissérie ‘Mandrake’: o advogado-detetive de Rubem Fonseca é um conquistador

FOTOS DE ARQUIVO

SherlockHolmes pitao seuinseparávelcachimbo emdesenho deSidney Paget

Ivan LessaEscritor1- Sam Spade2- Philip Marlowe3 - Sherlock Holmes4 - Spenser (Robert B. Taylor)5- Matthew ScudderLuiz Alfredo Garcia-RozaEscritor1- Auguste Dupin2- Sherlock Holmes3- Sam Spade4- Philip Marlowe5- Jules MaigretMuniz SodréSociólogo1- Auguste Dupin2- Sherlock Holmes3- Arsène Lupin4- Philip Marlowe5- Padre BrownMario PrataEscritor1- Sherlock Holmes2- Miss Marple3- Hercule Poirot4- Jules Maigret5- Sam SpadeFlavio CarneiroEscritor1- Mandrake2 - Sam Spade3- Sherlock Holmes4- Dom Isidro Parodi (Borgese Bioy Casares)5- Auguste DupinFlávio Moreira da CostaEscritor1- Sherlock Holmes2- Sam Spade3- Philip Marlowe4- Jules Maigret5- Nero WolfePaulo Roberto PiresEditor1- Sam Spade2- Philip Marlowe3- Tom Ripley4- Michel Durand (Jean-PierreGattegno)5- EspinosaMarçal AquinoEscritor1- Philip Marlowe2- Sherlock Holmes3- Mandrake4- Sam Spade5- MaigretEdmundo BarreirosEditor1- Sherlock Holmes2- Philip Marlowe3- Ed Caixão e Jones Coveiro(Chester Himes)4- Nero Wolfe5- Pepe CarvalhoReginaldo PrandiEscritor1- Jules Maigret2- Nero Wolfe3- Rabbi David Small (Harry

COLABORARAM ALINE NASCIMENTO E MARIA-

NA FILGUEIRAS