Cultura indígena

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Alunos guaranis aprendem danças

indígenas na escola "Jajeroky jevy javya jova haguã." Em português, ''dancemos novamente

para sermos felizes''. Em guarani, foi o jeito que um professor de Educação

Física encontrou para mexer com a garotada de 1ª a 4ª série e recuperar

antigas tradições indígenas adormecidas

Ricardo Falzetta (novaescola@fvc.org.br), de Amambai (MS)

Ismael Morel é professor de Educação Física na Escola Mbo'eroy Guarani/Kaiowa, aldeia de

Amambai, sul de Mato Grosso do Sul. Em 2006, ele foi eleito Educador Nota 10 e recebeu o troféu

do Prêmio Victor Civita por ter ensinado danças guaranis aos seus alunos - todos dessa mesma

etnia. Sim, na aldeia de Ismael é preciso aprender na escola algo que, em tese, deveria fazer parte

da tradição cultural. Por que isso acontece?

A resposta está no processo histórico pelo qual passaram todas as nações indígenas que aqui

viviam antes da chegada dos europeus, há mais de 500 anos, e que tiveram contato com o

chamado mundo civilizado. Os guaranis, em particular, eram nômades. Ocupavam extensas áreas

de terra e estabeleciam suas aldeias ora num local, ora noutro, conforme as condições de

subsistência. Eram um povo alegre e amistoso. Dançavam para comemorar, para batizar seus filhos

suas sementes. Dançavam para reverenciar a natureza, dançavam nas cerimônias religiosas. Com

os processos de catequização e escravização disparados no período colonial, essa cultura milenar e

a sabedoria acumulada havia gerações foram sendo anuladas à força e à custa de milhares de

mortes.

A situação dos sobreviventes de Amambai neste começo de século 21 é o resultado de uma

degradação que parece não ter fim. O trabalho de Ismael merece destaque e reconhecimento

porque tenta interromper esse curso tortuoso da trajetória de seu povo. Confinados numa área

demarcada que garante pouco mais de 3,4 mil metros quadrados por indivíduo, os 7 mil indígenas

que vivem na aldeia praticamente esqueceram a ideia do deslocamento nômade. Não há mais

espaço para a caça e sobrou muito pouco da mata, o rio está poluído, alcoolismo e drogas penetram

facilmente na comunidade. Missões religiosas marcadas por doutrinas cheias de impedimentos

promovem uma neocatequese que solapa ainda mais a cultura guarani. Dançar, nem pensar. Para

os que já abandonaram a tradição - quase metade da aldeia -, é pecado.

O grande peso social e cultural do trabalho de Ismael equilibra-se com sua função pedagógica.

"A dança, na perspectiva curricular atual, é tema de Educação Física a ser explorado em toda a

Educação Básica", afirma o professor Marcelo Barros da Silva, selecionador do Prêmio Victor Civita

de 2006. Ismael, ao tratar desse conteúdo, teve a sacada de optar pela dança do próprio povo. O

movimento que resulta das coreografias desenvolve a força, a agilidade e a percepção rítmica (e faz

muito mais pela cultura guarani).

Alunos guaranis aprendem danças

indígenas na escola "Jajeroky jevy javya jova haguã." Em português, ''dancemos novamente

para sermos felizes''. Em guarani, foi o jeito que um professor de Educação

Física encontrou para mexer com a garotada de 1ª a 4ª série e recuperar

antigas tradições indígenas adormecidas

Ricardo Falzetta (novaescola@fvc.org.br), de Amambai (MS)

O combate ao preconceito em relação à cultura guarani

Foto: Marie Ange Bordas

"Tudo começou quando eu, ainda adolescente, dançava com minha mãe em frente à nossa casa

num dia de festa", conta o professor. Até então, ele seguia preceitos religiosos que nada tinham a

ver com a tradição guarani, pois havia sido educado numa escola mantida por religiosos nas

cercanias da aldeia. Surpreendido e reprimido por outras pessoas da igreja, que consideraram a

cena uma ofensa, o jovem sentiu que aquela postura feria demais a cultura de seus antepassados.

"Acho que superei um conflito interno e, naquele dia, resolvi abandonar tudo e decidi passar uma

temporada fora para estudar." Da vizinha Dourados, alguns anos depois, Ismael voltou formado

professor de Educação Física."Fui para a cidade com o objetivo de retornar e fazer algo por minha

aldeia", lembra.

Com a vaga garantida na escola indígena (ainda há poucos professores graduados na comunidade),

Ismael começou a pôr em prática seus planos. Numa viagem a São Paulo, a convite de uma colega

de faculdade, ele conheceu o trabalho de índios guaranis que ainda preservam as danças. Na volta

para casa, levava na mala um CD e um vídeo com as canções e as coreografias. Na primeira

oportunidade, mostrou o material aos alunos. Foi o começo de uma batalha quase solitária com sua

própria gente.

"Alguns pais, quando souberam que eu estava ensinando dança, proibiram os filhos de participar.

Me acusaram de ser macumbeiro e fazer magia negra", relembra. Ismael, em várias ocasiões,

esteve a ponto de desistir. Mas a alegria e o interesse do grupo que se formou deram impulso ao

trabalho.

Depois de assistir ao vídeo repetidas vezes, a turma debateu as diferenças entre a língua que falam

em Mato Grosso do Sul e em São Paulo. Obstinado, Ismael procurou as pessoas mais velhas da

comunidade, que ainda preservam costumes, mesmo que apenas no ambiente familiar, e promoveu

encontros entre os alunos e esses antigos líderes, bem menos influentes que outrora. "Minha

intenção foi colocar as crianças em contato com eles para que ouvissem as histórias, vissem como é

importante conhecer nossa cultura e não tivessem vergonha de ser índios", revela Ismael. A tática

deu certo. "Os estudantes ficavam perplexos com a sabedoria dos idosos", conta. Nesses

encontros, pessoas como dona Élida, 62 anos, e o pajé Ramon, 60, fizeram verdadeiras palestras

sobre rezas, danças e outros hábitos. A moçada anotava tudo no caderno. Ou quase tudo." Algumas

tradições não podem ser escritas, apenas transmitidas oralmente, como nos ensinou o pajé", explica

Ismael.

Ramon também esteve na escola. Em contato com o material de São Paulo, ele apontou pequenas

mudanças que deveriam ser feitas de acordo com a tradição caiová, um dos três subgrupos

guaranis (os outros são o ñandeva e o mbya). "Fiquei muito feliz em poder falar com as crianças",

diz Ramon. "A gente faz o que pode. Nossa casa de rezas foi queimada alguns anos atrás e já não

há mais madeira nem disposição para erguer outra. Para sobreviver, eu tenho de ir para a roça

todos os dias e já não sobra mais tempo para a pajelança."

> Ensino Fundamental 1

> Educação Física

> Atividades Ritmicas e Expressivas

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Os alunos aprenderam a dançar jerojy, gauchiré e guahú

O pajé ainda mostrou como produzir a taquara decorada que os meninos empunham na jerojy,

dança de defesa corporal que deveria ser ensinada na pré-adolescência. Instrumentos musicais,

como o chocalho, e a pintura da pele com tinta à base de sementes já haviam caído no

esquecimento. Mas Ismael, que também lecionava Arte em 2005, recuperou esse tipo de técnica,

essencial para o guachiré (dança da alegria) e o guahú (dança ao som de uma melodia mais triste,

que sustenta o lamento do pajé quando algo de ruim acontece).

Além de conversar com as pessoas mais velhas da comunidade, as crianças foram estimuladas a

entrevistar os pais e a procurar informações sobre a formação da aldeia, sua localização e os

problemas atuais. A poluição da água, por exemplo, é resultado do não-tratamento de efluentes

despejados rio acima por frigoríficos e matadouros de porcos. Na sala de aula, os alunos leram e

ouviram mais histórias sobre o tekoha (local onde vivem) e produziram textos.

Com as informações levantadas e as coreografias preparadas, a turma passou para os ensaios até

a primeira grande apresentação, no dia 19 de abril de 2005. "Foi um sucesso.Vieram muitas

pessoas da cidade e os pais dos alunos que dançaram ficaram muito contentes", comenta Ismael.

Depois disso, o grupo passou a se apresentar em todas as festas comemorativas da região,

inclusive no aniversário de Amambai.

A situação na aldeia, no entanto, não mudou muito. Ismael ainda enfrenta olhares atravessados de

alguns moradores, mas ele e as crianças se tornaram referência. Se não consegue provocar

mudanças imediatas no atual modelo social da comunidade, o Educador Nota 10 certamente está

garantindo um futuro melhor para os guaranis. Até hoje, quando se pintam e se preparam para as

apresentações, os jovens demonstram certa timidez no contato com os karai (brancos). Mal sabem

eles que estes é que ficam tímidos frente à beleza e sabedoria de sua história.

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Passo a passo do projeto de danças indígenas

1. A lição dos mais velhos

O sol quente não tirou o ânimo de dona Élida, que, em seguida, dançou e cantou sem parar o

guachiré, uma das danças que mais tarde seriam reproduzidas nas aulas de Ismael.

Assim que começou a ensinar dança nas aulas de Educação Física, Ismael promoveu o contato da

turma com antigos líderes da aldeia, como dona Élida. A sábia senhora falou durante horas com os

alunos...

...que, em guarani, anotavam suas impressões no caderno para depois produzir textos em sala de

aula.

2. As histórias do pajé

A pesquisa prosseguiu com o pajé Ramon, que, na escola, revelou lendas e mitos às crianças e

ensinou a produzir adereços, como a taquara adornada para o jerojy, dança de defesa corporal. O

primeiro passo é descascar o desenho que se quer.Em seguida, ensina o pajé, queima-se toda a

superfície numa fogueira para escurecê-la.

O resultado esperado surge ao retirar a parte que não havia sido descascada, criando um fundo

claro e deixando o desenho em destaque.

3. Os ensaios

Assim que começaram os ensaios na quadra da escola, a comunidade estranhou. A dança já não

era mais algo típico dos guaranis de Amambai. Mas Ismael encontrou força na empolgação das

crianças e seguiu adiante.

4. A pintura

Pintar a pele com tinta à base de sementes também havia caído no esquecimento da aldeia. O

professor fez reviver a tradição: traços paralelos para os meninos e circulares para as meninas.

5. As apresentações

Como um diretor teatral, Ismael se afasta na hora da apresentação e deixa as crianças à vontade

para mostrar a coreografia ensaiada. Mas não resiste e cai na dança também.

Quem é Ismael

Ismael Morel tem 26 anos, é filho de mãe indígena e pai paraguaio. Formado em Educação Física

pela Unigran, de Dourados (MS), tem pós-graduação em Psicomotricidade e agora batalha por uma

vaga de mestrado. Entre as diversas qualidades que apresenta, uma se destaca: jamais levanta a

voz. Reside na argumentação clara e objetiva seu poder de convencer as pessoas e, sobretudo,

seus alunos. Por mais que a turma esteja na maior algazarra, comandos rápidos e certeiros como

uma flecha, disparados em guarani pelo professor, recuperam a ordem e a disciplina. Neste ano,

Ismael foi convidado para uma conversa com o prefeito de Amambai, que pediu que ele se dedique

em tempo integral ao trabalho com dança. E as conquistas continuam. Recentemente, ele foi eleito

um dos vencedores do Prêmio Culturas Indígenas, promovido pelo Ministério da Cultura, e viaja em

breve a Brasília para receber o troféu.