Post on 20-Jul-2015
ISAURA DA CUNHA SEPPI
COREOGRAFIA/ESCRITA DE UMA INVESTIGAÇÃO INTERDISCIPLINAR
SOBRE A FORMAÇÃO DE UMA PROFESSORA DE ARTE
UNIVERSIDADE CIDADE DE SÃO PAULO
SÃO PAULO
2002
ISAURA DA CUNHA SEPPI
COREOGRAFIA/ESCRITA DE UMA INVESTIGAÇÃO INTERDISCIPLINAR SOBRE A FORMAÇÃO DE UMA PROFESSORA DE ARTE
UNIVERSIDADE CIDADE DE SÃO PAULO
SÃO PAULO
2002
Dissertação apresentada, como exigência
parcial para obtenção do título de Mestre em
Educação junto à Universidade Cidade de São
Paulo - UNICID sob orientação da Profa. Dra. Ana
Gracinda Queluz.
Profa. Dra. Vani Kenski - USP
Profa. Dra. Ivani Fazenda :PUC-SP - UNICID
Profa Dra. Ana Gracinda Queluz - UNICID
COMISSÃO JULGADORA
Seppi, Isaura da Cunha Coreografia/escrita de uma investigação interdisciplinar sobre a formação de uma professora de arte / Isaura da Cunha Seppi. – São Paulo, 2002. 127 f. Dissertação (Mestrado) – Universidade Cidade de São Paulo.
Orientação Professora Doutora Ana Gracinda Queluz.
1. Formação de professores. 2. Interdisciplinaridade. 3. Temporalidade. 4. Arte. 5. Dança. 6. Teatro. I. Título.
CDD 370.71 CDU 371.13
Ao meu filho, razão da minha vida Minha alegria, meu orgulho...
Aquele por quem eu faria tudo outra vez...
Agradecimentos
Durante todo o tempo em que estive envolvida nesse projeto de pesquisa, sei que me ausentei do convívio de pessoas a mim muito caras que, tenho certeza, ressentiram-se com a minha ausência.
Hoje, ao escrever esses agradecimentos percebo que, eles ressoam em mim como uma despedida desse processo, o final de uma jornada, quando posso retornar ao convívio das pessoas queridas, com as notícias dos mundos que visitei e revisitei. Por mais que o encontro com Mnemosine, possa ter me levado ao aparente esquecimento dos amigos e familiares, quero que saibam todos que, sempre em todos os momentos estiveram vivos e presentes nas lembranças e recordações que são a matéria prima desse trabalho. Devo dizer que trabalhar com a memória de tempos vividos significa também sentir muita saudade. A todos vocês que fazem parte da minha vida quero expressar a minha gratidão e também expressar minha saudade.
Meu consolo foi descobrir que este sentimento me liga a todos. Todas as pessoas queridas, do meu passado e do meu presente, entendo agora, fazem parte de mim e da pessoa que me tornei.
Obrigada minha mãe, pelo relato de seus sonhos coloridos que me ensinaram a escolher uma estética para minha vida.
Agradeço ao meu pai (in memorian), eterna saudade, sempre presente em todas as minhas emoções e ações, por ter me ensinado o que é compaixão.
Agradeço aos meus irmãos, cúmplices de toda vida. Agradeço aos mestres, sempre referência, Vicente Di Grado, Yolanda
Amadei, Pedro Lopes Soares e Mieka Fukuda. Agradeço a preciosa amizade de Cida Giannecchini (in memorian),
Suzana Buchmann, Myrna Nascimento, Nilton Flávio Knabenn, Marcos Moraes. Agradeço a Brenda Gottlieb, terapeuta com quem descobri, entre outras
coisas importantes, o desejo de escrever. Agradeço a Célia Rovai, pela leitura sensível e correção do texto. Agradeço ao Ricardo Pedro e Inara, bibliotecários que ofereceram o
inestimável suporte técnico para edição final da dissertação. Agradeço o apoio a essa pesquisa dos alunos, Cauê Chianca e Paulo
Pellim Jr. nas questões relativas a informática, Internet e vídeo e, a companhia de Rodrigo Girardi durante a minha preparação corporal e, nas pesquisas sobre a prática da dança.
Agradeço a parceria dos companheiros da Escola Nova Lourenço Castanho, nesses dezesseis anos de trabalho, em especial: Sylvinha Gouvea, Eda Canepa, Helo Porto Alegre, Alice Rezende Proença, Cecília Perez, Marília Azevedo Noronha, monitoras do ginásio e principalmente a equipe de professores de arte.
Agradeço com saudade aos alunos de todos os tempos, por tudo o que me ensinaram, por trazerem a dimensão do futuro ao meu trabalho.
Agradeço aos meus colegas do Curso de Mestrado. Agradeço a todos os que cuidaram de mim, principalmente Firdoos Jan
(John) meu guia, protetor, companheiro e cúmplice, na travessia pelas perigosas estradas que levam ao coração da Índia, onde encontrei a fonte de inspiração para esse trabalho.
Nessa experiência solitária foi minha partner na coreografia/escrita, Ana Gracinda Queluz a quem quero, aqui, registrar um agradecimento especial.
Minha orientadora que me presenteou com uma pedra para simbolizar o seu papel no meu trabalho, como a pedra no meu sapato. Pedra que sempre tive guardada dentro do sapatinho de cristal, posto que, Ana sempre será a fada madrinha, que me deu o traje para o grande baile, como no conto de fadas, mostrou-me como transformar uma abóbora numa carruagem, usando a magia do tempo criativo, aquela que sempre esteve lá, no lugar certo, ao piano, executando a música para o meu solo, com seus acordes fortes, impulsionado os saltos e giros, com variações suaves e lentas apoiando no momento da queda, com acordes fortes e vibrantes, me oferecendo o braço firme para a recuperação após os movimentos mais vertiginosos, cuidando para que a música da interdisciplinaridade fosse sempre audível ao coração. Aquela que sempre terei no coração com amor, admiração e gratidão.
Ana me faz lembrar de outras madrinhas que tive, aquelas que sempre estiveram presentes nas horas difíceis.
Tia Maria Ignez, minha Dinda, que me ensinou a conviver com a distância daqueles que amo, usando o recurso da correspondência e com a arte da escrita, encheu minha vida de cultura, sabedoria e boa companhia.
Ecleide Furlanetto, a madrinha que me incentivou a fazer o mestrado e me conduziu carinhosamente nos primeiros passos desse caminho.
Célia Hass, a madrinha que me recebeu no programa de mestrado, ajudou-me a encontrar o melhor de mim e a fazer as primeiras escolhas, pelas mãos de quem dei os primeiros passos na escrita desse trabalho.
Ivani Fazenda e Vani Kesnki que formaram a banca e que, me homenagearam com a leitura sensível do meu texto, ampliando meu olhar sobre interdisciplinaridade e memória.
A todos, meu amor e meu carinho.
“Se eu pudesse deixar algum presente a vocês, deixaria acesso ao
sentimento de amar a vida dos seres humanos.
A consciência de aprender tudo o que foi ensinado pelo tempo afora...
Lembraria os erros que foram cometidos para que não mais se repetissem.
A capacidade de escolher novos rumos.
Deixaria para vocês, se pudesse,
o respeito àquilo que é indispensável:
Além do pão, o trabalho.
Além do trabalho, a ação.
E, quando tudo mais faltasse, um segredo:
O de buscar no interior de si mesmo a resposta e a força para encontrar a saída."
Mahatma Gandhi
Sumário Resumo ................................................................................................... x
Abstract ................................................................................................. xi
1 Introdução ............................................................................................ 1 2 Criando um recurso imagético, o sári, como forma referencial ............. 6 3 Revelando o método da coreografia /escrita. ..................................... 22 4 Ato I: infância .................................................................................... 35 5 Ato II: adolescência ............................................................................ 44 6 Ato III: vida adulta .............................................................................. 69 6.1 Cena1: bacharelado ......................................................................... 73 6.2 Cena 2: as licenciaturas .................................................................... 82 7 Ato IV: a prática docente ................................................................... 87 8 Cena final: os grupos de pesquisa ..................................................... 115 9 Considerações finais: apresentação/estréia ...................................... 119 Referências ......................................................................................... 129 Anexos ................................................................................................ 135 ANEXO 1 .............................................................................................. 136
ANEXO 2 .............................................................................................. 138 ANEXO 3 .............................................................................................. 139
x
Resumo
Esse trabalho é uma investigação sobre meu processo de ensinar/aprender em uma perspectiva interdisciplinar de formação. Conectei-me com meu interior e sua complexidade e com a memória numa dimensão, até então, para mim desconhecida, em busca de uma nova ordem para meu universo simbólico e um novo sentido para minha atuação na Educação. Como professora/pesquisadora ocupei o lugar de sujeito da pesquisa e transformei minha trajetória de vida em objeto de estudo. Ao estabelecer um diálogo entre minha experiência de criação artística com os princípios da Interdisciplinaridade, criei uma metodologia para um projeto de investigação interdisciplinar que me permitiu criar uma região de interseção entre arte e educação. No desenvolvimento da pesquisa, as linguagens visual e escrita se entrelaçaram e se complementaram com o intuito de revelar os aspectos ocultos do ato de aprender. O diálogo entre imagem e texto, tornou-se o recurso que utilizei para representar a memória, como palco do diálogo entre o tempo cronológico e o tempo kairótico, que conecta os fatos vividos às teorias que participam de minha prática e dão forma ao meu fazer. A dança, como um fio, conduziu e permeou minha trajetória, costurando meus diferentes fazeres. Por essa razão, constituiu a linguagem escolhida para expressar minha maneira de capturar meu processo de formação como professora de arte. Utilizei-me de minha experiência em coreografia para a escrita da dissertação na forma de uma coreografia/escrita num exercício de coreografar as palavras ao som da musicalidade dos ecos da memória da minha própria experiência de formação. Desvelei minha trajetória, para revelar os saberes e valores que participam de minha formação, que constituem o alicerce sobre o qual minha prática docente se estrutura. Nessa coreografia/escrita identifiquei parceiros teóricos que apoiaram a teorização e interpretação da articulação entre teoria e prática e o rompimento das fronteiras entre educação, dança, teatro e artes plásticas, revelando de maneira mais clara e profunda o espaço interdisciplinar criado no exercício da minha experiência de investigação, ensino e aprendizagem da arte.
Palavras-chave: Formação de professores; Interdisciplinaridade; Arte; Dança; Teatro; Temporalidade.
xi
Abstract
This work is an investigation about my teaching/learning process in an interdisciplinary formation perspective. I connected myself with my interior and its complexity and, in a memory dimension - up to that time - unknown to me, in search of a new order for my symbolic universe and a new direction for my action in Education. As teacher/researcher I occupied the subject place in this research and transformed my life path in the study object. As establishing a dialogue between my artistic creation experiences with the Interdisciplinary principles, I created a methodology for a project of investigation that permitted me to create an intersection region between art and education. In the research development, the written and visual languages intertwined and complemented themselves with the intention of revealing the occult aspects of the learning act. The dialogue between image and text, became the resource that utilized to represent the memory, as dialogue stage between the Khronos and the Kairos time dimensions, that connect the lived facts to the theories that take part in my practice and form my doing. Dance, as a thread, led and permeated my trajectory, sewing my different doings. By that reason, it constituted the language that I chose to express my way of capturing my art teacher formation process. I utilized my choreography experience for writing the dissertation in a written choreography form, as a choreographic exercise with the words by memory echoes musicality of my own formation experience. I unveiled my trajectory, to reveal the knowledge and values that took part in my formation, that constitute the foundation upon which my educational practice is structured. In that written/choreography I identified theoretical partners that supported the theorization and interpretation of theory and practice articulation and the frontiers rupture between education, dance, theater and plastic arts, revealing clearly and deeply the interdisciplinary space created in my experience of investigation, teaching and learning arts.
Keywords: Teacher education; Interdisciplinarity; Art; Dance; Theatre; Temporality
1
1 Introdução
“É que a dança não é apenas uma arte, mas um modo de viver.” “A dança é um modo de existir.”
(GARAUDY, 1980, p.13)
Muito cedo me tornei artista e é do lugar da artista que atua em
educação que desejo escrever sobre a dança. Digo isso em primeiro lugar para
mim mesma para, então, poder expor minhas idéias àqueles que se dedicam à
educação e como eu, acreditam em seu poder transformador do ser humano e
da sociedade.
Transformação tratada aqui como o processo natural de crescimento do
ser humano e de sua trajetória de vida.
Transformação que, acrescida da idéia de evolução, se torna projeto de
superação de si mesmo.
Isso se apresenta como um desafio: mergulhar de corpo e alma no
processo de ensino/aprendizagem e decifrar nele os mecanismos que
participam e promovem as transformações no ser humano como recursos para
o aperfeiçoamento de minha prática docente.
Considero que esse movimento, provocado pelo desejo de aprender e
prazer em tornar-me melhor, naquilo que sei fazer, talvez seja a essência do
processo de encontrar, seguir e crescer numa vocação1 durante a vida .
Acredito que o desejo de superação seja fruto de um questionamento
que traz consigo a idéia de mudança que, por sua vez, geralmente implica uma
decisão, que gera um momento de tensão imediatamente anterior ao
movimento de transformação.
... e trata-se também, neste caso, de uma realidade permanente a tensão entre o espiritual e o material. Muitas vezes, sem sequer se aperceber disso ou sem ter a capacidade para o exprimir, o mundo tem sede de ideal ou de valores, a que chamaremos morais, para não ferir ninguém. Cabe à educação a nobre tarefa de despertar em todos, segundo as tradições e convicções de cada um, respeitando inteiramente o pluralismo, esta elevação do pensamento e do espírito para o universal e para uma espécie de superação de si mesmo. Está
1 “ vocação . [Do lat. vocatione.] S. f. 1. Ato de chamar. 2. Escolha, chamamento, predestinação. 3.
Tendência, disposição, pendor. 4. P. ext. Talento, aptidão.” (FERREIRA, 1999, p.2083)
2
em jogo – e aqui a Comissão2 teve o cuidado de ponderar bem os termos utilizados – a sobrevivência da humanidade”. (DELORS, 1999, p.15)
A dança tem sido a grande paixão... meu principal objeto de estudo,
constituindo-se na linguagem que escolhi para expressar minha maneira de
ver, estar e representar o mundo e conduzir a narrativa nesta dissertação.
A dança, como um fio, conduz e permeia minha trajetória de vida;
costura todos os meus diferentes fazeres, assim como a alma3 humana costura
as diferentes partes do ser...
“A dança é uma das raras atividades humanas em que o homem se encontra totalmente engajado: corpo, espírito e coração.” (BÉJART, 1980, p.9)
A dança é também um credo, meu “yoga”4, minha meditação, um meio
de conhecimento, a um só tempo prospectivo, do mundo interior e do exterior,
um elo comigo mesma, com os outros e com o ato de aprender.
Quero, neste trabalho, falar sobre o que aprendi com e sobre a dança -
dançar, aprender a dançar e ensinar a dançar. Como a partir dela, me inscrevi
no mundo.
Procurei desvelar para revelar os aspectos ocultos do ato de aprender,
não como um desnudamento mas como forma de compreender o meu
processo de aprendizagem, dos meus alunos e dos meus parceiros teóricos e
aqueles com quem pude compartilhar vivências e experiências.
Busquei traduzir para a escrita o indizível, num exercício de coreografar
as palavras ao som da musicalidade dos ecos da memória da minha própria
experiência de esforço constante de aprender a estar no mundo.
Sendo a dança a arte do movimento (LABAN,1978), foi preciso buscar
na origem dos movimentos os elementos constitutivos desta
coreografia/escrita, que tem sua raiz no significado pessoal/profissional deste
“estar no mundo”. Encontrei em CRITELLI (1996), expresso com clareza o que
intuitivamente percebi e que constitui um dos elementos propulsores deste meu
2 Relatório para a UNESCO da Comissão Internacional sobre a Educação para o século XXI. 3 Alma entendida aqui segundo a concepção de Jung como sinônimo de psique. Psique que por sua vez é
definida por Jung como a totalidade de todos os processos psíquicos conscientes e inconscientes.”
(JUNG, 1991) 4 “A palavra yoga significa união. Esta união você poderá encontrá-la na dança, pois a dança também é
união. Shiva , o Senhor do mundo, o grande yogui, tem igualmente o nome de Nataraja, o rei da
dança...Que sua dança seja o seu yoga, não procure outro.” (BÉJART, 1980, p.9)
3
fazer que apresento neste momento, para me auxiliar a explicitar a fonte de
onde brotam meus movimentos:
Céu e terra pertencem-se mutuamente, e todos os elementos da natureza, à medida que aparecem revelados e abrigados nessa pertença, também dela compartilham. No caso do homem, esse modo de pertença em que se cria uma inexorável integração é impossível; a vida humana está em perpétuo deslocamento. Viver como homens é jamais alcançar qualquer fixidez. (CRITELLI, 1996, p.16)
Completando esta reflexão a autora me leva a compreender o
sentimento que me acompanha em relação ao estar no mundo, ao
conhecimento e à identificação do que me move:
Esta experiência da inospitalidade do mundo, do nada em que se desfez ou ocultou o sentido que ser fazia para nós, e da mais plena liberdade em que somos lançados independentemente de nosso próprio arbítrio, Heidegger a nomeia angústia.
Fundado na angústia, regido por este paradoxal modo humano de ser no mundo, é que se abre para o homem toda sua possibilidade de conhecimento. A ontológica inospitalidade do mundo e a ontológica liberdade humana são regentes de toda forma de conhecimento e do método. (CRITELLI, 1996, p.18)
A consciência desta maneira de perceber e sentir o mundo e a vida me
mostra que existe um lugar de onde se manifestam os impulsos internos, a
partir dos quais se origina o movimento, processo a que o bailarino, coreógrafo
e pesquisador Rudolf Laban denominou de “esforço”.
LABAN (1978) desenvolve minuciosamente este conceito, destacando o
fato de que a busca de valores gera no homem esforços conflitantes e não há
quem desconheça o fato de as expressões, gestos e movimentos espelharem
conflitos interiores.
Ao domesticar os animais, o homem aprendeu como lidar com o esforço e como alterar os hábitos de esforço dos seres vivos, e por fim aprendeu a se domesticar, treinando e desenvolvendo seus próprios hábitos pessoais de esforço, tanto engrandecendo-os quantitativamente, quanto dirigindo-os qualitativamente cada vez mais no sentido de se tornarem esforços humanitários específicos. É impressionante o modo pelo qual o homem alcançou esse tipo de educação do esforço, tendo seu paralelo na evolução dos hábitos de esforço animais. A seleção que o homem faz das suas seqüências de esforço não é totalmente inconsciente, ele tem a capacidade de coordenar uma gama de possibilidades de esforço vastamente maior que a de qualquer outro animal e esta gama ultrapassa as necessidades da mera sobrevivência. (LABAN, 1978)
4
A minha coreografia/escrita tem o sentido do pertencer, o sentimento de
angústia, o exercício do esforço e o da liberdade.
As principais dinâmicas de minha coreografia/escrita mantém estreita
relação com as da dança, por isso, na minha escrita, procuro articular o sentido
de pertencer o sentimento da angústia frente à inospitalidade do mundo e do
contínuo exercício do esforço, na busca pelo equilíbrio, num movimento de
perpétuo deslocamento.
Encontrei na concepção de pesquisa interdisciplinar a sustentação
teórica para a estruturação de uma outra narrativa que revelasse a minha
maneira de pensar a respeito da formação de um professor de arte, a partir do
resgate da minha história de vida que tem a dança como eixo e fio condutor.
A trilha interdisciplinar caminha do ator ao autor de uma história vivida, e uma ação conscientemente exercida e uma elaboração teórica arduamente construída. Tão importante quanto o produto de uma ação exercida é o processo e, mais que o processo, é necessário pesquisar o movimento desenhado pela ação exercida – somente com a pesquisa dos movimentos das ações exercidas poderemos delinear seus contornos e seus perfis. Explicitar o movimento das ações educacionais exercidas é sobretudo intuir-lhes o sentido da vida que as contempla, o símbolo que as nutre e conduz – para tanto torna-se indispensável cuidar dos registros das ações a ser pesquisadas. (FAZENDA, 2001, p. 15)
Ao coreografar a escrita, procuro dar movimento ao texto apresentado
ao leitor pelas pranchas de cor que marcam o início da cada capítulo,
construídas à luz da temporalidade que representam. Pela narrativa das cenas
que contextualizam para o leitor, o espaço onde os atores se movem.
O interior de cada capítulo é palco da narrativa do diálogo entre Cronos
e Kairós. Cronos, representado pela linha do tempo que ancora os fatos
vividos, e Kairós, pelos parceiros teóricos que contextualizam os referidos
fatos, e cujo encontro se deu por insight, pela memória e pela sintonia.
Essa coreografia/escrita ao desvelar os encontros entre Cronos e Kairós
dá sentido e rigor à narrativa, na medida em que Kairós, ao contextualizar e
explicar na voz dos fatos apresentados pelos atores/parceiros ressignifica,
explica, amplia e abre a possibilidade de teorização sobre o vivido/narrado.
Tal qual na dança, a temporalidade é apresentada em planos, em flash
backs porque as marcas positivas e as negativas da minha trajetória são
revisitadas e delas se extraem os fios que tecerão a narrativa do gran finale.
5
Nesta coreografia /escrita os capítulos são denominados atos.
Na coreografia dos atos, a explicitação da partitura de movimentos.
No traçado coreográfico há a indicação das marcas e eixos que
estabelecem referenciais que orientam os movimentos e definem direções no
tempo e no espaço.
No interior dos capítulos/atos as indicações das marcas e eixos são
explicitadas pela utilização de recursos como destaques, metáforas, símbolos,
imagens especialmente criadas a partir do sári, uma veste típica da Índia que
sem nenhuma costura, recobre o corpo humano, assim como a minha narrativa
veste a minha trajetória.
6
2 Criando um recurso imagético, o sári, como forma referencial
de uma estética.
Minha trajetória de vida constitui a matéria prima deste processo de
investigação.
Conheci a dança em várias dimensões e foi esta arte que me ligou à
educação, quando passei da condição de aprendiz para a de ensinante.
A docência acrescentou mais dúvidas em relação aos meus saberes em
dança, questão essa que se tornou presença constante em minhas reflexões
de educadora e artista.
Certa feita entrei em contato com Ivani Fazenda numa palestra sobre
interdisciplinaridade que proferiu na escola onde trabalho. Nessa ocasião teve
origem um enorme interesse em conhecer mais sobre o tema principalmente
pelos pontos que despertaram em mim uma forte afinidade.
Os “cinco princípios que subsidiam uma prática docente interdisciplinar:
a humildade, a coerência, a espera, o respeito e o desapego” (FAZENDA,
2001, p.11) despertaram o desejo de compreender melhor essa área de
conhecimento e pesquisa.
Interessei-me também pela lógica que a interdisciplinaridade imprime à
investigação que privilegia a descoberta, a pesquisa, a produção científica,
porém gestada num ato de vontade, num desejo planejado e construído em
liberdade.
Encantei-me com o processo interdisclipinar porque este “desempenha
um papel decisivo no sentido de dar corpo ao sonho e de fundar uma obra de
educação à luz da sabedoria, da coragem e da humanidade. (FAZENDA, 2001,
p.18)
A perspectiva de desenvolver um trabalho acadêmico baseado nestes
princípios, me encorajou e estimulou a ingressar no Programa de Mestrado em
Educação da Universidade Cidade de São Paulo (UNICID) para construir um
conhecimento sobre um tema, a partir da minha questão básica, que é o papel,
a função e lugar da dança na formação do professor.
Iniciei, então, meu trabalho, disposta a desenvolver um projeto de
pesquisa interdisciplinar nos moldes propostos por Ivani Fazenda e seu grupo
de pesquisa, acreditando na possibilidade de estruturação de uma outra
7
maneira de pensar a respeito dessa questão que, para mim, é um grande
desafio - esse estudo vai me auxiliar a integrar o meu fazer, a minha arte e a
minha prática pedagógica.
Ao retomar minha trajetória com um olhar investigativo, vi-me diante de
uma nova perspectiva, em muitos ângulos desconhecida e, para torná-la
inteligível, senti a necessidade de encontrar nela algum tipo de ordem que,
para mim naquele momento estava oculta.
Havia já elaborado alguns trabalhos escritos, no mestrado, que tinham
como tema a minha trajetória como professora. Tudo corria bem, até que
chegou o momento de estabelecer uma ligação entre os referidos textos.
Se Cronos permitia uma ordenação linear dos textos, Kairós não se
submetia a tal ordem.
Sempre que tenho dificuldade de compreender mentalmente o que
minha percepção captou num nível muito profundo e para compreender o
porquê de determinada coisa me causar uma impressão tão contundente, mas
que o pensamento não traduz de forma imediata, recorro ao desenho ou à
pintura, uma forma de pensar por imagens para, visualizando, alcançar o
sentido e o significado que se estruturou internamente. Fazer um trabalho
plástico foi uma maneira que encontrei de trazer à luz imagens mentais,
sensações e emoções, de natureza fugidia para o consciente, para que, dessa
forma eu possa capturar as imagens e observá-las mais longamente e
interpretar-lhes o significado de modo global.
A idéia inicial foi a de construir uma linha de tempo.Para isso recorri a
uma técnica que aprendi no antigo ginásio, nas aulas de história da arte e elegi
a pintura como linguagem visual para a referida construção.
A primeira visualização que tive foi a de uma linha, literalmente, uma
longa e larga linha onde pudessem caber muitos detalhes, textos e imagens.
Por tratar-se de um estudo, resolvi usar o material que tinha em casa,
muito papel canson A2 e tintas para cenário, aquarelas, pastel oleoso.
Usei meu curriculum vitae como referência para calcular o comprimento.
Conclui que se atribuísse um espaço para cada ano, o tamanho ficaria
impraticável para o manuseio. Decidi, então, resumir a infância e a
adolescência em apenas um espaço, mas ainda assim, precisava de uma linha
muito longa.
8
O primeiro problema foi adaptar o formato do papel aos meus objetivos e
necessidades.
Dificilmente a trajetória poderia ser pintada toda aberta, dada a
dificuldade de espaço e, por isso, recortei, colei e montei uma estrutura de
papel articulada, formada por 38 quadrados de 24 cm de lado, para que
pudesse ser pintada dobrada, por partes, ao mesmo tempo em que eu pudesse
desdobrar e visualizar as partes anteriores, sempre que necessário, para não
perder o todo do trabalho.
Em seguida, recortei o currículo ano a ano, distribui sobre a linha e colei.
Para cada ano atribui uma tira vertical de 24 cm x 48 cm. Agrupei os temas ao
longo da página imaginando manter a seqüência dos fatos quadro a quadro
preservando a simultaneidade em que ocorreram em determinado período de
tempo.
Resumi em apenas uma tira o período da infância à adolescência que
tive necessidade de revisitar, pois trata-se do tempo/espaço onde tudo
começou e também faz parte da bagagem que acumulei nesta aventura que é
ser professora. E também o período de 1974 a 1983 que resume o período em
que mudei para São Paulo e cursei a graduação e as licenciaturas.
Assim que acabei de organizar o currículo nos espaços e vi o tamanho
final do trabalho, comecei a pensar nas cores para aquela história.
Olhava para aquilo tudo e me perguntava: que critério deveria usar para
escolher as cores?
Pensei comigo - primeiro o fundo - que fundo terá esta pintura?
O plano de fundo representa o tempo cronológico, o ritmo da dança da
minha vida no período de 1956 a 1999. O tempo kairótico foi representado nas
linhas que correm sobre o tempo cronológico.
É um tempo em movimento que se alterna entre Cronos e Kairós.
Fui mergulhando nos anos ali abertos à minha frente e perguntava a eles
qual a lição que eu havia aprendido em cada um deles ou em períodos mais
extensos, já que os tempos entre eles são variáveis e as variações têm uma
constância não muito precisa, se observar que há regiões de fronteira, as
regiões de transição entre umas e outras fases da minha vida.
As respostas alternavam-se sucessivamente, predominando três
movimentos básicos, o da paixão, o da espera e o da ação.
9
Minha idéia foi a de expressar essas energias como se fossem
irradiações luminosas, numa tentativa de expressar sensações e emoções
vividas durante as experiências.
Em sendo um trabalho de arte, me senti confortável para usar uma
licença poética para as cores.
Refletindo sobre os significados das cores, encontrei a resposta para o
que buscava. Recorrendo aos meus conhecimentos sobre terapias corporais
orientais e esoterismo, relacionei essas energias às cores dos chakras 5 (fig. 1)
que vieram em resposta ao que procurava.
FIGURA 1 – CHAKRAS
Há no peito, na altura do coração, um chakra onde está guardada a
nossa natureza divina, a centelha divina da luz inicial do Universo, que é
formada por três raios de luz, um rosa que representa o amor universal, a
5 http://www.esoterismo.sorocaba.com.br/chakra/
http://www.mistico.com/p/chakras/
10
criatividade; outro azul, que representa a força da vontade, o domínio sobre a
matéria e amarelo, a inteligência, o discernimento a clareza, a sabedoria.
Escolhi trabalhar com a idéia das cores desse chakra. Para os períodos
de espera escolhi a cor azul; para os da gestação do conhecimento e da paixão
o rosa, e amarelo, para a ação.
Para o período final, escolhi o laranja para representar, a energia vital, o
autoconhecimento, a alegria, o desapego, a confiança e a entrega, significando
o fluir pela vida.
Passei a expressar dessa forma as qualidades que eu tive que
desenvolver para ser professora.
E o fundo ficou assim:
TABELA 1 – ESTRUTURA PARA FUNDO DA COMPOSIÇÃO
Essa visualização me sugeriu um gráfico e comecei então a ligar os
pontos. Com um pincel fui traçando uma linha, ligando os pedaços do currículo
que estavam colados no papel, como se fossem pontos.
Organizei a composição, estabelecendo, portanto um eixo central
horizontal em verde limão, que representa inicialmente, os primeiros anos da
minha formação escolar. Acima dele, um eixo carmim, que representa o início
da formação em dança, e outro em azul marinho, o eixo da formação em artes
plásticas. Mais adiante, o eixo verde limão corresponde à minha formação
regular e se soma a outro em dourado marrom e salmão que representa a
minha vida profissional.
As linhas adjacentes que acompanham esse eixo central representam
todas as experiências de formação nas artes, sendo a dança em carmim; o
teatro, em verde-escuro, as artes plásticas, em azul-marinho; terapias e
Desde
que eu
consigo
1974 83 84 85 86 87 88 89 90 91 92 93 94 95 96 97 98 99
Lembrar-
me até
1974
A
1981
11
técnicas corporais em laranja, que procurei e aprendi para completar minha
formação e subsidiar minha prática pedagógica.
A cada pincelada ia rememorando todos os passos do meu caminho e
as emoções que sentia iam se imprimindo no papel em diferentes tipos de
traços e pinceladas.
Conforme ia pintando, as linhas iam se entrelaçando, revelando formas e
relevos na superfície do papel, criando a sensação de movimento, de fluidez:
Era realmente um gráfico, mas um gráfico orgânico fora dos padrões
geométricos usuais, porque provoca também sensações visuais (fig. 2), quase
táteis, e sensações cinestésicas, sugerindo uma partitura com movimento.
FIGURA 2 – LINHAS DA FIGURA
Somente ao término da pintura (fig. 3), pude visualizar o resultado final
com a distância adequada, quando utilizei um painel que existe na faculdade
como suporte para ela, pois não houve espaço em casa.
FIGURA 3 – PINTURA EM TAMANHO REAL
12
Olhava para aquele trabalho e pensava comigo mesma - aí está a minha
vida diante de mim.
Perplexa, constatei que o resultado final lembrava um sári aberto.
Entrei numa crise muito grande pois todo o tempo em que eu deveria
estar escrevendo eu havia passado pintando.
Era chegada a hora de apresentar um trabalho final no grupo de estudos
e pesquisa e eu tinha apenas uma pintura articulada em formato de folder com
19 lâminas de 24 cm x 48 cm que, quando aberta, mede 4,56 m de
comprimento e se parece com um mapa topográfico.
Como eu iria explicar para as pessoas o que era aquilo, se nem sequer
para mim estava claro? Tinha apenas uma intuição.
Mais ainda dizer a elas que aquilo era um sári!
Tentei escrever um texto estabelecendo uma metáfora da pintura como
um rio, o rio da vida, mas minha orientadora Ana Gracinda Queluz, perguntou
onde estavam as margens daquele rio. Essa questão levou-me a revisitar
minha pintura e entrar em contato com seu significado.
Mais tarde em nossa primeira entrevista de orientação Ana Gracinda
Queluz, como que lendo nitidamente aquele segredo, manifestou o que o
desenho representava para ela. Disse-me desta forma:
“ Esta pintura é um sári, como se a sua trajetória de vida fosse um tecido sem costuras que recobre seu corpo como se fosse uma pele.”
Foi como um presente de “fada madrinha” pois me deu o vestido para o
baile. Senti-me acolhida, compreendida e isso me encorajou a prosseguir nesta
trilha.
FIGURA 4 – PINTURA DIGITALIZADA
13
Passaram-se alguns meses antes que eu pudesse me apropriar dessa
imagem como elemento que ligasse, que desse unidade ao meu trabalho.
Nunca havia operado com a minha memória de forma consciente e sistemática
e tive que parar para entender o que estava ocorrendo dessa vez. Evocando
um ontem e projetando-me sobre o amanhã, percebi que em minha memória
dispunha de um instrumental para, a tempos vários, integrar experiências já
feitas com novas experiências que pretendia fazer. O processo de criar
incorpora um princípio dialético, e por isso, considero muito significativo o fato
de que neste processo tenham se entrecruzado essas duas questões, falar
sobre uma cultura diferente da minha (sári) e falar de uma forma diferente
sobre a minha própria cultura (formação de professora).
Me dei conta de que, através deste exercício com a memória, estava me
tornando apta a reformular as intenções do meu fazer e a adotar certos critérios
para futuros comportamentos. E mais, as intenções se estruturam junto com a
memória, nem sempre de forma consciente, tornando-se claras apenas no
curso das ações.
A reconstrução e a interpretação do passado é um fazer valer o passado para o presente, o converter o passado num acontecimento do presente. Só assim é verdadeira a experiência. A experiência do passado, portanto, não é um passatempo, um mecanismo de evasão do mundo real ou do eu real. E não se reduz, tampouco, a um meio para adquirir conhecimentos sobre o que aconteceu (...) a interpretação do passado só é experiência quando tomamos o passado como algo ao qual devemos atribuir um sentido em relação a nós mesmos. (LAROSSA, 2001)
Percebi, nesta forma de trabalhar, que memória, imaginação se
interpenetram nas linguagens artísticas.
A memória não é factual, é memória de vida vivida, tem um aspecto
dinâmico e não estático, possibilitando sempre novas interligações e
configurações, e aberta a associações. Daí vem a dificuldade que tive
inicialmente de ordenar a memória em forma de texto. Mas, através do trabalho
plástico, pude então perceber que há uma seletividade que organiza o
processo em que a própria memória vai se estruturando. A dificuldade estava
em lidar com o dado de que os fatos lembrados se apresentavam a mim como
configurações complexas.
14
“Para que essa experiência do passado seja possível, o sujeito da experiência - o historiador ou o leitor - deve ser um sujeito desconforme e inquieto. Esse sujeito é o que vai do presente ao passado, mas arrastando consigo sua desconformidade, ou seja, evitando toda relação de continuação. E é, também, o que vem do passado ao presente, mas para interrompê-lo e colocá-lo em questão, para desestabilizá-lo e dividi-lo no interior de si mesmo. Foucault diz isso de uma maneira magistral.(...). Saber, mesmo na ordem histórica, não significa reencontrar e sobretudo não significa reencontrar-nos. A história “será efetiva” na medida em que ela reintroduza o descontínuo em nosso próprio ser (...). Ela não deixará nada abaixo de si que teria a tranquilidade asseguradora da vida ou da natureza; ela não se deixará levar por nenhuma obstinação muda em direção a um fim milenar. Ela aprofundará aquilo sobre o que se gosta de fazê-la repousar e se obstinará contra sua pretensa continuidade. É que o saber não é feito para compreender, ele é feito para cortar.” (LAROSSA, 2001, p. 136)
A maneira que encontrei para decodificar estas configurações foi
utilizando cores e linhas para representar sensações, sons, emoções que
também fazem parte dos fatos em si, assim manifestados. Pude, por meio da
linguagem visual estabelecer os limites entre o que lembrava, pensava e
imaginava, elaborando uma ordenação.
Raciocinando a esse respeito, pensei que a imagem que criei resultava
de um processo de associações do meu mundo imagético em que estabeleci
correspondências evocadas à base de semelhanças, ressonâncias íntimas de
experiências anteriores com os sentimentos de minha experiência de vida.
Tudo aconteceu numa velocidade extraordinária que num primeiro
momento, não pude fazer um controle consciente das associações que iam
gerando as imagens, mas podia ver claramente que apesar de formas
espontâneas havia uma coerência interna.
Na verdade, reconheço que neste movimento estava, a meu modo,
selecionando e ordenando todo o conteúdo significativo da trajetória sem deixar
que se perdessem as diferentes dimensões que a constituem.
Agora me sinto capaz de abraçar esse desafio e descobrir o que ele tem
a nos dizer.
Elucidadas estas questões, é possível iniciar uma leitura sensível
daquilo que criei para representar minha trajetória.
Neste caso, especificamente, é necessário esclarecer que como meu
objetivo não era apenas fazer um trabalho artístico, mas sim usá-lo como
recurso para estruturar minha escrita, esta forma/ordenação torna-se
significativa para mim apenas no momento em que projeto um sentido a ela e,
15
a partir dela, construo minha fala. Dessa forma, nesse momento, entrelaçam-se
as linguagens plástica e escrita e tornam-se complementares entre si.
Como todo artista, após o término da obra, me distancio dela e observo
o resultado.
Nesta busca de um significado pessoal para o sári, somaram-se às
impressões visuais, informações e vivências que fui coletando durante e depois
das minhas viagens à Índia
O sári é um tipo de vestimenta feminina bastante incomum para os
padrões ocidentais, ainda que muito popular entre as mulheres na Índia.
Consiste em um tecido de mais ou menos seis metros de comprimento
por uma largura que varia entre 80 e 90 centímetros, dependendo da metragem
em que é fabricado.
É um tipo de vestimenta que remonta a tempos imemoriais da história
indiana, sendo citado em vários textos clássicos como o Mahabharata6, por
exemplo, e que evoluiu ao longo do tempo em função das transformações por
que passou aquele país.
Por toda a Índia existe uma infinidade de tipos de drapejamento
diferentes de acordo com cada região. O modelo com que entrei em contato
tem sua origem no século XIX e é conhecido como Nivi Modern Style e adotado
pela maioria das mulheres atualmente.
Veste-se, enrolando-o no corpo de uma forma muito especial (fig. 5)
formando uma saia que se estende como um véu sobre o tronco, formando um
tipo de xale que pode ser usado, inclusive, para cobrir a cabeça (SARI, WEAR,
2002).
6“The Mahabharata (pronounced approximately as Ma-haa-BHAAR-a-ta) is an ancient religious epic of
India. It has existed in many forms, the fundamental one being a text in ancient Sanskrit which may well
be the world's largest book. I, James L. Fitzgerald (Ph.D. in Sanskrit, Chicago, 1980) of the Department
of Religious Studies at the University of Tennessee, Knoxville, am currently translating about one fourth
of the Mahabharata for a complete translation of the Sanskrit text being published by the University of
Chicago Press, and I am also editing the remainder of the translation of the text by other Sanskrit
16
FIGURA 5 – Modelos de sári (Capitol Hotel Bangalore – 1998)
Ao retomar a visão da pintura, vejo que para transformar-se realmente
num sári, falta ainda mais um movimento de criação, ou seja, a parte do xale, e
a estampa da pintura sobre um tecido, ou o projeto de sári não estará acabado.
Esperando uma outra imagem que me ajude a terminar a composição
deste sári, mergulho o olhar sobre a pintura novamente e observando-a
longamente, revejo todos os passos do projeto novamente e vou rearticulando
as partes em diferentes estudos pesquisando a melhor solução para a
composição. Minha imaginação se desprende do tema e se solta pelo espaço,
criando formas e, lentamente, vão se configurando na mente imagens novas,
novas idéias para o mesmo trabalho.
Tenho ainda que desembrulhar por completo este sári que trouxe na
bagagem.
Sabendo que faz parte do fazer artístico, fazer e refazer o mesmo
trabalho, escolho como tecido a mais fina seda, com um barrado dourado, onde
scholars. This work follows and completes the translation of the Mahabharata begun by the late Professor
J. A. B. van Buitenen of the University of Chicago” (FITZGERALD, 2002)
17
está bordado um mantra de proteção, sobre a qual estamparei a pintura de
minha jornada para que, assim, a idéia original se complete finalmente.
Resta ainda compor o xale do meu sári. O espaço reservado para uma
única imagem, um ícone que represente o tema que governa essa história.
Estive olhando para deuses e altares por muito tempo, como não falar sobre
isso? Escolhi Shiva Nataraj, o deus hindu da dança (fig. 6) , para ocupar esse
espaço.
FIGURA 6 – ESTUDOS PARA O XALE DO SÁRI
Feito isto elaborei alguns estudos com a finalidade de visualizar o sári
acabado (fig. 7), estampado sobre a seda, entre os quais selecionei estes
quatro (fig. 8 a 11) que considerei os melhores resultados em relação ao que
havia imaginado inicialmente.
18
FIGURA 7 – ESTAMPA CENTRAL DO SÁRI
FIGURA 8 – ESTUDO 1
FIGURA 9 – ESTUDO 2
FIGURA 10 – ESTUDO 3
FIGURA 11 – ESTUDO 4
19
Pude perceber que o sári, aberto desta forma, oferece uma possibilidade
de leitura bidimensional do trabalho que, numa visão geral, sugere a idéia de
percurso.
Porém, dessa feita, ligando-o à idéia de um tecido que recobre, como
uma pele que, por sua vez, representa uma vida vivida, é como se eu tivesse
deixado impresso no tecido tudo que vivi e, em contrapartida como se minha
trajetória estivesse impressa na minha pele como uma tatuagem, numa relação
semelhante à da estampa com o tecido, em que pigmentos e fibras se fundem
de modo indissolúvel, tornando-se uma unidade.
Quanto à imagem linear propriamente dita, posso perceber que há um
caminho impresso na área central.
Sobre o fundo destaca-se, uma convergência de linhas e cores e
energias para uma figura que inicialmente está em formação: Uma bolsa, como
se tivesse um movimento interno e que depois se projeta adiante,
horizontalmente, numa linha larga e reta, onde todos os elementos tendem a se
alinhar numa ordem mais definida.
Esta linha central define-se e percorre assim um longo trecho da
imagem, sofre uma ruptura, e retoma sua caminhada no final do tecido, quando
sugere duas pernas, descolando-se da linha original como que saltando em
direção à representação imagética do deus Shiva o deus da dança e nela
mergulha no final do tecido.
Este é o mapa da jornada, que passa a me orientar quanto à maneira de
entrar, de abordar meu objeto de estudo.
“O tempo da formação, portanto, não é um tempo linear cumulativo. Tampouco é um movimento pendular de ida e volta, de saída ao estranho e de posterior retorno ao mesmo. O tempo da formação, como o tempo da novela, é um movimento que conduz à confluência de um ponto mágico (situado assim fora do tempo) de uma sucessão de círculos excêntricos.” (LAROSSA, 200, p.78 e 79)
Desta forma a pintura se torna partitura da coreografia/escrita.
Mesmo assim, ainda sinto este trabalho incompleto, sem uma
visualização deste objeto em sua função, ou seja, vestindo um corpo, sua
forma tridimensional, por que o sári é um objeto tridimensional em sua função
de vestimenta e é nesta forma que também é preciso observá-lo.
20
Para isso fiz um exercício de modelagem tridimensional em argila que
posteriormente scaneei e usando o programa Photoshop revesti a imagem com
a pintura para que pudesse ver o meu sári de modo tridimensional (fig. 12).
FIGURA 12 – MODELO EM ARGILA COM SÁRI TRIDIMENSIONAL
Antes que pudesse começar a escrever novamente, mais um desafio se
mostra, o de fazer uma análise dessa forma tridimensional, pois desejo
compreender minha trajetória nesta dimensão, ou seja seu movimento no
tempo e no espaço.
FAZENDA (2001) relaciona a investigação interdisciplinar ao ato de
desvendar em espiral, uma vez que os pontos da espiral se articulam de forma
gradual, não de uma única vez, mas todos os pontos que aparecem têm a ver
com os que os antecederam. Como também já disse esta afirmação sugere a
idéia de profundidade, pela sucessão de camadas da espiral e sua evolução,
em curvas, sugere a idéia de movimento.
Se pensarmos na estrutura tridimensional do drapejamento, em como o
tecido vai se enrolando no corpo, podemos perceber que este vai formando
uma espiral ascendente pelo corpo e que as camadas inferiores vão formando
21
uma base para as que sucedem, de tal forma que todas estão em contato em
determinado ponto. Se se pensar que este tecido está representando a minha
trajetória, cada ponto da pintura sendo uma fase de minha formação, se se
observar dessa maneira posso, então, transportar essa idéia para o texto. Vejo
que os fatos aconteceram cronologicamente, mas posso estabelecer relações
não cronológicas entre as várias fases da minha vida e estudar como cada uma
influi na outra, no momento em que as camadas do tecido se sobrepõem umas
às outras, colocando as fases da vida em contato, onde se criam as influências
e relações.
“Mas para que o primeiro círculo, o da infância, possa ser conservado, não basta que seja meramente recordado. O primeiro círculo tem que ser transmutado poeticamente desde o último, num movimento que é tanto de conservação quanto de renovação. E, para isso, é preciso que o círculo inicial se torne aberto em espiral, num tipo de via excêntrica que o leve para além de si mesmo, para depois voltar e trazê-lo ao local de partida.” (LAROSSA, 2001, p. 78)
22
3 Revelando o método da coreografia /escrita.
Numa coreografia há um trabalho que o espectador não vê. No processo
de criação coreográfica que utilizo, os movimentos que resultam de
improvisações são selecionados, fixados. Reunidos, irão compor a coreografia
que é uma seqüência expressiva de movimentos.
Por tratar-se de um trabalho científico é necessário aqui explicitar os
caminhos que utilizei nesta pesquisa.
Não posso deixar ocultado do leitor o caminho que percorri, as decisões
que tomei para a elaboração da pesquisa, objeto desta dissertação.
Em face do desafio de fazer uma coisa que não sei, enfrentar o “não
saber” para poder produzir um conhecimento, eu aprendiz-pesquisadora, tive
assim meu encontro com o princípio da humildade, recorri inicialmente às
ferramentas de que dispunha, entre elas o método que uso para pintar, somado
a um novo olhar.
Adotei a pintura do sári como a partitura para estruturar um roteiro para
a coreografia/escrita, um fio condutor para os textos/movimentos desta
coreografia/escrita.
Iniciei minha pesquisa, escrevendo textos como num desenho de
observação, esboços para uma composição, pouco a pouco interpretando o
que via em minha trajetória de vida , traduzindo em imagens que distribui
cuidadosamente sobre o sári /partitura.
Entendo que a improvisação está para a dança, assim como o esboço
está para a pintura, e utilizo essa analogia para revelar meu processo de
elaboração desta pesquisa, como ilustro com as imagens a seguir:
Usando o carvão, esbocei os primeiros textos como se fossem as
primeiras formas, fragmentos de memória, sobre a tela (fig. 13) e sobre as
áreas definidas, escrevi e reescrevi, descrevendo as imagens resgatadas,
tentando encontrar os tons os meios tons, na tentativa de trazer a nitidez, focar
da visão.
23
FIGURA 13 – ESBOÇO EM BICO DE PENA
Em seguida distribuí em aguadas as áreas de cor às primeiras cores,
para representar as sensações que me causavam cada uma das lembranças.
As imagens foram ficando cada vez mais nítidas e, com isso, dúvidas e
inquietações surgiram como os primeiros contrastes.
Numa camada de tinta mais grossa, fui fundindo as fronteiras entre os
matizes, controlando os tons, as cores, trazendo devagar as formas, as idéias e
teorias para fora, compondo-as entre si, estabelecendo as áreas de
predomínio, compondo com a variedade, definindo o que é figura e o que é
fundo, para que formassem um todo, para que eu pudesse representar uma
unidade (fig. 14) o todo em que se unem os detalhes, o meu retrato de artista
educadora.
24
FIGURA 14 – ESBOÇO EM PASTEL SECO
A expressão que buscava para o quadro vinha carregada de uma
intenção que nasceu lá na imagem inicial nas minhas dúvidas em relação aos
meus saberes.
Há sempre uma intenção7 no trabalho do artista, o desejo de transmitir
uma mensagem. No pulsar do processo de criação há o movimento de
introspecção durante a feitura da obra e o da extroversão, o momento de
7 “Daí podemos falar da “intencionalidade” da ação humana. Mais do que um simples ato proposital, o ato
intencional pressupõe existir uma mobilização interior, não necessariamente consciente, que é orientada
para determinada finalidade antes mesmo de existir a situação concreta para a qual a ação seja solicitada.
É uma mobilização latente seletiva. Assim as circunstâncias em tudo hipotéticas podem repentinamente
ser percebidas interligando-se na imaginação e propondo a solução para um problema concebido.
Representariam modos de ação mental a dirigir o agir físico.
O ato criador não nos parece existir antes ou fora do ato intencional, nem haveria condições, fora da
intencionalidade, de se avaliar situações novas ou buscar novas coerências. Em toda criação humana, no
entanto revelam-se certos critérios que foram elaborados pelo indivíduo através de escolhas e
alternativas.” (OSTROWER, 1977, p. 10-11)
25
comunicar-se com o outro. O momento da pesquisa em que devia situar o lugar
de onde falo e também definir a quem dirijo a minha fala.
Durante essa fase, encontrei um eco muito importante no verbete sobre
o olhar de Roberta Galasso NARDI (2001, p. 219), que me incentivou a seguir
em frente e que justificou a idéia de elaborar essa metáfora inicial com o
objetivo de revelar os movimentos do meu trabalho que se situa numa região
fronteiriça, na intersecção entre a arte e a ciência, em que meu eu encontra
outros “eus” no elemento comum do ato de criar8:
O que move um artista expressar-se por meio da arte é um desejo? Como se dá o movimento dialético na relação da obra, pintor, público, partindo do pressuposto de que a transformação do olhar releva quem olha e também quem é olhado. Por analogia, se pudéssemos olhar a trajetória da mente do pintor na concretude de seus sonhos. É interessante perceber que poucas transformações ocorrem, que a imagem inicial mantém-se quase intacta, apesar das aparências. Segundo Picasso, um quadro não é idealizado e fixado; pelo contrário, segue a mobilidade do pensamento. Ao ser terminado pode mudar, de acordo com o estado daquele que o observa; ele vive sua vida da mesma forma que um ser humano e sofre mudanças que o cotidiano nos impõe(...). Isso é natural, visto que um quadro vive somente para aquele que observa. No início de um quadro encontram-se freqüentemente coisas belas. Devemos nos defender delas, destruir o quadro, refazê-lo diversas vezes. A cada destruição de uma bela descoberta, o artista não suprime verdadeiramente, mas transforma, condensa, deixando-a mais substancial. (NARDI, 2001, p. 220-221)
Desta forma, assim como faço num trabalho plástico, fui elaborando
minha pesquisa minuciosamente, fazendo e refazendo, até que saltasse a
imagem pronta no olho (fig. 15) revelando, na configuração final, em primeiro
plano a artista/educadora, em segundo plano minha trajetória e, no plano de
fundo, o contexto em que existo e construo meu fazer. Meu ser e meu universo
existencial congelados numa imagem preliminar, para serem observados em
seu aspecto estático e global num primeiro momento, para depois, iniciar um
8“As potencialidades e os processos criativos não se restringem, porém, à arte. Em nossa época, as artes
são vistas como área privilegiada do fazer humano, onde ao indivíduo parece facultada uma liberdade de
ação em amplitude emocional e intelectual inexistente nos outros campos de atividade humana, e
unicamente o trabalho artístico é qualificado de criativo. Não nos parece correta essa visão de
criatividade. O criar só pode ser visto num sentido global, como um agir integrado em um viver humano.
De fato criar e viver se interligam.
Criar é, basicamente, formar. É poder dar forma a algo novo. Em qualquer que seja o campo de atividade,
trata-se, esse “ novo”, de novas coerências que se estabelecem para a mente humana, fenômenos
relacionados de modo novo e compreendidos em termos novos. O ato criador abrange, portanto, a
capacidade de compreender; e esta por sua vez, a de relacionar, ordenar, configurar, significar.”
(OSTROWER, 1978).
26
percurso do olhar pelos detalhes e seus dinamismos.
FIGURA 15 – COMPOSIÇÃO FINAL
Aos poucos fui resgatando9 os fatos desta trajetória para que pudesse
observar e analisar os detalhes da minha formação e da minha prática em sala
de aula, desocultando dados que me ajudassem a entender como integrei a
dança aos meus outros aspectos na composição do todo, do conjunto dos
meus saberes e fazeres e como isso tem participado do meu movimento pela
vida; como isso influi no meu destino, nos meus atos e suas conseqüências e
para onde isto me projeta, no exercício da minha profissão.
Os textos/movimento seguem a ordem da linha de tempo representada
pelo sári e nesta ordem, portanto, se definem os temas e títulos de cada
ato/capítulo.
9 “O termo resgate é um substantivo derivado, regressivo do verbo resgatar, que significa livrar de cativeiro, de
seqüestro, etc., a troco de dinheiro ou de outro valor e também retomar e recuperar. (QUELUZ, 2001, pg.127)
27
Os temas que dão origem aos movimentos são os primeiros desafios
que o coreógrafo enfrenta na criação coreográfica.
A escolha da música para a coreografia/escrita
“A música em relação à criatividade, tem características próprias, decorrentes de sua peculiar localização dentro da Arte, pois esta se divide em duas tríades principais e independentes: a tríade das artes do espaço ou da beleza imóvel, e a tríade das artes do tempo, ou da beleza em movimento; a primeira compreende a arquitetura, a pintura, a plástica; a segunda compreende as artes que os gregos denominavam de “musicais”, isto é, a música propriamente dita (vocal e instrumental), a poesia, a esta escultura viva, intermediária entre os dois grupos:a dança.” (COMBARIEU, 1953)
Feitas as escolhas formais e estéticas para o trabalho, a música era a
dimensão que faltava para completar a composição da minha
coreografia/escrita.
Nesta coreografia/escrita retomo o primeiro tema gerador deste trabalho
que é a interdisciplinaridade, que considero o tema musical que escolhi para
esta dança. Como a música numa dança, a interdisciplinaridade permeia todo o
trabalho.
Desde a infância a dança faz parte da minha vida, seja pela liberdade de
brincar, seja por uma cultura familiar, ou pelo encantamento que me desperta o
seu fazer. Dança que entendo como celebração e linguagem.
Linguagem para aquém da palavra: as danças dos pássaros demonstram. Linguagem para além da palavra: porque onde as palavras já não bastam, o homem apela para a dança.
O que é essa febre, capaz de apoderar-se de uma criatura e de agitá-la até o frenesi, senão a manifestação, muitas vezes explosiva, do Instinto da Vida, que só aspira rejeitar toda a dualidade do temporal pra reencontrar, de um salto, a unidade primeira, em que corpos e almas, criador e criação, visível e invisível se encontram e se soldam, fora do tempo, num só êxtase. A dança clama pela identificação com o imperecível; celebra-o .
Tais são as danças principiativas, todas as danças qualificadas como sagradas. Mas tais são, ainda, na vida dita profana, todas as danças, populares ou
eruditas, elaboradas ou de improvisação, individuais ou coletivas, as quais, em maior ou menos grau, buscam a libertação no êxtase, quer ela se limite ao corpo, quer seja mais sublimada – na medida em que se admita que haja graus, modos e medidas no êxtase. (CHEVALIER, 2001)
Muito cedo conheci a dança nas reuniões familiares na casa de minha
avó materna, onde as tradições culturais portuguesas eram cultuadas nas
28
cantorias e nas danças populares. Aprendi nessas reuniões, com meus tios e
primos, a dançar o “vira”10 e a fazer pequenas apresentações e encenações
teatrais, improvisadas ali na hora mesmo.
Minha mãe, por sua vez, continuou com estas tradições na nossa casa,
promovendo sempre reuniões alegres e barulhentas, com muita música e
danças, em que os amigos iam se agregando quando, então, podíamos
compartilhar as diferentes tradições nessa mistura que caracteriza a
diversidade cultural do povo brasileiro.
Não raro podíamos também flagrar meus pais dançando habilmente o
foxtrot11 na sala de estar; “pés-de-valsa” confessos, generosamente nos
ensinavam também a rodopiar pela sala como Fred Astaire e Ginger Rogers,
como nos musicais do cinema. Assim sendo, a dança tornou-se para mim
sinônimo de alegria e comunhão.
Sempre muito atentos a nossa formação, meus pais estimularam o
desenvolvimento de nossas aptidões artísticas, nos proporcionando cursos de
pintura, desenho, dança, teatro e tudo o mais que pudesse nos interessar.
Foi assim que, aos oito anos, tive meu encontro com o balé que
deflagrou um processo que por muito tempo entendi como de experiências
muito fragmentadas, isoladas entre si; concepção esta que sempre me fez
muito insegura em relação à validade deste saber sobre a dança, que se fez na
maior parte fora do ensino formal, fora da escola ou da universidade.
Dedico este momento de meu trabalho a explicitar minha aproximação
com a interdisciplinaridade, com o intuito de mostrar os movimentos que fiz
para me apropriar dela, para aprender com ela a trabalhar e, dessa forma,
compreender o ensino/aprendizagem em arte.
Revisito minha jornada, exercitando um novo olhar um olhar
interdisciplinar.
10 “O Vira é uma das danças mais antigas de Portugal, e é particularmente popular no noroeste. O nome da dança
deriva do verbo virar, uma referência a um dos seus movimentos mais característicos. Em 6/8, o vira é normalmente
acompanhado por um repertório vocal em forma estrófica, com ou sem refrão. Existem inúmeras variantes do vira.
Em algumas execuções, o cantor solo "manda" os dançarinos virar gritando a palavra "virou", entre algumas das
quadras. Os textos das modas que acompanham o vira focam aspectos da vida rural, incluindo o amor, o namoro, o
casamento e a emigração.” (CASTELO-BRANCO, 2002)
11 Dança americana de salão de par, em compasso binário e ritmo sincopado, ou em compasso quaternário, com
passos vagarosos e corridos, e que pode ter andamento rápido ou lento.
Criado em 1913, em Nova York (EUA), pelo ator Harry Fox, um apaixonado pela dança, teve seu auge, no entanto,
nos anos 30 e 40, com os musicais da Broadway, em que se destacaram os célebres dançarinos Fred Astaire e Ginger Rogers”. (NUNES, 2002)
29
Encontrei no verbete sobre o olhar, no Dicionário em construção,
subsídios importantes que muito ajudaram a compreender melhor essa
metáfora e apurar meu olhar.
Dessas leituras quero enfatizar aqui um trecho que configura o olhar que
utilizarei a partir de então:
“Esse é o olhar interdisciplinar. Um olhar de dentro para fora e de fora para dentro, para os lados, para os outros. Um olhar desvenda os olhos e vigilante, deseja mais do que lhe é dado ver. Um olhar que transcende as regras e as disciplinas, olhar que acredita que só existe o mundo da ordem para quem nunca se dispôs a olhar! Um olhar inflado de desejo de querer mais, de querer melhor, um olhar que recusa a cegueira da consciência.” (GAETA, 2001, p. 223)
Olhar o que não se mostra e alcançar o que ainda não se consegue
exigiu de mim uma nova atitude como aprendiz; aprender com minha própria
experiência, pesquisando e, conforme Ivani FAZENDA (2001), muito mais que
acreditar que a interdisciplinaridade se aprende praticando ou vivendo, os
estudos mostram que uma sólida formação para a interdisciplinaridade
encontra-se acoplada às dimensões advindas de sua prática em situação real e
contextualizada.
Na condição de “eterna estudante de arte” atingi um estágio no processo
em que preciso parar, olhar para a imagem composta e enxergar o todo de
uma coisa que fiz por partes.
Mesmo sabendo que, assim como na arte, na interdisciplinaridade é
possível planejar e imaginar, porém é impossível prever o que será produzido e
em que quantidade ou intensidade, preciso arriscar-me a me envolver neste
imenso emaranhado de fios a fim de desvendar os aspectos que, para mim,
permanecem ocultos.
Quero correr o risco de abrir, diante de mim, um panorama novo de
possibilidades para um novo trabalho, um novo processo de criação, uma nova
prática pedagógica, mesmo que isso signifique rever posições sedimentadas.
Trabalho com os ecos da minha memória numa escuta sensível de uma
música não audível aos ouvidos mas do coração, por que é a música com a
30
qual eu dancei uma vida e que ao capturá-la na sua interdisciplinaridade,
escrevo dançando.
Iniciei este resgate12, retomando minha formação em dança sob esta
nova escuta.
Minha formação inicial de bailarina deu-se numa escola livre de ballet
clássico no interior de São Paulo, que interrompi quando entrei em contato com
a dança moderna e a contemporânea e, mais tarde, juntei a isso inúmeros
cursos e oficinas que escolhi para compor minha formação, já que considerei
que a escola clássica privilegiava a técnica, excluía as contribuições de outras
formas de dança e do teatro, considerando-as prejudiciais à técnica clássica.
Isso me fez compreender que se orientasse minha pesquisa numa visão
disciplinar, com certeza minha formação pareceria um conjunto de fragmentos
desconexos que não corresponderiam àquilo que, tradicionalmente, se entende
como o perfil convencional de uma bailarina; não encontraria o eixo do meu
trabalho, uma vez que minha formação não seguiu o curso normal concebido
para a formação do profissional de dança13.
Ao inverter o foco para dentro, para o meu interior, o que antes via como
fragmentos, reconheci como partes de um tecido. Com isso vislumbrei a
possibilidade de, afinal, enxergar este todo e reconhecer nele um outro perfil de
bailarina que se forma.
Encontrei em GARAUDY (1980) um parceiro para compreender este
novo perfil de bailarino, pois ele concebe a dança como pedagogia do
entusiasmo que tem uma contribuição importante na construção de uma
sociedade que privilegie uma forma de existência que traga um sentido mais
amplo à vida humana. Uma existência que não pode ser apenas, comer, beber,
trabalhar, comprar, dormir. Uma existência em que haja lugar para o sentir,
para o ser, para o pensar, para o imaginar, para o sonhar, para o amar, para a
paixão, para a compaixão, para a igualdade, para a diferença, para a liberdade,
para a justiça e para a felicidade.
Tenho nestas constatações as primeiras pistas que indicam o sentido do
caminho que percorri e o que devo seguir.
12 “O termo resgate é um substantivo derivado, regressivo do verbo resgatar, que significa livrar de cativeiro, de
seqüestro, etc, a troco de dinheiro ou de outro valor e também retomar, recuperar.” (QUELUZ, 2000, p. 127) 13 Numa escola de ballet um curso tem a duração de oito anos e, mais recentemente a formação do profissional de
dança se faz em cursos universitários de quatro anos, numa seqüência de conteúdos cumulativos e progressivos.
31
Pistas que Ivani FAZENDA (2001) chama de vestígios, que se apresentam
não como verdades acabadas, mas como lampejos de verdade. Cabendo a mim,
como aluna/pesquisadora interdisciplinar, decifrar e reordenar esses lampejos de
verdade para intuir o que seria a verdade.
Refletindo a respeito dos motivos que me levaram a essa postura de
isolamento, no que toca meu aprendizado em dança e também em relação a
minha formação como professora, vejo que eles residem na minha relação com
o ensino formal.
Nesse momento é oportuno aceitar o convite de Regina BOCHNIAK
(1998) em seu livro Questionar o conhecimento, para desenhar cenas para
ilustrar reflexões e a questionar tudo o que vivi dentro e fora da instituição de
ensino.
Em minhas cenas, o tema central são as dicotomias, o cenário é a
maneira como as escolas são organizadas, em séries e graus de acordo com
as fases do desenvolvimento da criança, seu sistema de avaliação por
resultados.
Como protagonista, eu estudante, vivendo um conflito em que, apesar
de ser uma “aluna nota dez”, considerada brilhante, precoce, vive com uma
sensação de desajustamento, a sensação de que “não aprendo direito” as
disciplinas que são consideradas as mais importantes (matemática, física,
química, biologia, gramática) por que concentro minha energia em meus
interesses que são outros (arte, filosofia, música, história, literatura, religião).
Tomando como referência os critérios de avaliação aos quais fui
submetida na escola e nos cursos de dança e comparando-me à maioria dos
colegas, muitas coisas no meu processo não aconteceram na "hora certa".
Etapas foram puladas, outras levaram muito mais tempo que o previsto para
acontecerem, levando-me a me descobrir diferente dos outros. Uma diferença
que a escola como é, onde o critério predominante é o da homogeneidade
(BOCHNIAK, 1998), não me ajudou a elaborar criativamente, gerando, no meu
caso, um solitário xamã14 sem tribo.
14“ xamã . [Do tungue2, pelo russo, pelo ingl. shaman e/ou pelo fr. chaman, poss.] S. 2 g. Antrop. Etnol. 1. Entre
certos povos asiáticos (Sibéria), espécie de sacerdote ou médico feiticeiro (q. v.), que atua como curandeiro e
adivinho. 2. P. ext. Em diversos povos e sociedades, especialista a que se atribui a função e o poder, de natureza ritual
mágico-religiosa, de recorrer a forças ou entidades sobrenaturais para realizar curas, adivinhação, exorcismo,
encantamentos, etc., e cuja atuação pode ou não envolver um estado de transe. [Não há, na antropologia, consenso
geral quanto à diferenciação precisa entre xamã, feiticeiro e sacerdote. Costuma-se empregar o termo xamã (assim
32
Esta imagem resultante do ato de desenhar uma cena me coloca diante
de uma das questões da interdisciplinaridade, a da ambigüidade, mais
especificamente, solidão/desejo de parceria.
Por que esta solidão me levou a uma longa peregrinação em busca de
uma tribo onde pudesse me estabelecer, com a qual me identificasse, em que
minha linguagem fosse compreendida, encontrando assim meus iguais. No
entanto, para poder reconhecê-los deveria primeiro reconhecer-me.
Compreendo agora por que, sem explicação, ou memória tangível, a
identidade15 tem sido o mote de minha busca na existência.
Neste processo de transformação de ator para autor, usando o recurso
do resgate da memória retida, ativando-a, relembrando fatos, histórias
particulares, épocas, posso proceder a análise e a projeção dos fatos,
podendo, assim, recuperar a origem de meu projeto de vida. Fortalecendo,
assim, a busca de minha identidade pessoal e profissional, minha atitude
primeira, minha marca registrada.
Porém, meu maior equívoco foi pensar que isso podia se fazer
independentemente de um grupo. Esta constatação me leva a um exercício de
me defrontar com uma outra ambigüidade, a do desapego/entrega dessa
atitude prepotente.
Agora sei que parceria é categoria maior da interdisciplinaridade e que,
sem a parceria, o conceito de identidade fica incompleto.
Aprofundando um pouco mais essas idéias, o que a interdisciplinaridade
me mostrou é que, como sempre suspeitei, identidade não “nasce” pronta e
acabada. Ela é construída passo a passo, configurando-se num projeto
individual de trabalho e de vida que nunca pode ser dissociado de um projeto
maior, o do grupo.
“Identidade como categoria da interdisciplinaridade que pode ser classificada
como xamanismo [q. v.]) no contexto dos povos asiáticos setentrionais (inclusive os esquimós) e ameríndios, em que
esse tipo de especialista tem papel social de destaque.] “ (FERREIRA, 1999, p. 2094) 15 “identidade . [Do lat. tard. identitate.] S. f. 1. Qualidade de idêntico: Há entre as concepções dos dois perfeita
identidade. 2. Conjunto de caracteres próprios e exclusivos de uma pessoa: nome, idade, estado, profissão, sexo,
defeitos físicos, impressões digitais, etc. 3. O aspecto coletivo de um conjunto de características pelas quais algo é
definitivamente reconhecível, ou conhecido: estabelecer a identidade de peças tombadas. 4. Cédula de identidade. 5.
Álg. Mod. Elemento identidade. 6. Filos. Qualidade do que é o mesmo (q. v.). [Cf., nesta acepç., alteridade.] 7. Mat.
Relação de igualdade válida para todos os valores das variáveis envolvidas. Identidade visual. 1. Personalidade visual
de empresa, resultante do efeito iterativo das características comuns de suas imagens visuais. 2. Conjunto de
elementos gráfico-visuais padronizados (logotipo, uniformes, embalagens, papéis de correspondência, etc.) que
estabelece essa personalidade” (FERREIRA, 1999, p. 1071)
33
como individual ou coletiva, real ou virtual ou todas ao mesmo tempo convivendo, colaborando, competindo, se consumindo ou se multiplicando. Tratar sobre identidade é buscar dentro e fora da gente; é desvelar, desnudar; é deixar cair o véu que nos cobre para nos conhecermos em nós mesmos e nos conhecermos nos outros. Saber onde eu começo e onde termino, onde interajo, onde me separo, onde acredito ou nego. (...)
Para me identificar com alguma coisa ou com alguém, não preciso necessariamente estar junto desta pessoa, a identidade também é criada ao redor de idéias e objetivos comuns.” (GUIOTI, 2001, p. 50)
Ao identificar-me estabeleço parcerias, que levadas ao nível da
intersubjetividade passam a ser muito mais que uma questão de troca, pois o segredo está na intenção da troca, na busca comum da transcendência.” (FAZENDA, 2001, p. 22)
Assim sendo, descobri que, na verdade, nunca estive sozinha, pois
tenho comigo parceiros que trago para este trabalho para reunirem-se aos
novos que agora encontro.
Com essa descoberta foi deflagrado um processo transformador, onde
vivo, na interdisciplinaridade, a experiência da morte de uma identidade
fundada essencialmente num individualismo egocêntrico, para renascer
pesquisadora interdisciplinar, formada por várias consciências, um ser habitado
por muitos e diferentes aspectos, em comunhão com outros tantos múltiplos e
diversos, parceiros desta vida, mestres, professores, alunos.
O trecho abaixo retirado do livro Shiva e Dionísio: a religião da natureza
e do Eros, de Alain DANIÉLOU (1989, p. 157), me ajuda a expressar como me
sinto :
“A individualidade humana como a de todo ser é formada por um nó, um ponto onde estão ligados diversos elementos tomados da matéria universal, da consciência universal, do intelecto universal, que cercam um fragmento da alma universal indivisível, como o espaço fechado na urna que não é distinto do espaço universal. Na morte o vaso rompe-se, o nó desfaz-se e cada um dos elementos que constituem o ser humano retorna ao fundo comum, para novamente ser utilizado em outros seres.(...)
À sua fonte retornam os quinze constituintes do corpo e aos seus respectivos deuses todas as divindades dos sentidos. As ações, assim como a alma feita de inteligência, tudo se unifica com o Imortal supremo. Como os rios que correm perdem-se no mar, abandonando nomes e formas, do mesmo modo a alma iluminada, livre de seu nome e de sua forma, funde-se ao Homem universal feito de luz, que é mais alto que o mais alto. (Mundaka Upanishad, III, 2, 7-8).
Concluo esta reflexão com esta imagem do Gayatri (fig 16), que
fotografei na minha primeira viagem à Índia, no Museu de História das
Religiões de Prashanti Nilayan (O templo da paz celestial).
34
FIGURA 16 – GAYATRI (ÍNDIA 1998)
Uma metáfora visual que uso como recurso para melhor explicar e
compreender interdisciplinaridade, metáfora esta resultante do encontro da
minha identidade de artista/professora com a da pesquisadora.
O Gayatri é uma representação da Grande Mãe Universal onde se
reúnem todas as deusas femininas do panteão hindu (Lakshimi, Sarasvati,
Durga, Kali) e todos os seus atributos. É interessante notar em seus detalhes
que, ao contrário do que poderia se esperar de uma síntese visual, onde
geralmente as particularidades e individualidades são anuladas numa imagem
única, esta escultura reúne as individualidades, compondo uma unidade. Tanto
no significado como na estruturação da forma visual, encontro uma síntese
para todos os itens que explorei até aqui sobre interdisciplinaridade.
Encerro este movimento de minha pesquisa fazendo minhas as palavras
de Ednilson Aparecido Guioti :
Ao ler estas linhas espero que meu leitor lance sobre elas um olhar profundo tentando buscar a essência, um significado maior. Poderá ou não identificar-se com o que está escrito. Se esta identidade acontecer, posso começar a fazer parte de você, e assim como para escrevê-lo passei a ser muitos outros que li. (GUIOTI, 2001, p. 51) :
Convidando a todos para dançarem comigo os atos desta coreografia/escrita.
35
4 Ato I: infância
FIGURA 17 – MENINA DANÇANDO
(Capa National Geographic Magazine , v.155, n. 6, june 1979)
Protagoniza o tema deste ato uma imagem de uma menina dançando
(fig. 17) que um dia encontrei na capa de uma revista. Meu apego a esta
imagem se explica pela sensação que senti na época , de estar me olhando
num espelho.
Emoldurando essa imagem o trecho do sári que representa este período
da minha vida, que pintei sobre um fundo cor-de-rosa, que é a cor que tinge as
memórias da minha infância com amorosidade, alegria e ingenuidade. Sobre
este fundo, a origem das linhas que vão percorrer toda minha vida, a dança em
carmim, a formação escolar em verde limão e as artes plásticas em azul
marinho. Nestas linhas localizo o ponto onde começou a germinar a dançarina
e a professora de arte.
Para poder falar da minha formação de artista e professora e da dança,
como eixo dessa formação, resgato como aprendi a dançar, ou de como não
36
aprendi a dançar, iniciando a minha investigação pelo resgate de como se deu
a origem deste desejo de aprender a dançar. Identifico esse momento com o
ofício de brincar, característica base da infância.
Acredito que as crianças, independentemente do nível de consciência que tenham, aprendem a desenvolver, selecionar e organizar suas qualidades de esforço16 por meio das brincadeiras. Ao brincarem, simulam todos os tipos de ações que lembram, de maneira muito marcante,as ações reais (ataque, defesa, tocaia, ardil, vôo, medo, coragem) que terão necessidade de praticar, quando tiverem que se manter autonomamente no futuro.” (LABAN, 1978)
Concordo com Laban quando diz que nas crianças denominamos tal
atitude de brinquedo, nos indivíduos adultos, dança e representação.
Esclarecendo que, também conforme Laban, nada nos impediria de
rotular essas brincadeiras de atuação dramática, não estivessem as palavras
atuação e drama reservadas para a exibição consciente do homem, no palco,
de situações da vida. Há também uma diferença aí, no sentido de que a
representação no palco exige um expectador a quem possa o ator se dirigir, ao
passo que, ao brincarem, as crianças não têm qualquer preocupação com a
presença ou não de platéia. O brinquedo da criança, desta maneira, aproxima-
se mais da dança que da representação posto que a dança nem sempre exige
público. Se as crianças e os adultos dançam, quer dizer, se executam certas
seqüências de combinações de esforço para seu próprio prazer, não é
necessário audiência.
Na memória das minhas brincadeiras, encontro as raízes da minha
dança na descoberta da capacidade de domínio do movimento, das
possibilidades de mudar de atitudes em função das necessidades
experimentadas.
Cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva e esse ponto de vista muda conforme o lugar que aqui ocupo; e esse mesmo lugar também muda, segundo as relações que mantenho com outros meios. A sucessão de lembranças, mesmo daquelas que são mais pessoais, explica-se sempre pelas mudanças que se produzem em nossas relações com os diversos meios coletivos, isto é, em definitivo, pelas transformações desses meios, cada um tomado à parte em seu conjunto.” (HALBWACHS, 1990, p. 51)
37
Por uma questão de sobrevivência, a memória se encarrega de ativar e desativar conexões automaticamente. A informação que se mantém é a que consegue realizar o maior número de interações com o já aprendido,o que já foi estruturalmente assimilado e faz parte do acervo de conhecimentos da pessoa.” (Kenski, 1998, (Atrator Estranho), 30, p.40)
Lembrando dos quintais, das ruas, dos pátios, das quadras, dos campos,
das praias, das casas da minha infância, percebo o imenso exercício de
exploração e domínio do espaço, da discriminação entre o meu espaço pessoal
e o espaço global e o compartilhamento destes espaços com o outro.
Brincando e adequando meus movimentos aos espaços em que as
brincadeiras ocorriam, fui percebendo a minha dimensão corporal em relação
às dimensões circundantes e a seleção dos movimentos realizáveis nas
diferentes situações espaciais.
Vivendo nos quintais a aventura do contato com as árvores o exercício
de subir nelas, conhecer sua estrutura, a força de seus galhos em relação ao
meu peso, a força necessária para agarrar-me ao tronco para não cair, fui
adquirindo a percepção da força da gravidade. Por ter que encontrar a
reentrância onde apoiar os pés, moldando o corpo à arvore fui desenvolvendo
a flexibilidade. Pude descobrir o prazer de encontrar, nos galhos mais altos, os
frutos mais doces e, lá do alto apreciar a paisagem saboreando a fruta madura
do sol, assim, experimentei o sentimento de vitória.
Aprendendo a compartilhar o espaço com outros habitantes da natureza,
os insetos, e, descobrindo como vivem outras formas de vida, perseguindo as
formigas até a sua toca, disputando a fruta com as abelhas, escapando das
queimaduras das taturanas, observando os brotos, as flores, as raízes
penetrando a terra, e, aprendendo com meu pai que é preciso regá-las com a
água nos dias quentes de verão e nos períodos de seca, aprendi a acompanhar
e conhecer o ciclo vital das plantas. Descobri um mundo fantástico em que me
sentia integrada, participante, esticando-me, encolhendo, saltando, arrastando,
rolando acompanhando as formas orgânicas da natureza circundante; fui
adquirindo agilidade, flexibilidade, precisão e destreza.
16 Impulsos internos a partir dos quais se origina o movimento. O componente constituinte das diferenças
nas qualidades de esforço resulta de uma atitude interior (consciente ou inconsciente) relativas aos
seguintes fatores de movimento: Peso, Espaço, Tempo, Fluência.
38
Nos amplos espaços descobri que a locomoção pode ser mais que
apenas andar, pode-se correr, pular, saltar, girar. A experiência da força do
vigor, do fôlego, da respiração, da liberdade, das conquistas em relação ao
desafio do equilíbrio, a polaridade da queda e a recuperação, podem sintetizar
a idéia da aprendizagem de sentir-se vivo.
É muito importante a liberdade para brincar em diferentes espaços, pois
a percepção das dimensões do espaço, adicionada aos diferentes níveis de
movimento que estes proporcionam são fundamentais para a estruturação da
postura ereta e do equilíbrio.
Brincando com/em superfícies regulares, irregulares, íngremes, planas,
duras, macias, no contato da pele com os elementos, desenvolvi a percepção
do quente, do frio, do áspero, do liso, do escorregadio.
Por fim, vivendo a sensação da imersão na água, sentindo o corpo
flutuando nas ondas do mar, mergulhando e experimentando a sensação de
equilibrar-se sem a referência de uma superfície de apoio, aprendi a respeitar
uma coisa que é infinitamente mais forte que nós, o sentimento da pequenez
da dimensão humana em relação à dimensão do mundo.
A princípio fui percebendo o corpo como um todo, em sua força,
agilidade flexibilidade e equilíbrio e, depois, conforme os machucados foram
aparecendo, os joelhos ralados, os hematomas, os arranhões, as dores nas
articulações aos poucos comecei a entender como funciona o esquema
corporal, sua estrutura e seus limites. Aprendi que se engolir muita água, a
gente pode se afogar que, se correr demais, há uma dor muito forte do lado;
que não existe vida sem respiração, que a cabeça deve ser sempre protegida,
senão pode-se perder os sentidos numa batida.
Meu corpo foi, durante toda a minha infância, meu brinquedo favorito,
aquele que mais prazer proporcionou. Durante o dia, explorava suas
possibilidades ao máximo e, à noitinha, depois do banho, gostava de observar
as marcas que havia adquirido naquele dia, cuidando dos ferimentos eu
mesma, pois sabia como me tocar para não sentir dor e o ardor do merthiolate.
O mais interessante foi descobrir a capacidade de regeneração que o corpo
tem, observando os ferimentos, desde o momento em que estão sangrando,
até a formação de uma casca e, por fim, quando a casca começa a se
39
desprender e revelar a pele reconstituída por baixo, ou então, a evolução dos
hematomas e suas várias colorações, desde o roxo até o amarelo claro.
Saber identificar os diferentes tipos de dores, dos ossos, dos músculos,
da pele, dos órgãos, me trazia segurança por entender o que estava
acontecendo comigo. Da mesma forma, o conhecimento da duração da dor e o
tempo necessário para regeneração daquela parte machucada ensinaram-me o
que eu poderia fazer, ou não, enquanto estivesse em recuperação; aprendi a
mover-me com cuidado.
Percebi que quanto mais concentração e domínio das ações conseguia,
desenvolvia mais liberdade e segurança para brincar e satisfazer minha
imaginação, sem me machucar.
O pior castigo era não poder brincar e por isso, devia me cuidar para não
me machucar demais. Devia respeitar os limites, na medida do possível, e
enfrentar com resignação os períodos de repouso impostos pelas doenças da
infância, como o sarampo, a catapora, que eram situações sobre as quais eu
não tinha o menor controle e que me faziam perceber o quanto ainda dependia
dos adultos para me cuidar.
Enfim, nas brincadeiras, pude experimentar experiências de uma riqueza
de movimentos e sensações que por serem vividas intensamente, ficaram
impregnadas em mim e formaram um alicerce para minha maneira de ser e
estar no mundo.
As brincadeiras de rua, de roda, de casinha, de boneca, aquelas em que
fazia parte a "massinha", o desenho, as brincadeiras de subir em árvores, as
de misturar barro no quintal, patinar, andar de bicicleta, pular corda,
amarelinha, despertaram em mim a essência do meu dançar.
Nessas brincadeiras também aprendi a me relacionar e a entrar em
contato com as minhas emoções.
Sentia um desejo constante de aprender, de experimentar novas
emoções, novos desafios pelo prazer da superação.
Na infância ainda não existe o medo do impulso de sair correndo e
perder-se, porque o aprendizado de se perder-se é achar-se. Quem nunca se
perdeu num bosque quando era criança nunca vai saber o que se passa para
se achar o caminho de volta. Imagino que quase todo mundo tem uma história
de perder-se na infância, para contar. Uma grande aventura! Aprendi a arriscar-
40
me, a ousar e, aos poucos fui aprendendo, também, a dosar meus impulsos,
quase a ponto de não reprimi-los.
Enquanto estava brincando sozinha, tudo era muito fácil; eu no meu
mundo particular, criava minhas próprias regras, seguindo meus desejos,
inquietações, curiosidades e fantasias, exercitando o outro aspecto de me
aventurar, a aventura da imaginação.
Nas brincadeiras sociais, experimentei novos desafios, nas brincadeiras
de roda as meninas mais velhas ensinavam as cantigas e coreografias que,
depois de aprendidas após várias repetições e erros, proporcionavam o
enorme prazer de pertencer e estar em sintonia com um grupo, num processo
que envolve também uma identificação cultural.
As rodas, as amarelinhas e as cordas abriram para mim um universo de
movimentos mais sofisticados, como o saltar numa perna só, saltar e girar ao
mesmo tempo, controlar a distância dos saltos, o equilíbrio numa perna só, o
skip (saltitar), o galope, o agachar, o congelamento da ação. Crianças
ensinando crianças.
Há um tipo muito especial de brincadeira, que chamo de brincadeiras
dramatizadas, em que faz parte também a representação, nos momentos em
que se tem que ir ao centro da roda recitar versos ou pagar uma prenda.
Outras exigiam também variações de ritmos e velocidades conforme a história;
com essas brincadeiras aprendi a conquistar meu espaço no grupo.
E havia as brincadeiras de rua em que participavam as meninas e os
meninos, em que se percebia, em primeiro lugar, a supremacia física dos
meninos sobre as meninas; os meninos sempre mais fortes e velozes eram um
constante desafio; com eles aprendi a força, o impulso e a explosão no
movimento. Além dessas, uma das coisas mais importantes das brincadeiras
de pegar foi aprender a “dar bailinho” no pegador, o que significa driblar o
oponente com jogos do corpo, como forma de superar a falta de velocidade, de
desenvolver os reflexos e liberar os instintos. Aprendi com isso a observar a
perceber o outro pelos movimentos e reações.
Brincar era também um exercício intenso de decorar, entender e
dominar regras, regras e mais regras, sem contar as novas que eram criadas
durante a brincadeira, cada uma com seu conjunto próprio de condições e que,
ao mesmo tempo, variavam de grupo para grupo, de acordo com a cultura
41
local e cuja compreensão dependia a possibilidade de participar das atividades
de que tanto gostava.
Nessas brincadeiras sociais, além dos movimentos, tantas coisas foram
aprendidas, como o convívio com as diferenças, a lealdade, a derrota e a
vitória, os confrontos, as comemorações, o espaço do outro e o meu espaço no
espaço do grupo, quantas amizades nasceram e quantas foram desfeitas... o
amor e o desamor pelo meu semelhante... quantas descobertas...
O desafio do movimento e suas diversas modalidades, a habilidade de
improvisar diante do inesperado, o contato com os sentimentos, abriu novas
possibilidades de expressão para meu espírito inquieto, num corpo em
crescimento, cheio de vida e temperamento.
Por fim as brincadeiras dramatizadas, mais calmas... as casinhas, as
bonecas, as comidinhas, a escolinha, as artes permitiram-me a descoberta e o
exercício da capacidade de criar.
O momento de aquietar-se para pensar na vida, para exercitar o
aprendizado e simbolizar as experiências vividas constitui-se num momento
solitário de profunda introspecção e luta interior em busca da tradução perfeita
das imagens que emergiam do meu interior, na tentativa de materializar uma
idéia que surge como resposta a um problema existencial.
A expressão de uma verdade interior como resposta a uma pergunta
levou-me aos primeiros contatos com o não saber.
Era um momento de estar comigo mesma, de pensar na vida, de me
acalmar dos aborrecimentos e tristezas, de elaborar meus projetos, de fazer
planos, de estar com meus irmãos e meus amigos mais queridos numa
situação menos agitada.
Mais uma vez, crianças ensinando crianças.
Momentos em que nos ensinávamos uns aos outros uma série de
“novidades” que havíamos aprendido. Cada um ensinava as suas melhores
habilidades aos outros, como desenhar, modelar, pintar, rodar pião, jogar
bolinha de gude, bater figurinhas, jogar saquinhos, contar e representar
estórias e, assim aprendendo a trabalhar em grupo, aprendíamos a
cumplicidade e o companheirismo.
42
Nessas brincadeiras exercitava-se a possibilidade de refletir sobre a vida
e as relações da família, da escola, enfim as relações humanas aconteciam,
através do jogo teatral.
O jogo teatral permitia a elaboração simbólica dos papéis da mãe, do
pai, da professora, assim como a aprender a lidar melhor com as questões que
me eram difíceis de compreender, como o medo do escuro o medo da bruxa, o
medo dos pesadelos, enfim, o medo do desconhecido! Aprendi que esse tipo
de medo estava relacionado com a percepção de uma coisa que apenas se
sente, que está presente mas a gente não consegue ver.
Brincar, jogar, dramatizar, enfim, poder, numa situação de tensão,
escolher o final da história e ainda que se soubesse que o perigo naquela
situação era passageiro, podia-se contar com uma frase salvadora: Não
quero mais brincar disso! Esse é o exercício de arriscar-se e salvar-se, da
coragem e do recuo.
Descobri também que um desenho sempre pode ser refeito, até que se
consiga uma versão satisfatória. Com isso pude aprender com o erro, sem ficar
paralisada. Essa descoberta foi fundamental para que o repetir, o refazer, o
recontar, o errar e o recomeçar em busca do acerto fizessem parte da minha
vida, até hoje.
Lembro que era capaz de passar dias inteiros brincando no espaço
fantástico que havia criado, no mundo do faz-de-conta onde tudo é possível,
representando personagens, construindo espaços com panos e brinquedos e o
que mais pudesse conseguir na casa para os empreendimentos arquitetônicos
das casas, castelos e cabanas em que os objetos mudavam de função e eram
ressignificados em razão do tema da brincadeira. Não posso esquecer os
figurinos, as roupas da mamãe retiradas às escondidas do guarda roupa para
vestir os mais variados personagens, as bonecas e seu teatro e os brinquedos
todos.
Creio que, por conta de tantas brincadeiras de casinha, por conta dos
quintais que me trazem a lembrança de momentos de muita felicidade, vivi os
simples divertimentos de criança, com a intensidade de grandes projetos de
vida e me projetei mãe, bailarina, nadadora, artista plástica, e tantos
personagens mais. E com isso pensei, precisei elaborar sentimentos, viver
sensações, imaginar, criar, me expressar. Aprendi a extravasar todo um
43
universo que inundava o meu interior. Lidei com um sentimento de não caber
em mim que a felicidade provocava, com uma necessidade de dizer, de trocar,
de comunicar, de sensibilizar o outro, de conhecer o igual e o diferente de
entender o trânsito entre eles no binômio guerra e paz... presente nas relações
humanas desde a mais tenra infância...
Desde quando posso lembrar-me tenho o hábito de olhar para dentro e
procurar quem sou, como sou e, a cada etapa da vida, encontro sempre um ser
que mudou, um ser sempre mutante.
Também, por uma razão inexplicável, sei que meu ser mudou porque
aprendeu.
Se há um lado tangível nesta busca é a consciência e a concretude das
coisas aprendidas na escola e na vida, ou na escola da vida.
Revisitando essa minha escrita da minha infância posso concluir que as
brincadeiras me ensinaram que a vida é mais que comer, dormir, tomar banho,
escovar os dentes, limpar as unhas e as orelhas, ir à escola.
Identifico nos grandes quintais com pomar, que trazem a lembrança de
saltos, giros, gritos de prazer sob o sol da manhã, do repouso no alto da
pitangueira, das tardes encolhidas numa cabana de cobertores na cama
beliche brincando de navio, esperando a chuva passar, o espaço onde
começou a nascer a bailarina.
Ainda vive em mim uma criança apaixonada pela vida por seu esplendor,
pela paixão pelo movimento e que adora ser feliz e dançar!
Que sabe que os melhores momentos da vida são aqueles usados para
conhecer-se, que a vida é um eterno descobrir-se, e que é preciso aprender a
ser independente para poder ter suas próprias idéias.
Aos poucos, ao apossar-me das minhas lembranças da infância e ao
cristalizá-las na minha escrita, pude entender que realizei o contínuo exercício
de descobrir o caminho do meio para conectar-me ao meu centro, meu núcleo,
meu interior e que ganhei, com o relato, a consciência de um tempo vivido.
É esta infância sempre viva aqui dentro que me faz bailarina pois,
quando dos brinquedos a vida se despiu, restaram todos os movimentos
impressos no corpo. A herança deste momento de vida então se torna
repertório, experiência de coisa vivida, um saber.
44
Sinto hoje que é, neste trânsito, que ocorre a interdisciplinaridade, sobre
a corda bamba da alteridade um eco dos anos 70. Afinal, identifiquei no meu
jeito de ser criança um dos aspectos importantes da interdisciplinaridade – as
fronteiras. Pelo teatro, saí do real e fui para a fantasia, treinando um olhar e um
ouvido sensíveis aos personagens e pela dança, refinei gestos e movimentos
até ficar em dúvida, danço eu ou a vida baila comigo?
Quem sabe encontro outras pistas na adolescência?
5 Ato II: adolescência
FIGURA 18 - NATALIA MAKAROVA
Para dançar este ato trago o primeiro modelo de bailarina que conheci, a
bailarina clássica 17 (fig. 18) com suas sapatilhas de ponta. A sua imagem
diáfana, mágica, que me abriu as portas para o mundo da dança, sobrepõe
duas lâminas da pintura, na linha divisória entre a infância/adolescência e
projeta-se sobre o início a vida adulta, tentando retratar, desta forma, o período
em que foi primeiramente modelo a ser atingido, depois como um modelo a ser
17 Natalia Makarova, bailarina clássica russa , em O lago dos Cisnes (coreografia de Petipa e música de Tchaikovsky)
que utilizo aqui para ilustrar o modelo de bailarina que tinha em mente ao iniciar as aulas de balé clássico.
45
negado e, por fim, como um modelo que se tornou referência nas minhas
reflexões. Identifica o momento em que aprendi que para ser uma dançarina e
que para poder ensinar é preciso pensar a dança, não apenas dançar.
Lembro-me que, na adolescência, os brinquedos foram desaparecendo
e o ensino formal tomando esse lugar. A escola consumia metade do dia, e a
outra metade, as aulas de natação, inglês, balé, pintura, desenho, datilografia,
enfim, as aulas daquilo que a escola não ensinava e que os valores familiares
consideravam importantes para minha formação.
O ensinamento desta estratégia de meus pais foi o de que a escola não
dá conta de ensinar tudo o que é preciso saber.
Outro dia, conversando com minha mãe sobre isso, perguntei o porquê
deste procedimento e ela na sua maneira simples, objetiva e autêntica,
serenamente foi me explicando seus motivos:
“ Oras, por que eu e seu pai nos preocupávamos em estimular as aptidões artísticas que percebemos em você e seus irmãos, vocês viviam sempre desenhando, sempre envolvidos nas modelagens com massinha que achamos importante proporcionar essa formação a vocês. Também porque, apesar de sabermos que Educação Artística fazia parte do currículo escolar, consideramos que, numa sala de aula havia muita gente para o professor atender e num curso de artes, vocês poderiam ter um atendimento melhor. Assim foi com todas as coisas que os estimulamos a fazer, já que consideramos nos terem sido muito úteis na vida e quisemos que vocês também tivessem as mesmas oportunidades que nós, como a natação, a datilografia, o inglês, corte e costura, etc...”
Esta fala de minha mãe me fez recordar certos princípios sobre
educação que faziam parte de nossa família.
Educação, para meus pais, tinha a função de nos preparar para a vida,
para a imprevisibilidade nela contida. Acreditavam numa educação voltada
para o ser, não para o ter.
Sempre ouvi de meus pais que o importante era ser reconhecido e
admirado pelo que se é e não pelo que se tem.
Sendo assim concluo que essa preparação para a vida segundo a
interpretação deles, “ser alguém” não significava, ser bem sucedido numa
profissão ou bem sucedido financeiramente, significava antes, de qualquer
coisa, ser feliz e realizado enquanto pessoa, enquanto ser humano. Concluo
estar implícita aí a idéia de totalidade, no momento em que havia neles a
preocupação com o desenvolvimento de todas as nossas potencialidades.
Estavam sempre lendo, atualizando-se sobre psicologia e educação e,
às vezes, até nos irritavam com certos psicologismos e análises, que
46
recebíamos como sermões infindáveis a nosso respeito, mas creio que a tônica
maior, que sempre funcionou melhor, esteve naquilo que faziam intuitivamente.
Meus pais nunca interferiram nas nossas escolhas profissionais; houve
sempre, por parte deles um acolhimento incondicional de nossas escolhas e,
mais que isso, uma aceitação de cada um de nós, como somos. Hoje traduzo
estas atitudes de meus pais como a opção por uma educação fundada no amor
e nos valores humanos.
Esse modelo de educação, tão arraigado em mim, faz parte do que sou,
e acredito estar presente e atuante na base da minha concepção de educação,
influenciando cotidianamente minha prática, orientando minhas escolhas
pedagógicas.
Retomando a trajetória, na escola aprendi uma infinidade de coisas que
esclareceram muitas indagações surgidas ainda na infância.
Criada numa cidade do interior, Mogi das Cruzes, naquela época
meados dos anos 60 e início dos anos 70, longe da capital, sem muitas opções
e pouco contato com os grandes centros, mesmo assim tive acesso a coisas
que definitivamente influenciaram minha formação.
Estudei num bom colégio do Estado o Instituto de Educação Dr.
Washington Luís que, na época, era a melhor opção, um colégio com uma
proposta de ensino “moderna”, um projeto de ensino pluricurricular. O ginásio
pluricurricular foi uma alternativa oferecida a alguns alunos da escola e
funcionava paralelamente ao ginásio normal. Era uma proposta de ensino
estruturado, integrando as diferentes matérias em um tema comum. Por
exemplo, no primeiro ano, o tema era a cidade em que morávamos, tema que
foi desenvolvido por todos os professores de todas as disciplinas. Um modelo
que atualmente vejo sendo aplicado nas escolas como projeto interdisciplinar
quando, na verdade, é um modelo de integração de disciplinas apenas como
retrata Regina BOCHNIAK (1998), conforme destaco a seguir:
A escola compõe seus currículos como um amontoado de disciplinas uma ”colcha de retalhos”, como se cada uma delas fosse estanque. Admite então, por exemplo, como solução para a prática da interdisciplinaridade, a junção de assuntos de história com os de geografia, na área denominada estudos sociais, e orienta seus professores a abordar os conteúdos próprios de cada ciência com mais superficialidade, desde que sejam integrados no tempo, num momento, ou até mesmo numa mesma aula. Acata as mais absurdas idéias de
47
relações de afinidade; num problema de matemática, por exemplo aceita que com mera referência ao número de ossos do corpo humano se esteja desenvolvendo a atitude interdisciplinar na escola. Por inacreditável que possa parecer, à época da implantação da Lei n. 5.692/71, até mesmo organismos oficiais do sistema educacional sugeriram esse tipo de expediente aos professores, como forma de colocar a interdisciplinaridade em prática. E isso sem considerar o caso da escola confessional que, para desenvolver seu “Projeto Intercisciplinar”, valia-se de expedientes de integração entre matemática e religião, como o de propor problemas que iniciavam por: “Jesus foi à feira e comprou...”.
Apesar de ser um modelo equivocado de interdisciplinaridade este
ginásio teve uma grande influência na minha maneira de pensar e olhar o
mundo, relacionando as coisas ao meu redor, sempre procurando entender-
lhes o todo e as partes.
Da escola primária trazia para o ginásio a forte lembrança da
emocionante aventura de aprender a ler e escrever a minha língua... um
momento inesquecível... mágico, em que todo um novo mundo se abria para
mim, pelo simples fato de ser capaz de reconhecer as letras e saber associá-
las em sílabas e palavras. As figuras dos livros que costumava folhear
passaram a ter uma história, uma explicação, tornei-me uma leitora voraz, e
tive muita sorte porque havia na minha casa uma farta biblioteca com muitos
autores e assuntos diferentes.
Meus pais, ao perceberem meu interesse, me auxiliavam nas escolhas e
passaram a comprar coleções em fascículos com os meus assuntos favoritos;
já naquele tempo a história da arte ocupava o primeiro lugar nas minhas
preferências. Também, estimulada por minha madrinha, que morava no Rio de
Janeiro passei a escrever cartas e poesias, que ilustrava com desenhos
coloridos a exemplo do que via nos livros.
Depois, no ginásio, descobri que há muitos idiomas diferentes no mundo
e, um pouco mais tarde, que há diferentes formas de conhecer o mundo e o ser
humano.
Da escola fiquei com o bom português, uma péssima matemática, o
gosto pela literatura, o fascínio pela atomística, ódio pela química, simpatia
pela biologia, a visão do mundo através de mapas da geografia, e a decisão de
tomar a Arte como profissão. Na escola fiquei sabendo que era artista num
sentido ainda muito vago. E ao lado da arte, a matéria que também me
instigava e fazia pensar era a história. Como era possível tanta instabilidade na
48
linha do tempo? Por que os que vinham depois não aproveitavam o que os
anteriores haviam feito?
Por que os deuses mudavam tanto? E tantas coisas eram feitas em
nome dos deuses todos.
Tenho passado a vida inteira tentando desvendar as inúmeras perguntas
que os meus professores de história não consideravam pertinentes, e que hoje
me colocam ainda aqui tentando decifrá-las.
Foi na escola que descobri que se o meu corpo se regenerava das
doenças e machucados é porque sou um organismo vivo, por que o sangue
tem substâncias coagulantes que promovem a cicatrização. Que há no meu
organismo um sistema imunológico que me protege dos microorganismos.
Todo o universo que há no corpo humano, os ossos, músculos,
ligamentos, articulações que eu aprendi nas aulas de ciências, e nas de
educação física, podia aprender nas aulas de arte olhando, maravilhada, para
os estudos de anatomia dos artistas do Renascimento. Identifico nesse meu
exercício de estabelecer essas relações entre as disciplinas, um momento
preparatório para que eu aprendesse a transitar nas regiões fronteiriças do
conhecimento, em que o “eu convive com o “outro”, nas quais os limites não
estão muito definidos, e portanto, tornam-se espaços propícios para as
transgressões. São intersecções que podem possibilitar troca, encontro,
diálogo e, conseqüentemente, transformação e a construção de um novo
conhecimento” (FURLANETTO, 2000). De certa forma, reside aí um ainda
insipiente mas real indício da elaboração de uma atitude interdisciplinar em
relação ao conhecimento.
Na época do colegial, descobri que há muitas áreas do conhecimento
especializadas e organizadas que se dedicam a estudar todas aquelas
questões que eu havia intuído na infância. E que, assim como eu, muitas
pessoas no mundo estavam dedicadas a entender a vida e o planeta em que
vivemos.
E, por fim, que todo o conhecimento e toda arte estão organizados em
linguagens.
O que concluí sobre linguagem é que, ao longo da sua evolução o ser
humano vem desenvolvendo formas de comunicação em muitos níveis
diferentes, ou seja, em todos os níveis em que é capaz de produzir
49
conhecimento a respeito de si e do mundo. Desde cedo o homem percebeu a
importância de transmitir os conhecimentos e trocar com o outro as suas
experiências existenciais, também em todos os níveis em que percebe e se
conecta com a vida, seja no nível cognitivo, no emocional, no sensorial, no
espiritual, enfim, em todas as dimensões da vida.
A linguagem das palavras faladas e escritas dá conta de comunicar e
expressar muitas dimensões pois foram desenvolvidas muitas formas de textos
diferentes, com inúmeras possibilidades de construção. Mas, há momentos em
que se torna difícil dizer o que chamamos de indizível, falar sobre o insondável,
sobre o inexorável, estar diante do desafio de representar as experiências que
se passam no nível da intuição, da percepção e do instinto. E nestas
circunstâncias há que se recorrer a linguagens não verbais. Por conta de que a
natureza de cada experiência determina uma forma de expressão específica,
há, então, a elaboração das linguagens visuais, sonoras, dos movimentos e
gestos que também passam por um processo de elaboração, estruturação e
codificação, assim como as linguagens verbais.
Essa é uma questão muito importante já que posso perceber que na
infância predomina o movimento de aprender e desenvolver a percepção e, na
adolescência, o movimento de aperfeiçoar a comunicação e a expressão.
Assim como na alfabetização da língua escrita, há todo um processo de
aprender os códigos das linguagens não verbais para atingir a expressão e
comunicação. E esse aprendizado implica muito exercício, e o desenvolvimento
da observação e da concentração.
Também identifico nesta fase um trabalho de apropriação e
aperfeiçoamento das habilidades aprendidas na infância.
É por isso que denomino essa fase como a fase do aprendizado do
domínio da forma, a princípio usando como apoio modelos, para, depois,
aprender a se soltar e criar a suas próprias formas.
Aprender a discriminar o que está sentindo, pensando, conhecer sua
realidade, simbologia e significado para poder se fazer entender em todas as
situações.
Aprender a decifrar e construir metáforas. Nessa fase já se podem
experimentar exercícios de abstração em relação à lógica, diferentemente da
infância, quando a imaginação era predominante. Movimentos de comparação ,
50
analogia, análise e crítica tornam-se possíveis e são matéria prima para o
trabalho de criação.
Vejo, hoje, que foi na adolescência que adquiri as ferramentas
necessárias para essa autonomia da construção do conhecimento.
Dos aprendizados daqueles tempos, quero destacar os que foram
significativos para minha formação de artista:
Nas artes plásticas, encontrei o mundo das imagens, e sua relatividade,
a relação forma/conteúdo.
Nos livros e na sala de aula, conheci artistas plásticos, pessoas que
vêem o mundo sob uma outra ótica.
Aprendi a pensar e expressar imagens através do desenho, da pintura e
da modelagem.
No teatro, aprendi a humildade e a generosidade, o mundo das relações,
de você com você, de você com o outro. Aprender a ouvir, esperar a minha
vez, a não esperar de você e do outro aquilo que não pode dar.
Comecei a aprender a viver, a materializar pensamentos em ações,
imagens em cenas, minhas e dos outros, interpretar. Enfim, aprendi a pensar e
expressar, idéias e compreender a força das palavras e dos gestos.
Na dança a paz, os momentos em que tudo fazia sentido, o belo...
experimentei, pela primeira vez, o sabor da minha alma, um gosto de liberdade
do espírito, a vertiginosa sensação de voar por um espaço sem começo e sem
fim. Aprendi a pensar movimentos e expressar sentimentos e sensações.
Fiquei sabendo que o ser humano pode mudar. Que os desafios da
linguagem e da expressão provocam mudanças alquímicas dentro de nós.
Que se pode aprender a lidar com sua própria natureza, como se molda
um bonsai.
Para exemplificar o aprendizado de uma linguagem não verbal escolhi a
minha experiência em dança que relato a seguir.
Como já disse anteriormente, quando fiz oito anos tive meu primeiro
contato com a dança formalizada como linguagem, e encontrei aí a
substituição para o brincar. Abriu-se um caminho para que, mais tarde,
encontrasse uma nova possibilidade para o brincar, "brincar com o corpo", com
os movimentos, não com a mesma liberdade, mas com o mesmo grau de
51
prazer e seriedade, pois tudo era novo, tudo estava por ser conhecido e
reconhecido.
O desafio de aprender balé clássico, mais correto dizer, a técnica
clássica: difícil encontro com uma coisa difícil.
Quem diria que aquela menina agitada, impulsiva, criativa, alegre,
vibrante, principalmente rebelde e cheia de ilusões iria se ver à voltas com uma
situação tão desafiadora como a de aprender balé.
Sim porque, na minha imaginação, dançar balé era um sonho delicado.
Quando soube que iria aprender fiquei nas nuvens por alguns dias antes que a
realidade se abatesse sobre mim.
Neste relato pretendo realçar, em primeiro lugar, quanto ao que se
aprende com as peripécias da vida.
E depois, o que fazer quando as coisas não ocorrem do jeito que você
havia imaginado.
Tinha em mente o símbolo da bailarina, aquela imagem que apresento
no início deste capítulo, aquela figura diáfana de um ser quase irreal que
assistia pela televisão.
O encontro com o "belo insustentável" que Acássio Vallin discute no livro
Fome de Cão, cujo teor tentarei ilustrar aqui por meio deste relato.
Digo isso porque passado o choque inicial reconheço nas palavras deste
amigo dançarino, o retrato fiel do que é esta experiência na vida de uma
menina.
Tivemos a oportunidade de conversar a esse respeito durante o período
em que dividimos a cadeira de História da Dança na Escola de Bailados onde
Acássio também era o diretor e implementou significativas mudanças no
currículo de formação de bailarinas, com a intenção de ampliar os
conhecimentos e de atualizar a metodologia de ensino da dança clássica que,
surpreendentemente, ainda nos dias de hoje acontece de maneira muito
parecida com a que vivenciei anos atrás que reproduz, ainda, os moldes
criados na corte do Rei Sol Luís XIV.
O que quero dizer é que, para uma menina, isso significa, entrar em
contato com uma técnica sistematizada por uma estética aristocrática, com
52
movimentos rigorosamente codificados, com leis e regras de beleza que
impõem ao artista, disciplina rígida, dedicação exclusiva e construção de um
corpo quase artificial que rompe inclusive com a anatomia humana,
deformando ossos e músculos, por vezes provocando seqüelas irremediáveis
em idade mais avançada. Uma arte belíssima que, ao longo de cinco séculos,
desenvolveu uma técnica corporal, sofisticada e admirável, incorporando todos
os avanços tecnológicos através dos tempos, tornando-se referência
fundamental para toda a história da dança desde seu surgimento. Uma arte
que implica um árduo aprendizado em que disciplina, rigor, sacrifício e
determinação são condições imprescindíveis.
Fui matriculada nas aulas, não para aprender a dançar, mas para
emagrecer. Um físico adequado é pré-requisito para ser bailarina. Já comecei
sabendo que, para conseguir um bom papel no espetáculo de fim de ano, teria
que fazer um milagre.
Aos oito anos de idade, a idéia de incorporar o símbolo da bailarina me
fez decidir pelo milagre.
Estudar balé, para mim, tornou-se uma atividade apaixonante e
desafiadora, o ritual das aulas, a recriação das cortes do século XVI, a etiqueta
para o comportamento, a preocupação do corpo sempre colocado, gestos
estudados, sorrisos estudados meticulosamente, repetidos, corrigidos, limpos
constantemente.
E os movimentos!
Lindos, precisos, complexos, exigem agilidade, força, precisão,
coordenação, equilíbrio, musicalidade, atitude, postura, flexibilidade, controle,
fôlego e força.
Decididamente vestia o uniforme para a aula: por baixo da meia calça
cor-de-rosa, uma calça plástica também cor-de-rosa para me fazer transpirar
nas partes que precisavam diminuir peso, sobre as duas um colant preto, uma
sapatilha preta, muito gumex nos cabelos lisos para segurar o coque, e para
finalizar um cinto de elástico apertado para marcar a cintura, uma pulseira no
pulso direito para ajudar na lateralidade canhota, e lá ia eu, feliz, para a aula,
parecendo uma extraterrestre, suar muito mais que as outras, carregar muito
mais peso que as outras, fazer muito mais força que as outras e disputar com
elas, em condição desigual, um bom papel nas coreografias pois, para mim,
53
isto significava poder dançar mais tempo, posto que quem não tinha papel
ficava eternamente na barra fazendo exercícios que, na minha compreensão
de criança, nunca eram usados para coisa nenhuma.
Tinha, a meu favor, força e flexibilidade adquiridas na natação e nas
brincadeiras todas da infância, musicalidade instintiva e uma capacidade de
observação aguçada pelas aulas de pintura que me ajudava muito na
compreensão dos movimentos.
A despeito da aridez, crueldade, autoritarismo do ensino da técnica
clássica, tenho adoração pelos movimentos que ficaram gravados na memória
de meu corpo, pelas coreografias que dancei, e que muitos anos mais tarde
como professora de História da Dança na Escola Municipal de Bailado, pude
reencontrar com este mesmo sentimento nos olhos de minhas jovens e
determinadas alunas bailarinas.
Se minha mãe soubesse o que sei hoje, jamais teria feito isto comigo, foi
uma experiência dolorosa que abalou bastante minha auto-estima.
Mas, por contraditório que pareça, hoje agradeço a ela pela decisão
tomada, pois tornou-se um grande instrumento, um conhecimento fundamental
para a compreensão da evolução da dança e, mais ainda, muito além do que
se possa imaginar, despertou esta paixão que me coloca aqui, até hoje,
mergulhada neste mundo maravilhoso em busca da harmonia entre o corpo e a
alma.
Mas quem sabe se eu não tivesse continuado a estudar dança, hoje, na
minha memória, o balé clássico constasse apenas como o registro de uma
técnica de emagrecimento.
Porém, como me tornei estudiosa da arte e pude integrar esta
experiência, avalio que aprendi uma técnica valiosa que me serviu toda a vida
e que, mais tarde, ao estudar a coreologia de LABAN (1978), pude identificar
com facilidade em detalhes, cada um dos elementos relativos ao uso do
espaço, aos fatores do movimento e às dinâmicas de movimento e tudo o mais.
No meu trabalho prático, além de desenvolver a concentração, isso me
ajudou a identificar e utilizar os elementos da linguagem como o desenho do
movimento no espaço, as formas que este assume, suas direções e tensões
dinâmicas, o que me tornou capaz de colocar uma intenção no trabalho
expressivo. Compreendi os mecanismos necessários para aliar uma técnica
54
corporal a uma intenção expressiva. Outra coisa que aprendi foi, interpretar as
idéias de um coreógrafo, traduzi-las em movimentos e, fazer a metamorfose18,
tornar-me o personagem.
O tempo foi passando, dancei, emagreci, aprendi muita música clássica
e cheguei à adolescência assim.
Hoje em dia não consigo conceber o ensino da dança em que a teoria
esteja dissociada da prática pois a prática desprovida da teoria corre o risco de
tornar-se adestramento, como no caso do balé clássico ou, então, livre
expressão, ou criação aleatória, desprovida de intenção como no caso da
expressão corporal.
Numa cidade de interior, os professores vêm e vão, tornando o
aprendizado uma experiência sempre interrompida pelas circunstâncias. As
limitações financeiras familiares também contribuíram para que meu
aprendizado em dança não tivesse a continuidade que era necessária ou que
eu desejava. Assim, logo que D. Clara casou e parou de dar aulas na cidade,
passei a estudar dança em cursos curtos sempre que podia, fazendo umas
aulas ali, outras acolá, na medida em que as mensalidades coubessem no
orçamento familiar ou que fosse oferecida alguma coisa gratuita.
Foi esta instabilidade que me proporcionou entrar em contato com outras
linguagens do conjunto das artes cênicas, teatro, expressão corporal e dança
moderna, o yoga .
Quando cheguei ao ginásio, começaram as aulas de Educação Física e
nesta época passamos a ter altas doses de expressão corporal. Acho que era
“moda”, porque, na quadra de esportes, em vez de jogar, dançávamos, foi uma
sorte porque eu não era boa de esportes, detestava competir e expressão
corporal era minha matéria favorita. Eu ia bem, tinha facilidade e a experiência
do clássico, acrescida da liberdade de criar minhas próprias coreografias.
A expressão corporal teve uma importância imensa pois resgatou para
mim a magia e a liberdade da dança. Foi nessas aulas que comecei,
18 “ No jogo dramático espontâneo o atuante é a fonte de expressão, fazendo o jogo do autor-ator,
portanto a metamorfose - fenômeno básico deste jogo - aparecerá como resposta genuína do atuante
interessado em transformar-se num outro, o que significa ampliar seu universo de comunicação,
capacidade de expressão e criatividade. A metamorfose é o momento em que o indivíduo ultrapassa a si
mesmo para elaborar a circunstância e a personalidade de um outro que independe da determinação de
sua vontade ideal, interesse e características pessoais, físicas, éticas, morais, econômocas e políticas.”
(LOPES, 1981)
55
novamente, a experimentar movimentos livres, a escolher meus próprios temas
e elaborar meus roteiros. Mas, principalmente, aprendi o significado da técnica
no trabalho de criação uma vez que não teria a mesma desenvoltura se já não
tivesse um repertório amplo de movimentos e uma técnica minimamente
corporal desenvolvida.
Já neste tempo, a técnica clássica era uma realidade no meu corpo mas
não me tiranizava como antes; servia como suporte para que tivesse clareza e
estilo e, principalmente, descobri que a técnica podia suportar outros passos e
movimentos que não pertenciam ao repertório clássico. A técnica deixou de ser
um molde para se tornar um recurso.
Outro aprendizado que trago dessa época é o da técnica da
improvisação19, tanto no teatro, lidando com situações-problema colocadas
pelo diretor, como na dança ao explorar os movimentos sugeridos por um
tema, fosse ele musical, emocional ou cotidiano.
Descobri nos exercícios de improvisação que a relação com a música
não precisa ter a rigidez dos compassos contados como no balé, há inúmeras
possibilidades de um dançarino se relacionar com ela.
É possível dançar as emoções que a música desperta, percebendo as
tensões, os acentos dramáticos que trazem equivalentes de movimento como a
leveza, o peso, a velocidade.
É possível dançar a favor do ritmo ou contra ele.
É possível criar relações entre o não movimento e as pausas da música.
É possível dançar músicas instrumentais e músicas cantadas, músicas
de diferentes culturas, não é obrigatório apenas dançar os clássicos.
Não é preciso obedecer as contagens se se conhece e estuda a música
em seus mínimos detalhes.
É possível dançar no silêncio, ou dançar os ritmos internos; é possível
dançar sem o acompanhamento da música.
19 Viola SPOLIN (1982, p. 341) em Improvisação para o Teatro define improvisação como – “Jogar um jogo;
predispor-se a solucionar um problema sem qualquer preconceito quanto à maneira de solucioná-lo; permitir que tudo
no ambiente (animado ou inanimado) trabalhe para você na solução do problema; não é a cena, é o caminho para a
cena; uma função predominante do intuitivo; entrar no jogo traz para as pessoas de qualquer tipo a oportunidade de
aprender teatro; é “tocar de ouvido”; é processo, em oposição a resultado; nada de invenção ou originalidade” ou
idealização”; uma forma, quando entendida, possível para qualquer grupo de qualquer idade; colocar um objeto em
movimento entre jogadores como um jogo; solução de problemas em conjunto; habilidade para permitir que o
problema de atuação emerja da cena; um momento nas vidas das pessoas sem que seja necessário um enredo ou
estória para a comunicação; uma forma de arte; transformação; produz detalhes e relações como um todo orgânico;
processo vivo.
56
Em resumo, concebi uma maneira de dançar com a música, dançar a
música, ter a música como partner e dialogar com ela e não mais ser sua
escrava para, assim, poder libertar minha expressividade, minhas emoções
enquanto danço.
Para essas descobertas que fiz empiricamente, encontrei uma
confirmação teórica anos mais tarde ao estudar história da dança moderna.
Entre os criadores da dança moderna, a dançarina alemã Mary Wigman, aluna
e assistente de Rudolf Laban, entre outras inovações que trouxe para a dança
foi o fato de ela considerar que os ritmos de uma dança não deviam ser ditados
por uma norma exterior pré-estabelecida, mas pela emoção e pela necessidade
interior do artista, e que a dança não era uma composição mais ou menos
elaborada de movimentos já codificados, mas que estes movimentos e formas
deviam ter origem nos gestos cotidianos do homem, no seu trabalho, ou nas
suas paixões, nos seus temores ou nas suas cóleras.
Esta concepção do movimento implicava, por sua vez, uma atitude nova
no que diz respeito às relações entre a dança e a música. Da mesma forma
esta dança não podia fluir num molde musical pré-existente. Mary Wigman
chegava a dançar sem música alguma, sendo o ritmo do movimento marcado
apenas pela percussão de seus pés descalços no chão.
“John Martin, em seu livro The modern dance inclui esta concepção de Wigman como um dos quatro modos de o bailarino moderno estabelecer uma relação com a música, sendo os demais a interpretação, a transposição, e o contraponto.” (MARTIN apud GARAUDY, 1980, p.107).
Influenciada pelas tendências estéticas dos anos 70, participei de
apresentações, criei coreografias, happenings, pintei e bordei.
Foi também nesse período que comecei a praticar uma atividade secreta
nas horas de folga, em casa, quando não havia ninguém por perto, creio que
muita gente já experimentou essa vivência secretamente, a de colocar uma
música para tocar e dançar livremente pelo espaço da sala, pensando,
devaneando, sonhando, imaginando, criando um momento mágico de estar
consigo mesmo elaborando uma porção de coisas e, no meu caso, inclusive as
coreografias que desejava apresentar. É um hábito que tenho até hoje.
As aulas de clássico haviam terminado já há algum tempo quando
chegou à cidade uma professora de dança moderna que fazia parte do grupo
57
de Renée Gumiel20, em São Paulo. Seu nome era Regina, uma professora
diferente, afetiva que me incentivava a desenvolver uma carreira e de quem
ouvi, pela primeira vez, algo sobre meu talento. Suas aulas tinham alguns
exercícios bastante parecidos com os do clássico, mas outros eram totalmente
diferentes, com um grau de dificuldade maior, trabalhavam o corpo de modo
diferente; os músculos abdominais eram mais exigidos na sustentação dos
movimentos, ao passo que no clássico, os das costas e a coluna vertebral
faziam esta função.
Num ambiente mais descontraído, utilizava músicas variadas atuais
como rock and roll e também os clássicos, de acordo com o exercício, o que
possibilitava trabalhar o corpo e a interpretação ao mesmo tempo, de acordo
com a sugestão emocional da música.
Percebi que nessa proposta de dança que Regina trazia de São Paulo,
apesar de ainda haver um forte condicionamento à técnica, havia espaço para
uma bailarina intérprete de emoções mais reais, de temas mais ligados às
questões mais existenciais e contemporâneas.
Neste período aconteceu outro fato marcante. Durante minhas férias no
Rio de Janeiro, minha tia Nicka, irmã da mamãe, me presenteou com um
ingresso para o Balé Bolshoi21 no Teatro Municipal, foi quando vi, pela primeira
vez, uma companhia profissional em cena num grande teatro.
Lembro-me como se fosse hoje. Era um programa de divertissements
(anexo 2), ou seja, uma apresentação de vários números diferentes, como
danças folclóricas, Pas de deux22 de balés famosos e solos de grandes etoiles
da companhia. O número final foi uma coreografia intilulada Isadora uma
homenagem a Isadora Duncan23 coreografada por Maurice Béjart, interpretada
20 Renée Gumiel, uma das bailarinas e coreógrafas que trouxeram a Dança Moderna para o Brasil. Fundou em São
Paulo em 1979 o Grupo de Dança Renée Gumiel. Entre suas coreografias destacam-se Mandala (1976), Argamassa
(1978), e A memória gruda na pele protagonizada por ela aos 80 anos, em 1993. (KATZ, 1994) 21 Pronounced As: , one of the principal ballet companies of Russia. It began as a dancing school for the Moscow
Orphanage in 1773. Opened in 1856, the Bolshoi Theatre in its early decades competed for preeminence with the
Maryinsky Theatre of St. Petersburg. Alexander Gorsky revitalized it in the early 20th cent. and introduced a new
dramatic realism to the classical ballets. Igor Moiseyev experimented with folk-dance ballets at the Bolshoi in the
1930s. The company is internationally acclaimed for its superb ensemble skills and for the spectacular realism of its
scenery and costumes. During the 1960s Maya Plisetskaya was the company's prima ballerina; in 1964, Y. N.
Grigorovich became chief choreographer and later, artistic director. His productions included a very successful
version of Khachaturian's Spartacus. The Bolshoi has toured both Europe and the United States with celebrated
productions of such classics as Giselle and Swan Lake. 22 Pas de deux: entrada tradicional no balé clássico executada pelo casal de bailarinos-estrelas, compreendendo quatro
partes. 23 Isadora Duncan, Descendente de irlandeses, nasceu em 1878, na cidade de São Francisco, na Califórnia.
Audaciosa, extravagante, carismática, pretendeu reacender a chama dionisíaca em plena belle époque. Pioneira da
58
por Maya Plisetskaya24, na época a principal Etoile do Bolshoi. Fiquei tão
impressionada com o resumo da vida de Isadora que encontrei no libreto do
espetáculo e, mais ainda com a dramática coreografia que isso me instigou a
saber mais sobre essa personagem revolucionária do mundo da dança. Este
fato foi decisivo para minha descoberta de que a dança também possuía uma
história escrita e organizada, não somente as Artes Plásticas, como me haviam
mostrado na escola.
O encontro com Isadora Duncan influenciou profundamente minhas
opções em relação à dança, sendo que posso dizer que iniciei a adolescência
inspirada num modelo de bailarina que já citei anteriormente e terminei essa
fase convencida de que o modelo que me guiaria a partir deste ponto seria
definitivamente Isadora por uma profunda identificação com a personalidade,
os ideais, e principalmente, com a opção estética em relação à arte e à vida.
Ao mesmo tempo em que fazia as aulas de dança com a Regina, e
sonhava em ser uma Isadora Duncan, participava também do grupo de teatro
operário, onde aprendi a interpretar em laboratórios teatrais dos anos 70,
exercícios de Augusto Boal25, e todas as técnicas corporais recém chegadas da
Índia e da China.
Neste grupo, tínhamos visitas esporádicas de professores de fora que
vinham ensinar estas técnicas; foi quando aprendi a usar o yoga por exemplo,
como preparação corporal para o trabalho teatral. Isso me trouxe o
conhecimento de que a preparação corporal para teatro e dança pode ser
composta por diferentes técnicas em função das necessidades do trabalho de
interpretação; uma maneira de moldar o corpo para a cena ou para o texto.
Mas cabe ressaltar que sempre vi o teatro como um recurso para o trabalho de
interpretação da dança, não com o objetivo de tornar-me atriz, o que mais
dança moderna Isadora concebeu uma arte não apenas romantizada da natureza , mas de uma visceral rebelião contra
tudo aquilo que caracterizava o ballet: sapatilhas de ponta e passos codificados. Passionária como artista e mulher,
viveu plenamente as inquietações de uma época. Sua dança propunha, acima de tudo, uma harmonia com a natureza.
Imbuída de filosofia de Nietzche, fez da dança uma religião em perpétua busca da beleza e liberdade. Faleceu em
1927 num trágico acidente automobilístico. 24 Maya Plisetskaya, bailarina nascida e formada na URSS, aluna de Vaganova, personalidade marcante na dança do
século XX , desenvolveu sua arte com uma qualidade incomparável, tornou-se uma estrela internacional disputada
por coreógrafos e companhias do mundo inteiro. A característica principal de sua carreira foi um faro especial para
escolher o que e onde dançar no momento certo. Evoluiu no tempo, sempre alerta às transformações na dança, sem
ficar presa a papéis ou estilos. 25 Augusto Boal, diretor teatral, fundador do Teatro de Arena em São Paulo , autor de O teatro do oprimido e outras
poéticas políticas.
59
tarde, na década de 80 vai influenciar esteticamente meu trabalho quando faço
a opção pela dança-teatro alemã.
Apesar de toda esta informação estrangeira moldando meu corpo, minha
cultura, minha expressividade, descobri nessa mesma época, que minha atitude
tinha algo de diferente, que havia em mim uma identidade brasileira muito forte,
mãe da minha rebeldia, da minha espontaneidade, da minha irreverência diante
dos “grandes saberes” que se descortinavam à minha frente, a cada passo da
caminhada orientada por minha voraz curiosidade.
Onde pretendo chegar com esta afirmação? Em que me baseio para
dizer isto?
Pois bem, no curso desta reflexão me dei conta de que, se quero falar
do meu desenvolvimento durante a adolescência, da construção de minha
identidade, devo abrir o panorama para o todo desse processo, o que significa
que, além do espaço da escola, dos cursos é preciso também olhar para o
espaço do tempo livre, do lazer.
Sim porque se observo uma diferença em minhas atitudes em relação
aos estrangeiros sinto a necessidade de localizar onde isto se formou, ou
melhor dizendo, onde aprendi isso.
E falar de escola sem falar das férias é algo que deixa o assunto
incompleto, porque as férias fazem parte da escola, de certa forma.
É das férias que desejo falar agora, mais especificamente das férias de
verão, tempo de praia e carnaval, tempo de ir para o Rio e ver de perto tudo o
que sabia pela televisão e pelas revistas, moda, arte, música, cultura.
Duas tias irmãs de minha mãe moravam no Rio de Janeiro e, por essa
razão, tínhamos hospedagem garantida nas férias, geralmente todo mês de
janeiro.
Além da programação cultural que incluía visitas aos museus todos, idas
ao teatro, ao cinema, passeios pela floresta da Tijuca, ao centro, e os piques-
niques na ilha de Paquetá, tínhamos a praia e os passeios exploratórios pela
cidade.
Se essa memória me ocorre é porque, ao falar de corpo e movimento,
não posso deixar de citar esta experiência única do corpo em liberdade no
espaço das praias no verão. Creio que a concepção de praia de nós brasileiros
é muito peculiar pois, além de ser um lugar de contato com a natureza, é
60
também um espaço social, onde, com naturalidade e irreverência, as pessoas
convivem em trajes de banho, com movimentos livres e tudo é pura
descontração; o espaço perfeito para a minha vida social de adolescente.
Costumava chegar ao Rio ainda presa aos condicionamentos da minha
cidade, onde o único lugar em que usávamos maiô era o clube. E, conforme os
dias iam passando, podia notar nitidamente as mudanças que iam ocorrendo
no meu corpo e no comportamento, no modo de vestir, em primeiro lugar a cor
da pele que chegava branca e ia escurecendo até tornar-se um bronze escuro;
a musculatura adquiria um tônus mais firme, pela natação nas ondas fortes do
mar, pelas caminhadas na areia e os jogos de praia. Eu ia emagrecendo
naturalmente, pois não tinha tanta fome, pelo calor e pelo relaxamento que
aquilo tudo proporcionava. A descontração do lugar, em que se podia pegar
ônibus de maiô, ir ao cinema de bermudas, a princípio me deixava atrapalhada,
mas, depois pensar em ter que usar roupa, na volta, tornava-se um pesadelo.
Um espaço democrático em que convivíamos em condições de
igualdade com artistas, intelectuais. Na praia se faziam as amizades,
formavam-se as turmas que se encontravam sempre no mesmo ponto, para
passar o dia juntos, tomando sol, cantando, batucando, nadando, jogando,
namorando, paquerando. Momentos de ação e relaxamento naturais,
respeitando as necessidades do corpo. Era uma maravilha de vida!
Lá também se discutia política, religião, filosofia, arte, e se combinavam
os programas da tarde ou da noite.
São lembranças felizes das sessões de cinema no Caruso, em
Copacabana, das noitadas dançantes nas boates, as corridas de kart em São
Conrado. Mas, principalmente para a menina do interior, a sensação de
independência indescritível de andar sozinha de ônibus pela cidade grande,
que resultavam num corpo solto, uma postura expandida, um andar sinuoso
que me tornavam uma menina diferente das meninas da minha cidade, mais
contidas e rígidas.
Quero aproveitar esse momento para falar também sobre as minhas
buscas estéticas que também influenciaram essa corporalidade26 em
26 “Merleau-Ponty dá da dualidade corpo/alma uma visão englobante, não separada, fazendo destas duas dimensões
uma unidade significante. A consciência não tem autonomia relativamente ao corpo, não pode ser tratada como
entidade independente uma vez que ela só existe na sua encarnação. O corpo próprio distingue-se, em Merleau-
Ponty, dos outros corpos físicos, o corpo é um todo, indivisível da consciência. Como totalidade, o corpo, vive o
61
construção, lembrando que, no Rio, naquele tempo, havia a feira hippie da
Praça General Osório, onde tive a oportunidade de conhecer afinal quem eram
esses tais hippies27, que haviam abandonado sua vida burguesa e viviam em
comunidades, obtendo seu sustento da venda de artesanato. Lá, na praça,
podia se encontrar gente de todas as partes, do Brasil, da América do Sul, e
também americanos, europeus, misturando os sons de suas diferentes flautas
e sotaques. Enquanto comprávamos bijuterias, podíamos conversar com eles e
saber notícias de terras distantes, conhecer mais de perto aquela opção de
vida e compartilhar a atmosfera de paz e amor que reinava no ambiente.
espaço e o tempo e é a própria expressão do ser-no-mundo. E é como ser-no-mundo que o corpo
participa, comunga e comunica. Trata-se, nesta perspectiva, da própria inerência do corpo às coisas,
formando uma totalidade de "conivência" com o mundo. O corpo habita o mundo, não de uma forma
racional mas como um "chez soi". O estatuto do corpo como totalidade abrangente desloca a própria
tradição do corpo clínico - corpo morto, num primeiro momento, corpo-objecto, posteriormente - para se
tornar simultâneamente sujeito/objecto, vivente/vivido, tocante/tocado, num movimento constante de
reversibilidade apoiado no próprio sentido da experiência, como experiência vivida: "a união do corpo e
da alma não foi selada por um decreto arbitrário entre dois termos exteriores, um objecto, o outro sujeito.
Ela cumpre-se a cada instante no movimento da existência". (BABO, 2002) 27 Apesar de ambos acabarem desembocando nos hippies, na década de 50 os beatniks e o rock nunca se
encontraram. Os beats eram intelectuais e gostavam de jazz, os rockeiros não eram muito chegado às
letras e gostavam, obviamente, de rock.
Nos anos 60 os jovens juntaram a cultura beat, o rock, acrescentaram a droga, trocaram o preto pelas
cores do arco-íris, a cultura pela contra-cultura, o ateísmo pela religião oriental e inventaram o
movimento hippie.
A guerra do Vietnam chegou a dar alguma consistência política ao movimento, mas a droga acabou
matando muita gente importante e o movimento esvaziou. Os velhos hippies diminuiram as doses e se
tornaram executivos. Seus filhos se tornaram yuppies e passaram a desfilar em carros do ano.
Paralelamente as igrejas proliferaram, e tudo isso deu no que vocês estão vendo agora: Generation-x,
Wired, Internet, Unabomber, Igreja Universal, etc.
No Brasil, o nosso único e digno representante literário da época foi Jorge Mautner, hoje mais conhecido
como compositor do que como o autor da Mitologia do Kaos.
Mautner foi o único escritor a incorporar de forma delirante toda aquela loucura que pairava no ar desde o
fim da segunda metade da década de 50, quando o rock começou a possuir o mundo.
Em 1962 publicou Deus da Chuva e da Morte, em 63 Kaos, depois Narciso em Tarde Cinza, que
completou a trilogia e foi seguido de tantos outros livros. Mas Mautner acabou sendo devorado pela
intelligentzia da época, pelos revolucionários de copo de uísque na mão - como desabafou em 1966.
Hoje, passadas quase cinco décadas, os malditos beats estão de volta à mídia. Jack Kerouac virou nome
de restaurante em Chicago, seu livro On The Road é propaganda da Volvo, Coppola vai começar a filmar
On The Road e os livros sobre a cultura beat vendem como nunca. De quebra o Whitney Museum of
American Art, em Nova York, inaugurou agora em novembro uma fantástica exposição sobre a cultura
beat.
Por aqui Carlinhos Brown lança o seu terceiro disco, o Andei Road, numa explícita e confessa referência
ao On The Road de Kerouac, do qual diz ter recebido influências na concepção da nova obra.
O livro online Tristessa me parece ser um tributo não confesso ao romance homônimo de Kerouac,
escrito em 1955 e 1956 - sobre uma amiga prostituta que conheceu no México - e publicado em 1960.
Mas o autor não quer confessar.
Foi com os beats e com o rock do final de década de 50 que tudo começou. E eles estão de volta.
DAMIANI (2002)
62
Voltava para casa totalmente diferente, a cada ano que se passava, ia
aderindo mais e mais àquela estética, levando comigo as idéias e as novidades
para dentro da escola e dos ambientes que costumava freqüentar.
Some-se a isso o samba que por incrível que pareça, não aprendi no Rio,
na praia, mas que teve sua experiência culminante ali em Mogi mesmo quando,
pela primeira vez, participei de um desfile de Escola de Samba. A esta altura eu
já tinha uma experiência significativa no aprendizado de dança, mas aprender a
sambar trouxe algo muito inédito ao meu repertório de movimentos e ao meu
sistema de aprendizagem de movimentos. Desta feita não bastava observar e
copiar a forma do movimento porque além de tudo, os movimentos do samba
são extremamente complexos, utilizam o corpo como um todo, todas as partes
agindo simultaneamente. Foi a primeira vez que experimentei dançar por instinto,
pois, para se conseguir realmente sambar, é preciso se entregar ao ritmo e soltar
o corpo; deixar que o som da bateria o sacuda, pois a vibração sonora é tão forte
que se pode sentir fisicamente as ondas sonoras batendo no corpo. Se não há
esta entrega quase que uma sensação de estar possuída, o samba não
acontece. Gosto de aprender as danças étnicas com as pessoas da cultura/etnia
específica, porque depois dessa experiência de aprender a sambar que descobri
uma forma muito peculiar de irmandade com a cultura afro-brasileira.
E depois veio a experiência do desfile, propriamente dita. Como
descrever o que se sente numa “avenida”? “Êxtase”.
É a única palavra que pude encontrar...
Alguns anos mais tarde foi essa experiência que me serviu para
compreender a amplitude dos rituais dionisíacos, (que erroneamente são
interpretados superficialmente como apenas orgias), que se encontram na
gênese da história do teatro e na gênese da história do Carnaval e, finalmente
para me permitir a aproximação de Shiva em minha busca da compreensão
das danças extáticas. Porque por ter vivenciado este tipo de experiência
xamânica em que experimentei uma sensação real de fusão corpo/alma,
suspeito que esteja aí o objeto de minha busca em relação à dança, nos dias
de hoje, quando penso que devo encontrar uma forma de resgatar o rito para o
mito, nas minhas aulas e na minha produção artística. Mais uma vez, inspirada
por GARAUDY (1980). quando afirma que a dança é a pedagogia do
63
entusiasmo, palavra que em sua origem, significa, a presença de deus dentro
de si. (BRANDÃO, 1992, p. 132,136)
Nessas condições é que aprendi a dançar, depois que me apaixonei
pela dança e o balé clássico não era mais suficiente.
Quando danço, sinto que as minhas diferentes partes, corpo, mente,
sentimento, sensação e intuição formam um todo; essas partes são interligadas
e interagentes. A dança me permite vivenciar, entender e exercitar estas partes
simultaneamente, agindo como um todo, produzindo a sensação de harmonia e
totalidade.
Ao mesmo tempo, a dança, é uma atividade objetiva fisicamente
concreta, feita de ações corporais, de movimento, pulsações corporais, mas
que exige, o envolvimento da alma, gerando elaborações subjetivas de muitas
ordens como:
O princípio da união, do equilíbrio, da composição, da criação, da
consciência, da realidade.
A tensão (pulsação, respiração, equilíbrio, contração e expansão, queda
e recuperação, eixo, centro, simetria)
Percepção do espaço físico
O estar consigo e o estar no mundo
A saúde.
Os sentidos.
As emoções.
A transcendência.
É o que verdadeiramente sinto, quando danço que me propicia ampliar o
autoconhecimento, a consciência, o equilíbrio e a serenidade e que move
desejo de comunicar e ensinar aos outros esse instrumento para uma reflexão
sobre as questões que enfrentamos nos dias de hoje.
Mas, para poder concluir esta fase, creio ser importante trazer à tela o
panorama da época, para situar o ambiente em que aconteceu meu processo
de aprendizagem da dança, nessa fase, para poder compreender os
significados que se tornaram critérios para a adesão dos conteúdos em mim.
O que quero dizer é que fica claro que, se aprendi certas coisas e outras
não, é porque acredito que, o aprendizado é seletivo; aprendemos conforme
nossos interesses, gerados pelo que sentimos a respeito das coisas, e dos
64
fatos e pelos valores familiares em nós arraigados. O conhecimento que resulta
é formado por sínteses entre esses elementos. Por isso, acredito que,
realmente não existe neutralidade no ensinar e muito menos no aprender,
inevitavelmente, os sujeitos estão presentes e protagonizam a ação.
Eram tempos de efervescência cultural e política, freqüentados por
ideologias, utopias. Uma época em que surge a preocupação com a sociedade
de consumo e os meios de comunicação de massa. E a idéia de aldeia global
de Mac Luham28, provocando rupturas na forma de pensar e entender a
sociedade lançava perspectivas surpreendentes para a evolução da
humanidade, como a cura do câncer, as viagens espaciais, comunicação via
satélite entre outras, os valores vigentes estavam profundamente ameaçados.
Lá no interior eu podia entrar em contato com o que acontecia na cidade
grande por meio das revistas, da televisão e das notícias que os que viajavam
traziam. Toda essa informação me fascinava, principalmente o movimento
hippie, a liberação sexual, o feminismo, o conflito de gerações, os Beatles,
Jovem Guarda, Tropicalismo, Guerra do Vietnã, corrida espacial, comunismo,
guerra fria, Che Guevara.
Imagens contundentes que eu recortava das revistas e convertia em
enormes colagens na parede do meu quarto, transformavam o mundo num
grande quebra-cabeças, que se apresentava como um enigma a ser decifrado,
já que a escola não tratava desses assuntos; ninguém me explicava o que
realmente estava acontecendo, acontecimentos dos quais eu queria participar,
mas que estavam tão inacessíveis, distantes de mim.
Foi uma época riquíssima de fortes e profundas transformações sociais
e culturais.
Apesar de estarmos vivendo os tempos do golpe militar e suas
conseqüências políticas, como a perda da liberdade de expressão e o medo,
no interior se sentiam essas coisas de forma atenuada e também estes
assuntos eram de domínio dos adultos que conversavam sobre isso “a boca
pequena”, nas reuniões sociais, longe de nós, as crianças.
28 “Marshall Mac Luhan (1971), un teórico de la comunicación canadiense, se hizo muy célebre hace
algunas décadas por pronosticar que la expansión de los medios de comunicación terminarían
uniformando a todo el planeta, algo asi como que todos los seres humanos de alguna manera acabaríamos
usando jeans, tomando Coca Cola, comiendo hamburguesas, viendo los mismos programas y utilizando
los mismos artefactos” (QUEZADA, 2002)
65
O que pude realmente sentir e perceber é que havia algo no ar,
principalmente na escola, que era o principal ponto de encontro dos jovens da
cidade. Havia principalmente, um rígido controle dos costumes que passava,
inclusive pelo controle do que vestíamos. A altura das saias do uniforme, que a
diretora media com a régua nas nossas pernas, os exatos cinco centímetros
abaixo do joelho. Também se controlava o comprimento dos cabelos dos
meninos, e, segundo nossos ideais de liberdade, havia a absurda proibição do
namoro na escola.
Tudo, naqueles tempos, estimulava a transgressão das regras, nós
queríamos fazer parte das mudanças de que tínhamos notícias, a que
assistíamos pela tv, e nós enrolávamos as saias para cima, após a inspeção.
Os meninos tiravam as madeixas de dentro da golas das camisas e, na hora da
saída, lá íamos nós de mãos dadas com os namorados pela calçada da escola,
elaborando, assim, ingenuamente nossas formas de protesto que foi o mote de
nossa geração.
Como já disse, na minha época foi implantado, no ginásio, o sistema
pluricurricular; uma experiência bastante diferenciada em que, além do ensino
das disciplinas de forma integrada, tínhamos um governo que era nosso canal
de atividade política. Cada classe tinha seu prefeito e o conjunto de classes do
ginásio um governador.
Nesse sistema, tínhamos eleições, com campanha e votação secreta no
modelo democrático, assim como acontece hoje em dia, a função dos
representantes eleitos era a de fazer o contato com a diretoria da escola, para
os encaminhamentos das reivindicações do corpo discente em relação à
disciplina, melhorias do espaço , enfim, o que seria hoje um grêmio estudantil.
Por dois anos isso aconteceu, mas, de repente, essas atividades
cessaram sem mais explicações e, de certa forma, nossas vozes foram
caladas.
Mas ainda restara a liberdade para as iniciativas culturais e, assim,
floresceu o grupo de teatro e, sob a forte influência da cena cultural do país,
também aconteciam os festivais de música.
Nesta mesma época, foram inauguradas as primeiras faculdades na
cidade, e alunos de todos os cantos do país vinham morar em repúblicas,
trazendo muita informação nova para nós os jovens da cidade. Iniciou-se um
66
processo imenso de intercâmbio cultural que fomentou as atividades estudantis
que já existiam.
A participação política aprendida na escola e o exemplo dos protestos
pacifistas de Ghandi29 forjaram em mim um perfil de resistência cultural, que
sempre procurou soluções fortes mas não violentas para as empreitadas em
defesa da arte da cultura e da liberdade de expressão. Foi desta forma que me
envolvi e liderei um acontecimento muito emocionante que me marcou
profundamente para o resto da vida, a retomada do Teatro Vasquez.
A esta altura eu tinha uns quinze anos e estava completamente
engajada nos movimentos culturais, principalmente no teatro. Havia saído do
grupo da escola e participava de um grupo amador com gente de diferentes
lugares e classes sociais.
Nesta época, a maior dificuldade que tínhamos era a de encontrar
espaços para as apresentações e os festivais até que um belo dia alguém que
não me lembro exatamente quem, mencionou a existência de um teatro
abandonado na cidade.
Isso foi motivo de indignação de todos nós e após muitas conversas,
decidimos reabrir o teatro. Nos organizamos, fomos à prefeitura, conseguimos
autorização para entrar e apoio para realizar um evento que tinha o objetivo de
chamar a atenção da população para aquele espaço público.
Jamais esquecerei a primeira vez em que abrimos as portas do teatro e
de lá dentro vislumbrei o palco. Tudo o mais era poeira e escombros; havia
muito a fazer e estava fora do nosso alcance, somente a prefeitura teria os
meios para realizar a reforma necessária.
Mas, de qualquer forma, isso não nos abateu e elaboramos para aquelas
condições uma grande exposição de arte, reunindo todos os artistas da cidade.
Com a ajuda de D. Mieka Fukuda, a nossa professora de artes, a mentora
silenciosa, humilde e grandiosa, de toda uma geração de estudantes,
29 GANDHI, Mohandas Karamchand [cognominado Mahatma ("alma grande")] (Purbandar
1869-Díli, 30/01/1948) (Em redacção). Filósofo e político hindu. A partir de 1920 dedicou-
se à luta em prol da independência da Índia, opondo-se à política colonial inglesa, tendo
sido processado e detido várias vezes. Viu o seu sonho realizado em 1947. Contra os hindus
mais radicais, reconheceu a independência do Paquistão, tendo morrido assassinado por um
deles. Figura exemplar de líder espiritual, ficou conhecido pelo seu princípio da resistência
passiva aos inimigos.
67
contatamos os artistas, recolhemos as obras e montamos a exposição, que foi
inaugurada num sete de setembro e, assim, resgatamos o Teatro Vasquez
para a cidade, que foi restaurado e funciona até hoje conforme as notícias que
recebo de amigos que ainda moram em Mogi.
Entre as muitas atribuições que tive no episódio do teatro quero abrir
outro parêntesis para a entrevista com “Barros, o mulato”.
Pela primeira vez na vida conheci um iogue pessoalmente, Barros era
um pintor reconhecido internacionalmente e nada conhecido na cidade; vivia
isolado num pequeno sítio não muito longe do centro.
Foi neste sítio que ele nos recebeu numa tarde para a entrevista. Sua
casa não tinha luz elétrica nem mobília; ele nos recebeu na sua sala, onde
sentamos em roda, em almofadas no chão e, calmamente, aquele homem
mulato muito alto de expressão serena foi respondendo a todas as nossas
perguntas. Eu estava atônita, e nem me lembrava mais de perguntar sobre
arte. Desviei completamente o assunto para o yoga e o tipo de vida que ele
levava quando, de repente, ele me surpreendeu nos oferecendo uma tigela
com morangos frescos, um luxo para a época. As frutas eram sem açúcar para
serem comidas com as mãos, muito diferente do que acontecia lá em casa. Foi,
então, que falamos sobre alimentação vegetariana e macrobiótica, coisas de
que eu nunca havia ouvido falar. Ele nos emprestou um trabalho para a mostra
do teatro e não preciso dizer que saí de lá fascinada. Este encontro único
causou profundas dúvidas em minha cabeça, a partir de então. Comecei a me
perguntar qual a diferença entre Barros e os hippies? De onde vem a coragem
para uma pessoa a optar por este tipo de vida, romper com os padrões sociais
estabelecidos e assumir o que realmente é em essência?
Nunca mais consegui falar com Barros para expor minhas perguntas,
pois ele viajou para o exterior, logo em seguida, e perdi o contato.
E assim tive que continuar minha busca por conta própria, sem saber
que as respostas me levariam a um longo caminho, repleto de emoções, como
aquela que experimentei naquela tarde que não posso mais esquecer.
A somatória destas experiências trouxe ao meu trabalho artístico uma
reflexão que não existia nem no balé nem na escola. Ao comparar todas estas
práticas, pensar nas teorias com que entrava em contato, comecei a
68
desenvolver um espírito reflexivo, a perceber que há sempre uma intenção no
trabalho de criação, e passei, a partir de então a fazer escolhas estéticas e a
compor trabalhos misturando as linguagens. Descobri que não bastava
praticar, mas que era necessário também estudar e pesquisar arte, filosofia e
história e, desde então, minha relação com a arte se fez desta maneira, sempre
buscando um aprofundamento teórico e uma precisão formal.
Percebi, já naquele tempo, uma afinidade muito forte entre minha
subjetividade e corporalidade com as técnicas orientais que, para mim, são
fáceis e muito eficientes, pois canalizam minha alegria e força vital para um
objetivo que é desenvolver a auto-estima e a compreensão do outro, e
ajudaram a fazer a passagem da adolescência para a idade adulta, me
ensinando um riso mais ético.
Estas vivências conduziram-me a compreender o todo do ser humano,
porque são carregadas de muita filosofia que analisa cada parte do ser
humano, cada minúcia de cada sentimento. E, carregadas de ideologia, da
saúde e da plena realização do amor no ser humano, da paz.
Movida pela força transformadora destas experiências que comecei a
compor um corpo e uma identidade que me preparavam para minha inscrição
no mundo, tentando visualizar a imagem de que tipo de pessoa me tornaria,
optando pela arte, pela beleza, pela paz, pela ética, pela estética, pelo amor.
Desde os tempos da adolescência, nunca mais consegui parar de
pensar sobre a dança e a evolução do ser humano.
Hoje, vejo que na adolescência vivi experiências que me fizeram
aprender a lidar com a frustração e o sentimento de derrota. Conheci um
mundo que havia saído de uma guerra e havia a iminência de outra, os
Tempos da Guerra Fria, EUA x URSS, um mundo em que se discutia entre
optar pela guerra ou pela paz, pelo caminho do materialismo ou da
espiritualidade, pela tecnologia ou pela Natureza
Vi, com clareza que o materialismo gera ganância, inveja, falsidade e
competição entre as pessoas, provoca destruição, injustiça e mortes demais.
Eram tempos em que havia no ar uma sede de progresso, de evolução, mas a
maioria preferiu o materialismo e eu era da oposição, o lado que perdeu. Mas
minhas opções estavam de tal forma sedimentadas que decidi seguir em frente
com as mesmas posturas, idéias e objetivos em direção à minha vida adulta.
69
6 Ato III: vida adulta
FIGURA 19 – ISADORA DUNCAN
Quem dança este ato é Isadora Duncan (fig.19), que tem sido minha
inspiração nesta trajetória, desde os tempos da adolescência. Com seu
exemplo de autonomia, de independência, ousadia e coerência, aprendi a
teorizar minha prática para poder escolher minha vida e criar uma dança capaz
de expressá-la.
Isadora aparece no trecho do sári que inicia minha vida adulta,
compondo uma imagem que sugere seu dançar sobre a trajetória, como se
esta fosse um tapete, numa tentativa de expressar sua presença, permeando
os passos do caminho que, neste trecho especificamente, retrata sobre fortes
contrastes de claro e escuro ao fundo, linhas que se entrelaçam e realizam
grandes movimentos sobre a superfície, representando o intenso esforço de
aprendizagem de vida e arte que ocorreu neste período.
Ao elaborar, para a coreografia/escrita, uma maneira de ligar este ato
com os anteriores, percebi que para poder prosseguir precisava entender o
porquê da necessidade de resgatar toda esta memória.
Ocorreu-me então, talvez por analogia, a lembrança de uma antiga aula
de expressão corporal, que aprendi com Yolanda Amadei, em que se resgatam
70
princípios muito semelhantes aos que mobilizei com meus movimentos neste
trabalho de pesquisa até agora.
No início da minha carreira, para facilitar a escrita de meus planos de
aula acabei batizando esses velhos exercícios que considero clássicos em
Expressão Corporal com o nome de “resgate de movimentos”. É uma aula
dirigida que se desenvolve em três partes:
Uma primeira de sensopercepção30 em que se colocam os alunos
deitados na sala, na penumbra e realiza-se um trabalho de percepção corporal,
começando pela respiração, conduzindo uma observação do movimento de
expansão da inspiração e o de relaxamento da expiração, chamando a atenção
para o movimento de pulso resultante que, por sua vez é o movimento
primordial da vida. Em seguida, uma longa e detalhada observação do corpo,
suas partes, seu eixo central, seu contato com o chão, conscientizando para as
áreas de tensão, promovendo relaxamento e um profundo estado de
concentração em si mesmo.
Feito isto, em segundo lugar, os alunos são estimulados a iniciar uma
lenta movimentação, primeiramente com os dedos das mãos, em seguida os
pulsos e, assim, sucessivamente, movendo todas as articulações do corpo,
inclusive as da coluna vertebral, trazendo para a consciência essas
articulações e suas possibilidades de movimento.
Na terceira etapa, tem início o que chamo de resgate de movimentos
propriamente dito, ou seja, os alunos são convidados a refazer todo processo
de evolução das formas de locomoção, começando pelos movimentos dos
bebês no berço, desde o balançar do corpo de um lado para outro,
experimentando o deslocamento de peso, em seguida o rolar, até ficar de
bruços. Na seqüência o arrastar-se usando tração dos braços e pernas,
experimentando o deslocamento do corpo no espaço no chão, tanto de frente
como de costas.
30 Percepção é um complexo ato de construção psíquica, que às experiências da sensibilidade (base
sensitiva), vai somar os conteúdos representativos correlatos. Para que a percepção aconteça de forma
plena, é necessária a estrutura total da consciência, inclusive em sua intencionalidade. o ato perceptivo é
único, dotado de vivacidade, extensão, realidade e significação.
A Percepção e a Memória, conjuntamente, formam a base do psiquismo, imprescindíveis ao aprendizado.
São o arcabouço estrutural das atividades intelectuais superiores, desta forma os objetos do mundo nos
são apresentados sob a forma de percepções e representações, que vão ocasionar a SENSAÇÃO. A
sensação é proveniente de nossa sensibilidade geral (superficial ou profunda) ou especial (órgãos dos
sentidos)”. (SENSOPERCEPÇÃO, 2002)
71
Sempre observando a relação dos movimentos com a respiração, as
ações dos músculos e ossos, o exercício continua agora com a evolução do
arrastar-se para o sentar e, em seguida, o engatinhar.
Na última fase estuda-se, na prática, como se dá a construção da
postura ereta do ser humano e do andar, observando minuciosamente os
mecanismos corporais envolvidos, como transferência de peso, alavancas
ósseas, apoios dos pés, colocação dos quadris, ombros braços e cabeça, ao
longo da coluna vertebral, tomando consciência do eixo de equilíbrio e da
relação com a força da gravidade.
Lembro que, quando fiz essa aula pela primeira vez, pude compreender
o que vem a ser o repertório de movimentos de uma pessoa e sua importância
para seu desenvolvimento pessoal e também observando os adultos realizarem
este trabalho concluí que é importante não pular as fases do desenvolvimento
da locomoção de uma criança pois isso pode provocar uma lacuna em seu
repertório mais tarde.
O efeito que este trabalho busca numa pessoa adulta é o de promover a
consciência desse repertório e ainda a possibilidade dessa pessoa vivenciar as
experiências que por acaso não teve a oportunidade de viver na infância,
resgatando assim para o seu repertório, movimentos importantes para a
construção de sua corporalidade.
Também é uma possibilidade de recuperar agilidade, flexibilidade e
corrigir possíveis problemas de postura e apoios, enfim, de reconstruir
adequadamente e conscientemente seu esquema corporal.
Por essas razões vejo que a lembrança dessa aula retornou no
momento em que intuitivamente, realizava no meu trabalho de pesquisa um
exercício bastante semelhante, ao resgatar, por meio da escrita a história de
meus movimentos na infância e na adolescência, creio que norteada pelos
mesmos objetivos da aula que descrevi.
Refazer de memória os momentos iniciais de minha trajetória causou-me
efeitos semelhantes ao exercício corporal, colocando-me ereta com uma
postura diferente, mais elaborada, a partir da contribuição de novos
conhecimentos a meu respeito.
72
Considero o repertório de movimentos na dança o patrimônio do
bailarino, o qual o habilita a iniciar o seu trabalho de interpretação, de criação
de seqüências expressivas e a composição de coreografias.
Esse exercício também me levou a elaborar, ao longo dos anos, a
convicção de que em educação, o repertório do aluno é a base em que o
professor deve apoiar o início do processo de aprendizagem.
Desta forma, percebo que, ao escrever sobre a infância e a
adolescência, agi como professora de mim mesma, como que me
reconhecendo, num diagnóstico inicial para, então, elaborar o projeto de
estudo, como habitualmente faço com meus alunos. Quando terminei de
escrever esses capítulos que considero como um resgate, me senti mais
presente, inteira, para caminhar com passos mais conscientes e seguros, em
condições de coreografar esta dissertação, de posse de todas as minhas
possibilidades e da consciência do meu repertório inicial, o que significou
encontrar o meu ponto de partida.
Numa primeira avaliação, percebo que, ao ativar meu olhar de
professora sobre meu processo de aprendizagem da arte, neste trabalho,
observo os movimentos que fiz até chegar a este ponto e vejo que, ao resgatar
as memórias da infância e adolescência, encontro o significado para as
experiências que tive e compreendo que o conjunto dessas fases constitui o
alicerce sobre o qual se apoiou a minha formação como professora de arte.
Mais ainda, estes movimentos ajudaram-me a identificar muitos
aspectos diferentes de mim, que reconheço presentes e vivos constituindo o
conjunto dos meus talentos com os quais compus esta professora, a criança
questionadora, a adolescente rebelde, a cidadã atuante, a mulher que acredita
num mundo mais humano e mais justo e vê na educação, na arte e nos valores
humanos a possibilidade de construção deste mundo.
Pude também observar o tipo de educação que tive naquele momento
histórico e de como essa educação teve seus benefícios e lacunas para a vida
que tive posteriormente.
Transportando esta idéia para a metáfora do sári, vejo que as faixas da
pintura onde se encontra infância, adolescência, casamento, maternidade,
minha primeira graduação como bacharel em pintura e a licenciatura curta em
Educação Artística (tabela 2) constituem a primeira volta do tecido em torno da
73
cintura, formando a primeira camada da saia que, por sua vez, forma uma base
de sustentação para a figura.
TABELA 2 – LOCALIZAÇÃO DO PERÍODO NA LINHA DO TEMPO
________________/ exatamente este trecho da pintura até 1982.
Recuperando a idéia da linha de tempo contida na pintura, posso
observar, então, que o primeiro espaço em rosa representa a infância e a
adolescência e que a partir de agora estarei entrando no primeiro espaço
amarelo que corresponde ao período em que se deu minha formação como
bacharel em pintura e em seguida o espaço azul onde se localizam as
Licenciaturas. Identifico este período como uma transição, que estarei
abordando a partir de agora, em que se deu a passagem da adolescência para
a vida adulta.
6.1 Cena1: bacharelado
FIGURA 20 – TRECHO DA PINTURA QUE REPRESENTA O BACHARELADO
Pois bem, retomando a trajetória, passei a década de 70 dançando,
fazendo teatro, pintando e sonhando em sair da cidade do interior, em vir para
Desde
que eu
consigo
1974 82 83 84 85/86 87 88 89 90 91 92 93 94 95 96 97 98 99
Lembrar-
me até
1974
A
1981
74
São Paulo para fazer carreira, encontrar os melhores mestres, as melhores
escolas, ter acesso à produção cultural que eu via pela TV e tinha notícias
através de revistas.
Em 1973 eu estava com dezessete anos. Foi quando começaram as
crises decorrentes da decisão pela carreira e a dança não era uma
possibilidade de futuro, de acordo com os valores sociais e familiares. Havia
ainda a falta de acesso a informações sobre os cursos superiores de formação
na área, enfim um conjunto de condições adversas tornou a carreira de
bailarina um sonho distante.
Foi um período tão difícil que, quando cai na realidade, percebi que
havia acontecido uma ruptura.
O desejo pela independência tornou-se algo mais forte que tudo.
Terminei o colegial, parei de estudar, casei, mudei para São Paulo e
terminei a década de 70 trocando a casa grande com quintal da família no
interior por um apartamento em São Paulo. As tardes fagueiras na piscina do
clube de campo, pela pilha de fraldas na tábua de passar roupa, pela faxina, e
as aulas de dança, teatro e pintura, os bailes, por programas femininos
vespertinos numa TV preto e branco.
Nos noticiários do mundo inteiro John Lennon anunciara o fim do sonho.
Houve uma revolução na minha vida, no meu país, eu havia mudado
muito.
Tornei-me uma dona de casa responsável pela conservação, limpeza,
alimentação, vestuário, tornei-me a provedora, uma mãe de família,
responsável pela educação de um filho.
Baguncei o currículo, misturei completamente a ordem, prescrita pela
sociedade para o aprendizado das matérias do programa de educação de uma
moça daquela época.
Porque, segundo o que previa o projeto de meus pais, eu deveria
primeiro ter feito a faculdade, depois encontrado um emprego e, aí sim, poderia
me casar, como a maioria das minhas colegas.
Vi a década de 80 começar sob a ótica do feminismo. Foi uma difícil
descoberta a de que meu marido e eu operávamos com modelos de
casamento incompatíveis e que não haveria acordo, logo o casamento não
tardou a tornar-se inviável.
75
Numa época em que separação ainda era tabu, em vez de torcer pelo
futebol, minha torcida concentrou-se na aprovação da Lei do Divórcio no
Congresso Nacional, um projeto do deputado Nelson Carneiro, que passei a
admirar na época.
Somente agora percebo ser de uma geração de transição. Numa era de
transição, os valores que havia escolhido ainda não eram aceitos pela
sociedade que funcionava, ainda, segundo os valores bastante conservadores.
Embalada pela voz de Elis Regina e apaixonada pela década de 70,
querendo que tudo tivesse realmente mudado, caí na realidade na década de
80. Elis cantava uma música de Belchior, que representou muito bem essa
época e diz:
“Ainda bem que quem me deu a idéia de uma nova consciência e juventude
Ta em casa guardado por Deus contando o vil metal
Minha dor é perceber que, apesar de termos feito tudo, tudo o que fizemos
Ainda somos os mesmos e vivemos
Como nossos pais...”.
(Belchior)
Lembro-me ainda, da sensação de ter caído num buraco negro, como se
tivesse vivido um vácuo no tempo.
Logo percebi que não estava suficientemente preparada para a vida na
cidade grande.
Viver em São Paulo representava um grande desafio para uma
adolescente de dezoito anos, nas minhas condições, e que trazia na bagagem
objetivos que se estruturaram a partir dos valores familiares. O maior deles, o
de voltar a estudar e me formar, pois meus pais me convenceram de que o
maior patrimônio que os pais podem adquirir para os filhos é uma boa
educação, nas melhores escolas com os melhores professores. E, assim,
passei a acreditar nisso, no valor do trabalho e do conhecimento que vem da
cultura, das ciências e da vida.
Em busca de uma nova consciência e, principalmente, de uma nova
atitude de vida, passei a buscar novos modelos que me ajudassem a
desenvolver uma nova visão de mundo mais adequada à minha nova
76
realidade, pois percebi que era preciso alargar meus horizontes e tomar
conhecimento da minha realidade e contemporaneidade para poder atender a
todas as minhas necessidades a fim de atingir meus objetivos.
Por quatro anos dediquei-me a aprender a viver e sobreviver a me
estabelecer em São Paulo, antes de poder voltar a estudar.
A experiência inicial do isolamento da vida em apartamentos na cidade
grande me mostrou a necessidade de saber ir e vir pela cidade. Assim, pouco a
pouco, aprendi a conhecer os bairros e o centro da cidade, para que pudesse
me locomover, usando todo tipo de transportes coletivos e suas conexões.
Tinha a experiência do Rio de Janeiro, mas São Paulo é uma cidade
muito maior e mais complexa e isso era a primeira coisa que deveria saber
para poder ter acesso às coisas de que precisava, como supermercados,
farmácias, lojas, faculdades, médicos, hospitais e tudo o mais.
A segunda grande lição foi aprender a me comunicar a obter
informações, coisa que numa grande cidade é mais difícil que na pequena,
onde as notícias correm rapidamente.
Naquela época os telefones custavam muito caro e eu passei muito
tempo sem este meio de comunicação; utilizava os correios para contatar
minha família, para trocar noticias e pedir ajuda nas horas de dificuldade.
Foi necessária também a reconstrução de um ambiente social.
Sem família e amigos por perto, minha primeira ação foi a de conhecer e
fazer amizades no prédio onde morava.
Como resultado surgiram novas idéias quanto a ter um trabalho para que
pudesse tornar-me independente, também economicamente, manter a casa e
financiar meus estudos.
A moda hippie ainda fazia sucesso e, assim, associei-me a uma vizinha
num projeto de fabricar bijuterias de cerâmica. Pude por em prática as
habilidades que havia desenvolvido e passamos a produzir e vender bijuterias
que criávamos.
A princípio nossa clientela eram os amigos e familiares. Depois por volta
de 1976, passamos a participar das feiras de artesanato promovidas pelo
77
programa vespertino de tv Revista Feminina na TV Bandeirantes, apresentado
por Maria Tereza Gregori31, famoso pelo quadro de culinária da Ofélia.
O trabalho ampliou-se. Modelava presépios, enfeites de Natal e tudo o
que minhas habilidades pudessem reverter em dinheiro para pagar as
despesas da casa, a escola do filho e financiar o sonho dourado de voltar a
estudar. Estava então com 22 anos.
Devo reconhecer que as aulas de artes manuais no colégio e na família
tiveram grande utilidade nessa época.
Inscrevi-me nos vestibulares de 78. Meu dinheiro só dava para tentar
USP e Belas Artes. Sem condições de fazer o cursinho, minha alternativa era
ter fé em ter feito um bom colegial e, assim, consegui passar na primeira fase
da FUVEST mas não na segunda. Entrei em segundo lugar na Belas Artes o
que significava uma bolsa de estudos parcial.
A idéia de estudar naquele prédio monumental da avenida Tiradentes,
onde hoje funciona a Pinacoteca do Estado, me encantava.
Comecei as aulas em absoluto estado de euforia, comemorando minha
vitória.
Firme no objetivo de seguir minha vocação para as artes, escolhi fazer
Bacharelado em Pintura, pois achava que, naquela altura, era tarde para
retomar a dança, meu corpo não era o mesmo, estava velha para tentar
“carreira de bailarina” e afinal de contas, ser artista era o que importava. D.
Mieka, minha professora, sempre me incentivara muito nas aulas de Educação
Artística da escola, entusiasmada com meus trabalhos plásticos.
Organizei todo um esquema de horários para poder estudar. Minha
rotina se transformou novamente por completo.
Cuidava da casa de manhã , deixava meu filho na escolinha e pegava
um ônibus no terminal de V. Olímpia, o Imirim que levava duas horas para
chegar até a Estação da Luz. Voltava no mesmo ônibus, com o nome de Itaim
Bibi e levava o mesmo tempo. Pegava o meu filho na escola, lá pelas 19 horas
31 “No embalo das comemorações dos 50 anos da tevê brasileira, a pioneira Maria Thereza Gregori
aproveita para relembrar do passado. Considerada a primeira "Ana Maria Braga da telinha", ela inaugurou
o horário vespertino dedicado às mulheres, no dia 3 de março de 1958, com o Revista Feminina. A
atração, que era exibida a partir das 13 horas e ficava no ar enquanto tivesse folêgo para segurar as
telespectadoras, ficou por treze anos na TV Tupi.” (FRANÇA, 2002)
78
chegava em casa, dava-lhe banho e jantar e depois que ele dormia eu fazia os
trabalhos da faculdade.
O curso começou de forma bastante decepcionante. A turma enorme
contestou a qualidade junto à instituição. Foi quando o diretor da faculdade
resolveu assumir a turma como professor. Nunca vou me esquecer do primeiro
dia de aula com ele. Inaugurou a nova fase com a frase: "Vim aqui para ver se
é o ferreiro que não malha ou o ferro que não pega liga".
Filha de um gerente de fundição, crescida olhando para um forno
despejando ferro líquido em fogo para dentro dos moldes, a metáfora me caiu
como uma carapuça e aceitei o desafio, mesmo que morrendo de medo
daquele homem autoritário, que exercia seu poder com robustez e segurança,
diante de um grupo de alunos rebelados.
Foi assim que, Vicente Di Grado o diretor, professor, artista escultor,
tornou-se o mestre que me iniciou no mundo da arte.
Desde os tempos do ginásio pluricurricular parece que, de alguma
maneira, minha educação ficou marcada pelo encontro com tipos diferentes de
pedagogias, pois sempre os bons professores estiveram ali para me provocar
ao exercício de meu prazer maior, que é o aprender.
Este início incomum do curso na faculdade é mais um exemplo do meu
envolvimento com metodologias de ensino bastante incomuns para os padrões
estabelecidos pelas políticas públicas de educação do país para a educação
formal.
Na faculdade entrei em contato com novos conhecimentos sobre arte e
todo um conjunto de conceitos de difícil compreensão.
Em história da arte e desenho geométrico era mais fácil, mas meu
desenho de observação precisava melhorar muito; conhecia muito pouco a
respeito de cores e nada a respeito de composição.
Foi um momento em que entrei em contato com o não saber e isto me
assustou bastante. Acostumada a ter muita facilidade para aprender nos
tempos de escola, pela primeira vez conheci o que era ter dificuldade.
Nunca havia sido tão difícil aprender; minha força de vontade era testada
diariamente, Di Grado era como uma esfinge que lançava enigmas sobre mim,
enigmas através dos quais aos poucos, ele foi me mostrando que só meus
79
olhos poderiam responder e, a partir do momento em que descobri isso, um
novo mundo se abriu à minha frente.
Foi preciso desenvolver uma nova atitude frente ao conhecimento;
tornei-me mais disciplinada, concentrada, atenta e reflexiva, observadora.
Minha visão se ampliou imensamente e eu podia ver além das
aparências, meu desenho amadureceu e comecei a pintar.
Tive a ajuda do professor Pedro, que me ensinou as teorias necessárias
para decifrar os enigmas, entender Arnheim32, Mondrian33 34, Kandinsky35 36 e
as leis da visão.
A principal dificuldade foi aprender a me relacionar com a lógica da
imagem cruelmente pragmática para quem, romanticamente, pensava que
bastava soltar a imaginação e espalhar as cores sobre a tela.
A arte exige uma imaginação específica porque neste caso trata-se de um pensar específico sobre um fazer concreto por que tem uma intenção que é a concretização de uma matéria. Aprendi que em pintura o imaginar é um processo bastante complexo em que não se imagina em termos de palavras ou de pensamentos nem mesmo em termos de imagens, ou seja, imagens concluídas, quadros. O pintor pode partir de idéias a respeito de pintura ou de outras coisas, ou pode partir de emoções, das quais nem sempre tem conhecimento consciente, ou ainda, pode partir de temas literários, históricos , religiosos, de cenas visuais como paisagens, figuras humanas, objetos, natureza morta, etc. Não é isso entretanto que corresponde à imaginação pictórica. A imaginação do pintor consiste em ordenar, ou preordenar certas possibilidades visuais, de concordâncias ou de dissonâncias entre cores, de seqüências ou contrastes entre linhas, formas, cores, volumes, de espaços visuais com ritmos e proporções, em resumo as propostas específicas da linguagem pictórica, envolvendo portanto uma materialidade cujas entidades físicas e cujos recursos formais são de ordem visual. (OSTROWER,1978).
Aprendi a domar os impulsos, a lidar com os limites, a observar e
compreender a arte como um ofício, um trabalho, uma profissão.
32 http://astro.temple.edu/~iversteg/Arnheim.html 33 “Neoplasticismo é o termo criado pelo artista holandês Piet Mondrian para uma arte abstrata e geométrica.
Segundo o artista, a arte deve ser desnaturalizada e liberta de toda referência figurativa ou de detalhes individuais de
objetos naturais. Assim, Mondrian restringiu os elementos de composição pictórica à linha reta, ao retângulo e às
cores primárias, azul, amarelo e vermelho, aos tons de cinza, preto e branco”. (NEOPLASTICISMO, 2002) 34 http://park.org/Netherlands/pavilions/culture/mondriaan/eng/biography.html 35 “O próprio Kandinsky conta, com simplicidade, como chegou à pintura abstrata. Entrando certa vez no atelier deu
de olhos num quadro de sua autoria, colocando de tal maneira que não percebeu de imediato o conteúdo, isto é, aquilo
que o quadro figurativamente representava. Percebeu apenas a forma, entendida, no caso, como as linhas e cores, sem
representação figurativa. Sem nada representarem figurativamente, as cores e linhas do quadro lhe pareceram dotadas
de particular e intensa beleza. Corrigindo a posição do quadro e percebendo agora o conteúdo, verificou que as linhas
e cores perdiam a particular e intensa beleza. Corrigindo a posição do quadro e percebendo agora o conteúdo,
verificou que as linhas e as cores perdiam a particular e intensa beleza, que antes possuíam, quando livres de qualquer
representação figurativa.” (ABSTRACIONISMO, 2002) 36 http://www.mac.usp.br/projetos/percursos/abstracao/kandinsk.html
80
Um ofício bastante complexo, que envolve três tipos de conhecimentos
diferentes de teoria dividida em três áreas principais, a História da Arte, a
estética e as teorias percepção visual.
De outro lado, a prática que envolve as questões das técnicas e as
questões de representação e interpretação da forma.
Há diferentes processos de elaboração de um trabalho plástico, um
deles é o trabalho de observação e representação a partir da cópia de modelos
vivos, paisagens e tudo o mais que seja observável e retratável na realidade.
Ou então os trabalhos de criação a partir da memória ou da imaginação. Tanto
em um, como no outro é preciso percorrer o caminho da imaginação para a
realidade, trazer as imagens de dentro para fora, num processo bastante
complexo que envolve memória, interpretação, tradução, associação,
articulação, classificação, seleção, análise significação e ressignificação de
imagens que, culmina nas idéias, que são o ponto de partida do trabalho
artístico.
Tanto em uma, como em outra é necessário passar por um treinamento
prático intenso para que teoria, técnica e prática se fundam num único fazer,
dando suporte ao processo de criação.
Dessa forma fui compreendendo que em artes plásticas, como na dança,
teoria e prática se fundem; a técnica, para um artista, precisa estar incorporada
para que se possa criar com liberdade e segurança.
Por outro lado, não pode ser um empecilho, o que normalmente
acontece se for entendida como regra rígida, por isso é preciso ser criada junto
com o trabalho, recriada a cada novo desafio.
Uma fusão da teoria com a prática, de forma e conteúdo.
Essa foi a relação que estabeleci com o fazer artístico, a partir de então,
e é o que me serve como base para elaboração de metodologias, para ensinar
a fazer arte.
Di Grado transformou o árduo aprendizado da pintura num curso
inacreditável. Presente em sala, todos os dias conosco, implantou uma rotina
de atelier nas aulas; fazia-nos trabalhar incessantemente, como burros de
carga; exigia um rigor absoluto, muito estudo, muita observação, desenho e
composição em tempo integral.
81
Digo até que, na verdade, apesar da forma peculiar do curso, tive uma
formação acadêmica nos moldes mais tradicionais do ensino da arte com aulas
de desenho de observação, modelo vivo, técnicas e materiais (gravura,
aquarela, guache, pastel, lápis de cor, tinta a óleo, acrílica), cinema, fotografia,
e muitos exercícios de composição bidimensional, e pintura muita pintura.
O trabalho era árduo, mas, em compensação, todos os dias na hora do
intervalo, que o mestre chamava de festa, servia um lanche na sala de aula e
parávamos de desenhar ou pintar. Os outros professores do curso vinham para
nossa classe e Di Grado começava a analisar nossos trabalhos e a mostrá-los
aos outros professores que também faziam suas críticas. Eram momentos de
convivência em que aprendíamos a elaborar e exercitar o pensamento crítico e
a desenvolver diálogos reflexivos a respeito de arte e do nosso trabalho
pessoal, de forma bastante descontraída. Perto do final do curso, nem sequer
parávamos o trabalho; lembro-me ainda do sabor do pão com sardela
misturado ao da terebintina.
Eram momentos únicos de felicidade naqueles tempos, e que felicidade!
Principalmente quando percebi que, finalmente estava realmente aprendendo,
me percebia madura no exercício da “visão seletiva”37 em que podia identificar
com facilidade coisas que, a princípio me pareciam impossíveis como, o
equilíbrio numa composição, unidade na variedade, uma cor fora de chave,
relações de predomínio, relação figura/fundo, perspectiva, chaves tonais,
chaves cromáticas.
Meu Deus! Como foi difícil aprender isso tudo, colocar isso tudo em
meus trabalhos.
No último ano do curso, de uma turma que começou com sessenta
alunos eu fazia parte do pequeno grupo de treze sobreviventes. A prova de que
meu trabalho havia crescido foi quando comecei a receber os primeiros elogios,
depois de três anos passados na obscuridade.
Às vésperas da formatura, meus trabalhos haviam adquirido certa
estrutura; cheguei a ganhar um prêmio de segundo lugar numa exposição que
a faculdade promoveu.
Tudo indicava que poderia ter uma carreira promissora como pintora,
mas, as necessidades da vida me fizeram ver que não haveria tempo para
82
investir nisso, novas prioridades: precisava trabalhar não tinha mais tempo de
fazer artesanato em casa, precisava encontrar uma forma de ganhar dinheiro.
Não houve tempo para comemorações.
6.2 Cena 2: as licenciaturas
FIGURA 21 – TRECHO DA PINTURA QUE REPRESENTA AS
LICENCIATURAS E AS ESPECIALIZAÇÕES
Das alternativas disponíveis naquele momento, fazer a licenciatura para
poder dar aulas me pareceu a solução mais rápida; meu divórcio acabara de
sair e meu ex-marido desaparecera sem mandar pensão.
Com a ajuda de meus pais, que se mudaram para São Paulo nessa
época, continuei a estudar na faculdade fazendo a licenciatura curta em
Educação Artística, que me habilitaria a dar aulas no primeiro grau de quinta à
oitava séries.
Graças a uma bolsa monitoria, sob a orientação do Pedro e outra sob
orientação do Rampazzo, pude fazer o curso. Foi um período em que estudei
muito, traduzi textos do espanhol e do inglês, produzi apostilas. Era uma
correria. De manhã trabalhava nas aulas do Pedro e, à noite com o Rampazzo.
Vida de meios períodos, vida de quatro períodos, vida de nem sei
quantos períodos.
Em meio a este turbilhão começou minha história de professora.
Casa, filho, monitoria, emprego na secretaria de Habitação, faculdade,
assim se passaram dois anos.
Estudava no ônibus, datilografava textos no escritório, almoçava com o
Pedro no Museu, no topo do Martinelli, discutindo arte; fazia estágio com o
37 Processo de seleção, escolha, enquadramento de imagens para uma composição.
83
Rampazzo numa escola estadual na Vila Albertina; o Bento, meu chefe, cortava
meu ponto. Assistia às passeatas do PT pela janela e conversava sobre a
abertura e as diretas com os colegas do Departamento; vendia roupas
escondida no banheiro, substituía as férias das secretárias para tirar uma grana
a mais no fim do mês.
Livros? Os que peguei emprestado. Vida social, nenhuma. Vida cultural,
nem pensar. Material, só nacional, o que deu para comprar.
O que vislumbrava à minha frente era uma guerra.
Um personagem da época que traduz como me sentia é Sarah Connor
(fig. 22) de o Exterminador do Futuro, um cult do cinema de ficção dos anos 80.
FIGURA 22 – SARAH CONNOR
E como Sarah Connor me armei até os dentes e fui à luta.
A voraz cidade despertou em mim o instinto de sobrevivência. Aquela
menina frágil, sensível, ingênua, delicada revestiu-se de armadura e foi à luta,
atirando para todos os lados. E quando pensei que todo este esforço resultaria
em nada, Di Grado me contratou para dar aulas na Faculdade.
Meu sonho secreto se realizava. Mas, para meu espanto, a disciplina
que ele me oferecia era Expressão Corporal no curso de Educação Artística...
Não sei como ele soube da minha história; mais uma vez o destino.
Assumi as aulas, estudei, pesquisei, tratava-se de uma responsabilidade
enorme.
Na época estava cursando a licenciatura plena em Artes Plásticas, no
período da noite e, na prática docente, percebi que precisava saber mais,
assim, fui fazer licenciatura em Artes Cênicas, no período da manhã.
84
Por um colega de curso descobri um curso com uma mensalidade
bastante viável e uma ótima equipe de professores. Foi neste curso que fiz
aquisições muito importantes sobre a Dança e, depois desse outros se
seguiram. Com isso pude estruturar uma concepção para a minha prática
docente.
Neste meio tempo, um dado novo - consegui uma transferência da
Secretaria de Habitação para o recém inaugurado Centro Cultural São Paulo,
onde fui como secretária da Divisão de Artes Plásticas e pude trabalhar com
Renina Katz, Flavio Império, Glória Motta, Marcelo Nietche entre outros
artistas. Foram tempos de ouro de aprendizagem sobre artes plásticas e
cultura.
Fase de grandes mudanças políticas, da Constituinte, da campanha
“Diretas Já”. A cor da campanha foi decidida diante dos meus olhos no Centro
Cultural. Saíamos em grupo para os comícios para ouvir Tancredo Neves,
Ulisses Guimarães na Praça da Sé. Os exilados começavam a voltar e retornar
à vida política. Eram recebidos como heróis; havia eventos e festas para
recepcioná-los e em pouco tempo convivíamos com eles no espaço de
trabalho, partilhando idéias elaborando projetos culturais.
Nesta mesma época passei a freqüentar a vida cultural em São Paulo,
que se agitava em torno da música de Cazuza, de Lulu Santos, dos Titãs, de
Premeditando o Breque e de Língua de Trapo, da ficção científica no cinema
com Blade Runner, e o Carlton Dance Festival.
Anos 80. Essa foi a década em que me formei, comecei minha carreira,
de quando trago fortes influências, artísticas, políticas e pedagógicas.
Uma década extremamente fértil e produtiva para o ensino da arte, em
que importantes espaços foram conquistados e vivemos um intenso período
de elaborações, em que se destaca a importante contribuição de Ana Mae
Barbosa (FUSARI & FERRAZ,1993).
Trazia a notícia do novo em seus livros e em seu discurso, a informação
necessária, respostas para muitas questões para o desenvolvimento do
trabalho. Seus trabalhos tornaram-se referências teóricas importantes. Ana
Mae tornou-se um exemplo, por que não dizer um modelo para minha
formação em início de processo.
85
Abriu os portões da universidade para a comunidade e promoveu o
diálogo entre todas as partes interessadas no tema; criou um canal de contato
as pesquisas do exterior, incentivou o levantamento das pesquisas internas da
nossa realidade, incansável defensora do ensino da arte, gerou tempos de
intenso questionamento, sobre o que era feito nas escolas e nas universidades.
Todo este questionamento fomentou um processo de conscientização do
papel social da Arte e levou à conclusão de haver a necessidade de uma
mudança neste ensino de uma melhoria significativa no ensino, da arte no
Brasil.
Foi também dessa forma que tive o meu primeiro contato com a Escola
de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, que foi o palco
principal dos principais eventos e onde fiz o curso de pós-graduação em Arte
Educação.
Sob a liderança de Ana Mae formou-se uma geração de arte
educadores, que definem hoje os rumos do ensino da arte, nos inúmeros
congressos, seminários, encontros que se realizaram em todo o Brasil.
Nesta época, tomei consciência de que faz parte da profissão do
professor, a atualização constante e a participação política nas entidades de
classe.
Foi assim que me dediquei intensamente a este movimento onde estão
fundadas as bases do meu trabalho e os princípios em que me baseio .
Filiei-me à Associação dos Arte Educadores do Estado de São Paulo, e
como conselheira da AESP tive o privilégio de participar da redação do
manifesto dos Arte Educadores em defesa do ensino da arte nas escolas que
defendeu estas idéias na Constituinte e garantiu este espaço na nova Lei de
Diretrizes e Bases.
Foi um aprendizado importante do aspecto político da profissão de
educador, numa fase de intensos contatos com os mais diferentes ambientes
sociais e artísticos, de diferentes formas de participação, observando,
discutindo, refletindo, aprendendo. Tempo em que assumi compromissos
ideológicos e fiz opções teóricas em relação ao meu trabalho.
Após este período, já no final dos anos 80 e início dos 90, em que
importantes espaços estavam garantidos, era o momento de preenchê-los com
as novas propostas e projetos.
86
Cada um de nós seguiu por caminhos diferentes em busca de respostas
para as mais diferentes questões sobre o ensino da arte, seja nas
Universidades, nos espaços culturais públicos e privados, nas escolas, tanto no
ensino formal quanto no informal.
Creio que, nessa fase que me influenciou profundamente, tomei
consciência da minha identidade e estabeleci os princípios para meu trabalho,
que estão sintetizados no manifesto.
Traçar este panorama foi importante para mostrar em que realidade
minha aprendizagem aconteceu. Essa realidade é o pano de fundo em que
simultaneamente meu trabalho se construiu como numa estampa sobre o
tecido sobre a qual desenhei várias linhas, numa fusão entre tintas e tecido.
Entre cores e fios, como veios, por onde fluem minhas ações desde então.
87
7 Ato IV: a prática docente
Gostaria de convidar Pina Baush para dirigir esta
coreografia/escrita.
Pina Baush é a mulher que me mostrou que a dança
podia ser teatro, mas numa fusão profunda de elementos
que gera uma nova forma, a dança-teatro. Uma fusão, não
uma integração, criando, assim, a possibilidade de devolver
o rito ao mito nas artes cênicas, na contemporaneidade.
Nas suas coreografias pude ver o ser humano
retratado por bailarinos humanos, encenando peças que
me mostraram as situações mais extremas a que o ser
humano pode ser exposto, do poético ao grotesco,
revelados em forma de guerras íntimas.
Pina me deu pistas e instrumentos para fazer minha
viagem ao inconsciente.....
Causou-me choques estéticos tão violentos que
abalaram uma série de crenças e modelos que tinha em
mim. Trouxe de volta a coragem da ousadia, o atrevimento
da transgressão, da rebeldia contra os padrões pré-
estabelecidos pela cultura oficial.
Não acredito em profecias artísticas. Na pintura, no cinema, na dança, um criador está apenas em sintonia com seu tempo. Os outros é que ficam para trás, sem perceber a realidade. O artista desencadeia o choque entre passado e presente. Não é um dom. É uma tarefa.” (BAUSCH apud. PORTINARI, 1985).
Passei a década de noventa, completamente imersa no meu trabalho,
desenvolvendo meu método de ensino, fazendo teatro, dançando e
coreografando, pesquisando.
88
Durante esse período dediquei-me, também a estudar e acompanhar,
entre outros, os trabalhos de Pina Baush. Essa investigação mostrou-me que é
possível expor a sensibilidade, a visão de mundo, a crítica mais feroz com rigor
e. mais ainda assumir sua identidade e suas origens, trabalhar dentro de seu
próprio contexto pessoal, dentro de sua própria opção estética.
Com ela aprendi o que é assumir autonomia total na arte. A autoria.
Pina Bauch, a artista que fala de rupturas, apareceu na minha vida num
momento de ruptura de um longo processo anunciando uma transformação, a
da dançarina/professora para autora/professora/pesquisadora, conforme
representei na ilustração que inicia essa cena.
Nesse sentido Baush é um modelo a ser seguido. Mas como já havia
aprendido em meu encontro com Isadora Duncan, quanto à forma, cada um
deve ter suas próprias idéias.
Pina é alemã, eu brasileira, e acredito que modelos precisam passar por
uma digestão... uma elaboração...
Nesse sentido, meu trabalho não pode apenas copiar o dela, deve ser
decodificado e articulado com meus conhecimentos e repertório pessoais,
dentro do meu contexto para criação de um trabalho.
Resta agora contar a história das minhas aulas, a história de como usei
o que aprendi.
Tempo de analisar a figura da pintura, as linhas que a percorrem em
toda a sua extensão, definindo os eixos de meu trabalho.
Linhas que me levam a revisitar os lugares a que esta jornada me tem
levado, em busca do conhecimento.
Tornar-me arte educadora não foi uma escolha fácil ou será que foi falta
de escolha, falta de opção?
O fato é que não fiquei pensando muito no caso e tratei de aprender
meu ofício.
A transição não foi fácil, porque eu não queria ser professora...
Influenciada pelo preconceito que existe no meio artístico, na época,
considerava isso uma derrota como artista profissional.
Mas a vida molda as pessoas...
89
Aos poucos me envolvi com ensinar arte, superei o preconceito ao
descobrir que esta é uma das funções do artista na sociedade, através dos
tempos.
Artistas de todas as épocas têm sido meus modelos de professor, o
modelo do professor/artista em que me baseio.
Assim como na dança, o que sempre me atraiu foi o potencial de
transcendência, o que sempre me atraiu em educação foi seu potencial de
transformação do ser humano e da sociedade
Esta é a história de uma artista apaixonada, que dedicou sua vida às
artes, como aquilo que me completa enquanto ser, me nutre de energia para
continuar no caminho.
Nesse caminho, o que desejo é criar com liberdade, ensinar a criar, criar
em grupos, criar individualmente. Criar imagens de mundos desconhecidos a
desvendar, dentro e fora de nós; viver a arte e a beleza da vida.
Entretanto a prática me mostrou que, para muitos, isso parece uma
disciplina “menor” no currículo escolar, em que políticas públicas e as escolas
investem pouco tempo e dinheiro. Cabe ao professor de arte conquistar seu
espaço na escola.
Iniciei a regência de minha primeira aula ciente do desafio que
enfrentaria e de que meu trabalho seria uma ação de resistência cultural, posto
que, se Educação Artística enfrenta resistências na escola, expressão corporal,
no curso de graduação em Educação Artística, era considerada a menos
importante das disciplinas e tinha a menor carga horária na grade curricular.
Com o passar dos anos perdeu muitos espaços a ponto de atualmente ter sido
extinta em muitos currículos dos cursos de formação dos professores de arte.
Como ensinar arte?
Uma pergunta difícil que tem uma resposta sem fim, que tem sido um
desafio diário.
Depois de minha primeira regência, saí da sala de aula com a sensação
de que havia aprendido a dar aula sozinha pois, na minha formação
acadêmica, não recebi preparação suficiente para isso, muita arte,
pouquíssima educação.
Também senti a minha primeira aula como uma experiência solitária por
mais que tenha me preparado.
90
Dar aulas é uma coisa impossível de se ensinar a fazer, porque por mais
que tenha feito aulas ou que tenha assistido a elas, a primeira experiência de
regência de uma aula é solitária e inédita, por isso, a primeira aula de um
professor é um ritual iniciático38 em profunda solidão. O professor, por sua
conta e risco, diante de uma classe desconhecida.
Na condição de estudante de arte, recém inserida no mercado de
trabalho ficou muito claro que a graduação não foi capaz de dar conta da minha
formação artística e, muito menos, da formação pedagógica. Em minha
primeira aula me senti muito despreparada para o trabalho.
Avaliando minha formação, por comparação, percebi que, no curso de
bacharelado em pintura, as disciplinas tinham uma relação entre si e se
complementavam; ao contrário do que ocorria no curso de licenciatura em
Educação Artística, em que as disciplinas voltadas para artes plásticas
predominavam e as demais linguagens eram como satélites do núcleo central
sem que houvesse uma conexão entre elas. Creio que uma conseqüência da
forma como foram concebidos estes cursos, a partir da Lei 5692/71, ou se deva
a interpretação dada à lei pelos professores e coordenadores.
Estes cursos se estruturam em três núcleos de conhecimento, sendo um
deles chamado de Formas de Expressão e Comunicação Artística, que inclui
as linguagens artísticas (artes plásticas, teatro, música, expressão corporal,
cinema, fotografia). O segundo, Formas de Expressão e Comunicação Humana
(teoria da comunicação, folclore, história da arte, estética, etc...) com as
disciplinas teóricas e, por fim o núcleo de pedagogia (estrutura e
funcionamento do ensino, prática de ensino, didática, psicologia).
Como resultado o curso de Licenciatura em Educação Artística me
iniciou superficialmente nas linguagens artísticas e nas questões da didática do
ensino da arte. Os estágios foram extremamente burocráticos, restritos apenas
às escolas públicas, o que me impedia de visualizar um panorama de minha
área de atuação. Acredito que os estágios deveriam ocorrer de forma mais
dinâmica, participativa e reflexiva, em escolas de todo tipo, públicas e
38 “Cerimônias que existentes desde os tempo primevos, propiciam, por meio de rituais, a transição de um estado de
desenvolvimento psicológico a outro e implicam uma espécie de morte (sacrifício), necessária para se passar a novo
estágio de adaptação, vivido como um renascimento. Psicologicamente, ter passado por uma iniciação significa que o
ego foi capaz de suportar o sofrimento trazido pela perda e pela própria transformação, conseguindo abrir mão de
uma condição emocional ou de um hábito profundamente enraizado para renascer com uma nova atitude.”
(GRIMBERG, 1997)
91
particulares, em espaços culturais como museus e centros culturais, em
contato com diferentes faixas etárias.
Em conseqüência disso, a minha formação pedagógica se deu em
serviço, quando já se estava empregada e, com o tempo, tornou-se um
processo de formação continuada, depois que compreendi que tanto arte
quanto educação estão em permanente transformação em função de sua
íntima ligação com a vida e a sociedade.
Meu primeiro emprego foi como professora de expressão corporal na
Faculdade de Belas Artes de São Paulo.
Foi uma alegria conseguir uma colocação na minha área predileta.
Trabalhava em total liberdade. Eu queria acertar por isso percebi que teria que
estudar mais, para poder preparar boas aulas como as que tinha como
referências, para que meus alunos se envolvessem da maneira necessária.
No caso da dança é preciso fazer uma entrega pessoal, é necessária
uma dedicação integral do aluno para que possa aprender a linguagem,
através da experiência prática do trabalho corporal. Envolver os alunos nas
aulas apresentou-se a mim como um desafio bastante complexo diante de
classes heterogêneas, com índices de clara resistência, pela própria natureza
da disciplina e as características dos alunos.
Quando se leciona uma disciplina obrigatória no currículo, tem que se
lidar com classes em que nem todos os alunos apresentam o mesmo interesse
e envolvimento com o trabalho. Em conseqüência, o trabalho de motivação da
turma exige um grande investimento energia.
Quando se leciona uma disciplina como Dança para classes mistas,
como no meu caso, é preciso lidar com uma série de preconceitos sociais e
culturais, principalmente por parte do alunado do sexo masculino que
apresenta uma grande resistência ao trabalho corporal.
Compreendidas estas questões existenciais, a próxima foi então decifrar:
Como ensinar Expressão Corporal?
Como já disse anteriormente, estimulada pelos inúmeros desafios
vividos em sala de aula, iniciei uma fase de complementação de minha
formação procurando na cidade de São Paulo o que estava sendo oferecido
através de cursos livres, congressos, encontros, seminários e especializações.
92
Foi um momento muito importante em que, num processo de
desenvolvimento, de autonomia como professora, assumi a elaboração do
currículo, desta formação complementar e passei a fazer escolhas técnicas e
estéticas com o objetivo de desenvolver um método de ensino para esta
situação.
Investi todo tempo na energia e nos recursos de que dispunha; fui à
biblioteca, pesquisei, comprei muitos livros e fui fazer a licenciatura de Artes
Cênicas. Ali onde me concentrei em aprender com mais profundidade história
do teatro, história da dança, expressão corporal e técnicas da dança,
disciplinas mais diretamente ligadas à que eu lecionava, ou seja, Expressão
Corporal, para ter uma visão mais ampla sobre o assunto, sua evolução no
tempo, sua história.
Esse espaço aumentou, quando passei a integrar a equipe do curso de
licenciatura plena em Artes Cênicas da Belas Artes.
Minha investigação se ampliou integrando a questão da Expressão
Corporal ao contexto das Artes Cênicas. Precisava, a partir de então, encontrar
um sentido para esta disciplina no currículo dos dois cursos e, principalmente,
diante de tantas correntes de pensamentos e métodos, qual a dança adequada
à formação do futuro arte educador?
Por experiência pessoal nas salas de aula, com o contato com os
alunos que recebia, e baseada nas idéias de Claude CHALANGUIER e Henri
BOSSUS (s.d.), desenvolvi a crença de que a Expressão Corporal originada de
uma civilização de repressão do corpo, quase que cortada da vida cotidiana,
inserida na vida do homem contemporâneo, seria uma técnica capaz de
resgatar um universo esquecido e perdido, em virtude dos hábitos
estereotipados de nossa civilização. Uma possibilidade de redescoberta da
própria pessoa, de sua existência profunda e, no caso dos estudantes de arte
uma experiência capaz de potencializar elementos fundamentais para o
processo de criação, a poesia e a criatividade, resgatando o corpo para a
percepção de si mesmo como um todo indissolúvel.
Nesta época, tinha aulas com Yolanda Amadei39 nas disciplinas de
Expressão Corporal, Evolução da Dança e Técnicas da Dança no curso de
39 http://www.estado.estadao.com.br/edicao/pano/98/11/19/ca2839.html
http://sites.uol.com.br/macunaim/paulo.htm
93
Licenciatura em Artes Cênicas. Yolanda, a partir dessa ocasião tornou-se meu
modelo de professora de dança porque, em suas aulas, demonstrava na
prática as teorias estudadas e, nas aulas teóricas o estudo reflexivo sobre a
evolução das técnicas corporais e das diferentes estéticas. Aprendi com ela,
principalmente, ter um olhar de dançarina sobre o meu fazer, um olhar e uma
postura do artista que investiga seu objeto de estudo, pensando na sua
aplicação, no ensino e no aprimoramento do trabalho de arte propriamente dito.
Com Yolanda também aprendi a elaborar minhas aulas práticas numa estrutura
que vai num crescente, em que todas as atividades são justificadas
teoricamente, integradas entre si e caminham no sentido do simples para o
mais complexo. Aulas em que o conhecimento vai sendo construído
corporalmente, passo a passo.
Os movimentos a serem aprendidos são decupados40 e executados em
seqüências cumulativas, não necessariamente lineares, possibilitando que o
professor em formação amplie e domine seu repertório durante a formação e
seja capaz de proporcionar esta experiência a seus alunos, futuramente.
Nas aulas de Evolução da Dança Yolanda Amadei, conheci Roger
Garaudy e sua magnífica interpretação filosófica da história da dança.
Estávamos em 1983.
A leitura de Dançar a vida (GARAUDY, 1980), livro que foi definitivo para
a minha inscrição no mundo, trouxe a certeza de que a dança deve ser
pensada, elaborada e cientificamente estudada e sua história oferece exemplos
de inúmeras variáveis e possibilidades e, principalmente, pode ser elaborada
segundo uma ideologia ou estética.
Foi uma revelação a respeito de como se pode ler uma trajetória de
muitas maneiras diferentes e principalmente sob diferentes óticas, o que
rompeu definitivamente os padrões que eu conhecia do estudo da história, e
me remeteu a uma atitude de pensar a dança, pensar o meu fazer como
professora de arte, não apenas conhecer, estudar, ou produzir uma erudição
sobre ela. Passei a partir de então, a construir um saber que tem como eixo o
estudo da dança, e que se estende para as outras áreas de conhecimento e
justifica o meu ser e o meu fazer.
40 decupar [Do fr. découper.] V. t. d. Cin. Telev. 1. Dividir (um roteiro) em planos numerados, com as indicações
dramáticas e técnicas necessárias à filmagem ou à gravação das cenas. (FERREIRA, 1999, p. 612)
94
O livro é um ensaio filosófico sobre a história da dança que traz um
prefácio de um dos maiores coreógrafos de nosso tempo, Maurice BÉJART
(1980). Um trabalho que apresenta uma visão humanista da arte e seu
profundo vínculo com a vida humana, com o qual me identifico plenamente.
Não discute apenas os aspectos teóricos da dança, mas mergulha em
seus aspectos profundos através da metáfora que traz em seu próprio título e é
à interpretação destas metáforas que me dediquei, para refletir e estudar
durante estes anos.
Provocada pela pergunta de GARAUDY (1980) no capítulo A dança
como modo de viver, página13: “Que aconteceria se, em vez de apenas
construirmos nossa vida, tivéssemos a loucura ou a sabedoria de dançá-la?”
Refletindo sobre o desafio de GARAUDY (1980, p.15), durante a leitura,
um trecho me chamou atenção de modo especial quando, ao definir o
significado profundo da dança para o ser humano recorre a cultura hindu,
utilizando a Dança de Shiva para expressar o significado que propõe:
A dança do deus Shiva tem por tema a atividade cósmica: “Nosso Deus, diz um hino sagrado na Índia, é o deus dançarino que, como o fogo que abrasa a madeira, irradia seu poder no espírito e na matéria, e os arrasta, por sua vez, para a dança. A dança de Shiva exprime as cinco atividades divinas: a criação contínua do mundo, pois do ritmo desta dança o universo nasceu e se expande; a manutenção desse universo, pois o equilíbrio desse cosmos em movimento incessante só se conserva pelo ritmo da dança; a destruição, pois as formas se destroem para que outras possam nascer infinitamente, e Shiva dança em meio às chamas dos palácios incendiados; a reencarnação, pois a dança de Shiva mostra o percurso através de diversas vidas, para além das ilusões de existências limitadas; a salvação enfim, ou a libertação última, pela qual cada um toma consciência do que é por toda a eternidade - um momento de atividade rítmica de Shiva, o deus que dança.”
Ao ler este texto estava preenchida pela preocupação em vincular meu
trabalho com a minha contemporaneidade, com a minha realidade; buscava
uma estética. Era um momento de escolhas, precisava encontrar um sentido
para o meu fazer. A partir de então mergulhei nesta investigação, que além de
me esclarecer vem me transformando continuamente modificando não apenas
na minha arte, mas também o meu fazer como professora, integrando todos os
aspectos de minha vida.
95
Porque, mais que qualquer outra coisa, este livro me ensinou a
importância da ampliação da consciência, da visão profunda sobre as coisas e
suas conseqüências, sobre nossos atos, sobre nossa expressão no mundo.
Naquela ocasião, meu primeiro movimento foi o de grifar no texto alguns
trechos, na tentativa de compreender a Dança de Shiva e, numa visão de
artista/dançarina/educadora, tentando imaginar os movimentos desta
coreografia. Estas idéias despertaram em mim a pergunta de como seria
dançar esta dança, e a idéia de trazer esta dança à realidade de forma
concreta, como efetivamente uma prática que pudesse levar a tal estágio de
consciência. E este trecho do texto me encorajou a continuar a pensar desse
modo, o que me conduziu mais tarde a desejar experienciar a dança em seu
aspecto sagrado, como um ritual para o auto-conhecimento, uma porta para a
devoção, um caminho para a transcendência para o homem comum no seu dia
a dia e não apenas para o bailarino ou para os palcos.
Uma dança para todos, uma dança que tenha lugar no cotidiano do
homem contemporâneo.
Como já disse anteriormente, o prefácio do referido livro foi escrito por
Maurice Béjart, uma celebridade no mundo da dança que nasceu em Marselha,
França em janeiro de 1927, filho do filósofo Gaston Berger.
Para compreender o movimento que anima a criação de Maurice Béjart
em seu sentido profundo, é necessário esclarecer sua relação com a busca
filosófica mais prospectiva de nosso tempo, a busca de seu pai.
Essa relação é complexa. Não poderia ser expressa em termos de
reflexo ou de simples tradução, como se Béjart tivesse dançado o que Gaston
Berger tinha pensado!
Bailarino, coreógrafo, Béjart tornou-se conhecido mundialmente por seu
trabalho à frente da Companhia Ballet du XX Siècle (Ballet do Século XX) nas
décadas de 60 e 70 e, a partir de 1987, o Béjart Ballet Lausane.
Em sua vasta obra coreográfica destacam-se Bolero, Symphonie pour
um Homme Seul, Sacré du Printemps e Le Presbitère n’a rien perdu de son
charm, ni le jardin de son éclat (uma homenagem a Jorge Don principal
intérprete de suas coreografias e a Fred Mercury os dois vítimas da AIDS).
Criou a Escola Mudra (do sânscrito; significa Gesto), onde teve a
preocupação de dar uma formação integral aos bailarinos, integrando ao
96
currículo as danças indiana e africana, além da dança clássica e as artes
marciais, a música, o teatro e o canto, onde estudaram algumas bailarinas
brasileiras como Célia Gouveia.
O trabalho de Béjart o transformou em mito devido, em grande parte,
aos seus esforços em relação à popularização da dança em todo o mundo.
Defende a não elitização da dança, “a dança para o povo”, a dança em
estádios, a dança em lugares abertos para um grande número de pessoas,
sempre usando a dança para falar das questões sociais e humanas.
Deste prefácio de dançar a vida, quero destacar o seguinte trecho:
Há alguns anos, encontrei na Índia um mestre yogi autêntico e muito considerado. Revelei-lhe meu desejo de fazer yoga da maneira profunda, e não essa ginasticazinha para gente de sociedade com hipertensão a que estamos habituados. Ele me respondeu: “A palavra yoga significa união. Esta união você poderá encontrá-la na dança, pois a dança também é união. Você é dançarino, Shiva, o Senhor do mundo, o grande yogi, tem igualmente o nome de Nataraja, o rei da dança...Você é dançarino, você tem sorte. Que a sua dança seja o seu yoga, não procure outro”. Mais tarde, na hora de nos separarmos, olhou-me e disse: Ah! Se todos os ocidentais pudessem reaprender a dançar”.(BÉJART, 1980, p.9).
Nestas aulas, ao entrar em contato com Béjart e com diversos teóricos,
bailarinos e coreógrafos, fiz minhas escolhas. Para minha formação pessoal
em dança, escolhi o modelo de formação de bailarinos da Escola Mudra e,
busquei, a partir de então, ampliar meu repertório pessoal agregando novos
recursos às peças e aulas em função das necessidades criadas pela opção
estética e temática, como dança afro, tai chi chuan, clown, bufão, dança do
ventre, mímica, lutas cênicas e meditação.
Mas Béjart me oferecia um modelo de escola de dança o que orientou
minha formação pessoal; isso por outro lado, não resolvia meu problema, que
era o de pensar uma dança na escola.
Pensando o espaço da arte na escola, o tempo reservado a ela no
currículo escolar, a primeira conclusão é que está descartada a possibilidade
de pensar numa formação de artista para os alunos. Nesta realidade a
dimensão que eu, professora de arte, dei ao meu trabalho foi a de abrir um
panorama da arte para os alunos, mostrando várias possibilidades e aspectos
da arte e suas práticas, uma iniciação. Mas concluí também que nem por isso a
experiência tem que ser apenas informativa e superficial, pelo contrário deve
97
ser uma experiência que propicie a auto-descoberta e a autonomia dos alunos
para fazerem suas escolhas, no caso da dança, descobertas quanto à
corporalidade que estes desejam desenvolver para si. Considero perverso
engessar uma pessoa, seja criança, adolescente ou adulto numa única forma
de dança sem que antes esta pessoa tenha podido conhecer seu próprio corpo,
sua sensibilidade e as outras formas de dança disponíveis.
Conforme fui estudando, fui encontrando pontos em comum nas
concepções de dança de Garaudy, Béjart e principalmente nas propostas
modernistas de Isadora Duncan para a dança no começo do século XX,
encontrei semelhanças muito grandes entre o que concebiam como dança e o
que eu na época, concebia como expressão corporal.
“Para mim, a dança é não apenas uma arte que permite a alma humana
expressar-se em movimento, mas também a base de toda concepção da vida mais flexível, mais harmoniosa, mais natural. A dança não é como se tende a acreditar, um conjunto de passos mais ou menos arbitrários que são o resultado de combinações mecânicas e que embora possam ser úteis como exercícios técnicos, não poderiam ter a pretensão de constituírem uma arte: são meios e não um fim”.(...) O fim, aliás, não é apenas a expressão pessoal do eu, apenas a explosão espontânea e individualista. O eu, não pode se definir nem se expressar fora do meio que está à sua volta: uma natureza, uma sociedade, uma época com suas revoltas e suas esperanças”. (DUNCAN,1986)
Perguntei-me, então, qual o sentido de duas nomenclaturas diferentes
para coisas tão semelhantes.
Qual a diferença entre dança e expressão corporal?
Foi na fala de Bossu que encontrei uma diferença de concepção
significativa pois, se de um lado Isadora propunha um vínculo com a vida e o
meio, Chalanguier e Bossu desvinculam a Expressão Corporal de uma
finalidade de ordem ideológica ou de ordem ética propondo:
Para nós a expressão corporal constitui um procedimento original de expressão que deve colher em si mesmo as suas próprias justificativas e seus próprios métodos de trabalho. Não se insere por conseguinte nos movimentos de renovação das artes do espetáculo (dança, mímica), nem nas correntes pedagógicas de reeducação (psicodrama – psicomotricidade), embora possa influir em profundidade sobre tudo isso. Como técnica de trabalho, a expressão corporal é uma realidade nova; está tudo por fazer e é preciso assumir alguns riscos para que ela saia da fase dos vagidos. (CHALANGUIER & BOSSU, p.15)
98
Ao mesmo tempo em que propunham a Expressão Corporal como uma
nova disciplina, seus exercícios eram muito semelhantes aos do teatro e da
dança.
Confrontando essas idéias, cheguei à conclusão de que, na verdade era
a dança que havia sido retirada da vida e do cotidiano das pessoas e era ela
que deveria ser resgatada porque é uma forma de expressão natural do ser
humano.
Intrigava-me muito um curso de formação de professores de arte que
tinha, em seu currículo, todas as linguagens artísticas (plástica, desenho,
fotografia, cinema, teatro, música), no núcleo denominado Formas de
Expressão e Comunicação exceto a dança e em seu lugar a Expressão
Corporal, quem sabe influenciado por estas linhas de pensamento.
Mesmo por que expressão corporal? Se já havia o teatro onde esta
atividade faz parte do trabalho de preparação de ator? Imagino que talvez por
que a concepção do curso também não tivesse a resposta para a mesma
pergunta que eu fazia a respeito de que tipo dança deveria fazer parte da
formação desse arte educador.
Talvez a dança tenha sido evitada por que poderia incorrer na idéia de
que dança seria apenas o balé clássico, obviamente uma linguagem impossível
de ser tratada de forma prática num curso como esse e que por suas
exigências físicas restringe possibilidade de participação integral de toda a
classe nas aulas práticas.
Por mais que SALZER (1972) classificasse as atividades corporais
segundo os seus objetivos específicos, ainda faltava a palavra arte, a questão
da linguagem o que me levou a optar pela dança enquanto arte (preservando
sua característica de linguagem artística, implícitas ai suas questões em
relação à expressão e a estética) mesmo que apenas numa situação que
Salzer classifica como não-habitual ou seja está numa região entre a
expressão corporal cotidiana e a do espetáculo em que se desenvolve o auto-
conhecimento e a auto-expressão.
CHALANGUIER e BOSSU (s.d.) também abrem espaço para a questão
das atividades corporais e suas aplicações terapêuticas, tema que na época
era muito discutido e que para mim, era muito evidente a opção que deveria
fazer neste caso e que reforça minha escolha pela dança.
99
Desde o início ficou muito claro que minha formação é de artista e que,
para aplicar um trabalho corporal com fins terapêuticos, um profissional precisa
ter uma formação mais específica na área de saúde.
Por outro lado, também não se podem ignorar os inevitáveis efeitos do
trabalho corporal na psique dos alunos, o que deixava muito nítido que, estaria
o tempo todo trabalhando numa região de fronteira entre a arte e a terapia e,
portanto, clareza, rigor e coerência tornaram-se elementos fundamentais ao
meu trabalho.
Escolha feita, faltavam uma técnica e uma metodologia para essa
concepção de dança.
A dança que buscava estava contida na proposta de Duncan mas na
ocasião, tinha apenas contato com suas teorias através de livros e textos;
faltava-me a prática a que naquela época não tive acesso. Somente muito mais
tarde pude conhecer o trabalho Marília de Andrade41, além de assistir aos
espetáculos de Lori Belilove quando esteve no Brasil, mostrando seu trabalho
de preservação das coreografias e da continuação das idéias de Duncan sobre
a dança.
A necessidade de ter um método de ensino e uma técnica corporal como
guias era premente e foi também nas aulas de Yolanda que entrei em contato
pela primeira vez, com as teorias de Laban.
As propostas de Laban para o ensino da dança, comparadas às técnicas
de dança clássica e moderna, apresentavam um diferencial; não se baseavam
em movimentos pré-codificados (passos, posições, etc.), permitindo, assim,
uma liberdade de criação de movimentos pelos alunos e garantindo espaço
para a construção de uma expressão própria, baseada na compreensão do
movimento e suas estruturas internas fundamentais, que geram temas de
movimentos a serem explorados, desenvolvidos e pesquisados em aulas de
improvisação.
41 “a cura di Eugenia Casini Ropa...Con la partecipazione di alcune delle maggiori studiose internazionali
e di danzatrici duncaniane della terza e quarta generazione, che ne hanno mantenuto in vita e tramandato
creativamente le coreografie e i principi orchestici, il progetto si propone come primo momento italiano
di riflessione aggiornata sulla Duncan alla luce delle nuove acquisizioni. Unendo l'esperienza pratica alla
considerazione teorica, prevede dimostrazioni di lavoro e workshops di danza di Marilia de Andrade
(Brasile), Barbara Kane (Inghilterra) e Françoise Rageau (Francia); due diversi spettacoli di danze duncaniane dell'Isadora Duncan Dance Group (Parigi/Londra); un incontro dedicato ai video di danza
delle maggiori interpreti duncaniane di oggi;” (L’EREDITÀ, 2002)
100
Nas aulas práticas da faculdade havia começado a dançar novamente.
Havia encontrado uma forma de dança que acolhe a anatomia humana,
tornando a dança acessível a todos, não apenas aos bailarinos profissionais.
O curso terminou e eu ainda precisava saber mais. Yolanda me orientou
quanto a uma série de cursos em que poderia me aprofundar em Laban, na
prática.
Naquela época apresentou-me a um grupo de professores de dança
que se formara em torno de D. Maria Duchenes, que trouxe o trabalho de
Laban para o Brasil. A partir desses contatos pude observar a grande
versatilidade deste trabalho e suas múltiplas possibilidades de aplicação, na
educação, na dança, no teatro e na psicologia.
Esses contatos, ao longo dos anos, me ajudaram a escolher a proposta
de Laban para meu trabalho, por propor um ensino humanístico que pensa a
formação do ser humano, preservando sua individualidade, livre expressão, e
liberdade de escolha.
Com Cibele Cavalcanti fiz um curso de formação pedagógica neste
método, em que aprendi aspectos didáticos do ensino da dança entre outros,
sua aplicação nas diferentes faixas etárias.
Com Maria Cecília Pereira Lacava42 (Cilô), aprendi muito sobre
pedagogia, sobre a importância da brincadeira infantil na educação, o
conhecimento sobre os tempos e disponibilidades internas para o aprender.
Também com ela conheci a possibilidade de trabalhar com atividades de
artes integradas e, mais ainda, sobre a formação de professores de dança. Cilô
tem sido uma importante referência ao longo de todos esses anos.
Com Acássio Vallim tive a oportunidade de participar de suas reflexões
sobre o ensino da dança clássica e de seu projeto de reformulação curricular
da Escola Municipal de Bailado, que ampliou a formação de bailarinos,
introduzindo disciplinas como História da Arte e História da Dança, Anatomia,
Improvisação e Música, trazendo uma nova dimensão a essa formação
profissional.
42 Arte Educadora, Pedagoga, Terapeuta Corporal com especializacão em Cinesiologia Psicológica-Integração Físio-
Psíquica pelo Instituto Sedes Sapientiae. Eutonista. Formada por Maria Duschenes - Arte do Movimento/Improvisação
101
Com Maria Momehnson tive a oportunidade de atuar em duas de suas
coreografias, Ronda à margem da Serpente de 1992 e Velados de 1994 e
também conhecer por dentro o processo de criação coreográfica na estética da
dança-teatro alemã.
Com Joana LOPES (1981), primeiramente através de sua pesquisa pude
compreender as fases do desenvolvimento do jogo dramático infantil, uma
importante contribuição o ensino do teatro nas diferentes faixas etárias.
Depois pessoalmente pude aprender com ela muito sobre o trabalho de
Eugenio Barba sobre antropologia teatral, sobre as idéias sobre
transdisciplinaridade no ensino da arte. Mais tarde ao entrar em contato com
sua investigação “O Teatro Antropomágico Dança, Som, Palavra”, pude sentir
claramente a contribuição e o surgimento de novos conceitos que influenciaram
fortemente meu trabalho redirecionando-o e fortalecendo a idéia de que o
ensino/aprendizagem da dança e do teatro envolve a experiência da
construção da obra artística embora deste resulte também, uma concepção de
caráter teórico que aprofunda, a experiência e, a construção de um
conhecimento a respeito o objeto de estudo , a linguagem artística em si.
A primeira questão defrontada ocorre no nível de recuperar o sentido de jogo, característica fundante de nossa criação auto denominada Antropomágica. Por outro lado, e inevitavelmente, ocorre a necessidade de buscar uma interdisciplinaridade de linguagens artísticas como também construir uma informação que não se restringisse à cena teatral mas pertencesse à história, à antropologia cultural, à educação como campos prioritários de apoio. A linguagem artística da experiência passa a ser Teatro/Dança.” (LOPES, 1998)43
Também participei de alguns de seus workshops, em que aprofundei
meus conhecimentos sobre o trabalho prático com as dinâmicas de movimento
e sua utilização numa composição coreográfica, composta a partir de diversas
referências estéticas multiculturais.
Passaram-se os anos e novos desafios profissionais foram aparecendo.
Minha trajetória passou a caminhar num ritmo intenso de experiências, cada
vez mais diferenciadas. Saí da Faculdade de Belas Artes, passei a trabalhar
no curso de Educação Artística da Faculdade de Artes Alcântara Machado ao
43 Este texto foi extraído do volume O Teatro Antropomágico: Dança, Som, Palavra., pesquisa
desenvolvida no departamento, que explora a relação pendular entre a palavra e o movimento em função
do Teatro-Dança. É uma contribuição à disciplina Coreologia (LABAN, 1978), tomando o nome de
Coreodramaturgia: a Dramaturgia do Movimento.(LOPES,1981).
http://www.nics.unicamp.br/cadernoum.htm
102
lado de Cilô, numa outra concepção de curso. Também assumi as aulas de
História da Arte e de História da Dança na Escola Municipal de Bailado. Assumi
a assessoria de arte educação na Escola Nova Lourenço Castanho, onde
trabalho até hoje, e pude realizar minhas idéias concretamente. Na mesma
escola assumi aulas de teatro para adolescentes no ensino fundamental.
Nestes novos desafios pude experimentar muitas formas diferentes de
aplicação das propostas de Laban, no teatro, na dança e na educação.
Neste processo de aprendizagem permanente, mais recentemente
encontrei auxilio em MARQUES (1999) para organizar minhas idéias a respeito
da ciência que Laban chamou de coreologia (choreology) e seus estudos das
dinâmicas (eukinetics), do espaço (choreutics), e da escrita da dança
(kinetography). Concluí que essas tem sido minhas principais ferramentas de
pesquisa, porque isso me permite estudar profundamente as estruturas do
movimento humano que geram a dança, viabilizando, assim, um maior
conhecimento da “ordem oculta” dessa arte, ou seja, de seu código, ou
elementos estruturais.
Entretanto, apesar de ter iniciado meu trabalho docente tendo Laban
como modelo também como concepção de uma educação essencialmente
através da dança, ao longo de minha trajetória do modelo inicial, na prática
docente fui me diferenciando por entender que essa proposta limitava a dança
na educação apenas a um exercício de auto-descoberta e livre expressão,
retirando da mesma sua dimensão de linguagem artística, enquanto forma de
comunicação humana. Assim, nesse processo que poderia dizer intuitivo,
passei a interpretar a coreologia de Laban como uma nova técnica de dança,
em que podia identificar e reconhecer os elementos da linguagem e apropriar-
me deles, não apenas com uma preocupação de desenvolver a expressão, a
espontaneidade, a criatividade, mas também acrescentando a isso uma
intenção estética e artística. Conseqüentemente, confirma-se como um
caminho válido não só pelos resultados obtidos no meu cotidiano como
também pelas parcerias que encontrei, entre os que, assim como eu, se
dedicam ao estudo da dança na educação.
Através do estudo coreológico, o aluno/dançarino pode debruçar-se sobre a dança em si, centrar-se na arte, nos mecanismos de movimento e não somente
103
naquilo que poderíamos alcançar através deles (expressão, equilíbrio emocional, sociabilidade, etc.). O enfoque coreológico para o ensino da dança, tal qual trabalhado por Valerie Preston-Dunlop (1987, 1989, 1992), discípula de Laban, enfatiza a possibilidade de discriminação, percepção e avaliação diferenciada da dança em suas várias modalidades: pesquisa, educação, escrita, performance e coreografia.
No que diz respeito à educação, através do enfoque coreológico é acessível ao aluno o sub-texto da dança, de modo que se processe um aprendizado que “ insistirá que a dança é um evento conhecido apenas pela fusão simultânea do fazer, ter sensações, pensar e sentir no ato de conhecer com dicernimento o evento estético “Preston-Dunlop, 1988, p.229). O aprendizado através do sub-texto, permite assim, que o aluno processe as informações recebidas nos diversos níveis (corporal, intelectual; de dentro ou de fora; racional ou intuitivo), exercitando suas capacidades ativas de aprendizado (Preston-Dunlop, 1992)”. (MARQUES, 1999).
Ainda ao longo de minha prática, ao recorrer aos trabalhos teóricos de
Laban, me ressenti da ausência de uma proposta de trabalho corporal, como
preparação para o movimento, o que me levou a uma pesquisa de técnicas
corporais como o físico FELDENKRAIS (1977) e a anti-ginástica de Thérèse
BERTHERAT (1982) entre outras. Em função do caráter prático das aulas, e
principalmente por trabalhar com alunos sem nenhuma experiência na área,
senti a necessidade de estudar anatomia e técnicas de massagem,
sensopercepção e relaxamento, para que lhes pudesse dar atendimento e
orientação nas dificuldades físicas que apareciam no cotidiano das aulas;
porque o corpo, neste caso, é o instrumento de trabalho que precisa estar
“afinado” para poder executar a dança.
Outro problema, que tive que elaborar nesse processo de diferenciação,
foi a do contexto, no momento em que, por uma questão de origem cultural
diversa da minha, as temáticas utilizadas por Laban para os exercícios de
movimento eram muito distantes da realidade em que eu me inseria, não
permitindo, portanto, que obtivesse o envolvimento e a motivação de meus
alunos nas propostas de trabalho; concluindo assim, que também teria que
fazer escolhas estéticas para o meu trabalho.
Revendo os momentos em que fiz essas escolhas, identifiquei conceitos
reunidos para minha reflexão, que tiveram participação determinante nas
minhas escolhas.
Quando digo que meu modelo de professor de arte é o do
professor/artista é porque acredito que para ensinar arte é necessário saber
fazer arte, ser artista. Somente quem vive pessoalmente a complexidade de um
104
processo de criação é capaz de compreender o que o outro está vivendo e
saber como ajudar na superação de situações bastante difíceis, de intensa
tensão, que acontecem durante a execução de um trabalho artístico - o
desespero de não saber o que fazer diante de uma folha em branco, não saber
o que quer dizer, como dizer, ou que cores escolher. Nessas situações
experimenta-se sentimentos de angústia, medo, frustração, raiva, decepção.
Isto por que a arte, em seu fazer, em sua teoria e fruição, nos desafia a
encontrar os caminhos possíveis para trazer o imaginário para a realidade e a
aprender a lidar com limites, frustrações, erros, descobrindo o respeito pelos
materiais, compreendendo a necessidade da precisão, da determinação, da
busca de soluções para problemas criados. Finalmente, diante do trabalho
pronto reconhecer seu interior mais profundo, naquilo que construiu como sua
expressão, a obra de arte.
O trabalho artístico implica a produção de uma obra, a ser exibida para
um público de forma perceptível pelos sentidos humanos, uma música, uma
poesia, uma pintura, uma escultura, uma cena de dança ou de teatro. Por essa
razão, a obra de arte está feita para sensibilizar para formas de
relacionamento, do eu com o objeto, de si consigo mesmo, do “eu” com o outro,
do eu com o mundo em que se vive.
As obras de arte são criadas sem uma função relacionada à vida prática,
o que amplia a possibilidade da multiplicidade de fruições.
Assim sendo, quem se propõe a participar desse processo de
aprendizagem/criação precisa saber estimular o aprendiz , encorajar, evitar que
desista, criticar com precisão, intervir, lançar desafios, compreender as idéias,
discutir, analisar, informar, esclarecer e tantas outras coisas. Assim como não
deve tolher a criatividade, a espontaneidade, a originalidade, do aprendiz.
Uma das coisas mais difíceis é saber discriminar seu lugar num trabalho
que se faz junto mas que é do outro e, por isso mesmo, senti que precisava ter
meu próprio processo de criação/investigação que, por sua vez, alimenta o
trabalho da sala de aula.
Pensando a respeito da posição que deveria assumir diante dos grupos
de trabalho, observei que, nas artes plásticas predominam os trabalhos
individuais e nas artes cênicas o processo de criação coletiva e analisando o
tipo de trabalho que desejo desenvolver o lugar que encontrei para ocupar na
105
sala de aula é o lugar equivalente ao do diretor no teatro, ao do regente da
orquestra e ao do coreógrafo na dança, um artista que propõe ao grupo a
realização de um trabalho artístico.
Por uma questão de afinidade, como uma conseqüência natural de
minha investigação e da própria origem de meu trabalho no teatro, em grupos
experimentais e de pesquisa a estética que escolhi para desenvolver nas
minhas aulas de dança foi a da Dança-teatro44 que teve origem no
expressionismo alemão, iniciada por Kurt Jooss45, uma estética que se situa
numa região fronteiriça entre o teatro e a dança. Jooss46 associou intimamente
a dança ao teatro mais particularmente à mímica.
Entretanto, em termos formais, a dança-teatro que tenho como
referência tem sido o trabalho de Pina Baush47, aluna e continuadora do
trabalho de Jooss, coreógrafa extraordinária que criou uma expressão muito
própria, cultiva o choque, a sofisticação e a brutalidade. Essa estética do
estranhamento rompe com a previsibilidade das sensações esperadas na
dança pelo público, que reage ou com adoração ou abomina esse trabalho.
44 Cercano a nuestros días y tal como se lo conoce actualmente el movimiento Danza-Teatro se inicia con el
Expresionismo alemán, después de la Primera Guerra Mundial y se consolida con la creación de la Folwang
Hochchule de Essen Werchen, por Kurt Jooss (1901-1979), en la cual la educación interdisciplinaria abarca todas las
ramas del arte: música, pantomima, fotografía, ópera, etc. Este fenómeno no es una caprichosa casualidad sino, en
primer término, producto de las circunstancias históricas, tanto como del accionar iconoclasta de los artistas del siglo
XX, suficientemente explícitos en sus manuscritos, unidos a las características esenciales del espíritu germano, a sus concepciones sobre la naturaleza y el hombre, cuya salvación depende del accionar y de las propias fuerzas.
La Danza-Teatro utiliza gran diversidad de movimientos -no sólo los que pertenecen a determinada escuela-, gestos y
actitudes son imágenes vivas y sinceras que traduce el infinito ritmo de sus sentimientos. No busca un realismo
fotográfico. Cada situación está dirigida por la afectividad. El juego diverso de innumerables manifestaciones
permiten al intérprete representar la descripción de agudos momentos de sus íntimas contradicciones. Esta corriente
de la danza moderna, con su impronta alemana, trascendió los límites de su origen para expandirse por el mundo entero y enriquecer diversas búsquedas personales.
Resultaría prácticamente imposible pretender determinar cuáles características pertenecen a una u otra categoría, dado lo intrincado de la trama y lo difuso de las fronteras.
Pina Bausch, al referirse a sus producciones, aunque evada rótulos, habla de danza. Tadeus Kantor decía que lo suyo
era teatro. Igual temperamento adopta el Kirov de Leningrado en su puesta "La historia del caballo". Esta situación
posibilita pensar que la cuestión pasa más por el abordaje, la información de base y la visión artística del producto final que tengan los diversos realizadores.
Aún en lo que enequívocamente se puede individualizar como Danza-Teatro, existe una diversidad de enfoques y
notables diferencias. No son lo mismo las obras de Bausch que las de Susanne Linke. John Krenek no puede
confundirse con Reinhild Hoffmann, ni ésta con Heindrum Schwartz, ni Hans Van Manen, por nombrar sólo los más destacados en la actualidad.
45 http://www.danzarevista.com/edicion_15_11/paginas/opinion.html 46 http://www.idance.hpg.ig.com.br/colunistas/dagmar.htm 47 htt://zonanon.com/abc/bausch.html
106
(...) de todos os herdeiros da dança de expressão de antes da guerra, Pina é com certeza aquela que mais claramente assume as suas conseqüências. Partindo da tradição de Kurt Jooss, e com base no trabalho da ópera de Wuppertal que assumirá a partir de 1973, ela vai inventar uma nova forma de espetáculo, no qual as categorias deixam de fazer sentido, e que reflete incansavelmente a perda vivida pelo homem nos sistemas sociais estereotipados e hipócritas, nos quais até mesmo os jogos de poder parecem artificiais. Os seus espetáculos têm, por outro lado, qualquer coisa que é ao mesmo tempo parada, opereta e happening.
O tema favorito de Pina permanece a denúncia dos códigos de sedução. Dá-lhe
formas diversas, mas uma das mais deslumbrantes continua a ser a de Barba-Azul (1977), um trabalho construído a partir da partitura com o mesmo título de Bela Bártok. Desde as suas primeiras peças, como Orfeu e Euridice, encenada pela ópera de Gluck, ou da Sagração da Primavera, ambas de 1975, até aquelas, terrivelmente austeras, que montará durante a década de oitenta, a sua obra vai-se deslocando imperceptivelmente para a original forma de dança-teatro (tanztheater) que inventará. A evolução da sua dança assemelha-se aliás a um verdadeiro corte das raízes, a partir do qual se assiste, gradualmente, à formação de uma nova linguagem, cujo primeiro passo será a aparente perda desse tipo de movimento que é convencionalmente associado à dança.” (BAUSCH, 2002)
A Dança-teatro possui toda a carga emocional e psicológica que o teatro
proporciona ao ator, enquanto dá vida aos personagens com toda a
expressividade que os movimentos da dança trazem para o palco.
Com isso, ocorre uma fusão emoção-expressão, permitindo uma abertura
maior, no leque da criação artística, tanto para os atores/dançarinos como para
encenadores; há uma liberdade maior, uma fuga dos convencionalismos
impostos, tanto pelo teatro como pela dança.
Com relação à temática, essa opção me permite um amplo leque de
possibilidades; tenho procurado trabalhar com temas relacionados ao meu tempo
e à realidade dos alunos em criações coletivas ou recorrendo a textos literários,
jornalísticos, filosóficos para subsidiar na composição do desenho de
movimentos, das cenas e sua roteirização.
O processo de criação se baseia na pesquisa, através da improvisação,
que favorece a expressão individual, alimenta a criação de uma partitura de
movimentos a serem codificadas.
107
Inspirei-me, também, no trabalho de diretores teatrais como Peter
BROOK (1995) e Eugenio Barba48 e na brasileira Bete Lopes com quem tive a
oportunidade de trabalhar na montagem de Os brutos também amam de 1993.
Revisitando este processo de procura por uma metodologia de ensino
pessoal percebi que no início copiava ...
Suponho que todo mundo começa a dar aulas copiando; eu também
comecei assim, copiando as aulas de meus professores favoritos. Logo percebi
que, apesar do recurso da cópia das aulas, na arte em geral só consegue
ensinar quem já o vivenciou na prática; quem passou pelas correções, pelos
erros e acertos neste fazer, não adiantava apenas colecionar receitas de aulas
de outros professores ou extraídas de livros mas sim sistematizar uma forma
de registro das minhas experiências.
Passado algum tempo, havia elaborado meu próprio repertório de aulas
e elaborarei, então, uma forma de registro para as que fazia com meus
professores e para as que eu elaborava; são histórias em quadrinhos das aulas
com textos curtos e desenhos dos movimentos.
Mas, mesmo que se queira, logo se descobre que é impossível
simplesmente copiar. Exatamente porque cada grupo é um grupo, cada espaço
é diferente, cada instituição é diferente e possui sua própria cultura e, por mais
que se tenha um modelo ideal, na verdade deve-se sintonizar seu trabalho com
o projeto pedagógico da instituição e adequá-lo para cada situação diferente
que se vive em sala de aula.
Revendo meus planejamentos, percebi que, no início, apesar de dar
aulas práticas, ainda mantinha uma abordagem conteudista, elencando e
ordenando conteúdos de forma cumulativa, pensando apenas uma formação
técnica de professores de arte que pudessem utilizar a dança como recurso em
suas aulas.
Quando tive que aplicar esse conhecimento em aulas para adolescentes
entendi que essa estrutura de trabalho não servia para os novos objetivos.
48 ... Since 1974, Eugenio Barba and Odin Teatret have devised their own way of being present in a social context
through the practice of theatre "barter". Subsequently other forms of popular itinerant performing, including
acrobatics and the grotesque, have become part of their dramaturgy. In 1979 Eugenio Barba founded ISTA,
International School of Theatre Anthropology. He is on the advisory boards of scholarly journals such as The Drama
Review, Performance Research and New Theatre Quarterly. Among his most recent publications, translated into
several different languages, are The Paper Canoe (Routledge), Theatre: Solitude, Craft, Revolt (Black Mountain
Press), Land of Ashes and Diamonds. My Apprenticeship in Poland, followed by 26 letters from Jerzy Grotowski to
108
Tantos desafios vieram com essas novas situações que fiquei
mergulhada um bom tempo no estudo desse ensino, nas diferentes faixas
etárias, em situações de escola formal, em espaços culturais e entidades
comunitárias. Estudando como e onde isso podia acontecer.
Foi um conhecimento que construí no dia a dia, confrontando as teorias
de ensino e da arte com a prática da sala de aula. Construindo um
conhecimento e percebendo, em cada aula, como ensinar é sinônimo de
aprender.
Para aprender a criar minhas próprias propostas de trabalho, aos
poucos, fui resolvendo problemas nos três elementos que, pude identificar, que
acontecem simultaneamente na sala de aula; a relação professor/aluno/classe,
os objetivos/conteúdos/habilidades e a adequação das atividades ao tempo de
duração da aula.
Pude observar que esses três elementos são sempre constantes na
organização de um planejamento e que, para cada situação, eles se articulam
de maneira diferente.
Creio que a primeira coisa importante que aprendi é que, em função dos
objetivos e conteúdos, é preciso ter-se um esquema inicial de planejamento,
baseado nas especificidades da disciplina mas, antes de montar e impor à
classe um planejamento definitivo, é necessário fazer um diagnóstico do grupo
e da situação em que seu trabalho vai acontecer. O que, numa abordagem
conteudista receberia o nome de “perder tempo de aula”.
Para fazer este diagnóstico é possível usar várias estratégias diferentes,
de acordo com as diferentes faixas etárias e objetivos, desde uma simples
conversa com os alunos, jogos de integração, de memória, vivências,
improvisações até resgates de memória de história de vida, utilizando-se uma
infinidade de recursos para este trabalho.
Com isso é possível trabalhar a partir do conhecimento da realidade do
aluno, saber seus pré-requisitos físicos, emocionais, culturais. Isso torna
possível acessar os conteúdos significativos do grupo/classe, que possibilitarão
a criação de propostas em que poderão criar vínculos afetivos com o trabalho,
Eugenio Barba (Black Mountain Press) and in collaboration with Nicola Savarese, The Secret Art of the Performer
(Centre for Performance Research/Routledge).(BARBA, 2002)
109
o que contribui fortemente para o envolvimento dos alunos e para a formação e
união do grupo.
A dança e o teatro, como já disse, implicam uma criação coletiva,
portanto é preciso trabalhar o grupo todo, todos juntos, envolvidos num único
projeto.
Embora seja difícil conseguir um grupo trabalhando em função de um
objetivo comum - o que nem sempre é possível - isso deve ser uma meta,
porque quando isso acontece, é maravilhoso para o crescimento de todos.
Feito isso, é mais fácil planejar as aulas que costumo preparar de forma
diferenciada, especificamente estruturadas para cada grupo, respeitando suas
diferentes dinâmicas e individualidades.
Utilizando essa estratégia posso, assim, iniciar meus trabalhos com uma
maior segurança e mais liberdade para me dedicar ao relacionamento com a
classe, mais tarde, com a evolução desse relacionamento, porque posso,
também, perceber cada um individualmente.
Conforme as experiências foram se acumulando, fui percebendo a
importância do relacionamento professor/aluno, uma relação que precisa ser
construída e, no caso da dança, tem suas peculiaridades.
Nas aulas de dança, o instrumento de trabalho é o próprio corpo, ou
seja, o aluno e o professor estão vivendo uma experiência de alto nível de
exposição pessoal, por isso procuro estar muito centrada e ter muito cuidado
no trato com cada um, na condução dos relacionamentos interpessoais na
classe. É fundamental, para mim, desenvolver uma atitude de respeito e
delicadeza no grupo, criar um ambiente seguro e acolhedor, para que todos
possam se expor em segurança e viver uma experiência prazerosa de
crescimento e aprendizagem.
Dar aula de dança é uma experiência fascinante em que eu me vi
completamente envolvida, no momento em que me percebi capaz de ler e
entender meus alunos. Baseando minhas análises de aula na leitura de
movimentos, pude compreender o corpo humano como um material repleto de
recursos expressivos. Na dança se aplica a criatividade em si mesmo,
enfrentando os limites na própria pele e vive as sensações estéticas no exato
momento de sua criação. A forma é imediata e fugaz, mas fica gravada no
corpo e na alma para sempre. É uma experiência em que me sinto em
110
comunhão com meus alunos, compartilhando suas conquistas de muitas
maneiras diferentes.
Com meus alunos aprendi a acolher os erros, comemorar as vitórias,
apoiar as dificuldades, a esperar os diferentes tempos de aprendizagem de
cada um e a respeitar o meu próprio tempo.
Principalmente com meus alunos adolescentes, aprendi que é
necessário conhecer seus gostos, sonhos, opções estéticas e, mais que tudo
saber comunicar-me usando sua linguagem muito especial repleta de gírias e
expressões carregadas de novos significados, a cada geração que se sucede.
Com meus alunos questionadores aprendi a aprender com eles, a entrar
em contato com o meu não saber e a aceitar suas contribuições/críticas.
Aprendi a olhar para os alunos, ler seus processos, trabalhar com suas
histórias, acudir, apoiar, discutir, criticar, falar e calar, esperar.
O relacionamento professor/aluno numa aula de dança acontece como
um pulsar, começa como o movimento de inspiração, o carregamento da
energia, os momentos em que o professor está fazendo a aula junto com o
aluno, num corpo a corpo.
Passa para um estado de pausa intermediária, quando se adquire uma
fluência na aula, baseada na confiança, em que todos estão envolvidos com
um mesmo tema ou problema.
Nos momentos finais da aula, como na expiração, dá-se uma etapa no
trabalho em que um certo distanciamento do professor se faz necessário para
acompanhar, orientar e desenvolver autonomia do aluno em seu processo de
aprendizagem na função do “olhar de fora” que estuda a intervenção correta no
tempo exato.
Percebi a importância de se reconhecer quando está em
desenvolvimento um processo de aprendizagem/criação no grupo. A leitura
deste processo e seu acompanhamento é que vão determinar os passos a
serem dados por mim na condução das aulas, para evitar que os processos se
interrompam precocemente, ou que se desviem dos objetivos traçados pelo
grupo.
Passados os momentos preparatórios iniciais, sinto a necessidade de
planejar aula por aula para cada turma, observando criteriosamente, sentindo
se a aula foi produtiva e criando espaços para as contribuições e interesses
111
dos alunos que muitas vezes surgem de forma inesperada, superando inclusive
as minhas expectativas; provocando rupturas e saltos nas etapas previstas,
que tornam desnecessárias algumas atividades anteriormente previstas no
planejamento.
Esses procedimentos de avaliação permanente me ensinaram a
redirecionar a aula que não deu certo. Aprendi que há muitas maneiras de
abordar um mesmo assunto e muitas outras de motivar o aluno a fazer as
atividades que propõe. Essa forma de avaliação, baseada nos resultados
obtidos na aplicação prática de minhas teorias, também me ajuda a
desenvolver, sempre que necessário, novos objetivos e estratégias.
Relacionando os conteúdos com a duração e quantidade de aulas do
curso e com a dinâmica da classe, com o tempo, aprendi a planejar e conduzir
o que chamo de “uma aula redonda”, uma aula com começo meio e fim, que
vai num crescendo, tem um desenvolvimento fluido e chega a um resultado
final.
Basicamente, a estrutura das minhas aulas é organizada de modo que
os itens que considero essenciais para o trabalho possam se alternar de
acordo com a evolução e a realidade do grupo de trabalho:
a) trabalho corporal, relaxamento, massagem, exercícios, alongamentos,
(técnica);
b) jogos de integração, memória e imaginação;
c) meditação e sensopercepção;
d) improvisação/pesquisa de movimentos/temas de movimento/ampliação de
repertório;
e) improvisação/criação/temas de movimento: forma/espaço, dinâmicas,
impulsos, estados, ritmo;
f) composição: coreográfica, teatral/montagens;
g) apresentação/troca/ampliação de repertório;
Senti que havia atingido uma certa maturidade profissional e adquirido
domínio sobre o meu ofício de professora quando passei a ter menos
problemas de disciplina nas aulas e não precisava mais de tantos registros e
esquemas. Quando me equipei com uma boa quantidade de material didático,
112
textos, livros, vídeos, músicas, figurinos, tecidos e equipamentos específicos
para preparação corporal. Quando ao entrar serena numa aula estou segura do
que vou fazer e sempre preparada e aberta para acolher o inesperado. Mais
ainda, quando um sentimento de alegria me invade ao encontrar o brilho do
olhar dos alunos à minha espera.
Me senti professora quando me vi entrando na sala como se entra num
palco, concentrada e humilde, determinada a fazer um bom espetáculo ao lado
de meu grupo. Com a postura de quem vai para um ritual comungar com seus
parceiros algo transcendente e transformador.
Experiência após experiência, um belo dia me dei conta de que haviam
se passado quase duas décadas desde que havia iniciado minha jornada de
professora, a de 80, estudando e pesquisando e a década de 90,
desenvolvendo meu projeto pessoal. Foi então que percebi que minha relação
com a prática pedagógica havia se tornado muito parecida com uma relação de
artista com sua arte, uma relação em que este se apóia na técnica para criar,
adquire um domínio completo sobre ela a ponto de poder esquecê-la e
incorporá-la ao seu trabalho, criando, desta forma, uma unidade entre forma e
conteúdo.
Mal havia terminado estas constatações, o trabalho com projetos entrou
na minha vida de duas maneiras diferentes, provocando um novo desequilíbrio
e profundas transformações.
Apesar de, em todos os meus cursos, eu sempre prever um resultado
final, ou seja, uma peça ou performance que considero tratar-se de um projeto,
meu enfoque ainda priorizava o desenvolvimento de conteúdos e habilidades,
isso porque percebi que era muito presente em meu trabalho uma estrutura de
planejamento em que havia uma preocupação em desenvolver pré-requisitos,
no sentido de preparar o aluno antes para poder depois iniciar o trabalho
expressivo onde terá que reunir todos os conhecimentos num trabalho de
criação.
A primeira necessidade de mudar meu trabalho veio em conseqüência
de mudanças na distribuição das aulas de arte na escola para que os alunos de
5a a 8a séries pudessem ter experiências em duas linguagens artísticas, artes
plásticas e teatro em vez de apenas uma. Com isso meu tempo com cada
113
turma ficou reduzido a um semestre o que impôs uma mudança radical no meu
trabalho.
Toda a seqüência de trabalho que eu havia criado teve que ser
desmontada e reorganizada. Tentei preservar os conteúdos que considero
essenciais, criando uma organização diferente. Preservei os trabalhos de
integração, introduzi exercícios de imaginação, de onde os alunos retiram o
tema para a peça que irão montar e, nas discussões em roda, definimos a
linguagem para o tratamento do tema. Roteirizamos as cenas, improvisando o
tema da peça e extraímos, das improvisações as cenas para o roteiro. Depois
disso, para a pesquisa, crio exercícios de interpretação para cada cena e
divididos pelas cenas em que participam, os alunos formam grupos de
produção, como contra-regragem, iluminação, sonoplastia, figurinos e
maquiagem e cenografia. Iniciamos a montagem onde vão, pouco a pouco se
agregando todos estes elementos da linguagem. Nas apresentações avaliamos
se conseguimos unidade, harmonia, ritmo, equilíbrio, avaliamos as
contribuições de cada um e a qualidade de relacionamento de grupo que
conseguimos.
A outra mudança foi na faculdade, quando se instituiu a obrigatoriedade
da participação dos alunos na Mostra de Arte Anual. Nessa situação apliquei a
mesma solução que havia criado para o ensino fundamental, incluindo, aí
conteúdos sobre a pedagogia da dança, já que se tratava de um curso de
formação de professores. Entretanto, a questão da obrigatoriedade de uma
apresentação trouxe à tona para uma nova reflexão a problemática
processo/produto no ensino da arte.
Sempre acreditei que no processo de ensino/aprendizagem da arte o
processo de criação deveria ser minha prioridade e encaro o produto artístico
(o trabalho) como reflexo e conseqüência desse processo de trabalho. No
teatro e na dança a apresentação do produto deve ser uma escolha do grupo e
não uma imposição do professor ou da instituição. Isto por que considero que
cada grupo tem seu tempo de amadurecimento em relação aos
relacionamentos e à linguagem propriamente dita e o produto é resultante
disto. Penso que o produto de um processo não precisa ser necessariamente
um trabalho acabado, mas o conjunto de conquistas obtidas naquele período
de tempo. Muitas vezes, pude vivenciar grupos que, somente no final do ano,
114
atingiram a maturidade suficiente para iniciar a produção de uma composição,
mas o tempo da nossa experiência estava esgotado e não houve possibilidade
de realizar uma peça, apenas algumas cenas e seqüências de movimentos.
Não senti um fracasso nesta experiência, pelo contrário fiquei satisfeita por ter
conseguido a formação de um grupo que, pelo tempo que levou, revela a
dificuldade de seus elementos nessa tarefa, dificuldades essas que foram
superadas. Também considero isso um produto.
No caso da obrigatoriedade, tomei alguns cuidados para que o processo
de criação fosse preservado, no sentido de garantir espaço para a criatividade
e a espontaneidade, pois nesse caso, há o risco de se cair num trabalho
técnico, frio e tarefeiro, perdendo-se pelo caminho todas as possibilidades da
formação e mais ainda, a reflexão e o significado. Procurei orientar os grupos
quanto ao grau de complexidade possível de ser trabalhado naquele
determinado estágio de desenvolvimento na linguagem, porque muitas vezes
se não há esta medida, o processo sofre um esvaziamento ou cai na
superficialidade.
Mesmo sob a pressão da obrigatoriedade, sempre assumi o risco de
preservar o direito da classe escolher apresentar-se ou não, em função de sua
avaliação do produto que obteve.
A experiência de se colocar diante de um público requer segurança do
grupo e além de um trabalho amadurecido, bem ensaiado e bem montado.
Creio também que, dependendo da faixa etária dos alunos, esta nem seja uma
experiência positiva. Sempre senti a responsabilidade de preservar meus
alunos e, neste sentido, também sempre tomei o cuidado de avaliar o tipo de
público que estaria em condições de enfrentar naquele momento. Criei outras
possibilidades de apresentação que tivessem um caráter menos pesado que o
de uma apresentação como por exemplo ensaios abertos com debates com o
público.
Pode parecer que eu seja contra apresentações mas, pelo contrário, sou
completamente a favor, quando o trabalho está em condições de ir à cena. É
uma experiência ímpar que fortalece um grupo e que propicia a vivência de
emoções fortes e importantes para grupos com um bom grau de
amadurecimento.
115
O amadurecimento a que me refiro revela-se pela responsabilidade dos
alunos em relação ao trabalho e ao grupo, pela união, pela seriedade, pela
cumplicidade e agilidade que dão uma estrutura firme ao trabalho. É quando se
pode prever que se alguém esquecer sua parte, haverá sempre outro para
ajudá-lo na cena, quando todos gostam do trabalho que criaram e acreditam
nele. É quando o grupo desenvolve uma autonomia de produção e consegue
fazer uma trilha sonora bem gravada, cronometrada, um cenário que não cai
na cabeça dos atores e os adereços e figurinos estão sempre todos completos,
esperando na cochia, quando os camarins estão limpos e arrumados antes e
depois da apresentação. Há uma organização, uma disciplina de trabalho que
garantem o sucesso do espetáculo que é resultante do amadurecimento do
grupo de trabalho.
Por isso, penso que a exigência de uma apresentação de um grupo de
principiantes em dois semestres de convivência resulta numa exposição
prematura em muitos casos o que pode gerar uma enorme frustração e
conseqüentemente um afastamento da dança e do teatro por um sentimento de
incapacidade.
É claro que há grupos que surpreendem e conseguem conceber uma
peça em apenas um bimestre de trabalho. Ensaiam-na e apresentam-na em
um semestre, o que permite que sejam feitas várias apresentações e não
apenas uma o que considero bem mais enriquecedor. Isso representa
possibilidade de experimentar públicos diferentes, fazer correções na peça em
função de cada retorno recebido. Essa situação seria a ideal e possível se as
disciplinas não estivessem amarradas a uma grade curricular rígida e
pudessem acompanhar o tempo de desenvolvimento de cada grupo.
8 Cena final: os grupos de pesquisa
FIGURA 22 – TRECHO DA PINTURA QUE REPRESENTA OS GRUPOS DE
PESQUISA
116
Foi em função deste sentimento que os grupos permanentes de
pesquisa passaram a fazer parte de meu trabalho, assumindo diferentes
formas ao longo dos anos.
Logo no início da minha carreira, alguns alunos mais interessados
manifestaram o desejo de ampliar suas experiências em dança. Formamos um
grupo de pesquisa que se reunia para trabalhar voluntariamente numa sala da
faculdade durante quatro horas nos sábados, entre as aulas da manhã e as da
tarde, o que permitia que alunos da manhã e da tarde pudessem participar.
Essa experiência me ensinou a estruturar minha pesquisa e a criar um modelo
de grupo de pesquisa. Um grupo em que as relações são mais espontâneas,
sem o peso das notas, onde há uma troca de conhecimentos mais rica, pois há
mais igualdade entre alunos e professor. Neste trabalho de intensa troca eu
entrava com a dança e sua técnica e aprendia muito com os integrantes do
grupo, que trouxeram muitas contribuições para meu repertório como a música,
o humor, sua contemporaneidade e diferentes visões de mundo.
O intenso trabalho de reflexão e crítica formou um grupo que deu origem
a primeira turma de licenciatura em artes cênicas da Faculdade de Belas Artes
de São Paulo.
Quando sai da Faculdade e perdemos o espaço de trabalho, passamos
a vagar de sala em sala pela cidade, até que isso desgastou o grupo que
acabou por se desfazer. Tive ainda a oportunidade de trabalhar com alguns de
seus integrantes em outros grupos que montei posteriormente e as amizades
permanecem vivas até hoje apesar de nenhum deles ter continuado um
trabalho em dança.
Desde então nunca mais consegui ficar sem um grupo para desenvolver
minhas pesquisas em dança. Durante todo esse tempo, numa linha constante
que me acompanha, os grupos sempre estiveram presentes
Quando fui para a Faculdade de Artes Alcântara Machado (FAAM), levei
esta idéia comigo e, em pouco tempo havia montado um novo grupo que
produziu duas performances muito boas que levamos a várias unidades da
faculdade e apresentamos também na mostra de Arte.
A procura por espaços para os grupos de pesquisa me levou até o
Centro de Vivências Terapêuticas, onde além de encontrar abrigo para meu
117
curso livre de dança para adultos, fui convidada por Ingelot Taterka a montar
um curso livre para pessoas especiais. Foi um trabalho que me fez crescer
muito profissionalmente e me revelou a possibilidade de trabalhar com cursos
livres como uma forma de garantir o espaço para os grupos de pesquisa, ou
seja, um trabalho pago não mais voluntário. Digo isso porque sempre orientei
meus cursos livres como grupos de pesquisa, por não gostar da idéia de que
isso fosse apenas um lazer para os alunos; procurei manter sempre viva a idéia
da construção de um conhecimento a respeito de si e da dança.
Na Escola Nova Lourenço Castanho ocorreu um processo parecido com
o que houve na Belas Artes. Assim como ocorrera na faculdade, um grupo de
alunos da sexta série reuniu-se e me pediu que criasse um curso de teatro;
para eles as aulas curriculares não eram suficientes, foi assim a origem dos
cursos livres de arte na escola, depois do período. Trabalhei com esse grupo
durante seis anos, até que todos se formaram no Ensino Médio e seguiram
seus caminhos. Foram seis anos pesquisando, amadurecendo e montando
trabalhos os mais diferentes, em diferentes estéticas, dramas, comédias,
dança-teatro, um trabalho que crescia junto com os adolescentes.
Ao todo foram cinco montagens e muitas apresentações em diferentes
lugares.
Este grupo tornou-se um grupo diferenciado, constituindo lideranças
sociais e políticas na escola, à frente do grêmio estudantil nas reivindicações e
ações sociais, o que me levou a acreditar que as artes cênicas têm uma
contribuição muito importante a dar na formação de valores culturais e sociais
dos alunos que, ao trabalharem sua sensibilidade, desenvolvem o senso crítico
e despertam para a consciência sobre as questões existenciais humanas.
Transferi para a escola o curso livre de dança que funcionava na clínica
e ampliei as vagas para professores e pais da escola.
Os cursos livres passaram a ter uma grande procura e acabei montando
uma equipe de trabalho para atender à demanda. Tinha como idéia inicial
preservar o caráter de pesquisa para estes novos grupos formando com meus
colegas um grupo de pesquisa sobre o ensino das artes cênicas. Porém, a
estrutura empresarial que os cursos impuseram não foi capaz de sustentar
economicamente a pesquisa do grupo de professores. Isso me desmotivou
bastante.
118
Não era minha intenção manter um trabalho em que apenas se
reproduziam os modelos existentes no mercado, nesses tipos de projetos
predomina o aspecto empresarial de cursos livres, focados na idéia de que um
curso de teatro é a montagem, com os alunos, de peças teatrais idealizadas
pelos professores. Insatisfeita, desisti do projeto encerrando, assim, minhas
atividades com cursos livres para crianças e adolescentes.
Mantive apenas o grupo de dança com os adultos, voltei ao ponto de
origem, resgatei meu objetivo inicial, a pesquisa.
Livre das responsabilidades administrativas dos cursos, pude, então,
dedicar-me ao mestrado e a encontrar novos rumos, novos temas para meu
trabalho docente e o de formação de professores; com isso localizo o espaço
da pesquisa como meu espaço na educação.
Compreendo, agora, que paralelamente ao universo tradicional da dança,
também exercitei aprender como auto-didata em dança, construindo o
conhecimento que hoje detenho, do meu jeito, em grande parte nos grupos de
pesquisa e nos cursos livres, no espaço da paixão, enfim numa outra dimensão.
Porém, no momento em que identifico claramente suas marcas no meu
fazer de educadora, vejo que esse saber produziu uma estrutura interna que
resulta numa segurança que traz coerência ao meu trabalho. É o lugar onde
estão ancorados meus objetivos e valores mais profundos que, muitas vezes, na
minha prática pedagógica, se manifestam em forma de práticas intuitivas que
tenho muita dificuldade para explicar.
Diante dos fatos que vivencio em meu cotidiano, do interesse que minhas
práticas têm gerado na escola e na universidade, percebo o quanto foi
importante construir este saber sobre a dança para minha prática docente e
artística.
Provocada por essas constatações me questiono quanto à importância de
socializar esse conhecimento, no sentido de trazer uma contribuição à formação
de professores e cidadãos.
Se possível, também contribuir para o fortalecimento do espaço do ensino
da dança na escola.
119
9 Considerações finais: apresentação/estréia
Estreei, escrevi meu primeiro trabalho científico, registrei a produção do
meu conhecimento.
No último ato dessa coreografia/escrita encontrei com a última imagem
do sári, o xale onde está estampada a imagem de Shiva, uma representação
dos sentimentos que habitam meu coração ao falar de arte, de dança e de
educação. Para mim, Shiva representa, o entusiasmo, a liberdade, a alegria de
viver, a transformação, a renovação da vida, o amor, a esperança, a coragem e
a determinação, sentimentos e desejos que encontro s empre vivos também
nos corações de alguns professores e parceiros que participam da minha
trajetória.
O xale com o qual, num ato de humildade, cubro a cabeça diante do
conhecimento. Percebo quantas vezes eu o usei para aprender diante do novo.
120
Quando, mais gorda que as outras, ia para as aulas de dança parecendo
uma extraterrestre, suar muito mais que as outras, carregar muito mais peso
que as outras, fazer muito mais força que as outras e disputar com elas em
condição desigual um bom papel nas coreografias.
Quando não tinha professores e procurava aprender em espaços não
tão bem conceituados para os bailarinos, no sentido tradicional.
Quando me esforcei para voltar a estudar e me formar, por acreditar que
uma boa educação, nas melhores escolas, com os melhores professores é o
bem maior para que um cidadão possa realizar-se.
Quando, menina inexperiente aceitei, o desafio de viver em São Paulo
para ter acesso ao conhecimento.
Quando segui o instinto de continuar dançando, num contínuo ato de
buscar novas possibilidades de aprender.
A despeito de um físico cheio de limitações e da falta de recursos,
perseverei e enfrentei o desafio do aprendizado de técnicas sistematizadas por
estéticas complexas e desconhecidas, com movimentos sofisticados,
rigorosamente codificados, com leis e regras de composição.
Mas foi esse mesmo corpo que, me ensinou o respeito quando senti que
devia me cuidar para não me machucar demais, devia respeitar os limites na
medida do possível e enfrentar com resignação os períodos necessários de
repouso, sabendo me perceber e atender às minhas necessidades pois é
preciso adquirir responsabilidade sobre o que me acontece e autonomia para
me cuidar, para encontrar soluções para meu aperfeiçoamento técnico.
Todo o universo que há no corpo humano, ossos, músculos ligamentos,
articulações sobre o que aprendi nas aulas de ciências e de educação física,
podia aprender nas aulas de arte, olhando, maravilhada, para os estudos de
anatomia dos artistas do Renascimento. Identifico nesse meu exercício de
estabelecer, a partir da percepção do meu corpo, essas relações entre as
disciplinas, um momento preparatório para que eu aprendesse a transitar nas
regiões fronteiriças do conhecimento.
Foi preciso coragem para entregar-me a uma arte que impõe disciplina
rígida, dedicação exaustiva e permanente para construção de um corpo capaz
de executar as demandas de uma imaginação vigorosa.
121
É muito difícil aprender arte, minha força de vontade foi testada
diariamente; a dança e as artes plásticas, como esfinges lançavam enigmas
sobre mim, enigmas que aos poucos pude perceber, que só meus olhos e meu
corpo poderiam desvendar.
Enfrentando as dificuldades foi, com humildade, que desenvolvi uma
nova atitude frente ao conhecimento; tornei-me mais disciplinada, concentrada,
atenta e reflexiva, observadora, coerente e rigorosa.
Aprendi a domar os impulsos, a lidar com os limites, a observar e
compreender a arte como um ofício, um trabalho, uma profissão.
Foi a partir da força transformadora destas experiências que compus um
corpo e uma identidade que me prepararam para minha inscrição no mundo e,
hoje, posso visualizar a imagem do tipo de pessoa que me tornei optando pela
arte, pela beleza, pela paz, pela ética, pela estética, pelo amor.
Apesar de toda a informação estrangeira moldando meu corpo, minha
cultura, minha expressividade, descobri que minha atitude tinha algo de
diferente - havia em mim uma identidade brasileira muito forte, mãe da minha
rebeldia, da minha espontaneidade, da minha irreverência diante dos “grandes
saberes” que se descortinavam à minha frente, a cada passo da caminhada
orientada por minha voraz curiosidade e um sentimento de liberdade para criar
uma educação para minha realidade.
Mais ainda, estes movimentos, ajudaram-me a identificar muitos
aspectos diferentes de mim que reconheço presentes e vivos constituindo o
conjunto dos meus talentos, a criança questionadora, a adolescente rebelde a
cidadã atuante, a mulher que acredita num mundo mais humano e mais justo,
talentos esses com os quais compus esta professora que vê na educação, na
arte e nos valores humanos (Verdade, Amor, Justiça, Paz, Harmonia) a
possibilidade de construção deste mundo.
Quando portei este xale no peito, fui buscar coragem para romper com a
rigidez das aulas convencionais para entender o meu aluno no lugar de onde
ele está falando.
Se aprendi certas coisas e outras não, é porque acredito que o
aprendizado é seletivo; aprendemos conforme nossos interesses, gerados pelo
que sentimos a respeito das coisas e dos fatos e pelos valores familiares em
nos arraigados. Assim, o conhecimento que resulta é formado pela síntese
122
entre esses elementos. Por isso acredito que, realmente, não existe
neutralidade no ensinar e muito menos no aprender, inevitavelmente os
sujeitos estão presentes e protagonizam a ação.
Coragem para fazer as coisas do meu jeito, experimentar teorias minhas
e de meus parceiros de jornada.
Coragem para redimencionar a relação com a técnica e com o enfoque
das artes na sala de aula.
Porque descobri que, se a técnica no trabalho de criação for entendida
como regra rígida, esta pode ser um empecilho, o que normalmente acontece,
por isso é preciso que seja criada junto com o trabalho, recriada a cada novo
desafio; compreendi que, em artes plásticas, na dança e no teatro, teoria e
prática se fundem e que a técnica, para um artista, precisa estar incorporada
para que se possa criar com liberdade e segurança.
Essa foi a relação que estabeleci com o fazer artístico, a partir de então,
e é o que me serve como base para a elaboração de metodologias para
ensinar a fazer arte. Uma fusão da teoria com a prática, de forma e conteúdo.
Hoje em dia não consigo conceber o ensino da dança em que a teoria
esteja dissociada da prática, como aconteceu durante as minhas experiências
da infância e da adolescência, pois a prática, desprovida da teoria, corre o risco
de tornar-se adestramento, como no caso do balé clássico ou, então, livre
expressão, ou criação aleatória desprovida de intenção como no caso da
expressão corporal.
A somatória dessas experiências trouxe ao meu trabalho artístico uma
reflexão que não existia no balé nem na escola. Ao comparar todas estas
práticas, pensar nas teorias com que entrei em contato, comecei a desenvolver
um espírito reflexivo, a perceber que há sempre uma intenção no trabalho de
criação e passei, a partir de então a fazer escolhas estéticas e a compor
trabalhos, articulando linguagens, influências e referências. Descobri que não
bastava praticar, mas que era necessário também estudar e pesquisar arte,
filosofia e história e, desde então, minha relação com a arte se fez dessa
maneira, sempre buscando um aprofundamento teórico e uma precisão formal.
Partindo do princípio de que todo o conhecimento e toda arte estão
organizados em linguagens foi preciso construir uma prática pedagógica para
ensinar linguagens artísticas.
123
Pois acredito que, ao longo da sua evolução, o ser humano vem
desenvolvendo formas de comunicação em muitos níveis diferentes, ou seja,
em todos os níveis em que é capaz de produzir conhecimento a respeito de si e
do mundo. Desde cedo o homem percebeu a importância de transmitir os
conhecimentos e trocar com o outro as suas experiências existenciais em todos
os níveis em que percebe e se conecta com a vida, seja no nível cognitivo, no
emocional, no sensorial, no espiritual, enfim, em todas as dimensões da vida.
A linguagem das palavras faladas e escritas dá conta de comunicar e
expressar muitas dimensões, pois foram desenvolvidas muitas formas de
textos diferentes, com inúmeras possibilidades de construção. Mas, há
momentos em que se torna difícil dizer o que chamamos de indizível, falar
sobre o insondável, sobre o inexorável, estar diante do desafio de representar
as experiências que se passam no nível da intuição, da percepção e do
instinto. E, nestas circunstâncias, há que se recorrer a linguagens não verbais
porque a natureza de cada experiência determina uma forma de expressão
específica, há, então a elaboração das linguagens visuais, sonoras e dos
movimentos e gestos, que também passam por um processo de elaboração,
estruturação e codificação, assim como as linguagens verbais.
Foi, acreditando nisso, que assumi que faz parte do ensino da arte uma
educação estética, como uma forma de escolher a vida, a necessidade de se
ter um olhar sensível para poder fazer as próprias escolhas.
E foi preciso coragem para elaborar planejamentos que fossem
capazes de respeitar as fases e os tempos do desenvolvimento da expressão
artística.
Assim, como na alfabetização da língua escrita, há todo um
processo de aprender os códigos das linguagens não verbais para atingir a
expressão e comunicação. E esse aprendizado implica muito exercício e o
desenvolvimento da observação e da concentração, em/e para toda a vida.
Estudando processos de criação descobri que a arte tem seus caminhos
para o interior das pessoas, começando pelo aprender e desenvolver a
percepção, depois o movimento de aperfeiçoar a comunicação e a expressão,
um trabalho de apropriação e aperfeiçoamento das habilidades.
124
Logo em seguida, a fase do aprendizado do domínio da forma, a
princípio usando como apoio modelos, para depois aprender a soltar-se e criar
suas próprias formas.
E, aos poucos, o aprender a discriminar o que se está sentindo,
pensando, conhecer a realidade, a simbologia e significado interior para poder
se fazer entender em todas as situações.
Numa etapa mais avançada, o aprendizado do decifrar e construir
metáforas. Nessa fase já se podem experimentar exercícios de abstração,
diferentemente do estágio anterior, quando a imaginação era predominante.
Movimentos de comparação, analogia, análise e crítica tornam-se possíveis e
são matéria prima para o trabalho de criação.
Com o xale sobre o coração, defendo a importância da arte na formação
do cidadão, porque pude identificar que foi na infância e na adolescência que
adquiri ferramentas fundamentais para estruturar uma autonomia da
construção do conhecimento.
Com o xale sobre o peito me preencho de ousadia para insistir no
espaço da arte na escola, pois descobri que o ser humano pode mudar, que os
desafios da linguagem e da expressão provocam mudanças alquímicas dentro
de nós e nos tornam capazes de transformar nossas vidas.
Há muitos idiomas diferentes no mundo e há diferentes formas de
conhecer o mundo e o ser humano, por isso, saber falar e expressar-se de
muitas formas diferentes significa instrumentalizar o indivíduo para uma
inserção mais completa na sociedade. Por este motivo, carrego no peito a
determinação cotidiana de preservar o espaço da arte na escola como também
na formação de professores em serviço e de ampliar e de inovar
constantemente este espaço, diversificando as linguagens artísticas no
currículo escolar, buscando sempre novos subsídios e recursos mantendo este
fazer sempre vivo e vinculado e à sua contemporaneidade.
Assim, faço para que muitos possam experimentar, como eu, lidar com
um sentimento de não caber em mim que a felicidade de criar provoca, que
mantém vivo, ainda hoje, um desejo constante de aprender, de inovar, de
experimentar novas emoções, novos desafios pelo prazer da superação.
Reli o trabalho como quem foi à estréia, identifiquei que, através do meu
jeito de ensinar, existe uma teoria de aprendizagem em que acredito.
125
Ao revisitar minha prática pedagógica e ao refletir sobre todos esses
anos em que estive envolvida com a criação do projeto pedagógico de arte da
Escola Nova Lourenço Castanho, discutindo e observando as aulas de artes de
meus parceiros, percebi que, é na fronteira do tempo cronológico e do tempo
de Kairós que se faz arte. Ensinar arte, se faz na perspectiva interdisciplinar à
qual me afilio ou sob a influência do trabalho. Ensinar a fazer arte é manter vivo
o ofício de brincar, característica base da criação.
É quando o espaço da sala de aula torna-se um grande laboratório, uma
oficina onde posso recriar os espaços do mundo, os lugares onde a vida
acontece, onde se podem estabelecer relações de troca, onde a aula se torna
ambiente democrático de simulação da vida, onde se convive em condições de
igualdade. Onde professor e alunos ensinam uns aos outros. Onde cada um
ensina as suas melhores habilidades, aprendendo, assim, a trabalhar em um
grupo unido pela cumplicidade e pelo companheirismo.
A aula de arte é um lugar onde nascem amizades, formam-se as turmas,
que se reúnem para passar bons momentos, trabalhando juntas, cantando,
batucando, jogando, dançando, representando, desenhando, modelando,
pintando.
A aula de arte tem momentos de ação e relaxamento naturais, de
extroversão e introspecção, respeitando as necessidades do grupo.
Nos jogos, brincadeiras e improvisações, desenvolve-se a elaboração
simbólica dos papéis familiares e sociais, assim como o aprendizado de lidar
melhor com as questões difíceis de compreender, o medo do desconhecido, os
conflitos e inseguranças.
A aula de arte é o lugar para o exercício de arriscar-se e salvar-se, da
coragem e do recuo, do erro e do acerto, da possibilidade de mudar de atitudes
e opiniões. É o lugar onde se vivem os simples divertimentos, com a
intensidade de grandes projetos de vida, onde nós projetamos personagens. É
o espaço do pensar, elaborar sentimentos, viver sensações, imaginar, criar,
expressar.
Também é o espaço de se aquietar para pensar na vida para exercitar o
aprendizado e simbolizar as experiências vividas porque o ato de criar
constitui-se num momento solitário de profunda introspecção e luta interior, um
trabalho árduo, em busca da tradução perfeita das imagens que emergem do
126
interior, na tentativa de materializar uma idéia que surge como resposta a um
problema existencial. A busca de um resultado final como expressão de uma
verdade interior, como resposta a uma pergunta, passa por muitos contatos
com o não saber.
Apesar da forma descontraída das rodas de conversa, há momentos de
seriedade, de avaliação, em que aprendemos a elaborar e exercitar o
pensamento crítico e a desenvolver diálogos reflexivos a respeito de arte e do
nosso trabalho pessoal. É quando aprendemos a compartilhar os aplausos e as
vaias, cientes de qual é a nossa responsabilidade nisso.
Aula de arte é um lugar onde se aprende/ensina a cultivar o trabalho e o
conhecimento, como valores que vêm da cultura, das ciências e da vida.
Espaço vivencial onde convivem a emoção com a técnica permeando a
evolução, o progresso do aluno numa coreografia de ensinar, em que cada um
junta seus vestígios e achados para compreender-se melhor e constituir-se
mais inteiro.
A aula de arte também precisa sair da sala de aula e olhar para o mundo
de fora, sua matéria prima de trabalho; deve também acontecer nas
programações culturais, nas visitas aos museus, nas idas ao teatro, ao cinema,
passeios pela cidade ,e nas viagens pelo país e pelo mundo, porque o espaço
da escola não dá conta de ensinar tudo o que você precisa saber.
Se há uma preocupação de preparar os alunos para a vida, é o saber
que no mundo de fora que se aprende a lidar com imprevisibilidade nela
contida.
Portanto, por uma questão de coerência, acredito numa educação
voltada para o ser, não para o ter e concluo que esta preparação não significa,
ser bem sucedido numa profissão ou bem sucedido financeiramente, significa
antes de qualquer coisa, ser feliz, e realizado enquanto pessoa, enquanto ser
humano, implícita aí a idéia de totalidade49 no momento em que me
preocupo com o desenvolvimento de todas as suas potencialidades.
Portando com o xale no peito, estou sempre lendo, me atualizando,
sobre psicologia, arte e educação, ferramentas necessárias ao meu fazer, mas
nunca esquecendo a intuição amiga leal e competente na sala de aula.
49 Expressão mais plena de todos os aspectos da personalidade, tanto em si mesma como na relação com outras
pessoas e com o meio ambiente.(GRINBERG, 1997).
127
E o que percebo, ao final deste ato, é que, sem perceber, encontrei uma
maneira de passar adiante meu legado de família, quando, criteriosamente e
cuidadosamente, interfiro nas escolhas de meus alunos, quando acolho
incondicionalmente suas escolhas, e principalmente aceito cada um como é.
Hoje compreendo que traduzo estas atitudes que herdei de meus pais
como a opção por uma educação fundada no amor e nos valores humanos.
Este modelo de educação, tão arraigado em mim, faz parte do que sou e
acredito estar presente e atuante na base da minha concepção de educação,
influenciando cotidianamente minha prática, orientando minhas escolhas
pedagógicas.
Hoje compreendo que este modelo de educação é um exercício
constante de desapego, entendendo que, assim como os filhos, preparamos os
alunos para o mundo, sem que tenhamos qualquer controle sobre o uso que
farão dos conhecimentos que estão levando.
A escola em si é um grande exercício de desapego onde, ano após ano,
ao mesmo tempo em que nos despedimos de uma classe, estamos dando
boas vindas a nova turma que chega. Um aprendizado de desapego,quando
percebemos que, para acompanhar o movimento da vida, é preciso sempre
recriar nossas velhas aulas, hábitos e atitudes, num permanente estado de
mudança.
Como professora de arte, nesta perspectiva, a interdisciplinaridade é a
música que contagia o ambiente da sala de aula para que na dança de criar
Cronos dialogue com Kairós. Para ter a interdisciplinaridade como música no
exercício de ouvir para além dos ecos da minha história, criando harmonia com
as dissonâncias de uma sala de aula. Dançar as emoções que a música
desperta, percebendo as tensões os acentos dramáticos que trazem
equivalentes de movimento como a leveza, o peso, a velocidade.
Dançar a favor do ritmo ou contra ele, para poder dançar as
ambigüidades.
É possível criar relações entre o não movimento e as pausas da música
e congelar o movimento no tempo da espera.
É possível dançar músicas instrumentais e músicas cantadas,
músicas de diferentes culturas; não é obrigatório apenas dançar os clássicos
para, assim, transitar com equilíbrio nas regiões de fronteira.
128
Não é preciso obedecer às contagens se você conhece e estuda
a música em seus mínimos detalhes e pode-se, assim, dançar com coerência.
É possível dançar no silêncio ou dançar os ritmos internos; é possível
dançar sem o acompanhamento da música para encontrar a atitude de
respeito.
Em resumo, concebi uma maneira de dançar com a música, dançar a
música, ter a música como partner e dialogar com ela e não mais ser sua
escrava para, assim, poder libertar minha expressividade, minhas emoções
enquanto danço.
Ao dançar com a música da interdisciplinaridade entra em cena a
artista/professora/pesquisadora, concentrada e humilde, determinada a fazer
um bom espetáculo ao lado de meus parceiros, com a postura de quem vai
para um ritual comungar com meu público algo transcendente e transformador.
129
Referências
O ABSTRACIONISMO. Disponível em: <http://www.sul-
sc.com.br/afolha/artes/abstracionismo.htm#2> Acesso em 10 out. 2002.
ARNHEIM, R. Arte e percepção visual: uma psicologia da visão criadora. São
Paulo: EDUSP, 1980.
BABO, M. A. A corporeidade na perspectiva fenomenológica. Disponível em:
<http://www.interact.com.pt/interact2/ensaio32.html>. Acesso em 10 out. 2002.
BARBA, E. A arte secreta do ator. Campinas, SP: HUCITEC/Editora da
UNICAMP, 1995.
BAUSCH, Pina. Disponível em: <http://zonanon.com/abc/bausch.html>. Acesso
em 10 out. 2002.
BÉJART, M. Prefácio. In: GARAUDY, R. Dançar a vida. 2.ed. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1980.
BERTHERAT, T. O correio do corpo. São Paulo: Martins Fontes, 1982.
BOCHNIAK, R. Questionar o conhecimento: a interdisciplinaridade na escola...
e fora dela. 2.ed. São Paulo: Loyola, 1998.
BOWKER, J. Para entender as religiões. São Paulo: Ática, 2000.
BRANDÃO, J. S. Mitologia grega. 5.ed. Petrópolis: Vozes, 1992. v.2.
BRASIL. Ministério de Educação e Cultura. Parâmetros Curriculares Nacionais.
Brasília: MEC/SEF, 1998.
BROOK, P. O ponto de mudança: quarenta anos de experiências teatrais. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 1995.
130
CAMPBELL, J.; MOYERS, B. O poder do mito. São Paulo: Palas Athena.1990.
CASTELO-BRANCO, S. E. S. Vira da Raia: moda. Disponível em:
<http://attambur.com/Recolhas/Viana.htm> Acesso em: 07 out. 2002.
CHAKRAS. Disponível em:
<http://utenti.lycos.it/aum/kundalini/kundalini_eng/chakras.html>. Acesso em 9
out. 2002.
CHALANGUIER, C. ;BOSSU, H. A expressão corporal. Rio de Janeiro:
Entrelivros Cultural, s.d.
CHEVALIER, J. ;GHEERBRANT, A. Dicionário de símbolos. 16.ed. Rio de
Janeiro: José Olympio, 2001.
COMBARIEU, J. Histoire de la Musique. 9.ed. Paris: Armand Colin, 1953. tome
1.
CORDÁS, T. A. (Org.). Fome de Cão. São Paulo: Maltese, 1993.
CRITELLI, D. M. Analítica do sentido: uma aproximação e interpretação do real
de orientação fenomenológica. São Paulo: EDUC/Brasiliense, 1996.
DAMIANI, Fernanda. Beats, hippies, e rock´n´roll. Disponível em:
<http://www.quattro.com.br/passage/beats.htm>. Acesso em 15 out. 2002.
DANIÉLOU, A. Shiva e Dionísio: a religião da natureza e do Eros. São Paulo:
Martins Fontes, 1989.
DELEUZE, G. A dobra: Leibniz e o barroco. São Paulo: Papirus, 1991.
DELORS, J. Relatório para a Unesco da Comissão Internacional sobre
Educação para o século XXI. 3. ed. São Paulo: Cortez, 1999.
131
DUNCAN, I. Minha vida. Rio de Janeiro: José Olympio, 1986.
EUGENIO BARBA. Disponível em:
<http://www.odinteatret.dk/background/eugenio.htm>. Acesso em 10 out. 2002.
FAZENDA, I. C. A. Construindo aspectos teórico-metodológicos da pesquisa
sobre interdisciplinaridade. In: FAZENDA, I. C. A (Org.). Dicionário em
construção. São Paulo: Cortez, 2001.
______. (Org.). Didática e Interdisciplinaridade. Campinas, SP: Papirus,1998.
______. Dicionário em construção. São Paulo: Cortez, 2001.
FELDENKRAIS, M. Consciência pelo movimento. São Paulo, Summus, 1977.
FERREIRA, A. B. H. Novo Aurélio século XXI: o dicionário da língua
portuguesa. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
FITZGERALD, J. L. The Mahabharata: the great epic of India. Disponível:
<http://web.utk.edu/~jftzgrld/MBhHome.html>. Acesso em: 10 out. 2002.
FONTAIN, M. The magic of dance. New York: Alfred A. Knopf,1979.
FRANÇA, C. Eu sou a mãe da matéria. Disponível em:
<http://www.terra.com.br/istoegente/exclusivo/out00/exc_maria_gregori.htm>.
Acesso em 10 out. 2002.
FURLANETTO, E.C. O papel do coordenador pedagógico na formação
contínua do professor: dimensões interdisciplinares e simbólicas. In: QUELUZ,
A. G. (Org.). Interdisciplinaridade: formação de profissionais da educação. São
Paulo: Pioneira, 2000.
132
FUSARI, M. F. de R.; FERRAZ, M. H. C. T. Arte na educação escolar. São
Paulo, Cortez, 1993.
GAETA, C. Olhar. In: FAZENDA, I. C. A (Org.). Dicionário em construção. São
Paulo: Cortez, 2001.
GARAUDY, R. Dançar a vida. 2.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.
GRINBERG, L. P. Jung: o homem criativo. São Paulo: FTD, 1997
GUIOTI, E. A. Identidade. In: FAZENDA, I. C. A. (Org.). Dicionário em
construção. São Paulo: Cortez, 2001.
HALBWACHS, M. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990.
JUNG, C. G. Tipos psicológicos. Petrópolis: Vozes, 1991.
KATZ, H. O Brasil descobre a dança descobre Brasil. São Paulo: DBA, 1994.
KENSKI, V. M. A memória no tempo dos media. Atrator Estranho, São Paulo,
n. 30, vol IV, p. 40, julho, 1998.
L’EREDITA vivente di Isadora Duncan. Disponível em:
<http://www.muspe.unibo.it/attivita/soffitta/1997/danza/eredita.htm>. Acesso em
10 out. 2002.
LAROSSA, J. Pedagogia profana: danças, piruetas e mascaradas. 4.ed. Belo
Horizonte: Autêntica, 2001.
LABAN, R. Domínio do Movimento. São Paulo: Summus, 1978.
LOPES, J. Pega teatro. São Paulo: Centro de Teatro Popular, 1981.
133
MARQUES, I. A. Ensino da dança hoje: textos e contextos. São Paulo: Cortez,
1999.
MIRANDA, R. O movimento expressivo. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1979.
NARDI, R. G. Olhar. In: FAZENDA, I. C. A (Org.). Dicionário em construção.
São Paulo: Cortez, 2001.
NEOPLASTICISMO de Stijl : Amsterdã, 1917. Disponível em
<http://www.mac.usp.br/projetos/seculoxx/modulo_1/construtivismo/neoplasticis
mo>. Acesso em 10 out. 2002.
NUNES, E. Foxtrot. Disponível em: <http://www.edson-nunes.com.br/estilo-
salao-dancas.htm>. Acesso em: 23 nov. 2001
OSTROWER, F. Criatividade e processos de criação. Petrópolis: Vozes, 1978.
PORTINARI, M. Nos passos da dança. São Paulo: Nova Fronteira, 1985.
QUELUZ, A. G. Formação de professor: resgate do pedagógico na sala de
aula. In: QUELUZ, A. G. (Org.). Interdisciplinaridade: formação de profissionais
da educação. São Paulo: Pioneira, 2000.
______ (Org.). Interdisciplinaridade: formação de profissionais da educação.
São Paulo: Pioneira, 2000.
QUEZADA, F. Postmodernidad y nuevas tecnologías: que nada las una para
que nada las separe. Disponível em:
<http://www.euram.com.ni/pverdes/Articulos/freddy_quezada_137/htm>.
Acesso em 10 out. 2002.
SALZER, J. A expressão corporal: uma disciplina da comunicação. São Paulo:
Difel, 1982.
134
THE SARI in fashion: fine thousand years. Disponível em:
<http://www.kerala.com/ fashion/sari.htm>. Acesso em: 09 out. 2002.
SENSOPERCEPÇÃO. Disponível em:
<http://www.iis.com.br/~gcaetano/Sensopercepcao.htm>. Acesso em 10 out.
2002.
SPOLIN, V. Improvisação para o teatro. São Paulo: Perspectiva, 1982.
VALLIN JR., A.R. O bale do belo (ou a leveza insuportável) In: CORDÁS, T. A.
(Org.). Fome de Cão. São Paulo: Maltese, 1993.
WEAR a sari indian style at Shalincraft. Disponível em: <http://www.shalincraft-
india.com/sariwear.htm>. Acesso em: 9 out. 2002.
135
Anexos
136
ANEXO 1
137
138
ANEXO 2 – CORRESPONDÊNCIA COM O BALLET BOLSHOI
terça-feira, 15 de maio de 2001 17:47
Dear Bolshoi webmaster,
Let me introduce myself, I'm Isa Seppi , a brazilian dance teacher and I'm writing my
Mastership research at this moment , and there is a chapther where I talk about my first
time at a Bolshoi espetacle in Rio de Janeiro when I was child but I can't remember
certain very important details about it.
I would like to have a very important information about Bolshoi Tournés in Brazil
because I was very young and I can't remember the year when I saw this. May be it
was in seventies and I remember that the worderfull Maia Plisetskaya stage the ballet
Isadora,
I will be very happy if you can help me on it and I thank you very much for you
atemption.
With my regards
Isa Seppi
Tuesday, May 22, 2001 12:41 PM
Dear Mr.Isa Seppi,
I would like to inform you that the ballet you are talking about is
"Aisidora" ( check english spealing), premier of which was on May 23d of 1978.
Company was touring with Plisetskaya at Brazil and Argentina during July and August
of 1978.
Apart from Aisidora they were showing 2d act of Swan Lake and Chopeniana.
Best regards,
Head of Press
Katya Novikova
quarta-feira, 23 de maio de 2001 18:45
Dear Mrs. Katya Novikova
Thank you very much for your answer you help me very much.
My best regards
Isa Seppi
139
ANEXO 3 – LINKS INTERESSANTES
História da Arte e Estética
1. http://www.bbc.co.uk/history/programmes/centurions/mondrian/mondbi
og.shtml
2. http://www.artehistoria.com/frames.htm?http://www.artehistoria.com/his
toria/personajes/7395.htm
3. http://www.arteehistoria.hpg.ig.com.br/oq_arte2.htm
4. http://www.creview.com/artcrit/ac1gra.htm
5. http://www.filosofiaclinica.com.br/res/res20.htm
6. http://www.guggenheimcollection.org/site/artist_bio_112.html
7. http://www.iar.unicamp.br/index.html
8. .http://www.moma.org/docs/collection/paintsculpt/c70.htm
9. http://www.mac.usp.br/exposicoes/01/acolecao/galeria4/kandinsky/biog
rafia.html
10. http://www.mac.usp.br/projetos/seculoxx/modulo_1/construtivismo/neo
plasticismo/
11. http://www.sul-sc.com.br/afolha/artes/abstracionismo.htm
12. http://www.mac.usp.br/projetos/percursos/entrada.html
13. http://astro.temple.edu/~iversteg/Arnheim.html
14. 1http://www.mac.usp.br/projetos/percursos/abstracao/kandinsk.html
15. http://www.mac.usp.br/projetos/seculoxx/modulo_1/abstracionismo/was
sily%20kandinsky/
16. http://park.org/Netherlands/pavilions/culture/mondriaan/eng/biography.
htm
17. http://www.cetrans.futuro.usp.br/bibliografia.htm
Dança
18. http://www.uol.com.br/aprendiz/n_revistas/revista_profissoes/agosto00/
artes/danca/
19. http://members.aol.com/lwitchel/dance.htm
20. http://sites.uol.com.br/silvio.marina/pessoal/fotos1.htm
140
21. http://www.sab.org.br/euritmia/euritmia.htm
22. http://www.danzarevista.com/edicion_15_11/paginas/opinion.html
23. http://www.iar.unicamp.br/historia/doc_danca.html
24. http://www.conexaodanca.art.br/clarisse.htm
25. http://www.conexaodanca.art.br/estudomod.htm
26. http://www.conexaodanca.art.br/estudo.htm
27. http://www.ccba.com.br/br/progcult/outubro/danca/lacepalestra.html
28. http://zonanon.com/abc/bausch.html
29. http://www.unicamp.br/anuario/99/ia-daco.html
30. http://www.geocities.com/Broadway/3362/fred.htm
31. http://www.geocities.com/Broadway/3362/index1.htm
32. http://www.topicos.de/pdfs/2001/3/Interview%20Ismael%20Ivo.pdf
33. http://www.idance.hpg.ig.com.br/colunistas/dagmar.htm
34. http://www.nacion.com/ancora/1999/octubre/10/ancora4.html#1
35. http://www.muspe.unibo.it/attivita/soffitta/1997/danza/eredita.htm
36. http://www.dacibrasil.hpg.ig.com.br/linkspt.htm
37. http://www.edson-nunes.com.br/estilo-salao-dancas.htm
38. http://attambur.com/Recolhas/Viana.htm
39. http://sites.uol.com.br/silvio.marina/pessoal/dissertacaoweb.doc
40. http://www.cedes.unicamp.br/caderno/cad/sumarios/sum53.html
41. http://www.hindu.com/2000/10/08/stories/09080332.htm
42. http://www.geocities.com/Broadway/3362/parade.htm
43. http://www.bam.org/asp/artist.asp?ArtistID=RodrigoPedernieiras
44. http://www.terravista.pt/ilhadomel/6258/index.htm
45. http://www.ciadeborahcolker.com.br/index2.html
46. http://www.dancaecia.com.br/index2.htm
47. http://www.mre.gov.br/cdbrasil/itamaraty/web/port/artecult/danca/corpo/
menu.htm
48. http://sampa3.prodam.sp.gov.br/ccsp/danca/#
49. http://www.geocities.com/Broadway/3362/fred.htm
50. http://www.geocities.com/Broadway/3362/index1.htm
51. http://members.aol.com/lwitchel/dance.htm
52. http://www.sab.org.br/euritmia/euritmia.htm
141
Arte do movimento /Laban
53. http://musart.dist.unige.it/sito_inglese/research/r_issues/theory_of_effor
t.html
54. http://freespace.virgin.net/mark.thornton/abtlbn.htm
55. http://www.sedes.org.br/Cursos/arte_do_movimento.htm
56. http://www.dca.fee.unicamp.br/~bicho/grp_animacao/
57. http://www.nics.unicamp.br/cadernoum.htm
58. http://www.caleidos.com.br/cal/agenda/agenda.html
59. http://www.tc.columbia.edu/academic/dance/pastfall.htm
60. http://www.dansdesign.com/dynamics.html
61. http://freespace.virgin.net/mark.thornton/encarta.htm
62. http://www.infolatino.com/ReginaMiranda/enconlaban02-port.html
63. http://www.gsd.harvard.edu/cgi-bin/studios/details.cgi?project_id=562
64. http://www.nics.unicamp.br/caderno_movimento/caderno_resumo.pdf
65. http://www.muspe.unibo.it/attivita/soffitta/1999/danza/progdan.htm
66. http://www.city.ac.uk/ads/validation/laban.htm
67. http://www.artsworld.com/music-dance/organisations/laban-centre.html
68. http://freespace.virgin.net/mark.thornton/
69. http://www.slider.com/enc/30000/Laban_Rudolf_von.htm
70. http://www.muspe.unibo.it/attivita/iniziative/1999_12.htm
71. http://www.surrey.ac.uk/NRCD/laban.html
72. http://www.unicamp.br/unicamp/divulgacao/notas_capa/Notas_64.html
73. http://musart.dist.unige.it/sito_inglese/research/r_issues/theory_of_effor
t.html
74. http://www.delcuerpo.com/articulo.asp?codart=701
75. http://www.unicamp.br/unicamp/unicamp_hoje/ju/mar2000/pagina16-
Ju150.html
142
Dança Indiana
76. http://www.indiaconsulate.org.br/main.htm
77. http://www.kerala.com/menu.htm
78. http://www.culturopedia.com/dances/moddance.html
79. http://www.culturopedia.com/dances/moddance.html
80. http://www.geocities.com/Vienna/2861/Bharaeng.html
81. http://www.geocities.com/Tokyo/Shrine/4287/odissi.htm
82. http://www.kalathearts.dial.pipex.com/odissi.shtml
83. http://www.kerala.com/keralaarts/
84. http://www.khoj.com/Entertainment/Dance/
85. http://www.orissa-tourism.com/konarkdf.html
86. http://www.naradonline.com/n-dances/odissi.shtml
87. http://sites.uol.com.br/patriciaromano/htmp/index.htm
88. http://www.maxyellowpages.com/india-infoline/culture-and-
religion/odissi.html
89. http://www.odissiniharika.com/attire.html
90. http://www.umich.edu/~hindu/dance/odissi.htm
Teatro
91. http://www.odinteatret.dk/background/eugenio.htm
92. http://www.granma.cu/espanol/enero02-5/odin-e.html
93. http://www.enel.net/salauno/teatro_eugeniobarba.asp
94. http://www.artslynx.org/theatre/directing.htm
95. http://www.albaeditorial.es/listalibros.asp?col=22&lib=309
96. http://www.artedoator.com.br/bastidor/cerebro.htm
97. http://www.odinteatret.dk/films/istafilm.htm
98. http://www.ufba.br/~teatro/abrace/public/meab1s.html
99. http://www.estado.estadao.com.br/editorias/2002/01/02/cad015.html
100. http://www.cnca.gob.mx/cnca/nuevo/diarias/041298/ebarba.html
101. http://www.odinteatret.dk/background/actors.htm
102. http://www.albaeditorial.es/listalibros.asp?col=22&lib=309
143
Cinema
103. http://members.aol.com/Conspiritu/Mahahome.htm
104. http://members.aol.com/Conspiritu/Mahapbth.htm#note3
Televisão
105. http://www.terra.com.br/istoegente/exclusivo/out00/exc_maria_gregori.
htm
106. http://www.observatoriodaimprensa.com.br/artigos/asp171020019998.
htm
107. http://chat.terra.com.br/chat/niltontravesso.htm
108. http://www.tvgazeta.com.br/historia/80.htm
Teoria da comunicação
109. http://www.voyagerco.com/catalog/mcluhan/indepth/mosaic.html
110. http://www.euram.com.ni/pverdes/Articulos/freddy_quezada_137.htm
Índia: Arte- Cultura - Hinduísmo
111. http://utenti.tripod.it/aum/kundalini/kundalini_eng/chakras.html
112. http://utenti.lycos.it/aum/kundalini/kundalini_eng/gayatri.html
113. http://www.hindustantimes.com/nonfram/160701/htc04.asp
114. http://www.kamat.com/goaround/sitemap.htm
115. http://in.lycosasia.com/dir/Home_and_Family/Women/
116. http://www.ucpress.edu/books/pages/1221.html
117. http://utenti.lycos.it/aum/kundalini/kundalini_eng/nataraja.html
118. http://web.utk.edu/~jftzgrld/MBh1Home.html
119. http://utenti.lycos.it/aum/kundalini/kundalini_eng/shiva_sakti_pattern.ht
ml
120. http://pt.india-tourism.com/
144
121. http://www.saigan.com/heritage/gods/balaram.htm
Sári
122. http://bengalcommerce.com/cgi-bin/w3-msql/index1.html
123. http://www.indiaprofile.com/art-crafts/index.html
124. http://www.kerala.com/fashion/hwsari.htm
125. http://www.pir.net/~beth/LakshmiLinks.html
126. http://www.geocities.com/dominiceckersley/beltedplaid.html
127. http://www.shakti.clara.net/exhibit/cadrex1.html
128. http://www.shalincraft-india.com/sariwear.htm
129. http://www.shakti.clara.net/sari/expo.html
Educação
130. http://www.clubedoprofessor.com.br/diariodebordo/Textop3b.html
131. http://www.pucsp.br/~cos-puc/tese/tese92.htm#res6
132. http://www.geocities.com/Athens/Sparta/1350/hipertex.html
133. http://www.interactividades.pt/ictm/vk.html
134. http://www.unb.br/informativos/a2002/viasatelite.htm
Sensopercepção
135. http://www.rainhadapaz.g12.br/ensino/5a8/edfisica.htm
136. http://www.crmariocovas.sp.gov.br/pdf/ideias_10_p067-071_c.pdf
137. http://www.iis.com.br/~gcaetano/Sensopercepcao.htm
Corporeidade
138. http://www.interact.com.pt/interact2/ensaio32.html
139. http://www.docsystems.med.br/PUERICULTURA%20HOME%20PAGE
/Corporeidade.htm
140. http://web.ugf.br/lires/conferencia.htm
141. http://www.psiqweb.med.br/cursos/neurofisio2.html
142. http://www.abant.org.br/23rba/foruns/pessoa_e_corporalidade.htm
1