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Contribuição da Socioemotional Wealth Theory para a Governança Corporativa
nas Empresas Familiares
VERÔNICA ANDRÉA LIMA GOUVEIA
Universidade Federal do Rio de Janeiro
ANA CAROLINA PIMENTEL DUARTE DA FONSECA
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Resumo
Tendo em vista a relevância e as especificidades das empresas familiares, a governança
corporativa referente a estas empresas tem o objetivo de filtrar as influências da família
proprietária na gestão, visando resguardar a saúde financeira, as melhores práticas de gestão e
de interface com partes relacionadas e, em última instância, sua continuidade. Diante deste
contexto, este estudo teve por objetivo analisar como os mecanismos de governança
corporativa contemplam aspectos socioemocionais em uma empresa familiar. Para tanto,
realizou-se uma pesquisa descritiva, de abordagem qualitativa, através de um estudo de caso
em uma empresa familiar da área de saúde, voltada para o setor de pediatria, e presente no
mercado há 58 anos. O embasamento para o alcance deste objetivo foi a Socioemotional
Wealth Theory (SEW), uma vez que, como descrito na literatura, acredita-se que a riqueza
socioemocional motive decisões e comportamentos únicos em uma empresa familiar, e,
portanto, capture a essência do que diferencia este tipo de empresa de outras formas
organizacionais. A análise demonstra que os mecanismos de governança corporativa da
empresa familiar pesquisada contemplam aspectos socieomocionais e que estes podem
contribuir para a análise da governança corporativa neste tipo de empresa. Neste sentido, o
presente estudo desperta a reflexão de que a governança corporativa referente às empresas
familiares deveria incorporar tais aspectos aos seus mecanismos de controle, uma vez que os
mesmos tendem a ser sutis e, portanto, de difícil captura e mitigação pelos mecanismos
tradicionais de governança corporativa. Considerando-se o potencial de contribuição da
governança corporativa para a gestão de empresas familiares, esta se tornaria mais robusta, se
incorporasse os aspectos sociomocionais aos mecanismos de controle para que estes possam
gerenciar os conflitos peculiares existentes nas empresas familiares.
Palavras-chave: Empresas Familiares, Governança Corporativa, Socioemotional Wealth
Theory.
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1. Introdução
As empresas familiares possuem uma relevância no cenário mundial especialmente no
Brasil, onde representam mais de 90% dos negócios (SEBRAE, 2016). Wall-Mart, Cargill,
McGraw-hill, a variedade é enorme, mas todas essas empresas possuem uma característica
central: estão ligadas a uma família, e é esta ligação que as torna um tipo especial de empresa
(GERSICK et al., 2017).
O Global Familiy Business Index (2019), que compreende as maiores empresas
familiares do mundo por receita, tem em seu ranking empresas brasileiras como: Magazine
Luiza, Porto Seguro, Votorantim. Atualmente são consideradas as três maiores empresas
familiares do mundo: Wall-Mart (família Walton dos Estados Unidos), Volkswagen (família
Porsche da Alemanha) e Berkshire Hathaway do milionário americano Warren Buffet.
Neste contexto, as empresas familiares têm um papel significativo na economia. De
acordo com Bressan et al. (2019), grande parte do que sabemos sobre a governança
corporativa em empresas familiares está baseada em estudos internacionais. É necessário
fomentar e avançar a pesquisa acadêmica sobre a Governança de Empresas Familiares no
Brasil.
A governança em empresas familiares é um fenômeno complexo, tendo em vista as
peculiaridades deste tipo de organização. Dentre estas se destacam: a necessidade de controle
e influência da família na gestão dos negócios, o envolvimento dos membros da família com a
empresa, os laços sociais criados por este tipo de empresa, o apego emocional e afetivo da
família, bem como a necessidade de continuidade do legado pelas futuras gerações
(BERRONE, CRUZ, GOMEZ-MEJIA, 2012).
Com a combinação entre família e negócios, surgem conflitos na gestão das empresas
familiares. Tais conflitos parecem inevitáveis e é a capacidade da família em lidar com esses
conflitos dentro da estrutura empresarial que irá determinar seu sucesso (LANDES, 2007).
A teoria e a prática sugerem que, a interação da família com os negócios tem
implicações importantes para o desempenho econômico geral da empresa familiar
(EUROPEAN FOUNDATION, 2002).
A Governança Corporativa é um conjunto de mecanismos usados para garantir que as
ações das partes interessadas (stakeholders) sejam consistentes com os objetivos da coalizão
dominante (STEIR; CHRISMAN; CHUA, 2015). Segundo Steinberg e Blumenthal (2011) é
necessário entender o contexto das empresas familiares e a importância dos relacionamentos e
dos vínculos que permeiam a família empresária, organizando as relações de afeto, poder e
dinheiro por meio da governança corporativa.
Para Siebels e Knyphausen-Aufseß (2012), a diversidade de papéis da família e o
envolvimento na propriedade e controle afetam as estruturas de governança corporativa e
levam a requisitos distintos e específicos em comparação com as empresas não familiares.
Além da supervisão e controle da gestão, as empresas familiares precisam estabelecer
estruturas de governança que melhorem a coesão e compartilhem visões dentro da família,
enquanto ao mesmo tempo reduzam os conflitos prejudiciais.
Segundo Berrone, Cruz, Gomez-Mejia, (2012), a necessidade de resultados financeiros
está entrelaçada às necessidades afetivas presentes nas empresas familiares. Para Steier,
Chrisman e Chua (2015), o envolvimento da família com a governança corporativa por muitas
vezes não é compreendido, sendo visto apenas como uma forma de atender aos stakeholders,
porém conforme Strike et al, (2015) a empresa familiar procura estruturar sua governança
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corporativa com o objetivo de manter sua reputação e perpetuar seu legado através das
gerações futuras.
Mecanismos de governança corporativa, com frequência, são utilizados para cuidar
dos interesses de acionistas externos nas empresas familiares (KAPPES; SCHMID, 2013;
TURRENT; HUGHES, 2017). No entanto, há espaço para que a governança corporativa em
empresas familiares seja utilizada para a solução de problemas internos decorrentes das
peculiaridades socioemocionais presentes neste tipo de empresa descritas pela Teoria da
Riqueza Socioemocional (SEW) proposta por Berrone, Cruz, Gomez-Mejia (2012).
A riqueza socioemocional é uma teoria que se refere aos aspectos não financeiros ou
“necessidades afetivas” de proprietários da família. Em termos simples, o modelo SEW
sugere que as empresas familiares são tipicamente motivadas e comprometidas com a
preservação de suas práticas. Esta teoria é o diferenciador mais importante da empresa
familiar como uma entidade única e, como tal, ajuda a explicar por que as empresas familiares
se comportam de maneira distinta (BERRONE, CRUZ, GOMEZ-MEJIA, 2012).
Diante do exposto, elabora-se a seguinte questão de pesquisa: como os mecanismos de
governança corporativa contemplam os aspectos da SEW, ou seja, o controle e a influência da
família na gestão, a identificação da família com a empresa, os laços sociais, o apego
emocional e a sucessão dos membros da família nos negócios?
Assim o objetivo do estudo é analisar como os mecanismos de governança corporativa
contemplam os aspectos da SEW em uma empresa familiar. Para o cumprimento deste
objetivo foi selecionada uma empresa familiar da área de saúde, voltada para o setor de
pediatria, e presente no mercado há 58 anos.
Este artigo justifica-se pelo potencial de contribuição dos aspectos socioemocionais
para a análise da governança corporativa na empresa familiar e melhor entendimento dos
mecanismos de controle existentes neste tipo de empresa com características peculiares.
Além deste tópico introdutório, o artigo está estruturado da seguinte forma:
fundamentação teórica, abordando as empresas familiares, Socioemotional Wealth Theory
(SEW), governança em empresas familiares, descrição da metodologia empregada, análise
dos resultados e as considerações finais.
2. Fundamentação Teórica
2.1 Empresas Familiares e Socioemotional Wealth Theory (SEW)
Segundo Bornholdt (2014), empresas familiares são aquelas que diretamente ou
indiretamente são controladas por uma ou mais famílias. Geralmente essas famílias possuem o
controle acionário e são seus principais executivos e mentores. Os laços familiares
determinam a sucessão no poder e as crenças e os valores da empresa identificam-se com os
da família. A cultura das famílias empresárias combinada com o contexto da dinâmica
familiar se sobrepõe às lógicas e objetividades. Empresas familiares são potencialmente
passionais e têm sua origem em questões emocionais.
De acordo com Bernhoeft e Martinez (2011), há inúmeras formas de categorizar as
empresas familiares no que se refere ao controle e gestão. A saber: empresas onde tanto a
propriedade como a gestão permanece nas mãos, e no comando, de familiares; empresas em
que o controle do capital é estritamente familiar, enquanto a gestão é exercida, integralmente,
por gestores não familiares; e; por último, empresas em que o controle permanece com a
família, enquanto a gestão é exercida de forma mista. Ou seja, sua estrutura executiva está
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composta por gestores familiares e não familiares. Esta última é a estrutura da maioria dos
grupos no mundo que ultrapassaram cem ou duzentos anos de existência.
Para Lindow, Stubner e Wulf (2010), a estrutura organizacional, ou seja, a divisão de
tarefas, cargos e setores em uma empresa familiar está relacionada ao grau de influência da
família. Portanto, a influência da família desempenha um papel importante no desempenho e
na excelência da gestão empresarial.
Steinberg e Blumenthal (2011) ressaltam que na empresa familiar há uma forte
valorização da confiança mútua e dos laços afetivos que também influenciam
comportamentos e tomadas de decisão. Neste tipo de empresa, revela-se um processo de
tomada de decisão em que os argumentos lógicos e os dados concretos são levados em conta,
mas os vínculos afetivos que permeiam as relações familiares são os fatores determinantes.
Neste contexto, conforme Jiang et al. (2018), a teoria da riqueza socioemocional
(SEW) tem sido uma das áreas de pesquisa mais influentes que surgiram dos estudos de
empresas familiares nas últimas décadas. Diferentes áreas da pesquisa da SEW compartilham
a crença comum de que os objetivos familiares e os tons emocionais influenciam vários
aspectos da vida organizacional. A esse respeito, acredita-se que a riqueza socioemocional
(SEW) motive decisões e comportamentos únicos em uma empresa familiar, e, portanto,
capture a essência do que diferencia esta empresa de outras formas organizacionais.
Berrone et al. (2010) destacam que o valor da riqueza socioemocional para a família é
mais intrínseco, sua preservação está ancorada em um nível psicológico profundo entre os
proprietários de empresas familiares. Cada empresa familiar tem diferentes comportamentos e
características organizacionais. Para Martínez-Romero e Rojo-Ramirez (2016), a SEW é um
conjunto de sentimentos, emoções, relacionamentos e laços entre os membros da família do
negócio, ou seja, é característica inseparável das empresas familiares. Portanto, para analisar
essas questões, é necessário fazer estudos individualizados das empresas familiares.
Zellweger e Dehlen (2011) definem a teoria da riqueza socioemocional (SEW) como a
diferença entre a avaliação subjetiva do valor da empresa por um proprietário e o valor
objetivo de mercado para a participação acionária de uma empresa. De acordo com Berrone,
Cruz, Gomez-Mejia (2012), apesar da relevância das emoções descritas pela SEW, emoções e
sentimentos presentes na gestão muitas vezes são negligenciados.
Estudos empíricos como os de Chen et al (2014), Strike et al (2015), Fang et al,
Minichilli, Brodi e Calabrò (2016), Kabbach de Castro, Aguilera e Crespí-Cladera (2017) e
Vandekerkhof et al (2018) reforçam a importância da preservação da riqueza socioemocial
(SEW) para as empresas familiares e apontam que questões como o controle familiar,
reputação e governança são relevantes para as empresas familiares. Gomez-Mejia et al.
(2007) consideram que a SEW captura a necessidade de controle e influência da família na
gestão dos negócios, a manutenção da participação no clã dentro da empresa, a nomeação de
membros da família para importantes cargos, o desejo da família de exercer autoridade, a
retenção de uma forte identidade familiar e a continuação da dinastia familiar. Portanto, por
sua própria natureza, o conceito de SEW é multidimensional.
Com base na literatura de negócios da família e nas disciplinas de ciências sociais,
Berrone, Cruz, Gomez-Mejia, (2012) propuseram cinco dimensões da SEW descritas
conforme a tabela 1:
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Tabela 1 Cinco dimensões da SEW (riqueza socioemocional)
Dimensões Caracteríticas
Controle e influência da
família
A primeira dimensão refere-se ao controle e influência dos membros da família. Uma
característica-chave que distingue as empresas familiares é que os membros da família
exercem controle sobre as decisões estratégicas.
Identificação de membros
da família com a empresa
A segunda dimensão aborda a identificação próxima da família com a empresa. O
entrelaçamento entre família e empresa dá origem a uma identidade inerentemente única
dentro das empresas familiares.
Laços sociais obrigatórios
A terceira dimensão refere-se às relações sociais das empresas familiares. As empresas
familiares estão profundamente enraizadas em suas comunidades e frequentemente
patrocinam associações e atividades que são valorizadas na comunidade.
Apego emocional dos
membros da família
A quarta dimensão trata do conteúdo afetivo da SEW e refere-se ao papel das emoções no
contexto das empresas familiares. Essas emoções resultam de situações cotidianas e não são
estáticas, à medida que surgem e evoluem através de eventos mais ou menos críticos em
cada sistema de negócios da família (sucessão, divórcio, doença, perda de família ou
negócios, crise econômica).
Renovação de laços
familiares através da
sucessão
A quinta e última dimensão da SEW refere-se à intenção de entregar o negócio às gerações
futuras. A sustentabilidade transgeracional como um dos aspectos centrais da SEW.
Riqueza socioemocional (SEW)
Fonte: Adaptado de Berrone, Cruz e Mejia (2012).
De acordo com Berrone, Cruz, Gomez-Mejia, (2012), as dimensões da SEW
representam, portanto, os aspectos não financeiros ou “necessidades afetivas” que estão
intrinsecamente ligados aos laços de parentesco, de modo que sua presença afeta o
desempenho da empresa.
2.2 Governança em Empresas Familiares
Para o Intituto Brasileiro de Governança Corporativa - IBGC (2016), a governança
corporativa em empresas de controle familiar se estabelece, não apenas no âmbito da
separação entre propriedade e gestão (como no caso das empresas não familiares), mas,
também, no âmbito das relações entre família, propriedade e gestão.
Conforme Gersick et al (2017), o modelo conceitual dos três círculos surgiu através do
trabalho de Tagiuri e Davis no início dos anos 80, onde afirmavam que as empresas familiares
são compostas por dois círculos superpostos: a família e a gestão. Posteriormente, o modelo
foi aprimorado, incluindo o círculo da propriedade para distinguir proprietários familiares e
não familiares que fazem parte ou não da gestão. Esse modelo explica o relacionamento
existente nos sistemas das empresas familiares, com seus conflitos e interações, conforme
figura 1:
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Figura 1 O modelo de três círculos da empresa familiar Fonte: Gersick et al. (2017, pág 6)
A governança corporativa, fundamentalmente relativa ao círculo da gestão, atua no
âmbito dos negócios para buscar garantir a sustentabilidade e a proteção de ativos, a imagem
da empresa, sua reputação e sua relação com as partes interessadas (por exemplo: governo,
sócios, clientes e empregados). A governança familiar atua no âmbito da família, abordando a
relação desta com seus membros, com a propriedade, com a empresa e com partes
interessadas (IBGC, 2016). Por fim, de acordo com Prado et al. (2012), a governança jurídico-
sucessória é compreendida como a adequada estrutura de planejamento sucessório nos
âmbitos dos Direitos Societário, da Família e das Sucessões. Conforme os pontos 4, 7 e 6
evidenciados na figura 1, a governança corporativa contempla também aspectos da
governança familiar e jurídica-sucessória.
A importância da compreensão desse sistema integrado, subdividido em outros três
subsistemas independentes, porém superpostos, é que nos permite identificar interesses
individuais e prioridades em relação à empresa que tendem a gerar problemas clássicos no
âmbito da empresa familiar, dependendo da localização de cada pessoa nos círculos. Estes
subsistemas, embora necessariamente se inter-relacionem e eventualmente se sobreponham,
dizem respeito a três tipos de governança: (i) a governança corporativa; (ii) a governança
familiar e a (iii) governança jurídico-sucessória (PRADO et al., 2012).
Para Steier, Chrisman e Chua (2015) a governança é amplamente reconhecida como
um fator determinante no sucesso e fracasso de toda a atividade organizadora. O
envolvimento da família introduz uma dimensão única na governança, definida amplamente
como os mecanismos usados para garantir que as ações das partes interessadas (stakeholders)
organizacionais sejam consistentes com os objetivos da coalizão dominante. Embora os
modelos corporativos tradicionais de governança reconheçam a diversidade das partes
interessadas, eles não explicam adequadamente as várias permutações de partes interessadas e
interesses que se manifestam em empresas influenciadas por famílias. Para Carney (2005), as
empresas familiares possuem características específicas que as tornam únicas ao analisar
questões de governança.
Por fim, segundo Chrisman et al. (2018), a governança é um fator determinante da
distinção e heterogeneidade das empresas familiares. Assim, embora os mecanismos formais
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de governança nas empresas familiares tenham características singulares, os mecanismos
informais de governança podem ser igualmente importantes e podem influenciar o
comportamento da empresa. Mecanismos formais são codificados por leis e regulamentos
(Ex: Conselho de Administração, de Acionistas, de Família, Código de Conduta), enquanto os
mecanismos informais, embora não codificados, são representados por pressões por
conformidade, acomodação ou adaptação aos valores da sociedade na qual a empresa está
inserida.
3. Metodologia
3.1 Procedimentos de Pesquisa
Esta pesquisa caracteriza-se como descritiva e possui uma abordagem qualitativa.
Quanto aos procedimentos técnicos é caracterizada como um estudo de caso.
O estudo é descritivo, pois procura descrever os aspectos socioemocionais presentes
na empresa familiar e que podem contribuir para a análise da governança corporativa neste
tipo de empresa. Quanto à abordagem qualitativa, segundo Gerhardt e Silveira (2009), este
tipo de estudo preocupa-se com o aprofundamento da compreensão de uma organização, com
aspectos da realidade que não podem ser quantificados, centrando-se na compreensão e
explicação da dinâmica das relações sociais. A abordagem qualitativa do estudo buscou
conhecer com maior profundidade a gestão dos negócios e as relações existentes na empresa
familiar. Quanto aos procedimentos técnicos, o estudo de caso é uma investigação empírica
que investiga um fenômeno contemporâneo em profundidade e em seu contexto de vida real
(YIN, 2015). Utilizou-se o estudo de caso com o propósito de compreender como os
mecanismos de governança corporativa contemplam os aspectos da SEW.
Como instrumento de coleta de dados optou-se pela entrevista episódica. Segundo
Bauer e Gaskell (2019), a entrevista episódica é uma combinação do enfoque de tipo narrativo
e argumentativo, ela pode percorrer várias sequências de narração e subsequente
questionamento. As entrevistas narrativas revelam as diversas perspectivas dos entrevistados
ao contarem histórias sobre acontecimentos e sobre si mesmos, enquanto a entrevista
episódica se baseia em um guia de entrevista com o fim de orientar o entrevistador para os
campos específicos a respeito dos quais se buscam narrativas e respostas. O episódio é um
acontecimento ou situação específica que o entrevistado recorda. Para a entrevista, utilizou-se
um roteiro semiestruturado com estudos de Berrone, Cruz, Gomez-Mejia, (2012) sobre os
aspectos socioemocionais inerentes às empresas familiares.
A técnica utilizada para análise de dados foi a análise de conteúdo. Este tipo de análise
funciona por desmembramento do texto em categorias. Entre as diferentes possibilidades de
categorização encontra-se a análise temática (FONSECA JÚNIOR, 2005). Desta forma, os
dados das transcrições das entrevistas foram agrupados nas seguintes categorias simbólicas ou
temáticas: a história da empresa, os aspectos socioemocionais, tais como, o controle e a
influência da família na gestão, a identificação da família com a empresa, os laços sociais, o
apego emocional, a sucessão dos membros da família nos negócios e por fim os mecanismos
de governança existentes para a gestão na empresa familiar pesquisada.
Para Berrone, Cruz e Gomez-Mejia (2012) a técnica de análise de conteúdo permite
capturar as dimensões da SEW. Ela pode ser usada por estudiosos da empresa familiar para
permitir o estudo de percepções e crenças que são geralmente difíceis de obter por outros
meios. Portanto foi utilizada a análise de conteúdo das transcrições das entrevistas realizadas
nesta pesquisa.
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3.2 Caracterização da empresa analisada e perfil dos participantes da pesquisa
A pesquisa refere-se a uma empresa familiar pertencente à área de saúde. O grupo é
composto por seis unidades de negócios voltadas para a pediatria. Fundada por seis médicos
de diferentes famílias, hoje pertence somente a um dono de uma dessas famílias e está em sua
segunda geração. A empresa é uma Sociedade Limitada considerada de médio porte em
termos de faturamento anual. Atua na cidade do Rio de Janeiro há 58 anos, sendo responsável
por cerca de 1.500 funcionários e possui uma grande rede de clientes (pacientes) e
fornecedores.
A escolha da empresa foi motivada pela presença familiar nos negócios, pela
longevidade que possui no mercado, 58 anos de história, e pelo acesso aos participantes da
pesquisa. Os participantes foram escolhidos por serem considerados pessoas chave na
empresa e poderem contribuir com suas experiências vividas como gestores, proprietários ou
herdeiros da família. O acesso à empresa foi possível devido ao contato de uma das autoras
deste artigo com o empresário e seus herdeiros em um curso de aperfeiçoamento em Gestão
de Empresas Familiares realizado em uma universidade do Rio de Janeiro ao longo do ano de
2019. O curso teve por objetivo proporcionar ferramentas de gestão e instrumentos de
governança no contexto da empresa familiar.
Assim, no final de 2019 e início de 2020, foram realizadas entrevistas orientadas por
um roteiro prévio, gravadas e respondidas pelo diretor-presidente, seus 2 herdeiros e 11
gestores da empresa pesquisada. Os entrevistados pertencem a 3 unidades de negócios
(hospital, homecare e centro pediátrico), responsáveis por cerca de 95% do faturamento do
grupo. As entrevistas foram transcritas e analisadas para o alcance do objetivo da pesquisa. Os
membros da família foram identificados e os gestores foram numerados aleatoriamente para
preservar a confidencialidade das respostas.
A tabela 2 apresenta o perfil dos entrevistados da pesquisa na empresa familiar em
estudo:
Tabela 2 Perfil dos entrevistados
Posição Atual
Unidade de
Negócio
Tempo na
empresa
(anos)
Membro da
Família Gênero
Idade
(anos)
Formação
Acadêmica
Diretor-Presidente Grupo 38 Sim Masculino 58 Pós-doutorado
Herdeira Grupo - Sim Feminino 28 Graduação
Herdeiro Grupo - Sim Masculino 22
Graduação em
Andamento
Superintendente Grupo 15 Sim Feminino 46 Pós-graduação
Diretora Médica Centro
Pediátrico 29 Não Feminino 54 Pós-graduação
Diretora Médica Homecare 22 Não Feminino 48 Pós-graduação
Gerente MédicaCentro
Pediátrico 20 Não Feminino 47 Pós-graduação
Gerente de Qualidade Hospital 12 Não Feminino 35 Graduação
Diretora Médica Hospital 10 Não Feminino 36 Graduação
Gerente Administrativa Hospital 9 Não Feminino 39 Pós-graduação
Gerente Financeira Hospital 3 Não Feminino 38 Graduação
Coordenadora Médica
de Emergência Hospital 3 Não Feminino 36 Pós-graduação
Coordenadora Médica
do Transporte Hospital 3 Não Feminino 46 Graduação
Diretora Administrativa Homecare 1 Não Feminino 56 Pós-graduação
Fonte: Elaborada pelas autoras
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Foi elaborado um roteiro diferenciado para o diretor-presidente e para os demais
entrevistados. Para o diretor-presidente foi proposta uma narrativa sobre a história da empresa
intercalando perguntas abertas com propostas de narrativas sobre a gestão atual da empresa e
os planos para o futuro. Para os herdeiros e gestores, o roteiro de entrevistas contemplou
perguntas abertas e propostas de narrativas sobre a compreensão dos aspectos
socioemocionais na gestão e nas decisões da empresa. Trechos das entrevistas ilustram os
aspectos da gestão e da riqueza socioemocional na empresa pesquisada.
4. Análise dos Resultados
As categorias identificadas na análise dos dados estão sintetizadas conforme a seguir:
4.1 A história da Empresa
O diretor-presidente fez uma narrativa sobre a história da empresa, com foco na sua
fundação, na trajetória da empresa e seus fundadores.
Inicialmente, constatou-se a passagem do legado da primeira para a segunda geração.
A evolução da empresa, passo a passo, desde sua fundação até a gestão atual, conforme
mostram os trechos abaixo:
“O hospital foi fundado em 1961 e nasceu da concepção de seis
estudantes de medicina que fizeram residência juntos em um hospital no
Rio de Janeiro e se conheceram nesse hospital e eles tinham um sonho
de fazer um hospital pediátrico.” “[...] Então assim, durante vários anos,
eles foram crescendo muito lentamente, assim com o dinheirinho que
dava né? Foram crescendo, crescendo organicamente, saíram de 4 leitos
para 24, 26 leitos. Quando eu cheguei aqui como médico para trabalhar
em 1984, eu tinha acabado de me formar e assim foi.”
“[...] Eu via o hospital como uma unidade de negócio, “negócio”, né?
Quer dizer, “uma empresa”, eles nunca viram o hospital como uma
empresa. Essa foi a grande diferença da gestão deles para a minha
gestão”.
“[...] Quando eu entrei aqui e comprei a empresa com o meu ex-sócio, a
gente teve uma visão diferente. Vamos investir como se fosse a nossa
grande empresa! Nosso porto seguro. [...] quando a gente comprou o
hospital, a gente ainda ficou 3 anos com o hospital mais 5 unidades de
uma outra empresa que éramos sócios. E eu sentia que aquilo não ia dar
certo, não ia dar certo, não ia dar certo... Aí a gente desfez a sociedade,
aí ele foi embora, eu peguei todas as unidades e fechei e concentrei
todos os meus esforços no hospital que começou com meu pai.”
A história da empresa também é conhecida pelos gestores, uns conhecem mais, outros
menos dependendo do tempo de convivência que possuem. A história foi contada de forma
detalhada por um dos gestores conforme observa-se:
[...] “o hospital era de um grupo, não era só do pai do doutor... eram
vários pediatras que se juntaram numa casinha, e o pai do doutor era um
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desses sócios. Inclusive tiveram outros filhos que trabalharam no
hospital, e o doutor começou a trabalhar no hospital como plantonista,
até hoje trabalha um filho de um dos fundadores que também já faleceu.
Mas o doutor sempre teve essa coisa do empreendedorismo, de querer
ter o hospital dele, enfim então ele antes mesmo de comprar o hospital,
ele tinha outra empresa e era em sociedade com outra pessoa onde eles
terceirizavam UTIs neonatais dentro de outros hospitais. E aí surgiu a
oportunidade de montar UTIs dentro do hospital atual que não tinha
UTI. Aí os sócios se separaram, o doutor conseguiu juntar um dinheiro
junto com a ex-esposa para poder comprar a parte desse sócio e aí
realmente quando era só dele, ele começou a investir no hospital.”
[Gestor 4]
A partir da narrativa da história da empresa ocorreu o encadeamento para a
compreensão dos aspectos sociomocionais presentes na gestão atual.
4.2 Riqueza Socioemocional
De acordo com Berrone et al (2010), a teoria da riqueza socioemocional (SEW) está
ancorada a um nível psicológico profundo entre os proprietários da família. Existem modelos
mentais, percepções e crenças na gestão de empresas familiares que podem ser capturadas
através das dimensões da SEW. Neste contexto, as entrevistas proporcionaram a compreensão
das cinco dimensões da riqueza socioemocional presentes na empresa pesquisada, a saber:
• Controle e influência da família.
O dono da empresa participa das três esferas de poder, ou seja, é proprietário de 100%
das quotas de participação do capital social, é familiar e principal gestor onde atua como
diretor-presidente. De acordo com estudos anteriores de Mustakallio, Autio e Zahra (2002),
não é incomum ver os proprietários de empresas familiares assumindo múltiplos papéis nas
empresas como forma de exercer controle formal e informal.
Com relação à influência da família, os herdeiros ainda não fazem parte da gestão. A
superintendente considera que atualmente tem uma influência na gestão que é controlada pelo
diretor-presidente As ideias e estratégias são formuladas pelo diretor-presidente e são
modificadas em conjunto com os gestores. O diretor-presidente possui total influência na
gestão, decisões e estratégias da empresa conforme opinião dos gestores abaixo:
"Eu acho que ele influencia muito, na realidade ele é muito
centralizador na gestão. Ele faz questão de participar de tudo, ele deixa
bem claro isso. É claro que a gente tem alguma autonomia até certo
ponto, mas na hora de alguma decisão, alguma coisa que é importante,
algum contrato, ele está sempre participando. Ele faz muita questão,
inclusive se a gente não chama, ele reclama e diz: “eu quero participar,
eu quero fazer”. E na realidade, todas as decisões de coisas de alta
gestão, é ele que toma. Ele participa de tudo." [Gestor 4]
"Então assim, o doutor é o cabeça, ele é o estrategista e eu tenho o
maior respeito porque ele montou uma estrutura muito boa.” [Gestor 1]
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Observou-se também que a empresa não possui uma estrutura formal de governança e
que além das considerações financeiras, questões familiares, de amizade ou gratidão
impactam na tomada de decisão. Os funcionários consideram a empresa uma grande família e
isso tem um peso nas decisões conforme relatado:
"Minha impressão é que ele pondera muito quando um funcionário não
está indo bem, no sentido de mandar o funcionário embora, porque
existe um laço aí de amizade, ele é muito grato a muitos funcionários. A
empresa já passou por fases muito ruins, é complicado... algumas
pessoas abraçaram muito essa causa e ele se sente muito grato, muito
agradecido e isso influencia nas decisões dele sim." [Gestor 2]
• Identificação de membros da família com a empresa
Embora os herdeiros não façam parte da gestão, uma das coisas que fizeram
exclusivamente pela empresa foi um curso de gestão de empresas familiares para terem uma
melhor visão dos negócios. Sentem que a empresa interfere muito nas suas vidas e que fazem
parte do negócio. Os herdeiros relataram diferentes níveis de identificação com a empresa
conforme observado:
"Eu me identifico, tenho bastante carinho. Eu acho que é você dar uma
continuidade a tudo que meu avô começou, meu pai continuou, eu sou
da linhagem, tá continuando comigo... passando por várias eras.”
[Herdeira]
“Eu não sei se eu me identifico muito, mas eu me sinto parte da
empresa porque desde pequeno a gente conhece tanta gente que trabalha
lá...” [Herdeiro]
Para o dono da empresa, há uma identificação total com o negócio. O trecho abaixo
demonstra o significado da empresa para o gestor familiar e a ênfase nos objetivos não
financeiros do negócio:
“É um filho pra mim! Eu trato o hospital como se fosse um terceiro
filho, com carinho...“Eu só sei fazer isso! Vou ganhar pouco, dane-se,
não é isso... eu não tô aqui para ganhar dinheiro, tô aqui para ser feliz,
para me realizar, não é a grana que me realiza.”
Contatou-se também que os clientes (pacientes, pais, familiares das crianças
internadas) associam o nome do proprietário aos serviços oferecidos pela empresa. Além
disso, há uma identificação e lealdade de prestadores de serviços, fornecedores ao proprietário
do negócio. Na visão dos gestores, há total identificação do proprietário com a empresa e o
negócio faz parte da vida dele conforme depoimentos a seguir:
"Isso aqui é a vida dele, 100% ele vive o hospital, é uma rotina louca
diária, ele manda e-mail às 4 da manhã, super organizado e eu acho que
isso é a vida dele! [Gestor 6]
"Eu penso que isso aqui pra ele é um filho. Então assim, ele cuida, ele
tem amor, ele tem carinho, ele chora por isso daqui..." [Gestor 7]
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• Laços sociais obrigatórios
Notou-se um forte engajamento e comprometimento dos funcionários, que têm como
característica principal a lealdade à empresa e a seu proprietário. Eles ajudaram a construir a
empresa nos bons e maus momentos conforme relato:
"Falando do meu setor, que é o que vivencio, a grande maioria dos
funcionários é comprometida com a empresa. É engraçada essa relação,
você acaba se tornando parte da família. A forma de liderança dele faz
com que você se sinta não só como mais um funcionário do hospital,
mas como parte da família. E aí eu vejo que mesmo nas épocas em que
o hospital passou por dificuldades financeiras, uma parcela grande da
equipe ficou e continua no hospital até hoje. E aí pesa o lado pessoal
que é característico da empresa familiar." [Gestor 5]
Além disso, há diversas ações sociais de engajamento e comprometimento da empresa
com a comunidade. A empresa leva ambulâncias às praças do Rio de Janeiro, com palhaços e
faz atendimento comunitário infantil. Um comprometimento pessoal do proprietário é fazer
trabalho social com moradores de rua e entrega de mantimentos. No hospital tem a pet-terapia
(terapia com o apoio de cachorros levados ao hospital), contador de histórias infantis, super-
heróis, apoio psicológico para as famílias das crianças internadas. O depoimento a seguir
mostra este lado de afetividade e acolhimento do hospital:
"A gente tem palhaçaria, tem contador de história, a gente tem a pet-
terapia onde os cachorrinhos vêm pra fazer parte da terapia e do
resultado para o paciente, para melhora do paciente. A gente empresta
livros, tem a biblioteca, empresta brinquedo, tem a brinquedoteca, aí a
gente tem a assistente social que ela vê o que aquela família precisa, às
vezes a família tá aqui e não tem o que comer, tem plano de saúde mas
não tem o que comer. " [Superintendente]
Em linha com os relatos dos gestores, o diretor-presidente contou histórias sobre os
eventos que a empresa realiza, mesmo sem retorno financeiro, e a sua sensibilidade ao decidir
em deixar internar de graça algum paciente que não tenha dinheiro para o tratamento.
• Apego emocional da família
Foram constatadas as principais emoções, conflitos familiares e eventos que afetaram
o processo de tomada de decisão nos negócios. A maioria dos entrevistados destacaram dois
eventos que abalaram o emocional do dono da empresa: falecimento da esposa e crise
financeira. Quanto a este último, algumas narrativas ilustraram o episódio que aconteceu na
empresa:
"A gente passou uma crise com uma operadora de planos de saúde e
pela primeira vez o pagamento atrasou. E aquilo consumia ele de um
jeito, a gente via. Até que ele passou e falou assim: “eu devo isso aos
funcionários”. E ele foi ao hospital e ele passou de andar em andar
falando com cada funcionário. Eu vi uma técnica de enfermagem
abraçada com ele e falando: “doutor... a gente vai passar dessa, eu tô
orando muito!”" [Gestor 9]
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‘[...] ele pessoalmente foi até o chão de fábrica, dar a satisfação, pedir
desculpas pelo atraso nos pagamentos, então aquilo foi algo que me
emocionou muito como gestora... naquele momento eu falei assim:
“mas não era... o senhor não precisava fazer isso... a gente estava
fazendo...” [Gestor 8]
Verificou-se também nas entrevistas não só o apego emocional do proprietário como
dos funcionários à empresa, o proprietário não pensa em vender a empresa no momento e
gostaria de fazer a sucessão. Verificou-se a dificuldade dos funcionários em sair da empresa
pelo apego não só à empresa como à figura do dono do hospital. A empresa representa a
missão de vida dos funcionários e do dono do hospital também. Abaixo um dos depoimentos
demonstrando o apego emocional e como um dos gestores enxerga o impacto da venda da
empresa na vida do proprietário:
“[...] um dia eu cheguei e vi o doutor... abraçando uma criança que tinha
acabado de morrer, ele entrou no CTI e ficou toda a madrugada... E ele
vai fazer o que? Vai viver do que?" [Gestor 3]
• Renovação de laços familiares através da sucessão
Percebe-se que há intenção do dono em entregar o negócio aos filhos que seriam a
terceira geração da família. Na entrada do hospital tem-se um quadro com a foto dos seis
fundadores, mostrando o orgulho e a história do legado da geração anterior. Somente um dos
filhos das famílias fundadoras é o dono atual do hospital. Ele foi comprando, com seu ex-
sócio, a parte de todos os fundadores até se tornar o único dono e diretor-presidente da
empresa.
Os planos para o futuro envolvem principalmente a questão da sucessão no negócio.
Há uma preocupação do diretor-presidente com seus herdeiros, principalmente após o
falecimento de sua esposa. Os herdeiros nunca trabalharam na gestão, a sucessão ainda é uma
incógnita. Porém é o desejo do proprietário da empresa familiar pesquisada ver a continuidade
de seu trabalho e da própria empresa nas mãos de seus filhos conforme seu relato:
[...] “Penso na empresa 30 horas. [...] Eles querem isso? Não sei!!!
Nunca trabalharam na gestão. Não sei, é uma incógnita. [...] Então
assim, sucessão é o desejo! A não ser que a economia mude, tudo
muda.”
Abaixo a visão de um dos herdeiros e também de um gestor sobre a sucessão na
empresa ou de algum fato que mostre um movimento neste sentido:
"Acho que já está a caminho, já começou, logo que a gente entrou no
curso de gestão de empresas familiares meu pai falou pra gente. O
início do curso mostra esse movimento em relação à sucessão e todos os
três querendo fazer junto o curso. Antes disso nunca teve nada... [...] Eu
acho que eu vou ser um bom sócio!” [Herdeiro]
"Eu não sei se esse curso de gestão de empresas familiares que ele está
fazendo, ele e os filhos, se é um movimento com relação para a
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sucessão. Mas eu veria assim, com bastante orgulho, se os herdeiros
tivessem esse vínculo de gestão e assumissem a sucessão." [Gestor 10]
Com base no exposto, constata-se a presença dos aspectos socioemocionais descritos
pela Socioemotional Wealth Theory na gestão da empresa em escopo, ou seja, a influência do
proprietário na gestão através do controle sobre as decisões estratégicas, o entrelaçamento
entre família e negócio dando origem a uma identidade única da empresa familiar, as relações
sociais da empresa enraizada na comunidade com atividades e relacionamentos de afeto com
os pacientes e funcionários do hospital, bem como a importância do papel das emoções e seus
impactos nos negócios e a necessidade de renovação dos laços familiares através da sucessão
para a continuação do legado e da tradição da família.
Segundo Kanitz (2017), pouco tem sido pesquisado sobre a constituição psíquica do
empresário em geral. Defini-lo como um agente econômico, maximizador de lucros ou
perseguidor do vil metal é uma explicação simples demais, da mesma forma que o são outras
definições unidimensionais.
4.3 Mecanismos de Governança Corporativa
A empresa não possui mecanismos formais de governança corporativa tais como um
Conselho de Administração para auxiliar os gestores nos rumos dos resultados e nas
estratégias da empresa. Esse tipo de órgão de governança é encontrado com frequência nas
empresas de capital aberto para atenderem aos investidores externos. Além disso, a empresa
não possui por escrito regras ou regulamentos, código de conduta para os funcionários ou
órgãos de fiscalização e controle como mecanismos previstos pelas práticas de governança
corporativa.
Em relação à governança familiar, não há um Conselho de Família que é o órgão
responsável por manter assuntos de ordem familiar separados dos assuntos da organização
(IBGC, 2015). No que tange à governança jurídica-sucessória não há uma estrutura de
planejamento sucessório para os herdeiros da empresa.
Constatou-se, portanto, que não há uma estrutura formal de governança com órgãos ou
procedimentos por escrito. Na visão do diretor-presidente:
[...]“Essas estruturas de governança têm muito marketing”.
Neste contexto, existem outros mecanismos de controle na gestão da empresa
pesquisada que não necessariamente os descritos acima. Constatou-se a centralização de
poder nas mãos do diretor-presidente e o controle das decisões como se observa:
“Eu sei que tem uma pessoa para negociar com as operadoras de planos
de saúde, ela é a negociadora, mas eu por trás, além dela mandar o e-
mail, eu mando um e-mail para o presidente das operadoras, pra ela, pro
outro cara, eu encho o saco, eu sou o sombra de todos, eu estou em
todos os lugares, eu meto o dedo em tudo, eu quero saber de tudo,
qualquer coisa eu chamo aqui na minha sala.”
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No relato abaixo, o proprietário contou como é um dia típico do seu trabalho na
empresa, como atua na gestão e no planejamento das estratégias da empresa:
“Se você abrir meu computador, eu não tenho nada documentado aqui.
Nada, eu não sigo nenhuma cartilha, eu sou intuitivo, eu não sou
administrador, nunca me julguei administrador, eu sou médico. E sou
assim, muita vontade de trabalhar e dar certo. A minha capacidade de
trabalho supera minha clarividência na parte administrativa.
Quando a empresa era menor, ficava tudo na minha cabeça. Hoje a
gente tem um programa bem atuante na empresa que é o de qualidade.
E junto com a superintendente, a gente tem um planejamento
estratégico definido para os próximos 3 anos. Então os gestores vão
conduzindo as reuniões para esses planos.”
O relato demonstra mais uma vez que o diretor-presidente exerce controle sobre as
decisões estratégicas na empresa familiar, em linha com a teoria da riqueza socioemocional.
Com relação ao controle para contratação e demissão de funcionários, todo esse
processo passa pelas mãos do diretor-presidente. O funcionário só é contratado com a
assinatura do diretor-presidente e no caso de demissão de médicos só é desligado da empresa
após uma entrevista para saber os motivos do pedido de demissão. Não existe um código de
ética por escrito para direcionar a conduta dos funcionários, porém se o diretor-presidente
souber que algum colaborador não está agindo com ética ou tendo uma má conduta, ele é
demitido imediatamente. Existe lealdade dos funcionários à empresa, demonstrando os laços
criados na empresa familiar, característicos da riqueza socioemocional.
O controle dos custos e do orçamento da empresa tem a interferência direta do diretor-
presidente conforme os episódios relatados:
“Todo o orçamento aqui passa pela minha mão pra eu assinar. Só
compra uma peça do tomógrafo se eu assinar e se eu negociar. Eu
negocio, às vezes, 100 reais aqui... A ambulância quebrou, eu ligo pro
cara da oficina, esse preço eu não vou pagar. O ar-condicionado do
carro do homecare quebrou... tudo eu sei. Aqui tudo eu quero saber...”
Com relação à sucessão, embora não haja um plano definido para o futuro, há um
controle por parte do diretor-presidente em direcionar a sucessão na gestão para seus
herdeiros, um dos movimentos neste sentido foi a realização do curso de gestão de empresas
familiares pelo dono e herdeiros em conjunto. Ou seja, há um desejo de entregar o negócio à
geração futura, que é um dos aspectos presentes da riqueza socioemocional em empresas
familiares.
Diante do exposto, constata-se que os aspectos socioemocionais se fizeram presentes
na gestão da empresa familiar e nos mecanismos de controle desenvolvidos pelo proprietário
familiar e que estes podem contribuir para a análise da governança corporativa neste tipo de
empresa.
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5. Considerações Finais
Este estudo teve por objetivo analisar como os mecanismos de governança corporativa
contemplam os aspectos da SEW em uma empresa familiar. Para tanto, realizou-se uma uma
pesquisa descritiva, de abordagem qualitativa, através de um estudo de caso em uma empresa
familiar da área de saúde, voltada para o setor de pediatria e presente no mercado há 58 anos.
Constatou-se a presença dos aspectos socioemocionais descritos pela Socioemotional
Wealth Theory na gestão da empresa em escopo, tais como: o controle e influência do
proprietário familiar na gestão, o entrelaçamento entre família e negócio dando origem a uma
identidade única da empresa familiar, os laços sociais obrigatórios neste tipo de empresa com
os funcionários e a comunidade, o apego emocional da família aos negócios a necessidade de
continuidade do negócio através da sucessão dos herdeiros da família.
Neste sentido, os resultados deste artigo corroboram a afirmação de Berrone, Cruz,
Gomez-Mejia (2012), de que apesar da relevância das emoções descritas pela SEW, emoções
e sentimentos presentes na gestão muitas vezes são negligenciados na governança corporativa.
Constatou-se que a empresa não possui mecanismos formais de governança
corporativa, bem como não possui por escrito regras ou regulamentos, código de conduta para
os funcionários ou órgãos de fiscalização e controle como mecanismos previstos pelas
práticas de governança corporativa. Porém possui outros mecanismos de controle que foram
desenvolvidos ao longo dos anos pela empresa familiar pesquisada e que são afetados por
aspectos socioemocionais, tais como:
• Controle das decisões e centralização de poder nas mãos do diretor-presidente ;
• Controle sobre as estratégicas da empresa pelo dono da empesa;
• Controle para contratação e demissão de funcionários, onde o processo está
centralizado nas mãos do diretor-presidente;
• Controle dos custos e do orçamento da empresa com a interferência direta do
diretor-presidente;
• Controle do poder nas mãos da família com o início da educação dos herdeiros
para o papel de futuros sócios da empresa.
A análise de conteúdo evidenciou que os mecanismos de governança corporativa
contemplam os aspectos da SEW na empresa familiar pesquisada. Constatou-se que o controle
e a influência direta do gestor afeta os negócios e que questões de amizade ou gratidão em
relação aos funcionários impactam na tomada de decisão. Existe a interferência do dono da
empresa no controle dos custos, orçamento e qualquer atividade da empresa em que achar que
deva interferir pessoalmente. Além do desejo de sucessão nos negócios através dos seus
herdeiros para a continuidade do legado familiar e do controle da empresa pela família.
Tendo em vista o potencial de contribuição da governança corporativa para a gestão de
empresas familiares, esta se tornaria mais robusta, se incorporasse os aspectos sociomocionais
aos mecanismos de controle para que estes possam gerenciar os conflitos peculiares existentes
nas empresas familiares. Os conflitos de interesses podem afetar a gestão se não forem
identificados e controlados e a governança corporativa tem papel fundamental para facilitar
este controle e contribuir para a perpetuidade do legado familiar.
Portanto, a governança corporativa referente às empresas familiares, que tem o
objetivo de filtrar as influências da família na gestão, deveria incorporar os aspectos
socioemocionais aos seus mecanismos de controle, visando resguardar a saúde financeira, as
melhores práticas de gestão e de interface com partes relacionadas e, em última instância, a
continuidade das empresas familiares. Estes aspectos socioemocionais podem ser sutis e,
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portanto, de difícil captura e mitigação pelos mecanismos tradicionais de governança
corporativa.
Desta forma, as empresas familiares, que muitas vezes têm interesse em implantar
mecanismos de governança corporativa para cuidar dos interesses de acionistas externos
(KAPPES; SMITH, 2013; TURRENT; HUGHESB, 2017), poderiam utilizar a governança
corporativa na superação de seus problemas e conflitos internos ao incorporar os aspectos
sociomocionais descritos pela SEW aos seus mecanismos de controle, visando resguardar as
melhores práticas de gestão e de interface com partes relacionadas e aprimorando suas
decisões estratégicas.
É importante entender como as empresas familiares funcionam, suas peculiaridades, os
relacionamentos, vínculos e emoções presentes na gestão e assim construir melhores
mecanismos de governança corporativa, sejam formais, com regras e padrões, ou mecanismos
não previstos formalmente, como os demonstrados neste artigo, mas nos quais os valores da
empresa são considerados pelo dono e pelos gestores, alinhando os interesses das partes
interessadas na gestão dos negócios. É essencial organizar por meio da governança
corporativa as relações de afeto e poder inerentes às empresas familiares.
O estudo contribuiu para a literatura sobre governança corporativa e empresas
familiares, ao analisar como os mecanismos de governança corporativa contemplam os
aspectos da SEW em uma empresa familiar e, ainda, para motivar estudos com foco na gestão
de empresas familiares.
Por fim, como sugestão para pesquisas futuras, recomenda-se que sejam realizados
estudos com foco em governança corporativa e em aspectos socioemocionais em empresas
familiares de diferentes portes, e com a sucessão já concretizada, para a avaliação dos
conflitos no cenário atual da empresa.
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