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CONTRIBUIÇÕES DE HUGO DE SÃO VÍTOR PARA AS
UNIVERSIDADES
FAETHE, Sílvia Berbert de Andrade.
Introdução
Neste artigo, temos o objetivo de analisar as contribuições de Hugo de São Vitor para
a universidade e a ciência, desde o século XII, considerando a riqueza da obra num período de
efervescência na Alta Idade Média. Didascalicón: Da arte de ler, obra produzida em 1127,
precedeu todos os outros escritos do Vitorino. Foi traduzida para o português por Antonio
Marchionni em 2001, (versão que utilizamos). É um manual para estudantes que introduz as
regras necessárias para a leitura: saber o que ler, em que ordem se deve ler e como se deve ler.
Dentro dessa obra, estaremos ressaltando a ciência em Hugo, como também a sua importância
para a universidade. Analisaremos, ainda, como foi formado o pensamento de Hugo, suas
origens, sua influência e em qual período foi formado.
Entendemos que a produção desta obra veio a contribuir para a formação do
pensamento dos estudantes da época, os quais aumentavam, pois já havia cessado o período
de invasões na Europa, e ascendia um espírito humano, ainda de caráter teológico, que
ansiava por novas descobertas. O Da arte de ler inaugura a era do livro que daria vida a
Universidade no século XIII.
Hugo de São Vítor esboça um pensamento de como adquirir a ciência por meio da
Sapiência, a importância da filosofia e o trabalho a partir do saber filosófico, introduzindo
pioneiramente as ciências mecânicas à filosofia. São várias as faces de análise da obra,
poderíamos ressaltar o caráter filosófico, místico, ético e pedagógico. Trata-se de uma obra
clássica que apresenta um método medieval de estudos imbuído de uma racionalidade
filosófica que pode contribuir em nossa atualidade.
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Período histórico que contribuiu para a formação do pensamento de Hugo de São Vítor
Hugo de São Vítor nasceu no ano de 1096, período da Alta Idade Média.
Primeiramente, é importante ressaltar que o período que se estende a Idade Média vai de 476,
ano do fim do império Romano do Ocidente, e em torno aproximadamente de 1492, quando
foram descobertas as Américas (CAMBI, 1999, p.155).
Após um período que houve muitas invasões muçulmanas e germânicas na Europa,
iniciando com a proximidade da virada do milênio, a Igreja tornou-se palco de mudanças
sociais, econômicas. O poder era dividido entre o príncipe e a igreja, no qual alguns
governantes como o imperador Carlos Magno (sec. X) beneficiou-se para tentar manter a
ordem de seu império fortemente embasado na capacidade unificadora da igreja. Numa época
em que os fiéis apavoravam-se pela proximidade do novo milênio e, portanto; “medo do fim
do mundo”, a igreja viu-se num momento propício para difundir sua influência nos fiéis
através do medo e, a partir disto, propagar as indulgências, os dogmas e mitos da igreja
católica. Período este, caracterizado pela sociedade feudal e o império carolíngio:
A sociedade feudal é, portanto, uma sociedade fixa, com escassa mobilidade social e pouca reciprocidade; é uma sociedade de ordens, em que os homens se acham colocados e têm um papel social bem determinado. No vértice estão os bellatores (os guerreiros) e os oratores (os clérigos), embaixo estão os laboratores (camponeses, artesãos, ou seja, o povo), mas, cada ordem tem direitos precisos... são bastante impositivos e caracterizam a condição dos laboratores como de servidão (os “servos da gleba” eram, de fato, os camponeses, colocados no degrau mais baixo da sociedade feudal) (CAMBI, 1999, p.155-156).
Nesta citação evidencia-se a estrutura em forma de pirâmide da sociedade
feudal, como também a condição de subordinação das classes ao senhor do feudo. Nesse
contexto, se faz saber que o sistema feudal foi baseado economicamente na posse da terra e no
direito de cobrar um certo número de taxas, o que gerou uma hierarquia social e de poderes
(PIRENNE,1968, p. 45-49).
O desaparecimento da vida urbana ocorrida no séc. VIII na Europa deveu-se
principalmente a invasão islâmica que bloqueou os portos do mar Tirreno, depois de submeter
o litoral africano e espanhol, importante entrada de meios de capital. Desta forma as cidades
perderam sua população de artesãos e comerciantes que foram se aglomerar nos feudos. Nesse
contexto, se faz saber que o sistema feudal foi baseado economicamente na posse da terra e no
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direito de cobrar um certo número de taxas, o que gerou uma hierarquia social e de poderes.
(PIRENNE,1968, p. 45-49)
Segundo Le Goff, na base dessa pirâmide social está a massa dos leigos, que somam
90% dos camponeses, uma parte deles, até o séc XI, não é livre. Ainda existem escravos e
servos, e as alforrias libertam grande parte deles. Acima deles estão os senhores, que são os
proprietários, os beneficiários da terra e dos produtos econômicos em geral. Ao lado e acima
deles, uma hierarquia política dividida em governos urbanos com magistrados urbanos e
governos que, pouco a pouco, a partir do séc XI e XII, assumem um aspecto estatal e geram
monarquias, das quais as principais são a inglesa, francesa e castelhana. (LE GOFF, 2007,
p.66).
Após a queda do império carolíngio, passou-se por um período instável e houve a
formação de castelos fortificados edificados pelos príncipes feudais e que serviam de proteção
aos seus homens. Estes castelos, chamados de burgus, possuíam, quase sempre, uma muralha
de terra ou de pedra, rodeada por um fosso, em que se abriam várias portas. Os homens
subsistiam apenas pela atividade agrícola, e em caso de perigo refugiavam-se no castelo
(PIRENE, 1968, p.47).
Depois da segunda metade do séc. X, com o ressurgimento do comércio através dos
mercadores que se arriscavam de uma terra a outra, num período no qual o saque era um meio
de existência da pequena nobreza, havia necessidade de refugiar-se nas muralhas dos castelos.
Nota-se, portanto, que a Idade Média não foi um momento estático, e a partir deste
aquecimento do comércio inicia-se novos anseios na sociedade medieval.
Com o aumento do comércio, as proximidades dos castelos, agora cada vez mais
habitadas tornou-se ponto de passagem dos comerciantes. Mais tarde, necessitou-se formar
aglomerações ao redor dos burgus (castelos) chamados foris-burgus. As pessoas que ali
viviam levavam uma vida em contraste com as de dentro das muralhas, aumentando até a
formação das cidades do medievo (PIRENNE, 1968, p.45-49).
Com estas aglomerações de pessoas cada vez maiores a sociedade da época viu a
necessidade de criar as corporações de ofício (OLIVEIRA, 2002, p.58). Estas corporações
construíam-se a partir da necessidade de especializar-se em algumas profissões. Ainda neste
período, agrupamentos de pessoas eram obrigados a morar em arruamentos determinados,
essa população se emancipava do feudalismo, subdividindo-se territorialmente, eram as
comunas que nasciam.
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A instrução, segundo Bonni, ficou a cargo da Igreja, e esta, através de diversos tipos
de escolas, ministrou ensino a grupos relativamente pequenos. Tais instituições eram
nitidamente eclesiásticas (monacais ou episcopais). Mas, adiante disso após a virada do
milênio, houve idéias novas e algumas delas opostas à tradição cristã. Dentro deste contexto, a
Igreja: Da parte da Igreja, intensificou-se a preocupação com as escolas: toda catedral e todo mosteiro deviam possuir a sua, pois era preciso preparar o clero e os monges para a nova situação... Agora, requería-se algo mais: era preciso encontrar resposta para novas questões, ser capaz de argumentar ante inimigos da fé... formação de elite apta a enfrentar os desafios de uma nova situação (BONNI, 2002, p. 21).
Percebe-se como a Igreja estava acompanhando de perto todas as transformações
ocorridas no medievo e, procurava adaptar-se a cada uma delas. Além do que, a Igreja foi a
grande depositária do conhecimento na Idade Média, graças ao trabalho dos monges copistas.
De dentro da Igreja surgiram grandes pensadores como, Hugo de São Vítor, que é uma
das expressões fortes neste período.
Surgimento das Universidades
O surgimento das universidades tem relação com o fortalecimento da vida nas cidades,
e também de uma nova classe social; a burguesia e com as corporações de ofício na Europa do
séc XIII.
Segundo Verger (1990), nas primeiras Universidades, os cursos eram dados em salas
alugadas pelos mestres, e as cerimônias realizavam-se em conventos ou igrejas, pois, não
havia prédio próprio. Nota-se o ensino caminhando de mãos dadas com a Igreja.
Segundo Bonni, a universidade formou-se como corporação de mestres e alunos –
studium generale – onde a produção do saber foi o principal interesse:
O exercício de uma atividade, reservado ao especialista, é algo que caracteriza a corporação. Foi nesse contexto corporativo que surgiram as universidades: corporações de pessoas voltadas ao estudo. E, se olharmos para a organização moderna do ensino superior, percebemos que ela ainda preserva, também nisso, o legado medieval: ainda hoje a comunidade acadêmica divide-se em aprendizes (alunos), acompanhantes (professores auxiliares e adjuntos) e mestres (professores titulares) (BONNI, 2002, p.20).
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Percebemos, que a Universidade é uma instituição formada na Idade Média, e que,
ainda apresenta traços fortes de sua origem nos dia de hoje. Observamos também, o desejo de
especializar-se em uma área de conhecimento manifesto na necessidade das corporações de
ofício, que se tornou um dos objetivos dos mestres da época.
Ensino
Segundo Cambi (1999), a escola foi produzida na Idade Média e era ligada a presença
de um professor que ensinava a muitos alunos de várias procedências.
Sobre os alunos no período anterior ao das universidades, destaca-se a questão da
mobilidade, naquela época seguiam à busca dos mestres. Podemos assim dizer, que os
estudantes mais abastados, tinham melhor possibilidade de ir ao encontro do conhecimento.
Nestas escolas, permeou-se neste período a escolástica, que foi um método de
pensamento e de ensino que surgiu e se formou nas escolas medievais tornando-se mais sólida
nas universidades do séc. XIII. Esse pensamento divide-se entre auctoritas e razão. O
pensamento medieval fundamentado em dois fatores principais: auctoritas e da razão. Assim:
Auctoritas em teologia é o ensinamento da Igreja, é o texto da Sagrada Escritura, são as obras dos Santos Padres e as Atas dos Concílios. Em filosofia, são as obras de Aristóteles, os livros de Boécio e de Santo Agostinho, etc. Nas áreas do direito...Corpus Iuris Civilis, e em medicina, as obras de Hipócrates e Galeno, dos médicos e judeus (NUNES, 1979, p.245).
Já a razão humana, através da reflexão filosófica, a instiga e só admite uma
conclusão depois de maduro exame (quaestio e disputatio). O Vitorino se insere nesta escola e
busca a ciência juntamente com outros grandes pensadores.
Hugo de São Vítor, juntamente com Abelardo, Adelardo de Bath , Thierry de Chartres, Gilberto de Poitiers, Guilherme de Conches, John de Salisbury, Pedro Lombardo e São Bernardo, integra o grupo de pensadores que, na primeira metade do século XII, interpretam um novo papel da razão no estudo do mundo natural e supranatural. Anteriores de 100 anos ao espírito empírico de Roger Bacon, eles aparecem nas cidades em desenvolvimento da França e da Inglaterra. Discutem literatura, medicina, lógica, gramática, dialética, retórica, geografia, preocupados em descerrar a Razão, a constituição profunda das coisas, e as regras da linguagem na interpretação da ciência”¹. “Ninguém pode discutir sobre as coisas – afirma Hugo – se antes não conhecer o modo de falar correta e verdadeiramente”. Trata-se de uma nova
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forma de debruçar sobre as coisas da natureza. (Apud, MARCHIONNI, pág 18).
Observa-se que os pensadores medievais inquietavam-se em todas as áreas de
conhecimento da época. Mas que isso, deram passos para pré-estabelecer critérios para a
pesquisa da ciência.
Segundo Spinelli, a ciência como a filosofia remonta dos gregos. O “fazer ciências”
era uma atividade própria do filósofo, e condizente com o conteúdo e objeto da própria
filosofia na Antiguidade. Uma das contribuições dos gregos para o mundo ocidental foi,
segundo Spinelli, a tradição racional e tradição de livre debate. Ou seja, uma discussão
científica que se esforça para compreender o mundo em que vivem com interesse na busca da
verdade, sendo orientada por uma criticidade, através da discussão com uma atitude racional
reflexiva e investigadora (SPINELLI, 1990, p.59-60)1.
Faz-se interessante notar que o conceito de ciência foi modificando-se com as
mudanças culturais, sociais, históricas e econômicas dos povos, e que, no período medieval
ganhou um caráter teológico, místico, aliado a uma estrutura ética. Porém mais tarde ainda na
Idade Média, a ciência vai se separar da filosofia, já preparando a base para a ciência
moderna, de cunho aristotélico baseada no apelo científico, ou seja, no conhecimento racional
objetivo e de base empírica que será corporificado no séc XVIII¹. Apesar de haver indícios
dessa natureza no séc XII.
A partir destes conceitos, retomamos a influência do Vitorino com a Escola de São
Vítor e outras como a de Chatres, a de Notre-Dame, delas nascerá, em 1215, a universidade
de Paris. Portanto, estas integram um pensamento que embala um novo período que toma
corpo na universidade medieval. (MARCHIONNI, 2001, p.11-12).
O desenvolvimento intelectual da Escola de São Vítor registra algumas décadas de
ouro, que vão de 1125 a 1185. Estimulada pelo ensino de Hugo, a escola viu florescer
teólogos, filósofos, sábios, poetas, pregadores, confessores.
Este período efervescente do séc. XII foi sintetizado por Bruno Nardi (Apud,
MARCHIONNI, 2001, p.21) nestes termos: “a uma física lida em chave teológica se junta uma
1 De acordo com o mais lídimo espírito aristotélico - gosto da observação sensível, da demonstração científica e das investigações biológicas – Em Salerno vários tratados de anatomia indicam a prática da demonstração anatômica em sala de aula e baseada na dissecação de animais. Tudo indica que foi Mateus Platearius o primeiro professor salernitano a proceder à dissecação de animais no início do séc. XII. Por outro, observa Kristeller, o aparecimento do comentário de obras médicas assinala a passagem da instrução prática para a teórica em Salerno e, tanto na medicina com nas outras áreas. (Apud, NUNES, 1979, p.254)
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física lida em chave filosófico-científica”. Utilizamos duas expressões de Hugo de São Vítor,
realçando a interpretação científica do mundo no período da Alta Idade Média:
Este universo sensível é como um livro escrito pelo dedo de Deus, isto é, criado pela força divina, e todas as criaturas são como figuras não inventadas pela vontade humana, mas organizadas pela vontade divina para manifestar a Sapiência de Deus (Apud, MARCHIONNI, p. 21).
E ainda:
A natureza é um fogo criador que nasce de alguma força para gerar as coisas sensíveis. De fato, os físicos dizem que todas as coisas são geradas pelo calor e pela umidade (HUGO DE SÃO VITOR, 2001, p. 75).
Notamos que a ciência existia neste período, mas devido a, importância da filosofia e
da busca pela ciência na pesquisa sobre a natureza. Sendo que a ciência para nosso autor é
articulada com a busca pela Sapiência, no exercício da inteligência (2001).
Destaca-se ainda nesse período, a segunda revolução cultural que houve na Europa,
que foi a cultura livresca. Sendo que, o cônego é um dos atores que brilham nesta segunda
“revolução cultural” ocorrida na França, segundo Illich (Apud, MARCHIONNI, 2001,
prefácio).
Percebemos, que a primeira obra de Hugo veio num momento áureo da Idade Média
para apoiar a busca pelo saber do homem medievo. É importante também considerar que a
obra Da arte de ler, não foi a única, pois a ela somam-se centenas de manuscritos espalhados
por 45 bibliotecas européias. As obras de Hugo foram objeto de várias edições, que são:
...as de Paris em 1518 e 1526, de Veneza em 1588, de Magonza e Colônia em 1617, de Rouen em 1648, de Migne em 1854 e 1879, além de edições parciais de escritos específicos... das obras mais comentadas do vitorino encontram-se : Didascálicon da arte de ler, Dos sacramentos da fé cristã, Sobre a hierarquia celeste de Santo Dionísio, Sobre o Eclesiastes, Da união do espírito e do corpo, Dos três dias, Da essência do amor, Solilóquio sobre o penhor da alma, Em louvor do Amor, Da arca mística de Noé, Da arca moral de Noé. Hugo escreveu também um livro de geografia, recentemente aceito como autêntico, a Descrição do mapa do mundo. (Apud, MARCHIONNI, 2001, pág26).
Evidencia-se que a obra do Vitorino foi bastante vasta e que, não ficou restrita apenas
na França, mas, circulou em outros países europeus.
O Mestre Hugo impressiona pela fertilidade em obras escritas, e o número delas
pareceria notável já em 1154 ao cronista Robert de Torigny (Apud, MARCHIONNI, 2001, p.
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26). A Patrologia Latina de Migne (Apud, MARCHIONNI, 2001, p. 26) reúne em três volumes
o acervo de obras, opúsculos e cartas de autoria certa e duvidosa de Hugo, em um total de 52
títulos, divididos em obras exegéticas, dogmáticas, místicas e epístolas. O manuscrito mais
antigo que se dispõe (Vaticano Regina 167), datado da metade do século XII, enumera 15
tratados de Hugo. Os manuscritos posteriores à primeira organização das obras, ordenada pelo
abade Gelduíno em 1152, dez anos depois da morte do mestre, já listam 54 títulos, número
aproximado que se mantém até os nossos dias, quando os estudiosos fazem consistir as obras
de Hugo em 48 títulos autênticos e oito duvidosos (Apud, MARCHIONNI, 2001, p, 26).
A obra Da arte de ler
A obra Da arte de ler (1127) ao lado de Dos Sacramentos (1141) evidenciam a face
teológica do autor. Da arte de ler é objeto de estudos literários e filosóficos em várias
universidades, aliás, é um currículo medieval de estudos.
Dependendo do ângulo de análise, é visto como um livro ora filosófico, ora místico,
ora ético, ora antropológico, ora pedagógico. Com certeza, o Da arte de ler incorpora o
espírito das novas organizações religiosas da época, tendentes a recapturar o ascetismo da
Igreja primitiva, combinado com o serviço ao próximo e com as novas exigências da cidade
medieval. O pensar e o agir em realimentação recíproca, ou melhor, o agir pensando, no rasto
do ora et labora (trabalha rezando), constituem o método da obra.
Da arte de ler é composto de seis livros, três dedicados ao conhecimento das coisas do
homem pela leitura dos escritos literários e três dedicados ao conhecimento das coisas de
Deus pela leitura da Sagrada Escritura.
O interessante, nesta obra, é que o autor nos primeiros capítulos (I, II, III) define
alguns princípios do estudo, as disciplinas e cita autores das artes, aconselha princípios
básicos de como estudar e apresenta algumas atitudes necessárias para o estudo que são:
discernimento, meditação, memória, disciplina, humildade, silêncio, despojamento e exílio.
Mas, nos capítulos posteriores (IV, V, VI), já no estudo das Escrituras, é que ele
mostra para nós profundamente um espírito de caráter investigativo apresentando a ordem,
ressaltando com sabedoria a importância de saber as origens das obras, como também quem
as traduziu. Aconselha a usar a tradução mais fiel ao sentido das palavras. Dá importância
também ao período histórico-social em que foi escrita, quem escreveu a obra, qual o assunto
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tratado pela obra. Para então, depois disso, eleger sabiamente quais serão lidas e em que
ordem (da mais importante a de menor importância) isto também, de acordo com o seu
conteúdo. Observamos que toda esta análise prática foi feita dentro das Escrituras Sagradas,
porque para o autor a Sapiência Criadora é “A Razão única e primeira de todas as coisas”
(HUGO DE SÃO VITOR, 2001, p.53).
O Vitorino também cita as dificuldades do estudo e os motivos que podem
impossibilitar o seu sucesso. Com certeza, Da arte de ler é um manual não só para estudantes,
mas também para mestres, pois corporifica um método investigativo que, com certeza, só vem
a acrescentar na busca do saber, e é o que vai respaldar o estudo mais profundo dentro das
futuras universidades do séc XIII. Aconselha ler as Escrituras Sagradas para instruir a mente
com conhecimento, adornando-a com os bons costumes e lapidando-a com as virtudes
respaldadas na verdade. Ainda instrui quatro passos que são: a leitura, a meditação, a oração,
a prática e a contemplação, sendo que, esta última considerada dos estudantes perfeitos.
Nestes passos, levou-nos a uma interpretação que para o saber é necessário tempo e disciplina
para a produção de qualidade.
Reflexões a cerca da obra Da Arte de Ler
Quando Ivan Illich, escreve um ensaio sobre a revolução intelectual do século XII a
partir da obra Da arte de ler, considera-a um divisor de águas do saber mundial, Hugo estava
iniciando a era do livro, que daria corpo à Universidade e duraria até o começo do terceiro
milênio quando o livro está sendo substituído pelo vídeo (Apud, MARCHIONNI, 2001, p. 22).
Esse julgamento de Illich é devido às reflexões de Hugo a cerca da interiorização do
conhecimento, da preocupação no aprender e refletir, na capacidade em adquirir um espírito
crítico e reflexivo, importantes ferramentas para o estudante na busca pela arte de aprender.
Estas preocupações, a nosso ver, permeiam toda a história da educação, e por isso, estaremos
citando anseios de alguns autores, de diferentes escolas literárias e períodos na história que
convergem para este mesmo objetivo.
Como exemplo, citaremos Diderot, um autor do séc XVIII, de outra escola literária, o
humanismo, que também mostra uma preocupação com a formação superior. Aliás, este texto
(reflexão de Diderot, enviada a imperatriz da Rússia em 1775 para promover a educação
superior) foi retirado do primeiro plano de uma universidade. Diderot afirma: “ ... que o
ensino em uma universidade, é apenas um ensino progressivo de conhecimentos elementares.
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É dispô-los todos a se tornarem com o tempo homens profundos” (DIDEROT, 2000, p. 282)..
Percebemos nela que este pensador, em outra época, reflete também uma preocupação com
objetivo da instrução, de desenvolver uma razão mais profunda no homem.
Um outro aspecto que ressaltaremos é a filosofia, tão forte na obra Da arte de ler.
Inicialmente, usaremos um autor do séc. XX, que se utiliza de Musse und Kult:
Falar do lugar e do direito da filosofia, é ao mesmo tempo, falar de nada mais nada menos que do lugar e do direito da universidade, da formação acadêmica, e da formação em geral no sentido próprio da palavra, a saber, naquele sentido pelo qual, por princípio a formação se distingue da simples instrução profissionalizante e a ultrapassa. Instruídos é o funcionário e a instrução (profissional) se caracteriza por dirigir-se a um aspecto parcial e específico no ser humano e, ao mesmo tempo, a um determinado setor recortado do mundo. Já a formação se dirige ao todo: culto e formado é aquele que sabe o que acontece com o mundo em sua totalidade. A formação atinge o homem todo enquanto é capax universi, enquanto é capaz de aprender a totalidade das coisas que são (Musse und Kult, p.42-43) (Apud, LAUAND, 1952, p. 77).
Nesta reflexão, percebemos que mesmo que o contexto histórico seja diferente, o
ensino deve levar o estudante a ver onde outros não vêem, e uma das ferramentas destacadas
por estes estudiosos é a filosofia. Os autores colocam uma questão sobre a filosofia utilizada
como meio para melhorar a capacidade de entendimento do mundo pelo estudante. E, a partir
desta compreensão, ele se distingue e faz a diferença no meio, porque esta instrução
ultrapassa uma formação apenas técnica.
A importância da filosofia nas artes liberais enfatiza não só o aspecto utilitário, mas o
elemento filosófico, e este, livre de sua aplicação prática. Como podem ser estudadas outras
áreas do conhecimento assim como a Matemática, o Direito, a Física etc.
Como enfatiza Pieper:
Há também na ciência, no seu núcleo mais íntimo, um elemento que não pode ser tomado para a utilidade prática: é o elemento filosófico da teoria, que se dirige para a verdade e nada mais. Isto é: a Ciência tem, em virtude de sua essência, exigência de liberdade, por ser não prática, mas teorética (Apud, LAUAND, 1952, p. 81).
Nesta análise, usado por Jean Lauand, evidencia a nosso ver, que a filosofia como
elemento filosófico já está dentro da própria ciência, e que, ambas procuram a verdade.
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Estas menções são bem apontadas pelo Vitorino quando afirma que, toda ciência, seja
ela disciplina seja um conhecimento qualquer, “faz parte da filosofia, como parte divisível ou
como parte integral” (HUGO DE SÃO VITOR, 2001, p.127).
Como também quando diz:
O início da aprendizagem está na leitura, o fim na meditação, e se...
...E, após ter aprendido a querer e entender, pelas coisas que foram feitas, Aquele que fez tudo, ela inunda o espírito igualmente de ciência e de alegria, de maneira que na meditação aconteça o máximo de deleite (HUGO DE SÃO VITOR, 2001, p.151).
Para o autor não é só ler, pois a meditação é um nível mais profundo de reflexão. E,
para isso deve haver o ócio do latim ottium, porque se faz necessário repouso, tempo livre de
dedicação ao objeto de estudo.
Agostinho já dizia sobre a filosofia: “Se fosse possível atingir o porto da Filosofia –
único ponto de acesso à região e a terra firme da vida feliz -, numa caminhada exclusivamente
dirigida pela razão e conduzida pela vontade (...)” (AGOSTINHO, 1998:1, 1)
Neste pensamento, Agostinho usa o termo razão, porque a reflexão deve ser dirigida
por uma razão, e não apenas refletir pensamentos soltos sem direcionamento. Percebemos
uma preocupação pedagógica e uma relação entre os dois pedagogos: Agostinho e Hugo.
Quando Hugo de São Vítor descreve a definição de ciência e filosofia, ele inclui
pioneiramente a filosofia nas artes mecânicas.
Quanto à formação universitária que contempla muitos ensinamentos, disse Newman,
um cardeal, durante a fundação da Universidade de Dublin contrapondo-se ao pensamento de
Roger Bacon do séc. XVIII:
[...] tem como objetivo aumentar o nível intelectual da sociedade, cultivar a mente pública, purificar o paladar nacional, fornecer os princípios verdadeiros para o entusiasmo popular e objetivos determinados para as aspirações populares, elaborar as idéias de seu tempo, facilitar o exercícios dos poderes políticos e refinar o relacionamento da vida privada (Apud, KERR,2005, p.15).
Observa-se novamente, e agora já no séc XXI, a preocupação dos pensadores que o
nível superior ofereça uma diferença ao estudante o diferenciando de outros na forma em que
elabora seus conceitos, de forma a preparar também um grupo de influência na reflexão
social.
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Ainda, sobre essa preocupação o conhecimento, o cardeal Newman fala: “O
conhecimento podia ser um fim em si mesmo. Tal é a constituição da mente humana pela qual
toda espécie de conhecimento, enquanto real, encerra sua própria recompensa” (Apud, KERR,
2005, p.14). Sobre este pensamento, entendemos que naquele momento que o cardeal alemão
contrapunha-se ao pensamento meramente empírico de Roger Bacon, pois entendia ser o
pensamento humano nobre e perspicaz capaz de ir além, e que a pesquisa não deveria tomar o
lugar do ensino. O cardeal defendia “o conhecimento liberal”. Assim, como também é
sugerido por Hugo de São Vítor quando descreve a contemplação, para ele é: “vagar por
campos abertos, onde possa fixar seu livre olhar na contemplação da verdade, e cortejar ora
esta ora aquelas causas das coisas profundas, e não deixando nada obscuro” (HUGO DE SÃO
VÍTOR, 2001, p.151).
Ainda, no Da arte de ler notamos grande influência de um pensador romano Boécio, e
também Isidoro permeando os capítulos que descreve as artes do trivium e quadrivium2.
Mostrando que o teólogo tratou de apropriar-se de toda literatura clássica antes de começar
sua produção.
Ressaltamos também alguns aspectos da obra, o autor a dividiu em seis capítulos dos
quais, os três primeiros dão o princípio da alma, posicionam a filosofia como princípio de
todas as artes do trivium e quadrívium, como também dá conselhos de como ler, o que ler, e
em que ordem através do discernimento no estudo, meditação, memória, disciplina,
humildade, silêncio, despojamento e exílio.
Hugo de São Vítor apresenta um método de estudo embasado no agir pensando, ora et
labora (trabalha rezando). Afirma que existe ciência através do exercício da filosofia. Afirma
também haver um movimento circular entre a mente divina-natureza-homem-trabalho-mente
divina (MARCHIONNI, 2001, p.32). E isto é tão forte no autor que ele divide o livro da
metade para frente, onde explica como ler as Escrituras Sagradas como meio para encontrar a
Sapiência, portanto para ele, a aproximação de Deus acompanha a busca da Sapiência. Nos
capítulos (IV,V, IV) mostra de forma prática como estudar os livros sagrados, preocupando-se
com as fontes, com a tradução, com a história instigando o leitor à busca pela Sapiência
usando como meios o exercício da inteligência e da ciência de forma reflexiva sempre. 2 Trivium e Quadrivium, também denominado como as sete artes liberais, do Trivium temos a Gramática, a Retórica e a Dialética; o quadrivium é formado pelas disciplinas de Música, Astronomia, Aritmética e Geometria. Essas sete matérias serão consideradas básicas durante a Idade Média, embora os mestres medievais não possuíam uma unanimidade em relação as auctoritas trabalhada em tópico.
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E o que vem a ser a Sapiência para Hugo? A busca por Ela nada mais é do que a
aproximação de Deus, ou melhor, o próprio Deus. Para ele, nessa busca deve-se se afastar da
vida mundana. A filosofia, filos (amor) e Sofia (sabedoria), amor à Sabedoria aproximando-se
do divino. Para Hugo a perfeição é adquirida com a aproximação do divino, na capacidade de
adquirir uma mente viva, como a nosso ver evidencia o excerto abaixo:
E esta sabedoria divina é chamada de “mente viva”, que é a “razão” primordial das coisas aplica-se à Sapiência divina, da qual se diz que não carece de nada, pois ela contém nada de incompleto, mas conhece de uma vez por todas e simultaneamente a totalidade das coisas passadas, presentes e futuras. Ela é chamada “mente viva” porque aquilo que esteve só uma vez na mente divina não será cancelado, por nenhum esquecimento. Ela é “ razão primordial das coisas” porque todas as coisas foram formadas semelhantes a ela (HUGO DE SÃO VITOR, 2001, p. 83).
Na reflexão Hugoniana, a Sapiência guia todas as ações feitas pelo homem racional, e
lógico divide-se em duas partes; isto é, a inteligência e a ciência. A inteligência vai à
investigação da verdade e na reflexão dos costumes, que por sua vez divide-se num conceito
teórico-especulativo e prático-ativo baseado na ética e moral. Para ele, a inteligência é
dedicada à alma e a ciência ao corpo. A ciência, mediante a razão, conhece as ciências
naturais (HUGO DE SÃO VÍTOR, 2001, p.69).
A Sapiência, enquanto Mente Divina a ser procurada na filosofia, abrange como diz a
seguir, seja a atividade divina do homem como sua atividade corporal no trabalho. Deus cria a
natureza, que é o mundo divino supralunar, e da natureza deriva o mundo sublunar, no qual
Hugo insere o trabalho do homem como imitativo do mundo divino da natureza supralunar.
Desta forma, ele está inserindo o trabalho na dignidade filosófica, pela primeira vez na
história (HUGO DE SÃO VITOR, 2001, p. 65).
A natureza para Hugo é o que atribui a cada coisa o seu ser. Ou seja, é a própria
“Mente Divina”, razão, forma e estrutura de todas as coisas. Desta forma, o processo exitus-
reditus (saída-retorno) da alma humana, que saiu de Deus como ser perfeito e seu destino é o
retorno para a pureza e a simplicidade original. Deus é definido por Hugo, como a “Razão
única e primeira de todas as coisas” (HUGO DE SÃO VITOR, 2001, p. 53).
A semelhança do homem com a Sapiência é restaurada pelo próprio homem, mediante
atividade manual de trabalho e, sobretudo, pela atividade intelectual. Nisto se insere o ato de
ler que restaura em nós a semelhança com o divino.
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Conclusão
Durante o estudo da obra Da arte de ler, tivemos a oportunidade de conhecer um
clássico, que pode contribuir para nossa modernidade. Nessa análise, o objetivo primeiro foi
refletir sobre a “Sapiência”. Nesse sentido, constatamos que para Hugo de São Vítor, ela está
relacionada à aproximação de Deus primeiramente. E, ao relacionarmos as reflexões do
Vitorino com outros pensadores, observamos que existem discussões quanto á educação que
são perenes nos tempos desde a antiguidade até a modernidade. Desse modo, a ciência e a
filosofia no período da Alta Idade Média caminhavam juntas. Porém, mais tarde a ciência
separa-se da filosofia e ganha um cunho aristotélico, baseado na comprovação científica.
Já a universidade, instituição criada no séc. XIII é entendida como uma corporação de
ensino entre mestres e alunos, e a obra “Da Arte de Ler” contribuiu como um manual de
estudos medievais. E nela, percebemos a preocupação do Vitorino em dar ao estudante uma
Sapiência divina, que para este, era o caminho para o verdadeiro conhecimento.
Referências
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